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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
LEONARDO NÓBREGA DA SILVA
PROJETO GRÁFICO COMO PROJETO EDITORIAL: um estudo de caso da editora
Cosac Naify
Rio de Janeiro
2014
2
Leonardo Nóbrega da Silva
PROJETO GRÁFICO COMO PROJETO EDITORIAL: um estudo de caso da editora
Cosac Naify
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos à obtenção do título de Mestre em
Sociologia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Glaucia Kruse Villas
Bôas.
Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Tatiana Siciliano.
Rio de Janeiro
2014
3
Ficha Catalográfica
S586p Silva, Leonardo Nóbrega da
Projeto gráfico como projeto editorial: um estudo de caso da editora
Cosac Naify/ Leonardo Nóbrega da Silva. – 2014.
103 f. : il.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia – PPGSA, Rio de Janeiro, 2014.
Orientadora: Gláucia Kruse Villas Bôas
Co-orientadora: Tatiana Siciliano
1. Editoração 2. Cultura material 3. Edição e editores I.Villas
Bôas, Glaucia (orient.) II. Siciliano, Tatiana (co-orient.) III. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. IV. Título
CDD 306.489
4
PROJETO GRÁFICO COMO PROJETO EDITORIAL: um estudo de caso da
editora Cosac Naify
Leonardo Nóbrega da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Sociologia
Aprovada por:
Presidente: Prof.ª Dr.ª Glaucia Kruse Villas Bôas
____________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Tatiana Siciliano (co-orientadora)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Aníbal Bragança (titular externo)
____________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Renata Bernardes Proença (titular interno)
____________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sabrina Marques Parracho Sant´Anna (Suplente)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Ramos (Suplente)
____________________________________________________________
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
5
RESUMO
O objetivo dessa dissertação é analisar, por meio de entrevistas, catálogos, e artigos de
jornal e revista, o tipo de sociabilidade que abarca as categorias sociais presentes na
prática editorial da Cosac Naify ao promover o projeto gráfico como elemento
fundamental do seu projeto editorial. A atividade de editar estabelece-se como atividade
intermediária entre o texto escrito e o leitor. É, dessa forma, importante na circulação de
ideias e no estabelecimento de um debate público, estando inserido em campo
relativamente autônomo, com rituais e dinâmicas próprios, mas em constante troca com
as esferas políticas, culturais e sociais. Não somente o tratamento dado ao texto a ser
publicado, mas o formato em que é publicado, a escolha do papel, a existência ou não de
ilustração, tipos e margem de página, o projeto gráfico, em suma, é fundamental para a
apresentação do livro, com consequências para o modo como circula, é comprado e lido.
Constata-se, a partir do material analisado, um tipo de sociabilidade que valoriza o
artesanato, a cultura material a as imagens, porém colocando-se em tensão com a
necessidade de viabilidade econômica cara à lógica industrial. Este estudo visa contribuir
para o pequeno, porém crescente, campo de estudos em ciências sociais sobre o universo
editorial.
PALAVRAS CHAVE: Editora; Cosac Naify; Cultura Material; Design Gráfico; Campo
Editorial.
6
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze, through interviews, catalogs, and magazine and
newspaper´s articles, the kind of sociability that embraces the social categories used in
Cosac Naify´s publishing practice, which promotes graphic design as a fundamental
element. The publishing activity is an intermediate between the written text and the
reader. It is thus important in the circulation of ideas and the establishment of a public
debate, inserted into relatively autonomous field with its own rituals and dynamics, but
in constant exchange with the political, cultural and social spheres. Not only the treatment
of the text to be published , but the format in which it is published, the choice of paper,
whether or not illustration, types and page margin , graphic design, in short, is
fundamental to the presentation of book, with consequences for how circulates, is bought
and read. It appears, from the material analyzed, a kind of sociability that values
craftsmanship, material culture and images, but putting themselves in tension with the
needs of economic viability in the industrial logic. This study aims to contribute to the
small but growing field of study in the social sciences about the publishing universe.
KEYWORDS: Publisher; Cosac Naify; Material Culture; Design; Publishing Field.
7
AGRADECIMENTO
Muitas são as pessoas e instituições que me auxiliaram neste percurso de formação e
desenvolvimento de pesquisa, seja orientando, estimulando, apoiando, fazendo parte do
convívio diário ou mesmo distante, mas não por isso ausente.
Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela
confiança depositada no projeto de pesquisa, apoio institucional, bolsa concedida (através
do CNPq) e financiamento para a realização de trabalho de campo e participação em
congresso, condições materiais fundamentais para um desenvolvimento científico de
qualidade e que, espero, tornem-se disponíveis para todos os centros de pesquisa no país.
O convívio com os diversos professores do programa foi enriquecedor e instigante.
Agradeço, em especial, a José Reginaldo Gonçalves, pelos ensinamentos em sala de aula,
a disponibilidade em ajudar e os comentários primorosos na banca de qualificação. A
Glaucia Villas Bôas, agradeço bem mais do que a orientação desta pesquisa. Os
ensinamentos ao longo do processo, a forma atenta e gentil de se colocar, escutar e
acolher, o convívio agradável, a inteligência imensurável que compartilha com todos,
humildemente, ficam como ensinamentos para toda a vida. A Tatiana Siciliano, co-
orientadora desta dissertação, agradeço a disponibilidade, a constante preocupação, as
diversas contribuições, conselhos e convívio em sala de aula na realização do estágio
docência. Aos demais colegas do Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC)
agradeço as leituras atentas, trocas constantes e convívio agradabilíssimo. O seminário de
pesquisa foi, sem dúvida, fundamental na minha formação e no desenvolvimento dessa
pesquisa. Dos colegas da turma de mestrado agradeço especialmente a Camilo, Pérola,
Luís, Guilherme, Luna, Rosa, Vinícius, David e Gabriel. Ainda no âmbito desta
instituição, agradeço a biblioteca Marina São Paulo de Vasconcellos, local primoroso
8
para consulta bibliográfica e estudos. Também a Biblioteca do CCBB foi local
fundamental para a realização dos estudos.
A Aníbal Bragança, agradeço as aulas, as contribuições dadas na banca de
qualificação, a disponibilidade em contribuir com informações sempre que solicitado e a
aceitação em participar da banca de qualificação e defesa da dissertação. Agradeço
também aos demais membros da banca: Renata Proença, que também me ensinou muito
quando da realização do estágio docência; Alexandre Ramos, que contribuiu com diversas
indicações para a melhora deste trabalho; e Sabrina Parracho Sant´Anna.
Agradeço aos editores e ex-editores da Cosac Naify, por terem apoiado essa
pesquisa.
Aproveito esse espaço para agradecer ao Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Pernambuco, onde me graduei e a cujos professores e colegas
devo grande parte dos meus agradecimentos. Agradeço especialmente a profa. Maria
Eduarda da Mota Rocha, que teve grande influência na minha escolha pelo curso de
ciências sociais, nos caminhos que escolhi traçar ao longo do percurso e mesmo na minha
personalidade como educador e pesquisador. Agradeço também aos professores José Luiz
Ratton, Jonatas Ferreira, Russel Parry Scott, Jorge Ventura, Liana Lewis, Paulo
Marcondes e a todos os outros que fazem, deste, um excelente local de formação
intelectual e humanística. Aos colegas, deixo um agradecimento especial por
compartilhares de muitos dos meus melhores momentos, em especial Marcela Santana,
Gregor, Mirtiline, Laura Patrício, Rafael Acioly, Teresa, Pedro Torreão, Vinício Lobo,
Amanda Bezerra, Filipe Nascimento, Chico Ramos e Ester Maria (sem a qual a ideia
inicial não teria se materializado).
Entre Rio de Janeiro e Recife, muitos amigos contribuem para uma estadia
agradável. No Rio, fora os colegas já citados, agradeço o acolhimento de Carla Alencar,
9
Bruno Abdon, Ana Paula, Jorge Sequeira, Julia Krüger, Gustavo Calani, Victoria Alvares,
Quentin Delaroche e a todos que fazem parte deste grupo. Em Recife os amigos são
muitos e de longa data. Lembro em especial do pessoal do Colégio Idéia, dos vizinhos do
Tapajós e daqueles que me acompanham desde sempre: Daniel, Victor e Diego.
Entre idas e vindas, mudanças de instituição e cidade, a família é um elemento
estável e sempre presente. Aos que hoje vivem em Portugal, agradeço o carinho e os
encontros esparsos, mas sempre maravilhosos. Aos meus irmãos, Samuel e Marília,
agradeço a amizade verdadeira e o convívio desde sempre. A Rafaela, minha companhia
nestas andanças, em momentos felizes ou tristes, leves ou angustiados, agradeço bem
mais do que a compressão, o carinho, o apoio e a paciência: agradeço o compartilharmos
a vida e o amor que nos une. Aos meus pais vai o meu maior agradecimento, a quem devo
o meu gosto pela leitura e pelos livros, a minha compreensão de mundo, meu caráter,
tudo, enfim, sem o qual, nada serial possível.
10
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................................. 11
O livro e a edição como objetos de estudo .............................................................................. 12
Conhecendo a Cosac Naify ..................................................................................................... 16
CAPÍTULO 1 – Início da Cosac Naify e o mercado editorial brasileiro .............................. 21
1.1. Vocação para as artes .................................................................................................. 27
1.2. O livro entre a produção artesanal e industrial ............................................................ 33
1.3. Expansão do catálogo .................................................................................................. 44
CAPÍTULO 2 – O projeto gráfico da Cosac Naify e a Coleção Particular .......................... 48
2.1. Projeto gráfico na história editorial brasileira ............................................................. 49
2.2. Projeto gráfico na Cosac Naify ................................................................................... 56
2.3. Equipe de projeto gráfico ............................................................................................ 58
2.4. A Coleção Particular ...................................................................................................... 62
2.5. Leitores e cultura material ........................................................................................... 72
CAPÍTULO 3 – Editora: entre o mercado e a intervenção cultural .................................... 79
3.1. Mudanças e continuidade do projeto ........................................................................... 81
3.2. Editora: empresa ou intervenção cultural? .................................................................. 82
3.3. Contenção de despesas e os reflexos no projeto gráfico: a coleção Portátil ................ 86
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 96
11
INTRODUÇÃO
A Cosac Naify é uma editora brasileira criada em 1997 por Charles Cosac e seu cunhado
Michael Naify. No início publicava livros de artes visuais, destacando-se na edição de
estreia a obra de Tunga, Barroco de Lírios, concebida pelo artista plástico como “uma
obra de arte em si1”. Hoje conta com mais de mil títulos distribuídos em diversas áreas
de interesse.
Uma das características marcantes da editora, como se pode conferir nos textos dos
catálogos, nas falas dos editores ou mesmo nas publicações da imprensa é o trabalho de
design editorial que aponta para uma valorização do livro como objeto. Cristiano Aguiar,
editor do Suplemento Literário Pernambuco2, ao se referir à Cosac Naify, utiliza a
denominação “livro-fetiche” para caracterizar o tipo de publicação da editora. Tal
denominação é emblemática para pensar o processo de valorização estética da edição.
A utilização do projeto gráfico como elemento fundamental do projeto editorial na
Cosac Naify possibilita alguns questionamentos sobre o lugar do livro na sociedade
brasileira contemporânea, bem como sobre a importância da cultura material e das
imagens na dinâmica cultural. É, portanto, fundamental neste trabalho, compreender que
tipo de sociabilidade possibilita um processo de valorização estética do livro, entendido
como a crescente relevância do projeto gráfico no processo editorial.
É necessário entender como a Cosac Naify promove um projeto editorial, a partir da
valorização estética do livro, constrói sua reputação, marca o seu lugar dentro do campo
editorial brasileiro e sugere modos de apropriação, bem como compreender a dinâmica
1 Acessado em http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/10007/Barroco-de-l%C3%ADrios.aspx no
dia 22/11/2012. 2Suplemento Pernambuco (entrevista com Cassiano Elek Machado, ex-diretor editorial da Cosac Naify)
acessado em
(http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=158:o-
livro-digital-nao-e-prioridade-na-cosac-naify&catid=8:entrevista&Itemid=4) no dia 20 de Outubro de
2010.
12
das relações sociais dentre os indivíduos envolvidos na concepção da editora desde sua
criação, em 1997, até 2013, período abordado nesta dissertação.
O livro e a edição como objetos de estudo
Apesar de sua importância social, o livro e a edição passam, apenas recentemente, a
serem vistos como objetos de pesquisa estabelecidos e sistemáticos. A edição de 1957 de
L´Apparitiondu livre, de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, é o marco moderno das
pesquisas sobre o livro e a edição. No entanto, é somente na década de 1980 que passam
a ser realizados estudos com regularidade.
As especulações em torno do possível desaparecimento do livro impresso, devido ao
surgimento dos digitais, assim como as confluências acadêmicas da Nova História3, e de
novos enfoques da sociologia, preocupados com as práticas sociais cotidianas e elevando
os artefatos ao lugar de foro privilegiado para a análise social (Medeiros, 2010), marcam
novo lugar para o livro como objeto de estudo. Acrescenta-se ainda que outros campos
como a sociologia da literatura4, passam a considerar a materialidade do livro em suas
reflexões. Assim, a edição, o livro e o comércio livreiro se tornam parte de um todo
mutuamente influenciável que determina a sua configuração e sua dinâmica na sociedade.
Roger Chartier (1994; 1996; 1999; 2002) é um dos responsáveis pela legitimação do
livro e da edição como objetos de conhecimento. Para ele, a materialidade do livro tem
influência no modo como os textos são lidos, e as mudanças pelas quais o formato passou
durante os anos revelam maneiras diferentes de apropriação do conteúdo. Robert Darnton,
(2010) compartilha da preocupação de Chartier ao afirmar que os “aspectos físicos [dos
livros] fornecem pistas a respeito de sua existência como elemento num sistema social e
3 Corrente historiográfica predominantemente francesa da segunda metade do século XX, que valoriza os
estudos sobre as ações cotidianas e os artefatos materiais. 4 Cf. Robert Escarpit, A Revolução do Livro (1976). Também Gustavo Sorá (2010) parte desta concepção
ao analisar a constituição de um cânone literário brasileiro a partir a atuação de José Olympio como editor.
13
econômico” (op.cit.:57). A preocupação se volta para todo o circuito que envolve o livro:
autores, editores, gráficos, distribuidores, livreiros e leitores5.
No Brasil, em meados dos anos 1970, começam a surgir alguns estudos sobre o livro.
É o caso de O Livro Brasileiro desde 1920, de Olympio de Souza Andrade (1978).
Surgem também pesquisas que, apesar de não tomarem o livro como objeto central,
sublinham sua importância: é o caso da tese de doutoramento em sociologia de Sérgio
Miceli, intitulada Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945) (1979). Alguns
anos mais tarde, em 1992, Glaucia Villas Bôas defende sua tese intitulada A vocação das
ciências sociais (1945-1964) - um estudo da sua produção em livro (2007), em que se
observa a importância da dinâmica do mercado editorial na consolidação das ciências
sociais no Brasil.
Entretanto, o marco no estudo de livros no Brasil é a publicação, em 1985, de O Livro
no Brasil (sua história), tese de doutoramento do bibliotecário inglês Laurence Hallewell,
republicada em 2005 com ampla revisão e acréscimo de conteúdo (2012). Hallewell faz
um trabalho de fôlego em que o livro é objeto privilegiado, centrado na análise da edição
e dos editores desde a colônia até os dias atuais.
Segundo Gustavo Sorá (2010: 14), os estudos de Olímpio de Souza Andrade e Sérgio
Miceli trazem o livro como objeto privilegiado, mas de forma diferente: Miceli traz a
produção e circulação de livros como aspecto a ser contextualizado para outros estudos
mais amplos, como a dinâmica dos intelectuais; já a análise de Olímpio de Souza Andrade
se aproxima de um diagnóstico do setor livreiro. O livro de Hallewell é o primeiro
especificamente centrado na análise da edição e dos editores, que será seguido por outros
autores, estabelecendo propriamente um campo de estudos do livro e da edição no Brasil.
5 As mudanças sociais da leitura em conformidade com as modificações do formato livro são discutidos
por Steven Roger Fischer, em A História da Leitura (2006).
14
Aníbal Bragança escreve tese de doutoramento em 2001 intitulada Eros pedagógico:
a função editor e a função autor, consolidando-se como um dos estudiosos do livro e da
edição. Organiza também, junto com Márcia Abreu (2010), um panorama dos estudos
recentes sobre o livro, em que vários pesquisadores tratam de aspectos diversos que vão
desde o estabelecimento oficial da imprensa no Brasil a partir da vinda da família Real
em 1808, até a constituição das principais editoras brasileiras.
Dentre os estudos mais recentes no campo específico das ciências sociais, a já citada
tese de doutoramento em antropologia de Gustavo Sorá, Brasilianas – José Olympio e a
gênese do mercado editorial brasileiro (2010), defendida em 1998, trata do editor José
Olympio e o contexto de formação do mercado editorial brasileiro. Analisa o editor
através da categoria da amizade, buscando compreender os diversos laços que formaram
a rede para o estabelecimento e a permanência dessa editora, fundamental na consolidação
de um cânone literário brasileiro.
Luiz Renato Viera escreve tese intitulada Consagrados e Malditos: os intelectuais e
a editora Civilização Brasileira, defendida em 1996, onde elabora um estudo da produção
cultural brasileira, entre os anos 1950 e 1970, tendo como fio condutor a atuação do editor
Ênio Silveira, figura central na história editorial do país. O ponto de inflexão neste estudo
é o Golpe Militar de 1964, alterando o modo como os intelectuais lidam com o Estado e
permitindo entender como se deu a dinâmica de legitimação e consagração intelectual
nessa época.
Alessandra El Far (2004; 2006; 2010) defende tese de doutoramento intitulada
Páginas de Sensação: Literatura Popular e Pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1920),
em que analisa o crescimento, no fim do século XIX e início do XX, de uma literatura
popular, marcadamente os “romances de sensação” e “romances para homens”,
amplamente consumida por uma crescente população alfabetizada. A circulação desses
15
títulos só foi possível por um processo de popularização do livro, com a circulação de
edições a preços módicos.
Também no campo do design editorial são publicados alguns estudos de
referência. É o caso da pesquisa de Rafael Cardoso (2005; 2009). O autor estabelece o
que seria o início do design gráfico de livros no Brasil, desfazendo um mito comum de
que o país, por suas particularidades históricas, estaria atrasado na produção de livro em
comparação com outros países. O termo design de livros não pode ser utilizado antes da
nova indústria gráfica surgida durante o período 1840-50, quando se começa a produzir
livros em larga escala, processo no qual o Brasil estava inserido. No século XX,
estabelecem-se no Brasil grandes casas editoriais e designers consagrados como Tomás
Santa Rosa, Wasth Rodrigues, Eugênio Hirsch, entre outros.
Guilherme Cunha Lima e Ana Sofia Mariz (2010) contribuem com pesquisa sobre a
editora Civilização Brasileira, sob o comando de Ênio Silveira, destacando as inovações
gráficas e experimentações tipográficas implementadas pelos profissionais que
trabalharam na empresa.
Sem a pretensão de esgotar a bibliografia sobre o assunto, os estudos apontados
ilustram a crescente importância dada ao livro e à edição como objetos de estudo tanto no
campo das ciências sociais quanto nas áreas do design e da literatura.
Dada sua especificidade histórica como artefato fundamental na circulação de ideias,
e mesmo seu valor como obra de arte e objeto de coleção para bibliófilos, o livro traz
consigo um status de intelectualidade e tem importância fundamental nas mudanças que
ocorrem nas sociedades letradas. Porém, o que se percebe, principalmente a partir de fins
do século XIX e no decorrer do XX, é uma crescente valorização do seu projeto gráfico
em escala industrial, uma preocupação com o acabamento da edição, desde o tipo de papel
16
e costura utilizados, até a ilustração e qualidade de impressão dando importância
primordial ao seu design.
Conhecendo a Cosac Naify
O estímulo para compreender as relações entre projeto gráfico e projeto editorial,
realizando um estudo de caso da editora Cosac Naify, parte, como muitas pesquisas, de
alguma experiência pessoal que posteriormente se percebe coletiva. A paixão por livros
é relativamente disseminada, principalmente no meio acadêmico. A busca incansável por
livros se confunde, muitas vezes, com um contato íntimo com bibliotecas e livrarias.
Passa-se a adorar o cheiro, as cores, as letras impressas, a textura do papel, as imagens.
Comecei a perceber que ficava muito tempo vagando por livrarias e bibliotecas,
folheando os livros, e, muitas vezes, o primeiro contato era inevitavelmente visual: os
livros que mais seduziam eram os que se destacavam nas prateleiras. Não por serem
coloridos demais ou exóticos, mas por terem alguma coisa de zelo e cuidado na
elaboração que se revelavam num primeiro olhar. Nessas visitas a livrarias, o nome de
uma editora começou a chamar a atenção: a Cosac Naify. Tal percepção foi o mote para
uma indagação mais ampla: qual a importância do projeto gráfico na edição de livros?
Apesar de sediada no Brasil e de atuar na cidade de São Paulo, a Cosac Naify foi
fundada nos Estados Unidos. Criada em 1997 pelos sócios Charles Cosac e Michael
Naify, tinha como foco inicial a produção de livros de artes. Hoje conta com cerca de mil
títulos distribuídos em dez áreas de interesse como Arquitetura, Arte, Ciências Humanas,
Cinema e Teatro, Design, Fotografia, Infanto-juvenil, Literatura, Moda, Música e Dança.
Charles Cosac, depois de concluir o secundário no Rio de Janeiro, morou por quinze
anos fora do Brasil. Estudou história e teoria da arte na Universidade de Essex, na
Inglaterra, onde ajudou a organizar a primeira coleção pública de arte latino-americana
17
da Europa, e retornou ao Brasil em 1996, fundando a editora um ano depois, com aportes
financeiros da própria família, que é de origem síria e enriqueceu no Brasil com a
exploração de cristais de quartzo e outros minerais6.
O outro fundador da editora é Michael Naify, empresário americano, cuja família, de
origem libanesa, possui uma das maiores fortunas dos Estados Unidos, com investimentos
na cadeia cinematográfica e de televisão a cabo. É casado com Simone Cosac Naify, irmã
de Charles Cosac.
Michael Naify e Simone Cosac ajudaram, no início da editora, com aporte financeiro,
acompanhamento de impressão, que era feita em Florença, na Itália, e indicação de alguns
livros a serem editados, como o infanto-juvenil Capitão Cueca, um dos maiores sucessos
de vendas da editora, lançado em 2000. Apesar do incentivo inicial, não fizeram parte das
atividades da editora após os seus primeiros anos, sendo contatados por Charles Cosac
somente quando havia necessidade de novos aportes financeiros. Em 2011, por conta de
restrições financeiras, novo investimento de capital por parte dos sócios foi necessário,
além de mudanças na gestão da editora, que passa a ser presidida diretamente por Charles
Cosac.7
A editora conta atualmente com cerca de noventa funcionários. Além dos sócios
Charles Cosac e Michel Naify, são cargos integrantes da administração da empresa o
presidente; o diretor administrativo, que coordena as diversas áreas; o diretor-editorial,
que dirige o setor editorial; o diretor comercial, que cuida das vendas; o diretor financeiro,
responsável pelas contas da editora; e a diretora de arte, que gere os designers e
produtores gráficos.
6ABUJAMRA, Adriana. Um Personagem à Procura de Seus Autores (Perfil de Charles Cosac). Jornal
Valor Econômico. Jan. 2012. 7 Idem
18
***
Para esta pesquisa foram realizadas um total de sete entrevistas com funcionários e
ex-funcionários da editora, entre agosto e dezembro de 2013, além de Samir Machado,
fundador, editor e designer gráfico da Não Editora.
As entrevistas foram fundamentais para a elaboração desta dissertação, ficando claro,
entretanto, que a análise do projeto editorial da Cosac Naify não reflete a opinião dos
entrevistados, mas resulta de exame de diversos materiais como os bibliográficos e
iconográficos além dos depoimentos, a partir de um recorte autoral, o que pressupõe,
evidentemente, uma subjetividade.
Com o objetivo de compreender que tipo de sociabilidade possibilita uma valorização
estética do livro, este texto se encaminha no sentido de apresentar uma interpretação da
concepção editorial da Cosac Naify, utilizando entrevistas, catálogos e artigos de jornal.
É fundamental para o entendimento dos caminhos percorridos, alguns suportes teóricos
que serão melhor debatidos ao longo do texto. As observações de Bourdieu (1983) acerca
dos bens simbólicos é de grande importância para se compreender as especificidades
inerentes à produção e comercialização do livro, distanciados da prática comercial de
produtos tradicionais na medida em que se estabelece, por parte dos produtores, um
discurso de “recusa do econômico”. Também quando trata do campo editorial, Bourdieu
(1999) traz contribuições importantes ao considerar o mesmo como um espaço social
relativamente autônomo, evitando, dessa forma, a explicação de suas práticas como meros
reflexos de pressões estruturais exteriores. Isso significa que o campo editorial é passível
de retraduzir nos termos da sua própria lógica todas as forças externas, especialmente
forças econômicas e políticas.
19
É igualmente importante nesta dissertação a noção de cultura material, entendida
como a valorização da relação entre objetos e subjetividade (Bueno, 2008; Fertherstone,
1995). Essa noção está intimamente associada a cultura de consumo (Campbell, 2001;
2004) e suscita debates que se mostram presentes na lógica que acompanha a valorização
estética do livro. Também a discussão do que seria uma cultura autêntica (Sapir, 2012;
Benjamin, 1987a) está intimamente relacionada à valorização do artesanal que se revela
nas falas dos editores.
No primeiro capítulo são apresentados alguns dados do mercado editorial brasileiro
no momento de entrada da Cosac Naify. Tanto a configuração do mercado editorial,
quanto as escolhas iniciais da editora, focada em livros de arte, apontam para um caminho
de entendimento da valorização do projeto gráfico. Neste momento, a categoria
“artesanal”, em contraposição a categoria “industrial”, é relevante como discurso da
editora acerca de sua concepção. Encerra-se com a descrição da expansão do catálogo da
editora, que deixa de focar em livros de arte e começa a publicar também literatura,
ciências humanas e infanto-juvenis.
O segundo capítulo trata particularmente do projeto gráfico. Inicialmente recorre-se à
história editorial gráfica brasileira para apontar as condições que possibilitaram inovações
em projetos gráficos propostos pela editora José Olympio, Civilização Brasileira, dentre
outras. A interação entre designer e editor mostra-se fundamental, e é este diálogo que se
revela na Cosac Naify. Aborda-se a constituição da equipe gráfica da editora, bem como
a tensão entre este núcleo gráfico e o editorial, mais focado em cuidar do texto, o que
revela distintas perspectivas de produção. A Coleção Particular é analisada em detalhe,
pois apresenta características marcantes no entendimento do projeto gráfico como projeto
editorial. Essa interação é analisada tomando-se como base uma crescente importância
dada à cultura material na sociedade contemporânea.
20
O terceiro capítulo analisa possíveis mudanças na concepção gráfica dos livros
produzidos pela editora após as mudanças no âmbito da gestão realizadas a partir de 2011.
Fica claro na descrição da coleção Portátil, de livros de bolso, que as noções de individual
e artesanal dão lugar, gradativamente, às noções de “democratização” e “barateamento”
Embora se mantenha um discurso em favor da qualidade gráfica, os livros são feitos em
série, de forma padronizada, para que, com isso, se diminuam os custos.
O que se percebe, a partir das análises desenvolvidas nesta dissertação, é uma
crescente relevância dada à cultura material nas sociedades contemporâneas, que encontra
reverberação na indústria editorial, tendo aqui como foco os livros da editora Cosac Naify.
O tipo de sociabilidade relacionado a tal concepção diz respeito à crescente valorização
do “artesanal” em detrimento do “industrial”, do “individual” em contraposição ao
“padronizado”, bem como a importância dada à experiência pessoal e às qualidades
visuais e táteis presentes na materialidade do livro. Todas essas concepções tornam-se
ainda mais interessantes para serem pensadas quando confrontadas com a exigência de
“viabilidade comercial”, presente em diversos segmentos industriais. Tal pressão
financeira faz com o que discurso do projeto gráfico único seja relativizado em relação a
um novo apelo, o do “barateamento do livro” e da “democratização do conhecimento”, a
ser garantido por um projeto gráfico padronizado, como na coleção Portátil, e,
consequentemente, mais acessível a um público consumidor amplo.
21
CAPÍTULO 1 – INÍCIO DA COSAC NAIFY E O MERCADO EDITORIAL
BRASILEIRO
“Além do conteúdo, edição, encadernação, diagramação, tipografia, ilustração,
ou papel, o livro exerce sobre mim uma atração física. Não me satisfaz ver um
livro numa vitrine sem poder pegá-lo”8.
Em 1996, Charles Cosac retorna ao Brasil, depois de ter passado 15 anos na Inglaterra,
onde havia iniciado o doutorado na Universidade de Essex com tese sobre o “Quadrado
negro sobre fundo branco” (1915) de Malevich e o contexto social da Rússia entre 1905
e 19159. Um ano depois sairiam as primeiras publicações da sua recém-fundada editora,
a Cosac Naify.
Os primeiros livros publicados foram da área das artes visuais. O conjunto inclui
monografias de artistas, como Barroco de Lírios, de Tunga, artística plástico brasileiro
responsável pelo projeto gráfico do próprio livro, que conta com mais de duzentos tipos
diferentes de papel e a imagem de uma trança que, desenrolada, chega a um metro de
comprimento10.
8 Mindlin (1997). 9 A obra “Quadrado negro sobre fundo branco” (1915) do artista russo Kazimir Malevich (1878-1935)
marcou o movimento suprematista russo, rompendo radicalmente com a pintura figurativa e marcando o
abstracionismo na arte moderna. 10 Tunga é o nome artístico adotado por Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão (1952), nascido
em Palmares, Pernambuco. A trança é elemento recorrente no trabalho do artista, podendo ser encontrada
em diversas obras como Sem Título (Trança) (1981), A Vanguarda Viperiana (1985), Tacape (1986),
Êxtases (1987), Lézart (1989), dentre outras. Informações sobre o artista podem ser acessadas em
http://www.tungaoficial.com.br. Último acesso no dia 17 de janeiro de 2014.
22
Detalhes do livro Barroco de Lírios (1997)
Fonte: site da Cosac Naify: www.editoracosacnaify.com.br.
Outro livro dentre os primeiros publicados é o Use, é lindo, eu garanto, com
reprodução de desenhos do artista plástico cearence Leonilson, em edição bilíngue,
português e inglês. Dentre as primeiras monografias de artista publicadas também se
encontram Antropologia da Face Gloriosa, de Arthur Omar, Nelson Félix, do artista
plástico homônimo, além de obras de Lygia Pape, Siron Franco, Francis Bacon e Daniel
Senise.
Em 1998 sai o Arte na América Latina, da crítica de arte e historiadora inglesa Dawn
Ades, professora na Universidade de Essex e coordenadora da University of Essex
Collection of Latin American Art (UECLAA), coleção que Charles Cosac ajudou a
organizar quando ainda era aluno naquela universidade. No mesmo ano foi publicado o
catálogo Antarctica Artes com a Folha, que traça um panorama das artes plásticas
23
brasileira. Este formato de catálogo, elaborado em parceria com a Cia. Antarctica Paulista
e a Folha de São Paulo, mostrar-se-ia uma constante no decorrer da atividade da editora,
estimulada pela ampliação de parcerias com instituições culturais.
Outras publicações que marcaram o início da editora foram os livros da coleção
Pelican, de história da arte, da Universidade de Yale, com títulos como Arquitetura na
Itália: 1400-1500, Arquitetura Grega, Pintura Holandesa, dentre outros.
Junto aos esforços iniciais de Charles Cosac na publicação das obras no Brasil,
estavam seu cunhado Michel Naify e sua irmã Simone Cosac Naify, que à época residiam
em Florença, na Itália. Simone, com formação em produção gráfica, acompanhava a
impressão dos livros, que eram feitos naquele país, por ter o preço mais em conta que no
Brasil. Michel Naify encarregou-se do aporte financeiro e do setor burocrático da
empresa, legalmente associada a seus negócios nos Estados Unidos.11
O panorama das primeiras publicações, voltadas para a arte, bem como sua
estrutura inicial baseada em relações familiares, marcam o que seria o perfil da editora
nos anos seguintes. A publicação regular de monografias de artistas, os projetos gráficos
especiais e o interesse de Charles Cosac nas artes visuais, bem como as entrevistas
concedidas à imprensa, chamaram a atenção dos leitores e definiram a forma como a
editora ficou conhecida.
Quando a Cosac Naify foi fundada, o mercado editorial vivia um momento de relativa
estabilidade, se comparado com os anos de hiperinflação da virada da década de 1980
para 1990. Os dados sobre produção e vendas do setor editorial brasileiro divulgados
anualmente pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) a pedido do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da Câmara Brasileira do Livro
(CBL) apontam para um panorama positivo, mesmo que de forma discreta. O número de
11 ABUJAMRA, Adriana. Um Personagem à Procura de Seus Autores (Perfil de Charles Cosac). Jornal
Valor Econômico. Jan. 2012.
24
títulos publicados, somando primeira edição e reedição, em 1990 (quando se dá o início
da série histórica da pesquisa) foi de 22.479 títulos, com 239.392.000 exemplares. Em
2000 os títulos publicados passaram para 45.111, somando 329.519.650 exemplares. Já
em 2012, os títulos publicados chegaram a 57.473, totalizando 485.261.33112.
Esse cenário de crescimento do setor tem como causa, dentre outras, o controle da
inflação e a estabilidade econômica, alcançados em meados dos anos de 1990, permitindo
uma maior segurança em investimentos tanto da parte dos produtores quantos dos
consumidores. Sandra Reimão (2001) relaciona o controle da inflação e a estabilidade
econômica, visadas pela implementação do Plano Real, em 1994, como causas do
equilíbrio na produção de livros no Brasil. Desde então, a produção de livros no país tem
se mantido num patamar superior a 330 milhões de exemplares por ano13. Do ponto de
vista das vendas, outro fator que justifica esse dinamismo junto ao consumidor é a
abertura das megalivrarias nos anos 1990. Segundo Halewell (2012: 825), “dez grandes
lojas foram abertas somente em 1997” representando também “a chegada de gigantes
estrangeiros”.
A essa perspectiva, une-se, nos anos 2000, uma reorganização da cadeia distributiva
do livro (Reimão, 2011), com a ampliação, dentre outros canais, das vendas pela internet,
superando, mesmo que timidamente, a dificuldade da distribuição do livro no Brasil.
O olhar positivo sobre o mercado editorial brasileiro não é compartilhado por todos
os analistas. O economista Fábio Sá Earp tem uma perspectiva alarmante quando trata
dos dados econômicos do setor editorial no Brasil. Os dados disponibilizados pela CBL
e SNEL sobre produção e vendas do setor editorial brasileiro, alguns deles transcritos
acima, revelam uma evolução nítida tanto no número de títulos publicados quanto na
12 Os dados referentes ao ano de 2013 ainda não estavam disponibilizados quando da finalização desta
dissertação. 13 Houve uma queda, afirma Reimão (2001) em 1999, para 295 milhões de exemplares produzidos, o que
se deve, principalmente, aos reflexos da desvalorização cambial de janeiro de 1999.
25
quantidade de exemplares impressos. Para Earp (2005), entretanto, dois dados são
preocupantes. O primeiro é a queda na tiragem média, que era de cerca de 10 mil
exemplares por título publicado em 1990 e passa para cerca de 8 mil em 2003, apontando,
segundo o pesquisador, para um quadro em que as editoras publicam mais títulos, porém
com menor tiragem, o que tende a aumentar o preço de capa do livro para o consumidor
final. Outro dado alarmante é o revelado ao se comparar a evolução do faturamento das
editoras com índices econômicos reajustados. Os dados disponibilizados pela CBL e
SNEL indicam um crescimento do faturamento das editoras, porém, quando atualizados
com o índice GPI-DI para valores de 2003, o faturamento apresenta uma queda constante.
Em 1995 o faturamento total do setor editorial foi de 4,5 bilhão de reais. Em 2003 chegou
a 2,3 bilhão de reais, demonstrando uma queda de 48% no faturamento das editoras para
o período de 1995 a 2003. Esse dado é ainda mais alarmante se comparado com a
evolução do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro para o mesmo período, que aumentou
em 16%.
Os dados apresentados revelam um mercado editorial em expansão no que diz respeito
ao número de títulos publicados, inserindo no mercado uma gama mais variada de obras,
porém com retração nos quesitos tiragem média e faturamento. O ano em que a Cosac
Naify inicia suas atividades, portanto, parece ser propício para a busca por novos leitores,
já que a ampliação dos títulos publicados supõe um público mais diverso, mas não tão
propício para o início de uma atividade empresarial lucrativa no mercado editorial.
Fábio Sá Earp (2005), enfatiza o baixo investimento necessário para a produção de
livros se comparado a outros produtos industriais. Bastaria, segundo ele, encontrar “três
mil leitores dispostos a pagar o equivalente a seis horas de salário mínimo” (op.cit.:14)14.
14 Esta mesma informação está em Zaid (2004). Segundo nota do tradutor Felipe Lindoso, entretanto, esta
conta é feito tendo como base o mercado editorial estadunidense, e não pode se aplicar diretamente ao
Brasil (Zaid, 2004: 25). Entretanto, não altera a constatação de que o livro é relativamente mais barato de
ser produzido quando comparado a outros produtos industriais.
26
Pela facilidade de entrada no mercado, dado o baixo custo de produção do livro, existe
um “permanente fluxo de pequenas editoras, que são a principal fonte de inovação do
sistema – mesmo que parte substancial delas se mostre comercialmente inviável”15
(op.cit.: 15).
Para se ter uma ideia da grande quantidade de editoras atuantes, o mercado editorial
brasileiro conta, no ano de 2010, com 750 empresas editando livros, sendo que destas,
498 se enquadram no critério de editora adotado pela UNESCO, ou seja, publicam pelo
menos cinco títulos por ano, em um total de pelo menos 5 mil exemplares16.
Quando a Cosac Naify foi fundada, em 1997, o mercado de livros de arte no Brasil
era bastante restrito, mas evidenciava sinais de expansão. Segundo Halewell (2012: 724),
“por muitos anos, o livro de arte brasileiro padeceu de uma qualidade de impressão
precária, e era necessário que os projetos mais ambiciosos fossem impressos no exterior”.
Desde os anos 1960, são diversas as tentativas de publicação de livros de arte, a maioria
em parceria com editoras estrangeiras. Um caso de sucesso é a edição em fascículos,
vendidos em bancas de jornal, introduzida pela Abril com Gênios da Pintura. Sobre a
situação do livro de arte no Brasil, Halewell (op.cit.: 778) continua: “É importante
observar que uma grande proporção dos livros de arte stricto sensu publicados no país só
é viável porque são obras encomendadas (ou aceitas) por empresas ou órgãos oficiais,
que adquirem a maior parte da tiragem, senão toda, para distribuição gratuita com fins
promocionais ou institucionais”.
É com o objetivo de superar o livro de arte como “livro promocional” que o fundador
da editora se coloca ao explicar o início das publicações de livros de arte pela editora:
15 Segundo Earp (2005), muito editores não tem como prioridade a “taxa de retorno” comercial de seus
livros, “sendo mais importante a satisfação pela importância cultural do seu catálogo e o prestígio daí
decorrente” (op.cit.:15). Essa perspectiva da suposta relegação do lucro ao segundo plano será melhor
discutida no terceiro capítulo desta dissertação. 16 INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2012.
27
“Naquela época, tinha apenas um livro ou outro. Não tinha material didático.
Havia coisas da FUNARTE, que eram maravilhosas. Alguns fotolitos foram
queimados e a editora [Cosac Naify] refez alguns”.17
Segundo Cassiano Elek Machado, “quanto aos livros de arte, o mercado teve
historicamente boas editoras, mas não com a somatória da constância, quantidade e
qualidade da Cosac Naify”18.
Ao se relacionar a intenção de Charles Cosac de pôr em circulação livros de arte no
Brasil e o diagnóstico apresentado por Cassiano Elek Machado, observa-se que a Cosac
Naify se destaca entre as editoras brasileira pelo seu interesse em publicar livros sobre
arte, no país, a partir dos anos 1990. Lawrence Halewell (2012: 779) afirma que além da
Cosac Naify, também a Edusp, já em 1995, inicia suas publicações de arte, “podendo ser
considerada pioneira – e não somente entre as editoras universitárias – na publicação
sistemática de estudos sobre artistas no país”. Se não se pode falar em exclusividade e
pioneirismo quanto a Cosac Naify, não se pode também deixar de observar que o projeto
editorial e gráfico da editora em muito se diferenciou daqueles que publicavam livros de
arte.
1.1.Vocação para as artes
Charles Cosac cursou desenho de observação no Museu de Arte Moderna - MAM do
Rio de Janeiro e almejava entrar para a Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI,
não chegando, entretanto, a concluir seu objetivo. Do Rio de Janeiro foi para a Inglaterra
17 COSAC, Charles. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 4 de dezembro de 2013. 18 MACHADO, Cassiano Elek. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 6 de maio de 2013.
28
onde se graduou em matemática e administração. Durante esse período, segundo conta19,
foi se reaproximando aos poucos do mundo das artes, visitando museus e galerias. Ao
término da graduação, fez um curso de artes, seguido pelo mestrado e o doutorado, que
não chegou a concluir.
A fundação da Cosac Naify oferece a Charles Cosac as condições de trabalhar com
as artes visuais, produzindo um objeto mais duradouro do que o que se apresenta em
outras instituições: “A editora me permitiu trabalhar com arte sem ter que ter uma galeria, sem
ter que entrar no círculo de mercado de arte, sem ter que entrar na confraria dos museus. E de
uma forma mais longeva, porque o livro fica, as pessoas vão e vem20”.
Em entrevista para o jornal Folha de São Paulo sobre as primeiras publicações, em
1997, disse não ter pressa para lançar os livros da coleção Pelican sobre história da arte.
O motivo para a suposta lentidão era a necessidade de revisar as traduções e a
preocupação com o projeto gráfico. Segundo Charles Cosac o desafio do projeto gráfico
estaria em transformar uma obra de arte em um livro: “O livro de Tunga, por exemplo,
foi quase todo feito à mão, quase toda página sofreu um tipo diferente de interferência.
Ele não poderia ser bilíngue pois destruiria seu projeto gráfico. Por isso optamos por uma
versão em português e outra em inglês”21.
O interesse no projeto gráfico viria a ser a tônica de grande parte dos livros de arte
produzidos pela editora, e o fator principal que a tornaria conhecida nacionalmente. O
interesse e cuidado com a apresentação gráfica dos livros da Cosac lembra a preocupação
com os chamados “livros de artistas”. Isso fica patente quando da descrição do Barroco
de Lírios, que, segundo o catálogo da editora, foi “concebido pelo próprio artista para ser
uma obra de arte em si”. Definir o que seja “livro de artista” não é tarefa das mais fáceis
19 COSAC, Charles. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 4 de dezembro de 2013. 20 COSAC, Charles. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 4 de dezembro de 2013. 21 Jornal Folha de São Paulo. Tradução e Projeto Gráfico Preocupam. Caderno Ilustrada. 8 de Outubro de
1997.
29
e extrapolaria os objetivos desta pesquisa. É importante notar, entretanto, que o que se
convencionou chamar “livro de artista” é historicamente próximo a uma valorização do
livro como objeto de arte.
Segundo o Dicionário de Livro (Faria, Pericão, 2008: 461-462), livro de artista é
definido como “livro começado a ser editado no século XX, cujo nome lhe vem do fato
de o artista participar diretamente na sua produção. Por vezes, o pintor era
simultaneamente o autor da ilustração e do texto; livro de pinturas”.
O “livro de artista” pode também ser visto como um objeto pertencente ao mundo das
artes que de alguma forma faça referência aos livros, tendo sido, total ou parcialmente
executado por um artista (Silveira, 2008). Essa caracterização ampla pode ser associada
a uma mais estrita, ligada às experimentações dos artistas brasileiros concretos e
neoconcretos nos anos de 1950 e 1960 como Arthur Barrio, Lygia Clark, Antônio Dias,
Waltércio Caldas, Mira Schendel, Alex Hamburguer, Delson Uchoa, Augusto de
Campos, Julio Plaza, Liuba, Renina Katz, Lygia Pape.
30
Antônio Dias - Ela não acha mais graça na política das próprias graças (s.d.).
Fonte: Silveira, 2008: 70.
Waltércio Caldas - O Colecionador (1973).
Fonte: Site oficial do artista. http://www.walterciocaldas.com.br/ acessado no dia 21 de janeiro de 2014.
Artur Barrio - Livro de Carne (1979).
Fonte: site oficial do artista. http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com.br/ acessado no dia 21 de janeiro de 2014.
Independente da definição que se possa ter, a categoria “livro de artista” suscita
reflexões que demonstram uma crescente preocupação com a materialidade do livro. O
que é certo, portanto, é a dimensão do livro encerrado em si mesmo, como um objeto a
ser contemplado.
Como afirma o artista plástico Julio Plaza (1982):
Se livros são objetos de linguagem, também são matrizes de sensibilidade. O
fazer construir-processar transformar e criar livros implica determinar relações
com outros códigos e, sobretudo, apelar para uma leitura sinestésica com o leitor:
desta forma, livros não são mais lidos, mas cheirados, tocados, vistos, jogados e
também destruídos. O peso, o tamanho seu desdobramento espacial escultural são
levados em conta: o livro dialoga com outros códigos.
31
Poemobiles. (São Paulo: Augusto de Campos e Julio Plaza, 1974)
Fonte: http://www.library.yale.edu/aob/Exhibition/campos.htm.
A pesquisadora Annateresa Fabris (1988) apresenta alguns pontos que devem ser
levados em consideração na emergência do “livro de artista”, dentre eles a “renovação da
concepção de livro em geral quando da fundação da Kelmscott Press em 1890”, do
britânico William Morris (1834-1896), pintor, escritor e um dos fundadores do Arts and
Crafts, movimento estético surgido na Inglaterra, na segunda metade do século XIX, que
defendia o artesanato como alternativa à mecanização e produção em massa.
Em contraposição ao livro produzido manualmente nos mosteiros cristãos da Idade
Média, o processo de industrialização e massificação fez com que este objeto, ao ter
encontrado um público muito maior que o dos mosteiros, fosse perdendo seu encanto,
suas belas formas, fosse se tornando um artigo de consumo comum, submetido às leis do
mercado. Como diz Steven Fischer (2006: 193) “a quantidade em detrimento da qualidade
32
tornou-se o ethos que impulsionou a revolução da impressão, que foi notadamente um
empreendimento capitalista”.
Como resposta ao empobrecimento gráfico dos livros, o Arts and Crafts defendia o
retorno da concepção artesanal do produto em contraposição a mecanização industrial
homogeneizante. Nos livros, o seu efeito foi de sugerir uma maior elaboração de todas as
etapas da produção, desde a concepção gráfica até a impressão cuidadosa.
Somado aos esforços de William Morris, afirma Annateresa Fabris (1988), deve-se
considerar “o papel das vanguardas históricas que, ao produto anônimo da indústria
editorial, opõe “criações pessoais”, fruto do trabalho conjunto de artista, escritor,
diagramador”.
Livro editado pela Kelmscott Press. Ruskin, John (1819-1900). The nature of Gothic; a chapter of The stones of Venice
London: George Allen 1892; (Fim do prefácio e início do texto).
Fonte: University of Glasgow - Special Collections Department. Acessado em
http://special.lib.gla.ac.uk/teach/privatepress/kelmscott.html no dia 21 de janeiro de 2014.
33
1.2.O livro entre a produção artesanal e industrial
A contraposição ao produto industrial a partir da criação pessoal é a marca do que se
conhece por livro artesanal, categoria presente na fala de alguns dos entrevistados ao
definir a identidade da Cosac Naify. Segundo Elaine Ramos, diretora de arte e diretora da
editoria de design, a “Cosac é uma mistura de Brasiliense com Noa Noa”22. Nessa
afirmação, a Brasiliense parece representar a figura de uma editora industrial do ponto de
vista gráfico, com grandes tiragens e um padrão para diversos livros. Já a Noa Noa, no
lado oposto do espectro gráfico-editorial, estaria relacionada à inovação em escala
artesanal, com o toque pessoal daquele que o faz, e sem pretensão de alcançar um grande
público.
A Editora Noa Noa é um projeto pessoal do jornalista radicado em Florianópolis
Cleber Teixeira, falecido recentemente. A editora ficou conhecida pela sua produção
artesanal e a publicação de poemas do próprio Cleber Teixeira, de Octávio Paz, Augusto
de Campos, Ee. Cummings, José Paulo Paes, Mallarmé, dentre outros. Em mais de trinta
anos de atividade, a editora publicou cerca de oitenta livros, muitos em tiragens de cem
exemplares ou menos, numerados e assinados pelo autor. Sem contar com ajudantes, e
imprimindo em tipografia (técnica de impressão que utiliza tipos metálicos moveis
compostos manualmente e prensados com auxílio de máquina) em oficina montada em
sua própria casa, a Noa Noa é reconhecida como forma de resistência do artesanal diante
da crescente padronização dos produtos industriais.
22 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
34
Capas de livros da editora Noa Noa.
Fonte: Site da Editora Noa Noa; http://editoranoanoa.tanlup.com/ acessado no dia 21 de janeiro de 2014.
Quando a Noa Noa surgiu, em 1965, Cleber Teixeira tinha como referência outros
editores artesanais. A editora e pesquisadora do assunto, Gisela Creni (2013), aponta o
vigor da economia e o otimismo representados pelo governo Jucelino Kubitschek (1956-
1961) como ingredientes essenciais para um crescimento editorial na época, “inclusive
abrindo espaço para que pequenos editores especializados produzissem obras de tiragem
restrita. É nesse contexto que surgiram os editores artesanais, que, ao contrário dos
grandes editores, fundaram pequenas casas, em sua maioria distantes do eixo cultural Rio-
São Paulo” (op.cit.: 16). Dentre os editores listados por Gisela Creni estão João Cabral
de Melo Neto, com a editora O Livro Inconsútil, funcionando em Barcelona (1947-1953);
Manuel Segalá, da Philobiblion, no Rio de Janeiro (1945-1957); Geir Campos e Thiago
de Mello, da Edições Hipocampo, em Niterói (1951-1953); Pedro Moacir Maia, da
Edição Dinamene, em Salvador (1950-1979); Gastão de Holanda, de O Gráfico Amador,
Mini Graf e Editora Fontana, no Recife, e, mais tarde, no Rio de Janeiro (1954-1984),
além do já citado Cleber Teixeira, com a Noa Noa.
Além da importância cultural que os editores atribuíram à apresentação gráfica dos
livros, segundo Gisela Crani, é possível encontrar outro ponto em comum: a poesia.
35
Todos os editores citados foram ou são poetas ou trabalharam com a edição de poesia. A
observação de Crani quanto à poesia tem proximidades com trecho da entrevista de
Augusto Massi, poeta e professor de literatura da USP, que foi diretor editorial e
presidente da Cosac Naify entre 2001 e 2011. Augusto Massi justifica sua gestão na Cosac
Naify e a importância dada ao projeto gráfico dos livros como um desdobramento de
experimentos editoriais que realizara anteriormente. Em 1988, após receber herança do
avô, Massi lança uma coleção de poesia chamada Claro Enigma, em parceria com a
Livraria Duas Cidades (São Paulo).
Na época, uma questão se colocava de forma clara bastante para mim: a edição
de poesia estava passando por um período muito ruim. Nas décadas de 80 e 90,
nenhuma das grandes editoras primava por cuidados básicos: estabelecimento correto
do texto, bibliografia completa do e sobre o autor, inclusão de poemas dispersos e
inéditos, padrão gráfico e qualidade do papel, etc. Os principais poetas do alto
modernismo - Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima,
Murilo Mendes, João Cabral de Melo – não dispunham de edições cuidadas. Para dar
um exemplo, Carlos Drummond (pela Record) e Manuel Bandeira (pela Nova
Fronteira) exibiam nas suas Obras Completas alguns poemas onde se notava a
ausência de versos inteiros, erros na divisão das estrofes ou até mesmo troca de
palavras.
Quem está habituado a comprar livro de poesia, em qualquer lugar do mundo,
sabe o quanto os poetas têm de designer, como produzem obras com tiragens
limitadas, feitos ainda em tipografia. A poesia moderna, desde Mallarmé, sempre se
interessou pelas questões tipográficas e gráficas. Ele, por exemplo, tinha predileção
pela fonte Didot. Na Itália e na Espanha, todos os projetos gráficos trazem um papel
diferente e uma letra especial. No livro de poesia há algo que já aponta para esta
questão de base: articular certo tipo de fonte à beleza das palavras dispostas na página.
Em outras palavras: o poeta pensa de uma forma tipográfica. A poesia pensa sua
própria matéria.23
23 Na continuação de seu depoimento, Massi fala sobre a experiência com a concepção da coleção Claro
Enigma: Quando pensei em criar a Claro Enigma - em 1988 saíram os primeiros 6 volumes - queria que ela
tivesse o formato tradicional 14x21[cm] e, ao mesmo tempo, tivesse um diferencial. Eu e as duas designers,
Moema Cavalcanti e a Silvia Massaro, acabamos descobrindo um papel de capa que, originalmente, era
utilizado como forro interno de chapéus. Era um papel pobre, impuro, de baixa qualidade, produzido pela
Indústria de Papel R. Ramenzoni. Fui até a fábrica e conversei com o responsável, um senhor muito
simpático que, surpreso, me disse assim: “Olha, isso aí não serve pra livro”. Eu falei “Mas se a gente
conseguir fazer capa de livro com ele, o senhor vende pra gente?” Ele respondeu: “Olha, se você conseguir,
pode levar o quanto você quiser”. Então, pensei, “aqui já obtenho uma grande vantagem, posso baratear um
pouco o preço do livro”. Depois de realizarmos vários testes e sempre escutarmos que não ia dar certo,
finalmente, convencemos o pessoal da Gráfica Prol. Então, pela primeira vez, aprendi que para fazer um
36
O experimentalismo dos livros de poesia, segundo Augusto Massi, está na origem das
suas pretensões de intervenção cultural e em consonância com os editores artesanais que
fizeram seus experimentos no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970, relatados na
pesquisa realizada por Gisela Crani (2013), que foi, por sua vez, colaboradora de Massi
na elaboração da Claro Enigma. Aliado ao cuidado artesanal encontra-se o aspecto
moderno. Sobre livro da coleção Claro Enigma, ele explica:
Na concepção do projeto gráfico da coleção Claro Enigma era fundamental unir
o rústico [papelão da fábrica Ramenzoni] e o sofisticado [acetato]. Num certo
sentido, a função do acetato seria vestir o papelão, ser uma sobrecapa, uma
embalagem. Mas, pelo fato de ser completamente transparente, ele deixava que o
leitor visse o aspecto pobre e impuro do papelão. Entretanto, a percepção visual
da capa acabava sendo desmentida pela própria materialidade dos objetos: liso e
poroso, brilhante e fosco, sofisticado e pobre. Conceitualmente, os volumes
refletiam a minha concepção de poesia, aproximar tradição e vanguarda,
artesanato e indústria, simples e complexo. Tudo que se anunciava no título da
coleção acabava por se traduzir no objeto: claro enigma. E, vamos dizer, estava
cifrado no pictograma: logotipo retirado do período pré-histórico, pintura rupestre
que irá dialogar com o acetato, material emblemático da modernidade. Em parte,
esta é a minha ambição como editor: um pé na tradição outro na vanguarda. O ato
da leitura guarda um vínculo misterioso e subterrâneo com a decifração das
pinturas das cavernas. A palavra é imagem. 24
Ao justificar a importância do projeto gráfico no projeto editorial da coleção Claro
Enigma, que, segundo ele, viria a se desdobrar na gestão da Cosac Naify, Augusto Massi
utiliza os conceitos de “tradição” e “modernidade” como opostos que devem ser
conciliados, sendo esses pares opostos análogos, ao se basear nos exemplos que utiliza na
entrevista, respectivamente às noções de “artesanal” e “industrial”. É o que afirma sobre
bom projeto gráfico, no fundo, você tem que participar e entender todo o processo. MASSI, Augusto.
Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013. 24 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
37
o seu trabalho na Cosac Naify, em que, segundo ele, o encontro entre o artesanal e o
industrial teria de fato acontecido:
No fundo, a ideia da Coleção Particular é fruto de uma dinâmica coletiva. De
imediato, ele nasceu de uma ida à China, realizada pela pintora Célia Euvaldo,
que também trabalhava na Cosac Naify como editora de imagens. A Célia trouxe
de lá alguns cadernos com as folhas costuradas na lombada [à direita] e não
refiladas [à esquerda]. Os cadernos eram compostos por folhas A 4 dobradas ao
meio e com as suas duas extremidades costuradas na lombada. Quando os
cadernos estavam fechados as faces internas do papel se juntavam, formavam
uma só página. Mas, ao abri-los, a folha dava uma embarrigada e formava uma
espécie de canudo. Dentro da editora todos ficaram impressionados com a
simplicidade e as potencialidades daquele caderno. Então, à partir de uma
conversa entre Célia, a Elaine e eu, surgiu a ideia de realizarmos algo com aquele
princípio. A Célia anteriormente tinha traduzido, por conta própria, uma bela
novelinha do Samuel Beckett: Primeiro Amor. Juntei as coisas e propus: porque
não realizamos um livro de artista? Mas, teria que ser um livro de artista barato,
feito em casa. A Elaine soube agregar o imaginário dela. Quando o livro saiu,
houve uma recepção crítica extremamente favorável.
Notei que essa experiência poderia ser ampliada para outros campos da
editora. Havia um território novo a ser explorado. Poderíamos fazer livros
experimentais, artesanais e autorais mas em escala industrial. Para isso, seria
necessário ultrapassar as especializações dentro da própria editora. Não
privilegiar o editorial nem o design. Era preciso fazer com que o texto se fundisse
ao projeto gráfico e que o design gráfico irradiasse todos os sentidos do texto. Daí
pra frente, coloquei como um desafio interno conceber, anualmente, um livro que
desse continuidade à esta família de seres insólitos e criativos. Penso que a minha
maior contribuição dentro da editora, além da preocupação em formar novos
profissionais, foi conseguir reunir e motivar vários setores da empresa em torno
de algumas poucas ideias fortes e inéditas. A Coleção Particular não lembra nada
feito lá fora [do país] ou aqui dentro. Depois dela várias editoras nacionais e
internacionais passaram a acompanhar nosso trabalho de perto. É uma criação
com a marca de fábrica da Cosac Naify25.
O “artesanal”, portanto, seria responsável pela experimentação gráfica, como descrito
na pesquisa, já citada neste texto, desenvolvida por Gisela Creni (2013). Contrário à
concepção de artesanal estaria a de “industrial”, que seria responsável por maiores
tiragens, amplo trabalho de divulgação na imprensa e estabelecimento de canais de
25 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
38
vendas26. Esse discurso de conciliação entre as dimensões artesanal e industrial da
produção de livros, recorrente entre os entrevistados, parece revelar um traço fundamental
no mundo contemporâneo.
O antropólogo e linguista Edward Sapir (1884-1939), ao tratar do tema da cultura,
estabelece uma distinção entre cultura autêntica e cultura espúria (2012). A cultura
autêntica seria um conjunto de modos de agir, pensar, tomar atitudes, selecionar artefatos
socialmente valorizados, tudo isso posto de forma que o indivíduo tenha respeitada sua
criatividade, não estando submerso numa estrutura social que o torne sem significado,
tanto para si mesmo quanto para os outros ao seu redor, o que, por sua vez, caracterizaria
a cultura espúria. Nas próprias palavras de Sapir (2012: 42): “A cultura autêntica não é,
por princípio, alta ou baixa; ela é apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada e satisfaz
seus próprios requisitos. Ela é a expressão de uma atitude ricamente variada, mas de
algum modo unificada e consistente ante a vida, uma atitude que vê a significação de
qualquer elemento da civilização em sua relação com todos os outros”.
A forma como os editores da Cosac Naify vêm a si próprios remete de forma nítida
a essa valorização do que Edward Sapir chama de cultura autêntica, uma consciência e
participação em todas as etapas do livro, um envolvimento que remete mesmo à
concepção do livro artesanal. É interessante, neste ponto, observar a fala de Florencia
Ferrari sobre os procedimentos editoriais nos seus primeiros anos de editora:
Eu sempre tive bastante naturalidade para lidar com as diferentes áreas
da editora, sempre me interessei por design, processos de produção,
formação de preço, desempenho comercial etc. Mesmo como assistente
editorial do Augusto, eu interagia com todas as áreas. Naquela época não
existia ainda o departamento de direitos autorais e os próprios editores
26 Augusto Massi diz (2013) que a exposição Artes e Ofícios da Poesia, organizada por ele no MASP, em
1991, como encerramento da coleção Claro Enigma contou com os mais importantes poetas do país e teve
ampla repercussão na mídia.
39
negociavam com editoras estrangeiras ou faziam o contrato com o autor.
Brincávamos que era um sistema de alienação zero, um editor quando
assumia um livro, fazia o contrato, editava, batia emendas, fazia pesquisa
de imagem, ia na livraria falar com o livreiro, participava de todo o
processo. Nos reconhecíamos no produto final do trabalho27.
Essa participação em todos os processos da editora, estabelecendo uma nítida
identificação do editor com o produto final de seu trabalho, o livro impresso e distribuído,
está relacionado a uma participação da concepção editorial que envolve criatividade
individual. Como afirma Sapir (2012: 43), “As atividades principais do indivíduo devem
satisfazer diretamente seus próprios impulsos criativos e emocionais, devem ser sempre
algo mais do que apenas meios para um fim”. Estaria encerrado no produto final a energia
individual daqueles sujeitos envolvidos na produção do objeto. Isso demarcaria o seu
caráter autêntico.
A categoria autenticidade também é utilizada por Walter Benjamin ao tratar do
processo de reprodutibilidade técnica dos objetos artísticos (1987a). Com o incremento
das técnicas de reprodução, os objetos perdem o que tem de específico, o que o tornam
único, ou, nas palavras de Benjamin, sua aura. É interessante notar como a categoria
“artesanal” utilizada para definir a editora, seja na definição do conceito ou no que
estabelece de experimentação gráfica, mesmo que dentro de um funcionamento industrial,
serve de um valor que objetiva afastar a editora de toda qualificação que remeta à
homogeneização ou padronização, valores que seriam ligados, de acordo com Sapir
(2012), a uma cultura espúria.
Como afirma Florencia Ferrari, atual diretora editorial da Cosac Naify:
27 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013.
40
[A Cosac Naify] aposta na relação intrínseca entre forma e conteúdo e
tem uma marca de excelência nesse sentido. Ao procurar experimentar
sobretudo em design e produção gráfica a editora desempenhou um papel
de vanguarda no mercado editorial. A experimentação sempre oferece
desafios e dificuldades, e para isso é preciso contar com parceiros que se
entusiasmem pela inovação, nem todas as gráficas têm essa abertura ou
competência. Já tivemos problemas, por exemplo, ao entrar em máquina
com um papel que nunca tinha sido usado para imprimir livros, e a gráfica
teve de fazer ajustes, gastar mais horas, enfim, esse processo também
depende da relação com terceiros28.
O discurso da experimentação, típico das editoras artesanais, é, na Cosac Naify,
associado ao discurso do industrial, na medida em que trabalha com tiragens comerciais
(que variam entre três a cinco mil exemplares, podendo ser até maiores) e distribuição
nas livrarias.
A experimentação gráfico-editorial, segundo os editores entrevistados, é uma
inovação da Cosac Naify e tem a ver com o aproveitamento de uma possibilidade
tecnológica, que permitiria fazer experimentações típicas das editoras artesanais em
escala industrial. A isso se associa uma condição material privilegiada, relativa a sua
origem como um negócio familiar com ampla capacidade de investimento financeiro,
fator que permitiu, dentre outras coisas, a criação e manutenção de um departamento de
design interno que, junto aos editores, pensariam os livros relacionando forma e conteúdo.
O discurso de quase exclusividade em relação à atenção dada ao projeto gráfico pela
editora, entretanto, é relativizada se comparada a outros discursos. Numa rápida olhada
no catálogo de outras editoras brasileiras, é possível encontrar um discurso parecido com
o da Cosac Naify, no sentido de fazer com que o projeto gráfico dos livros dialogue com
o texto publicado.
É o caso da Companhia das Letras, editora que inovou no projeto gráfico dos livros
no final dos anos 1980 e início de 1990, ao afirmar que: “Uma mesma proposta de
28 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013.
41
trabalho dá unidade ao catálogo da editora: publicar livros que, pela qualidade do texto e
da produção gráfica, sejam um convite à leitura29”. É nesse mesmo caminho que
Lawrence Halewell (2012, 731) descreve a editora:
A Companhia das Letras destaca-se pela qualidade dos textos que escolhe, pelo
cuidado que dedica à tradução, pelo bom gosto de suas capas e pela atenção que
empresta à apresentação gráfica a artística. Talvez nada mais prove a
maturidade do mercado livreiro no Brasil do que o sucesso de uma editora
dedicada exclusivamente a publicar livros de qualidade (grifo meu).
Todos os expedientes usados por Halewell para qualificar a Companhia das Letras,
desde o “bom gosto das capas” até a expressão “livros de qualidade” se aproximam
daqueles utilizados pelos editores da Cosac Naify para descrever os livros que produzem,
o que parece apontar não apenas para uma exclusividade na linha editorial, mas para um
valor que se torna socialmente relevante no período estudado.
Também a editora Ateliê Editorial30, do editor Plínio Martins Filho, professor do
curso de editoração da USP além de diretor e presidente da Edusp, utiliza um discurso no
mesmo sentido. Afirma que em todas as coleções que fazem parte do catálogo da Ateliê
Editorial “está gravado um traço fundamental da editora: o apreço com a arte gráfica”. E
continua: “O apuro e a invenção desaguaram no teste de tipologia e materiais diferentes,
claramente usados nas edições dessas coleções. Ali, capas duras, inusitadamente espessas
e rústicas, combinaram surpresa e elegância. Já é possível ver reflexo dessa aposta em
livros de outras editoras”.
29 Disponível no site da editora. Acessado em http://www.companhiadasletras.com.br/ no dia 7 de janeiro
de 2014. 30 Dentre as coleções no catálogo da Ateliê Editorial existe a Design e Livros sobre Livros, que conta com
diversas publicações que tratam da produção do livro, da tipografia, do trabalho de edição, de livrarias e
demais assuntos relacionados ao tema. O catálogo pode ser acessado em http://www.atelie.com.br/. Último
acesso no dia 7 de janeiro de 2014.
42
O que se percebe, também nas editoras universitárias brasileiras, que historicamente
foram vistas como despreocupadas com projeto gráfico, é uma mudança no sentido de
valorizar o projeto gráfico dos livros. Mesmo que não se possa generalizar para todas as
editoras, esta é uma prática crescente. A Edusp evidencia o mesmo interesse com relação
à concepção gráfica dos livros. Como descrito no site: “Na última década, a Edusp
também apostou no desenvolvimento de um projeto editorial e de um design gráfico
diferenciados, estabelecendo um novo padrão que determinou uma revolução no mercado
editorial acadêmico brasileiro”31. Segundo Lawrence Halewell (2012: 700),
A década de 1990 representou também a profissionalização de parte das editoras
universitárias. Exemplo disso é o processo de mudanças na Edusp (...). A
profissionalização da Edusp envolveu ainda a formação de um departamento
editorial que criasse uma identidade visual própria e fixasse a imagem da editora,
ajudando a desfazer a noção de que livro publicado por editora universitária é
sinônimo de livro mal editado. A escolha foi investir em designers iniciantes,
muitos deles recém-formados ou alunos do curso de Editoração da própria USP,
e os resultados, positivos, não demoraram.
Como se pode ver na citação de Halewell, ou mesmo na observação dos catálogos de
muitas das editoras universitárias, como a já citada Edusp, as editoras da UFRJ, UFMG,
UNESP, dentre outras, passaram a valorizar o projeto gráfico de seus livros, ainda que
muitas das editoras universitárias, de modo geral, sejam conhecidas pelo pouco
investimento em projeto gráfico.
Além disso, a editora Cobogó, fundada em 2008 e voltada para publicação de livros
de arte e a editora Não Editora de Porto Alegre investem visivelmente no projeto gráfico
de seus livros. A editora gaúcha traz na descrição do seu catálogo a expressão máxima
do primado do projeto gráfico: “Queremos que o nosso público não tenha vergonha de
31 Disponível em http://www.edusp.com.br/ e acessado no dia 7 de janeiro de 2014.
43
assumir que julga o livro pela capa”32. Em entrevista para esta pesquisa, Samir Machado,
editor da Não Editora e autor do blog Sobre Capas33, avalia a importância do projeto
gráfico para o livro:
O projeto gráfico é essencial para a o livro enquanto produto, acredito que ele
deva refletir não só a qualidade do livro enquanto forma de expressão artística,
mas comunicar de forma atraente o que se propõe. Quando dizemos "julgar um
livro pela capa" queremos dizer que acreditamos que a qualidade da capa deve
refletir a qualidade da obra, e seria um desserviço ao autor e à obra ter um projeto
gráfico e uma capa que não estejam à altura do seu texto34.
Como fica explícito nos discursos das editoras aqui relacionadas, a atenção dada ao
projeto gráfico como forma de trabalho artesanal aliado ao processo industrial de
impressão e distribuição não é exclusiva da Cosac Naify, mas apresenta-se como uma
prática corrente e em crescimento em outras editoras, o que atesta uma preocupação maior
com as qualidades materiais do livro. Essa valorização social da produção artesanal pode
ser apontada como um tipo de sociabilidade envolvida no processo de valorização
estética.
Os termos referentes ao artesanal serão discutidos no próximo capítulo ao se tratar da
cultura material. Importante, dentro dos termos desta dissertação, é compreender a
constituição da equipe gráfica da Cosac Naify, bem como analisar especificamente uma
coleção, a Coleção Particular, dando atenção a alguns de seus livros. O surgimento da
Coleção Particular (2004) e de outras coleções, entretanto, fazem parte de uma estratégia
de expansão da editora que acarreta uma série de escolhas e embates internos, descritos
na sequência do trabalho.
32 Disponível em http://www.naoeditora.com.br/ e acessado no dia 7 de janeiro de 2014. 33 O Blog Sobre Capas, mantido por Samir Machado, é referência sobre design de livros e apresenta algumas
das últimas novidades em projetos gráficos de livro, principalmente no Brasil, além de entrevista com
alguns designers. O blog pode ser acessado em http://sobrecapas.blogspot.com.br/. Último acesso no dia 7
de janeiro de 2014. 34 MACHADO, Samir. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 7 de janeiro de 2014.
44
1.3.Expansão do catálogo
Em 2000 a Cosac Naify publicava exclusivamente livros de arte. A primeira iniciativa
para expandir o catálogo foi de Charles Cosac ao procurar o professor da Escola de
Comunicação e Artes da USP e crítico de cinema, Ismail Xavier.
Ele [Ismail Xavier] estava na banca [de doutorado de um amigo] e eu não sabia
quem ele era. Achei que era uma pessoa extremamente delicada, muito culto,
muito inteligente, fazia ligações rápidas, construtivas. Anotei o nome dele, tentei
procurá-lo, mas ele estava indo para Paris passar um ano. A gente veio a trabalhar
junto um ano depois. Foi a primeira pessoa que eu convidei pra desenvolver uma
série, que seria a série de cinema35.
Ao retornar ao Brasil, Ismail Xavier deu início à coleção intitulada Cinema, Teatro e
Modernidade que, segundo a descrição no catálogo da editora (Cosac Naify, 2012: 198),
“propõe um diálogo teórico entre teatro e cinema e percorre de maneira abrangente a
formação e o comportamento visual do século XVIII à sociedade contemporânea,
marcada pela onipresença da imagem e da espetacularização do cotidiano”. A primeira
publicação foi O Cinema e a Invenção da Vida Moderna, coletânea de ensaios organizada
por Leo Charney e Vanessa Schwartz, traduzida para o português, e lançada pela Cosac
Naify em maio de 2001. Seguiram-se Eisenstein e o Construtivismo Russo, de François
Albera, e Tragédia Moderna, de Raymond Williams, ambos lançados em 2002.
Nessa mesma época, a coleção Espaços da Arte Brasileira, sob coordenação de
Rodrigo Naves, voltada para a publicação de estudos críticos de pintores, escultores e
gravuristas brasileiros, cuja demanda ocupava grande parte dos esforços da editora,
começa a publicar também arquitetura. Foram lançados em 2001 o livro Vital Brasil, de
Roberto Conduru, e Joaquim Guedes, de Mônica Junqueira de Carvalho.
35 COSAC, Charles. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 4 de dezembro de 2013.
45
Ao mesmo tempo em que eram programadas as primeiras publicações nas áreas de
cinema, teatro e arquitetura, Augusto Massi, junto com Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan
Jr36, lançavam os primeiros volumes da coleção de literatura estrangeira Prosa do Mundo.
Segundo descrição no catálogo (Cosac Naify, 2012: 468), “esta coleção compõe um
panorama da literatura mundial em clássicos traduzidos por estudiosos e especialistas.
Com tratamento gráfico condizente [em capa dura e sobrecapa], os livros incluem ensaios
adicionais e sugestões de leitura. Uma bibliografia fundamental para leitores modernos”.
As primeiras publicações da coleção foram Niels Lyhne, do romancista norueguês
Jens Peter Jacobsen (1847-1885), e O Diabo e Outras Histórias, do escritor russo Liev
Tolstoi (1828-1910). Segundo Elaine Ramos, diretora de arte e coordenadora de design
da editora:
Uma das coleções que mais identificam a Cosac é a Prosa do Mundo, que
tem sempre aparatos, textos importantes acompanhando o texto principal.
É como eu gostaria que a Cosac fosse reconhecida, como editora que tem
um capricho tanto em relação à forma quanto ao conteúdo37.
Em 2003 a Cosac Naify começa a publicar design, com o livro Design Visual: 50
anos, de Alexandre Wolner.
Quando a editora começou a publicar design praticamente não havia
[publicações do gênero no Brasil]. Tinha a Rosari e a 2AB, que eu me
lembre. Mas tanto uma como outra estavam mais focadas em dar vazão a
uma produção de pesquisa brasileira, de autores de livro de texto e
ensaios curtos, enquanto nós tínhamos mais fôlego. Acho que tivemos a
sorte de ter dentro da Cosac a possibilidade de investir mais e fazer livros
com imagens, livros maiores etc., mas a minha ideia sempre foi traduzir
36Augusto Massi e Samuel Titan Jr. foram colegas no doutorado em literatura na USP e ambos tiveram
orientação do professor Davi Arrigucci Jr. Os três estabelecem constantes colaborações com a Cosac Naify,
tendo Augusto Massi assumido o cargo de diretor-editorial e posteriormente de presidente, Davi Arrigucci
Jr. tendo coordenado a coleção Prosa do Observatório, que publica “obras de ficção ou ensaio de escritores
brasileiros e hispano-americanos” (Cosac Naify, 2012) e Samuel Titan Jr. responsável por diversas
traduções e coordenações de obras na área de literatura. 37 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
46
livros de referência e paralelamente fazer pesquisa sobre o design
brasileiro, mantendo as duas coisas38.
As possibilidades materiais de produção na Cosac Naify propiciaram naquela
época o investimento em livros que demandavam custos maiores devido ao tipo de
impressão, a utilização de ilustrações e papeis diferenciados, dentre outros. Na contramão
do mercado, a editora produziu livros em capa dura e sobrecapa, além de investir em
pesquisa na área de design.
Se os aportes financeiros possibilitam os investimentos mais caros, a existência de
tais condições, não explica, por si só, o interesse pelo projeto gráfico dos livros. É
necessário saber o que o projeto gráfico significa para o livro e, ainda, saber da existência
de um público interessado em tais publicações.
A constante necessidade de novos aportes financeiros dos sócios demandou
modificações na organização da empresa, objetivando um equilíbrio de suas finanças. É
nesse processo que Augusto Massi, por volta do ano 2001, é convidado a ser o diretor
editorial:
Nos dois primeiros anos em que atuei como diretor editorial penso que
realizei duas mudanças radicais. A primeira delas: tratei de aumentar
consideravelmente o número de lançamentos. No primeiro ano, demos
um salto de vinte e poucos lançamentos ao ano para uns 70. No ano
seguinte, novo salto, ultrapassamos 100 títulos novos. E isso com a
mesma quantia de dinheiro que havia sido empregada nos anos
anteriores. A segunda delas foi mudar o critério de contratação. A editora
começou a crescer e ganhar certa visibilidade.
O leque de publicações foi ampliado, começando-se a produzir, alguns anos depois,
livros infantis, hoje um dos setores mais fortes da empresa. Outra modificação relatada
por Massi foi a reformulação do departamento de design. Elaine Ramos assumiu o
38 Idem.
47
departamento gráfico da editora. Reuniões regulares de criação entre o departamento
gráfico e o editorial, chamadas de “reunião de criação” ou “reunião conceitual”, passaram
a fazer parte da rotina de trabalho.
A editora inaugura uma nova fase com a ampliação das publicações, a
“profissionalização” da empresa, divisão clara entre os setores e o incentivo a uma troca
regular entre designers e editores. O próximo capítulo trata da constituição do
departamento de design e das publicações da Coleção Particular. Nele se busca mostrar
de que maneira a editora perseguiu seus objetivos editorias e gráficos.
48
CAPÍTULO 2 – O PROJETO GRÁFICO DA COSAC NAIFY E A COLEÇÃO
PARTICULAR
“Seria – vocês hão de perguntar – uma característica do colecionador não ler livros?
Dir-se-ia que é a maior das novidades. Mas não, pois especialistas podem confirmar que
é a coisa mais velha do mundo, e menciono aqui a resposta que Anatole France tinha na
ponta da língua para dar aos filisteus que, após ter admirado sua biblioteca, terminou
com a pergunta obrigatória: - e o senhor leu tudo isso, Monsieur France? – Nem sequer
a décima parte. Ou por acaso o senhor usa diariamente sua porcelana de Sévres?”39.
No Dicionário do Livro (Faria; Pericão, 2008: 600), o projeto de edição se define
quando se lhe dá forma gráfica:
Diz-se que se projeta uma edição quando se lhe dá forma gráfica,
coordenando técnica e esteticamente os elementos que a
constituirão. Para isso tem que levar-se em consideração o tema
e a sua extensão. Em função dele, escolher-se-á o tamanho mais
adequado, o tipo, o número e natureza de tabelas, gravuras,
ilustrações, a disposição geral das páginas, o tipo de papel, capa,
etc.
Rafael Cardoso (2005: 177) afirma que “quando se fala em design de livros, deve-
se considerar o tratamento dispensado ao objeto como um todo, desde a sua construção
tridimensional (tamanho, papel, encadernação) até a sua impressão, diagramação e
ilustração”. Projetar graficamente uma edição faz parte da ação de editar e, portanto,
marca definitivamente a obra que se vai pôr em circulação. Nas palavras do estudioso do
livro no Brasil, Emanuel Araújo (2008: 373):
O que nós vemos, influencia como e o que entendemos. A
informação visual comunica de modo não verbal, por meio de
sinais e convenções que podem motivar, dirigir ou mesmo
distrair o olhar do leitor, e todos os elementos visuais influenciam
uns aos outros. Por isso, o projeto visual de um livro é uma
ferramenta importante para comunicação, e não apenas um
39 Benjamin (1987b: 230)
49
elemento decorativo. O modo como se organiza a informação
numa página pode fazer a diferença entre comunicar uma
mensagem ou deixar o usuário confuso (ARAÚJO, 2008: 373).
No capítulo anterior foi apresentada a formação da editora Cosac Naify, sua
entrada no mercado editorial brasileiro e seu interesse inicial pelas publicações de arte.
Antes de dar continuidade percurso feito pela Cosac Naify, é preciso mencionar outras
editoras comerciais que se ocuparam de seus projetos gráficos e inovaram aspectos
gráficos do livro. Isto se faz necessário para que se possa estabelecer relações e destacar
melhor as características próprias da Cosac Naify.
2.1. Projeto gráfico na história editorial brasileira
O surgimento do design como profissão e como conceito no Brasil se deu por
volta dos anos 1960, mas, como afirma Rafael Cardoso (2005), a atividade começou
muito antes. Em 1960 surge, segundo Rafael Cardoso, “não o design propriamente dito –
ou seja, as atividades projetuais relacionadas à produção e ao consumo em escala
industrial -, mas antes a consciência do design como conceito, profissão e ideologia”
(idem: 7). Esta consciência do design se estabelece no momento de rápida modernização
e industrialização no país, sendo sem dúvida a fundação da Escola Superior de Desenho
Industrial (Esdi) no Rio de Janeiro, uma referência. Ao afirmar, entretanto, a existência
de uma série de atividades projetuais em escala industrial anteriores a década de 1960 no
Brasil, marcadamente entre 1870 e 1960, Rafael Cardoso aponta para a existência de uma
série de soluções para projetos industriais que não advém de matriz estética estrangeira.
Não se pode dizer que o Brasil tem longa tradição na impressão tipográfica de
livros, já que a imprensa aportou oficialmente no país somente em 1808, enquanto na
Alemanha, por exemplo, a imprensa data de meados do séc. XV. Mas quando se fala em
design de livros, afirma Rafael Cardoso, “a questão muda um pouco de figura”, isso
50
porque nenhum país tem uma tradição tão antiga assim em termos de produção industrial
de impressos, posto que “o termo “design”, em sua acepção moderna, aplica-se por
excelência ao período industrial, ou seja, a partir da segunda metade do séc. XVIII, na
mais remota das hipóteses” (idem: 160). Diz-se com isso, portanto, que ao se tratar de
design de livros no Brasil, não se pode falar em atraso em relação a outros países. Ao
contrário, muitos dos projetos gráficos de livro idealizados no país são pioneiros e servem
de referência para projetos em outras localidades.
No decorrer do século XIX, dá-se uma expansão da produção e circulação de
livros no Brasil estimulada pelas discussões políticas voltadas para projetos de construção
da identidade nacional, potencializadas, primeiro, nas lutas pela independência e, depois,
nas reivindicações pela abolição da escravatura e proclamação da república. Apesar de
ser um período histórico amplo e complexo, cujos detalhes não cabem nesta dissertação,
chama-se a atenção para o fato de que um debate político e intelectual implica no
intercâmbio de ideias e, consequentemente, neste momento de ampliação da possibilidade
de circulação de impressos, em publicações que divulguem tais pontos de vista40.
É nesse contexto que surge a figura do editor Monteiro Lobato, que pode ser visto
como um ponto de inflexão histórico na produção e distribuição de livros no país no início
da década de 1920. O título de editor revolucionário41 é reclamado por ele em decorrência
da implementação de práticas editoriais não tão comuns no país, como a publicação de
40 Claro que tais modificações não podem ser estabelecidas de forma simples e direta, tendo em vista que
até hoje, no século XXI, essa discussão não está encerrada. Com o panorama apresentado, pretende-se
mostrar, somente, uma transformação social que está relacionada à expansão da produção de livros no
Brasil. 41 O título de editor revolucionário é relativizado por Rafael Cardoso (2005) e Cilza Bignotto (2010). Como
afirma Cilza Bignotto (2010: 126): “O título de editor revolucionário foi reivindicado pelo próprio Monteiro
Lobato (...). Esses métodos [revolucionários], segundo Lobato, seriam a criação de uma rede nacional de
distribuição de livros, a publicação de novos autores, o pagamento de direitos autorais e a renovação gráfica
dos impressos” (...). “No entanto o editor Lobato é tributário de práticas relativas à produção de livros
desenvolvida no Brasil ao longo do século XIX. Quando ele começou a publicar livros seus e de terceiros,
encontrou um sistema literário consolidado e uma indústria livreira ainda em formação, mas com algumas
práticas já estabelecidas”.
51
alguns autores nacionais até então não publicados, a ampliação dos pontos de venda de
livros, a formatação de uma rede de distribuição de alcance nacional e a adoção de cores
intensas e ilustrações nas capas dos livros42. A despeito de ter sido ou não um editor
revolucionário, Monteiro Lobato é uma figura incontestavelmente importante no
desenvolvimento editorial brasileiro. Em 1920 fundou, junto com Octalles Marcondes
Ferreira, a Monteiro Lobato & Cia. A editora já figurava, então, entre as maiores do país
e tinha grande prestígio no meio intelectual. O sucesso do negócio e a crescente demanda
pela produção de livros o levaram a adquirir equipamentos gráficos nos Estados Unidos,
fundando a Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato. A grandiosidade do
empreendimento, somado a uma conjuntura política e econômica desfavorável43,
entretanto, levaram a empresa à falência em 1925.
A aquisição do maquinário gráfico por Monteiro Lobato, apesar de não ter sido
sustentável do ponto de vista da manutenção do seu negócio, foi fundamental para o
desenvolvimento da indústria gráfica brasileira. Após a falência da empresa, as máquinas
foram adquiridas por outros impressores, deixando ao país o legado de um parque gráfico
de alta qualidade (Mariz, 2005) que será fundamental ao desenvolvimento do design
gráfico editorial no país.
Alguns meses depois da falência, em 1926, Lobato funda com Octalles Marcondes
Ferreira, sendo este agora o sócio majoritário, a Companhia Editora Nacional (CEN). Já
em 1929, Lobato deixa a empresa. A reconhecida sobriedade e tino empresarial de
42 Algumas capas coloridas e ilustradas já haviam sido produzidas na virada do século, mas foram vítimas
de várias críticas pelo tom sensacionalista. As capas de Lobato surgem como uma estratégia de marketing
de contraposição ao chamado “estilo francês”, que “corresponde a brochuras impressas geralmente em
papel branco que, naquela época, tinha um tom creme, cinza ou amarelo em uma ou duas cores. Compostas
apenas por texto impresso tipograficamente, as brochuras reproduziam a diagramação já presente na folha
de rosto” (Mariz, 2005: 30). 43 Os peritos que analisaram o pedido de falência “apontam, entre as causas da falência, o endividamento
inicial, a crise no setor elétrico, a falta de numerário na praça, o congestionamento no porto de Santos e os
prejuízos causados pela Revolução de 1924” (Bignotto, 2010: 125).
52
Octalles é uma das características fundamentais para a compreensão da longevidade
alcançada pela editora, somado a seu acertado investimento em livros didáticos, dentre
outros fatores, o que viria a se firmar como nicho de mercado promissor, principalmente
a partir de 1930, com a significativa expansão do ensino secundário brasileiro (Mariz,
2005: 33).
Outro editor fundamental para entender a história recente do pais é José Olympio.
Tendo saído de São Paulo e se fixado no Rio de Janeiro, Olympio estabelece uma rede de
contatos, publicando novos autores, principalmente os vindos do nordeste, e gerando uma
ampla rede de convivência e trocas intelectuais em torno da sua editora, como pode ser
visto no já citado estudo de Gustavo Sorá (2010). Foi também um dos primeiros a investir
no projeto gráfico de seus livros, contratando o artista alagoano Tomás Santa Rosa. Suas
capas coloridas com ilustração são referência na história da produção gráfica brasileira.
Até meados da década de 1950 era mais barato importar livros produzidos fora do
país. Isso se deve, dentre outros fatores, como afirma Hallewell (2012) e Miceli (1979),
a manutenção de uma taxa tributária desfavorável e um estímulo dado às importações, em
que era mais barato importar o livro já feito, que importar papel, tinta e maquinário para
produção própria.
O estímulo real à produção do livro no Brasil se dá somente no governo
Kubitschek. Ênio Silveira, como vice presidente da Câmera Brasileira do Livro (CBL) e
presidente, entre 1952 e 1958, de uma das mais representativas entidades de editores, o
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), também exerce papel fundamental
nessa empreitada (Hallewell, 2012: 587).
Nascido em São Paulo em 1925 no seio de uma família que contava com escritores
e advogados, Ênio sempre teve proximidade com os livros. Em 1944 é indicado por
Monteiro Lobato ao seu então ex-sócio Octalles Marcondes Ferreira, e começa a trabalhar
53
na CEN, vindo dois anos depois a se casar com Cléo Marcondes Ferreira, filha de
Octalles.
Em 1946, parte em viagem de um ano e meio para Nova Iorque, onde frequenta
alguns cursos de editoração e se torna estagiário na prestigiada editora Alfred Knopf, uma
das maiores editoras americanas à época. Essa experiência foi fundamental na sua
carreira, principalmente tendo em vista que a indústria editorial americana guardava uma
grande diferença em relação à brasileira no que diz respeito à elaboração do projeto
gráfico e publicidade dos livros. Nos Estados Unidos, os livros eram encarados como
objeto comercial, enquanto no Brasil ainda se guardava uma concepção de que deveriam
ser produzidos para a elite intelectual44 (Mariz, 2005: 59).
Ao retornar ao Brasil, em 1948, retoma seu posto na CEN. Diante de um panorama
econômico, político e cultural efervescente no país, a perspectiva política de esquerda de
Ênio, nesse momento, parece entrar em choque com a de Octalles, tido como mais
conservador. Mesmo antes de entrar para a editora, Ênio participa de algumas atividades
do Partido Comunista do Brasil (PCB) e cursa, sem chegar a concluir, a Escola Livre de
Sociologia e Política de São Paulo (ELSP). Apesar de não sofrer retaliação por parte de
Octalles, não tinha liberdade para estabelecer sua própria linha editorial. Somado a isso,
o fato de produzir livros didáticos engessava bastante as possibilidades de
experimentação na concepção do impresso, já que estava voltado, na maioria das vezes,
para compras governamentais e passava por um processo de validação institucional. É
nesse contexto que Ênio aceita o convite do seu sogro para assumir a direção da filial
carioca da CEN, a editora Civilização Brasileira.
44 A dificuldade em se encarar o livro como um objeto comercial ordinário no Brasil se fez sentir no decorrer
do século XX. É notável, neste sentido, a dificuldade em se estabelecer no país uma venda constante e
significativa de livros de bolso (Hallewell, 2012).
54
A direção do próprio selo editorial, mesmo que, no início, sob a supervisão de
Octalles, dá a Ênio maior autonomia na concepção dos livros e escolha dos títulos. No
decorrer dos anos de 1950 ele compra, aos poucos, as ações de Octalles, assumindo
terminantemente a direção da Civilização em 1963 (Mariz, 2005: 66). Nesse processo de
busca por maior autonomia, Ênio passa a reformular o catálogo da editora.
Apesar de José Olympio dominar o mercado de literatura no Rio de Janeiro à
época, Ênio termina por encontrar uma gama de autores dispersos que passam a dar o tom
da nova empreitada editorial. Muitos desses autores podem ser identificados como
simpatizantes de pensamento político de esquerda, como Francisco Julião, Nelson
Werneck Sodré, Wanderley Guilherme dos Santos. Mas não se resumia aos autores de
temas políticos, tendo publicado também romances policiais, literatura estrangeira, livros
voltados para comportamento sexual, dentre outros. Um dos projetos marcantes de Ênio
foi a Revista Civilização Brasileira que, a despeito de não ter gerado lucros para a
empresa (Vieira, 1998: 72), marcou a sua identidade editorial.
Determinado a solidificar esse novo discurso, Ênio promove uma série de
mudanças no aspecto gráfico dos livros que irá influenciar todo o design editorial no país.
Ele “introduz as orelhas nas capas, o corte trilateral do miolo e a consequente separação
das folhas, lança campanhas publicitárias para vender suas edições e, principalmente,
começa a contratar toda uma equipe de capistas que promoverão uma revolução visual na
capa de livro brasileira” (Amaury, 2001: 32).
O momento determinante nesse processo é o convite feito ao artista gráfico e
designer austríaco radicado em Buenos Aires, e posteriormente no Rio de Janeiro,
Eugênio Hirsch, para projetar a capa da edição brasileira de Lolita, do escritor Vladimir
Nabokov. O próprio autor veio posteriormente a considerar “esta capa a melhor feita para
o seu texto em todo o mundo” (Amaury, 2002: 5). O livro teve ampla publicidade e foi
55
um sucesso de vendas, abrindo precedente para repetidos convites a Hirsch, que viria a
formular uma verdadeira renovação na concepção gráfica dos livros brasileiros, sendo
hoje considerado um dos pioneiros do design gráfico no país (ibidem).
Capa de Lolita (1959), de Vladimir Nabokov, elaborada por Eugênio Hirsch
“Apontado por diversos contemporâneos seus e citado diversas vezes por
Ênio Silveira – um dos principais editores brasileiros de todos os tempos
– como o artista gráfico responsável pela mudança de padrão nas capas
de livros brasileiros, Eugênio é a síntese do pensamento plástico que
dominava, no período, a intelectualidade brasileira. Os trabalhos dele
para esta casa editora são importantes principalmente pela liberdade que
ele possuía nessa empresa, onde ele encontrou o ambiente mais propício
para a manifestação de todo o seu extenso repertório gráfico” (Amaury,
2002: 6. Grifo meu).
É sintomática a relação entre o editor Ênio Silveira e o designer Eugênio Hirsh,
no sentido de propiciar uma liberdade criativa capaz de inovar graficamente as capas de
livro. Uma frase atribuída a Hirsch em conversa com Ênio Silveira, é bastante
emblemática para ilustrar esse novo momento da editora: “uma capa não deve agradar,
deve agredir” (Homem de Melo, 2008: 62). Essa concepção na forma de se projetar o
livro está presente em várias iniciativas nos anos 1960, sendo possível afirmar que “o
ponto mais nítido de ruptura ocorreu na Civilização Brasileira, sob a batuta do editor Ênio
56
Silveira, responsável por dar ao austríaco Eugenio Hirsch uma liberdade de trabalho sem
par na história do livro brasileiro até aquele momento” (ibidem: 60).
Em 1965, Hirsch deixa o Brasil. As modificações no projeto gráfico editorial,
entretanto, não perdem em continuidade nem em qualidade, sendo levado adiante por
Márius Lauritzen Bern, artista gráfico igualmente experimental e que cria, em 1966, o
logotipo da editora Civilização Brasileira, que viria a ser usado até 1990.
Como se vê, a Cosac Naify dá continuidade a uma ‘linhagem de casas que
estabeleceram novos patamares” nos padrões gráficos dos livros, como diz Cassiano Elek
Machado em entrevista45. A Companhia das Letras promoveu grandes mudanças no
design editorial no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 e antes dela a Companhia
Editora Nacional, a Civilização Brasileira e a José Olympio Editor conforme
mencionamos acima. No entanto, apesar da existência de editoras interessadas no projeto
gráfico dos livros, vale dizer que são poucas ainda dentro do conjunto das empresas.
2.2.Projeto gráfico na Cosac Naify
Em todas as experiências editoriais relatadas, parece fundamental a parceria entre
editor e designer gráfico na concepção de livros. Seja na parceria estabelecida entre José
Olympio e Tomás de Santa Rosa ou mesmo na parceria entre Ênio Silveira e Eugênio
Hirsch, para ficar somente nas mais emblemáticas, o diálogo entre as duas funções é
importante e profícuo.
Nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, o diálogo entre os editores e os
designers foi apontado por todos como o ponto fundamental que explica a concepção
gráfica dos seus livros. A parceria entre as partes é relevante para o entendimento da
45 MACHADO, Cassiano Elek. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 6 de maio de 2013.
57
forma como o projeto gráfico dos livros assume a concepção do projeto editorial da
empresa. É necessário, portanto, entender a estrutura interna da editora bem como analisar
detalhadamente a concepção de alguns de seus livros para saber como é possível manter
um padrão gráfico de qualidade. Para Cassiano Elek Machado “o vetor central” “não é
nem a qualidade gráfica, é a qualidade46”.
O termo “qualidade” é recorrente entre os entrevistados e, segundo eles, marca
um lugar de distância em relação a outras editoras brasileiras. Ao se afirmar que o que
diferencia a Cosac Naify é a qualidade do que produz, seja em termos de projeto gráfico
dos livros, seja em termos de tradução, revisão, produção de aparatos textuais ou escolha
de títulos, diz-se, consequentemente, que falta a outras editoras tal qualidade. Numa
análise dos discursos de outras editoras, como se pode observar nos seus sites e catálogos,
o termo qualidade também é recorrente. Mesmo quando o termo qualidade está associado
à qualidade gráfica, como foi apontado no primeiro capítulo desta dissertação, algumas
editoras, como a Companhia das Letras, Ateliê Editorial, Edusp, Não Editora, Cobogó,
dentre outras, também apontam a qualidade como uma característica diferencial.
Mais do que observar a recorrência do termo qualidade gráfica nos discursos de
diversas editoras, portanto, é necessário analisar de que forma o termo funciona como
categoria legitimadora de um lugar aparentemente diferenciado no espectro editorial, o
que aponta para um crescimento da categoria como valor social.
Florencia Ferrari, atual diretora editorial da Cosac Naify, demarca o que ela
acredita ser o lugar de excelência da editora.
A editora criou uma espécie de cultura do rigor e da qualidade que
atravessa todos os processos de produção do livro: a imagem tem de ser
em alta qualidade, tratada, com uma boa impressão, as manchas de texto
têm de ser confortáveis, os aparatos devem ser da melhor qualidade
46 MACHADO, Cassiano Elek. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 6 de maio de 2013.
58
possível, as notas, quando possível, devem acompanhar o texto para
facilitar a leitura, as referências bibliográficas devem estar atualizadas e
com as edições correspondentes em português, cada livro apresenta um
desafio diferente e é preciso encontrar soluções específicas. Isso é
definido em discussões entre editores e designers47.
Augusto Massi diz que se empenhou em dar espaço ao desenvolvimento do
trabalho gráfico dos livros, investindo em pesquisa e na formação de equipe qualificada.
O design tem uma dimensão cultural, não deve ser associado simplesmente aos
apelos do mercado. Design e mercado andam juntos. Mas, o design é criativo,
influencia e forma o gosto. Ele está intimamente ligado a uma ideia de
transformação. Ele altera os critérios. A partir de 1986, com o surgimento da
Companhia das Letras houve uma mudança de patamar na nossa vida editorial.
As pessoas passaram a não aceitar mais o livro feio, mal revisado, mal traduzido.
A Companhia virou sinônimo de qualidade. Penso que a Cosac Naify representou
um novo salto de qualidade. Todo o mercado editorial se sentiu pressionado a
mudar. No mínimo foram obrigados a se posicionar diante de novas questões:
usar ou não usar capa dura, investir num projeto gráfico ousado vende ou assusta,
o livro deve ser um objeto de arte, etc. Porém, essa mudança envolve uma
discussão e uma decisão mais ampla. Não é só o design, é uma escolha intelectual,
uma tomada de posição. É preciso correr risco48.
2.3.Equipe de projeto gráfico
A Cosac Naify raramente contrata capistas externos à editora, mantendo no quadro
permanente da empresa uma equipe de cinco designers, responsáveis por projetar
graficamente os livros, e seis produtores gráficos, que acompanham a impressão dos
livros nas gráficas, garantindo que a impressão corresponda àquilo que foi projetado.
Esta é uma diferença importante da Cosac Naify em relação a maioria das editoras
brasileiras, o que, por um lado, marca o desenvolvimento do seu projeto gráfico como
determinante na construção identitária, mas por lado acarreta uma série de custos fixos
47 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013. 48 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
59
mensais referentes aos salários dos profissionais e estrutura física para o desenvolvimento
do trabalho. Segundo relata Augusto Massi:
Uma vez por semana haveria um dia voltado para a criação, uma reunião
de projetos, na qual o editor de texto ia conversar com os designers,
explicar o conteúdo do livro, mostrar algumas imagens, etc. Os designers
começaram a imaginar o projeto depois desta reunião. Essas reuniões
foram ficando mais frequentes e passaram a ser assim as mais decisivas:
era uma reunião de formação e de criação. Eu queria que o designer
passasse a ler os livros. Não fizesse o projeto gráfico só pela beleza da
imagem de capa. Pelo contrário, para mim a beleza que conta é a que
nasce da necessidade, da funcionalidade, da perfeita adequação entre
forma e conteúdo. Penso que Cosac Naify foi durante muito tempo a
única editora brasileira a pagar um departamento de design. O que na
prática isso representava? Ao contrário das outras editoras, onde o
trabalho do designer é terceirizado [tem que apresentar umas três capas
que, na maioria das vezes, serão aprovadas pelo dono da editora], na
Cosac Naify a decisão final sobre isso, um projeto ou uma capa, era
sempre fruto de discussão intensa, de um processo coletivo. Por fim,
posso afirmar que nossa grande diferença sempre residiu na preocupação
de formar uma cultura interna com relação ao design gráfico. O que
acabou resultando na publicação de uma coleção voltada inteiramente ao
design tanto do ponto de vista histórico, teórico e prático49.
As reuniões de conceito passam a movimentar a editora no sentido de pôr em
diálogo os editores e os designers. Diferente de grande parte das editoras brasileiras, diz
Cassiano Elek Machado50, a Cosac Naify conta com uma equipe de designers que tem
grande importância na produção do livro, sendo as reuniões para pensar as edições
realizadas geralmente na própria sala de criação gráfica, com a participação dos seguintes
profissionais: diretor editorial, editor responsável pelo livro em questão, a diretora de arte,
o designer responsável pelo projeto do livro e a coordenadora de produção, além de uma
eventual participação dos diretores administrativo e financeiro.
Elaine Ramos descreve como ocorrem essas reuniões de conceito:
49 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013. 50 MACHADO, Cassiano Elek. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 6 de maio de 2013.
60
É uma reunião semanal. Nem sempre lemos o livro para a
reunião, pois, às vezes, a tradução não chega a tempo. O editor
fala sobre o livro e dá sua visão das características mais
marcantes, destacando aquilo que é interessante explorar no
projeto gráfico. Também analisamos a planilha para ver se há
margem para investimento em diferenciais gráficos. Pensamos
no público alvo, no preço de capa ideal, na tiragem. Discutimos
essas questões, embora, de certa forma, quando se faz o contrato
[do livro], essa simulação já foi feita51.
Florencia Ferrari também fala sobre a reunião:
O editor apresenta o livro, suas principais características, se é
clássico ou contemporâneo, se tem um estilo seco ou barroco, se
a linguagem é experimental, se é uma entrevista, uma coletânea
ou um livro de contos, enfim, contextualiza o livro e oferece
algumas referências ao designer. Na maioria das vezes o designer
em seguida lê o texto e numa próxima reunião, quinze dias ou um
mês depois, apresenta um projeto: uma ou mais possibilidades de
tratamento visual, acompanhadas de argumentos que explicam o
partido assumido pelo design e as hipóteses levantadas para
expressar o conteúdo do livro. Em diálogo com os editores, que
pode ser mais ou menos demorado, os designers vão
desenvolvendo o projeto do livro52.
Como forma de interação entre texto e projeto gráfico, há um estímulo para que o
designer leia os livros. Segundo relato de Augusto Massi, estes em geral não têm o hábito
de ler as publicações para as quais fazem os projetos gráficos. Essa relação com a leitura
seria fundamental para estabelecer o diálogo entre os setores editorial e gráfico,
impedindo que o designer faça “somente uma capa bonita”, mas expressar graficamente
o conceito da obra.
Segundo Florencia Ferrari, existe atualmente uma demanda para que os designers
leiam os livros:
51 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013. 52 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013.
61
Na Cosac Naify em geral os designers leem os livros que estão
desenhando. Eu atribuo isso ao modo como a Elaine concebe o
design gráfico e o seu método de criação. O design deve
expressar visualmente o conceito de um livro tomado em sua
particularidade; há antes da criação uma elaboração coletiva
sobre o conceito do livro e o que esse conceito pode render
visualmente. Aqui os designers são leitores engajados, discutem
os livros, trazem informações para alimentar discussões e embora
obviamente os editores sejam os soberanos em relação ao texto,
há uma troca de alto nível53.
Essa troca entre designers e editores que, segundo os entrevistados é uma das
qualidades marcantes da editora, provoca também momentos de tensão:
Chegou um momento em que a equipe de design amadureceu tanto,
ganhou tanta força dentro da editora que isso acabou gerando alguns
problemas, alguns atritos, disputas com o editorial. Às vezes, o editor
solicitava na reunião de criação que o formato do livro fosse tal e tal, mas
os designers não queriam fazer o livro naquele tamanho, daquele jeito,
então, para ganhar a discussão empregavam argumentos técnicos: “neste
papel o livro não imprime bem”, “esse formato não é o mais adequado
para a máquina da gráfica”, “o preço vai ficar muito caro”, etc. Os
editores não dominavam o processo do livro na gráfica. Nunca iam até as
gráficas. Não se interessavam em aprender. Só queriam trabalhar os
aspectos diretamente relacionados ao texto: revisão, tradução, etc. Então,
com o passar do tempo, foram perdendo todas as discussões. (....). Mas,
eu sempre gostei de conversar com os designers, com os nossos
produtores gráficos, com o próprio pessoal das gráficas54.
Apesar dos embates, todos concordam que a interação entre design e editorial é
fundamental para o entendimento da editora. A equipe gráfica da editora inclui 11
pessoas, sendo cinco designers e seis produtores gráficos em um conjunto de cerca de 90
funcionários. O fato de contar com uma equipe de designers e produtores gráficos fixos
e instituir a elaboração do projeto gráfico de cada livro é uma marca identitária forte da
editora. Para Elaine Ramos:
53 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013. 54 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
62
A grande diferença é que pensamos em cada livro individualmente,
evitando a linha de montagem que é o miolo padrão e a capa
encomendada. Pensamos o livro como um todo, na íntegra, capa e miolo
fazem parte do mesmo projeto, juntamente com o conteúdo específico do
livro. Esse é o diferencial principal. A Cosac sempre caprichou nas
edições do ponto de vista editorial, investindo em boas traduções, sempre
da língua original55.
Um exemplo do desenvolvimento da linha gráfica e editorial da Cosac Naify é a
Coleção Particular, na qual se destacam a inventividade do projeto gráfico e sua relação
com o texto.
2.4. A Coleção Particular
A valorização do projeto gráfico, em diálogo com o texto, indica um dos aspectos
fundamentais do projeto editorial da Cosac Naify. O catálogo da editora enfatiza o design:
Um diferencial da Cosac Naify amplamente reconhecido é o
design. Além da capa, também formato, peso, volume,
flexibilidade, textura e ritmo são elementos levados em
consideração, mas, acima de tudo, os livros são encarados como
objetos indissociáveis do conteúdo que carregam. Uma equipe
interna de criação, pesquisa e desenvolvimento pensa, em
conjunto com os editores, projetos específicos para cada obra ou
coleção. Esse cuidado pode resultar (...) em volumes
experimentais, como os da Coleção Particular (...) (Cosac Naify,
2012: 6).
O projeto editorial da Cosac Naify, como pode ser visto no texto transcrito acima,
de valorização do livro como objeto estético, pode ser mais bem ilustrada pela Coleção
Particular, que conta, até então, com sete livros: Primeiro amor (2004), de Samuel
Beckett; Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street (2005), de Herman Melville;
A fera na selva (2007), de Henry James; Zazie no metrô (2009), de Raymond Queneau;
55 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
63
Flores (2009), de Mario Belantin; Museu do romance da eterna (2010), de Macedonio
Fernandez; e Avenida Niévski (2012), de Nikolai Gógol.
Primeiro amor, de
Samuel Beckett
Bartleby, o escrivão: uma
história de Wall Street (2005), de Herman
Melville
A fera na selva, de Henry
James
Zazie no metrô, de Raymond Queneau
Flores, de Mario Belantin
Museu do romance da eterna, de Macedonio
Fernandez
Avenida Viévski, de
Nikolai Gógol
Fonte: http://editoracosacnaify.com.br.
O termo “coleção” é útil para se pensar as práticas editoriais adotadas pela Cosac
Naify e os leitores objetivados por tais práticas. Esta é uma sugestão de Maria Toledo
(2010) que, em seu trabalho sobre a coleção “Biblioteca Pedagógica Brasileira”, da
Companhia Editora Nacional, desenvolveu um modelo de análise focado na categoria de
análise “coleção”.
Esse modelo não só possibilita a reconstrução histórica das
práticas específicas desenvolvidas pelos editores, como também
permite redesenhar os leitores almejados por essas práticas. Na
materialidade dos livros e nos dispositivos editoriais
constitutivos da coleção, torna-se possível reconhecer estratégias
que prescrevem leituras e modos de ler a seus diferentes públicos
(Toledo, 2010: 140).
64
Além de se tratar de uma coleção de livros pensados a partir de determinadas
características comuns e visando um leitor e um modo de leitura específicos, faz
referência a sua própria condição: chama-se Coleção Particular. Este nome é inspirado
em obra publicada pela Cosac Naify, do escritor francês Georges Perec (1936-1982),
intitulada A Coleção Particular (Perec, 2004). A obra trata de um colecionador de
pinturas, o alemão radicado nos Estados Unidos, e rico comerciante de cerveja, Hermann
Raffke, que encomenda a Heinrich Kürz uma pintura, intitulada Coleção Particular, em
que é retratado diante de sua coleção de quadros. Um dos quadros que compõe o ambiente
é o Coleção Particular, que por sua vez reproduz a mesma cena, com toda a coleção de
quadros de Raffke e assim por diante. Não interessa aqui analisar o texto de Perec, o que
sem dúvidas abriria um leque de interpretações e considerações. É importante, no entanto,
atentar para o fato de que o nome da coleção de livros da editora foi inspirado em tal
enredo, o que faz com que seja inevitável a associação entre a coleção de livros que a
editora propõe e a coleção de pinturas da personagem de Perec. O que deve ser explicado
no ato de colecionar, como sugere o filósofo Krzysztof Pomian, é “exatamente o fato de
o gosto se dirigir para certos objetos e não para outros, de [o colecionador] se interessar
por isto e não por aquilo, de determinadas obras serem fonte de prazer [e outras não]”
(Pomian, 1984). As coleções, portanto, mais do que um conjunto de objetos, referem-se
à identidade individual daquele que a constrói e mantém, estabelecendo parâmetros para
sua localização hierárquica na sociedade.
Colin Campbell (2004) contribui para essa discussão da coleção como categoria
de formação identitária ao propor a expressão “consumidor artesão” (craftconsumer), em
que indivíduos consomem principalmente por um desejo de tomar parte em atos criativos
de expressão de sua individualidade. Numa analogia com o modo de produção artesanal,
em que a mesma pessoa projeta e constrói o produto, colocando-se assim como o avesso
65
da produção industrial de modo fordista, Campbell identifica um modo crescente de
consumo moderno que chama de artesanal, em que o consumidor está envolvido tanto na
concepção quanto na produção do que será consumido. O consumo artesanal identificado
por Campbell se dá como a atividade de formar conjuntos, onde o consumidor, a partir
de determinados bens, exerce sua criatividade na concepção e usufruto de novos produtos.
Os exemplos utilizados pelo autor são de atividades como jardinagem, culinária ou
mesmo a construção e manutenção de um guarda roupa. Podemos pensar também,
estendendo os exemplos dados pelo autor, a criação e manutenção de uma biblioteca
particular ou coleção de livros, já que é a “criatividade para juntar”, diz ele, que
caracteriza esse tipo de consumidor, prática muito próxima do colecionismo, em que a
coleção é o produto final, produzido “manualmente”.
Esse consumo artesanal, segundo a conceituação de Campbell, dota de agência o
consumidor, que está responsável por juntar objetos de forma criativa e significadora para
si e os outros ao seu redor. Isso, ao mesmo tempo, acarreta o outro lado da mesma prática:
os objetos, mais do que servirem como meros demarcadores de espaços sociais, são
dotados de agencia capaz de construir subjetividades. Em relação aos livros, a prática de
colecionar é antiga e, para alguns, bastante apaixonada. Segundo Walter Benjamin
(1987b: 232): “para o colecionador, a verdadeira liberdade de todo livro é estar nalguma
parte de suas estantes”.
A própria ideia de coleção, portanto, e a especificidade decorrente da coleção
agora em debate, sugere um modo de apropriação para leitor, como pode ser visto na
descrição da Coleção Particular no catálogo da editora: “Nesta coleção, forma e conteúdo
estão em estreito dialogo. Com uso de materiais, encadernação, acabamentos, métodos de
impressão experimentais, os livros-objeto interagem com a escrita literária e com o leitor”
(Cosac Naify, 2012: 560).
66
A descrição dos livros da coleção, bem como as disputas internas na editora e a
tensão entre os designers e editores contribuem para a compreensão do projeto editorial.
Contudo, é importante sublinhar que quando do lançamento de Primeiro Amor, primeiro
livro da coleção, a publicação não era denominada como parte de um conjunto
determinado. Foi somente a partir do terceiro volume, A fera na selva, que a série foi
agrupada sob a rubrica de Coleção Particular. Esta constatação é fundamental na medida
em que revela atitudes (tomadas de posição) voltadas para a construção da identidade da
editora e, como toda demarcação identitária, lócus privilegiado de poder, é alvo de
negociações e disputas.
O que hoje é considerado o primeiro livro da coleção é o Primeiro Amor, do
dramaturgo irlandês Samuel Beckett, lançado pela Cosac Naify em 2004. Com projeto
gráfico realizado pela diretora de arte Elaine Ramos, premiada pelo trabalho em 2008 no
7º Prêmio Max Feffer de Design Gráfico da Suzano Papel e Celulose, o livro conta com
capa e ilustrações, além da tradução, da artística plástica Célia Euvaldo.
O sucesso da crítica do primeiro livro abriu caminho para o segundo: Bartleby, o
escrivão: uma história de Wall Street (2005) de Herman Melville.
Como afirma Elaine Ramos:
Com a prerrogativa do Primeiro Amor, fizemos o Bartleby, que também
deu certo mesmo sendo um pouco mais radical. Ficou então o projeto
dessa série de edições com textos curtos, de preferência com direitos
autorais livres, para viabilizar um preço de capa acessível. Um projeto
anual de edições graficamente experimentais56.
56 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
67
A surpresa do Bartleby começa logo na embalagem, em que um adesivo preto com
letras brancas diz: apesar de 12.000 exemplares vendidos acho melhor não comprar57.
Após tirar o invólucro, é preciso descosturar a capa puxando uma linha vermelha
sobressalente, e depois utilizar uma espátula para soltar as páginas e ler o texto.
Essa interação da concepção gráfica com o texto proposta pelo design do livro
está patente no discurso da editora:
Para ler a nova edição deste clássico de 1853 é preciso passar
pelo desafio de descosturar a capa e cortar as páginas não
refiladas do livro. Só assim poderá desemparedar este
personagem enigmático da ficção moderna. A famosa fórmula
“Acho melhor não”, com que Bartleby resiste as ordens do
advogado-patrão, e a recusa ao próprio trabalho de escrivão e
copista despertam uma sucessão tragicômica de acontecimentos
(grifo meu) (Cosac Naify, 2012; 318).
57 Em entrevista, Elaine Ramos fala que uma sexta reimpressão está a caminho, o que vai elevar essa
edição a um total de 18.000 exemplares impressos.
68
Capa Bartleby
Página refilada com espátula
Capa descosturada
Páginas abertas
Fonte: http://editoracosacnaify.com.br.
Elaine Ramos foi premiada também pelo projeto gráfico do livro Bartleby, o
Escrivão no 7º Prêmio Max Feffer de Design Gráfico da Suzano Papel e Celulose58,
mesmo em que recebeu prêmio pelo Primeiro Amor.
58 A lista de júri de tal prêmio conta com seis nomes de referência na área de design, sendo que apenas um
deles não consta como autor na lista de autores da Cosac Naify e/ou membro do conselho editorial da
editoria de Design (Dados sobre o prêmio foram acessados em
<http://www.suzano.com.br/portal/main.jsp?lumPageId=2C90884B32A022DE0132B6EC78152DB2&lu
mA=1&lumPSId=2C90884B365E1FBB013673EFBB9A4FBB&lumII=2C90884B33A0F8660133AD771
576602D&locale=pt_BR&doui_processActionId=setLocaleProcessAction> no dia 10 de dezembro de
2013) .
Esse conselho editorial funciona como instância consultiva, em que se discute uma lista de textos
que seus membros julgam interessantes publicar. Os integrantes do conselho, portanto, não fazem parte do
corpo de funcionários da empresa, reunindo-se somente uma vez mais ou menos a cada dois anos e
participando de conversas esporádicas sempre que necessário. A participação de nomes importantes do
campo do design gráfico no conselho editorial de design da Cosac Naify aponta para uma constatação feita
por Pierre Bourdieu (1999) ao entrevistar para sua pesquisa sobre o campo editorial francês um dos
participantes do conselho editorial de literatura da editora Gallimard, Michel Deguy. Bourdieu afirma,
seguindo relato do editor por ele entrevistado, que a importância do conselho editorial não está
69
O terceiro livro da coleção, ponto em que esta começou a ser de fato chamada de
Coleção Particular, foi o livro A Fera na Selva, do escritor americano Henry James,
publicado em 2007, em duas versões, uma em português e outra em inglês, servindo de
edição comemorativa dos dez anos de criação da editora. O projeto gráfico foi realizado
por Luciana Facchini, e conta com mais de dez tipos de papéis com gramaturas e cores
diferentes. Recebeu o prêmio de projeto gráfico no 50° prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro (CBL).
O livro Zazie no metrô (2009), de Raymond Queneau, é o quarto livro dentro da
Coleção Particular. Conta com 97 ilustrações que ficam escondidas entre as dobras das
páginas, visíveis somente através do papel bíblia ou ao se separar manualmente as
páginas. As imagens são reproduções de cartazes que circulavam por Paris na época em
que se passa a história.
A descrição do catálogo, mais uma vez, ajuda a compreender a intenção do projeto
do livro:
Cultuado pela crítica e pelo público, Zazie no metrô é um romance
galhofeiro que narra as andanças da desbocada Zazie por Paris. Vinda do
interior, ela passa alguns dias na capital sob os cuidados do tio Gabriel e
tenta realizar seus dois sonhos: andar de metrô e ter uma calça jeans. A
ousadia linguística de Queneau, com seus diálogos disparatados, é um
dos traços marcantes do livro, que traz posfácio de Roland Barthes. O
projeto gráfico também foge do tradicionalismo: fragmentos de cartazes
franceses dos anos 1950 são reproduzidos na parte interna das páginas
de papel-bíblia (grifo meu) (Cosac Naify, 2012: 358).
necessariamente em indicar ou aprovar títulos, apesar de também realizar tais funções, já que estes somente
serão efetivados a partir da palavra final do editor responsável. A importância do conselho editorial, para
Bourdieu, estaria dada no que este pode agregar de capital social e simbólico à editora, tendo em vista que
geralmente seus membros são figuras respeitadas no campo em que atuam, participando geralmente de
júris, revistas e jornais influentes, universidades etc. Este parece ser o caso do conselho editorial de Design
da editora Cosac Naify, o que contribui, de certa forma, para a legitimação da editora perante seus pares e
o público que visa atingir.
70
O projeto gráfico desse livro, desenvolvido por Elaine Ramos e Maria Carolina
Sampaio, foi premiado em 2010 na American Institute of Graphic Arts.
Zazie no Metrô - livro aberto
Detalhe mancha vermelha
Detalhe mancha azul e lombada
Detalhe projeto gráfico
O quinto livro a fazer parte da coleção é Flores, de Mário Bellatin. Com projeto
gráfico de Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio, o livro não conta com lombada e
vem dentro de um envelope plástico. Apesar de ser considerado um projeto gráfico
“especial”, Elaine Ramos59 não acredita que ele deveria fazer parte da coleção, afirmando
que, no futuro próximo, irá tirar esse livro da coleção. Segundo a diretora de arte:
A Coleção Particular não pode ter livros somente diferentes. Deve ter
coerência editorial da perspectiva do texto também. Acho muito difícil
juntar Henry James e Herman Melville com Mario Bellatin. É preciso
59 Ao ser perguntada em entrevista para esta pesquisa, quem coordena a Coleção Particular, Elaine Ramos
diz não existir uma coordenação oficial, embora seja ela a pessoa à frente da coleção. Apesar da ponderação
de que alguns livros não deveriam fazer parte da coleção, foi tomado como referência, nesta pesquisa, o
mais recente catálogo da Cosac Naify (2012), em que todos os sete livros aqui citados são apresentados
como Coleção Particular, recebendo destaque diante de outras coleções da editora.
71
fazer mais Coleção Particular, para que tenha “cara’, retirando o que lhe
é estranho60.
O sexto livro da coleção, o Museu do Romance da Eterna, de Macedonio
Fernández, conta com projeto gráfico de Elaine Ramos. O sétimo e último livro inserido
na coleção é o Avenida Viévski de Nikolai Gógol, lançado em 2012. O projeto gráfico
está assim descrito: “A disposição do texto nas páginas está dividida em dois blocos
espelhados, numa referência ao fluxo dos passantes por ambos os lados da via. Em dois
volumes embrulhados num jornal da época”. Nota-se, mais uma vez, como nos demais
títulos da Coleção Particular aqui descritos, a interação entre concepção gráfica e texto.
Segundo Augusto Massi:
A Cosac Naify se firmou como uma editora inovadora quando fizemos
livros como Bartleby, onde o projeto e os materiais empregados também
representavam uma interpretação da novela do Melville. Por exemplo,
quando costuramos todos os lados do livro e utilizamos como papel de
capa um feltro para radiador de automóvel, estamos sinalizando para o
leitor que, a exemplo do enigmático personagem principal, que o
significado deste livro está hermeticamente fechado. Quando usamos na
capa de Fera na Selva um papel de sedex, dificílimo de se rasgar, estamos
sutilmente dizendo que a história de amor narrada por Henry James
demorará para ser revelada. Quer dizer, uma obra literária como Bartleby
torna-se um livro essencialmente de design. A força da história, a ótima
tradução, tudo conta a favor, mas, neste caso, o que primeiro agarra e
prende a sensibilidade do leitor é a sua dimensão de objeto, um objet
trouvé, colecionável. É esse caráter de descoberta, de achado, de único
que faz com que as pessoas comprem dois exemplares. Um para ler, outro
para guardar, fechado, intacto. O livro é transfigurado em conceito61.
Ao falar de como a realização do livro Bartleby, o Escrivão, de Hermann Melville
abriu espaço para a realização de outros projetos experimentais, Elaine Ramos ilumina
dois pontos fundamentais para se compreender as categorias que possibilitam uma
60 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013. 61 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
72
valorização estética do livro produzido pela editora, quais sejam, a existência de um
público interessado no livro como objeto e a valorização da cultura material. Diz ela:
Bartleby foi muito importante para mim. Me deu a possibilidade de ver
[que existem] leitores que se interessam pelo livro como objeto. Um livro
como objeto em diálogo com determinado conteúdo. Portanto um leitor
que se interessa pela interação entre essas duas coisas62.
Os próximos tópicos apresentam discussões acerca do perfil de leitor para o qual
a Cosac Naify imagina publicar, e a ênfase na cultura material como valor central no
entendimento das categorias envolvidas na concepção do livro.
2.5.Leitores e cultura material
Como se sabe, e confirma-se nas entrevistas feitas, os livros de coleções são
pensados para um público específico. Indagada sobre qual seria o leitor da Cosac Naify,
Elaine Ramos diz:
Acho que é um leitor interessado em artes visuais e literatura. Tem um
tipo de leitor de literatura [que] tem preguiça de ler um livro como
Bartleby, porque quer apenas o texto e acha a preocupação [gráfica] fútil.
Assim como tem gente que abre a porta todo dia e nunca pensou na
maçaneta, e se a maçaneta escorrega... ainda assim não vai pensar nela.
Se um dia, a maçaneta da porta for trocada por uma maçaneta com um
design maravilhoso, mesmo assim não vai notar. Mas há pessoas que vão
ter um prazer enorme em abrir a porta com uma maçaneta bem
desenhada, que encaixa na mão. Acho que [os leitores da Cosac Naify]
são pessoas ligadas em design, em arte, no mundo visual63.
As referências ao design, à arte e ao mundo visual fazem parte do que os editores
da Cosac Naify imaginam ser seu público, coisa que se confunde com eles próprios,
funcionários, no momento em que, como afirma Florencia Ferrari, atual diretora-editorial,
os livros feitos na editora são livros que os editores gostariam de ter para si.
62 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013. 63 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
73
Pensamos nos livros como gostaríamos que eles fossem para nós
mesmos: o que seria bom que este livro tivesse? Por exemplo: Como
fazer que este livro seja bom para estudar? Margem generosa para fazer
anotações, bibliografia atualizada em português, fitilho para localizar
facilmente as notas no final, título corrente dos capítulos de uma
coletânea, uma página preta para que o leitor encontre o início do capítulo
com rapidez. Ou: Como inovar no tratamento visual de contos dos irmãos
Grimm? Enfim, o projeto editorial, que envolve o projeto gráfico e as
escolhas editoriais, está a serviço da demanda de cada livro. No caso dos
livros de arte, o corte da imagem, o tratamento das imagens em função
do papel, as provas de cor, são alguns dos meios de oferecer a melhor
reprodução possível das obras de arte64.
Como afirma a diretora-editorial, os livros são feitos pensando no que se gostaria
e como se gostaria de ver publicado, não contando a editora com nenhum tipo de pesquisa
de mercado. Questionada em relação ao feedback que a editora recebe de seus leitores,
diz que os meios mais propícios para isso são algumas feiras de livros, em que podem
ouvir seus clientes, o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), que tem uma
interação especial com os professores que adotam alguns dos livros da editora nas escolas,
e, principalmente, nas promoções, muitas delas realizadas através do próprio site
eletrônico da Cosac Naify, servindo este canal não só como ferramenta de retorno do
leitor, mas como marketing dos seus produtos. Já que a editora não conta com orçamento
para realizar propagandas, segundo afirma Florencia Ferrari, os próprios livros
realizariam esse papel. Quanto à função das promoções na internet, ela responde:
É uma forma de divulgar a editora a partir dos próprios livros. Sabemos
que as pessoas conhecem os livros, e nem sempre podem ter todos
aqueles que gostariam. Como eles têm um apelo visual maior do que
outros livros, as promoções funcionam bastante, como vemos,
entusiasmados, nos vídeos Unboxing que vários leitores fizeram
espontaneamente e postaram no Youtube.65
Ao ser indagada de que apelo está falando, afirma:
64 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013. 65 Idem
74
“Os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los de amor
táctil” 66. O Caetano fala da relação com os livros. Deve haver muitas
teorias sobre a relação que as pessoas têm com seus livros, suas
bibliotecas, algo que não está ligado a uma necessidade, mas ao prazer
de tê-los ou de saber que estão ali, disponíveis, algo que faz parte de sua
identidade. A típica foto do autor na frente de sua biblioteca67.
As falas transcritas acima são reveladoras da relação entre a valorização da cultura
material e a apropriação identitária daquele que a ela tem acesso. Neste aspecto, é
interessante destacar, em comentário de Maria Lucia Bueno (2008: 10), que “o avanço
progressivo da economia monetária, da urbanização e dos valores burgueses na Europa
no sec. XVIII prenuncia a emergência de um novo modo de vida ligado simultaneamente
a valorização da cultura material e da subjetividade, no qual uma se convertia na
expressão da outra”. A valorização da cultura material como expressão da subjetividade
e, ao mesmo tempo, a valorização da subjetividade expressa na cultura material, dão o
tom dessa relação entre a posse de um livro e a identidade.
Os fenômenos do consumo e da cultura material geram relações sociais e
constituem subjetividades. Esse é o argumento fundamental no trabalho realizado pela
antropóloga Mary Douglas em parceria com o economista Baron Isherwood (Douglas e
Isherwood, 2004). Para estes autores, antes de se julgar moralmente as práticas de
consumo, dever-se-ia perguntar, exatamente, porque as pessoas consomem, o modo de
apropriação e o que deixam de consumir. Essa visão antropológica é fundamental para se
entender, dentre outras coisas, que o ato de consumir não é questão exclusiva da sociedade
ocidental moderna. As relações de troca e sua importância na constituição da lógica social
foram analisadas em várias etnografias68 e são retomadas pelos autores para mostrar que
66 Referência à música Livros de Caetano Veloso. O trecho da música em que aparece a frase citada é: “Os
livros são objetos transcendentes / Mas podemos amá-los do amor táctil / Que votamos aos maços de
cigarro”. A relação tátil com os livros é característica recorrente nas falas dos editores da Coasc Naify e é
neste tópico analisado tendo como referência o crescimento da cultura material. 67 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013 68 Ver, por exemplo, Marcel Mauss (2003).
75
tal prática pode ser vista como uma categoria universal de análise. Dessa forma, pode-se
admitir, seguindo a linha de raciocínio de Douglas e Isherwood, que “a função essencial
do consumo é sua capacidade de dar sentido” (ibidem) às relações sociais e identitárias
dos sujeitos.
José Reginaldo Gonçalves (2005; 2007) contribui para pensar de que forma os
objetos constroem subjetividades e engendram práticas sociais. Objetos, afirma, “não
apenas desempenham funções identitárias, expressando simbolicamente nossas
identidades individuais e sociais, mas na verdade organizam (na medida em que os
objetos são categorias materializadas) a percepção que temos de nós mesmos individual
e coletivamente” (GONÇALVES, 2007: 27).
Os livros da Cosac Naify são produzidos, segundo a concepção dos editores, para
um leitor que encare tal produto como algo a ser desejado (“você querer ter aquilo) e
colecionado (“de aquilo fazer parte da sua identidade”), e que, em última instância, reflete
o gosto dos próprios editores. Tanto a concepção editorial quanto a existência do leitor
para tais livros faz parte de uma valorização da cultura material que está intimamente
relacionada com a subjetividade, constituinte do consumo moderno segundo Campbell
(2001). O livro produzido pela Cosac Naify, entretanto, é um objeto específico, com
categorias sociais materializadas em si:
A ideia não seria fazer livros de arte, mas, principalmente, cultivar a arte
de fazer livros. Essa era a proposta. O que eu pretendia passar tanto para
dentro da editora como para fora é que o nosso livro de texto era uma
obra de arte. O meu objetivo era que todo mundo comentasse a beleza do
livro. Que o livro virasse objeto de desejo: “eu quero”. Essa era a fala69.
69 MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
76
O valor artístico como forma de definição do fazer editorial, tendo o belo como
constituinte do produto industrial, é, portanto, uma intencionalidade na produção do livro.
Tal transposição, entretanto, de valores artísticos para objetos industriais, ou seja, o
embotamento da barreira entre arte e os objetos da vida cotidiana, faz parte de um período
histórico determinado no capitalismo ocidental, que ganha força no século XIX. Como
atesta Mike Fertherstone (1995: 45):
Um movimento duplo sugere a derrocada de algumas das fronteiras entre
arte e vida cotidiana, bem como a erosão da condição especial da arte
como uma mercadoria protegida. Em primeiro lugar, verifica-se a
migração da arte para o design industrial, a publicidade e as indústrias
associadas à produção de símbolos e imagens (...). Em segundo lugar,
tem-se verificado a dinâmica vanguardista no âmbito das artes que, nas
formas do dadaísmo e do surrealismo na década de 20 e do pós-
modernismo na década de 60, procurou demonstrar que qualquer objeto
de uso cotidiano poderia ser estetizado.
É importante observar que nos movimento das vanguardas artísticas europeias,
como o Cubismo, Dadá, Futurismo, Surrealismo, De Stjil, Bauhaus, Suprematismo,
estavam contidas críticas à própria instituição arte, mais especificamente à categoria
corrente de “autonomia”, que sugere uma separação entre o fazer artístico e as
necessidades materiais da vida cotidiana. A arte, para estas vanguardas, estava
intimamente relacionada à práxis vital, e esta relação deveria ser explicitada,
aproximando o fazer artístico e seus objetos da vida cotidiana. É no processo de
institucionalização do próprio movimento utópico das vanguardas artísticas, entretanto,
(Bürger, 2008; Huyssen, 1996; Subirats, 1986, 1993), em cuja essência estava contida
também sua semente “regressiva”, que o processo de aproximação entre arte e vida vai se
77
efetivar na forma de “estética da mercadoria”70 - agora os elementos artísticos são
apropriados para a fabricação de produtos vendáveis.
É inegável, portanto, que o desenvolvimento do design gráfico moderno esteja
intimamente relacionado aos movimentos artísticos das vanguardas europeias (Weill,
2010). Questões estéticas inerentes ao campo artístico passam a fazer parte da realidade
industrial, tendo o design como um dos vetores dessa transformação. Como alerta Adrian
Forty (2007), entretanto, o design não pode ser visto somente como um meio para se
projetar belos objetos ou resolver problemas na indústria: ele é essencial na obtenção de
lucro para o fabricante e na transmissão de ideias.
O entendimento da valorização do projeto gráfico no projeto editorial da Cosac
Naify passa pela percepção histórica da importância das vanguardas artísticas de início
do século XX e da centralidade que o design assume posteriormente, acarretando numa
crescente valorização da cultura material. As categorias utilizadas pelos editores
entrevistados, como o “amor tátil” lembrado por Florencia Ferrari, ou o livro como
“objeto de desejo”, segundo Augusto Massi, remetem ao valor social artístico adentrado
na esfera dos produtos industrializados, o que foi chamado de “estética da mercadoria”.
Também a descrição dos leitores imaginados por Elaine Ramos como “pessoas ligadas
em design, em arte, no mundo visual” contribui na mesma direção.
A lógica social em que está envolvido o processo de valorização do projeto gráfico
na concepção dos livros da editora Cosac Naify, promovendo o diálogo entre forma e
texto, embora não se possa, no âmbito desta pesquisa, generalizar, parece estar
relacionado a diversas outras relações sociais e aos objetos que trazem essas relações
materializadas. Os livros pensados pelos editores, as categorias das quais fazem uso para
a sua explicação, a Coleção Particular, com livros que trazem sempre projetos gráficos
70 Sobre estética da mercadoria, ver também Wolfgang Haug (1997).
78
“especiais”, e mesmo o leitor imaginado para tais livros, enfim, todo o material analisado
nesta pesquisa leva à constatação da crescente importância da cultura material e imagética
nas relações sociais que envolvem a produção de livros.
O próximo capítulo mostra que a concepção editorial da Cosac Naify não é algo
harmônico, mas um campo em disputa em que está em jogo uma série de valores inerentes
ao campo editorial, como tino empresarial ou pretensão de intervenção cultural, e a
disputa entre fazer um livro para ser colecionado ou um livro para ser democratizado.
79
CAPÍTULO 3 – EDITORA: ENTRE O MERCADO E A INTERVENÇÃO
CULTURAL
A maioria dos editores que conheci prefere, como eu, considerar-se devoto de
um ofício cuja recompensa é o ofício em si e não o seu valor em dinheiro71.
Ao tratar da dinâmica do mercado editorial francês, Pierre Bourdieu (1999) aponta
o funcionamento de dois polos distintos em constante tensão que são as categorias
“literário” e “comercial”. O peso relativo dado a um dos polos de tensão, segundo os
critérios de avaliação dos editores, é o que Bourdieu identifica como o dilema entre arte
e dinheiro. A posição de uma editora no campo editorial depende do acesso a recursos
escassos (econômico, simbólico, técnico) e o poder que esses recursos conferem.
Essa tensão é constante tanto na dinâmica interna da Cosac Naify quanto na forma
como ela se relaciona com as demais editoras, conforme o discurso dos entrevistados. No
decorrer dos 17 anos de funcionamento, as propensões por um foco no “mercado” ou na
“intervenção cultural” fizeram parte das suas escolhas editoriais, revelando ser pertinente
analisar ambas as categorias no caso deste estudo.
Bourdieu (1999) afirma ainda que grande parte das tomadas de posição das
editoras está relacionada ao lugar que ocupa no campo editorial, o que faz com que
aquelas que ocupem uma posição dominante tendam a administrar ativos (capital
econômico, simbólico e técnico acumulados) ao invés de propor inovações. Mesmo as
editoras inicialmente mais inovadoras tenderiam, com o passar do tempo e à medida que
se estabelecem no campo, a assumir uma atitude mais cautelosa.
71 Relato do editor americano Jason Epstein (2002).
80
Tal perspectiva adotada por Bourdieu em relação ao campo editorial pode ser
extrapolada, segundo sua concepção, para toda a “economia de bens simbólicos”
(Bourdieu, 1983). O que caracterizaria os bens simbólicos seria justamente a sua alocação
espontânea, diante da aparente dicotomia entre espiritual e material, no polo espiritual.
Essa alocação se dá através da “recusa do econômico” por parte do agente envolvido no
mercado de bens simbólicos. O aparente desinteresse econômico desse agente, entretanto,
revela-se falso. Embora o campo artístico funcione como um mundo econômico às
avessas, “no qual as sanções positivas do mercado são ou indiferentes ou até negativas”
(op.cit.180), existe nele uma série de bens escassos valorizados e afirmados através da
própria recusa do econômico ou no aparente desinteresse. Uma linguagem permeada de
eufemismos expia do campo artístico palavras de cunho econômico. É dessa forma que
“o comerciante de quadros, com frequência, intitula-se diretor de galeria (...) [e] editor é
um eufemismo para comerciante de livros ou comprador da força de trabalho literária”
(op.cit. 181).
Voltando à análise do campo editorial feita por Pierre Bourdieu, quando uma
editora está em vias de se estabelecer, tende a se apropriar de um vocabulário inerente ao
campo artístico, evitando qualquer ligação com a lógica economicista. Já quando está
estabelecida no campo editorial, tende a administrar melhor seus próprios recursos, dando
maior atenção, mesmo que de forma disfarçada, à lógica operacional econômica. Essa
discussão é importante para que se possa compreender o percurso da Cosac Naify no qual
se percebe a defesa de um “projeto gráfico inovador” e de uma concepção de editora “não
convencional”.
81
3.1. Mudanças e continuidade do projeto
De 2001, quando Augusto Massi assume o cargo de diretor editorial da Cosac
Naify, a 2011, ano em que sai da editora, várias mudanças ocorreram internamente na
configuração da empresa. Por volta de 2004, dois anos após ter assumido o cargo de
diretor editorial, Massi acumula o cargo com o de presidente da empresa. Em 2008 passa
o cargo de diretor editorial para Cassiano Elek Machado. Nesse período, diversos novos
projetos foram gestados. A Cosac Naify expandiu seu espectro editorial, passando de uma
editora de arte para uma editora de literatura, ciências humanas e livros infanto-juvenis,
sendo este último um dos grandes focos da editora, hoje com mais de 200 publicações.
A editora acumulou diversos prêmios (alguns dos quais já foram citados no
segundo capítulo desta dissertação), publicou uma série de autores importantes, fatores
que contribuíram para consolidá-la dentre as editoras mais reconhecidas no Brasil. O
Jornal Valor Econômico promoveu uma enquete no ano de 2010 com um grupo de
críticos e professores das áreas de artes e ciências humanas para identificar qual é a
melhor editora do Brasil72. A Cosac Naify ficou em segundo lugar, tendo sido lembrada
por 76% dos entrevistados, atrás somente da Companhia das Letras, editora já
estabelecida e bastante forte no mercado brasileiro, lembrada por 86% dos entrevistados.
O reconhecimento da Cosac Naify veio juntamente com uma crise financeira
aguda, que em 2011 provocou a saída de Augusto Massi. A editora, entretanto, conseguiu
superar os problemas e dar continuidade ao seu projeto.
72FERRARI, Márcio. Letras Maiúsculas. Jornal Valor Econômico. 23/07/2010. A explicação metodológica
cabe ao próprio realizador da pesquisa: “A pesquisa promovida pelo Valor não teve a intenção de medir a
eficiência empresarial, mas indicar as editoras que mais se destacam culturalmente. A votação se
encaminhou naturalmente para a ênfase nas áreas artístico-literária e das ciências humanas e muitos dos
votantes mencionaram a capacidade de interferir na vida cultural e de formar leitores como critérios para
medir a qualidade de uma editora. Aos 21 especialistas consultados, foi pedido que fossem escolhidas as
três melhores casas editoriais. Ficaram de fora as áreas mais especializadas, como as dos livros técnicos, os
de autoajuda e os didáticos e paradidáticos, embora a grande movimentação nesses setores nos últimos
anos, em que ocorreram grandes fusões e incorporações, certamente influi no quadro geral”.
82
A pressão econômica assume importância nos discursos dos entrevistados quando
se trata de falar das modificações que ocorreram após a mencionada crise financeira, o
que revela que a concepção da editora está em constante definição, permeada por disputas
internas entre aqueles que fazem parte do empreendimento. Ao mesmo tempo em que se
julga uma editora “diferente das editoras tradicionais”, ao falar tanto da intenção de
intervenção cultural quanto de pressões mercadológicas, se busca, em contrapartida, uma
concepção administrativa em “bases completamente lógicas e racionais”, que são valores
modernos. Se por um lado o discurso sublinha que a Cosac Naify vai na “contramão do
mercado”, por outro, ela demanda uma organização empresarial tradicional que dê
suporte material para sua produção. As contradições nos discursos, mais do que revelar
diferentes caminhos a serem escolhidos, apontam uma constante tensão entre ser a editora
um empreendimento mercadológico ou cultural. É o dilema, repetindo a observação de
Bourdieu (1999), entre arte e dinheiro, dilema este que está na base mesmo do
empreendimento editorial, por excelência uma empresa capitalista e que interfere na
dinâmica cultural73.
3.2. Editora: empresa ou intervenção cultural?
Editar, segundo o Dicionário do Livro (FARIA; PERICÃO, 2008: 270) significa:
Publicar uma obra ou qualquer outro tipo de impresso (folheto,
publicação periódica, mapa, etc.) por meio de impressão ou qualquer
outra modalidade de reprodução gráfica; dar à luz, conceber, planejar e
preparar o conteúdo de um livro, em cooperação com o autor; publicar;
imprimir; mostrar // orientar // editorar.
73 Tendo consciência dos limites desta pesquisa, não se pode, a partir do material analisado, afirmar que
toda e qualquer editora, em algum momento, passe pelo dilema entre arte e dinheiro. Percebe-se, entretanto,
que por se tratar de um empreendimento capitalista (funciona como uma empresa e, por isso, precisa de
lucro) que comercializa bens culturais, tal dilema faz parte de muitos empreendimentos editoriais em algum
momento de suas atividades.
83
A origem de “editar” vem da palavra latina editio que indica dois movimentos:
“dar à luz” e “publicar”. Surge na Roma antiga para identificar aqueles que chamavam a
si a responsabilidade de multiplicar e cuidar das cópias dos manuscritos, zelando para que
fosse correta a sua reprodução (Bragança, 2002). São, dessa forma, os editores, que
decidem que textos serão transformados em livros, a qual público se destinam e como
serão feitos estes livros (Bragança, 2005). As editoras são, portanto, segundo definição
de Wolfgang Knapp (1992:13) “instituições que influem no que sabemos ou podemos
saber, [pois] (...) praticamente formam nossa opinião, porque filtram por gosto pessoal,
juízo próprio ou formação e por força de seu programa editorial, as informações que
recebem, transmitindo aquelas que julgam importante”.
Editar, portanto, pode ser entendida como a ação de tornar público uma
determinada obra, funcionando como intermediário entre leitor e texto. A despeito da
definição de tal ação, a função do editor, ou seja, aquele que edita e publica, mudou
bastante ao longo da história (Chartier, 1999). A concepção moderna de editor surge,
segundo Bragança (2005), no momento da invenção da tipografia em meados do século
XV. Isso acontece somente quando Gutenberg “cria a escrita mecânica”, a partir da
invenção da tipografia por caracteres móveis de metal, inaugurando a era de cópias
múltiplas e idênticas a partir de um original.
Tais livros são colocados no mercado, à disposição de um público-leitor
anônimo para serem adquiridos e lidos. Assim, através do comércio de
seu produto, pode o editor-impressor pagar os seus trabalhos e os de seus
auxiliares, os juros e os capitais aplicados, e ganhar dinheiro para
continuar seu ofício. Quase sempre esse ofício quer também mudar a
sociedade (Bragança, 2005: 223).
A emergência do editor moderno caracteriza uma dinâmica cultural complexa
associada ao mundo do livro e que faz parte de uma cadeia que engloba também autor,
84
impressor, distribuidor, livreiro e leitor. O editor, portanto, ocupa lugar fundamental no
funcionamento dessa cadeia, sendo notável o fato de ser a edição, na sua concepção
moderna, um empreendimento capitalista, relacionado aos lucros obtidos pela venda do
seu produto.
Como todo empreendimento capitalista, o empreendimento editorial está ligado
ao universo do lucro e do cálculo interessado. Por se tratar de uma “economia de bens
simbólicos”, entretanto, como afirma Bourdieu (1983), estabelece características das
sociedades pré-capitalistas, sendo marcada a “recusa do econômico”. Esta “recusa” está
de tal forma arraigada no universo editorial, que, como afirma Gabriel Zaid (2004: 45):
O sucesso comercial pode ser contraproducente, provocando uma perda
de credibilidade nos melhores círculos. Queremos que os livros sejam
objetos democráticos, para ser lidos por todos, estar acessíveis em todos
os lugares, mas também queremos que continuem sendo sagrados.
Esta dimensão está presente nos embates havidos na editora. De um lado, a editora
é vista como uma empresa de intervenção cultural, cujos objetivos seriam trazer à luz
obras que acreditam necessárias ao leitor brasileiro. Porém, de outro lado, a editora deve
estar afinada com as previsões e cálculos mercadológicos, sendo necessária a
comercialização lucrativa dos livros. Seria, portanto, a atividade editorial um mero
empreendimento capitalista ou uma atividade de intervenção cultural?
No momento em que assume a diretoria editoria, Florencia Ferrari diz ter
incorporado no cotidiano o problema financeiro. Em suas palavras:
Não trabalhamos com uma demanda de ser uma editora lucrativa,
comercial, com busca de títulos vendáveis, que atinjam lista de mais
vendidos etc. É uma editora de caráter cultural, de intervenção cultural,
que tem que encontrar uma equação saudável para se manter ativa sem
abrir mão de sua marca74.
74 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013.
85
O discurso de “recusa do econômico” não é uma exclusividade da Cosac Naify,
nem o discurso de “não ser uma editora comercial” está em contradição com a
necessidade de se equilibrar as finanças da empresa. Charles Cosac, ao referir-se as
possibilidades de lucro na empresa, afirma que, apesar de não ser uma fundação, o
dinheiro do lucro “seria investido para se produzir mais livros e pagar melhor os
funcionários75”.
Ao tratar das editoras francesas, Pierre Bourdieu (1999) afirma que inicialmente
as editoras tendem a utilizar nos discursos valores referentes ao campo artístico, como a
inovação e a experimentação, recusando tratar de questões de ordem econômica. Essas
questões, entretanto, parecem entrar em voga à medida que a editora se firma no campo
editorial. É possível que este tenha sido o percurso percorrido pela Cosac Naify. Com o
crescimento da editora (em número de publicações, funcionários, áreas de interesse,
prêmios conquistados) e a posição de agente privilegiado que assume no mercado
editorial e na produção cultural brasileira, a categoria “comercial” se torna visível nos
discursos dos membros da equipe da editora.
O projeto editorial da Cosac Naify toma para si o projeto gráfico como índice de
experimentação e inovação. Como ficam, entretanto, os projetos gráficos dos livros nesse
panorama de mudanças e “reformulação administrativa”? Permanece o interesse no
projeto editorial ou foi abandonado em decorrência das mudanças? A experimentação
gráfica ainda é prioridade ou o que se sobrepõe agora é a viabilidade econômica do livro?
Estariam essas duas concepções necessariamente em contradição? Isso será tratado no
próximo tópico.
75 COSAC, Charles. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 4 de dezembro de 2013.
86
3.3. Contenção de despesas e os reflexos no projeto gráfico: a coleção Portátil
Em decorrência das recentes modificações administrativas, o projeto gráfico da
editora parece ter se modificado. Elaine Ramos, diretora de arte e editora de Design da
Cosac Naify afirma que:
[O que mudou é que] não há mais livros feitos numa “bolha”, que deixem
de encarar de frente os problemas de tiragem, custo e preço de capa.
Continuamos publicando livros com patrocínio e com apoio à tradução,
assim como outros que estão em domínio público. Cada livro é uma
equação. Temos conseguido fazer projetos diferenciados em bases
racionais. Vai-se buscando caminhos. Mas é fato que para um livro com
direito autoral, tiragem baixa e sem patrocínio não se pode inventar muito
graficamente porque a planilha não fecha. E esses livros são muitos76.
Bernardo Ajzenberg, diretor executivo, coordena as diferentes áreas da Cosac
Naify: editorial, projeto gráfico e produção, marketing, financeiro e atendimento ao
professor. Deve fazer com que todos funcionem de forma a viabilizar os objetivos da
empresa. Assumiu esta função em 2010, pouco tempo antes das significativas mudanças
mencionadas. Em entrevista à Revista Metáfora, esclarece qual seria, a partir de então,
o desafio da editora:
Hoje em dia, a política da casa continua sendo a busca de qualidade, tanto
no conteúdo quanto na forma dos livros, porém casada com a necessidade
de ampliar o público. Mas sem inviabilizar a editora como negócio, sem
elitizar o alcance do livro. Nossa coleçãozinha de bolso responde um
pouco a isso, tem uma sofisticação na concepção, mas consegue ser
barata. Vários livros que antes a gente só faria em capa dura, agora são
em brochura. É um momento que está exigindo muito das pessoas,
criatividade no sentido profundo. Todo mundo sabe que era uma editora
deficitária, e este ano não vai ser. Estamos comemorando isso vivamente
lá dentro77.
76 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013. 77 Revista Metáfora. As várias carreiras de um autor. Por Fábio Fujita. Acessado em
http://revistametafora.com.br/2013/01/21/as-varias-carreiras-de-um-autor/ no dia 13/08/2013.
87
Vimos que a categoria “qualidade” é utilizada pelos entrevistados para definir a
identidade da Cosac Naify. Nota-se, entretanto, que esta categoria assume valores
diversos a depender da situação a ser explicada. Quando utilizada para falar sobre a
Coleção Particular, e os demais “projetos especiais” da editora, “qualidade” se refere a
encarar cada livro como único, de forma que o projeto gráfico dialogue com texto a ser
publicado, estabelecendo um conceito para o livro. É uma concepção próxima do
artesanal, como foi debatido no primeiro capítulo desta dissertação. Quando usada por
Bernardo Ajzenberg, para demarcar a nova fase da editora, a categoria “qualidade” é
relacionada com a “sofisticação na concepção”, e livro não “elitizado”, podendo, segundo
ele, ser exemplificada pela Coleção Portátil.
A Coleção Portátil, lançada em 2012, é dedicada à publicação de “livros de bolso”.
Esta categoria editorial, mais do que demarcar um formato de livro (que, pelo nome, se
imagina em tamanho reduzido), demarca uma estratégia de marketing (Halewell, 2012).
O catálogo da Cosac Naify esclarece o projeto gráfico na Coleção Portátil:
O design dos livros da coleção foi pensado nos mínimos detalhes para
que seja especial e inovador, como nas demais edições da Cosac Naify.
As capas, com relevo exclusivo, trazem cores fluorescentes em uma
disposição geométrica que varia a cada título. Os livros, em brochura,
têm uma encadernação desenvolvida especialmente para garantir maior
flexibilidade ao folhear. Todo o volume é impresso em [papel] munchen;
a textura e cor agradáveis deste papel, aliadas ao tamanho e espaçamento
das linhas e das letras garantem uma leitura confortável (Cosac Naify,
2012).
88
Coleção Portátil – Capas
Fonte: http://editoracosacnaify.com.br.
O primeiro lançamento da coleção foi o livro Lero Lero, do poeta Cacaso,
identificado como Portátil 1. O livro havia sido lançado anteriormente, em 2002, pela
Cosac Naify, fazendo parte da coleção Às de Colete (livros de poesia, todos em capa dura
e tecido, coeditado pela 7 Letras, com coordenação do poeta Carlito Azevedo) e estava
esgotado. Seguem a esta publicação Khadij-Murát, de Liev Tóstoi, lançado em 2010
dentro da coleção Russinhos (textos curtos de literatura russa), A Sociedade Contra o
Estado, de Pierre Clastres, lançado como parte da coleção Ensaios (obras clássicas de
filosofia, antropologia, e críticas literária e de cinema) em 2003, dentre outros, todos
títulos esgotados e relançados pela editora neste novo formato.
A partir do livro Estética Doméstica, de Clement Greenberg, relacionado como
Portátil 21, há uma modificação no projeto gráfico dos livros. Ao invés da utilização de
quatro cores, como na primeira leva dos livros da coleção Portátil, utiliza-se somente uma
cor, a laranja, sobre a capa em tons de cinza.
Coleção Portátil a partir do volume 21
Fonte: http://editoracosacnaify.com.br.
89
O que se percebe a partir da análise da descrição dos livros da coleção Portátil e
do depoimento dos editores, é uma padronização do projeto gráfico, demandada pela
necessidade de contenção financeira. Florencia Ferrari não concorda que tenha havido
mudança em relação à concepção do projeto gráfico dos livros da editora por conta das
mudanças administrativas. Suas afirmações apresentam pontos relevantes:
Não [houve mudanças] no modo de conceber os livros, esse é o nosso
desafio, provar que é possível fazer livros [especiais] numa editora
financeiramente saudável. Então a coleção Portátil, por exemplo, foi um
exercício de quebrar a cabeça para conseguir fazer um projeto muito
diferenciado e charmoso (com acabamento, relevo, e cores pantone,
costura colorida) a um preço compatível com o mercado. Usamos todo o
conhecimento da produção gráfica do livro para encontrar um meio de
equacionar essas variáveis e manter um diferencial nos livros, mesmo em
livros “de bolso”78.
Por serem livros anteriormente lançados pela Cosac Naify, não contam com
grande parte dos custos iniciais: direito autoral, tradução, revisão de texto (a não ser que
a segunda edição seja revista). Quanto ao projeto gráfico, há uma economia de esforços
da equipe gráfica, na medida em que o mesmo projeto gráfico de capa e de miolo serve
para todos os títulos da coleção, de forma que a concepção de livro pensado
individualmente não se aplica. Também em termos de impressão essa economia existe,
na medida em dois títulos que tenham o mesmo número de páginas são impressos
concomitantemente. De qualquer modo, como afirma a diretora editorial, a preocupação
com o projeto gráfico continua presente nas publicações da editora, tendo sido a coleção
Portátil selecionada para ser exposta na 10ª edição da Bienal Brasileira de Design Gráfico,
78 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013.
90
organizada pela ADG (Associação do Design Gráfico)79. Sobre a concepção da coleção
Portátil, Florencia Ferrari diz:
Lançamos a Portátil no ano passado [2012] pensando sobretudo num
público de estudantes universitários. A coleção pode ter títulos que
continuam existindo na edição original. Um exemplo dessa visão é a
coexistência do livro referência de Marcel Mauss, o Sociologia e
Antropologia, que contém sete longos ensaios somando 536 páginas, e
um portátil do “Ensaio sobre a dádiva”, que é entre esses textos o mais
lido em graduação em Ciências Sociais, e muitas vezes xerocado – o livro
portátil torna-se uma alternativa ao xerox. O livrão capa dura será
consultado inúmeras vezes, servirá para um professor dar cursos toda a
sua vida. O livro portátil pode ser um livro de ocasião, ao qual não
necessariamente se retorna – isso ocorre tanto em livros de estudo como
nos literários80.
A concepção da coleção Portátil relativiza a realização “artesanal” e “individual”
do livro assim como evidencia a utilização de uma categoria, antes não tão presente na
concepção editorial da Cosac Naify, a de “democratização”, a partir de um projeto gráfico
serializado e que assegura um preço de capa mais baixo.
Como afirma Elaine Ramos:
Temos as vezes mais vontade de tornar o livro barato e acessível para um
estudante do que escolher para ele a capa dura - ainda que alguns livros
de referência, [que são] para ficar na biblioteca para sempre ou livros com
muitas páginas, devam, por isso, ter capa dura. Mas temos simpatia pelo
livro básico e acessível. A Coleção Portátil tem a ver com isso. Antes
das mudanças, dificilmente seu projeto gráfico seria aprovado, porque a
preferência era pelo livro de capa dura, clássico81.
Observa-se que a coleção marca a mudança de categorias utilizadas pelos editores
para explicar as concepções editorias da Cosac Naify. Revela, portanto, o novo momento
79 Acessado em http://editora.cosacnaify.com.br/NoticiasInterna/553/Livros-da-Cosac-Naify-
selecionados-na-Bienal-de-Design.aspxem 25/04/2013. 80 FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de 2013. 81 RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.
91
da editora no qual a economia e racionalidade na produção dos livros são fundamentais,
não sendo tão relevante o discurso de produção artesanal e individualizada.
Não é objetivo desta dissertação julgar o que deve ser melhor para uma editora,
mas questionar que categorias estão em jogo nos discursos que surgem depois das
mudanças havidas e da consolidação da editora no mercado editorial. As categorias de
“artesanal”, “livro como obra de arte” e demais termos correlatos utilizados pelos editores
para demarcar a preocupação conceitual dada individualmente a cada livro não se repete
nas falas sobre a coleção Portátil. Trata-se sem dúvida de um projeto gráfico “de
qualidade”, mas que não apela para o individual e único. É importante, ainda, perceber
como os termos “qualidade gráfica” sofrem modificações, variando à medida que as
questões financeiras tornam-se mais prementes, e vão sendo até relativizadas. A
democratização do livro torna-se mais relevante.
O projeto gráfico de uma obra, mais do que a simples elaboração de uma capa e
uma diagramação adequadas, funciona como signo da concepção editorial, influenciando
a forma como o texto será circulado e recebido pelo leitor. A elaboração do projeto gráfico
de qualidade de um livro demanda o seu tratamento individual e não padronizado. Requer
que se busque, acima de tudo, um conceito que aciona uma série de categorias referentes
ao universo valorativo da cultura, da arte e do simbolismo. As pressões econômicas as
quais qualquer editora está submetida, entretanto, tencionam esta posição relativa aos
projetos gráficos, revelando que, em diversos momentos, escolhas devem ser feitas, e nem
sempre o apelo cultural ou artístico da obra, apesar do seu poder em atrair consumidores
e leitores, assume o lugar de protagonista.
92
CONCLUSÃO
A atividade de editar está relacionada com as noções de “dar à luz”, “tornar público”,
estabelecendo-se, portanto, como atividade intermediária entre o texto escrito e o leitor.
É, dessa forma, importante na circulação de ideias e no estabelecimento de um debate
público, estando inserido num campo relativamente autônomo (Bourdieu, 1999), com
rituais e dinâmicas próprios, mas em constante troca com as esferas políticas, culturais e
sociais. Não somente o tratamento dado ao texto a ser publicado, mas o modo como é
publicado, seu formato, papel e textura, a existência ou não de ilustração, tipos e margem
de página, o projeto gráfico, em suma, é fundamental para a apresentação do livro, com
consequência para o modo como circula, é comprado e lido.
Poucas, mas em quantidade e qualidade crescentes, são as pesquisas em ciências
sociais sobre o universo editorial, área de conhecimento para a qual esta pesquisa pretende
contribuir. O objetivo dessa dissertação foi analisar, por meio de entrevistas, catálogos, e
artigos de jornal e revista, o tipo de sociabilidade que abarca as categorias sociais
presentes na prática editorial da Cosac Naify ao promover o projeto gráfico como
elemento fundamental do seu projeto editorial. Foi feito um apanhado histórico da editora,
desde sua fundação, em 1997, quando do lançamento de Barroco de Lírios, de Tunga, até
as recentes mudanças, de modo que se pudessem perceber as modificações pelas quais
passou ao longo de sua trajetória e as consequências que estas implicam na sua concepção.
O contexto do mercado editorial brasileiro nos anos de 1990 é relativamente
propício ao surgimento de novas editoras, como a Cosac Naify. Com o controle da
hiperinflação, em meados da década, a entrada de capital estrangeiro e a expansão da rede
de megalivrarias, percebe-se o crescimento do número de títulos publicados, o que aponta
para uma maior variedade de textos disponíveis ao leitor brasileiro. Esse dado positivo,
93
contudo, não é acompanhado pelo faturamento total do setor editorial, que se apresenta
em queda (Earp, 2005). De qualquer forma, a condição financeira dos sócios fundadores
da editora é bastante propícia a um investimento inicial. Charles Cosac, depois de um
período de estudos em história da arte na Inglaterra, retorna ao Brasil e inaugura na editora
a publicação de monografias de artistas e livros de história da arte que acha necessários
no cenário cultural brasileiro, juntamente aos livros de arquitetura, moda, cinema e
design.
Com a entrada de Augusto Massi, em 2000, o catálogo da editora se expande
rapidamente, aumentando as publicações não somente na área de artes, mas em literatura,
ciências humanas e infanto-juvenil. Com essa ampliação, cresce também a pressão por
controle dos gastos, que culmina com a crise de 2011 e saída de Augusto Massi.
Na trajetória da Cosac Naify, o projeto gráfico tem papel fundamental no projeto
editorial, sendo um dos motivos de maior reputabilidade. Uma equipe formada por cinco
designers e seis produtores gráficos participa do processo criativo e de tomadas de decisão
junto aos editores, configurando uma situação bastante particular na indústria editorial
brasileira. As negociações contínuas entre designers e editores apresenta um rico
panorama de disputas internas pela concepção editorial, revelando a valorização da
imagem, materialidade dos livros e centralidade do design na sociedade contemporânea.
É notável a recorrência a termos como “artesanal”, “individual”, “único” e
“interferência cultural” na descrição da prática editorial. A partir dessas categorias, os
livros da editora teriam um apelo material, tátil, que se revelaria nos papeis, costura, tipos,
cores, ilustrações e diversos outros materiais utilizados em diferentes publicações, todas
em diálogo com o texto a ser publicado. Tais categorias convivem, entretanto, na Cosac
Naify, com categorias relacionadas ao industrial e comercial, como “serialidade”,
“homogeneidade” e “contabilidade”, que se corporificam na quantidade de exemplares
94
impressos, na circulação do livro, nas vendas para as principais livrarias do país e por loja
virtual própria, além de práticas que advém da necessidade de manutenção da empresa.
A convivência, num mesmo universo, de valores díspares, mas não excludentes,
como “artesanal”, e seus correlatos, e “industrial” e seu correlatos, revelam
intencionalidades presentes na luta pela concepção do projeto editorial, que de forma
alguma se mostra coeso e homogêneo, mas, pelo contrário, aponta concepções diferentes
e em constante tensão.
A Coleção Particular, coleção que tem início em 2004 e conta com sete
publicações em que a característica comum que as une é o “projeto gráfico especial” em
diálogo com o texto, como foi analisado no caso de Bartleby, o Escrivão, demonstra a
intencionalidade da Cosac Naify em se apresentar aos leitores como uma editora que
investe na experimentação gráfica de seus livros. As categorias utilizadas pelos editores
para descrever esta coleção são as relacionadas aos valores artesanais, operacionalizados
dentro de uma lógica industrial (número de exemplares, impressão e comercialização). Já
nos livros da coleção Portátil, coleção de livros de bolso inaugurada em 2012, o que se
percebe na fala dos editores é uma maior proximidade com valores relacionados ao
industrial e a diminuição dos custos de produção, seja em relação ao texto, que são títulos
que foram publicados anteriormente pela Cosac Naify, reduzindo assim os custos de
direito autoral, tradução e revisão, seja na gráfica, com o envio de dois livros diferentes,
mas com o mesmo número de páginas, para impressão conjunta, ou no projeto gráfico,
que conta com capa e miolo padronizados.
Nota-se, portanto, uma disputa constante entre o artesanato da produção
individualizada e a pressão comercial, que encontra solução na serialização industrial. A
relevância do projeto gráfico no projeto editorial da Cosac Naify se apresenta como
tentativa de impor valores individuais, artesanais e estéticos à industrial editorial. A
95
existência de consumidores e leitores interessados, que não foram objetos desta pesquisa,
mas são, sem dúvida, peça fundamental no entendimento dessa dinâmica, revela um
universo em que valores estéticos se associam ao industrial, apresentando produtos
industriais concebidos com valores artísticos. É nesse universo social que se explica a
relevância dada pela Cosac Naify ao projeto gráfico dos seus livros.
Os discursos sobre a editora, objeto de pesquisa desta dissertação, apresentam um
conjunto de categorias, reveladoras de uma dinâmica social complexa. A valorização da
cultura material e da produção artesanal não estão presentes apenas no campo editorial
mas também em objetos artísticos, objetos de uso cotidiano, práticas, hábitos, gestos,
gostos, enfim, uma infinidade de fenômenos sociais, com o entendimento dos quais,
espera-se, essa dissertação possa contribuir.
96
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Entrevistas
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FERRARI, Florencia. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 29 de outubro de
2013.
MACHADO, Cassiano Elek. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 6 de maio de
2013.
MACHADO, Samir. Entrevista concedida ao autor. E-mail: 7 de janeiro de 2014.
MASSI, Augusto. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 28 de outubro de 2013.
RAMOS, Elaine. Entrevista concedida ao autor. São Paulo: 15 de agosto de 2013.