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  LEMBRANÇAS FOTOGRÁFICAS DA VILEGIATURA MARÍTIMA NO RIO GRANDE DO SUL  Joana Carolina Schossler  Mestranda do PPGH/PUCRS [email protected] Resumo: Desde as primeiras décadas do século XX, a população do Rio Grande do Sul passou a frequentar as praias do litoral gaúcho, incorporando os banhos de mar ao seu imaginário. O espetáculo da natureza, os banhos de mar, a sociabilidade nos hotéis e na orla marítima, foram registrados em fotografias e cartões-postais que relatam os prazeres de sair da rotina. Neste sentido, a circulação de imagens aumentou o desejo de beira-mar daqueles que sonhavam em ser remetentes no próximo verão. Com base na circulação de fotografias, cartões-postais e imagens publicadas nas revistas Kodak, Máscara, A Gaivota e Revista do Globo, o presente trabalho trata das representações e práticas sociais do veraneio no litoral norte do Rio Grande do Sul durante as décadas de 1900 a 1950. Palavras- chave : fotografia, vilegiatura maríti ma, sociabilidade Reminiscências das vilegiaturas terapêuticas No clarear do século XX, antes dos pássaros anunciarem o despertar de um novo dia de verão, alguns vilegiaturistas rumavam para o litoral norte do Rio Grande do Sul em busca das águas salso-iódicas. Seguindo com carroças de bois pelos campos de Viamão, Capivari e Águas Claras, as viagens de Porto Alegre até as praias de Cidreira ou Tramandaí levavam até oito dias a serem realizadas. Além disso, para a longa viagem e permanência junto ao mar, era necessária a condução de artigos pessoais e alimentícios. Das vilegiaturas marítimas com finalidades terapêuticas, registros na  Revista Kodak  e  Máscara, assim como de fotografias de arquivos particulares, permitem acompanhar os momentos heróicos do deslocamento e dos banhos de mar nas águas gélidas do oceano Atlântico. Apesar da precariedade das estradas, o serviço de deslocamento para as praias foi evoluindo durante as duas primeiras décadas do século XX. Do serviço de diligência

LEMBRANÇAS FOTOGRÁFICAS DA VILEGIATURA MARÍTIMA NO RIO GRANDE DO SUL

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Desde as primeiras décadas do século XX, a população do Rio Grande do Sul passou a frequentar as praias do litoral gaúcho, incorporando os banhos de mar ao seu imaginário. O espetáculo da natureza, os banhos de mar, a sociabilidade nos hotéis e na orla marítima, foram registrados em fotografias e cartões-postais que relatam os prazeres de sair da rotina. Neste sentido, a circulação de imagens aumentou o desejo de beira-mar daqueles que sonhavam em ser remetentes no próximo verão.

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  • LEMBRANAS FOTOGRFICAS DA VILEGIATURA MARTIMA NO RIO GRANDE DO SUL

    Joana Carolina Schossler Mestranda do PPGH/PUCRS

    [email protected]

    Resumo: Desde as primeiras dcadas do sculo XX, a populao do Rio Grande do Sul passou a frequentar as praias do litoral gacho, incorporando os banhos de mar ao seu imaginrio. O espetculo da natureza, os banhos de mar, a sociabilidade nos hotis e na orla martima, foram registrados em fotografias e cartes-postais que relatam os prazeres de sair da rotina. Neste sentido, a circulao de imagens aumentou o desejo de beira-mar daqueles que sonhavam em ser remetentes no prximo vero. Com base na circulao de fotografias, cartes-postais e imagens publicadas nas revistas Kodak, Mscara, A Gaivota e Revista do Globo, o presente trabalho trata das representaes e prticas sociais do veraneio no litoral norte do Rio Grande do Sul durante as dcadas de 1900 a 1950. Palavras- chave: fotografia, vilegiatura martima, sociabilidade

    Reminiscncias das vilegiaturas teraputicas No clarear do sculo XX, antes dos pssaros anunciarem o despertar de um novo

    dia de vero, alguns vilegiaturistas rumavam para o litoral norte do Rio Grande do Sul em busca das guas salso-idicas.

    Seguindo com carroas de bois pelos campos de Viamo, Capivari e guas Claras, as viagens de Porto Alegre at as praias de Cidreira ou Tramanda levavam at oito dias a serem realizadas. Alm disso, para a longa viagem e permanncia junto ao mar, era necessria a conduo de artigos pessoais e alimentcios.

    Das vilegiaturas martimas com finalidades teraputicas, registros na Revista Kodak e Mscara, assim como de fotografias de arquivos particulares, permitem acompanhar os momentos hericos do deslocamento e dos banhos de mar nas guas glidas do oceano Atlntico.

    Apesar da precariedade das estradas, o servio de deslocamento para as praias foi evoluindo durante as duas primeiras dcadas do sculo XX. Do servio de diligncia

  • oferecido nas propagandas do Correio do Povo, a revista Kodak mostra a fotografia de sua realizao atravs da viagem a Tramanda das Mms. Brutske e Booth, que acompanhadas de uma criana apresentam-se com vestidos de manga longa e chapus para proteg-las do sol.1 Em outra imagem do retorno de veranistas da praia de Tramanda, duas diligncias com trao a cavalo e um grupo de vilegiaturistas acompanhados por seu guia posam num matagal descampado, legendado como beira da estrada.2

    A realizao da viagem, a contemplao da paisagem e o tempo livre vivido durante a estao de cura, foram aspectos capturados pela revista Kodak, que em suas pginas brinda o leitor com a viso dos panoramas e falsias da pitoresca praia de Torres.3 Neste sentido, a paisagem suscita no banhista e leitor uma esttica de vida junto natureza que lhe convida ao devaneio.

    A moda da praia baseia-se no princpio do desafio. Gozar o mar, neutralizar o temor que ele inspira pressupe estar-se protegido do furor dos elementos

    sem se estar privado do espetculo, donde os dispositivos que erigem os

    estabelecimentos de banhos sobre um molhe a dominar o mar enraivecido. Nesse ponto de contato dos elementos, o aqista espera sade das qualidades

    do ar e da espuma do mar, duas expresses atuais da natureza primitiva.4

    De acordo com Corbin, quando superado o terror da fobia, o mar capaz de proporcionar a energia vital. Nas praias que o homem encontrar o apetite, o sono, o

    esquecimento de suas preocupaes. O frio das guas, o sal, o choque provocado pela imerso brutal, o espetculo de uma gente saudvel, vigorosa, frtil at idade avanada; a variedade da paisagem, tudo isso ajudar a curar o doente. Alm disso, o curista ter a possibilidade de distrair-se em meio sociedade elegante que frequenta os balnerios.5

    1 Revista Kodak, 23/3/1918.

    2 Idem, Ibidem.

    3 Revista Kodak, 1914.

    4 RAUCH, Andr. As frias e a natureza revisitada (1830-1939). In: CORBIN, Alain. Histria dos

    tempos livres. Portugal: Teorema, 2001, p. 95. 5 CORBIN, Alain. O territrio do Vazio: a praia e o imaginrio ocidental. So Paulo, Companhia das

    Letras, 1989, p. 74.

  • Neste sentido, aspectos dos banhos de mar mostram os banhistas com seus roupes de l dentro da gua. Alguns, em pequenos grupos com mos dadas acusam a preveno de afogamentos, mas tambm o emergente prazer do contato com as ondas.6

    Essas sensaes desfrutadas pelos banhistas durante a vilegiatura no atlntico encontram-se registradas na mensagem descritiva do carto- postal enviado por rika Mentz, em um veraneio de fevereiro de 1922, na praia de Tramanda. Ao seu pai, Frederico Mentz, rika enviou um postal contendo no seu anverso uma fotografia de um grupo heterogneo de banhistas desfrutando as ondas do mar. J no seu reverso, rika escreveu:

    Querido Pai! Muito obrigado pela cartinha.

    Como est? Aqui est ainda tudo como antigamente, sos e salvos. Agora j faz uma semana que ns estamos aqui e imagino como se fosse um ms, pois

    a gente est to apartada do mundo. Poucas novidades por aqui e a gente

    pensa somente em comer, banhar-se, beber e dormir. Seja cordialmente saudado e beijado pela tua filha leal. [parte manuscrita pouco legvel] Tua rika7

    Como possvel inferir neste postal, os benefcios salutares so experimentados pelos vilegiaturistas, que expressam uma sensibilidade diferente do cotidiano de sua vida urbana. Ao mesmo tempo, sua mensagem denota uma familiaridade com o local que foi expressa singularmente pela palavra antigamente, o que evidencia que ela j esteve ali em veraneios anteriores.

    6 Revista Kodak, 15/9/1917.

    7 Carto- postal frente e verso. Tramandahy, 26/02/1922. Acervo Benno Mentz/PUCRS.

  • Imagem I: beira da estrada, retorno de Tramanda. Revista Kodak 23/3/1918. Acervo: MCSHJC Imagem II: Veranistas em Tramanda. Revista Mscara 1919. Acervo: MCSHJC

    A circulao de cartas, cartes- postais e fotografias com impresses das praias aumentou o desejo da beira-mar dos destinatrios que sonhavam em ser remetentes no prximo vero. As imagens do mar, os banhos, o espetculo da natureza e os relatos dos prazeres de sair da rotina, certamente foram para muitos um primeiro contato com a paisagem martima, que se constituiu para outros em uma nica experincia da beira-mar.

    Conforme Shapochinik, a imagem incita o destinatrio a ver a paisagem pelos olhos do remetente, apelando para o uso da imaginao ou daquela faculdade que Mrio de Andrade cunhou de conhecimento sensvel.8 Para Patrcia Franco o emissor detm as caractersticas culturais bsicas que sero expostas na mensagem. Os criadores de cartes- postais assumem o papel de emissor da mensagem. A eles cabe transmitir a realidade cultural e social do grupo que retratam.9

    A dupla comunicao expressa nos cartes-postais, uma mais objetiva (verso) e outra mais subjetiva (anverso), permitem o receptor compartilhar atravs da escrita e da imagem o prazer vivenciado na beira-mar. Deste modo, este desejo despertado pela circulao de imagens e dos relatos orais do cotidiano e da paisagem martima, evidenciam-se entre os postais da famlia Mentz, que frequentava as praias de Tramanda e Torres desde o incio da dcada de 1920. Assim, em seu veraneio de 1924, F. Trein escreveu da praia de Torres a seu sobrinho Benno Mentz declarando que: Aqui de fato muito bonito.10 Portanto, a afirmao de Trein em seu postal fotogrfico, comprova o fato de que o mesmo passou a frequentar aquela praia por osmose familiar.

    Desde o final do sculo XIX, a presena de vrios fotgrafos na capital gacha acusa uma concorrncia num mercado incipiente, onde a inovao das tcnicas

    8 SHAPOCHNIK, Nelson. Cartes- postais, lbuns de famlia e cones da intimidade. In: Histria da vida

    privada no Brasil, 3. Repblica: da Belle poque Era do Rdio. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.457. 9 FRANCO, Cartes- postais: fragmentos de lugares, pessoas e percepes. In: Mtis: Histria e Cultura.

    Caxias do Sul: Educs, 2006, V.5, nmero 9, p. 52. 10

    Carto- postal frente e verso. Torres, 29/1/1924. Acervo: Banno Mentz/PUCRS.

  • fotogrficas foi uma constante. Entre alguns fotgrafos estrangeiros mencionados por Athos Damasceno, destacam-se o nome de alguns alemes como Balduno Rehrig, Mme. Reeckell, Luiz Guilherme Willisich e Frederico Hunfleisch, este ltimo inovou o mercado apresentando ao pblico postais, avulsos, propriamente ditos, semelhantes aos postais confeccionados na Europa.11

    Do litoral gacho, os cartes-postais enviados ao longo do primeiro quartel do sculo XX contem a rubrica dos imigrantes, Leopoldo Geyer, Idio Feltes, F. Becker e Otto Schnwald. Sobre estes fotgrafos, pode-se inferir que possivelmente eles transferiam temporariamente seus estdios fotogrficos para as praias, o que lhes garantia fonte de renda extra e certa inspirao fotogrfica que poderia ser compartilhada em cartes-postais e revistas da poca.

    Entre esses imigrantes, interessante notar que o alemo Otto Schnwald, que possua seu estdio fotogrfico em Porto Alegre, era um profissional de renome e comercializava materiais fotogrficos para amadores e profissionais. O nome de Otto Schnwald parecia ser comum entre a comunidade teuto-riograndense, pois alm do mesmo publicar anncios em alemo na Koseritz Deutsche Zeitung12, seu nome tambm aparece nas fotografias da Badeanstalt da SOGIPA, assim como na imagem de um grupo de banhistas em um balnerio de Tramanda.13

    J o fotgrafo Idio Feltes estabeleceu-se em Torres no final da dcada de 1930. Na cidade o fotgrafo exercia atividades comerciais em seu emprio que vendia diversos artigos, inclusive, munies para armas.14 O mesmo ainda possua na cidade um estdio fotogrfico, que em conjunto com sua equipe produzia sries de cartes-postais ressaltando os atrativos naturais daquela paisagem litornea.15

    Outras lentes que captaram aspectos da paisagem e das sociabilidades beira-mar foram s imagens da denominada Casa do Amador. De propriedade de Ulpiano Etchart, as imagens de antigos veranistas ilustres, dos passeios, banhos de mar, das banhistas e

    11 DAMASCENO, A. Colquios com a minha cidade. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto

    Alegre, 1974, p. 39. 12

    Koseritz Deutsche Zeitung, 22/5/1889. Acervo: MCSHJC. 13

    Carto- postal de veranistas em Tramanda. Acervo: CEDOC/UNISC. 14

    O Torrense, 26/2/1949. 15

    SCHOSSLER, Joana. Do pitoresco ao atrativo nos cartes-postais de um balnerio martimo no Rio Grande do Sul. In: XXV Simpsio Nacional de Histria: Histria e tica. Fortaleza, 2009.

  • da paisagem do litoral gacho eram publicadas na Revista do Globo e na A Gaivota com a legenda da Casa do Amador.16

    Das fotografias publicadas em peridicos, uma considervel parcela provinha dos prprios veranistas. A revista Kodak, inclusive, solicitava o envio de imagens aos seus leitores, comunicando que no as devolveria. Deste modo, nas pginas da revista possvel visualizar fotografias legendadas, sobretudo, de famlias como Oscar Mabilde, Ernesto Scramn, Bruno Hofmann, Picoral, entre outros.

    importante ressaltar que possuir uma fotografia como lembrana, significava pertencer a um grupo social privilegiado, at porque poucas pessoas possuam suas prprias mquinas fotogrficas, o que permitia aos fotgrafos registrar bons momentos da vilegiatura martima.

    A fotografia turstica nos permite a posse imaginria de um passado irreal.

    Pela primeira vez na histria, pessoas viajam regularmente, em grande nmero, para fora de seu ambiente habitual, durante breves perodos. Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma cmera. As fotos oferecero provas incontestveis de que a viagem se realizou, de que a

    programao foi cumprida, de que houve diverso.17

    Neste sentido, os fotgrafos tiveram papel representativo na vida dos veranistas que frequentavam o litoral gacho. Certamente foram eles os responsveis por boa parte das recordaes visuais, alm da criatividade e produo artstica para constituio das imagens.

    Alm das imagens dos banhos de mar, que possibilitam inferir os trajes de roupas de homens, mulheres e crianas, as fotografias na beira-mar ou nos hotis tambm permitem analisar o vesturio para as atividades circunscritas aos hotis, como as refeies, os passeios, bailes e jogos. Destes aspectos, muitas fotografias na revista Mscara mostram os veranistas com seus trajes para visitar o farol em Cidreira, deambular pelas areias ou ficar no avarandado do hotel.18 Uma imagem da Kodak mostra, inclusive, um grande grupo de veranistas composto por homens, mulheres e

    16 A Gaivota, revista das praias balnerias do Rio Grande do Sul, 1941. IHGRS.

    17 SONTAG, Susan. Sobre fotografia. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 19/20.

    18 Revista Mscara, fevereiro a junho 1919.

  • crianas vestindo blazers, vestidos e chapus em frente ao Hotel da Sade, que foi o primeiro estabelecimento fundado no litoral, na praia de Tramanda, em 1888.19

    Durante as refeies, os hotis proporcionavam aos hspedes apresentaes musicais com orquestra de msicos trazidos de Porto Alegre. Cabe ressaltar que neste momento, assim como nos banhos, os vilegiaturistas permitiam-se contemplar rostos, corpos, manifestaes mimticas, gestos, comportamentos, palavras e expresses que

    eles no estavam acostumados em seu cotidiano metropolitano. Alm de msica para climatizar as refeies, os conjuntos tambm alegravam a

    noite dos hspedes em bailes promovidos em seus sales. Na revista Mscara de 1919, o grupo tesoura aparece com seus instrumentos musicais em Tramanda.20 Outra fotografia de um grupo musical em trajes para banho e com seus instrumentos, tambm acusa a presena destes profissionais nos estabelecimento.21Como revela uma crnica de Roque Callage, os banhos e os animados bailes eram uma grande atrao aos vilegiaturistas.

    Distribuem-se por toda parte, agora, esses rumores de vida beira-mar, suavemente agitada. Neste momento, as estaes de banhos so a

    preocupao constante da fidalguia austera, e a nota alegre dos que arrastam

    at l o mundanismo complicado dos sales.22

    Em 1920, no hotel Picoral em Torres, um sarau beneficente promovido por Protasio Alvez e outros veranistas tiveram como principal atrativo trechos da pera de Reine de Sba [sic] ou Um certo non so che , composies de Beethoven e Chopin, monlogos em francs e poesias de Olavo Bilac.23 No incio da dcada de 1930, os bailes de carnaval nos sales dos hotis tambm contavam com a organizao dos veranistas porto-alegrenses.

    As publicidades criadas pelos hoteleiros tambm contriburam para o desejo da beira-mar. O empresrio Jos Picoral, proprietrio do Balnerio Picoral em Torres,

    19 Revista Kodak, 15/9/1917.

    20 Revista Mscara, 1919.

    21 Integrantes da orquestra diante do carro do Hotel. Tramanda, 1925. Acervo: Museu Municipal de

    Tramanda Professora Abrilina Hoffmeister. 22

    Revista Kodak, 1920. 23

    RUSCHEL, Ruy Ruben. Torres tem histria. Porto Alegre: EST, 2004, p. 518-519.

  • editou uma srie de cartes-postais com reproduo dos quadros do pintor Cervasio.24 Os cartes- postais que esto registrados como Edico do Balnerio Picoral mostram as Furnas, a Furna Diamante, a Torre do meio e norte, a Praia Balnear entre outros aspectos paisagsticos. Assim sendo, os cartes- postais dos lugares visitados tm um papel importante na superposio da imagem que, ao longo do tempo vai constituindo e consolidando a imagem turstica. Este processo perceptivo da imagem pode provocar lembranas positivas, desejo de conhecer ou revisitar o lugar.25

    A visualizao de um lugar, qualquer composio feita pelo artista, atribui

    quilo que representado um valor de verdade que o texto ainda no oferece:

    as palavras podem mentir, a imagem, por seu lado, parece fixar o que existe.26

    Em meados da dcada de 1930, a melhoria das estradas, a urbanizao dos balnerios e o balbuciar das frias remuneradas intensificou o acesso ao litoral do Rio Grande do Sul. As praias, que haviam sido criadas em razo de uma necessidade teraputica, ficaram movimentadas por veranistas que vinham passar o final de semana na beira-mar.27

    Contudo, no foram somente s estruturas materiais que sofreram alteraes, mas tambm a forma de apreciao da orla martima. O perodo de veraneio passou a ser mais curto, com menos repouso e mais bulcio. Desta nova prtica da vilegiatura martima, o lazer e o entretenimento foram destaques das imagens de fotorreportagem das revistas que circulavam no Rio Grande do Sul na primeira metade do sculo XX.

    Lembranas das vilegiaturas de lazer A partir dos anos 1930 as sociabilidades deixaram de acontecer somente em torno

    dos estabelecimentos hoteleiros e passaram a ganhar mais espao na orla martima. Isso significa que, ao mesmo tempo em que o hoteleiro continuava a proporcionar recreaes

    e delimitar os horrios para as refeies e outras atividades, os banhistas tambm passaram a gerir com mais autonomia o tempo e o espao de suas atividades.

    24 Idem, p. 450.

    25 BOYER apud FRANCO, op.cit., p. 48.

    26 CAUQUELIN, Anne. A inveno da paisagem. So Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 93.

    27 A Gaivota, revista das praias balnerias do Rio Grande do Sul, 1940. Acervo: IHGRS.

  • Este fenmeno interno tambm foi favorecido por aspectos externos. Nesse caso, ao mesmo tempo em que o banhista rompe com os cdigos de pudor e assimila a relao temporria com o outro, a melhoria de estradas, as frias, o carro prprio e os incrementos urbanos nos balnerios, tambm foram fatores que possibilitaram a emancipao dos banhistas em relao aos cdigos estabelecidos. Portanto, possvel afirmar que no incio da dcada de 1940 o veraneio tomou maiores propores, pois com a urbanizao e a abertura de loteamentos no litoral, muitos gachos alm de desfrutarem frias na orla martima, tambm puderam sonhar ou concretizar o desejo de possuir uma casa na praia.

    A acessibilidade e a popularizao do veraneio alteraram a dinmica social na orla martima. Ou seja, a sociabilidade que antes era circunscrita em torno dos hotis, passou a ser possvel fora deles. Esta transio no foi abrupta, ela comeou a se estabelecer na medida em que os veranistas criaram vnculos com o local onde veraneavam. Como exemplo deste aspecto pode-se mencionar o fator religioso atrelado aos benefcios do banho de mar, pois apesar dos banhistas seguirem os rigores cientficos do curismo, o resultado positivo do tratamento no deixou de ser percebido, s vezes, como um milagre.

    Assim sendo, em fevereiro de 1924 os banhistas de Cidreira inauguraram com festejos a Capela da praia de Cidreira, elegendo como padroeira Nossa Senhora da Sade.28 Nos anos vindouros, a festa em homenagem a santa reunia na comunidade de Cidreira milhares de veranistas e nativos das praias vizinhas. Cabe ainda salientar que, para cada ano eram eleitos novos responsveis, normalmente veranistas porto-alegrenses, para a organizao da Festa de Nossa Senhora da Sade, que em 1930 registrou o nmero de 5.000 participantes na procisso.29

    As mesmas devoes cabem para a praia de Torres, que teve em 1930 um festival organizado pelos veranistas em beneficio da igreja.30 Do mesmo modo, em Tramanda, a tradicional festa em louvor de Nossa senhora dos Navegantes reunia anualmente grande nmero de fiis para a procisso e festejos que lanavam a santa ao mar.31

    28 THERRA, Ivan. Cidreira, histria, cotidiano, cultura e sentimento. Cidreira: Casa de Cultura do

    Litoral, 2007, p. 69. 29

    A Gaivota, revista das praias balnerias do Rio Grande do Sul, 1930. IHGRS. 30

    Idem, Ibidem. 31

    Correio do Povo, 18/2/1936.

  • Portanto, possvel deduzir que muitos banhistas veraneavam anualmente no mesmo balnerio ou estabeleceram residncias secundrias nestas, pelos vnculos comunitrios que formaram ao longo da prtica da vilegiatura martima. Sobre este aspecto, igualmente importante levar em considerao a mmica social, pois provavelmente muitos veranistas se orientavam na escolha do balnerio por sua popularidade, pela presena de personagens ilustres ou pela identificao com a comunidade urbana, da qual eram originrios.

    Assim, na medida em que o veraneio se popularizou a dinmica hoteleira foi substituda pela dinmica comunitria. Nesta, os banhistas passaram a gerir sua temporada de veraneio escolhendo praticar a vilegiatura nos finais de semana ou em perodos prolongados, ficar beira- mar o dia inteiro ou algumas horas, fazer refeies comunitrias ou individuais, tomar banho de mar pela manh ou no final da tarde. Enfim, o banhista dominou os cdigos e rituais do prazer de gozar das praias de mar. E como num ritual sagrado, o veraneio tornou-se uma necessidade anual.

    Na verdade, a ida e permanncia na praia tem para muitos o cunho de obrigao a que no se deve faltar. este problema, isto , suas motivaes e modos de realizao, as tticas de ubicao no espao, a conduta durante a

    estada, os relacionamentos com o ambiente e com os demais humanos, os sentimentos experimentados de prazer, de repouso, de integrao no conjunto dos presentes costumeiros ou adventcios, os riscos ou inconvenientes

    sofridos, toda essa variegada gama de fenmenos, que este esboo de scio-

    histria visa apontar (...).32

    Conforme Urbain, a emergncia do prazer se assemelha a um baile popular, um lugar institudo de aproximao dos corpos - um espao de contatos, de sensaes, de excitaes, do gozo das livres expresses largamente autorizadas.33 Nas areias das praias gachas, este ao menos era o retrato registrado nas pginas de fotorreportagem da Revista do Globo e d`A Gaivota. As imagens, alm de mostrarem o aglomerado nmero de banhistas sob as carcias das ondas, tambm demonstram a alegria das praias do

    32 AZEVEDO, Thales de. Italianos na Bahia e outros temas. Salvador: Empresa Grfica da Bahia, 1989,

    p. 105. 33

    URBAIN, Jean-Didier. Sur la Plage: murs et coutumes balnaires (XIXXX sicles). Petite Bibliothque Payot: Paris, 2007, p. 155.

  • litoral norte do Rio Grande do Sul. Porm, os corpos das serias eram o principal alvo das lentes fotogrficas, como revela o fotgrafo Ulpiano Etchart, para os leitores da Revista do Globo.

    Minha retina e minha objetiva fixaram uma legio de corpos encantadores gozando as delcias do ar aberto beira do velho Atlntico. Mais de mil

    negativos forneceram-me estas esplendidas praia de mar. Mais seria impossvel mostrar aos leitores, todos os aspectos, todos os lindos corpos e

    sorrisos que aqui vo. Ao acaso, sim, porque escolher com critrio de seleo

    seria enormemente embaraoso e talvez mesmo impossvel.34

    As colunas de fotorreportagem, alm de demonstrarem aspectos de sociabilidade na orla, tambm possibilitam observar aspectos sobre comportamento e moda balnear. Elas tambm desempenham, algumas vezes, o papel de coluna social, pois as imagens nas revistas ganharam, na maioria das vezes, um cuidado grfico especializado, sendo montadas para serem olhadas como em lbuns fotogrficos. Na maioria das pginas de fotorreportagem, a assinatura de fotgrafos era desconhecida. Segundo Machado Jnior, a autoria vinha assinalada na prpria fotografia, provavelmente grafada no seu original, mas no no objeto transposto diagramao no peridico.35 Alm deste fator, muitas fotografias publicadas nas pginas da Revista do Globo tambm eram contribuies dos prprios veranistas que enviavam suas imagens, a fim de testemunharem para a sociedade suas frias.

    Por outro lado, o surgimento do editor de fotografia deu outro sentido imagem, articulando adequadamente palavras e imagens, por meio do ttulo, da legenda e de breves textos que acompanhavam as fotografias.36 Essas consideraes so visveis nas fotorreportagens publicadas na Revista do Globo, onde o editor enfatizava o ttulo Ecos das praias, colocando logo baixo um subttulo que servia como uma espcie de legenda de onde vem o eco fotografado. Algumas pginas tambm traziam junto com

    34 Revista do Globo, 8/2/1941.

    35MACHADO JNIOR, Cludio de S. Imagens da Sociedade Porto- Alegrense: vida pblica e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (dcada de 1930). So Leopoldo: Oikos, 2009, p. 132. 36MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaio sobre histria e fotografias. Niteri: Editora da UFF, 2008, p. 178.

  • a disposio das imagens uma pequena descrio do veraneio e o local. J o acabamento grfico e artstico, era decorado com espcies de ondas na borda ou entre as imagens.

    Apesar das imagens publicadas no peridico no possurem, na maioria das vezes, legendas com o nome dos veranistas ou demais detalhes, pode-se inferir sobre determinados aspectos do passado, como vesturio/moda, lugares, pessoas e condies de vida. Estes elementos caracterizados como ndices da imagem permitem analisar as caractersticas dos banhistas, como as mulheres, que acompanhavam a moda de veraneio anunciadas em propagandas de produtos para a estao.

    Imagem III: A Gaivota, revista das praias balnerias do Rio Grande do Sul, 1939. Acervo: Biblioteca Nacional.

  • Imagem IV: A Gaivota, revista das praias balnerias do Rio Grande do Sul, 1943. Acervo: Particular.

    Analisando e utilizando o conceito de documento monumento, a fotografia tambm um smbolo, que no passado ficou estabelecido como uma imagem registrada para o futuro. Levando em considerao estes conceitos, pode-se observar o papel do fotgrafo em registrar o determinado momento, de narrar imageticamente o evento que ficar registrado na memria coletiva, pois o portador da cmera fotogrfica quem organizou o grupo para fotografia, montou o cenrio e por fim registrou o momento.

    Portanto, as fotografias nos permitem acompanhar a evoluo do veraneio, deixando como lembrana registros de longas viagens, corpos brancos e roupas pesadas, mas tambm lembranas da descoberta dos banhos de mar prolongados, da exposio do corpo ao sol e das sociabilidades beira-mar.

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