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LEOPOLDO MARECHAL Descenso e ascensão da alma pela beleza

Leopoldo Marechal - Descenso e ascensão da alma pela beleza

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LEOPOLDO MARECHAL

Descenso e ascensão da alma pela beleza

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Capítulo I - Argumento

Discursarei sobre a Beleza, o Amor e a Felicidade. Poderia acontecer, Elbiamante, que já conquistada com o anúncio de tão ambicioso intento, esperasses agora a minha invocação às Musas, com que os antigos mestres do amor iniciavam os discursos, nos ditosos tempos que se pedia o favor do Invisível para o trato das coisas inteligíveis. Esperarias em vão, porquanto a minha lida não haveria de merecer adjutório das nove senhoras, pois que se reduz à paráfrase dum texto antigo composto com arte própria e peregrina sabedoria. Proponho-me neste instante tratar do descenso e da ascensão da alma pela formosura: atrever-te-ias a empreender comigo tal viagem? Falo sobretudo com os artistas, dos que trabalham com a beleza como quem usa do fogo: quiçá consiga eu dar-lhes a conhecer o trabalho de jogar com o fogo sem queimarem-se. Contudo, entremos no assunto.

Santo Isidoro de Sevilha, no livro primeiro das Sentenças, após considerar a beleza finita das criaturas e a beleza infinita do Criador, na qual tudo quanto é belo encontra a razão e o princípio da formosura, diz o seguinte: “Deus dá-nos a entender, pela beleza das coisas criadas, a beleza incriada – a qual não se pode restringir –, para que o homem retorne a Deus por meio dos mesmos vestígios que o apartaram Dele; de tal modo que, quem se privou da forma do Criador por amor da beleza da criatura, sirva-lhe a mesma beleza terrena para elevá-lo novamente à formosura divina”.

Antes de iniciar a glosa do texto que acabo de transcrever, dir-te-ei que não é a novidade da doutrina que me estimulou a escolhê-lo. Santo Isidoro, ao versar sobre a matéria, segue a alentada lição de Santo Agostinho, em cujas Confissões ressoa tão a miúdo a voz do homem perdido e reencontrado no labirinto das coisas que o rodeiam, das coisas que o vão encantando e lhe falam como em enigma. Lembrar-te-ei, demais, que tal lição está implicada no ditirambo sublime que São Dionísio compõe acerca da formosura como “nome divino”. Por outra

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parte, se remontarmos à origem de tal ensinamento, toparíamos com o Banquete platônico e com o momento em que Sócrates declara como aprendeu graças a Diotima o modo de ascender à Beleza Primeira com o auxílio dos diversos graus da formosura participada e mortal. O texto de Santo Isidoro tem para mim a virtude da síntese: nos seus movimentos, comparáveis aos do coração, ensina-nos a nós um descenso e uma ascensão da alma pela formosura. Trata-se dum “perder-se” e logo “encontrar-se”, por obra de essência e amor, uma só e igual coisa. Nomeia-se aqui o Amor, porque o belo nos está convocando, e porque a alma se dirige à beleza segundo o movimento amoroso, pelo qual toda ciência da formosura quer ser uma ciência de amor. Como a alma, por vocação, tende à sobredita ciência, e tal ciência se logra na paz, e a paz na possessão amorosa da Formosura, a ciência do belo quer-se agora chamar de ciência da Felicidade.

“Quem se privou da beleza do Criador por amor da beleza da criatura” – eis o começo do texto de Santo Isidoro. Temos de considerar, nesta ordem: 1º que é a formosura criada; 2º qual é a vocação da alma que a contempla; 3º como a beleza das criaturas nos distrai a alma da forma do Criador e; 4º que devemos entender aqui por “forma do Criador”.

Capítulo II – A beleza criada

Ao nomear a formosura das coisas, qualificamo-la de relativa, criada e perecível. São adjetivações com que naturalmente a assinala o entendimento ao compará-la com uma Beleza absoluta, criadora e eterna, cuja noção a alma afigurar-se-ia possuir em sua intimidade (eu te saúdo, reminiscente Platão!). Como se relacionam e em que se distinguem ambas as formosuras? Diz São Dionísio Areopagita, no capítulo quarto d’Os Nomes Divinos: “O belo e a beleza se confundem (ou se fundem com) essa Causa, cuja poderosa unidade resume a tudo; distinguem-se na criatura por ‘alguém’ que recebe e por ‘algo’ recebido. Eis aqui por que razão, no finito, denominamos de belo o que participa da beleza (com minúscula), e denominamos de beleza o vestígio que o Princípio, que faz

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todas as coisas belas, imprime na criatura. Mas o infinito (a Causa Primordial) é chamado de Beleza (com maiúscula), porque todos os seres, cada qual a seu modo, emprestam do infinito a formosura”.

Entretanto, advirto agora que entrei numa senda oposta, em realidade, a qual me convém e que, Elbiamor, já revela o caráter “labiríntico” do assunto: não devemos partir do alto até ao baixo, como fá-lo Dionísio, mas do baixo até ao alto, como o requer o texto. Considerarei, pois, a formosura das coisas tais quais se oferecem aos meus olhos de homem, e perguntar-me-ei o que se pergunta a si Plotino, ao iniciar o tratado Do Belo:

“Que coisa é a formosura dos corpos? Que coisa é ela, que destarte atrai o olhar dos

espectadores e lhes faz experimentar o deleite na contemplação dela?”

Já na pergunta descubro o começo da resposta: é “algo” cuja contemplação agrada-nos. Santo Tomás acolherá a tempo esse início em aparência trivial, e então dirá que “belo é o que agrada a vista”. Mas, cuidado, Elbiamor! Em várias oportunidades te adverti do perigo de certas definições teológicas e metafísicas, em cuja ingenuidade exterior é fácil cair, como numa armadilha, se não entendermos cada um dos vocábulos em acepção profunda; porque, retornando à definição de Tomás, o termo “vista” ou “visão” traz inclusa a idéia dum conhecimento, e sugere – por acréscimo – uma maneira de conhecer, ou seja, que ao contemplar o belo, conheço algo, e conheço-o mediante uma via especial da intelecção. Por sua vez, o termo “agrada” ou “deleita” diz-nos que se trata dum conhecimento deleitoso, cuja só idéia já nos induz à razão da “beatitude” que se atribui ao ser formoso, e cujo remate será franquear-nos o caráter “transcendental” de tal beatitude.

Que conheço como formosura? De que maneira a conheço? Os antigos mestres observaram que a formosura se manifesta a nós como certo esplendor. Mas, como todo esplendor pressupõe um esplendente, cabe perguntar em seguida:

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De que a beleza é esplendor?

Esplendor do “verdadeiro” (splendor veri), afirmam os platônicos; esplendor da “forma” (splendor formae), ensinam os escolásticos; esplendor da “ordem ou da harmonia” (splendor ordinis), define Santo Agostinho. Usarei das duas primeiras definições, porque convêm ao início da viagem, cujo ponto de partida é a “multiplicidade” das criaturas formosas. A definição de Santo Agostinho, por seu turno, corresponde ao final da viagem, já que tão-só desde a Unidade nos é dado compreender a harmonia do diverso, e tão-só desde a Unidade a alma regozija na formosura transcendente da ordem.

O belo é “o esplendor do verdadeiro”, afirmam os platônicos. Elbiamor, acaso resplandece a beleza adiante da verdade, como que anunciando-a? O formoso, pelo amor da própria formosura, atrai-nos a uma verdade escondida em seu seio “como pomo de ouro em malha de prata”? Se o formoso anuncia o verdadeiro, que verdade se sugere a mim, quando contemplo a formosura duma árvore? Numa palavra, qual é a verdade da árvore, sugerida na beleza dela?

Respondem os escolásticos que a verdade da árvore é a chave ontológica ou o número criador1 (ao estilo de Pitágoras) por que a árvore é árvore e não outra coisa. Esse número criador é a forma da árvore, ou seja, o seu modo especialíssimo e também inalienável de participar na excelência de ser, manifestando uma das infinitas possibilidades ontológicas que ocorrem no Ser Absoluto, que Ele conhece pelo intelecto divino e manifesta pelo Verbo admirável. Logo, se a verdade da árvore provém da forma, é lícito afirmar que a beleza da árvore é o esplendor da sua verdade, ao modo dos platônicos, ou o esplendor da sua forma, ao modo do escolásticos. De qualquer maneira, ao contemplar a beleza contemplo o Ser em toda a graça deleitável de sua “inteligibilidade”.

1 Diríamos atualmente, como exemplo de número ordenador, algoritmo [N. do T.].

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Mas, em que consiste afinal essa graça ou esplendor? Nem os antigos nem os modernos o precisaram, e não é fácil defini-lo. Elbiamor, tentarei agora formular-te duas “aproximações” de minha lavra – uma de teor ingênuo e outra inquietante, porquanto tenha periculosidade metafísica. Eis a de teor ingênuo: às vezes acontece que, ouvindo o testemunho dum homem, e ainda sem saber se diz a verdade ou mente, deparamos nele um irresistível tom de veracidade que nos induz de antemão a considerar o homem como veraz. Pois bem, eu diria que a beleza da criatura, quando oferece o testemunho de sua verdade, é comparável a esse tom de veracidade.

Eis aqui a segunda e temível aproximação: Elbiamante, a graça ou o esplendor que se manifesta na formosura aparece a nós como um transbordamento, como “algo” que sai em excesso da matriz. Que transbordaria, pois, na beleza? Continuarei a conjeturá-lo.

Embora a matéria receba uma forma e trate de abarcá-la por inteiro, diria eu que sempre sobra na forma um remanescente que “não liga” totalmente com a matéria, um excesso que a forma, na qualidade de número criador, traz do Princípio Intelectual, e que ultrapassa a matéria e transborda como a espuma dum vinho raro transborda do vaso que o contém. Mas, presta atenção! Essa formosura ou esplendor que se excede tampouco seria imputável à forma em si, já que, segundo as minhas experiências, não há nenhuma distinção formal naquilo que a beleza dum pássaro, duma flor, duma coluna grega ou dum movimento sinfônico me comunica, pois todos esses homólogos do belo não são para mim senão trampolins que me impulsionam instantaneamente à intelecção e contemplação duma beleza mais alta, sem forma nenhuma, indizível, deleitável, que aparece para mim de súbito no vértice secreto da alma. Deste modo, já não seria a beleza o esplendor da forma, mas do princípio intelectual e universal em que se originam as formas individualizadas? Atrever-me-ei a sustentar essa opinião? Se assim fizesse eu, haveríamos de chegar a consequências gravíssimas e afirmar:

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1° Que a formosura é o esplendor dum princípio informal que ilumina as formas, mas sem entrar na individuação dessas formas. 2° Que, por conseguinte, a beleza se dissemina entre a individualidade das formas criadas e a universalidade de seu princípio criador, à laia de ponte inteligível que une a criatura com o princípio dela. 3° Que somente assim explicar-se-ia o valor anagógico assinalado à beleza, em seu poder de “conduzir ao alto”, ou seja, ao Princípio Universal, partindo justamente da individuação das formas. 4° Que somente nesse valor anagógico poder-se-ia fundar a virtude iniciática que os mestres antigos, desde Platão, reconheciam na beleza. 5° Que assim entenderíamos pelo que a beleza é um transcendental, já que por ela nos é dado transcender até ao Princípio Criador a partir do patamar da criatura.

Prudência, Elbiamor! Alguém nos está fitando irado lá da estante dos escolásticos.

Capítulo III – De que maneira conheço o belo

Já tenho noção do que conheço por formosura. Vejamos agora de que maneira conheço-a. Certamente, como disse Tomás, “o belo remete à faculdade cognoscitiva”. Porém, esse modo de conhecimento pela beleza não é o modo racional por que conheço o teorema de Pitágoras. A razão conhece lentamente e em discurso laborioso, como se tivera pés de tartaruga; esse modo de conhecimento pela beleza é instantâneo e direto, como se tivera os pés de Aquiles. Demais, Elbiamor, eu poderia transmitir a ti agora o teorema de Pitágoras, caso o ignorasses: bastar-me-ia escrever-te a demonstração dele nesta página, e entenderias comigo que em todo triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos; mas não poder-te-ia transmitir destarte o que conheço da beleza duma flor, qual a rosa, se nunca houvesses contemplado uma rosa: Elbiamor, se tal esforço me rogásseis, teria eu de colocar-te diante da rosa, para que conhecesses por experiência a formosura dela (porque a formosura se “mostra” e não se “de

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mo(n)stra”). Assim, assentirias comigo em dizer que a rosa é formosa, não é?

Conhecimento intuitivo, experimental, direto, e por conseguinte incomunicável – eis o que é típico ao belo. A razão trata de aproximar-se da formosura; quer dividi-la e analisá-la segundo a técnica natural que lhe é própria; mas a formosura é escapadiça ao laboratório: a razão, que buscava estabelecer uma “essência” viva, logra tão-somente alcançar um “conceito” gelado. Num tal empreendimento, a razão nos evoca a imagem da tartaruga correndo inutilmente atrás de Aquiles. O que haveria de acontecer em rigor é que, sendo a beleza – como sugeri a ti – o esplendor dum princípio universal e informal, só seria lícito isolá-la por meio duma potência da alma que também fosse de ordem informal e universal, quer dizer, que se adaptasse ao objeto de sua intelecção. Adiante voltarei a discorrer sobre tão espinhosa teoria.

Entretanto, Elbiamor, menosprezamos a tartaruga? Bem conheço a tua piedade zoológica, e me dói haver deixado o animal tão desprotegido neste cotejo. Sem defesa? Eia! Com o casco da tartaruga Hermes fabricou a lira que animou o entristecido Apolo, depois que lhe roubou os cavalos. Tem algum sentido a fábula? Para teu consolo, tem; porque, assim como a tartaruga se transforma em caixa acústica e recolhe, analisa e devolve ao exterior as vibrações das cordas para que a música chegue a todos os ouvidos, assim procede a razão-tartaruga com as intuições da alma que, por ser de per si incomunicáveis, escapariam ao discernimento, ao discurso e por fim ao idioma dos homens, se com esforço as não recolhesse e elaborasse a razão, em sua caixa de ressonância. É verdade que, ao tomar e devolver as intuições de que te falo, a razão imita o espelho, que só toma e devolve a imagem do objeto que se defronta a ele, e não o objeto mesmo. Por isso, afirmamos que a razão especula (ou espelha) e reflexiona (ou reflete).

Elbiamor, agora sei que ao deleitar-me com o belo conheço “algo”: topo com algo, diretamente e não com a imagem ou o conceito dele, já que minh’alma o vê, apreende-o e deleita-se nele num ato tão instantâneo,

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que não sabe se se deleita porque conhece ou se conhece porque se deleita. Demais, vislumbro a natureza desse “algo” conhecido; atrevo-me a sustentar que toda formosura esplende sobre uma verdade, e que tudo o que é formoso é verdadeiro e amável. Mas ao dizer amável, sobrevêm-me uma dúvida: o que amo no belo, a verdade ou a formosura dele? Advirto agora, Elbiamor, que nem todo o verdadeiro é amável, já que, até onde sei, ninguém desmaiou de amores pelo teorema de Pitágoras. Por outro lado, sei que toda a verdade ilustrada pela formosura atrai-nos até a ela, segundo o movimento do amor. Que devo eu pensar então? Que por detrás do belo conheço o verdadeiro e amo alguma coisa diferente da verdade. Pergunto-me a mim: que existe de amável, fora da verdade? Vejo agora que não é o verdadeiro que é o amável, e sim o cognoscível. Só o bem é amável, porque a vontade se dirige amorosamente em direção ao bem, e o apetite dela só sossega com a posse do bem. Como resolver o conflito da Verdade e do Bem, no ato de apreender a formosura? Conferindo à inteligência o esplendor do verdadeiro e à vontade o amor ao bem. Hás de admitir, Elbiamor, que ninguém amaria o bom se não o conhecesse previamente como tal; em consequência, é necessário que o bem se manifeste antes como verdadeiro. Ele se manifesta a nós na formosura, a qual – segundo a sentença de Tomás – “acrescenta ao Bem um caráter pertencente à faculdade cognoscitiva”. Por isso, ensina Dionísio que “o Bem é louvado como formoso”. Ainda, afirma Plotino que “a formosura está colocada diante do bem” (qual um emissário, acresceria eu de boa vontade).

Assim deduzo que a Beleza, a Verdade e o Bem são três aspectos diferentes do Ser único, não no Ser em si mesmo, mas em nós que o analisamos, correspondendo a três momentos distintos em nossa captação do Ser. Antes do mais, essa diferenciação – obra duma análise que pressupõe três passos e por conseguinte uma sucessão lógica – só existe para a tartaruga raciocinante, já que, como te disse, a preensão do Ser por meio da formosura se dá num ato súbito e direto. Não imaginas quantos fios de barba os filósofos medievais arracaram, porque atentos a essa diferenciação! Eu fiz a mesma coisa, até que encontrei a chave daquele

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misterioso “Intelecto de Amor”, sobre que tanto ponderaram Dante e os Fedeli d’Amore, e que usarei contigo na hora oportuna.

Elbiamor, já agora – se ainda sobrevives aos esforços do animal simbólico – deduzirás facilmente que as criaturas, mediante a beleza, propõem a nós uma verdade na intenção dum bem. Perguntar-me-ás agora: “Como é possível que uma verdade e um bem, relativos que sejam, induzam à alma a uma queda ou descenso?” Já estudamos o movimento natural da criatura: a inocência dela resplandece a nossos olhos como formosura, com que a revestiu Aquele por cuja graça os lírios do campo se vestem melhor que Salomão em toda a sua glória. Estudemos agora o movimento da alma diante das criaturas: talvez consigamos uma resposta.

Capítulo IV – A vocação da alma

No Banquete, após discutir a fase negativa do amor e de sua peregrinação de indigente, que o leva até à beleza e ao bem que não possui, Sócrates é interrogado por Diotima:

- Que de fato busca quem ama o belo?

- Que o belo lhe pertença – responde Sócrates.

- Que será, pois, do homem, uma vez que possua o belo?

Neste ponto Sócrates guarda um silêncio dubidativo; mas Diotima, que conhece bem a natureza moral do aluno, troca o belo pelo bem e repete o interrogatório:

- Que de fato busca quem ama o bem? - Que o bem lhe pertença. - Que será do homem, uma vez que possua o bem? - Esse homem será feliz – declara Sócrates já seguro.

No entanto, mais adiante, observará Diotima que não basta possuir o bem para ser feliz: é necessário, demais, possui-lo para sempre, sem o que o homem não seria definitivamente ditoso. Disso logo vai inferir que “o amor se dirige à possessão perpétua do bem”.

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Elbiamor, esse conceito de felicidade a que chega Diotima servirá de começo a Santo Agostinho, quando certo dia fora buscar a noção de Deus no Palácio da Memória. No livro décimo das Confissões, pergunta:

- A felicidade não é o que todos querem e a que todos aspiram? Donde a conheceram antes, para quererem-na tanto? Não sou apenas eu – acrescenta – nem umas poucas pessoas: todos, absolutamente todos, querem ser felizes.

Agostinho faz a todos esta pergunta: - Onde preferem encontrar a felicidade, na verdade ou no engano? E respondem todos que preferem ser ditosos na verdade. Porque –

acrescenta Agostinho – “muitos vi que queriam enganar, mas nunca vi quem quisesse ser enganado”.

Elbiamor, como não ignoras a relação do belo com o verdadeiro e o bem, compreenderás facilmente a dúvida inicial de Sócrates e a definição de Agostinho, e deduzirás que é a vocação natural da alma que dita os seus movimentos. E a vocação (palavra que significa “chamado”) dela não é senão possuir de modo perpétuo o verdadeiramente bom. Agora bem, esta conclusão traz conseqüências dignas de serem estudadas pela tartaruga raciocinante: quem diz possessão, diz repouso da vontade, uma vez que ninguém se fatiga em busca do que já possui; e quem diz possessão perpétua, diz repouso perpétuo. Atenção, agora. O repouso perpétuo só é possível na possessão dum bem concebido como único, fora do qual não existiriam outros bens; pois, no caso de existirem outros bens, a alma mover-se-ia sem cessar de um (o bem adquirido) a outro (o bem por adquirir), e a vontade assim agitada não teria a quietude ou o repouso com que sonha. Demais, esse bem único haveria de ser infinito, porquanto, se tivesse fim, acabaria a possessão, e com a possessão o repouso da alma. Daí inferirás, Elbiamante, que a vocação da alma é a felicidade perpétua, alcançada pela possessão infinita do bem, e dum bem que necessariamente devemos conceber como Uno e Eterno. Eis como, pela simples noção do anelo que lhe é próprio, a alma consegue atingir a noção dum bem, cujos adjetivos só conviriam a Deus. E eis como, ao descobrir a vocação à felicidade, Agostinho não está longe de topar com a

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essência do Deus que busca no palácio de sua memória – um Agostinho “reminiscente” como Platão.

Já te disse que captar a beleza é captar o mesmo “ser” como verdadeiro ante a intelecção, como bom ante a vontade e, ao fim, como deleitável em sua possessão. Logo, a beatitude também é um “transcendental”: leva-nos da beatitude relativa que nos oferece a criatura participante do “ser” até à beatitude absoluta do Criador, o qual, porque a sua natureza é a de Ser absoluto, infinito e eterno, é também a Beatitude absoluta, infinita e eterna, que a alma vive a buscar. Já a alma, em todos os seus movimentos, gira em torno da vocação qual a esfera ao redor do eixo, de modo que se poderiam definir os erros humanos como respostas equivocadas do homem à vocação a que se destina. De que natureza é o erro da alma? Eis o que me proponho averiguar agora.

Capítulo V – O descenso

Imbuída duma tremenda vocação, a alma que Isidoro de Sevilha nos propôs descende às criaturas. Por que descende? – perguntar-me-ás. Descende porque as coisas criadas a estão chamando com a voz forte de sua formosura. Para que a chamam? Diríamos que a chamam para certa verdade, com a intenção de certo bem. A alma, respondendo ao saboroso chamado, descende às criaturas em descenso de amor, porque necessita ser feliz na possessão do bem. Embora seja legítima a sede dela, comete um erro. E que erro de propoção é o dela! Pois, entre o bem relativo que lhe oferece as criaturas e o bem absoluto com que sonha a alma, existe desproporção infinita.

Ela comete um erro de proporção, e anda cega de amor. Esse amor anda cego porque não abre os olhos da inteligência amorosa, os únicos que lhe facultariam medir as proporções entre bem e Bem e entre amor e Amor. Elbiamante, pela primeira vez denomino-te aqui a Inteligência Amorosa (ou Intelleto d’Amore) que tanto me intrigou certa vez em Dante Alighieri e seus amigos. Deparava eu naquele momento uma

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contradição entre os dois vocábulos – Intelecto e Amor – já que, se o primeiro entrava na faculdade cognoscitiva, o segundo só condizia na faculdade apetitiva e possessiva da vontade. O Intelecto do Amor chegou a parecer-me enfim um modo híbrido, em que duas potências da alma contraíam um raro matrimônio. À força de perscrutar o assunto, perguntei de mim para mim se não existiria uma “forma de conhecimento” que participasse ao mesmo tempo da Inteligência e da Vontade, ou seja, que ao conhecer o objeto, simultaneamente o possuísse; ou melhor ainda, uma “forma de conhecer” pelo qual o conhecimento e a possessão do ser mesmo (e não da imagem conceitual dele) se dessem num único ato. Elbiamor, não tardei muito em advertir que a essa forma sui generis de conhecimento pertencia, justamente, a intelecção pela beleza; desde então os Fedeli d’Amore passaram lá de longe a cumprimentar-me.

Agora bem, o Intelecto do Amor é, no homem, a imagem e a semelhança do Deus inteligente e amante que o criou. Essa imagem e semelhança é a “forma do Criador” impressa no homem. Logo, ao afastar-se de tal forma, o homem perde ao mesmo tempo o selo de sua nobreza original, o caminho de retorno ao Bem absoluto e, portanto, a única garantia de bem-aventurança; de sorte que, “por amar a beleza da criatura, distrai-se (ou afasta-se, ou distancia-se) o homem da forma do Criador”. Que devemos entender por tal distanciamento? Se a forma humana é a imagem e semelhança do Criador, ao afastar-se da própria forma o homem se afasta, não apenas do Criador (que é o original), mas também de si mesmo (que é a imagem). Ao afastar-se de si mesmo, o homem deixa de ser ele mesmo para converter-se em algo que não é ele mesmo. Em que se converte o nosso personagem? A natureza do amor no-lo dirá.

Elbiamante, voltemos ao passo de tartaruga. Por quê? – perguntar-me-ás. A alma descendente que Isidoro nos propõe não estaria em descenso se exercesse a intelecção amorosa: ela se limita a praticar o movimento do amor, e não a inteligência do fim que a move; por isso, está agora vagando no labirinto dos amores enganosos. Em que se converte o nosso herói ao desertar, junto com a sua forma, a forma do Criador? Ensinavam os antigos que amar não é tão-somente possuir o amado, mas também é ser

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possuído: o amor não apresentaria a virtude unificante que se atribuía a ele, se não exigisse uma reciprocidade unitiva. O amante verdadeiro cuida em assemelhar-se ao amado, e tende a substituir a própria forma pela forma do que ama, num abandono de si, pelo qual o amante se converte no amado. Pois bem, a alma possui mediante a inteligência, e é possuída graças ao amor. Daí que seja lícito descender ao inferior, pela inteligência, sem comprometer neste descenso a forma; porém, comprometê-la-á se, por amor, descende às coisas inferiores, porque amar é converter-se no amado.

Ocorre-me agora uma dúvida: se esta lei do amor é universal, e se existe um necessário encadeamento amoroso que parte do Princípio Criador (em sua excelsitude gloriosa) até à mais ínfima das criaturas – como os superiores amaram os inferiores sem desertar a própria forma pela forma do que amam? Porque a lei da caridade exige, por um lado, que o superior ame o inferior, ilumine-o e conduza-o; por outro lado, não admite que o superior incorra em diminuição ou rebaixamento de si mesmo. Refletindo nisso, Elbiamor, advêm-me uma resposta: o “estilo amoroso” do superior consistiria em fazer-se amar pelo inferior, de tal modo que o superior não se rebaixe amorosamente ao inferior, a caminho de perder-se, mas antes que o inferior se eleve amorosamente ao superior, a caminho de ganhar-se. Como o superior faz-se amar pelo inferior? Dando-se a conhecer, para que os inferiores, conhecendo a excelência dos superiores, amem-nos na busca do conhecimento e possuam-nos no amor. Assim ama o Criador às criaturas: dando-se a conhecer. Atrever-me-ia a afirmar que a Sua arte de amor é tão-só essa. Salvo uma exceção, Elbiamante. Qual? Um dia o Criador, na pessoa do Verbo, porque amava o homem, assumiu inteiramente a forma do que amava e se fez Homem. Mas aquilo, Elbiamada, foi um escândalo do amor divino.

Deixemos por ora o estilo de amor que os superiores usam com os inferiores. Adiante retomaremos o assunto, pois o homem, instituído “rei da criação”, exerce ante as criaturas inferiores uma superioridade que lhe confere, conforme veremos, um dever de amor para com elas que eu classificaria de transcendental. Voltemos à pergunta: em que se converte o

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nosso personagem ao abandonar a própria forma e afastar-se de si mesma? Esse homem assume a forma do que ama. Por isso, escreve Agostinho: “Se amas terra, és terra; se céu, és céu; se a Deus, és Deus”. Ao jogar com a forma, o nosso personagem em verdade joga-se demasiado: a criatura lhe oferece um bem relativo, sobre que a alma repousa um só instante; porque não há proporção entre a sua sede e a água com que a brindam, e porque passa a reconhecer bem a sede quando a água não a desaltera. O que não lhe dá um amor, busca-o noutro; a alma fica como dividida na multiplicidade dos amores, com que malogra a sua vocação de Unidade; acorre dum amor ao outro, e se desassossega atrás deles, com que malogra a sua vocação de paz ou repouso.

Capítulo VI – A esfinge

Disse Plotino, comentando essa odisséia da alma: “Se nos é possível observar as belezas terrenas, não nos é útil persegui-las, mas aprender que são imagens, vestígios e sombras (da Beleza Primeira). Se perseguíssemos as imagens, porque as consideramos realidade, seríamos como aquele homem (Narciso) que, desejando alcançar a própria imagem refletida n’água, fundiu-se com ela e morreu”. A alma busca o seu destino, e perde-se na imagem. A alma deve perder-se: essa é, Elbiamante, a sua vocação gloriosa; mas não deve perder-se na imagem de seu destino, mas no destino verdadeiro e final. Por isso, há uma segunda versão da lenda de Narciso, que contar-te-ei adiante e a boas horas.

Será que as imagens do mundo nos atam um laço maligno? De modo nenhum, porquanto já consideramos a beleza da criatura como o esplendor duma verdade cujo domínio implica um bem. Tornarás a perguntar-me: que verdade e que bem nos propõe a criatura? Elbiamor, ensinavam os antigos mestres que ao homem não é dado conhecer neste mundo a Divindade, que não seja por enigmas e através dum véu. Eis o saber que nos propõe a natura criada, a qual, segundo declara Jâmblico, expressa o invisível com formas visíveis e de modo simbólico. Ensina Dionísio que a alma, por moção direta e própria, volta-se às coisas

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exteriores “e as utiliza como símbolos compostos e numerosos, a fim de por elas remontar à contemplação da Unidade”. Sobre alguns homens, afirma São Paulo que a incredulidade deles é inexcusável, porque “desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras.”

De tudo isso infere-se que as criaturas nos propõem uma meditação amorosa e não um amor. Uma meditação amorosa de quê? Das imagens e símbolos a que fielmente se reduzem todas as criaturas, se as fitarmos em suas facetas inteligíveis. Qual o objeto de tal meditação? O ir conhecendo o invisível pelo visível; o ir lobrigando o rosto da Divindade pelas imagens e símbolos que a revelam e escondem ao mesmo tempo; o remontar à contemplação da Unidade criadora e eterna, pela escada do múltiplo, criado e perecível. Entenderás agora, Elbiamor, que as criaturas nos incitam a um começo e não a um fim de viagem; e que a Criação nos propõe a verdade em enigmas, como a Esfinge que Édipo matou nas cercanias de Tebas. Outro mito? – dir-me-ás. Outro mito de fábula instrutiva, como todos os mitos, porque a Criação é também esfinge. Pois bem, a Esfinge, monstro multiforme, retém os viajantes e lhes propõe um enigma: se os viajantes o não resolvem, a Esfinge, reza o mito, os despedaça e devora.

Assim faz a Criação: despedaça e logo devora os viandantes que não resolvem o enigma dela: despedaça-os na multiplicidade dos amores; devora-os, porque amar é incorporar-se na forma do que se ama. Mas o herói tebano matou a Esfinge. Como? Resolvendo o enigma. Será necessário imitar Édipo? “À força de amar as coisas criadas – disse Agostinho – o homem escravizas-se às coisas, e essa escravidão impede-o de julgá-las.” Com esta citação, finalizo o meu descenso, pois que, tão logo o homem requeira o bordão dos juízes, começará a ascensão da alma pela beleza.

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Capítulo VII – O juiz

No capítulo anterior deixamos o homem como dividido e devorado pelas criaturas: deixamo-lo no ventre da Esfinge. Nessa posição está ele contagiado duma “anomalia” dupla: está dividido, ele, que sendo imagem e semelhança do Criador, deveria ser imagem e semelhança da Unidade criadora; e encontra-se devorado pelas criaturas, ele, que sendo a “entidade central” de seu mundo, deveria ser para as criaturas uma devoradora imagem e semelhança do Ser Absoluto que a tudo converte na poderosa Unidade. Tu, Elbiamor, a quem prometi uma ascensão da alma pela beleza, hás de estar meditando agora nas armadilhas da segunda jornada; pois já entendes que precisarei: 1º dar um vomitório à Esfinge, para que ponha o nosso dividido personagem para fora; 2º reunir e soldar os pedaços esfrangalhados; 3º alçá-lo à noção da Beleza Divina, como quer Isidoro no segundo momento da sentença que vou parafraseando.

Já te disse que pela inteligência a alma possui, e que pelo amor, é possuída. Depois, disse-te que a criatura nos propõe uma meditação amorosa e não um amor, um começo e não um final de viagem. Pelo que vistes no descenso, já conheces a sorte da alma que tenta reposar no amor das criaturas, considerando-as um fim. Acrescentarei agora que, com fazê-lo, a alma incorre em três desequilíbrios ou injustiças: injustiça com as criaturas, ao exigir delas, por violência, o que as criaturas não podem dar; injustiça consigo mesma pois, ao descender amorosamente às criaturas inferiores, a alma acaba por submeter-se a elas, com que inverte a hierarquia natural e transtorna uma ordem ontológica estabelecida; e injustiça com a Divindade que instituiu a hierarquia violada e a ordem danificada.

Consideremos agora, Elbiamor, a excelência ontológica do homem, e digamos o que ele deve ser para as criaturas inferiores que partilham de seu mundo. Já o sugeri a ti em dois momentos desta glosa: 1º quando, ao enunciar o dever amoroso do superior para com o inferior, disse que o homem detinha a superioridade sobre as criaturas inferiores, e portanto

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um dever amoroso para com elas; 2º quando afirmei que o homem, como “entidade central” de seu mundo, tinha de ser para as criaturas inferiores imagem e semelhança do Ser Absoluto, que a tudo centraliza em sua admirável Unidade. O homem, portanto, é (ou deve ser) um ente centralizador de seu mundo: a missão dele ante as criaturas inferiores é restituí-las, de certo modo, à Unidade; porque também as criaturas inferiores que o rodeiam, como a rei, aspiram neste mundo à Unidade originária. Como a restituição à Unidade se consegue apenas pelo intelecto, as crituras não intelectuais necessitam que um intelecto as assuma, de certo modo, e lhes sirva de ponte; esse intelecto, Elbiamor, é o do homem. Neste passo poderíamos afirmar que o homem é (ou deve ser) o pontífice das criaturas terrenas, ou seja, quem lhes construa uma ponte em direção à Unidade. Como as criaturas, assim reportadas à Unidade pelo homem, justificam-se e descansam nele, podemos afirmar que o homem é (ou deve ser) o “sétimo dia” das criatuas, ou o seu “domingo”.

Sem dúvida, o Gênesis se refere a esse aspecto do homem numa de suas passagens mais enigmáticas: Jeová reúne todas as criaturas e as defronta com Adão, para que Adão as nomeie; Adão lhes dá a elas os nomes verdadeiros. Pois bem, se Adão as nomeia com verdade, é porque as vê em seu Princípio criador, ou seja, na Unidade. É lógico, Elbiamante, que assim seja, pois o Adão que as está vendo e nomeia é o Adão que ainda não caíra: é o Adão em “plenitude edênica”. Existem três notas muito sugestivas no episódio: a) é Jeová em pessoa quem, ao conduzi-las até ao homem, faz as criaturas irem ao seu pontífice natural e conhecerem-no; b) pela primeira vez Adão obra como pontífice das criaturas, ao nomeá-las a partir relação delas com a Unidade criadora; e c) as criaturas, reportadas à Unidade no e pelo entendimento adâmico, estão justificadas. Esse ato de justiça é o ato que as criaturas esperam do homem. Eis o que deve ser o homem para as criaturas: um juiz.

Para sê-lo, o homem precisa conhecê-las verdadeiramente, como o Primeiro Adão. Perguntar-me-ás agora: se o homem é (ou deve ser) para as criaturas pontífice e juiz, que são (ou devem ser) as criaturas para o homem? Dentro da ontologia em que se manifesta o Ser Absoluto, o

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homem foi criado “pouco menos que um anjo”. Pois bem, dizem que os anjos vêem a Deus facie ad faciem, quer dizer, face a face: vêem-n’O diretamente, sem espelhismos. Como o vê Adão, “pouco menos que um anjo”, posto no centro do Paraíso? Adão, feito apenas um grau abaixo dos anjos, vê a Deus, ou seja, o seu Princípio, mediante um só espelho intermédio; tal espelho é o que lhe oferecem as criaturas edênicas. Basta ao primeiro Adão fitar-se no espelho das criaturas para ver-se a si, duma só vista d’olhos, em seu Princípio criador: é o único trabalho que Deus lhe impõe, uma mera transposição da “imagem” ao “original”, que é Deus mesmo. Ao realizar a fácil tarefa, Adão cumpre o único trabalho que lhe impusaram: “cultivar o Paraíso”. A criatura é para ele um claríssimo espelho da Divindade; naquele estado paradisíaco, nem a criatura distrai o homem da forma do Criador (que lá se está mostrando incessantemente), nem o homem se distrai da visão d’Ele (porque vê a imagem da Divindade naquele espelho único, e vê a própria Divindade através da imagem).

Elbiamor, a queda do Primeiro Adão significou o “distanciamento” do Paraíso, quer dizer, a perda da posição central que ocupava. Esse distanciamento interpôs uma distância cada vez maior entre os homems e o espelho central do Divino. O intelecto adâmico se obnubilou gradualmente; pois, entre os olhos dele e o Divino se foram interpondo outros espelhos que já não lhe ofereciam uma imagem clara da Divinade, senão imagens de imagens. Dizes que não estás entendendo? Elbiamor, supõe que Adão, no estado paradisíaco, vê a Divindade refletida num espelho de ouro: essa é a imagem pura e simples da Divindade. Supõe que, já afastado do Paraíso, agora vê essa imagem, mas num espelho de prata que capta a imagem do espelho de ouro: essa é a imagem da imagem. Supõe ainda que, ainda mais arredado, vê a imagem num espelho de cobre que a captou do espelho de prata, o qual, por seu turno, captou-a do espelho de ouro: essa é a imagem da imagem da imagem. Supõe enfim que Adão, em afastamento crescente, vê a imagem num espelho de ferro, que a captou dum espelho de cobre, e este a do espelho de prata, e este último a do espelho de ouro: essa é a imagem da imagem da imagem da imagem.

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Poderás entender agora quanto se borrou e escureceu a primeira imagem, refletida em tantos espelhos. Entenderás as penúrias do último Adão (tu, eu, nós), obrigado a perfazer, não só uma transposição da imagem ao original divino, como na era paradisíaca, senão muitas e laboriosas transposições e espelhismos. A Criação se lhe foi tornando intrincado enigma que só se esclarece mediante trabalho penitencial do intelecto. Deve ele cultivar agora, não um suave paraíso de delícias, mas uma terra dura que lhe reclama o suor do rosto, quer dizer, a fadiga do entendimento em trabalhosas especulações. Apesar de tudo, Elbiamor, o homem ainda ocupa a posição central de seu mundo, como pontífice e juiz. A criatura ainda lhe mostra ao homem a imagem da Divindade, embora em meio a névoas que decerto não estão nela, mas no homem decaído.

Capítulo VIII – O microcosmos

Elbiamor, apresentei a ti o homem como pontífice das criaturas: aquele que as reporta à Unidade e as reintegra, de certo modo, ao Princípio Criador delas; apresentei a ti as criaturas como espelhos da Divindade, ofertos à especulação do homem. Portanto, diria eu que a criatura, em si, é uma realidade “a meias” e como em evolução até ao homem: uma evolução que termina quando a criatura alcança plenitude ao existir numa inteligência humana, que a está reportando ao Princípio Criador. O homem, em si, é uma realidade “a meias” e como em evolução até às criaturas: uma evolução que termina quando o homem as tenha “devorado” e “assimilado” à entidade centralizadora, especulado com elas e obtido os frutos dessa especulação. Assim são o homem e a criatura complementares. Atrevo-me a declarar agora que, somente após cumprida essa interpenetração, este mundo vem a ser uma realidade inteligível completa, integrada pelo e no homem que se constitui assim num verdadeiro microcosmos.

Elbiamor, neste feliz estado, nem o mundo que o rodeia já é coisa exterior ao homem, nem já é o homem entidade exterior ao mundo que o

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rodeia. Mas, cuidado! Nem por isso as criaturas assimiladas no homem perdem a exterioridade: as criaturas, assim reportadas e devolvidas ao Princípio num entendimento humano, sempre conservam a inalienável e sólida realidade exterior, em que pese todos os idealismos, dúvidas e agnosticismos de ontem e hoje. Dir-me-ás: como poder-se-ia entender que as criaturas, devoradas e assimiladas pelo homem, ainda conservem a realidade externa? Responderei com um exemplo. Elbiamor, supõe que te presenteiem com um livro, o qual lês a fundo e cujos ensinamentos assimilas plenamente. Esse livro já é parte de teu ser, porquanto o devoraste e assimilaste à tua essência intelectual; contudo, o livro guarda por inteiro a realidade exterior numa estante da tua biblioteca, esperando outros leitores que por sua vez o leiam e assimilem. Mais ainda, e eis o cerne do exemplo: a única finalidade do livro, se bem o vês, é a de ser incorporado ao entendimento do leitor: enquanto não o incorpore o leitor ao entendimento, o livro é, no tocante ao possível leitor, uma realidade em potência e como em suspensão; o leitor possível, no tocante ao livro que ainda não leu, também é, e até que o leia, uma realidade em suspenso e em possibilidade. Pois bem, a Criação inteira é um livro pensado e escrito pelo Verbo admirável, prestes a uma leitura do homem.

Retornando ao personagem de minha glosa, dir-te-ei que a Esfinge vomitá-lo-á tão logo assuma ele a função de juiz e julgue que não é o homem quem deve ser devorado pela criatura-esfinge, mas antes a criatura-esfinge devorada pelo homem. Assim que o faça, Elbiamor, a esfinge devolverá a presa e revelará a ela, em acréscimo, o segredo. “Porque as coisas – escreve Agostinho – só respondem a quem as interroga como juiz.” Que respondem as criaturas, quando as interrogam destarte? Qual o segredo que revelam ao juiz e ocultam ao escravo delas? O juízo pela formosura é um juízo de amor, e este amoroso juízo requer duas noções que se comparem e confrontem: a noção amorosa do juiz, enquanto Amante, e a noção amorosa das criaturas, enquanto Amadas. Pergunto de mim para mim: se a alma requer agora o bordão do juiz – com que noção de amor julgará as criaturas? Recordo que a vocação da alma é tão-somente a felicidade perpétua alcançada no repouso que a

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possessão do Bem absoluto, infinito e eterno dá. A alma julgadora, fiel à tremenda vocação, descende às criaturas e as interroga; a alma interroga sobre o norte do próprio destino. Mas as criaturas a respondem com a noção dum bem relativo e mortal. A desproporção entre ambos os pólos do juízo é, pois, incomensurável; e tal desproporção é o que nos revelam incessantemente as criaturas, tão logo cotejamos a nossa vocação amorosa do Infinito com o amor finito que elas nos propõem a nós.

Ao revelar-nos essa desproporção, as criaturas limitam-se a confirmar a cada prova a nossa sede infinita; como tal sede é o segredo do homem, empolgo-me a dizer agora que a Criação (quer Esfinge quer Livro), amorosamente interrogada ou lida, revela a nós, não o segredo dela, mas o segredo nosso. Pois bem, ou a alma já conhece a magnitude da própria vocação ou a não conhece ainda. Se porventura a conhecesse, entenderia sobre proporções e seria juiz: em cada experiência veria confirmada e esclarecida a sua vocação gloriosa, e ascenderia então pela escada da formosura terrena. Mas a situação do nosso herói não é essa: é verdade que segue a vocação, mas a segue às escuras, presa fácil da ilusão e do engano, porque ignora a magnitude do próprio desejo e porque a ignorância das magnitudes a impede de julgar sobre proporções. O problema do nosso personagem é um problema de “aritmética amorosa”; não saberá julgar amores até descobrir o seu número de juiz. Quem lhe revelará o número? O amor pelas criaturas, “para que se volte o homem a Deus pelos mesmos vestígios que o apartaram d’ELE”.

Capítulo IX – A ascensão

Dirige-se a razão à verdade reduzindo as contradições pelo absurdo; já a intelecção amorosa busca a verdade eliminando as contradições pelo desengano. Elbiamante: segundo o que já te disse, o intelecto de Amor conhece, porque é intelecto, e possui o conhecido, conforme o exige a natureza do amor; é um saber que implica receber o sabor da coisa na língua da alma, pois o vocábulo “saber” tem aqui o seu antigo e verdadeiro sentido de “saborear”: possuir o sabor da coisa é possuir a

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própria coisa, e não o fantasma conceitual dela. Assim é, bem o sabes, o conhecimento pela formosura; é experimental, direto, saboroso e deleitável: conhecer, amar e possuir o conhecido se solucionam num só ato. Esta via de amor é a do nosso herói: não é em vão que lhe dou esse título, já que a palavra “herói” deriva de Eros, antigo nome do amor.

Pois bem, se ainda não conhece a desproporção amorosa que as criaturas revelam a quem lhes saiba julgar, o nosso herói sai de cada experiência insatisfeito consigo e desenganado com a criatura: em cada insatisfação do desejo seu, vive um fracasso íntimo de amor; cada fracasso amoroso sempre traz consigo um início de meditação desconsolada, e é a meditação do destino a que desponta e cresce. Por sua vez, cada novo desengano com as coisas não apenas magnifica a distância intermédia entre o seu desejo pelo Bem Absoluto e o bem relativo que a criatura lhe propõe, mas também diminui, por eliminação, o número de bens terrestres que requestam o seu apetite. Com isso, a alma vê aumentar, por um lado, a magnitude de sua vocação amorosa, e vê encurtar, por outro lado, a sua possibilidade terrena na ordem prática do amor. Eis que a alma já quer entender algo de proporções, num germinar de amorosa aritmética; e o bordão do juiz já está reverdecendo entre as mãos dela, num germinar de amorosa justiça. Assim é como a alma, num decréscimo de amores à força de desenganos, vai-se libertando da escravidão em que a retêm as coisas: destarte livra-se ela da Esfinge devoradora; assim recolhe os seus pedaços e reconstrói a maltratada unidade, retornando a si mesma, ou seja, à forma que afastara por amor à criatura, e reassumindo essa forma que, segundo dissemos, é a imagem e semelhança – que tem – do Criador.

Elbiamante, a alma respondera à solicitude amorosa de cada bem com dois movimentos: um de ida e outro de volta. Mas eis que aqui se detém ela, dubidativa e absorta; esta primeira imobilidade da alma exige-nos grande atenção. A sua marcha a levou por caminhos ilusórios, e já não anda: está com o pé pregado, a exemplo dos juízes. Estendeu a mão a bens ilusórios, e agora a recolhe: está com a mão pregada dos juízes. Está imóvel e de pé: julga e julga-se. Elbiamor, a quem julga? O seu juízo recai sobre as coisas que a possuíram, e como o juiz está imóvel e não descende

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até a elas, as coisas ascendem até ao juiz para serem julgadas. Que julga sobre si o juiz? Julga a sua vocação de amor, frustrada e nunca silenciosa. Este chamamento íntimo, que vinha de afogar-se no tumulto dos chamados exteriores, ressona como nunca, magnifica-se e esclarece-se agora no ouvido da alma. Gira a alma sobre si mesma para escutá-lo melhor; e ao girar sobre si recobra o movimento próprio – o movimento “circular” –, de que desertara, a fim de entregar-se aos movimentos “retilíneos” que a levavam até às criaturas. A alma assim circunscreve a sua meditação amorosa, e a continua, já não em latitude, antes em profundidade. O teor do juízo d’alma poderá ser o seguinte:

“Escuto chamarem a mim, e penso que todo chamado vem do chamador. Digo entre mim, então, que pela natureza do chamado é possível conhecer a natureza de quem chama.

Se o que escuto é vocação ou chamado de amor, Amado é o nome de quem chama; se é de amor infinito, Infinito é o nome do Amado.

Se a minha vocação amorosa inclina-se à possessão do bem único, infinito e eterno, Bondade é o nome de quem me chama.

Se o Bem é enaltecido como belo, Beleza é o nome de quem me chama.

Se Beleza é o esplendor do verdadeiro, Verdade é o nome de quem me chama.

Se essa Verdade é o princípio de todo o criado, Princípio é o nome de quem me chama.

Se agora reconheço o meu destino ‘final’, na posse perpétua do Bem assim enaltecido e conhecido, Fim é o nome de quem me chama

Como todos esses nomes assinalados ao chamador só convêm à divindade, Deus é o nome de quem me chama.”

Eis aí como o nosso herói encontrou-se a si pelo caminho da beleza criada: encontrou-se a si como amante. Eis aí como encontrou em si, junto com a noção da Beleza Divina, o norte verdadeiro da vocação

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amorosa e da verdadeira figura do Amado. Elbiamor, o nosso personagem, desconectado do Princípio, era até há pouco mero fantasma; as criaturas, que valorizara em si mesmas e não a partir do Princípio que as criou, também apresentavam-se a ele como fantasmagorias; em verdade, fora o nosso personagem um fantasma debatendo-se entre fantasmas. E em verdade, em verdade, quem se subtrai ao princípio de si é um ente fantasmagórico. Que me diria sobre a tua imagem refletida no espelho, caso ela acreditasse que fosses tu o original ou princípio necessário dela? Pensa acerca disso e responde-me logo.

Capítulo X – O “sim” das criaturas

Agora que o nosso personagem está numa condição mais confortável, as criaturas reclamam novamente a minha atenção; pois tenho medo de haver incorrido em injustiça com elas, ao considerá-las apenas no movimento negativo com que respondem à solicitude amorosa da alma. O “sim” das criaturas é tão-somente o “não” que dão como resposta, quando se descende até a elas em descenso de amor? Perguntando entre mim, recordo-me da beleza criada: o sol, a lua, a água e as avezinhas de Francisco de Assis; ou a ontologia de Raimundo Lúlio, que vai da pedra muda até aos nove coros angélicos. À mera evocação de tanta formosura, fico tentado em terminar em poema aquilo que se iniciou em cinzelada paráfrase.

Já te disse, Elbiamor, que as criaturas respondem com um “não” ao amante móvel que descende a elas; mas ao juiz imóvel que as interroga, dão-lhe um “sim” cuja natureza tratarei de esclarecer. Agostinho também buscou a seu Deus nas criaturas. “Perguntei à terra – diz ele – e ela me respondeu: não sou o teu Deus. Perguntei ao mar, aos seus abismos e seres animados que ali se movem, e todos me responderam: não somos o teu Deus; buscai-o mais acima.” Negam as criaturas serem o destino final do homem, quando as interroga o homem sobre o próprio destino. Não se limitam a negá-lo, mas chegam a lhe dizer: buscai-o mais acima, que é já uma afirmação; não apenas convidam-nos a um ascenso, mas se oferecem

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de mais a mais como degraus. Porque, segundo afirmamos, as coisas nos chamam com a voz da beleza, e esse chamado traz em si a intenção dum bem.

- Todo chamado vem dalguem que chama, diz de si para si o nosso herói.

E dizem as criaturas a quem sabe ouvi-las: - Somos o chamado, mas não o que chama. Negando-se a si as criaturas, afirmam o Chamador; afirmam-no em

seus Nomes Divinos, pois elas dizem a quem contempla a formosura delas:

- Somos belas, mas não somos a Beleza que nos criou Belas. A quem medita a sua verdade, ensinam: - Somos verdadeiras, mas não somos a Verdade que nos criou verazes.

A quem prova de seus bens, afiançam:

- Somos boas, mas não somos o Bem que assim nos criou. Eis aí como elas afirmam “o que chama”: afirmam-no com os seus

gloriosos nomes de Beleza, Verdade e Bem; afirmam-no como Princípio, chamando-o “o que nos criou”; e o enaltecem como Fim, dizendo “somos chamados de belo, mas não a Beleza que chama”.

Elbiamor, qual no Paraíso, segue a criatura mostrando ao homem a imagem do Belo Primevo. Quem as interrogue, se for juiz equitativo, alcançará o “sim” gozoso que dão as criaturas quando negam-se a si. As criaturas unirão as vozes múltiplas e díspares, para construir a imagem da unidade na multiplicidade a que chamamos acorde: ou melhor, o nosso personagem, em face das criaturas múltiplas, verá a Unidade na multiplicidade; e a multiplicidade das criaturas, longe de perder valor ante os seus olhos, há de adquirir a plenitude de valor, pois, aos olhos de nosso herói, as criaturas aparecerão reportadas ao Princípio criador e unificadas n’ELE. Quero dizer que o nosso herói, depois de ter visto a Unidade na multiplicidade, há de agora ver a multiplicidade na Unidade. Só então lhe será dado a entender, junto com Agostinho, que a beleza é o esplendor da ordem ou da harmonia ou da justiça (splendor ordinis).

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Capítulo XI – Os três movimientos da alma

No transcurso de minha glosa, a alma viandante que propus a ti cumprira certas evoluções e movimentos cuja descrição ordenada agora nos convém. Dionísio, depois de referir-se aos três movimentos do anjo, também diz que a alma move-se com triplo movimento: circular, oblíquo e direto.

“Pelo movimento circular – ensina Dionísio – a alma deixa as coisas exteriores, volta-se sobre si mesma e concentra as suas faculdades nas idéias de unidade: encerrada então como num círculo, não é fácil extraviar-se. O oblíquo é o movimento do raciocínio e da dedução, e por ele a alma se ilustra na ciência divina, não pela intuição e na unidade, mas em virtude de operações complexas e necessariamente múltiplas. O movimento é direto quando a alma se volta às coisas exteriores e as utiliza como símbolos compostos e numerosos, a fim de por eles remontar-se às idéias de unidade.”

Elbiamante, se quiseres buscar uma aplicação dos três movimentos ao assunto de que estou tratando, poderías meditar o seguinte: quando a alma de nosso herói gira sobre a sua vocação amorosa, quer dizer, em torno de seu anelo pelo Bem Absoluto, é possível afirmares que segue um movimento circular: a alma, consciente ou não de sua tremenda vocação, não deixa nunca de cumprir esse movimento, ansiosa por circunscrever em si mesma a noção de Unidade que, saiba-o ela ou não, é o Princípio e o Fim de sua viagem. Porém, como se move às cegas, porque não consegue que a Unidade que busca esclareceça-se para si, a alma de nosso herói se dirige às coisas exteriores para interrogá-las, realizando assim um movimento direto: já dizemos que as coisas, se bem interrogadas, respondem a ela com uma imagem da Unidade na multiplicidade. Quando a alma “medita” a resposta das criaturas e a reporta a sua vocação, realiza um movimento oblíquo, enviesado, indireto: é o movimento da tartaruga que raciocina e deduz. Enfim, trazendo consigo os frutos da especulação, a alma retorna ao movimento circular, desejosa de ver “no próprio centro”, já não a imagem da Unidade que observou nas criaturas, mas o original da imagem, ou seja, a Unidade mesma, em cuja intuição e

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possessão verdadeiramente saborosa já entende a alma que se constituiria o termo da viagem e o começo do repouso na eterna bem-aventurança.

Mas, Elbiamor, não acredites que, embora utilize os melhores trampolins, muitos realizem facilmente o salto da imagem ao original. Geralmente a alma, sem lográ-lo, retorna ao movimento direto, ao oblíquo e ao circular: não abandona esse triplo movimento que constitui, diria eu, o seu “passo normal” neste mundo.

Perguntar-me-ás agora: como é possível conceber três movimentos que sejam tão distintos e se resolvam ao final num só apenas, o circular, já que, segundo afirmavas, era este o movimento próprio à alma?

Respondo a ti que não deves considerar os três movimentos como separados e independentes, mas como que integrados os três num só, que seja ao mesmo tempo circular, direto e oblíquo, e realize-se “sem abandonar o círculo”; esse movimento triplo e único é o da linha espiral. Distancia-se a alma de seu centro e descende até à criatura seguindo a “expansão” ou o desenrolar duma espiral centrífuga. O movimento detém-se na criatura, e num instante assimila-se a ela. Então, ao esclarecer

por meio da criatura (e num enviesamento oblíquo) a magnitude e a índole de sua vocação, a alma recobra o movimento circular e prossegue nele, porém agora dobrando-se sobre si mesma e acercando-se outra vez de seu centro, conforme a “concentração” duma espiral centrípeta que parte donde a primeira terminou e termina onde a outra se iniciou. Se bem observas no desenho, as duas espirais perfazem um só movimento por que a

alma se desconcentra para ir até às coisas exteriores, estudá-las em obliquidade, e tornar a concentrar-se, uma e outra vez, sem abandonar não obstante os âmbitos do círculo. Dever-se-á entender esta “mecânica da alma” simbolicamente (não preciso lembrar disso), em simples analogia com os mecanismos corporais.

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Elbiamante, se observares o meu desenho, comprovarás que, já na “expansão”, já na “concentração”, a alma não abandona o giro em torno do centro, indicado na figura da cruz. Perceberás que o movimento é incessante ou sem solução de continuidade, tanto na direção centrífuga quanto na centrípeta, segundo corresponda a toda criatura, quer dizer, a tudo que se encontre fora do Princípio Criador, que é o único e necessário “motor imóvel” e a que somente cabe, por fim, a inamobilidade absoluta. Hás de observar também que nem numa nem noutra das espirais a alma consegue tocar o centro, e é natural que a não toque, porque se alcançara o centro, terminaria para ela toda moção, e o fim do movimento custar-lhe-ia o repouso e a morte. Que morte? Que repouso? – dir-me-as.

Elbiamor, o centro da minha figura geométrica, a partir da qual tracei as duas espirais da alma, é simulacro do Motor Imóvel ou Princípio Criador, que a tudo traça ou cria sem criar-se a si mesmo, que a tudo move sem sair da eterna imobilidade. Logo, esse ponto central é também imagem da imobilidade ou repouso absoluto a que aspira a alma. Já vimos uma vez a alma de nosso herói como detida na criatura, e padecendo, com o abandono a própria forma, uma verdadeira morte. Poderia acontecer que agora, detendo-se diante de seu centro e com olhos nele cravados, a alma veria de repente a Beleza Divina, já não em imagem mas no original, e que ao fitá-la concebesse um amor tal por ela que, saindo novamente de si mesma, converter-se-ia no que ama. Adentraria o centro (que é o lugar das possibilidades) e já se não moveria: eis o repouso dos repousos. Abandonaria a forma em prol da do Amado que do centro a chama: eis o amor dos amores. Morreria para si a fim de viver n’Outro: eis a morte apetecida.

Mas, Elbiamor, a felicidade de ver a Beleza Primeira no centro da alma não é fácil de alcançar, nem tampouco difícil. Para dizer a verdade, não sei se é fácil ou difícil, pois neste ponto acaba-se a minha ciência, tal como se acabou na alma do herói a possibilidade da “arte humana”. Mais adiante, a ciência deverá ceder lugar à paciência, e a “arte humana” há de cessar as suas operações para oferecer-se às operações da “arte divina”. Dir-te-ei, contudo, que para alcançar o centro e converter-se ao Amado Infinito, há

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de sentir a alma necessariamente a “força de atração” do Amado; se a alma é atraída, é porque dalguma maneira se tornou atraente aos olhos do Supremo Belo.

Retorno aqui à fábula de Narciso. Elbiamor, existem dois Narcisos. Um, inclinado às águas exteriores, só enxerga o reflexo da própria imagem nelas, apaixona-se pela imagem e, ao tentar alcança-la, morre por amor de si mesmo: é um Narciso que “não transcende”. Porém existe outro Narciso que “transforma-se em flor”: inclinado às águas, este Narciso feliz já não enxerga a própria imagem, mas a imagem do Outro; quero dizer que ele se despe da forma passageira em favor da forma eterna daquele que o ama: é um Narciso que “transcende”. Em suma, conforme o que já viste, todo amor equivale a uma morte; não existe arte de amar que não seja arte de morrer. O que importa, Elbiamor, é o que se perde ou ganha ao morrer.

Capítulo XII – O mastro

Ao fim do tratado Do Belo, Plotino aconselha o retorno à doce pátria donde a Beleza Primeira resplancede sem começo nem fim; e assinala, como modelo do viajante, o prudente Ulisses “que se livrou de Circe, a feiticeira, e de Calipso, não consentindo em permanecer com elas, apesar do gozo e da formosura que na companha delas encontrava”.

Elbiamor, hás de recordar que Circe, revelando ao herói os perigos que ainda o aguardavam, adverte-o primeiro das Sirenas que atraem com cantos e despedaçam o viajor que as escuta e descende até elas. “Já quanto a ti – declara-lhe a feiticeira –, é permitido escutá-las, desde que acorrentes pés e mãos ao mastro do navio: assim poderás gozar sem riscos de suas vozes harmoniosas.” Ulisses, porém, deve cobrir com cera o ouvido de seus companheiros, a fim de que não escutem nem sucumbam.

O perigo, como vês, não está em escutar as Sirenas (ou em “conhecer”, pelo que dizem), mas em dirigir-se a elas em descenso amoroso. Ulisses, o único navegador atado ao mastro, tem de escutá-las. Por quê? Porque as

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Sirenas dizem no canto, segundo Homero: “Nada nos está oculto; sabemos tudo o que acontece no vasto universo; o viajante que nos escuta retorna mais instruído à pátria”. O herói, atado ao mastro, ouve a voz das Sirenas e na temível canção se instrui. Mas não descende até elas nem é dividido e devorado, pois está atado por pés e mãos, como os juízes; nem tampouco abandona o rumo da Doce Pátria, porque a virtude do mastro o impede.

Entretanto, a verdade foi revelada mais tarde “aos pequeninos”. O Verbo Humanado que no-la revelou deixou-nos também um mastro: o mastro dos braços em cruz a que Ele mesmo se atou para ensinar-nos a verdadeira posição do que navega, o mastro que abarca todo caminho e ascensão na horizontal da “amplitude” e na vertical da “exaltação”.

Tradução: Luiz de Carvalho.