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Pós-Graduação em Direito Público Disciplina: Direito Administrativo Aplicado LEITURA OBRIGATÓRIA – AULA 2 CRISTIANA FORTINI

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Pós-Graduação em Direito Público

Disciplina: Direito Administrativo Aplicado

LEITURA OBRIGATÓRIA – AULA 2

CRISTIANA FORTINI

LEITURA OBRIGATÓRIA – AULA 1

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Princípio da segurança jurídica e sua influência na revogação das licitações1

1 Princípio da segurança jurídica1

O advento do Estado Democrático de Direito reclama a atuação administrativa em conformidade com a lei e o Direito, rompendo a visão da legalidade própria do século XIX que respaldava a aplicação mecânica da regra fria.

Um leque variado de princípios deve conduzir o administrador público, sem que se possa falar em oposição ou exclusão apriorística de um em benefício de outro, mas de acomodamento que a solução do caso concreto exigirá.

Ao prever a lista inicial de princípios vetores da Administração Pública, a Constitui-ção da República fixou comando para que o administrador público se posicione de forma a harmonizar a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, sem embargo dos demais princípios constitucionais explícitos ou implíci-tos.

O princípio da segurança jurídica ostenta igualmente status constitucional. Não é por outra razão que se salvaguardam a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.

Rafael Valim ensina que “O princípio da seguança jurídica permeia o direito positivo, condicionando toda sua dinâmica. À luz das funções exercidas pelos princípios, resul-tada que, desde a Constituição até as normas individuais e concretas, toda produção do Direito deve se pautar pelas exigências do referido princípio — as quais conduzem a uma ação consequente do Estado, livre de voluntarismos e sobressaltos — sob pena de um juízo de invalidade da norma editada”. E acrescenta o autor: “não basta a certeza quanto à norma aplicável para se assegurar o princípio da segurança jurídica. Nem é preciso dizer que nada significaria a previsibilidade se as projeções que dela decorrem e que norteiam a ação do administrado pudessem ser desfeitas, a qualquer tempo, pelo Estado. É de rigor, portanto, que à previsibilidade oferecida pela certe-za se acresça a estabilidade do Direito, de molde a assegurar os direitos subjetivos e as expectativas que os indivíduos de boa-fé depositam na ação do Estado”.2

Márcio Cammarosano lembra que o “valor segurança está significativamente referido já no Preâmbulo da Constituição, que, ao instituir um Estado Democrático de Direito, a ele se reporta como um daqueles que se destina a assegurar”.3

Assim, extrai-se da Constituição da República que a atuação administrativa também deve se dar parelha ao referido princípio. A legalidade, pura e fria, não mais prospe-ra. Inexiste, contudo, conflito ou oposição entre os referidos princípios, Há, isso sim, uma releitura do princípio da legalidade, de forma que ele acomode a segurança ju-rídica, entre outros princípios.

Manifestações do princípio da segurança jurídica aparecem quer na Constituição, como acima exemplificado, quer na legislação infraconstitucional. O conteúdo do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, que traça as normas sobre a ação direta de inconstitu-cionalidade e a direta de constitucionalidade, apreciadas pelo STF, e o art. 11 da Lei nº 9.882/99, que disciplina arguição de descumprimento de preceito fundamental, refletem o princípio da segurança jurídica, à medida que admitem a adequação tem-poral dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

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O mesmo princípio está a amparar a regra prevista no inciso XIII do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 9.784/99, ao impor a observância da interpretação da norma ad-ministrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada a aplicação retroativa de nova interpretação, visando a garantia do direito das partes. Os artigos 11 a 15 da Lei em apreço, que cuidam de delegação e avocação, bem como o art 55 que aborda o instituto da convalidação afirmam o prin-cípio da segurança jurídica. Com efeito, ao afirmar que a competência é irrenunciá-vel, reforçando o dever de agir da autoridade a quem a lei entregou o mister, admi-tindo excepcionalmente a avocação e a delegação, e ao prever a possibilidade de convalidação, que traduz mecanismo de preservação do ato viciado e de seus efeitos jurídicos, está a lei a pontuar, uma vez mais, o princípio da segurança jurídica.

Obviamente, o art. 54 da mesma lei não poderia deixar de ser citado porque é a re-gra que melhor personifica o referido princípio, ao fixar prazo decadencial para a anulação de atos de que decorram efeitos patrimoniais favoráveis a terceiros.

A aplicação do princípio da segurança jurídica, traduzido em várias regras, como as acima indicadas, que formam a Lei nº 9.784/99, tem sido usualmente ventilado em decisões judiciais, em especial no Supremo Tribunal Federal que confirma o status constitucional do referido princípio. Cenário em que o princípio da seguran-ça jurídica ganhou destaque diz respeito à anulação de atos de aposentadoria quando da manifestação tardia do Tribunal de Contas. A despeito de a questão envolver dis-cussão sobre a natureza do ato, complexo ou composto, dado que há diferentes opi-niões sobre a relevância da manifestação do órgão de controle para o aperfeiçoamen-to do ato, o Supremo Tribunal Federal tem dito:

A Administração decai do direito de anular atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários após cinco anos, contados da data em que foram praticados [art. 54 da Lei nº 9.784/99]. Precedente [MS nº 26.353, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 6.3.2008] 5. A anulação tardia de ato administrativo, após a consolidação de situação de fato e de direito, ofende o princípio da segurança jurídi-ca. Precedentes [RE nº 85.179, Relator Ministro Bilac Pinto, RTJ83/921 (1978) e MS nº 22.357, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ de 5.11.04].

Outra alusão ao princípio da segurança jurídica encontra-se no acórdão abaixo:

A inércia da Corte de Contas, por sete anos, consolidou de forma positiva a expecta-tiva da viúva, no tocante ao recebimento de verba de caráter alimentar. Este aspec-to temporal diz intimamente com o princípio da segurança jurídica, projeção objeti-va do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento conceitual do Estado de Direito. 4. O prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que te-nham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, re-formas e pensões. Transcorrido in albis o interregno qüinqüenal, é de se convocar os particulares para participar do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das ga-rantias do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º).

2 O instituto da revogação e o tratamento dispensado pela Lei nº 8.666/93

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A revogação opera-se quando a administração pública decide extinguir ato válido, que, não obstante não carregar máculas, não mais se releva conveniente e/ou opor-tuno. A mutabilidade do interesse público realinha entendimentos anteriores e repo-siciona o administrador público.

A revogação envolve juízo de mérito e não de legalidade, por isso é medida que se insere entre as tarefas exclusivas do administrador, competente para tanto. E a re-formulação do juízo do administrador que obsta falar em revogação de ato praticado no exercício da competência vinculada. Se, desde o início, outro caminho não se apresentava ao administrador público senão realizar determinado ato, a passagem do tempo não contribuirá para criar espaço de reavaliação meritória.

Assim, a revogação não poderá desconsiderar os efeitos jurídicos já extraídos do ato válido revogado. O postulado da segurança jurídica conduz a esse raciocínio. Se o ato ainda é ineficaz, a revogação impedirá a produção dos seus efeitos, mas se eficaz o ato, os efeitos já produzidos serão protegidos.

A Lei nº 8.666/93, em seu art. 49, caput, prevê que a revogação do procedimento licitatório condiciona-se à ocorrência de fato superveniente devidamente comprova-do, pertinente e suficiente para justificar a referida conduta. A superveniência a que alude a regra refere-se, claro, ao início do procedimento licitatório.

Portanto, não necessariamente o êxito em licitação resulta a celebração do contra-to.4 5Além da revogação, a anulação, porque detectado vício insanável, também po-derá ocorrer.5

O Superior Tribunal de Justiça inúmeras vezes reafirmou a possibilidade de revoga-ção. O RMS 28927, julgado em 17.12.2009, relatado pela Ministra Denise Arruda, abaixo comprova o alegado.

A licitação, como qualquer outro procedimento administrativo, é suscetível de anula-ção, em caso de ilegalidade, e revogação, por conveniência e oportunidade, nos ter-mos do art. 49 da Lei 8.666/93 e das Súmulas 346 e 473/STF. Mesmo após a homolo-gação ou a adjudicação da licitação, a Administração Pública está autorizada a anular o procedimento licitatório, verificada a ocorrência de alguma ilegalidade, e a revogá-lo, no âmbito de seu poder discricionário, por razões de interesse público superveni-ente. Nesse sentido MS 12.047/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 16.4.2007; RMS 1.717/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Hélio Mosimann, DJ de 14.12.1992.

A mesma Corte posiciona-se favoravelmente à revogação quando o preço encontrado não atende ao interesse público. Apreciando o RMS 30481, o STJ, por meio do voto condutor da Ministra Eliana Calmon, afirmou:

O Poder Público pode revogar o processo licitatório quando comprovado que os pre-ços oferecidos eram superiores ao do mercado, em nome do interesse público.

E ainda, nos autos do RMS 22447, julgado em 18.12.2008, o Ministro Luiz Fux acen-tua:

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In casu, a revogação do Pregão nº 001/SEREG/2005, no qual a empresa, ora Recor-rente, se sagrara vencedora, decorreu da prevalência do interesse público, ante a constatação, após a realização do certame, de que o preço oferecido pela vencedora era superior ao praticado no mercado.

A falta de competitividade também pode sustentar a revogação da licitação, confor-me jurisprudência do mesmo STJ. Vejamos o RMS 22360, relatado pela Ministra Eliana Calmon, julgado em 18.11.2008:

A participação de um único licitante no procedimento licitatório configura falta de competitividade, o que autoriza a revogação do certame. Isso, porque uma das fina-lidades da licitação é a obtenção da melhor proposta, com mais vantagens e presta-ções menos onerosas para a Administração, em uma relação de custo-benefício, de modo que deve ser garantida, para tanto, a participação do maior número de compe-tidores possíveis.

Assim, não se trata de negar a possibilidade de revogação do certame, o que, de res-to, está contemplado na Lei de Licitações. O que se discute é a utilização nefasta do instituto.

Quer a revogação, quer a anulação serão válidas se, primeiro, forem motivadas. O dever de motivar de índole constitucional porque reflete o espírito republicano está chancelado na Lei nº 9.784/99, que o enfatiza quando o ato praticado é a anulação ou revogação (art. 50, inciso VIII).

Mas, a revogação da licitação não se reveste de licitude quando descompassada do regramento peculiar que a Lei nº 8.666/93 estabelece.

Presume-se, de início, que o deflagrar a licitação seja resultado da constatação de carência do serviço, obra, produto (sem embargo de outras demandas). Assim, o lici-tante adere ao chamamento público, certo de que não se trata de armadilha, mas crédulo de que a disputa poderá render-lhe, se vitorioso, a celebração de contra-to.6 A presunção de veracidade e legalidade dos atos administrativos leva a tal racio-cínio.

Daí se depreender que alegar “interesse público” no afã de dar guarida à revogação não satisfaz, quer porque vago e fluído o conceito, quer porque não é qualquer justi-ficativa que atende à prescrição legal. Há de haver “justa causa” a sustentar o ato revocatório. Nesse sentido, há de haver documentação que indique qual o fato que, após o início do certame, dele retira a condição de ferramenta salutar para a promo-ção do interesse público.

Extrai-se, ainda, do citado art. 49 da Lei de Licitações que não se toleram revogações de procedimento licitatório que espelhem a ausência de planejamento satisfatório do procedimento licitatório.

Se medidas deveriam ter sido adotadas para garantir que o procedimento fosse inici-ado e concluído e a entidade licitante não se dedica a executá-las, não será lícito, em tempo futuro, lançar mão da revogação, ao fundamento de que desapareceu o interesse público que legitimava a instauração do certame.

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A revogação não traduz escudo que o administrador possa utilizar para mascarar a falta de preparo, requisito básico de toda e qualquer licitação, em especial quando do certame poderá resultar contratação a implicar gastos públicos. Nenhuma contra-tação que resulta de uma licitação revela-se açodada, implementada de imediato e distanciada de planejamento anterior. Destacam-seas exigências dos arts 15 a 17 e do art 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que por si só atestam a imperiosidade do planejamento licitatório.

Mas determinadas licitações, para além do planejamento usual, requerem diligências outras, porque peculiar tratamento normativo que circunda o contrato que se almeja celebrar, como o que ocorre nas concessões tradicionais ou na modelagem de parce-rias público privadas, disciplinadas pelas Leis nºs 8.987/95, 9.074/95 e 11.079/04.

As referidas leis estabelecem exigências outras, como leis autorizativas, a realização de consultas públicas, e, no caso das PPPs, há ainda a questão das garantias que o Poder Público ofertará ao parceiro privado e que incrementam o nível de planeja-mento.

A lógica contratual das PPPs representa uma mudança com relação ao padrão clássico dos contratos administrativos, exatamente porque se impõe ao Poder Público uma postura menos verticalizada, em contrapartida à alocação de riscos entre as partes que também não espelha a tônica da doutrina francesa incorporada na Lei nº 8.666/93.

Vê-se que o art 8º da Lei nº 11.079/04, exatamente para confortar o parceiro priva-do, dado que ele assumirá compromissos financeiros substanciais que não renderão, de pronto, contraprestação, visto que essa dependerá da efetiva disponibilização do serviço objeto da contratação (art 7º), prevê que o poder público ofereça como ga-rantias (trata-se de lista não exaustiva, já que outras poderão ser previstas em leis específicas de cada ente da federação e, claro, não se há de conferir necessariamen-te a totalidade das garantias) a vinculação de receitas, a instituição de fundos espe-ciais, a contratação de seguro-garantia, a criação de fundo garantidor ou de empresa estatal destinada à mesma finalidade protetiva dos interesses privados.

Qualquer das medidas requer planejamento, como também o requer o limite de en-dividamento a que alude o art 28 da mesma Lei nº 11.079/04. O art 28 fixa limite que há de ser respeitado quando da decisão pela implementação de PPPs. Logo, ao ente público impõe-se analisar sempre se tal limite está sendo respeitado, evitando-se o início de certames quando no futuro a contratação encontra empecilho, porque já ultrapassado o teto consignado no art 28.

Realizar licitações para, ao final, argumentar que ultrapassado o citado limite pelo que inviável a contratação não é algo que se possa tolerar, porque ofende a relação de confiança entre as partes. Nem o pagamento de eventual indenização, sustentada por Sérgio Ferraz7 que defende o ressarcimento integral, a contemplar danos emer-gentes e lucros cessantes, põe fim ao problema, porque continuariam violados os princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da lealdade.8

Em verdade, tal como se opera quando se “convidam” pessoas físicas a participarem de concurso público,9 assumindo-se o dever de nomear os aprovados dentro do núme-ro de vagas, salvo situação que justifique conduta outra, a segurança jurídica, e os princípios de boa-fé e da confiança legítima também devem influenciar o instituto da licitação. Quer no concurso público, quer quando se promove uma licitação, sinaliza-se para os interessados10 que os procedimentos se voltam para selecionar quem man-

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terá relação jurídica com o ente da administração pública, ainda que evidentemente as relações num caso e outro sejam de índoles distintas.

Mas, em comum, há o canto da sereia, o poder atrativo que os editais exercem e que vão influenciar o comportamento do particular. Este, confiante de que os atos con-vocatórios não escondem armadilhas, mas, ao revés, são instrumentos por meio dos quais os entes clamam pela participação, pode aderir ao “convite” e não deve ser surpreendido pela Administração com a revogação, a qual, em verdade, pode não decorrer da volatilidade do interesse público, mas sim do despreparo, da incúria, da negligência.

É contra a revogação produto do descaso público que nos colocamos e, não, claro, da que resulta de avaliação genuína acerca da inexistência de interesse público, diante da variação das circunstâncias presentes quando da deflagração do certame.

Luciano Ferraz11 já havia abordado que o princípio da segurança jurídica afeta as licitações, ao indicar como seus efeitos:

a) Irretroatividade das leis e demais atos estatais, bem assim de interpretações já realizadas pelos órgãos administrativos e judiciais acerca da legislação aplicável;

b) Dever de o Estado dispor sobre regras transitórias em razão de alterações abruptas de regimes jurídicos setoriais (v.g., ordem econômica, exercício profissional, servido-res públicos);

c) Responsabilidade pré-negocial do Estado (v.g., direito à contratação dos vencedo-res de licitação; direito à nomeação dos aprovados em concursos públicos);

d) Responsabilidade do Estado pelas promessas firmes feitas por seus agentes, nota-damente no âmbito do planejamento econômico;

e) Manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos. (grifo nosso)

3 Revogação, ampla defesa e contraditório

Por outro lado, em trabalho sobre a revogação e anulação de licitação já havíamos ponderado12sobre a questão da ampla defesa e do contraditório, fundamentais quan-do diante de licitação que se pretende anular ou revogar.

Pensemos em dois exemplos que envolvem licitação. Primeiro a questão da anulação e revogação da licitação. Quer a anulação, resultante da ocorrência de vício, quer a revogação, fruto da avaliação sobre a ausência de oportunidade e conveniência na manutenção do procedimento, não podem ser operacionalizadas de qualquer forma. Vale dizer: trata-se de prerrogativas administrativas que, todavia, para que sejam corretamente empregadas, precisam observar o princípio da ampla defesa, da trans-parência e da boa-fé. Anular, ou mesmo revogar, sem oferecer ao licitante a oportu-nidade de diálogo seria aplicar indevidamente a prerrogativa, com afronta ao espírito democrático e cidadão do texto constitucional.

Nesse sentido é também o entendimento de Jessé Torres Pereira Junior,13 que assina-la:

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A revogação ou anulação pode ocorrer em qualquer fase do procedimento licitatório. Qualquer que seja, o exercício do direito à defesa há de ser garantido previamente à decisão, o que não significa que a inércia dos defendentes, exaurido o prazo da devi-da e cumprida intimação, paralise o curso regular do processo ou obste o agir estatal.

A necessidade de ouvir o outro antes de revogar (e de anular) é reflexo da busca de diálogo, consensualidade e participação que marcam o Estado Democrático de Direi-to, que exige permeabilidade do tecido estatal e a criação e recriação de canais de comunicação entre Estado e sociedade civil. A legitimidade democrática das decisões político-administrativas depende da valorização da contribuição cidadã para o desen-volvimento das ações estatais, em especial das deliberações sobre o destino dos re-cursos públicos.

Ademais, a Lei nº 9.784/99, no artigo 2º, inciso IV, enfatiza o dever de atuação se-gundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.

José dos Santos Carvalho Filho afirma que:14

O decoro diz respeito à conduta do particular, significando que o agente deve agir de acordo com o que a função lhe exige, já que a expressão probidade deve ser definida como honestidade, lealdade para com a Administração Pública.

Acentua o mesmo autor que:

No processo administrativo, todos esses padrões devem ser observados a fim de que os particulares possam ter resguardados os seus direitos e guardar um sentido de cre-dibilidade em relação aos agentes da Administração.

Marçal Justen Filho, por sua vez, afirma:

Não é compatível com a democracia republicana que a Administração se valha da competência revocatória para frustrar direitos e garantias protegidos pelo Direito. A prática do ato revocatório depende da observância de um processo administrativo, iniciado com a demonstração concreta dos motivos evidenciadores da inconveniência do ato em questão. Não é válida a revogação fundada na pura e simples invocação da existência de um interesse público.

A legalidade não pode alijar a atuação segundo os padrões da moralidade, da trans-parência, da segurança jurídica. Na nova concepção do Direito Administrativo, lega-lidade rima com ética, transparência, decoro, probidade e boa-fé, razão pela qual não se reconhece ao administrador público, por exemplo, realizar revogações de lici-tação, tomando-se de surpresa o particular afetado, em especial quando não ausente o fato superveniente à instauração do certame que efetivamente sustentaria a deci-são administrativa.

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Respeitar o contraditório e ampla defesa, garantidos quer na Constituição, quer na Lei nº 9.784/99 é também franquear ao interessado a oportunidade de conhecer as pretensões estatais e posicionar-se sobre elas. Com o contraditório e a ampla defesa garante-se o cumprimento ao princípio da confiança, evitando que o particular seja surpreendido por atos administrativos prolatados sem sua participação e/ou conhe-cimento.

E mais, a Súmula Vinculante nº 3 do STF, tratando de processos em curso perante o Tribunal de Contas da União, reforça a necessidade de salvaguardar a ampla defesa e o contraditório quando a decisão administrativa puder resultar a revogação ou anula-ção de ato benéfico ao interessado, excetuada (o que não deveria ser) a apreciação da legalidade de ato concessivo inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

Portanto, discordamos do entendimento do STJ segundo o qual:

Ainda que não tivesse sido respeitado o contraditório, o ato revogatório não estaria eivado de ilegalidade, porquanto a jurisprudência desta Corte de Justiça, nas hipóte-ses de revogação de licitação antes de sua homologação, faz ressalvas à aplicação do disposto no art. 49, §3º, da Lei 8.666/93 (“no caso de desfazimento do processo lici-tatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa”). Entende, nesse aspecto, que o contraditório e a ampla defesa somente são exigíveis quando o procedimento licitatório houver sido concluído. Assim, a revogação da licitação, quando anteceden-te da homologação e adjudicação, é perfeitamente pertinente e não enseja contradi-tório. Só há contraditório antecedendo a revogação quando há direito adquirido das empresas concorrentes, o que só ocorre após a homologação e adjudicação do serviço licitado. (RMS 23.402/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 2.4.2008)

Parece-nos que o obséquio aos referidos princípios não está temporalmente atrelado à fase de homologação, mas, ao contrário, deve ser cumprido mesmo que essa fase não tenha sido levada a efeito.

4 Conclusões

O princípio da segurança jurídica e os princípios que com ele se relacionam, como lealdade, confiança e boa-fé, não se harmonizam com condutas levianas ou fruto do despreparo.

A sinalização que a Administração Pública faz aos interessados quando divulga o ato convocatório da licitação atrai a participação de terceiros, titulares do direito de serem tratados com respeito e lealdade.

A revogação de licitações que se pode compreender como autorizada pela ordem jurídica é aquela que, decorrente de fato superveniente ao início do certame, efeti-vamente demonstrado e não apenas sugerido por trás da expressão “interesse públi-co”, reflita a participação do interessado, pelo que se exige o respeito ao contraditó-rio e à ampla defesa, convidando-se o interessado a integrar o campo decisório da Administração Pública.

Referências

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1 Originalmente publicado em: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; CASTRO, Sérgio Pessoa de Paula (Coord.). Tendências e perspectivas do direito administrativo: uma visão da escola mineira. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

2 VALIM, Rafael. O significado do princípio da segurança jurídica. Malheiros, 2010. p. 46.

3 CAMMAROSANO. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa, p. 33.

4 A doutrina já se dedicou a analisar a obrigatoriedade ou não da adjudicação ao pri-meiro colocado. Conflitos doutrinários entre os autores Hely Lopes Meireles, que en-tendia pela compulsoriedade da adjudicação e Adilson de Abreu Dallari, que argu-mentava que a proposta vencedora pode ainda não ser a mais vantajosa para a Admi-nistração, pelo que possível e lícita a não adjudicação, são conhecidos. Pretendemos ir além da discussão a respeito da adjudicação, para enfrentar o tema da contrata-ção, compreendida, em regra, como um direito, salvo se efetivamente razões com-provadas de interesse público sugerirem outro rumo.

5 No caso do pregão, a literalidade do art. 4º, inciso XXIII da Lei nº 10.520 autoriza concluir que a contratação é direito do vencedor, porque o dispositivo prevê que

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“homologada a licitação pela autoridade competente, o adjudicatário será convocado para assinar o contrato no prazo definido em edital”.

6 Obviamente que não se desconhece que o permissivo legal que legítima a substitui-ção do instrumento contratual nos casos assinalados na Lei nº 8.666/93, em especial no art. 62 caput e seu §4º.

7 FERRAZ, Sergio. Prerrogativas da administração e direitos dos licitan-tes. In:Seminário nacional sobre licitação. Belo Horizonte: Fundação Dom Cabral, 1980. p. 206-207.

8 Interessante observar que a Lei de Licitações é expressa quanto ao dever de indeni-zar apenas ao se referir à anulação para dizer, nos termos do art. 49, §1º, da Lei, a declaração de nulidade não gera obrigação de indenizar e inexiste o direito à repara-ção, cabendo apenas o pagamento ao contratado pelo que ele já executou.

9 Ao julgar o RE 227.480 em que se discutia o direito à nomeação dos aprovados em concurso público, o Ministro Ayres Britto enfatizou a possibilidade de alterações fáti-cas afastarem o argumento do “direito à nomeação”. Mas o eminente Ministro pontu-ou que o querer da administração não pode mascarar uma vontade arbitrária, pelo que a mudança de rumo deve vir acompanhada de justa causa.

10 Interessantes os estudos realizados por Raquel Dias da Silveira e Paulo Roberto Motta sobre o instituto do concurso público, em especial a apuração sobre a evolução da jurisprudência a respeito do direito à nomeação (MOTTA, Paulo Roberto Ferreira; SILVEIRA, Raquel Dias da. Concurso público. In: FORTINI, Cristiana (Org.). Servidor público: homenagem ao professor Pedro Paulo de Almeida Dutra. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 305-337).

11 FERRAZ, Luciano. Segurança jurídica positivada na Lei Federal n. 9.784/99. In: NOHARA, Irene Patrícia; MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes de (Org.). Processo administrativo: temas polêmicos da Lei n. 9.784/99. São Paulo: Atlas, 2011.

12 FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARÃO, Tatiana Martins da Costa. Licitações e contratos: aspectos relevantes. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 119.

13 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres.Comentários à Lei de licitações e contratações da Administração Pública. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 531.

14 CARVALHO FILHO, José dos Santos.Processo administrativo federal: comentários à Lei n. 9.784 de 29.01.1999. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 65.

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Currículo Resumido

Cristiana Fortini

Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMG. Controladora-Geral do Município de Belo Horizonte. Coordenadora da área de Direito Administrativo da Escola Superior da OAB/MG. Ex-Presidente do Instituto Mineiro de Direito Administrativo. Membro da Diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

Como citar este artigo

FORTINI, Cristiana. Princípio da segurança jurídica e sua influência na revogação das licitações. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 11, n. 125, p. 56-62, maio 2012. Material da 2ª aula da Disciplina: Direito Administrativo Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público - Anhanguera-Uniderp | Rede LFG.