LEITURAS CONSTITUCIONAIS NOS SISTEMAS JURIDICOS CONTEMPORÂNEOS - SALO DE CARVALHO

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LEITURAS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL CONTEMPORNEO

SALO DE CARVALHOOrganizador

www.lumenjuris.com.br EDITORESJoo de Almeida Joo Luiz da Silva AlmeidaCONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Cmara Amilton Bueno de Carvalho Augusto Zimmermann Eugnio Rosa Fauzi Hassan Choukr Firly Nascimento Filho Flvia Lages de Castro Flvio Alves Martins Francisco de Assis M. Tavares Geraldo L. M. Prado Gustavo Snchal de Goffredo J. M. Leoni Lopes de Oliveira Letcio Jansen Manoel Messias Peixinho Marcos Juruena Villela Souto Paulo de Bessa Antunes Salo de Carvalho CONSELHO CONSULTIVO lvaro Mayrink da Costa Aurlio Wander Bastos Cinthia Robert Elida Sguin Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho Jos dos Santos Carvalho Filho Jos Fernando de Castro Farias Jos Ribas Vieira Marcello Ciotola Marcellus Polastri Lima Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton

LEITURAS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL CONTEMPORNEO

Rio de JaneiroRua da Assemblia, 36 Salas 201 a 204 Rio de Janeiro, RJ CEP 20011-000 Telefone: (21) 2232-1859 / 2232-1886

Rio Grande do SulRua Cap. Joo de Oliveira Lima, 160 Santo Antonio da Patrulha Pitangueiras CEP 95500-000 Telefone: (51) 662-7147

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EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2004

Copyright 2004 by Salo de Carvalho

Sumrio

Produo Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Apresentao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Salo de Carvalho

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PARTE I: DIREITO PENALA LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. no se responsabiliza pela originalidade desta obra e pelas opinies nela manifestadas por seu Autores.

A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988 . . . . . . . . . Bruno Heringer Jnior A problemtica das Leis Penais em Branco Face ao Direito Penal do Risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pablo Rodrigo Alflen da Silva A Proteo do Bem Jurdico Ambiental e os Limites do Direito Penal Contemporneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lenra Azevedo de Oliveira Delitos Informticos Resposta Penal? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Felipe Cardoso Moreira de Oliveira A Incompatibilidade entre a Criminalizao do Inadimplemento de Tributos e o Direito Penal Garantista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marcelo Machado Bertoluci

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proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

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PARTE II: DIREITO PROCESSUAL PENALO mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais . . . . . . . . . . . Gilberto ThunsTodos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Tutelas de Urgncia, Emergncia e Evidncia A Questo da Sumarizao frente ao Processo Penal Garantista . . . . . . . . . . . . . Cludia Marlise Alberton Reflexes Crtico-Fragmentrias sobre a Sentena Penal . . . . . . . Aramis Nassif

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Impresso no Brasil

Printed in Brazil

Breves Consideraes sobre o Flagrante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Daniel Gerber

Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contempornea: Da Crise do Modelo Liberal s Tendncias de Antecipao da Punibilidade e Flexibilizao das Garantias do Acusado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Francis Rafael Beck

Participam desta obra: 261 Alexandre Wunderlich Advogado, Mestre em Cincias Criminais pela PUC/RS, Doutorando em Derechos Humanos y Desarrollo pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha/ES), Professor da PUC/RS e Escola da Magistratura/RS. 285 325 Aramis Nassif Desembargador do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Escola da Magistratura/RS. Bruno Heringer Jnior Promotor de Justia do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Escola Superior do Ministrio Pblico/RS. Cludia Marlise da Silva Alberton Ebling Mestre em Direito pela Unisinos e Professora da Unisinos. 365 Daniel Gerber Advogado, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professor da Unisinos. Felipe Cardoso Moreira de Oliveira Advogado, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Francis Rafael Beck Advogado, Mestre em Direito pela Unisinos e Professor da Fevale. Gilberto Thums Procurador de Justia do Rio Grande do Sul, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professor da PUCRS. Lenra Azevedo de Oliveira Advogada e Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS. Marcelo Machado Bertoluci Advogado, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professor da PUCRS. Natalia Gimenes Pinzon Advogada e Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS. Pablo Rodrigo Alflen da Silva Advogado, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professor da Ulbra (Campus Canoas e So Jernimo).

PARTE III: EXECUO PENALO Discurso Ressocializador e o Princpio da Dignidade da Pessoa Humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Natalia Gimenes Pinzon O Processo de Execuo Penal e a Violncia Estatal . . . . . . . . . . Paula Gil Larruscahim A (I)Legitimidade do Processo de Imposio das Medidas de Segurana no Direito Penal Brasileiro: Diagnstico Garantista . . Ronya Soares de Brito e Souto HIV/AIDS e Crcere: Uma Leitura de sua Complexidade no Contexto das Cincias Criminais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Thas Prestes Veras O Suplcio de Tntalo: a Lei 10.792/03 e a Consolidao da Poltica Criminal do Terror . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich

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Paula Gil Larruscahim Advogada e Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS. Ronya Soares de Brito e Souto Advogada, Mestre em Direito pela Unisinos e Professora da Ulbra (Campus Canoas). Salo de Carvalho (Org.) Advogado, Mestre em Direito Pblico pela UFSC, Mestrando em Filosofia pela PUCRS, Doutor em Direito das Relaes Sociais pela UFPR, Professor da PUCRS. Thas Prestes Veras Advogada, Mestre em Cincias Criminais pela PUCRS e Professora da UFSM e Ulbra/Cachoeira do Sul.

Apresentao

A presente publicao o resultado do processo de orientao que realizei nos ltimos anos (entre 2000 e 2003) nos mestrados em Cincias Criminais do Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais da PUCRS e no mestrado em Direito da UNISINOS/RS. Seu contedo a sntese de inmeras dissertaes que tive a oportunidade de orientar. Todas, de alguma forma, esto estruturadas na base terica do garantismo. Descobri, ao longo deste perodo, que a ciso orientador-orientando apenas formal, pois, no doloroso processo de formao, professor e aluno esto engalfinhados num constante vir a ser, tendo em vista que o conhecimento no algo esttico e a dissertao nunca termina. No entanto, findo o rito de passagem com a banca de avaliao, aps o intenso convvio durante o perodo de elaborao da dissertao, a tendncia natural separao de orientando e orientador. Ao recm-mestre, chegado o momento de direcionar seu saber atividade profissional (acadmica e forense). Ao orientador, cabe prosseguir no auxlio de novos mestrandos. A falta e o vazio, porm, se concretizam, de forma muito similar ao fim da relao amorosa, no qual a separao dos amantes revela a estranheza do fato de se deixar de conviver com algum que se imaginava ter ao lado para sempre. Este livro, ao menos para mim, representa a tentativa de experimentar novamente o saboroso gosto das relaes acadmicas e afetivas que nutri ao longo das orientaes. Mais, a organizao deste livro a revelao pblica do carinho que tenho por todas estas pessoas que, em sua singularidade, me ensinaram e continuam me ensinando muito. Meu eventual auxlio em sua formao no se compara com retorno afetivo e acadmico. Penso que aprendemos juntos a desconfiar do messianismo da cincia penal e a desnudar o narcisismo dos juristas a partir da quebra da rudeza cartesiana que a todos imposta nas Faculdades, sobretudo as de Direito. Assim, passamos a compreender as (inmeras) limitaes e as (escassas) virtudes do Direito Penal.ix

Salo de Carvalho

Aos (co)autores, portanto, meu agradecimento pela experincia proporcionada: sou absolutamente grato pelo carinho e, sobretudo, pela tolerncia com minhas intolerncias. Aos leitores, espero demonstrar que o trabalho de deslegitimao do sistema de (in)justia penal deve ser constante, sendo este mais um tijolo na tentativa de edificao do discurso crtico. Salo de Carvalho Porto Alegre, dezembro de 2003

PARTE I DIREITO PENAL

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A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988Bruno Heringer Jnior

IntroduoA necessidade de progressiva atualizao dos direitos humanos, para atender a novas demandas de proteo de indivduos e coletividades, no foi desatendida pelo constituinte de 1988. A Constituio brasileira dali resultante previu uma gama significativa de direitos fundamentais, na esteira de modelos mais avanados, principalmente de pases europeus e de pactos internacionais. No mbito das liberdades, no apenas se ampliaram os direitos protegidos como previram-se diversas garantias para assegurar sua inviolabilidade. Como especificao daquelas, destaca-se o direito liberdade de conscincia, essencial para o livre desenvolvimento da personalidade e para a ampliao do espao democrtico, por favorecer a tolerncia divergncia. Especial relevncia assume, nesse contexto, a objeo de conscincia, que h de ser tida como um direito geral, no apenas vocacionada esfera do servio militar, mas a todas as hipteses em que a imposio de deveres jurdicos colida com convices existenciais pessoais. Estabelecer os fundamentos desse direito fundamental, sem colocar em xeque a validade da ordem jurdica, tarefa das mais delicadas, mas, por isso mesmo, das mais prementes.

1. Direito geral de liberdade: dimenses, limites e novos direitosAs liberdades integram a primeira gerao de direitos fundamentais,1 estabelecidas nas declaraes de direitos das revolues liberais do sculo XVIII. Apesar de j reconhecido em alguns pactos da Idade1 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 32-33. 3

Bruno Heringer Jnior

A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988

Mdia (como a Magna Charta Libertatum de 1215) e em Constituies da Antigidade (como a da Repblica romana), com a defesa da liberdade religiosa, na poca moderna, que se d a afirmao do direito de liberdade.2 No processo de positivao jurdica de direitos de liberdade, as Constituies modernas estabeleceram, a partir de ento, um amplo leque de imunidades pessoais frente s intervenes do poder poltico: liberdade de culto, de pensamento, de religio, de associao, de reunio, de profisso etc. Cuidava-se de direitos contra o Estado, que objetivavam assegurar aos indivduos espaos livres da ingerncia arbitrria do governo. Paulatinamente, porm, verificou-se que as liberdades no apresentavam uma dimenso apenas negativa, impeditiva da ao do Estado, mas tambm outra, positiva,3 consistente de prestaes fticas e jurdicas.4 Como graficamente adverte MARSHALL, o direito liberdade de palavra possui pouca substncia se, devido falta de educao, no se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de se fazer ouvir se h algo a dizer.5 Alm de liberdades especficas, as Constituies costumam consagrar um dispositivo para o direito geral de liberdade. No Brasil, dispe o art. 5o, III, da Constituio que ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei. Tambm o caput desse mesmo artigo garante a inviolabilidade do direito liberdade. Alis, a prioridade conferida liberdade princpio inafastvel em uma concepo liberal de Estado,6 a qual no se mostra incompatvel com as teses comunitaristas que parecem ter exercido influncia mais decisiva no processo constituinte ptrio.7 Na prpria Alemanha, cuja Lei Fundamental indiscutivelmente contribuiu para a conformao da2 3 4 PEREZ LUO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucin. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1999, pp. 108-120. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 446-448. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional espanhol, por exemplo, reconheceu a dupla dimenso (liberdade e prestao) do direito educao (RUBIO LLORENTE, Francisco. Derechos fundamentales y principios constitucionales: Doctrina jurisprudencial. Barcelona: Ariel, 1995, p. 432). MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p. 80. RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 266-275. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contempornea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 219-234.

Constituio nacional de 1988, a inteno normativa fundamental do ttulo dos direitos fundamentais o recurso ao princpio de liberdade do Estado de Direito Liberal, como resposta s ofensas liberdade da poca nazista.8 Nesse sentido, ilustra SARTORI que democracia totalitria somente se apresenta como uma contradictio in terminis porque tomamos a democracia liberal como ponto de referncia; vale dizer, um Estado no-liberal, agindo em nome do povo e, assim, reivindicando legitimidade absoluta, no poderia ser democrtico em qualquer sentido significativo.9 Tradicionalmente, entendia-se que o espao de liberdade individual vinha delimitado pela lei; ou seja, podia-se fazer tudo o que a lei no proibisse ou mandasse. Com esse perfil, o direito geral de liberdade no constitua garantia cidad suficiente, j que se atribua ao legislador o poder discricionrio de regular os mbitos de liberdade da maneira que lhe aprouvesse. No entanto, a partir de deciso do Tribunal Constitucional Federal alemo, em interpretao ao art. 2-110 da Lei Fundamental de Bonn, que dispe que todos tm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, o direito geral de liberdade passou, progressivamente, a ser entendido de uma maneira reforada: somente restries derivadas das restantes determinaes constitucionais poderiam limitlo.11 Demais disso, mesmo nas restries amparadas constitucionalmente, haveria de ser observado o princpio de proporcionalidade,12 do qual decorreria, ainda, a garantia do contedo essencial do direito fundamental, restrio das restries.13 Modifica-se, assim, a compreenso do princpio geral de liberdade:14 no apenas se livre para fazer o que a lei no proibir, mas o que no deva ser proibido.15 Em outras palavras, os mandados ou as proibies legais,

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BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, p. 69. SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada: 2. As questes clssicas. So Paulo: tica, 1994, p. 178. Todos tm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que no violem os direitos de outros e no atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral. STCF 6, 32 (36 e segs.) (BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang. Op. cit., p. 99). Idem, ibidem, p. 102. ALEXY, Robert. Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 286-291. Sobre o direito geral de liberdade: ALEXY, Robert, op. cit., pp. 334-380. DAZ REVORIO, Francisco Javier. Valores superiores e interpretacin constitucional. Madrid: Centro de Estudios Polticos e Constitucionales, 1997, p. 513. 5

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A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988

em sendo restries liberdade, devem decorrer dos valores albergados na Constituio, sob pena de serem tidos por ilegtimos e, conseqentemente, nulos. No se pode sufragar, porm, a tese de que somente o que resultar transcendente para a liberdade alheia pode ser legalmente restringido, j que incluso bienes o valores no individuales (por ejemplo, el orden pblico) pueden justificar la limitacin de derechos fundamentales concretos.16 Mais ainda: mesmo diante de uma restrio legal liberdade abstratamente autorizada a partir da Constituio, pode ocorrer que, em determinada situao concreta, prevalea o direito de liberdade sobre a proibio ou o mandado da lei. E isso porque entre el principio general de libertad y sus limitaciones ha de producirse una ponderacin, que determine cul prevalece en el caso concreto.17 Alis, a Constituio no fornece uma hierarquia predeterminada de princpios. Essa hierarquia, mais propriamente, mvel, variando de caso a caso; vale dizer, um princpio que prepondere numa situao poder ter um peso relativamente menor em outra. Por isso, GUASTINI assinala que uma caracterstica destacada da ponderao consiste em que, para establecer la jerarquia axiolgica, el juez no valora los dos principios en abstracto, sino que valora el posible impacto de su aplicacin al caso concreto.18 Com isso, tem-se a possibilidade de uma restrio legal liberdade deixar de ser aplicada em dada situao, desde que a tenso das regras e dos princpios em jogo se incline favorvel e decisivamente, no caso especfico, liberdade. E, se se admitir o sobreprincpio in dubio pro libertate,19 a esfera de imunidade individual amplia-se ainda mais. A atividade legislativa que interfira no mbito do direito geral de liberdade, bem como no das liberdades especficas, necessita, portanto, de justificao constitucional suficiente. Em sendo as liberdades um direito prima facie, as restries jurdicas devem gozar de apoio constitucional razovel, sob pena de serem deslegitimadas inclusive mediante juzo de inconstitucionalidade. O carter prima facie dos princpios, inclusive o de liberdade, significa que eles oferecem razes que podem ser afastadas por outras

razes opostas, devendo ser realizados na maior medida possvel. No contm, por isso, um mandado definitivo. Carecem de contedo de determinao relativamente s suas possibilidades fticas e jurdicas. Apesar disso, o seu carter prima facie pode ser reforado com a introduo de uma carga de argumentao em favor de determinados princpios.20 Diferentemente, as regras exigem que se faa exatamente o que elas ordenam, desde que vlidas; da seu carter definitivo. Isso no impede que se formulem excees a regras, com base at mesmo em princpios, de modo a atenuar seu carter definitivo.21 Tambm os princpios podem oferecer razes para ao, ou seja, normas individuais concretas. Ocorre que, como razes prima facie, ampararo direitos definitivos somente atravs de uma relao de preferncia.22 Segundo lei formulada por ALEXY, a soluo da coliso de princpios consiste em que, consideradas as circunstncias do caso concreto, se estabelea uma relao de precedncia condicionada.23 Confronta-se o peso dos princpios em tenso para chegar-se regra aplicvel, resultado da ponderao. V-se, assim, que a natureza prima facie dos direitos fundamentais, considerados como princpios, exacerba a maleabilidade da ordem jurdica, escancarando sua dimenso poltica originria: o que o Direito algo sempre em construo e em constante disputa. E, apesar de existirem limitaes importantes para a significao das normas jurdicas, a atual feio estrutural do Direito torna-o campo privilegiado dos embates ideolgicos. El discurso del derecho es el discurso del poder, afirma CARCOVA. En manos de los grupos dominantes, constituye un mecanismo de preservacin y de reconducin de sus intereses y finalidades, en manos de los grupos dominados, un mecanismo de defensa y contestacin poltica.24 O reconhecimento de um direito geral de liberdade, conseqentemente, alm de permitir a deslegitimao in abstracto de leis restritivas desligadas das coordenadas axiolgicas da Constituio ou ofensivas ao princpio de proporcionalidade, autoriza, eventualmente, a

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Idem, ibidem, p. 514. Idem, ibidem, p. 518. GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 170. PEREZ LUO, Antonio Enrique. Op. cit., pp. 315-316.

Como nos Estados Unidos, em que as liberdades de expresso, de imprensa e de religio so consideradas em preferred position (NOWAK, John; ROTUNDA, Ronald. Constitutional Law. 6. ed. St. Paul: West Group, 2000, pp. 1.062-1.063). ALEXY, Robert. Op. cit., pp. 98-101. Idem, ibidem, pp. 101-103. Idem, ibidem, pp. 90-95. CARCOVA, Carlos Maria. Las Funciones del Derecho. In: Revista de Direito Pblico, no 85, pp. 146-147. 7

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A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988

desconsiderao in concreto de proibies ou mandados jurdicos, quando o resultado da ponderao dos princpios e regras em conflito se inclinar significativamente em direo liberdade. A delimitao de um direito constitucional geral de liberdade permite, por outro lado, o reconhecimento de novos direitos, geralmente conseqncia da evoluo social e da especial relevncia de determinadas manifestaes desse direito. Apesar de ser questionvel a autonomia dos novos direitos, j que derivados de outros j consagrados, sua especificao dogmtica confere maior segurana jurdica s situaes que procuram amparar.25 DAZ REVORIO, analisando essas novas expresses concretas da liberdade constitucionalmente assegurada, refere que se trata de derechos prima facie, no exentos de lmites y cuya prevalencia en el caso concreto depende de la ponderacin con otros derechos, bienes o valores dignos de proteccin constitucional.26 Entre esses novos direitos, arrola a liberdade de disposio sobre o prprio corpo e sobre a prpria vida, a voluntria autocolocao em perigo, o direito procriao e reproduo, objeo de conscincia.27

2. Liberdade de conscincia: fundamento constitucional e extensoA Constituio brasileira de 1988, expressamente, dispe que inviolvel a liberdade de conscincia e de crena (art. 5o, VI). Com isso, permite contornar a via alternativa traada pela doutrina espanhola, a qual, no tendo como amparar-se em dispositivo similar, parte da liberdade ideolgica para alcanar resultados semelhantes aos fundamentados na liberdade de conscincia.28 At o sculo XIX, a liberdade de crena expressava-se sob a denominao de liberdade de conscincia, sendo ambas, por vezes, tidas como sinnimas. No I Reich alemo, a liberdade de conscincia era tambm designada devotio domestica simplex, uma liberdade religiosa reduzida, autorizando apenas que se professasse uma confisso em

forma privada, sem a presena de sacerdote.29 A liberdade de culto, ento, consistiu em um plus, permitindo o culto pblico ou o culto privado com ministro.30 A Lei Fundamental de Bonn, porm, buscando evitar que se repetissem os abusos do nacional-socialismo, especificou a liberdade de conscincia desvinculando-a de sua origem estritamente religiosa como um direito absoluto, impedindo qualquer tipo de limitao, ao menos em sua dimenso negativa.31 Segundo STEIN, la libertad de conciencia se refiere a las convicciones de cada individuo sobre la conducta moralmente devida. Lo que debe ser moralmente querido depende de la relacin del hombre con los poderes supremos y con las capas ms profundas de su ser.32 Tais convices podem decorrer de concepes filosficas, religiosas, polticas etc. Nessa perspectiva, a liberdade de conscincia corresponde a uma das heranas mais significativas do liberalismo moderno, qual seja, a positivao do princpio de secularizao, que garante a reserva das atitudes internas, impedindo a confuso entre Direito e Moral.33 O direito fundamental liberdade de conscincia no se limita a proteger o livre desenvolvimento da conscincia,34 mas tambm as manifestaes nela amparadas. Conforme HESSE, no est restringida liberdade de formao da conscincia, portanto, o forum internum; mas ela compreende tambm a liberdade da atuao da conscincia e protege, com isso, a deciso de conscincia destacada para fora.35

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DAZ REVORIO, Francisco Javier. Op. cit., p. 529. Idem, ibidem, p. 535. Idem, ibidem, pp. 536-545. PREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. 8. ed. Madrid: Marcial Pons, 2002, pp. 344-352.

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GOZLEZ DEL VALLE, Jos M. Objecin de conciencia y libertad religiosa e ideolgica en las constituciones espaola, americana, alemana, declaraciones de la ONU y Convenio Europeo, con jurisprudencia. In: Revista de Derecho Privado. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, abril/1991, p. 291. Idem, ibidem, p. 275. STEIN, Ekkehart. Derecho Poltico. Madrid: Aguilar, 1973, p. 210. Idem, ibidem, p. 210. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razn: Teora del garantismo penal. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000, pp. 481-483. No se trata, evidentemente, de conscincia como viglia ou estado de conhecimento e percepo (SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade: Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 45), mas de conscincia moral. A lngua alem dispe de palavras diversas para designar a simples conscincia (bewusstsein) e a conscincia moral (gewissen), diferentemente do portugus e do espanhol, que tratam de ambas sob o mesmo nome (MUGUERZA, Javier. El tribunal de la conciencia y la conciencia del tribunal. In: Doxa. Cuadernos de Filosofa del Derecho. Universidad de Alicante, no 15-16, 1994, pp. 535-536). HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, pp. 299-300. 9

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A Liberdade de Conscincia na Constituio de 1988

Apesar de a Constituio oferecer proteo reforada liberdade de conscincia, distinguindo-a como direito fundamental, a ordem jurdica no pode ter sua validade condicionada adeso interna dos destinatrios das normas. Com efeito, o Direito, exatamente por seu carter heternomo, vinculante para todos, independentemente do eventual convencimento pessoal de que determinada lei seja imoral. certo, porm, que a compatibilidade da ordem jurdica com as concepes morais dominantes constitui condio de sua eficcia social. Sem embargo, o reconhecimento constitucional da liberdade de conscincia, como direito geral, pode implicar limitao coatividade do Direito, j que at mesmo as regras que descrevem imediatamente a conduta devida so apenas preliminarmente decisivas, vale dizer, mesmo que tenham suas condies de aplicabilidade preenchidas, ainda assim podem no ser aplicadas, pela considerao a razes excepcionais que superem a prpria razo que sustenta a aplicao normal da regra.36 As normas jurdicas, assim, continuam vlidas e vinculantes para todos, mas, excepcionalmente, no podem ser impostas s pessoas que as rechaam por suas convices morais. A comunidade admite que no se cumpram determinadas normas jurdicas por certos indivduos, para evitar conflitos de conscincia.37 A partir desse vis, a liberdade de conscincia relaciona-se com a dignidade da pessoa humana, valor expressamente elencado no art. 1o, III, da Constituio brasileira, como sendo um dos fundamentos do Estado. Revela-se, assim, como pressuposto de um Estado que se pretende instrumental do livre desenvolvimento da personalidade. Ao tratar a pessoa humana como fim, e no como meio, como sujeito, e no como objeto, o Estado Democrtico de Direito busca proteger no apenas a sua vida corprea, mas tambm favorecer a procura pela prpria felicidade.38 A legitimidade mesma do Direito, ao cabo, depende de sua compatibilidade com os princpios ticos de uma conduta de vida auto-responsvel, projetada conscientemente, tanto de indivduos, como de coletividades.3936 37 38 39 VILA, Humberto. Teoria dos Princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 69. o que se chama aptido para cancelamento das regras (defeasibility). STEIN, Ekkehart. Op. cit., p. 211. RIBEIRO LOPES, Mauricio Antonio. Princpios Polticos do Direito Penal. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 242-257. HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. V. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 133.

importante ressaltar, entretanto, que a liberdade de conscincia no se restringe a essa perspectiva subjetiva de garantia individual. Propicia tambm, no plano objetivo, a realizao de inmeros outros valores e princpios constitucionais, notadamente aqueles relativos democracia e ao pluralismo poltico.40 Com efeito, o projeto constitucional marcadamente aberto, permitindo que as foras sociais disputem a significao do Direito dentro dos marcos do compromisso poltico originrio. Existem inmeros mundos constitucionalmente posibles,41 o que impede que as concepes morais e polticas das maiorias momentneas obstaculizem, atravs da ordem jurdica, as manifestaes de vises alternativas. MORIN, com percucincia, observa que, tanto quanto de consenso, a democracia necessita de conflitos: a democracia supe e nutre a diversidade dos interesses, assim como a diversidade de idias. O respeito diversidade significa que a democracia no pode ser identificada com a ditadura da maioria sobre as minorias; deve comportar o direito das minorias e dos contestadores existncia e expresso, e deve permitir a expresso das idias herticas e desviantes.42 E conclui afirmando que a democracia deve conservar a pluralidade para conservar-se a si prpria.43 No outro o entendimento de TOURAINE, para quem a democracia, procurando aumentar sua prpria diversidade, reconhece o trabalho do sujeito, at mesmo nos aspectos em que os outros vem apenas transgresso de normas.44 Outrossim, trao caracaterstico da democracia sua incerteza referencial, vale dizer, os resultados do processo poltico devem ser indeterminados. Todas as foras sociais devem submeter-se concorrncia, e nadie puede estar seguro de que sus intereses acaben por triunfar.45 Conseqentemente, impe-se o reconhecimento da

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Sustenta-se, porm, ser condio desfavorvel s instituies democrticas a existncia de fortes conflitos culturais, o que revela a paradoxal tenso entre democracia e pluralismo (DAHL, Robert. La democracia: Una guia para los ciudadanos. Madrid: Taurus, 1999, pp. 170-171). MORESO, Jos Juan. Mundos Constitucionalmente Posibles. In: Isonomia, no 8, 1998, pp. 139-159. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessrios Educao do Futuro. 6. ed. So Paulo: Cortez; Braslia: UNESCO, 2002, p. 108. Idem, ibidem, p. 109. TOURAINE, Alain. O que a Democracia? 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1996, p. 194. PRZEWORSKI, Adam. La democracia como resultado contingente de conflictos. In: Constitucionalismo y Democracia. Organizadores Jon Elster e Rune Slagstad. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1999, p. 91. 11

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contestabilidade como condio de legitimidade das decises majoritrias: Um governo ser democrtico, ou seja, representar uma forma de mando controlada pelo povo, na medida em que este povo, individual e coletivamente, possa usufruir permanentemente o direito de contestao perante as decises do governo.46 Exige-se, portanto, a formao de uma Repblica responsiva,47 que assegure canais para a manifestao da divergncia da forma mais ampla possvel e que, efetivamente, a leve em considerao. Para tanto, insuficiente reduzir a participao popular eleio de representantes, porquanto, pela lei das conseqncias decrescentes, quanto mais numerosas forem as pessoas a serem representadas e as questes a serem tratadas, tanto menos a vontade real de pessoas reais ser considerada.48 Mais construtivo conceber a democracia a partir dos direitos fundamentais,49 com a ampliao dos participantes do processo de interpretao da Constituio,50 permitindo at mesmo manifestaes individuais sobre a significao da ordem jurdica, principalmente quanto extenso dos espaos de liberdade. evidente que a prpria Constituio oferece os balizamentos necessrios para que as disputas e as divergncias no degenerem em anarquia. Por isso, manifestaes radicalmente contrrias aos valores e direitos constitucionalmente acolhidos configuram limites infranqueveis ao exerccio da liberdade de conscincia em sua dimenso externa. Alm do mal a tolerar e do bem de tolerar, h o intolervel. Para GIANFORMAGGIO, la intolerancia es intolerable, pois la intolerancia es el limite fundamental de principio, necesario para que la tolerancia no se autodestruya.51 No marco axiolgico da Constituio brasileira, no seriam admissveis expresses de racismo, por exemplo, mesmo que isso importasse desrespeito a convices de grupos minoritrios.5246 47 48 49 50 51 52 PETTIT, Philip. Democracia e Contestabilidade. In: Direito e Legitimidade. Organizadores Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira. So Paulo: Landy, 2003, p. 372. Idem, ibidem, pp. 378-384. SARTORI, Giovanni. Op. cit., pp. 87-89. HBERLE, Peter. Hermenutica Constitucional: A sociedade aberta dos intrpretes da Constituio: Contribuio para a interpretao pluralista e procedimental da Constituio. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 38. Idem, ibidem, pp. 20-23. GIANFORMAGGIO, Letizia. El mal a tolerar, el bien de tolerar, lo intolerable. In: Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho. Universidad de Alicante, no 11, 1992, p. 64. Nesse sentido, Rivero critica o otimismo liberal, lembrando experincias trgicas recentes, como o fascismo, em que a liberdade de esprito conduziu negao da dignidade

A importncia poltica da liberdade de conscincia, portanto, consiste em que esse direito fundamental prohbe que la mayora oprima la conciencia de cada individuo. Pero tambin impide que la minoria imponga a la mayora sus convicciones sobre lo que debe ser querido moralmente.53 Em outras palavras, o direito fundamental liberdade de conscincia, atravs de procedimentos fixados de antemo e respeitados os limites materiais impostos pela Constituio, favorece o debate poltico e permite a alternncia das idias sobre a organizao da sociedade, em incisiva recusa idia do one best way.54 Entretanto, integra as regras do jogo, necessrias ao exerccio da liberdade de conscincia, o princpio de igualdade, previsto no art. 5o, caput, da Constituio brasileira. De fato, autorizarem-se isenes de deveres jurdicos por motivos de conscincia no pode importar privilgios injustificados. Da a necessidade de ter-se extrema cautela no momento de proceder ao estudo dogmtico desse direito fundamental. Entende-se que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. , pois, inevitvel que se proceda a diferenciaes. Conforme BANDEIRA DE MELLO, sempre possvel desigualar entre categorias de pessoas desde que haja uma razo prestante, aceitvel, que no brigue com os valores consagrados no Texto Constitucional; isto , que no implique exaltar desvalores.55 O princpio da igualdade, se entendido inclusive como impossibilidade de fundamentarem-se quaisquer tratamentos diferenciados a minorias, conduz a excessos uniformizadores, com a supresso das particularidades que definem o prprio grupo. O entendimento de que no se permitem isenes s normas impostas pelo regime comum em matria penal, civil, tributria etc., em ateno a peculiaridades culturais ou outras dos indivduos, fatalmente levaria eliminao das minorias por assimilao.56do homem e dos valores fundamentais da sociedade (RIVERO, Jean. Les liberts publiques. Les droits de lhomme. T. 1. 8. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1997, p. 103). STEIN, Ekkehart. Op. cit., p. 211. TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 189. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Princpio da isonomia: Desequiparaes proibidas e desequiparaes permitidas. In: Revista Trimestral de Direito Pblico, no 1, 1993, p. 82. PRIETO SANCHS, Luis. Minorias, respeto a la disidencia e igualdad substancial. In: Doxa. Cuadernos de Filosofa del Derecho. Universidad de Alicante, no 15-16, 1994, p. 372. 13

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Para enfrentar esse dilema, segundo PRIETO SANCHS, existem somente trs respostas jurdicas possveis: Olvidarse de la tolerancia y aplicar la sancin o consecuencia jurdica que corresponda; considerar lcita la conducta, lo que equivale a olvidarse del deber jurdico; o, en fin, recurrir a una solucin intermedia, la llamada objecin de conciencia.57 A Constituio brasileira parece ter fornecido um importante norte, ao dispor, em seu art. 5o, VIII, que ningum ser privado de direitos por motivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestao alternativa, fixada em lei.58 Do dispositivo mencionado, parece clara a opo do Constituinte pelo oferecimento de alternativas legais ao objetor de conscincia; ou seja, foi imposta ao legislador ordinrio a obrigao de, ao criar mandados ou proibies jurdicas, considerar possveis manifestaes individuais divergentes fundadas em convices morais, possibilitando isenes sem privilegiamentos. Esse entendimento reforado pelo disposto no art. 143, 1o, da Constituio, em que, tratando da objeo de conscincia ao servio militar, se ponderam os bens, valores e direitos em jogo e se garante a possibilidade de sujeio prestao substitutiva.59 Mantm-se a justa distribuio dos sacrifcios pblicos com a previso de atividade neutra ao objetor. Ocorre que a dinmica social, geralmente, mais clere que a jurdica, produzindo inmeras situaes de conflito de conscincia decorrentes de deveres legais sem a correspondente via neutra de cumprimento. Por isso, imperioso que se tracem o perfil e a extenso da liberdade de conscincia, para oferecer soluo razovel principalmente queles casos em que inexiste previso legal de outro comportamento substitutivo ou em que o previsto se mostre colidente com o princpio de proporcionalidade. A existncia do dever jurdico de obedincia s leis pelos indivduos inegvel. No bastasse o contedo do dispositivo antes referido (art. 5o, VIII), o prprio art. 5o, II, da Constituio, que estabelece que ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei, permite, a contrario sensu,57 58 59 14 Idem, ibidem, p. 373. A inobservncia do disposto no art. 5o, VIII, da Constituio pode levar at perda ou suspenso de direitos polticos (art. 15, IV, da Constituio). A Lei no 8.239/91 regulamenta o disposto no art. 143, 1o e 2o, da Constituio.

fundament-lo. Alis, de observar que o Captulo I do Ttulo II da Constituio, em que se insere esse artigo, cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos. Diferentemente, porm, dos agentes pblicos, que inclusive moralmente se comprometem, atravs de juramento, a obedecer s leis do Estado, o dever dos cidados meramente jurdico, no moral.60 Da a importncia do reconhecimento do direito fundamental liberdade de conscincia, pois autoriza a admisso eventual de isenes ao cumprimento de deveres legais com base em convices morais divergentes. O contedo do art. 5o, VIII, da Constituio poderia dar a falsa idia de que os imperativos de conscincia no permitiriam o descumprimento de obrigaes legais a todos impostas. No parece ser essa, porm, a interpretao mais adequada. Em primeiro lugar, em um Estado liberal e secularizado, legislar sobre matrias sensveis a convices morais deve, sempre que possvel, ser evitado. Em segundo lugar, a prpria conjuno aditiva (e), anteposta orao que trata da recusa de atendimento prestao alternativa, evidencia que se trata de requisitos cumulativos, impondo ao legislador ordinrio a obrigao de garantir, ao criarem-se deveres jurdicos, via moralmente neutra ao objetor. Em terceiro lugar, como j analisado, pode ocorrer, em casos concretos, que o peso das regras e dos princpios em disputa se incline decisivamente em favor da liberdade, autorizando a iseno. A flexibilidade da ordem jurdica um trao distintivo da contemporaneidade, em que a complexidade e a conflituosidade sociais impedem que todas as solues estejam exaustivamente fixadas de antemo. E no apenas o caso do servio militar obrigatrio exige respeito conscincia dissidente.61 Essa somente a hiptese em que o prprio Constituinte sopesou os princpios em tenso e, antecipadamente, ofereceu a soluo. Nos demais casos, cumpre ao legislador, primacialmente, regrar a matria, sem prejuzo do controle judicial da eventual omisso ou da regulamentao irrazovel. E, inexistindo regra legal especfica, compete ao Poder Judicirio sopesar os princpios em tenso e decidir. A diversidade e a magnitude dos valores, interesses e bens jurdico-constitucionais contrapostos liberdade de conscincia so, praticamente, imprescrutveis. Sem embargo, RAZ parece oferecer uma di-

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FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 920-931. de observar que no so todos os casos de escusa de conscincia que apresentam ofensa ao princpio da igualdade, a exigir a imposio de prestao substitutiva. 15

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retriz capaz de facilitar no, evidentemente, resolver definitivamente o juzo de ponderao. As regras paternalistas (paternalistic laws), aquelas que impem um dever em favor do prprio destinatrio, bem como as regras de interesse pblico (public-interest laws), aquelas em que a contribuio individual de cada pessoa insignificante, afigurando-se o desatendimento da norma jurdica insuficiente, portanto, para inviabilizar sozinho o objetivo da lei, permitiriam, em princpio, o reconhecimento de eventual iseno pessoal por motivos de conscincia.62 De qualquer forma, incontestvel que existe um direito geral objeo de conscincia no absoluto, evidentemente , decorrncia do reconhecimento mesmo do direito fundamental liberdade de conscincia e dos demais dispositivos constitucionais sobre o assunto, j antes apontados. Por isso, a escusa de conscincia se aplica s obrigaes de forma genrica, e no somente ao servio militar obrigatrio.63 Alis, princpio de hermenutica dos direitos fundamentais o da maior extensibilidade, que impe ao intrprete perquirirlhes todo o alcance no apenas lgico, mas tambm axiolgico, de forma a considerar protegidos outros que expressamente no se declaram como direitos, mas cuja postergao pode comprometer a plenitude da fruio do direito declarado.64 A alegao de motivos de conscincia no constitui, entretanto, panacia para convices pessoais quaisquer, com o objetivo de reconhecimento de imunidade relativamente observncia da lei. Ao contrrio, apresenta pressupostos rgidos e contornos bem definidos, exigncia do carter heternomo do Direito.

comportamentos divergentes. At que ponto a ordem jurdica pode tolerar atos contrrios a seus comandos normativos? A tenso manifesta: por um lado, a Constituio, que traa o primado da liberdade e define os limites da inovao normativa pelo Poder Legislativo; por outro, o princpio democrtico, que torna vinculantes as deliberaes dos representantes do povo. Encontrar o ponto de equilbrio entre ambos parece ser um dos principais desafios impostos pelo paradigma do Estado Constitucional de Direito, em que os dogmas da completude e da certeza da ordem jurdica j no mais podem ser entendidos maneira tradicional. Fundamentar o direito geral objeo de conscincia, porm, apenas o primeiro passo da tarefa. Mais complexa a construo de seus limites dogmticos, luz de outros valores, bens e interesses tambm relevantes constitucionalmente. De qualquer forma, iniciado o sculo das minorias,65 mais ateno h que ser dispensada, juridicamente, aos dissidentes.

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Consideraes finaisA problemtica da liberdade de conscincia avulta nas sociedades contemporneas, caracterizadas pelo pluralismo religioso, cultural, poltico , fazendo aflorar a discusso acerca da justificao dos62 63 RAZ, Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Clarendon Press, 1994, pp. 276-289. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2002, p. 124. Tambm admitindo, a partir do art. 5o, VIII, da Constituio, uma escusa genrica de conscincia: BUZANELLO, Jos Carlos. Direito de Resistncia Constitucional. Rio de Janeiro: Amrica Jurdica, 2002, p. 216. SALGADO, Joaquim Carlos. Princpios Hermenuticos dos Direitos Fundamentais, In: Direito e Legitimidade. Organizadores Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira. So Paulo: Landy, 2003, p. 208.

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A Problemtica das Leis Penais em Branco em Face do Direito Penal do RiscoPablo Rodrigo Alflen da Silva

I Excursus esclarecedorA questo das chamadas leis penais em branco desde h muito tem permanecido margem das investigaes e pesquisas desenvolvidas no mbito do Direito Penal brasileiro, e mesmo na literatura jurdico-penal do mundo europeu somente na ltima dcada se tem voltado os olhos para a mesma. Tal questo exsurge medida em que se parte de um Direito Penal que tem a sua prpria raiz no pensamento ilustrado, uma vez que este proporcionou o desenvolvimento das garantias ainda hoje asseguradas pelo Direito Penal, onde preceitos como o da secularizao, da ultima ratio ou do carter subsidirio, do princpio da legalidade, orientado pela idia de certeza e clareza das leis penais, passaram a constituir o alicerce do que se convencionou chamar de Direito Penal clssico, os quais formaram a base do pensamento liberal do jurista alemo Karl Binding, que foi um dos primeiros juristas a desenvolv-los em uma estrutura sistematizada. Contudo, passados quase dois sculos aps a primeira edio da obra de Binding, intitulada Die Normen und ihre bertretung,1 na qual o jurista alemo elaborou a designao e delineou os aspectos bsicos das chamadas leis penais em branco, percebe-se que a problemtica acerca destas no s subsiste, e de maneira latente, como se acentua ainda mais. Naturalmente, poca a hiptese desta tcnica legislativa no apresentava maiores problemas, na medida em que a Constituio do Imprio alemo possibilitava s instncias de categoria inferior legislar em matria penal. No entanto, com os problemas resultantes da inspirao dos desenvolvimentos sociais, mais precisamente da moderna sociologia do risco, exsurge o chamado Direito Penal do Risco

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A obra de Karl Binding, intitulada Die Normen und ihre bertretung. Eine Untersuchung ber die rechtsmssig Handlung und die Arten des Delikts, teve sua primeira edio publicada no ano de 1872. 21

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A Problemtica das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco

que, com a debilitao das garantias poltico-criminais, tem suscitado um panorama propcio para o emprego arbitrrio e indiscriminado de leis penais em branco. Disso se segue a adeso a um modelo minimalista, assegurador das garantias poltico-criminais, isto , a orientao pela limitao do poder punitivo estatal, que reconhea os direitos fundamentais como direitos de defesa (Abwehrrechte) contra o Estado, assumindo com isso uma posio contrria a um Direito Penal orientado pelas modernas teorias sociolgicas e estabelecendo assim diretrizes para a admissibilidade das leis penais em branco em unissonncia com os postulados do Estado Democrtico de Direito.

II Leis penais em branco a) Conceito, gnese e classificaoAo desenvolver sua teoria das normas, Binding,2 orientado pelos influxos ideolgicos do perodo (como o racionalismo historicista que apresentou reflexos diretos na chamada Jurisprudncia dos Conceitos e pelo positivismo jurdico), constatou a existncia de algumas lex imperfectas, as quais designou Blankettstrafgesetzen (leis penais em branco). Estas apresentavam como caractersticas principais, em primeiro lugar, o fato de que o tipo era descrito de modo impreciso, e em segundo, que a matria de proibio deveria ser preenchida por uma autoridade policial local ou dos Estados ou por legislao particular; da a clssica afirmao de que esta proibio pode perseguir a promulgao da lei penal, onde ento a lei penal temporariamente como um corpo errante procura sua alma.3 Todavia, de extrema2 Binding distinguia em sua teoria a lei e a norma penal, esta seria um mandato, uma proposio do Direito no legislado, ou seja, um imperativo que determina que se deve fazer ou deixar de fazer algo, e que derivado da primeira parte da lei penal. As leis penais seriam disposies que contm ou regras gerais sobre a responsabilidade criminal ou que declaram quais so as aes punveis e as respectivas penas; estas se constituem de duas partes: o Tatbestand (tipo) e a Rechtsfolge (conseqncia jurdica). Com isso, Binding chegou concluso de que o criminoso infringe no a lei penal de acordo com a qual ele julgado, antes ele age em unissonncia com a primeira parte desta lei, ele infringe sim a norma. Para uma anlise aprofundada, comparar BINDING, Karl. Die Normen und ihre bertretung. Zweite Auflage, Bd. 1, Leipzig: Verlag Wilhelm Engelmann, 1890. BINDING, Karl. Op. cit., p. 162: Dieses Verbot dem Erlass des Strafgesetzes erst nachfolgen kann, wo denn das Strafgesetz einstweilen wie ein irrender Krper seine Seele sucht.

relevncia ainda a constatao de Binding sobre a flexibilidade destas leis, de modo que, de acordo com estas, a matria de proibio modifica-se facilmente segundo as vicissitudes que sofrem os acontecimentos a que se referem. Tal concepo, naturalmente, estava em completa unissonncia com a estrutura constitucional do Imprio alemo. A Constituio do Imprio (datada de 16 de abril de 1871) sinalizou a mudana para uma Federao com competncia geral e no pela reunio das meras competncias dos estados singulares. Esta, como afirma Binding,4 atribua ao Imprio alemo a legislao comum sobre Direito Penal, sendo que em alguns casos a competncia era tanto do Imprio como dos Estados da Federao (Bundesstaaten). E, embora Binding tenha observado o fato de que a designao leis penais em branco na poca tenha sido completamente aceita pelo Tribunal do Reich, ressalta que Heinze j havia constatado a existncia desta tcnica legislativa, porm as tinha designado blinde Strafdrohungen (ameaas penais cegas).5 Esta concepo originria foi levada adiante e ampliada por E. Mezger, o qual insere a questo das leis penais em branco no mbito da teoria tipo,6 sendo que, ao elaborar a distino entre tipos fechados e tipos que necessitam de complementao, insere nestes as leis penais em branco. Segundo Mezger, tipos fechados so aqueles que em si mesmos trazem todos os elementos do respectivo fato punvel7 e como tipos penais em branco designa aqueles tipos que j na forma exterior (portanto, no apenas pela sua necessidade de complementao valorativa) remetem a complementaes encontradas desde fora;8

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Comparar BINDING, Karl. Op. cit., p. 158. Comparar BINDING, Karl. Op. cit., p. 161, nota de rodap 9. Engana-se lvaro Mayrink da Costa (cf. Direito Penal. vol. I, tomo I, 6a ed., RJ: Forense, pp. 318-319), ao ressaltar que a expresso Blankettstrafgesetz empregada por Binding significa norma penal do mandato em branco; isso demonstra uma confuso conceptual inadmissvel e uma deturpao da teoria bindingniana, pois neste aspecto o autor prescinde da prpria distino de Binding entre lei e norma; ademais, a expresso utilizada seria Blankettmandatsstrafnorm. Cometendo engano semelhante Vladimir Giacomuzzi (cf. Norma penal em branco. in: Revista da AJURIS, jul./1999, p. 105), mas o maior engano neste ltimo consiste em falar de leis penais de mandato em branco, quando Binding claro ao afirmar que a lei penal no encerra um mandato, sendo que esta caracterstica diz respeito exclusivamente norma. Comparar MEZGER, Edmund. Strafrecht. AT. Ein Studienbuch. Bd. 1, Berlin: Becksche Verlagsbuchhandlung, 1951, pp. 84 e s. Comparar MEZGER, Edmund. Op. cit., p. 84. Comparar MEZGER, Edmund. Op. cit., p. 85. 23

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A Problemtica das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco

trata-se portanto de uma tcnica legislativa. Entretanto, o conceito de lei penal em branco sofre uma notvel ampliao com Mezger, pois este (com a distino entre leis penais em branco em sentido amplo e leis penais em branco em sentido estrito) inclui a idia de que o complemento da lei penal em branco pode estar contido na mesma lei ou em outra lei que emana da mesma instncia legislativa.9 Assim, nas leis penais em branco em sentido amplo o tipo e a sano encontramse separados externamente, sendo que a sano vincula-se apenas a um tipo que necessita ser complementado, podendo distinguir-se duas hipteses: ?) a complementao necessria est contida na mesma lei, o que, conforme Mezger, implica to-s em um problema de pura tcnica legislativa; e ?) o complemento est contido em outra lei, embora da mesma instncia legislativa. J nas leis penais em branco em sentido estrito a complementao necessria est includa em uma lei de outra instncia legislativa. Em considerao a esta distino, Mezger d a entender uma maior preocupao com o princpio da legalidade, em particular aos postulados de lex scripta e lex certa, embora considere irrelevante esta forma especial de legislao penal em branco, bem como que, em qualquer hiptese, a sua importncia se limita ao mbito da tcnica legislativa externa. Assim, observa que o complemento necessrio sempre integra o tipo, de maneira que o tipo j complementado cumpre as mesmas funes que os casos normais.10

b) Desenvolvimento e problemticaO que se verifica com clareza que j na primeira metade do sculo XX o emprego de leis penais em branco nas legislaes se tornou cada vez maior. A multiformidade e a complexidade da vida em face dos problemas resultantes para os diversos campos de atividade (como economia, relaes de consumo, tributao),11 cuja regulamentao de difcil determinao, uma vez que dependem de conjunturas ocasionais, exigindo assim a adoo de decises temporrias adequa-

das a cada uma delas, apresentaram reflexos inclusive na legislao com o recurso a instncias mais geis, onde ento as leis penais em branco passaram a ser reconhecidas como um mal necessrio. Como exemplo deste desenvolvimento exasperador, vem tona o prprio Direito Penal econmico,12 pois j a partir da Primeira Guerra Mundial desenvolveram-se novas formas jurdicas pela chamada economia de guerra, a qual ofereceu o quadro de uma economia inteiramente organizada, extrapolando o mbito das relaes privadas.13 Em razo disso as leis penais em branco passaram a se constituir em uma soluo muito cmoda, particularmente diante das particularidades deste setor, que impuseram o recurso a disposies jurdico-penais mais flexveis e variveis, possibilitando a modificao da matria de proibio mais facilmente. Mas, naturalmente, todo conceito adquire novos matizes quando se submete a novos contrastes, e neste sentido o prprio conceito de lei penal em branco adquiriu novos matizes em considerao complexidade dos mbitos que passaram a reclamar proteo penal. No entanto, com isso, alm dos problemas de ordem constitucional, resultou ainda uma verdadeira confuso conceptual, sendo que a prpria designao per se confirma esta problemtica, na medida em que se tem utilizado expresses como normas em branco (Blankettnormen),14 tipos em branco (Blanketttatbestnde),15 o que coaduna com a perspectiva desenvolvida por Mezger, ou ainda prescries em branco (Blankettvorschriften).16 Do mesmo modo12 Nesse sentido comparar ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Estudos e pareceres de Direito Penal. So Paulo: RT, p. 150, o qual, ao referir-se ao Direito Penal econmico, ressalta que o seu objeto vago e os bens jurdicos tutelados demasiadamente imprecisos ou heterogneos. Comparar ainda TRIPMAKER, Stefan. Der sujektive Tatbestand des Kursbetrugs. In Wistra, Heft 8, August 2002, Heidelberg: C. F. Mller Verlag, p. 291, o qual afirma que a complicada tcnica de remisso do legislador leva que as manipulaes cambirias e de preos do mercado [...] devam ser punidas por decreto. Comparar RADBRUCH, Gustav. Introduo cincia Direito. Trad. Vera Barkow, So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 93 e s. Nesse sentido comparar KOHLMANN, Gunter. Die grundstze und die verfassungsrechtlich gewhrleisteten Garantien und Rechte des deutschen Steuerstrafrechts. in Princpios, derechos y garantias constitucionales del Rgimen sancionador Tributario. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales no 19/01, Vol. I, 2001, p. 18. Nesse sentido ARNOLD, Jrg. Bericht ber das Drittes Chinesisch-Deutsches Kolloquium vom 31.8 bis 4.9.1998 in Beijing, Freiburg i. Br.: Max Planck, p. 11. Nesse sentido comparar TIPKE, Klaus. Steuerstrafrecht. in Staatslexikon, Bd. 3, Freiburg i. Br.: Herder, p. 318, sendo que alguns Tribunais da Repblica Federal da Alemanha tambm empregam esta expresso. No mesmo sentido WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht. AT, 32. Aufl., Heidelberg: C. F. Mller Verlag, p. 34. 25

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MEZGER, Edmund. Op. cit., pp. 85 e s. Tanto em seu Studienbuch como no Tratado, utiliza a classificao leis penais em branco im weiteren Sinne [em sentido amplo] e im engeren Sinne [em sentido estrito]. MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Trad. Rodriguez Muoz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, Tomo I, pp. 397-398. Comparar TIEDEMANN, Klaus. Wirtschaftsstrafrecht. in Staatslexikon. 7. Aufl., 5. Bd., Freiburg i. Br.: Herder, 1995, p. 1.068.

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pode-se falar em relao a prpria idia de lei penal em branco de que se parte: assim, por exemplo, se consideram leis penais em branco aquelas em que o legislador se limita a fixar a cominao penal, cedendo a formulao dos tipos o preenchimento do branco a outros organismos, que podem ser tanto rgos legislativos, autoridades administrativas federais, autoridades administrativas estaduais e, excepcionalmente, autoridades estrangeiras.17 Porm, nesta hiptese, o ato legislativo estabelece a sano de modo preciso, mas deixa o contedo totalmente sem especificao, pois cede a formulao do tipo. Tal idia de lei penal em branco infringe o princpio da legalidade (tanto quanto a exigncia de lex praevia, quanto de lex certa), ao mesmo tempo em que apresenta tpica hiptese de delegao de atribuio legislativa proibida em matria penal. Sob outra tica entende-se que normas penais em branco so aquelas cuja hiptese de fato se configura por remisso a uma norma de carter no penal.18 Nesta hiptese, alm de rechaar a distino bindingniana entre lei e norma,19 ao limitar a remisso to-s a normas de carter no-penal (extrapenal), se prescinde da idia de lei penal em branco em sentido amplo. Entretanto, a concepo mais grave tem sido apresentada por Tiedemann, ao elaborar um mixtum compositum de institutos que no podem ser misturados, pois equipara as leis penais em branco aos chamados tipos penais abertos. Assim ressalta o jurista tudesco: Como leis penais em branco em sentido lato designam-se todos os tipos penais abertos, cuja ao e/ou matria de proibio esto descritas de maneira incompleta e por isso necessitam complemen17 18 MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Trad. Cordoba Roda, Barcelona: Ediciones Ariel, 1962, p. 98. No mesmo sentido o conceito apresentado por ZAFFARONI, Eugenio Ral. Teoria del Delito. Argentina: Ediar, p. 189. Nesse sentido MUOZ CONDE, Francisco; GARCA ARN, Mercedes. Derecho Penal. 2. ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 36. Tais autores so totalmente contraditrios em suas afirmaes, pois primeiramente afirmam que as leis penais em branco cuja matria de proibio se consigna em outra lei de carter penal (lei penal em branco em sentido amplo) so meros procedimentos de tcnica legislativa, ao passo que as leis penais em branco que se determinam por autoridade de categoria inferior (lei penal em branco em sentido estrito) no se tratam de tcnica legislativa, seno de um problema de competncia. Contudo, ao abordar a anlise das leis penais em branco e o princpio da legalidade, afirmam que o Tribunal Constitucional espanhol tem se pronunciado sobre a utilizao desta tcnica legislativa, mas neste caso referem-se s hipteses complementadas por disposies administrativas (isto , leis penais em branco em sentido estrito). Tal rechao manifestado de modo expresso por MUOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal y control social. Colombia: Temis, p. 9.

tao.20 Contudo, as leis penais em branco no so tipos incompletos no sentido de tipos abertos,21 de modo que ambos os institutos no devem ser equiparados. Enquanto os tipos completos contm o contedo do injusto de uma espcie de delito dispondo todos os elementos, nos tipos abertos os elementos constitutivos no so descritos concretamente pela lei. De fato, o grau de formao da matria de proibio acerca das disposies individuais distinto, de modo que a complementao dos tipos abertos o juiz produz, pelo juzo de valor comum ou pelas circunstncias, com outros elementos.22 Este juzo de valor substitui a descrio das circunstncias do tipo (ao contrrio das leis penais em branco), de modo que estes tipos esto apenas abertos concretizao por meio da interpretao. Assim, pode-se dizer que nos tipos abertos h uma ampla margem de liberdade semntica e com isso abrem ao juiz, obrigatoriamente, margens de espao de deciso, dentro das quais ele deve se movimentar sem a instruo da lei.23 Portanto, as leis penais em branco no se tratam de tipos abertos, pois estes no so hipteses de tcnica legislativa; so disposies cujo complemento (valorao!) produzido pelo juiz por meio de um juzo de valor, ao passo que nas leis penais em branco se exige o preenchimento do tipo a partir de outros dispositivos, de modo que para a sua realizao remete-se a outras disposies jurdicas (remisso interna e externa) ou atos administrativos em face da impreciso do contedo do tipo, ou seja, para concretizar a norma o intrprete precisa recorrer a estas, sem as quais no se torna possvel, pois estas disposies limitam as margens de espao de deciso. Mas diante deste panorama conflitante e em razo do emprego excessivo de leis penais em branco na maior parte das legislaes, torna-se insustentvel o fato de que desde a sua noo e sua legitimidade at suas conseqncias permaneam incertas, uma vez que20 21 22 23 Comparar TIEDEMANN, Klaus. Blankettstrafgesetz. in Handwrterbuch des wirtschaftsund Steuerstrafrechts, Freiburg i. Br., Mai, 1990, p. 1. Nesse sentido ZAFFARONI, Eugenio Raul. Op. cit., p. 190, no mesmo sentido PIERANGELLI, Jos Henrique. A norma penal em branco e a sua validade temporal. In Revista dos Tribunais, no 584, RJ: RT, 1984, p. 312. Nesse sentido SCHNKE/SCHRDER/LENCKNER. Strafgesetzbuch, Kommentar. 20. Aufl., Mnchen: Beck, 1980, 13, D, V, comparar ainda JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts. AT, 3. Aufl., Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 197. Comparar HASSEMER, Winfried. Einfhrung in die Grundlagen des Strafrechts. 2. Aufl., Mnchen: Beck, 1990, pp. 194 e s. (H traduo desta segunda edio da obra, por Pablo Rodrigo Alflen da Silva sob o ttulo Introduo aos Fundamentos do Direito Penal, safE, 2003). 27

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os problemas resultantes da moderna sociedade do risco tendem a fazer com que se amplie cada vez mais o emprego desta tcnica, ao mesmo tempo em que objetivam a reduo das garantias jurdicopenais. Assim, se se toma como horizonte de projeo a prpria afirmao de Binding de que a lei penal temporariamente como um corpo errante procura sua alma,24 tem-se que a lei penal dispe o preceito, mas o faz de modo impreciso, sendo que remete a outro dispositivo para precis-lo, e isso devido exigncia do postulado de lex certa. Portanto, pode-se considerar as leis penais em branco como aquelas leis penais que fixam a cominao penal, mas que descrevem o contedo da matria de proibio de modo impreciso (o branco), remetendo expressa ou tacitamente a outros dispositivos de lei (remisso interna ou externa) ou emanados de rgos de categoria inferior,25 para precis-los.

so consideradas leis penais em branco aquelas que confiam a outro dispositivo to-s a especificao (individualizao) da matria de proibio.28 s so leis penais em branco aquelas que fazem uso de tcnica de remisso (expressa ou tcita), que outro aspecto que as distingue dos tipos abertos, ou dos tipos que empregam elementos normativos ou de contedo indeterminado.

c) Justificao e inconvenientes quanto ao emprego de leis penais em branco inegvel que as leis penais em branco (em sentido amplo ou estrito) tratam-se de uma questo de tcnica legislativa,26 sendo que apresentam como caractersticas principais os seguintes aspectos: s podem ser designadas como leis penais em branco aquelas que tipificam delitos,27 ficando, portanto, fora de considerao os dispositivos da parte geral do Cdigo Penal e as disposies da parte especial que tm por objeto regular de maneira particularizada questes pertencentes parte geral.

Entretanto, como no bastasse o problema constitucional suscitado (que segue uma dupla via: uma referente idia de certeza da lei penal e a outra referente competncia legislativa em matria penal), h dois aspectos de ordem pragmtica que so considerados inconvenientes no uso de leis penais em branco: o primeiro est relacionado com a dificuldade para o conhecimento das leis penais por parte dos cidados,29 o segundo apontado por Haft, ao observar como uma peculiaridade da atualidade a nova formulao de leis por meio de um sistema de remisso (Verweisungssystem), o qual pode conduzir a erros quanto aplicao da lei, na medida em que ultrapassa a curta capacidade de recordao do homem.30 Mutatis mutandis, apesar dos inconvenientes, no possvel prescindir desta tcnica, de modo que, como observa Vega, a questo a esclarecer no tanto a de se devem existir ou no, seno como e em que medida se deve permitir a utilizao de leis penais em branco no Direito Penal.31 Justamente por isso se considera que as leis penais em branco so um mal necessrio, e que se justificam pela variabilidade das situaes das quais depende a leso do bem jurdico protegido pelo tipo em branco, pois h

28 24 25 Comparar supra nota de rodap no 3. Observando-se a partir de uma estrutura escalonada do ordenamento jurdico, ou seja, que tem como ncleo a idia de que as normas do ordenamento no esto todas no mesmo plano, h normas superiores e normas inferiores e uma norma fundamental na qual repousa a unidade do ordenamento, comparar BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. Trad. Maria Celeste Santos, 6. Ed., Braslia: Unb, 1995, pp. 48 e ss. Nesse sentido VEGA, Dulce Mara Santana. El concepto de ley penal en blanco. Buenos Aires: Ad Hoc, 2000, p. 16. Nesse sentido CURY, Enrique. La ley penal en blanco. Colombia: Temis, 1988, pp. 48-49; compara ainda JIMNEZ DE ASA, Luis. Tratado de Derecho Penal. T. II, 3. ed., Buenos Aires: Losada, 1964, p. 348; GARCA-PABLOS, Antonio. Derecho Penal. Madrid, 1995, pp. 174 e ss.; TIEDEMANN, Klaus. Blankettstrafgesetz. pp. 1-5; do mesmo, Wirtschaftstrafrecht, p. 1.071; TIPKE, Klaus. Steuerstrafrecht, p. 319.

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Nesse sentido RUDOLPHI/HORN/SAMSON/SCHREIBER. Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Bd. 1, 2. Aufl., Frankfurt a.M.: Metzner Verlag, 1977, 16, B, IV; comparar ainda MARQUES, Jos Frederico. Tratado de Direito Penal. So Paulo Bookseler, 1997, p. 190. Tal aspecto referido por Bacigalupo, comparar BACIGALUPO, Enrique. Princpios de Derecho Penal. 4. ed., Madrid: Akal, 1997, p. 101. Comparar HAFT, Fritjof. Recht und Sprache. in KAUFMANN/HASSEMER. Einfhrung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6. Aufl., Heidelberg: C. F. Mller Verlag, p. 272; sob outro ponto de vista MUOZ CONDE, Francisco; GARCA ARN, Mercedes. Op. cit., p. 38, afirmam que esta tcnica dificulta o trabalho do penalista no s porque remete a mbitos jurdicos que lhe so desconhecidos ou que no conhece to bem como o penal, seno tambm porque o alcance e o contedo distinto da norma penal em relao s demais normas jurdicas produzem uma discordncia entre as prprias normas penais que no auxiliam certeza e segurana jurdica. Comparar VEGA, Dulce Mara Santana. Op. cit., p. 21. 29

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certos bens jurdicos cuja integridade depende de circunstncias conjunturais, de maneira que uma conduta que em certo momento no a afeta, em outro pode lesion-la gravemente.32 Sua ratio essendi se encontra no s em um princpio de economia legislativa, seno na impossibilidade de que as leis abarquem a infinita variedade dos fatos da vida, freqentemente modificveis no tempo. Portanto, isso decorre do fato de que determinadas matrias estreitamente vinculadas a setores mais dinmicos do ordenamento jurdico so fortemente condicionadas por circunstncias histrico-sociais concretas, e como a atividade legiferante nestes setores incessante, se produziria uma grave deteriorao legislativa se fossem includas na leis penais as hipteses que se quer proibir de modo pormenorizado, assim, para se evitar esta deteriorao, recorre-se s leis penais em branco estabelecendo um marco e remetendo a outras disposies para individualizao do contedo.

ponto de vista sociolgico, nos trabalhos de Ulrich Beck34 e de Niklas Luhmann,35 pois a idia de risco suscita ao Direito Penal problemas novos e incontornveis. Tal idia, por um lado, anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos ou provinham de acontecimentos naturais (para a tutela dos quais o Direito Penal absolutamente incompetente) ou de aes humanas prximas e definidas, para conteno das quais era suficiente a tutela penal dispensada aos clssicos bens jurdicos individuais.36 Por outro lado, anuncia o fim desta sociedade e sua substituio por uma sociedade tecnologizada, massificada e global, onde a ao humana se mostra como suscetvel de produzir riscos, tambm eles globais.

a) Direito Penal do Risco e debilitao das garantias jurdico-penaisOs desenvolvimentos e os problemas resultantes dessa sociedade do risco para o Direito Penal foram amplamente analisados e criticados pela Escola de Frankfurt, particularmente por Prittwitz,37 o qual, sem procurar reconstruir jurdico-sociologicamente o discurso do risco, analisa trs modelos na sociedade do risco: no primeiro, a sociedade se caracteriza pelo aumento dos perigos de grande dimenso em parte novos, em parte recentemente reconhecidos como uma conseqncia conjunta do progresso tecnolgico. A partir dessa sociedade do perigo (Gefahrgesellschaft)38 Ulrich Beck cunhou o conceito de sociedade do risco.39 Este complementado por um segundo modelo, no qual a sociedade do risco se apresenta como uma sociedade subjetivamente insegura, em razo dos novos riscos ou dos novos riscos percebidos. O terceiro modelo renuncia resposta questo sobre se a vida que se tornou perigosa e, em vez disso,

III Direito Penal do RiscoUma anlise dos problemas resultantes do panorama social atual para o Direito Penal suficiente para observar que as leis penais em branco passam a se caracterizar como um risco para o mesmo. Isso porque o Direito Penal tanto na prxis como na teoria, est passando da formalizao e da vinculao aos princpios valorativos a uma tecnologia social e paulatinamente vai se convertendo em um instrumento poltico de manobra social. De modo que o problema atual no mais a luta contra um Direito Penal moralizador, o que se levou adiante com as armas da filosofia poltica do Iluminismo, mas sim contra um Direito Penal inspirado pelas modernas teorias sociolgicas, orientadas segundo um modelo globalizante, que no Direito Penal tem se refletido naquilo que se convencionou chamar Direito Penal do Risco (Risikostrafrecht).33 Tal desenvolvimento se deve particularmente s questes que se formulam perante o topos que se tornou conhecido como a Sociedade do risco, que encontra seu desenvolvimento mais elaborado, sob o

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Nesse sentido comparar CURY, Enrique. Op. cit., p. 51; comparar ainda, do mesmo, Contribucin al estudio de las leyes penales en blanco. In Revista del Insituto de Ciencias Penales y Criminolgicas de la Universidad de Esternado de Colombia, v. I, no 4, p. 9. Comparar acerca disso PRITTWITZ, Cornelius. Strafrecht und Risiko. in Rechtliches Risikomangement. Berlin: Duncker & Humblot, 1999, p. 194.

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Comparar BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. Comparar particularmente LUHMANN, Niklas. Die Welt als Wille ohne Vorstellung. in Die politische Meinung, Bonn: Verlag A. Fromm, no 229, 1986, pp. 18-21, que um dos primeiros trabalhos no qual o autor procura desenvolver a problemtica do risco. Nesse sentido DIAS, Jorge de Figueiredo. O Direito Penal entre a sociedade industrial e a sociedade do risco. In Revista brasileira de Cincias Criminais, no 33, 2001, pp. 43-44. Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., pp. 195 e ss. PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 195. Comparar particularmente BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. 31

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observa que se estabeleceram nos mbitos sociais importantes orientaes pelo risco, que a sociedade transformou os perigos imprevisveis e incontrolveis em riscos. De modo que a vida na sociedade do risco se tornou ao mesmo tempo objetivamente segura e insegura atravs de um certo convvio com os perigos e inseguranas, em razo do que aumentou principalmente a insegurana subjetiva. Tal perspectiva conduz ao surgimento de um Direito Penal do risco que, longe de aspirar a conservar o seu carter fragmentrio, como ultima ratio, tem se convertido em sola ratio, mais precisamente, em um Direito Penal expansivo,40 sendo que este carter expansivo tem assumido um significado tridimensional: a acolhida de novos candidatos no mbito dos bens jurdicos (tais como meio ambiente, sade pblica, mercado de capital, processamento de dados, tributos), o adiantamento das barreiras entre o comportamento impune e o punvel, e a reduo das exigncias para a reprovao, o que se expressa na mudana de paradigma que vai da hostilidade para o bem jurdico e da perigosidade para o mesmo.41 No mesmo sentido Hassemer tem ressaltado o fato de que este moderno Direito Penal se apresenta na forma de crimes de perigo abstrato que exigem somente a prova de uma conduta perigosa, renunciam a todos os pressupostos clssicos de punio, e, com isso, naturalmente, tambm reduzem as respectivas possibilidades de defesa e no campo da moderna poltica criminal, como a criminalidade organizada, o meio ambiente, a corrupo, o trfico de drogas ou a criminalidade econmica, encontram-se sempre novos tipos penais e agravamentos de pena.42 Ademais, ao analisar a idia de risco, Hassemer toma como ponto referencial a idia de segurana como um contraconceito de risco,43 ressaltando que o risco categoria prpria da sociedade do risco com a qual se pode compreender este desenvolvimento aqui

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Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., pp. 196 e s. Sobre a idia de expanso do Direito Penal comparar a obra de SILVA SNCHEZ, Jesus-Maria. A expanso do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio Rocha, So Paulo: RT, 2002. PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 4. HASSEMER, Winfried. Die neue Lust auf Strafe. in Frankfurter Rundschau, 2000, p. 18. Comparar HASSEMER, Winfried. Staat, Sicherheit und Information. in Freundesgabe fr Alfred Bllesbach, 2002, p. 236, orientando-se aqui no mesmo sentido de Luhmann, unicamente ao tomar a idia de segurana como um Gegenbegriff de risco, ainda que no manifeste expressamente. Crticas e anlise apontado os limites da teoria da legitimao pelo processo desenvolvida por Luhmann no Direito Penal em HASSEMER, Winfried. Einfhrung. pp. 98-100.

brevemente caracterizado pelo paradigma da segurana.44 E estes riscos modernos atingem justamente aqueles campos nos quais se executa a modernizao da nossa vida, campos que expandem e em uma boa parte ainda so desconhecidos: globalizao da economia e da cultura, meio ambiente, drogas, sistema monetrio, migrao e integrao, processamento de dados, a violncia por parte dos jovens.45 Em todos estes campos pode ocorrer um colapso de sistemas que leva a conseqncias imprevisveis e que possivelmente no pode ser evitado. Com isso Hassemer ressalta que em face deste tipo de ameaa no se pode esperar uma reao racional, tranqila, refletida por parte daqueles que so atingidos, o que se espera muito mais uma insegurana geral, medo e orientao pela insegurana.46 Adaptando-se tica da sociedade do risco, o Direito Penal assume funes, aspectos e alteraes que o convertem em um Direito Penal racional e funcional, orientado por uma dogmtica do risco, tornando-se um eminente instrumento de preveno, que para responder a esta sociedade insegura assume uma funo simblica,47 apresentando como caracterstica principal o fato de que o comportamento que vai ser tipificado no se considera previamente como socialmente inadequado, ao contrrio, se criminaliza para que seja considerado como socialmente desvalorado. Tal Direito Penal do risco apresenta ainda como caractersticas: um nmero cada vez maior de bens jurdicos protegidos; o redirecionamento dos bens jurdicos protegidos sob dois aspectos, tanto pela orientao por bens jurdicos universais (de maior amplitude e complexidade), como pelo aumento de crimes de perigo; e a menor determinao legal do injusto. Este ltimo aspecto representa o ponto crucial na anlise da problemtica, a qual decorre do fato de que, com a impenetrabilidade total dos conceitos clssicos aos novos tempos, as tendncias que surgem em razo do desenvolvimento desta orientao social do risco global seguem no sentido de uma demolio do edifcio conceitual da teoria do delito, assim como o do constitudo pelas garantias formais e materiais do Direito Penal.48 Pois, como observa Kaiafa-Gbandi, se44 45 46 47 48 HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 237. Comparar PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 195. Comparar SILVA SNCHEZ, Jess Mara. Op. cit., p. 75. 33

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A Problemtica das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco

no em todos, pelo menos na maior parte destes mbitos, so registrados pontos de interseco com o Direito Penal material, que atingem o espectro dogmtico integral do delito, e que esto relacionados com o princpio do Estado de Direito, o princpio da legalidade, o princpio da culpabilidade at o da dignidade do homem, isto , com os princpios que asseguram principalmente a funo de garantia do Direito Penal.49 Tal situao reflete a tendncia restrio ou eliminao de aspectos fundamentais do Direito Penal como, por exemplo, a relativizao dos princpios poltico-criminais de garantia, particularmente da idia de certeza da lei penal, a qual se debilita em razo das exigncias sociais de proteo penal de bens jurdicos complexos, de difcil determinao. Isso porque, segundo seus defensores, se faz evidente a primazia dos elementos de expanso em face das regras e princpios do Direito Penal clssico, tendo em vista que, dada a natureza dos interesses objetos de proteo, dita tutela seria praticamente impossvel mediante as regras e os princpios clssicos. De forma que o Direito Penal no estar preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar a sua legitimao substancial no modelo contratual.50 Assim, seguindo esta diretriz, se preconiza a supresso de princpios que dificultam ou impedem a tipificao de certos bens jurdicos complexos, de forma que se considera mais relevante, por exemplo, o manifesto abandono do mandato de determinao nos tipos que, com toda probabilidade, passaro a configurar o Direito Penal da criminalidade transnacional.51 E, dessa forma, como o legislador penal formula estes bens jurdicos universais de modo muito vago e trivial,52 no h dvida de que isso o leva a fazer um uso cada vez maior da tcnica de remisso, com o emprego de tipos penais em branco, sendo que tal aspecto j foi ressaltado por Sieber ao afirmar que, em razo da maior complexidade e da dinmica, o Direito utiliza49 Comparar KAIAFA-GBANDI, Maria. Das Strafrecht an der Schwelle zum neuen Jahrtausend, in Strafrechtsprobleme an der Jahrtausendwende. Baden: Nomos, 1999, p. 44, da ressaltar a jurista da Universidade Tessalnica, com razo, que este desenvolvimento particularmente alarmante para a funo de garantia do Direito Penal e pode levar punibilidade descontrolada da vida social. Nesse sentido DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 45. Conforme SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. Op. cit., p. 94. HASSEMER, Winfried. Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts. in ZRP, Heft 10, 1992, p. 381. (H traduo de Pablo Rodrigo Alflen da Silva sob o ttulo Caractersticas e crises do moderno Direito Penal in Revista Sntese de Direito Penal e Processual Penal, no 18, 2003, pp. 144-157)

cada vez mais conceitos jurdicos indeterminados, clusulas gerais e remisses dinmicas (dynamische Verweisungen).53

b) A matriz garantista de Ferrajoli e a Escola de FrankfurtMutatis mutandis, ao passo que se verifica de um lado a existncia deste moderno Direito Penal do risco, de outro lado se verifica a existncia de matrizes que sustentam o carter fundamental das garantias poltico-criminais. Na primeira, a idia de legalidade, embora no seja contestada na medida em que tais garantias asseguradas pelo princpio da legalidade seguem em conformidade com o estabelecido pelo garantismo penal contratualista clssico, como, por exemplo, o ideal de clareza, simplicidade e coerncia das leis , sofre uma reviso terica com o desenvolvimento do chamado garantismo de Ferrajoli, cujo programa calcado em um modelo terico minimalista. Ferrajoli divide o princpio da legalidade pressuposto bsico do programa garantista em duas regras correspondentes sua legitimao formal ou substancial:54 o princpio da mera legalidade (ou legalidade ampla), segundo o qual s crime o que est formalmente nominado na lei como pressuposto de uma pena e o princpio da legalidade estrita, que comporta o carter absoluto da reserva da lei penal, de maneira que s se constitui de precisa referncia emprica e factual a definio legal das hipteses de desvio que possuem de fato um grau de determinao tendencialmente exclusivo e exaustivo no seu campo de aplicao.55 Assim, o primeiro configura a reserva (relativa) da lei dirigida ao juiz, ao qual prescreve que considere crime qualquer fenmeno livremente qualificado como tal pela lei (no sentido formal, do ato ou comando legislativo) e o segundo configura a reserva

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50 51 52

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Comparar SIEBER, Ulrich. Mibrauch der Informationstechnik und Informationsstrafrecht. in Herausforderungen und Perspektiven fr Wirtschaft, Wissenschaft, Recht, Politik. Baden, 1996, p. 646. Comparar CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 91. Luigi Ferrajoli desenvolve o sistema garantista a partir de uma cadeia principiolgica constituda por dez axiomas: (A1) Nulla poena sine crimine; (A2) Nullum crimen sine lege; (A3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate; (A4) Nulla necessitas sine iniuria; (A5) Nulla iniuria sine actione; (A6) Nulla actio sine culpa; (A7) Nulla culpa sine iudicio; (A8) Nullum iudicium sine accusatione; (A9) Nulla accusatio sine probatione; (A10) Nulla accusatio sine defensione; comparar FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. 5. ed., Roma-Bari: Laterza, 1998, p. 69. Comparar FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., pp. 6-7. 35

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Pablo Rodrigo Alflen da Silva

A Problemtica das Leis Penais em Branco em face do Direito Penal do Risco

absoluta da lei, dirigida ao legislador, ao qual prescreve a taxatividade e a determinao emprica da formulao legal. Todavia, Ferrajoli considera que de todos os princpios garantistas o que caracteriza especificamente o seu sistema o princpio de legalidade estrita, pois a legalidade estrita exige todas as outras garantias como condio necessria da legalidade penal,56 de forma que a estrita legalidade, ou taxatividade do contedo, por hiptese de nvel constitucional, , ao contrrio, condio de validade ou legitimidade da lei vigente. Esta se identifica com a idia de reserva absoluta da lei, isto , com a lei no sentido substancial da norma ou contedo legislativo e prescreve ainda que este contedo seja formado pelo fato dotado de significado unvoco e preciso, garantindo a sujeio do juiz exclusivamente lei.57 Porm, o que se observa claramente no sistema ferrajoliano que a certeza constitui a idia nuclear, a partir da qual se desenvolve todo o sistema sob a tica de um direito penal mnimo em oposio a um direito penal mximo, os quais se distinguem de acordo com a maior ou menor quantidade ou qualidade de vnculos garantistas que compe a estrutura do sistema. Assim, um direito penal mnimo, maximamente condicionado e limitado, corresponde no s ao mximo grau de tutela da liberdade dos cidados contra o arbtrio punitivo, como tambm a um ideal