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LEITURA, CINEMA E EDUCAO: INTERFACES1
India Mara Aparecida Dalavia de Souza Holleben2
Esmria Lourdes Saveli3 RESUMO Leitura, cinema e educao so temas sempre presentes nas agendas contemporneas de debates, sejam educacionais ou no. Quando combinados, as possibilidades de reflexo que engendram so ainda maiores. Considerando que as mdias - especialmente as audiovisuais - so atualmente, lugares de saber e atuam com as escolas e outras agncias socializando e educando indivduos, a influncia que as mudanas tecnolgicas exercem nas prticas educativas altera inegavelmente formas de pensar, ver, sentir, e de se relacionar com o mundo e o conhecimento. Assim sendo, o cinema pode, em sua realidade e magia, penetrar o universo educacional, possibilitando escola se expressar na linguagem cinematogrfica, juntamente com a leitura, tambm real e mgica. Inserido no sistema educacional formal, o cinema possibilita a reflexo sobre sua funo scio-educacional contribuindo para a emancipao cognitiva de professores (as) e educandos (as). O presente artigo procura ento, ao tomar a leitura, o cinema e a educao como fios que se entrelaam e so alinhavados por uma metodologia possvel - o Cine-Frum - tecer uma malha scio-cultural de significativas aprendizagens na compreenso da realidade e no compromisso com sua transformao. Relata ainda uma experincia realizada com os (as) professores (as) em que a Leitura o escopo das anlises trabalhadas em dois filmes da cinematografia brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Cinema e Leitura. Cinema e Educao. Linguagem Audiovisual. Cine-Frum. Formao cultural e educacional. Abstract Reading, cinema and education issues are always present in the agendas of contemporary debates, whether educational or not. When combined, the opportunities for reflection that engender are even greater. Consider the media - particularly the audiovisual-are now places to know and work with schools and other agencies socializing and educating individuals, the influence that technological change educational practices engaged in amending undeniably ways of thinking, seeing, feeling, and to relate to the world and knowledge. Thus, movies can, in its reality and magic, penetrate the educational universe, allowing the school to express in language film, along with reading, and also real magic. Inserted in the formal education system, the movies makes it possible to reflect on their socio-educational function contributing to the emancipation of cognitive teachers (as) and
1 Artigo Final - Programa de Desenvolvimento Educacional - Secretaria de Estado da Educao do Paran. 2 Professora PDE Titulada - Pedagoga, Mestre em Histria Social pela UFF-UNIOESTE (Universidade Federal Fluminense e Universidade Estadual do Oeste do Paran 2002). 3 Professora Orientadora - Doutora em Educao (2001) pela Universidade Estadual de Campinas Professora Adjunta da UEPG, Departamento de Educao.
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students (those). This article tries then, to take the reading, cinema and education as wires which intertwine and are basting for a possible methodology - the Cine-Forum - weaving a fabric of significant socio-cultural learning in the understanding of reality and the commitment to its transformation. Reporting still an experiment conducted with (the) teachers (as) where the "Reading" is the scope of the analysis worked in three films of the Brazilian film industry. KEYWORDS: Movies and Reading. Movies and Education. Audiovisual language. Cine-Forum and Methodology.
INTRODUO
Leitura, cinema e educao so trs temas relativamente genricos, mas
que do muito o que pensar. Quando combinados, as possibilidades de reflexo
so ainda maiores. Entretanto, por serem genricos, ao escrever sobre essa
temtica corre-se o risco de repetir jarges da moda, frmulas preestabelecidas,
questes que no aprofundam a discusso, ou ainda uma variedade de outras
abordagens que escaparia aos propsitos desse trabalho.
Contudo, a escolha da trade temtica que identifica este artigo, deve-se a
inmeras razes. Primeiro, parte de inquietaes pessoais vividas no exerccio do
magistrio e na organizao do trabalho pedaggico nas escolas da rede estadual
de ensino, h quase vinte anos, na qual constato as fragilidades no tratamento
dado leitura e ao uso adequado da linguagem audiovisual.
Segundo, a convico de que possvel sair do lugar comum para abord-
los, mostrando as possibilidades de uma articulao real entre eles. Nesse
aspecto, relata-se, a experincia feita com os professores do PDE (Programa de
Desenvolvimento Educacional), em que se realizou 4 (quatro) sesses de Cine-
Frum como Atividade de Docncia, prevista pelo Programa, para os professores
titulados que faziam parte do Programa.
Outra razo ainda, a polissemia desses conceitos ser compatvel com os
novos enfoques de pesquisas sobre formao de professores em que a amplitude,
abertura e pluralidade, sempre em dilogo com a tradio e atualidade, torna
3
factvel a reflexo sobre questes importantes e motiva aes relevantes. Ressalta-
se que as orientaes gerais da Secretaria de Estado de Educao e do Programa
PDE especificamente, se inscrevem nessas novas abordagens.
Assim, para a escrita deste texto, parte-se primeiramente de algumas
consideraes conceituais sobre os temas com o cuidado para que sejam
preservadas as especificidades de cada um, ao mesmo tempo em que se
considera possvel aglutin-los num mesmo universo temtico.
Compartilhando da afirmativa de Duarte (2002) de que o cinema como
prtica social to importante do ponto de vista da formao cultural e educacional
das pessoas, quanto a leitura de obras literrias, filosficas, sociolgicas e tantas
mais, (DUARTE, 2002, p. 17), ampliamos a compreenso de sua utilizao tanto
como instrumento de formao e crtica cultural, quanto de importante recurso
metodolgico a ser utilizado na escola, mas que ainda no alcanou o lugar que
merece dentro dela.
Nesta mesma linha de reflexo, Teixeira & Lopes (2003), entendem o cinema
como forma de criao artstica onde circulam afetos e o esprito se eleva
enriquecido pela experincia da arte que entre tantas, uma expresso do olhar
que organiza o mundo a partir de uma idia sobre esse mundo, (Idem, p. 10). Se
postas em movimento, essas idias sejam filosficas, estticas, histrico-sociais,
poticas, existenciais, etc., nos fazem compreender e dar sentido s coisas, assim
como ressignific-las e express-las. Da a utilizao do Cine-Frum como
metodologia e a leitura como componente principal dos filmes escolhidos para o
trabalho realizado com os professores.
Nesse sentido, j organizando h um bom tempo o tema, os referenciais, a
metodologia e inclusive o ttulo, faltava-me uma motivao inicial para a escrita, e
acabo por concordar com Marques (2001) quando afirma que a criatividade no
bicho que se agarre; ela surge de inopino, nos interstcios, nos sonhos da
imaginao vagabundos, de forma que, quando menos se espera, escrever
preciso. (MARQUES, 2001, p. 15).
4
Assim, depois de muito procurar e j incrdula que encontraria algo
efetivamente interessante, haja vista a inteno - sem ser presunosa - de sair do
lugar comum na escrita do texto, logo ao acordar, ao pegar o Jornal -
semelhana de tantos (as) brasileiros (as) - vida de novidades sobre a morte de
Isabela Nardoni - caso que tomou conta de nossas vidas nos ltimos dias - e l
estava o que precisava; mais do que isso, vinha na primeira pgina, era manchete.
Juiz solta hackers, mas exige que leiam clssicos da literatura.
A cada trs meses, jovens acusados de roubar senhas bancrias pela
internet tero de apresentar justia, resumo escrito de prprio punho. (Folha de
So Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2008, p. C1)
Para conceder liberdade provisria a trs jovens detidos sob a acusao de
praticar crimes pela internet, um juiz federal do Rio Grande do Norte, Mrio
Azevedo Jambo, determinou uma condio indita: que os rapazes leiam e
resumam, a cada trs meses, dois clssicos da literatura. As primeiras obras
escolhidas pelo juiz Mrio Jambo, 49, foram A hora e a vez de Augusto Matraca,
conto de Guimares Rosas (1908 -1967), e Vidas Secas, de Graciliano Ramos
(1892-1553).
O juiz Mrio Jambo disse que a Justia tem que sair da mesmice. uma
reflexo aos acusados, em crimes que no tm violncia ou grave ameaa. So
jovens que podem ser recuperados, justificou.
Assim, entre os condicionantes relativos ao aspecto educacional, alm da
leitura e elaborao de resumo das obras, caber aos acusados freqentar
instituio de ensino, comprovar presena e aproveitamento nas aulas.
Como os jovens so peritos em Internet, o magistrado determinou que os
relatrios sobre as obras devero ser feitos pelos jovens de prprio punho, e com,
no mnimo, 10 laudas. Eles ainda podero ser questionados sobre os livros em
audincias mensais.
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Na mesma pgina, o jornal apresenta uma entrevista feita com o juiz. Ao ser
perguntado por que a escolha das obras de Guimares Rosa e Graciliano Ramos,
responde: O Judicirio no pode ficar na mesmice. O que percebo que essas
pessoas acabam voltando ao crime. Temos que criar mecanismos que permitam
uma reflexo aos acusados. E por que as obras. Elas tm vnculo com o crime em
si. Eles so pessoas que tm computador, no so pobres, e justificam o crime
pela necessidade de ganhar dinheiro. Nada como ler Vidas Secas para perceber
o que vida dura, o que necessidade de dinheiro, o que pessoa ser tratada
como bicho.
Sobre a possibilidade de clonarem textos sobre as obras, o juiz argumenta:
Eles vo ter que ler os livros e apresentar o relatrio manuscrito, no pode ser
datilografado. J os alertei que conheo os sites que fazem trabalhos escolares,
muito fcil comparar os textos. Tambm no quero letra grande para pular pginas
e vou fazer perguntas sobre os personagens. Estou pensando at em fazer uma
sesso de cinema para discutir o filme Vidas Secas
Outra postura que merece destaque a do advogado de um dos jovens
acusados que afirmou que seu cliente ainda no se matriculou na faculdade, mas
j comprou os livros sugeridos pelo juiz. Disse ainda que se for necessrio um
professor ser contratado para que o jovem entenda a obra. O advogado
classificou a deciso judicial como uma redeno, dizendo: (...) foi uma forma de
integr-los sociedade e uma redeno, porque j no h educao no Brasil.
Uma deciso dessas favorece o jovem para fins positivos, afirmou o advogado.
deciso indita do juiz cabem reflexes importantes que sero
oportunamente discutidas no decorrer do texto.
Em um dos ltimos trabalhos que realizou, Mario Osrio Marques (2001, p.
13) diz que Coar e comer s comear. Conversar e escrever tambm. De fato,
tem razo o autor, pois enquanto motivada escrevia a notcia do jornal, veio-me
lembrana uma cena da ltima minissrie exibida pela Rede Globo, em fevereiro e
maro de 2008.
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Adaptada do livro Aos meus Amigos, de Maria Adelaide Amaral (1992),
Queridos Amigos, uma minissrie que se passa no final dos anos 80, um perodo
em que no Brasil e no mundo perde-se referncia das esquerdas e cresce o
individualismo. A trama registra o cotidiano e a trajetria de um grupo de amigos
que festeja o rveillon de 1981 e depois se separa por contingncias vrias, entre
as quais, relaes amorosas, questes polticas, mgoas e sentimentos no ou mal
resolvidos. O personagem protagonista da histria Lo (Dan Stulbach), cineasta
e escritor, ao sonhar com sua morte, descobre-se muito doente (esclerose
mltipla). Frente proximidade de seu fim Lo decide reunir a famlia - o grupo de
amigos costumava se chamar assim - em uma festa, em novembro de 1989, quase
dez anos depois do ltimo grande encontro que tiveram. Para Lo o que menos
importa sua doena. No lugar de procurar tratamento, ele escolhe fazer da morte
uma grande obra-prima, j que no fez em e da vida. Sensvel e carecendo se
cercar de amizade e amor dos queridos amigos, seu desejo maior restituir o amor
entre a famlia e dar a cada um deles a possibilidade de reviver e realizar sonhos e
ideais que foram se perdendo no perodo que estiveram ausentes uns dos outros
pela vida.
Entre as muitas tramas vividas pelos casais da minissrie, esto Pingo
(professor universitrio) e Raquel (dona de casa), casados, pai e me de quatro
filhos. Apaixonadssima pelo marido, Raquel no se incomoda com suas pequenas
traies. Entretanto, o ltimo enlace que teve com uma de suas alunas, aprisiona
Pingo, e ao ser descoberto e pressionado pelo filho mais velho (Pedro), no lhe
resta outra sada, seno a de contar tudo Raquel e dela se separar. No se
podia esperar outra reao de Raquel que no fosse a dor, sentida e chorada
profunda e absolutamente, de forma inesgotvel, infindvel.
Os filhos consternados pela dor da me procuram o pai, quase implorando
sua volta para casa. Em no obtendo sucesso nas investidas feitas, Pedro busca
uma soluo incomum: arma-se com um revlver de brinquedo e ameaa o pai. Na
seqncia da cena, quando saem para dar uma volta para se recuperarem do
susto, Pingo e a nova mulher (Lorena), passeiam s margens de uma rodovia onde
se localiza a favela onde Pingo crescera. Este, ao relatar um pouco de sua
trajetria de menino pobre, diz estar muito preocupado com o filho adolescente,
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pois j tivera aquela idade e comportamento semelhante. Em outras palavras, diz
ter sido bandidinho na idade de Pedro. Rindo e incrdula com o que ouvia,
Lorena indaga como ele se tornara um professor universitrio e de Literatura.
Responde Pingo: fui para um reformatrio e meu trabalho l era limpar os livros da
Biblioteca. Comecei a ler e me apaixonei por eles me tornando o que sou.
Assim, dada a largada para a escrita do texto, a notcia do Jornal e a cena
da TV provocam em mim indagaes que do lugar de onde falo - da educao e do
magistrio -, deveriam ser obviedades e no indagaes. Digo isso a propsito da
funo da escola e do educador, no que se refere formao de leitores. Que
responsabilidade tem a escola por deix-los prpria sorte na aprendizagem da
leitura? Realidade de um lado, no caso dos hackers; fico de outro, no caso do
personagem Pingo da Minissrie.
E como assevera Umberto Eco (1993) que qualquer texto seja ele um
filme, um livro, uma sinfonia, etc. - sempre possibilita inmeras interpretaes e
mltiplas leituras, trago para o dilogo as discusses feitas pela professora Nilma
Gonalves Lacerda sobre como a leitura forma uma classe pensante.
Professora e escritora, Nilma Gonalves Lacerda (2003) para responder a
uma pergunta de um aluno de como que a leitura forma uma classe pensante,
escreve um texto intitulado, Os peixes de Schopenhauer: leitura e classe pensante
e a partir da pergunta do aluno, narra momentos educativos de sua trajetria de
vida e profissional e nos proporciona uma sntese de suas (pr) ocupaes com as
temticas da leitura e da literatura e seus estreitos nexos, dentro e fora do
ambiente escolar.
Combinando de forma admirvel e exemplar, leitura e literatura, vida pessoal
e profissional, a autora desenvolve apropriaes importantssimas sobre como
formar uma classe pensante a partir da leitura.
Entre muitas lies que nos oferece o texto, vamos aqui concentrar nossos
comentrios no substrato da pergunta do aluno professora Nilma, ou seja, o
binmio leitura e classe pensante, sobre o qual, a autora argumenta em diversas
passagens do texto como nessa que se segue: um livro deixa perguntas (...) para
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responder a elas preciso pesquisar, pensar, analisar, comparar, avaliar etapas
da atividade de pensar. (LACERDA, 2003, p. 229).
Provocada pela pergunta, a professora-autora vai em busca de argumentos
que lhe possam dar melhor a resposta. Nas buscas que faz, encontra
Schopenhauer que sobre o ato da leitura diz quando lemos outra pessoa pensa
por ns: s repetimos seu processo mental (LACERDA, apud Schopenhaurer,
1994, p.21). Para o pensador s se chega apropriao do que lemos pela
ruminao.
Assim, a ruminao - processo pelo qual o leitor precisa do ir e vir,
movimento que propicia a sedimentao de sentidos, na disperso voltil e na
fixao do slido (Idem, p.235) - que possibilitar ao leitor construir malhas de
significao, estreitando as relaes entre elas, capturando tambm os seus
sentidos escritos e apagados.
Na seqncia da narrativa, a professora-autora afirma que a literatura
condensa experincias, informaes, rasga sentidos em direes nunca antes
visitadas (Idem, p. 239), Assevera, no entanto, que para chegar a essas
experincias e (...) fazer-se leitor requer deciso e arbtrio pessoal, renovado a
cada novo texto que chega. A leitura foge aos atos repetidos e demanda uma
ateno empenhada. (Idem, p. 250). Da afirmar em outra passagem que (...)
leitores no nascem feitos, mas se formam com trabalho e determinao (Idem,
p.228).
Os destaques da autora ao perigo e a provocao da leitura, emergem em
todo o texto. Observa na seqncia de sua narrativa, que tambm somos um texto,
provoca em mim, leitora, uma aprendizagem j intuda, mas ainda no verbalizada
e convence-me de que tem um valor particular, o (a) professor (a) que possibilita
iniciar seus (suas) alunos (as) nesses caminhos, nessas buscas.
Entre o texto que somos e o texto que se l, h um emaranhado de linhas em trnsito, linhas dos contextos em que estamos leitor e texto, imersos, em meio circulao de complexas e extensas redes, abertas at o infinito produo de sentidos. (LACERDA, idem, p.235).
9
Guiomar de Grammont (1999), tambm escritora e professora de Filosofia, inicia
seu texto dizendo que ler devia ser proibido porque acorda os homens para realidades
impossveis e os torna homens incapazes de suportar esse mundo insosso e ordinrio em
que vivem. (GRAMMONT, 1999, p. 73).
Em Pedagogia Profana: danas, piruetas e mascaradas, (1999), no texto Leitura e
Metamorfose, tecendo comentrios sobre o poema O leitor, de Rilke, Larossa afirma ser a
iniciao leitura, o comeo de um movimento excntrico, no qual o sujeito leitor abre-se
sua prpria metamorfose. (LAROSSA, 1999, p. 13).
Aponta a experincia da leitura como uma experincia de abandono s
seguranas do mundo administrado, incluindo as que constituem a prpria identidade do
leitor, e como uma entrega a um outro mundo que inquieta, interrompe e transforma o
primeiro. (LAROSSA, 1999, p. 13).
Os excertos sobre a leitura da literatura na formao de seres pensantes, da
professora Nilma; de possibilitar a provocao do inesperado da professora Guiomar; e a
experincia da leitura como converso do olhar que tem capacidade de ensinar a ver as
coisas de outra maneira, de Larossa, sero tomados como pontos de partida para a
escrita desse ensaio.
Para dispor a discusso articulao de um outro tipo de texto - a obra
cinematogrfica - dois filmes exibidos nos Cine-Frum com professores PDE, versando
sobre a leitura e a relao leitor-expectador e a mediao de um terceiro sujeito, neste
caso, o professor, sero tambm objetos de anlise dessa escrita.
10
CINEMA E EDUCAO
As razes que aproximam educao e cinema so muitas e variadas. Uma
delas de que educao pode criar condies para uma leitura crtica do cinema
e sua produo filmica. Por outro lado, se a educao tem tambm como finalidade
a formao esttica dos sujeitos, necessita (e tem condies para isso) apreender
da especificidade das obras flmicas, parmetros que a oriente.
Martins (2002), dialogando com os escritos de Walter Benjamin, em relao
s possibilidades de reflexo do cinema em sua capacidade de ir at estratos
ocultos da realidade, provocando paralelamente diverso um alargamento da
percepo, observa que pela sua diversidade de temas, conceitos e interpretaes,
permite a interao entre outras reas do conhecimento e promove momentos
interdisciplinares durante esse processo, como tambm possibilita a concepo e
produo de metodologias diversificadas de ensino com base em sua linguagem,
interferindo na formao de educandos (as) para o exerccio da cidadania.
Entretanto, ao se empregar o cinema como recurso didtico, preciso
adotar um mtodo de leitura do filme e de seus elementos constitutivos, tais como:
tcnicas de produo, grupos sociais que interagem em sua elaborao, a poltica
e a sociedade que o produz e o consome, considerando todas as variveis sociais,
culturais e ideolgicas. (MARTINS, 2002, p.1).
importante compreender tambm que esses elementos constitutivos
fazem da obra flmica um artefato cultural, e como tal, possui um texto visual que
merece - como todo texto escrito - um rigoroso exame de sua linguagem, de sua
sintaxe, de seu discurso, no sentido de apreender as determinaes essenciais
presentes em sua totalidade.
Desta forma, realizar a anlise crtica de um filme significa captar a
coerncia interna dos elementos que o sustenta, em especial, na apreenso dos
fatos narrativos, quer sejam os ditos, como os no-ditos. Portanto, embora seja
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impossvel subtrair a leitura interpretativa que cada um a seu modo, faz de uma
obra flmica, para ser crtica, uma anlise deve superar a mera suposio subjetiva
de quem analisa.
Detalhes so importantes, mas no so essenciais em uma anlise. O que
no quer dizer que se possa desprez-los na narrativa. O que se pode apreender
os nexos essenciais de sua estrutura narrativa e os temas significativos que a
compem e que podem ser desenvolvidos pela anlise crtica. Desse modo, a
melhor teoria explicativa de um filme aquela que consegue dar mais significados
heursticos ao maior nmero de seus elementos narrativos.
A introduo de imagens cinematogrficas como recurso pedaggico no
ensino no s possvel como desejvel, entretanto, faz-se necessrio indagar
como tem sido realizado esse trabalho no contexto escolar. Dada a sua
complexidade, a percepo da linguagem cinematogrfica no imediata,
processo, e como tal, torna-se pertinente refletir sobre as formas pelas quais
professores e alunos tm se apropriado dessa linguagem como instrumento
didtico. Neste aspecto, no sentido de interpretar a dupla interveno na leitura da
imagem cinematogrfica, Novaes (1988) afirma que como processo, essas
intervenes tanto so mediadas pelo olhar de quem produz a imagem, como
tambm daquelas presentes no olhar de quem as recebe.
De forma semelhante, ao considerar a leitura da imagem flmica como
processo observvel sobre diferentes aspectos, Loureiro (2006), reconhece que a
anlise de filmes pode ter um desdobramento para a prpria teoria educacional
medida que sugere eixos constitutivos de uma educao dos sentidos.
(LOUREIRO, idem, p.15).
Em vrias observaes - resultantes de suas pesquisas - Duarte (2002),
argumenta que reconhecidamente o cinema desempenha um importante papel na
formao cultural das pessoas, e ver filmes na televiso ou no cinema, pode ser
considerada uma prtica usual em quase todas as camadas sociais da sociedade,
principalmente em ambientes urbanos. Por essas razes no se pode negar que
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de um modo ou de outro, o cinema est presente no universo escolar (Idem, p.
86).
No trabalho que realizam em A escola vai ao cinema, Teixeira & Lopes
(2003) explicitam que tal como a literatura, a pintura e a msica, o cinema deve
ser um meio de explorarmos os problemas mais complexos do nosso tempo e da
nossa existncia, expondo e interrogando a realidade, em vez de obscurec-la ou
de a ela nos submetermos. (Idem, p.10.).
Advertindo-nos de que imperativo o cuidado para que a aproximao
desejada e necessria entre cinema e educao no tenha como prerrogativa sua
escolarizao ou didatizao, os autores afirmam:
No estamos e no queremos conceb-lo e restringi-lo a um instrumento ou recurso didtico-escolar, tomando-o como estratgia de inovao pedaggica na educao e no ensino. Isso seria reduzi-lo por demais. Ao contrrio, por si s, porque permite a experincia esttica, porque fecunda e expressa dimenses de sensibilidade, das mltiplas linguagens e inventividades humanas, o cinema importante para a educao e para os educadores, por ele mesmo, independente de ser uma fonte de conhecimento e de servir como recurso didtico-pedaggico como introduo a inovaes na escola. (TEIXEIRA & SOARES, 2003, p.10-11).
Nesse sentido, cabe tambm e principalmente escola o trabalho educativo
de formar e sensibilizar as novas geraes para a especificidade dessa linguagem,
tanto para as suas potencialidades na leitura do mundo e da vida, quanto para os
perigos e as armadilhas que ela comporta (TEIXEIRA & SOARES, 2003, p.14).
Como a funo social da escola tambm de mediao entre o
conhecimento produzido e os educandos, em relao produo esttica do
cinema, a responsabilidade que tem, alm de despert-los para o fascnio de sua
magia tambm combater todas as formas de massificao de narrativas, contra
todo o colonialismo de qualquer sistema de signos que se procure impor
(TEIXEIRA & SOARES, 2003, p.14).
Entretanto, dot-los de capacidade critica e esclarecimento para tir-los da
condio de consumidores passivos, no significa restringir a eles, o prazer
13
contido na experincia esttica proporcionada pelo cinema de boa qualidade.
(Idem, p.14).
Coutinho (2002), organizadora da Srie Dilogos Cinema-Escola da TV-
ESCOLA, observa que os filmes so produtos da cultura, manifestaes esttico-
culturais, obras abertas e que, portanto, no foram pensadas para a escola ou para
a educao.
Considerando que a educao realizada pela escola exige determinados
requisitos curriculares como contedos, seriao, disciplinas, mtodos horrios,
etc., na arte cinematogrfica, os filmes no foram pensados para atend-los,
embora se possa dizer que a vocao educativa dos filmes praticamente inerente
sua produo.
Desde as ltimas dcadas do sculo XX, a sociedade assistiu e assistir o
surgimento de tecnologias que desafiaram e desafiaro os fundamentos dos atuais
sistemas de educao, principalmente porque mesmo dada a modismos, nesse
aspecto, a escola resiste bravamente s mudanas.
Temos testemunhado que mesmo com toda a inovao tecnolgica
existente e a vitalidade com que a linguagem audiovisual se firmou na sociedade
contempornea, a educao escolar est, ainda, em grande parte, centrada na
escrita e na oralidade. No se quer dizer com isso que o uso da escrita e da
oralidade se enfraquecer ou se tornar apenas um histria a ser contata, de forma
alguma. Na verdade, as formas de comunicao e de transmisso de
conhecimentos entre os seres humanos - desde o seu nascimento - prescindiram
da linguagem, primeiramente oral, depois a escrita. O que questionamos a
metodologia utilizada no ambiente contexto escolar, que, via de regra, secundariza
o uso dos aparatos de imagem e som. Quando estes chegam s salas se aula,
chegam como ilustrao, anexo, acessrio do texto quando no, servindo ao
propsito de justificar a no preparao de aulas, dando lugar ao improviso.
Almeida (1994) ao tecer uma severa crtica escola questionando sua
desatualizao, diz que esta sublinhada pela separao entre cultura e
educao (ALMEIDA, 1994, p.8). Argumenta que a cultura localizada num
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saber-fazer e a escola num saber-usar, e nesse saber-usar restrito, desqualifica o
educador que vai ser sempre um instrumentista desatualizado. (Idem, idem).
Mesmo que defenda o texto escrito como referencial mais importante de
escolarizao e formao das pessoas, o autor inscreve uma outra razo alm da
desatualizao que separa cultura e educao, inclusive a nomeia como mais
importante, diz ele: atualmente, h uma grande maioria de pessoas cuja
inteligncia foi e est sendo educada por imagens e sons, pela quantidade e
qualidade de cinema e televiso a que assistem e no mais pelo texto escrito
(ALMEIDA, 1994, p.8).
Nesse sentido, os argumentos do autor indicam que urgente a utilizao
de sons e imagens pela escola, pois os considera uma moderna forma de
entender e agir no mundo. No entanto, na seqncia de sua defesa, assegura:
importante no ver o cinema como recurso didtico e ilustrativo, mas v-lo como
um objeto cultural, uma viso de mundo de diferentes diretores e que tem uma
linguagem que performa uma inteligncia verbal e, ao mesmo tempo, uma
linguagem diferente da linguagem verbal. (ALMEIDA, 1994, p. 8).
inegvel que a influncia da televiso e do cinema na vida das pessoas
hoje superdimensionada, em razo de que as imagens e os movimentos
sonorizados do cinema e da televiso tm um grau forte de 'realidade'. (ALMEIDA,
1994, p. 8), da comportar uma forte absoro e reproduo de comportamentos
e vises de mundo (ALMEIDA, 1994, p.9).
Na mesma linha de reflexo se expressa Pasolini (1990):
Nada como fazer um filme obriga a olhar as coisas. O olhar de um literato sobre uma paisagem, campestre ou urbana, pode excluir uma infinidade de coisas, recortando do conjunto s as que o emocionam ou lhe servem. O olhar de um cineasta - sobre a mesma paisagem - no pode deixar, pelo contrrio, de tomar conscincia de todas as coisas que ali se encontram, quase as enumerando. De fato, enquanto para o literato as coisas esto destinadas a se tornar palavras, isto , smbolos, na expresso de um cineasta as coisas continuam sendo coisas: os signos do sistema verbal so, portanto simblicos e convencionais, ao passo que os signos do sistema cinematogrfico so efetivamente as prprias coisas, na sua materialidade e na sua realidade. (PASOLINI, 1990, p.23)
15
H, entretanto, na veracidade das palavras do cineasta Pasolini, o indicativo
de que ao pensarmos a linguagem prpria do cinema, devamos ter em conta que a
histria contada pelo filme no est desvinculada de seu processo de criao. Ao
se projetar como instrumento de socializao, veiculando informaes,
comportamentos e sentimentos, o filme pode tornar-se objeto sociolgico, j que
seus enredos so reflexos, via de regra, das sociedades que os forjaram.
(FERRAZ & CAVALCANTI, 2006, p. 161).
Almeida (1994) ao afirmar que o significado de um filme no linear, mas
so dados pelo processo de filmagem, de concepo, da tecnologia da mquina,
da possibilidade-limite da inteligncia e da tcnica em dado momento histrico.
(Idem, p.11), est de certa forma nos alertando sobre a forma como as pelculas
produzem (e no reproduzem!) determinada realidade.
Nessa perspectiva, importante que tenhamos claro como educadores que
embora reflitam as nuances do cotidiano e suas ideologia, nem sempre a obra
flmica fiel realidade que reproduz. Essa constatao muito mais evidente
hoje que em outros momentos, pois as produes cinematogrficas so feitas por
aparatos tecnolgicos em seu mais alto grau de desenvolvimento.
Avaliando essa influncia, Ruberti & Amaral (2006), observam que vivendo
em uma sociedade caracterizada pela superexposio de artefatos imagticos,
hbridos e hipertextuais, fundamental que professores (as) interpelem alunos
(as), no sentido de mostrar que o universo das imagens tanto pode ser meio
formativo como deformativo; meio de sociabilidade como de incomunicabilidade
entre sujeitos.
Sobremaneira, no trato com as imagens e sons do cinema, como em outras
e demais linguagem, ao criador permitida - ao sabor de interesses e usos
econmicos, sociais, polticos ou culturais - a ao de distorcer, omitir, fragilizar
situaes e personagens. Por outro lado, o cinema pode como j fez a Histria-
disciplina, dar visibilidade apenas aos vencedores, seja ampliando suas
potencialidades, polarizando suas verdades e/ou superdimensionando sua
autoridade. Esse cuidado uma tarefa unvoca do (da) educador (a) quando
trabalha com produes de cinema e/ou televisivas.
16
MEMRIAS DA LEITURA NA ESCOLA
Embora amplamente discutida, a questo da formao de leitores atravs da
escola, ainda uma questo que ocupa cada vez mais, lugar de destaque em pautas e
agendas sociais, seja em discursos, como em propostas de variada natureza, em
especial de natureza educacional.
Entretanto, metaforizando-a como uma balana, em que de um lado se
encontra a escola e de outro lado, outras agncias educacionais, para onde pender o
fiel da balana em relao ao papel da escola na formao do leitor?
Essa uma questo que no admite apenas uma reposta, tampouco uma
indagao fcil de ser respondida. Muitos estudos e pesquisas de diferentes reas, no
apenas a educacional, tm tentado respond-la. De diferentes jeitos, com diferentes
abordagens, estes estudos tm procurado palmilhar os espaos de constituio do
leitor, e de forma unnime entre esses lugares, est a escola.
Jacchieri (2006) ao relatar as lembranas de sua insero no ambiente
escolar diz ter sido fundamental esse momento em sua formao de leitor,
expressando-se da seguinte maneira:
Deslumbrando com o novo cenrio social que se abria para mim, no bulcio da crianada no primeiro dia de escola, entrei na sala de aula eu me postei perfilado de escoteiro no meu lugar. (...) Me senti mudando em gente grande. Me senti um trabalhador aprendendo uma nova profisso: a de saber ler e escrever. Me senti um soldado armando para a conquista da sabedoria da escrita que, a mais daquela que se aprende vivendo, somente se adquire nos livros(...) L fui eu, criana, curioso para descobrir como que se escreve nos livros tudo o que acontece no mundo e da, com eles, como que se aprende a reler o acervo do universo literrio que demandou milnios e milnios para se acumular.(...) Afinal de contas, a frica do Tarzan, a China do Marco Polo, as lguas de Julio Verne, as serras do Peri, da Ceci e do Saci-Perer, etc., sem esquecer dos montes Crtapos com os nevoentos castelos de Conde Drcula, se encontravam de fato nos mapas da Geografia Fsica, lhes conferindo imaginosas significaes, que favorecem memoriz-las. As aventuras dos cangaceiros de Lampio, o Navio Negreiro de Castro Alves e as Reinaes de Narizinho e do pobre Jeca Tatu, com brasileirssimas lies-de-vida, entusiasmavam a leitura da Histria do Brasil do Rocha Pombo. (...) Guardo lembranas de uma escola, prestigiando, antes de tudo mais, a inteligncia dos alunos, ensinando-os a no a deixarem prisioneira de informaes provisoriamente
17
objetivas, e, tampouco, solt-la em deslumbramentos subjetivos. (...) Lembro de uma escola criadora de leitores abertos e curiosos a conhecer de tudo um pouco, e melhor se situarem nos tesouros de suas preferncias espirituais. (...) Em suma, de uma escola formando conscientes leitores sociais, exigentes de os textos preservem, entre outros mritos, uma relao evidente entre as definies verbais e as significaes sensveis. (...). (JACCHIERI, 2006, p. 4-5).
Para o professor Ezequiel Teodoro da Silva, um dos pioneiros destes estudos
no Brasil, referindo-se ao papel da escola, a leitura vai mal no Brasil, porque a escola
vai mal. Ainda que as diferentes motivaes para a prtica da leitura estejam
vinculadas a condies supra e infra-estruturais de uma sociedade, no h como negar
que a escola, como instituio encarregada pela formao educacional das novas
geraes, exerce um papel de mxima importncia na preparao de leitores. Nestes
termos pode se afirmar que a um ensino de qualidade, atendendo as exigncias de
excelncia, segue-se a formao de leitores maduros, com competncia suficiente para
caminhar livremente pelos mltiplos quadrantes do mundo da escrita. (SILVA, 2006, p.
1).
Adiante, o professor mais enftico ao descrever o Brasil como um pas que
tem um ensino livresco dentro de uma escola sem livros (SILVA, p. 2). Afirma ainda,
que a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas, na maioria das vezes
aquela que se sustenta no livro didtico, quando no exclusiva. E como, via de regra,
os manuais didticos, so pacotes impressos preocupados majoritariamente com o
repasse de informao, acaba por se tornar um esquema redutor da leitura de uma
diversidade de obras, como tambm tende a ser um competente destruidor de possveis
vontades ou curiosidades dos leitores, durante a fase de escolarizao (SILVA, idem,
p. 2.)
Abramovich (2006) em sua argumentao, atenta para a metodologia
adotada pela escola na (no) formao de leitores, observa: Leitura embriaguez,
volpia, fissurao, mergulho vital e empurrante, queijo cado com o inesperado, da
surpresa da descoberta de um jeito de ser que nem sabia que se podia ter emoo
escorregando pelos poros, suspiros com a poetura (...) (Idem, idem). Isso tudo sem
nenhuma cobrana que no as prprias, sem fichas pra responder, sem prova pra
checar se cada detalhe desimportante foi atentamente observado, sem ms
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determinado pra ficar acompanhado daquele volume e no de outro mais cobiado e
desejado. (Idem, p. 4).
Leitura paixo, entrega, tem que ser feita com teso, com mpeto, com garra. De quem l e de quem indica. Com trocas saboreadas e no com perguntas fechadas e sem espao pra opinio prpria, pensada, sentida, vivida. Seno, s pura obrigao. E a como tudo o mais na vida, no vale a pena. Mesmo. (ABRAMOVICH, 2006, p, 4).
Perroti (2006) faz uma distino entre ledores e leitores e explicita que
ledores motivados pelo consumo, so aqueles que tm com a linguagem apenas uma
relao mecnica, no se preocupando em atuar efetivamente sobre as significaes e
recri-las. J os leitores, seriam seres em permanente busca de sentidos e saberes, j
que reconhecem a linguagem como possibilidade e precariedade, como presena e
ausncia ao mesmo tempo.
Analisando como a leitura no mundo contemporneo tende lgica do
mercado e do comrcio, como todo o resto, atingindo no apenas os escritores, como
toda a sociedade de consumo, Perotti (2006) afirma:
(...) A lgica de nossas sociedades tende a conferir especial ateno aos ledores deixando margem mnima para os leitores e suas dificuldades. Por isso, na mesma proporo em que aumenta o nmero de livros no mercado, multiplicam-se os ledores e no leitores. Em outras palavras, h cada vez menos condies de exercitarmos leituras reflexivas, aquelas que exigem forte concentrao, que demandam tempo, anotaes, perguntas a outros autores, a outros leitores, que conduzem a releituras, ao estudo de pequenos trechos, a embates profundos e intensos entre texto e leitor. (...) (PEROTTI, 2006, p. 3-4).
Como assevera Perotti (2006) e ele mesmo o diz que muito antes dele, Paulo
Freire faz uma comparao semelhante ao distinguir o hbito e do ato de ler. Para
Paulo Freire, enquanto o hbito de ler est ancorado na decifrao mecnica da
linguagem, no ato de ler, esta decifrao ancora-se na opo, no exerccio da
possibilidade humana de articular o agir, ao pensar, ao definir, ao escolher.
Tambm Prado (2006) assegura que necessrio criar condies favorveis de
leitura, o que pressupe trabalhar com diferentes textos. Alm do livro, outros materiais
em que a palavra escrita ferramenta para o acesso informao, ao entretenimento,
19
compreenso crtica do mundo. (PRADO, 2006, p. 72). No que se refere funo da
escola, defende:
Principalmente quando os alunos no tm contato sistemtico com bons materiais de leitura e com adultos leitores, quando no participam de prticas onde ler indispensvel, a escola deve oferecer materiais de qualidade, modelos de leitores e prtica de leitura eficazes. Essa pode ser a nica oportunidade de esses alunos interagirem significativamente com textos cuja finalidade no seja apenas a resoluo de pequenos problemas do cotidiano. preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do mundo: no se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam apenas durante as atividades em sala de aula, apenas no livro didtico, apenas quando o professor pede. (PRADO, 2006, p.72)
Assim, no trabalho com a diversidade textual, que possvel formar leitores
competentes que para a autora so pessoas com iniciativa prpria, que so capazes
de selecionar dentre os textos que circulam socialmente aqueles que podem atender s
suas necessidades e so capazes de utilizar procedimentos adequados de ler. (Idem,
p. 72).
Ao encerrar o texto, Prado (2006) defende que toda a criana, jovem e adulto
tm direito a essas experincias tambm na escola. E isso requer trabalho pedaggico
criteriosamente planejado que contemple alm de diversos tipos de textos, tambm
objetivos e formas de ler, diversificadas. Adverte ainda que, esse trabalho requer um
considerado esforo, haja vista que a primeira mobilizao deve ser de ordem
introspectiva. Em outras palavras, a escola precisa faz-los achar que ler algo
interessante e desafiador, algo que, conquistado plenamente, dar a eles, autonomia e
independncia (Idem, p. 73).
Assuno (2006), nos apontamentos que faz sobre fome (zero) de literatura em
nosso pas, observa:
Uma poltica cultural eficiente para a literatura ter, necessariamente, que enfocar dois eixos: o da criao e o da leitura. A despeito da produo literria de altssima qualidade, o Brasil um pas de poucos leitores. H um hiato, uma distncia, entre os dois plos. Produz-se boa literatura no Brasil, mas o pblico no toma conhecimento, no tem acesso. preciso, ento, urgentemente, aproximar essas duas pontas do mesmo fio. (ASSUNO, 2005. Disponvel em http://www.vivaleitura.com.br/artigos. Acesso em 25/04/2008)
20
Enfatiza o autor que campanhas com personalidades na televiso jogadores de
futebol, por exemplo, no resolve a questo. O que imprescindvel, isso sim, levar
os criadores para onde est o pblico: principalmente as escolas, os colgios, as
universidades. (...) e ter em mente, tambm, que mesma medida, fundamental,
melhorar a qualidade de leitura, no basta apenas aumentar o nmero de leitores.
Precisa aumentar a qualidade de leitura. O que adiantaria sermos uma Nao de
grandes leitores de livros de... auto-ajuda? (Idem, idem).
Jorge Werthein (2005) representante da Organizao das Naes Unidas para
a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco) no Brasil, mostrando os dados do INAF
(Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional) assegura que somos um pas de 16
milhes de analfabetos absolutos, com 15 anos ou mais e isso representa 9% da
populao, significando que apenas um tero dos brasileiros domina os princpios
bsicos de leitura e da escrita. Os outros 66% lem, mas no entendem sequer textos
simples.
O estudo aponta ainda a necessidade de se investir na melhoria da qualidade
do ensino para recuperar o tempo perdido e colocar o Pas no circuito das idias
contemporneas, entre as quais se destaca a luta pela universalizao da cidadania.
Da a necessidade de formao de uma sociedade leitora, pois considera a
leitura o meio mais eficaz para que o indivduo se comunique com o mundo, tenha
contato com novas idias, pontos de vista e experincias que talvez sua vida prtica
jamais lhe proporcionasse. No ler traz prejuzos que vo desde o desenvolvimento
pessoal e profissional at a ampliao das desigualdades sociais, afirma.
(WERTHEIN, 2005 p. 81)
Os dados da pesquisa trazidos pelo autor, revelam ainda que 67% dos
brasileiros se dizem interessados pela leitura. Assim, embora o Brasil seja um pas
que l pouco, tem grande potencial para se tornar uma nao de leitores. Entre muitos
componentes que faz o pas ter esse potencial, a constatao de que tem a maior
indstria editorial da Amrica Latina, com excelente nvel de produo editorial,
parque grfico atualizado e grande produo de papel.
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O que contraditrio nesses dados que apesar do potencial e do mercado
editorial ser magnnimo, ainda assim, no l, ou se l muito pouco. Uma das
explicaes dadas pelo autor de no se l pela dificuldade de acesso ao livro e pela
falta de bibliotecas e de livrarias. Calcula-se que 73% dos livros no Pas estejam
concentrados nas mos de 16% da populao. Em cerca de 1 mil municpios, nos
quais vivem 14 milhes de pessoas, no existem bibliotecas pblicas; em 89% deles,
no h livrarias (WERTHEIN, idem, idem)
Tambm Soares (2006) traz dados e anlises importantssimas, para essa
discusso, como a que se segue:
So 57 milhes de brasileiros, ou um tero da populao, matriculados na escola bsica, acrescidos de dois milhes de professores nesse grau de ensino e mais cerca de 4,2 milhes de alunos e professores do ensino superior. Colocando na ponta do lpis so 63,2 milhes de pessoas potenciais consumidores de livros, representando um contingente igual ou maior que a populao de muitos pases, como a Frana, por exemplo. quase quatro vezes mais do que o atual mercado comprador de livros do pais (17,5 milhes de pessoas ou 20% da populao brasileira alfabetizada acima de 14 anos). Hoje, o mercado editorial brasileiro um setor da economia que movimenta R$ 2,4 bilhes ao ano e produz 300 milhes de exemplares e 35 mil ttulos lanados o que, em nmeros absolutos, o credencia a um dos maiores do mundo. Porm quando inclui?Se na equao o nmero de habitantes, essa impresso cai por terra. O ndice de leitura per capita/ano no chega a dois livros. Pior: 61% dos brasileiros adultos alfabetizados tm muito pouco ou nenhum contato com livros e entre as 17 milhes de pessoas que no gostam de ler livros, 11,5 milhes possuem at 8 anos de instruo. A escolaridade mdia dos brasileiros no chega a seis anos, o que menos da metade dos anos que um coreano passa na escola. Argentinos e chilenos tm mais de 50% do tempo mdio de escolaridade dos brasileiros. (SOARES, 2005, http://www.vivaleitura.com.br/artigos. Acesso em 25/04/2008).
Para que um crescimento dessa natureza se efetive e represente aquisio
e contato com materiais escritos, como o livro, bastaria que os 63,2 milhes de
brasileiros que esto vinculados escola, quer como estudantes, quer como
professores, tivessem um padro mnimo de uso e consumo de livros, compatvel
com uma economia emergente como a nossa, para que os nmeros da nossa
indstria editorial tivessem um incremento de mais de 50%. (Idem, idem.)
Tratando especificamente do papel da escola e do (da) professor (a) na
formao do leitor, Soares (2005), afirmar que h uma forte influncia dos
22
professores na formao de seus alunos e acrescenta: esta influncia, no que diz
respeito ao gosto pela leitura, vai depender do grau de afetividade do professor
com o hbito de ler (Idem, idem).
Assim, para que o professor possa formar o aluno leitor, primeiramente ele
deve ter uma relao bem estabelecida e prazerosa com a leitura. Na reflexo de
Soares (2005), ler por obrigao, sem curtir o texto, s para cumprir um dever
escolar, longe de criar leitores, pode at vacinar as crianas contra o hbito de
ler, e isso depende do grau de intimidade que cada um tem com o livro e a
leitura. (Idem, idem)
Em que pese formao do leitor poder ser realizada a qualquer tempo,
Soares (2006) assevera que alunos leitores com hbito e gosto adquiridos ainda na
educao fundamental, tero muito menos dificuldades em selecionar e se
aproveitar do saber que est nos livros; caso contrrio, ser para eles um grande
sacrifcio compulsar a bibliografia e, em muitos casos procuraro escapar atravs
da informao oral, da internet ou das famigeradas cpias xerogrficas, sem
conseguir chegar ao mago formador que s o livro tem. (SOARES, Idem, idem)
Dessa forma, para Soares (2005), a escola, efetivamente, uma fbrica de
leituras e de leitores que pode se convenientemente trabalhada, ser transformada
em uma grande geradora de consumidores de livros (Idem, Idem).
A LEITURA COMO TEMA, O CINE-FRUM COMO METODOLOGIA
Dando seguimento ao proposto no Plano de Trabalho refletir com os (s)
professores(as), o que e quanto lhes cabem na responsabilidade de formar o leitor-
escritor na escola, e considerando ser possvel articular leitura e cinema, partiu-se
ento para a realizao dos Cines-Frum, com a exibio e a anlise de duas pelculas
nacionais.
Dois filmes da filmografia brasileira: Central do Brasil, Narradores de Jav, dois
cineastas brasileiros Walter Salles Jnior, Eliana Caf; dois lugares: a maior estao de
trens da grande So Paulo e o Vale do Jav, no interior da Bahia; dois enredos, com
23
histrias singulares de brasilidade. Ambos com premiaes nacionais e internacionais
revelam a realidade de um Brasil de gigantescas diferenas sociais que conhecemos e
vivemos. Que diferenas e semelhanas guardam os dois filmes? O primeiro mostra o
Brasil no final do sculo XX, caracterizando principalmente as condies de vida no
subrbio de uma cidade grande em um pas subdesenvolvido. O segundo retrata o Vale
de Jav, no interior da Bahia, onde a rotina pacata do pequeno vilarejo abalada por
uma notcia que mudaria definitivamente a vida dos moradores: o povoado seria extinto
com a implantao de uma barragem. Dois personagens marcantes: Dora e Antonio
Bi, Um ncleo comum: o ato de escrever que para cada um deles de diferentes
materialidades. Tanto os produtores do filme Walter e Eliana, como os personagens
Dora e Antonio Bi dominam o exerccio da leitura e da escrita, so, portanto, letrados?
J os consumidores dos servios dos escreventes, so iletrados, portanto,
analfabetos? Teriam eles, os escreventes, aprendido tais ofcios na escola? O que
possibilitou que eles se desenvolvessem como leitores-escritores? Em que medida a
escola foi necessria/responsvel na mediao do ler e do escrever? Em que, a leitura,
a escrita e a escola se fizeram lcus de produo de significados para esses sujeitos?
Se pudssemos saber, teriam os escreventes em discusso, lembranas de
professores que marcaram suas trajetrias escolares e construram com eles, relaes
significativas do saber ler e escrever?
Em Central do Brasil, Dora uma professora primria aposentada que
complementa a renda como camel, na Central do Brasil. Como mercadoria, vende o
nico bem que possui: saber ler e escrever. Por R$1, 00, escreve cartas ditadas por
pessoas analfabetas, que desejam enviar notcias a parentes distantes.
Telles (2006) afirma que ao escolher o pas por assunto, Central do Brasil mostra
a excluso social, o analfabetismo, a pobreza e o ato de sobreviver violncia
absurdamente inscrita na vida. (TELLES, 2006, p.4) Mostra-se na pelcula, um pas
encarcerado, cujo representante Socorro Nobre4 (Idem, idem). dela a primeira
4 Protagonista do documentrio que leva seu nome, produzido pelo mesmo diretor, em 1995, e que conta a histria da troca de correspondncia entre o artista plstico Franz Krajcberg e a presidiria Socorro Nobre motiva uma reflexo sobre as idias de liberdade, isolamento e a possibilidade do encontro entre mundos aparentemente muito distantes. / Prmio Especial do Jri Rio Cine Festival 1995 / Fipa dOr Frana 1996 / Seleo Oficial Festival de So Francisco 1996.
24
carta do filme, dirigida, ao que tudo indica, para um presidirio: Querido, meu corao
seu. () Esses anos todos que voc vai ficar trancado a dentro, eu tambm vou ficar
trancada aqui fora te esperando. Observa a autora que esteticamente encarcerados
por trs das grades dos portes da Central do Brasil tambm se podem ver
anonimamente os passageiros da estao.
Outros sujeitos sociais so protagonizados na pelcula e que fazem parte
das representaes conhecidas e reconhecveis que temos de uma identidade
nacional. Vivamente ou personalizados em diversas outras produes
cinematogrficas e literrias, personagens j consagrados pelas vrias narrativas
que temos da nao brasileira esto: o sertanejo, a me solteira, os migrantes que
saem de vrias partes do pas em direo ao eixo Rio-So Paulo, os romeiros que
vivem na estrada, guiados pela f em Deus, na Virgem, no Bom Jesus ou no Padre
Ccero. (TELLES, 2006. p.3)
Uma das referncias constantes em Central do Brasil, que se torna seu
principal argumento e que parece ser um caminho possvel para a inteno dessa
escrita, a carta como texto. As cartas escritas por Dora to carregadas de
significaes e sentimentos, so relatos de experincias vrias que vo de histrias
de amor - como a de Ana e Jesus - a agradecimentos a santos, por promessas
atendidas como: (...) Obrigada, Bom Jesus, pela graa alcanada, de o meu
marido ter largado a cachaa; (...)Obrigado, Menino Jesus, pela graa alcanada
de ter feito chover esse ano l na roa.
As primeiras cartas que aparecem no filme trazem como marcas a
desesperana e o sentimento de traio (...) Seu Z Amaro, muito obrigado pelo
que voc fez comigo (...) confiei em voc e voc me enganou; (...) Jesus, voc foi
a pior coisa que j me aconteceu (...). No entanto, medida que se desenrola a
histria, vo ganhando outras nuances, entre as quais, a que se pode perceber na
declarao de amor de Jesus para Ana: (...)Tu uma cabrita geniosa, mas eu
dava tudo que eu tenho pra dar s mais uma olhadinha noc(...), bem como no
pacto de amizade que Dora prope a Josu (...) no dia que voc quiser lembrar de
mim, d uma olhada no retratinho que a gente tirou junto (...).
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Outras leituras e interpretaes poderiam ser infinitamente contempladas,
mas pelo espao que o texto permite, poderamos dizer que a nosso ver, em
Central do Brasil, uma das principais reflexes sugeridas de que a palavra escrita
ainda domnio de poucos.
Uma outra considerao a ser feita, a forma como a oralidade ganha
importncia no filme, na medida em que a condio dos remetentes das cartas,
representa a condio dos (as) outros (as) muitos (as) brasileiros (as) que no
dominam a habilidade da leitura e da escrita. Na verdade, as histrias ditadas por
eles ao carem no esquecimento, pois da gaveta para onde vo e ficam no
alcanam o status de texto escrito. Mant-las na gaveta justificado como culpa
do mau funcionamento dos correios, diz Dora, sem nenhum resqucio de pudor.
Assim, pertinente observar que das cartas escritas, s vemos pedaos,
furtivamente, em rpidos enquadramentos do texto; das histrias orais, sabemos
tudo aquilo que o remetente pretende contar e h ainda aquelas que no se
contam, mas se deixam por fazer, tendo como indicaes os seus remetentes:
baianos, cearenses, pernambucanos, mineiros - personagens de uma tradio
discursiva que historicamente os associa oralidade, como uma marca indelvel
de sua regionalidade. (TELLES, 2006. p. 5)
Uma das criticas recebidas pelo cineasta brasileiro sobre a forma como as
imagens do Brasil foram maquiadas e/ou romantizadas no filme. Em que pese suas
intenes ao exp-las, as imagens do Brasil perpassam na pelcula, so de uma
riqussima textualidade e independente de imitarem ou de refletiram nosso pas,
podem suscitar outros exerccios de reflexo nos possibilitando o reconhecimento
de outros textos, bem como o encaminhamento de outras leituras.
semelhana da anlise anterior, do filme Narradores de Jav, trataremos
de duas referncias importantes: o retrato de um Brasil de diferenas sociais e que
tem no analfabetismo uma de suas marcas mais evidentes.
Em linhas gerais, o filme retrata a luta dos moradores do Vale de Jav - um
povo do serto baiano, os moradores do Vale de Jav - que tentam reconstituir sua
26
histria que perpetuada atravs da oralidade, precisa ganhar agora estatuto de
registro escrito.
Mas a realidade imaginria de Jav no exatamente uma fico no mbito
do Brasil.
Trata-se de uma realidade comum no pas, onde vrios projetos para a criao de usinas hidreltricas tm tornado necessria a destruio de povoados e municpios ribeirinhos, colocando em risco a preservao da memria e, conseqentemente, da identidade dos moradores desses lugares. O Ministrio dessas regies transferido para um novo espao, em troca da destruio de seus lares pelo governo e/ou por grandes empresas interessadas nas usinas hidreltricas. de Minas e Energia, em parceria com grandes empresas, tem amparado projetos de produo de energia hidreltrica por meio da construo de barragens fornecedoras. E os moradores dessas regies so transferidos para um novo espao, em troca da destruio de seus lares pelo governo e/ou por grandes empresas interessadas nas usinas hidreltricas. (ALVES, 2006. p. 2)
Ameaada pela Modernidade - a construo de uma represa que far o
povoado desaparecer em suas guas - a comunidade busca garantir sua existncia
no futuro, conferindo ao lugarejo a condio de patrimnio histrico. Entretanto,
para isso necessrio o registro de uma verso oficial da histria de Jav, pois a
tradio oral do povo, s seria reconhecida no momento em que passasse a fazer
parte do registro legitimado pela sociedade moderna: o registro escrito.
Tendo como justificativa a necessidade de um progresso inevitvel que
beneficiar "um grande nmero de pessoas", entre os quais os moradores de Jav
no esto includos, tambm serve como argumento o fato de no possurem
uma herana cultural, j que sua histria e existncia no haviam sido registradas
formalmente.
Para Silva, Lima & Diogo (2004), essa viso preconceituosa e elitista, que
considera a cultura letrada superior oral tambm marca a presena de um
discurso de dominao socioeconmico que nos acompanha desde a poca
colonial: no podemos nos esquecer que a colonizao da Amrica Latina teve
27
como conseqncia o extermnio dos povos indgenas, seguido pelo total desprezo
por sua produo cultural, j que para a mentalidade europia, s o registro escrito
dava legitimidade e autoridade histria e cultura de um povo.
O povo de Jav passa ento a registrar a sua identidade histrica e cultural,
ao relatar ao carteiro da regio aquilo que lhes havia sido passado de gerao em
gerao: a saga de seu fundador, Indalcio, no desbravamento do serto baiano, a
fim de fundar um povoado para os seus seguidores. Fato que, ao ser transmitido
posteridade, vai se distanciando cada vez mais do original; alm disso, ele ser
permeado pela viso pessoal dos moradores, os quais vo traduzindo-o segundo o
seu olhar, sua formao sociocultural e religiosa.
Entretanto, esta tarefa revela-se impossvel para o escritor, que por sua vez
tambm tradutor de todas essas narrativas. Sente-se impotente diante de uma
tarefa to complexa e grandiosa. Na verdade, como resolver o dilema de traduzir
uma narrativa oral sempre em movimento, viva na boca dos moradores do vilarejo,
para um registro escrito, que, como tal, esttico e imutvel, e que, acima de tudo,
permite apenas uma verso nica e definitiva de suas origens?
Na pelcula, em uma das primeiras cenas, Zaqueu - uma espcie de lder da
comunidade - conta que as divisas de Jav foram cantadas e passadas de pai para
filho, tudo apenas no dizer. Como ento tornar essa histria reconhecvel, oficial e
instituda?
Por mais que conhecessem e soubessem do valor do lugarejo em funo da
forma como havia sido descoberto e habitado, estavam refns de uma verso
oficial documentada de sua histria. Essa ausncia claramente denunciada na
fala de Zaqueu que ao chegar com a notcia da construo da usina, interpela seus
moradores dizendo:
Porque se Jav tem algo de bom para contar so os grandes feitos, as histrias que ocs vivem contando e recontando. E isso, gente, histria de patrimnio, histria grande, as histrias de origem, dos guerreiros l do comeo, dos casos que ocs" vivem contando acontecimento de fazer arregalar os olhos de morador de muita cidade e capital! (ABREU e CAFF, 2004. p.21.)
28
No entanto, completa Zaqueu: os homens do progresso s aceitam essas
histrias se elas estiverem num documento escrito, em trabalho cientfico. O termo
"cientfico" definido por Zaqueu como coisa com sustana da cincia... versada,
assim, nas artes e prticas (...) e no as patranha duvidosa que os habitantes
da cidade costumam contar. (ABREU e CAFF, 2004. p.26.)
Assim, a populao de Jav tenta escrever sua histria para se ajustar a
uma Modernidade, a qual no pertence, j que, neste caso, a diferena vista
como sinal de atraso e usada para legitimar o seu aniquilamento. Como no
conseguem atender s exigncias do progresso e da civilizao, desaparecem
como palavras ao vento.
Pergunta-se: se o povo de Jav fosse alfabetizado, teriam conseguido salvar
o povoado?
Antnio Bi revela aos moradores o que pensa sobre isso: para ele, o livro
no salvar o povoado da inundao. Diz ele:
O que ns somos um povinho que quase no escreve o prprio nome, mas inventa histrias de grandeza pra esquecer a vidinha rala, sem futuro nenhum! E "ocs cr" mesmo que os homens vo parar a represa e o progresso por um bando de "analfabeto"? No vo, no. Isso fato. cientfico! (ABREU e CAFF, 2004. p.161.)
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CONSIDERAES FINAIS
A defesa feita em todo o percurso do texto em que se trouxeram nmeros,
relatos, ndices e assertivas tericas - no intuito de desenvolver uma escrita que
congregasse as vicissitudes da leitura do cinema e da educao - era em tese, mostrar
a responsabilidade da escola com seus sujeitos - professores (as) e alunos (as) - na
criao e efetivao do gosto pela leitura.
Enfatizaram-se as possibilidades de trabalho com o texto cinematogrfico,
uma vez que ele est presente suficientemente na vida das crianas, adolescentes e
jovens - sujeitos do trabalho do professor (a), interlocutores (as) de seu fazer.
Referenciou-se o cuidado metodolgico que se deve ter no trabalho com a
linguagem flmica, no sentido de no didatiz-la a ponto de perd-la como produo
artstica, como tambm defendemos a idia de o cinema como produto cultural de uma
sociedade, pode e deve como saber legtimo, fazer parte do currculo escolar. Mesmo
que se diga que a rigor, qualquer filme pode servir para anlise da realidade, a reflexo
pedaggica que possibilita, requer a adoo de procedimentos que vo desde o exame
de sua qualidade material, at a que corrente terica se filia, haja vista que ningum
escreve e ou produz num vazio conceitual.
Diferente da produo televisiva, a obra cinematogrfica exige um expectador
atento, ativo, perspicaz, no sentido de reconhecer a intertextualidade que lhe inerente.
Tal como a leitura do texto escrito, o texto flmico passaporte, passagem para
outros tantos e diferentes textos.
E como se chega a essa perspiccia? Lendo muito e assistindo muitos
filmes. Se o contato permanente com livros solidifica o hbito e o gosto pela leitura, o
mesmo princpio vlido para a apreciao da obra cinematogrfica como fruio e/ou
como crtica.
De Fiore (2005) ao defender que no h uma nao desenvolvida que no
seja uma nao de leitores, observa que no se pode considerar o hbito de leitura de
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um povo igual sua alfabetizao. Saber ler no suficiente para ter-se familiaridade
ou convvio permanente com a leitura.
Enquanto os pases desenvolvidos ostentam um ndice de leitura de 10 livros
por habitante (mdia anual), o retrato de nosso atraso facilmente medido pelo per
capita de 1,8 livros por habitante. Sobre esse ndice recaem inmeros fatores, como os
apresentados em uma pesquisa realizada pela UNESCO, em que se enumeram os
fatores crticos de estabelecimento de um hbito de leitura de um povo ou de uma
pessoa. So eles: ter nascido em uma famlia de leitores; ter passado a juventude em
um sistema escolar preocupado com o estabelecimento do hbito de leitura; o preo do
livro; o acesso ao livro e o valor simblico que a populao lhe atribui (DE FIORI, 2005,
p. 106).
Exemplificando os determinantes de cada um desses fatores, De Fiori (2005),
enfatiza que o fator mais crtico o estmulo leitura na escola, pois grande parte das
crianas, nascidas em famlias leitoras e ou no, esto concentradas nas escolas. Por
isso, dois outros fatores intervm nesse, o preo e o acesso ao livro. Da a necessidade
da criao, manuteno e atualizao das bibliotecas escolares, que significam para um
grande universo de crianas e adolescentes, a nica oportunidade de contato com a
cultura escrita.
Niskier (2005), diz de forma convicta que no se trata de formar o hbito da
leitura, pois hbitos tendem a ser impostos e a imposio na educao, via de regra,
caminha para a rejeio. Trata-se de formar o gosto pela leitura e isso desde a infncia,
no na adolescncia escolar em que a leitura da literatura, por exemplo, obrigatria
por causa dos vestibulares.
A fim de finalizar o texto e respeitar os interlocutores com os quais se
dialogou em especial aqueles que motivaram a escrita do texto, se faz necessrio
traz-los cena novamente, restituindo-lhes o merecido lugar. Assim, ao juiz que
determina aos jovens a leitura dos clssicos da literatura brasileira para reparar o
crime cometido; ao personagem Pingo, professor de literatura em uma universidade
na Minissrie Queridos Amigos, da Rede Globo, acrescenta-se um novo personagem.
Diferente dos jovens hackers, pela condio econmica, mas que em muito se
assemelha ao personagem Pingo e os personagens das pelculas trabalhadas, ou
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seja, protagonistas e coadjuvantes de Central do Brasil e de Narradores de Jav,
todos e cada um. Refiro-me a Gerard Depardieu, famoso ator francs, que
protagonizou entre outros, Cyrano de Bergerac, uma adaptao da obra de Edmond
Rostand, escrita em 1897.
O texto abaixo, por si s, oferece uma sntese do que se prope o artigo que se
encerra, ou seja: mostrar a articulao possvel entre leitura, cinema e educao.
Em geral, no se sabe que o mais notvel ator francs da atualidade foi um menino favelado. E o que ele fala sobre o papel da leitura no resgate de sua vida significativo. No La Nacin de Buenos Aires (20.11.1999) uma ilustrativa reportagem lembra o personagem, que Depardieu encarnou, e que era um tipo que possua as palavras mais maravilhosas, mas que no podia express-las sua amada, atemorizado que ela o rejeitasse por ter aquele enorme nariz. Depardieu conta ento que sofreu tambm uma impotncia similar a do seu personagem: Eu no tinha vocabulrio e isto bloqueava todas minhas emoes diz ele. Mas tive a sorte de ler e depois de crer no que lia. Quando li pela primeira vez Madame, eu a amo, logo pude diz-lo, me senti muito importante. que sou um menino de favela, ainda que tenha nascido num pas do Primeiro Mundo, porque em todos os lados h favelas. E que tm as favelas? O rap, o futebol e a tev. Por sorte, o cinema me salvou da incomunicao, e os personagens histricos me deram uma carga cultural a qual nunca pude aceder porque no fui suficientemente escola. A metfora inscrita no personagem Cyrano de Bergerac dupla. De um lado, Cyrano que possua as palavras e as manejava com a habilidade de um espadachim apaixonado. De outro, o outro pretendente que se servia das palavras e da voz de Cyrano para conquistar Roxana. Um caso de ventriloquismo e de esquizofrenia em relao linguagem. A impotncia e o disfarce. (.) (SANTANA, 2006, p. 6-7)
Ao professor Afonso Romo de Santana (2005) escritor e defensor da
formao do leitor pela leitura da literatura, por possibilitar-me a leitura do texto em
que relata a histria de Depardieu, meu agradecimento.
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