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1 Ler com a alma Entrevista com o crítico literário Alfredo Bosi Jornal Rascunho (abril 2012) Há muito Alfredo Bosi é reconhecido como um dos mais importantes críticos literários brasileiros. Afeito à linha de leitura pautada pela conjunção de formalismo literário e implicação histórica, o autor de Dialética da colonização é dono de uma obra que resolve com felicidade os impasses instituídos por correntes analíticas refratárias à pluralidade. Nesta entrevista, concedida a estudantes da pós-graduação da UFRJ (Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche, Mayara Guimarães, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva), no Centro de Estudos Avançados da USP, do qual é coordenador, Alfredo Bosi fala detidamente de seu mais recente livro — Ideologia e contraideologia —, recapitula seu percurso intelectual e destaca a importância do Padre Antônio Vieira para as letras do Brasil. • Em Ideologia e contraideologia, a crítica literária praticamente não aparece. A escrita de um livro dedicado à análise de idéias sociológicas e filosóficas é fruto de um projeto antigo, talvez possibilitada no momento em que se deu sua aposentadoria, ou fruto de um caminho novo que o senhor pretendeu explorar recentemente? Essa pergunta me interessa de perto porque me ajuda a fazer uma auto-análise até de um possível projeto intelectual. Acredito que essa preocupação em definir melhor certas idéias, certos valores culturais, venha de longe. Pelo menos , eu poderia datar da concepção deDialética da colonização. Quando escrevi Dialética da colonização, no final dos anos 1980, publicado em 1992, já minha preocupação era construir essa ponte entre o universo literário — que é um universo de imaginação, que se projeta evidentemente à subjetividade dos autores — e algo público, uma atmosfera cultural, social, pública. Fui educado, bem no princípio da minha formação, na leitura das obras de Benedetto Croce, que era realmente o centro dos estudos literários da Itália. Mas fui educado já na Universidade de São Paulo, quando estudioso e depois professor de literatura italiana, em uma estética que insistia na separação, na divisão. Isto é, deixava bem claro que uma coisa era o conhecimento do mundo por meio de idéias e valores — conhecimento de que a filosofia é o centro, mas que depois foi ampliado, na modernidade, mediante as ciências humanas, sociologia,

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Texto muito interessante onde o grande professor fala sobre a literatura e suas possibilidades de leitura.

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Ler com a alma Entrevista com o crtico literrio Alfredo Bosi Jornal Rascunho (abril 2012)H muito Alfredo Bosi reconhecido como um dos mais importantes crticos literrios brasileiros. Afeito linha de leitura pautada pela conjuno de formalismo literrio e implicao histrica, o autor deDialtica da colonizao dono de uma obra que resolve com felicidade os impasses institudos por correntes analticas refratrias pluralidade. Nesta entrevista, concedida a estudantes da ps-graduao da UFRJ (Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche, Mayara Guimares, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva), no Centro de Estudos Avanados da USP, do qual coordenador, Alfredo Bosi fala detidamente de seu mais recente livro Ideologia e contraideologia, recapitula seu percurso intelectual e destaca a importncia do Padre Antnio Vieira para as letras do Brasil. EmIdeologia e contraideologia,a crtica literria praticamente no aparece. A escrita de um livro dedicado anlise deidiassociolgicas e filosficas fruto de um projeto antigo, talvez possibilitada no momento em que se deu sua aposentadoria, ou fruto de um caminho novo que o senhor pretendeu explorar recentemente?Essa pergunta me interessa de perto porque me ajuda a fazer uma auto-anlise at de um possvel projeto intelectual. Acredito que essa preocupao em definir melhor certas idias, certos valores culturais, venha de longe. Pelomenos, eu poderia datar da concepo deDialtica da colonizao. Quando escreviDialtica da colonizao, no final dos anos 1980, publicado em 1992, j minha preocupao era construir essa ponte entre o universo literrio que um universo de imaginao, que se projeta evidentemente subjetividade dos autores e algo pblico, uma atmosfera cultural, social, pblica.Fui educado, bem no princpio da minha formao, na leitura das obras de Benedetto Croce, que era realmente o centro dos estudos literrios da Itlia. Mas fui educado j na Universidade de So Paulo, quando estudioso e depois professor de literatura italiana, em uma esttica que insistia na separao, na diviso. Isto , deixava bem claro que uma coisa era o conhecimento do mundo por meio de idias e valores conhecimento de que a filosofia o centro, mas que depois foi ampliado, na modernidade, mediante as cincias humanas, sociologia, antropologia, cincias polticas, psicologia , e outra o conhecimento por intuio.O conhecimento por idias tem uma relao com o real de fidelidade, em que sensibilidade e imaginao devem conter-se para que o mundo da relao entre idia e realidade aparea na sua nudez. Ao passo que o conhecimento por imagens, o conhecimento intuitivo, no precisa ter uma correspondncia direta com o mundo emprico, histrico. Isto , quem escreve um romance, mesmo que queira fazer um romance histrico (como acontecia muito no sculo 19 e continuou acontecendo em grande parte do sculo 20), mesmo quando deseje realmente ser fiel historicidade, claro que no precisa comprovar documentalmente a veracidade dos fatos. Ento h, mesmo no romance histrico, uma imbricao dodocumentocom o imaginrio. Essa concepo de Croce parece muito radical, como quem diz: Cincia cincia, filosofia filosofia, sociologia sociologia, arte arte. Arte imagem e sentimento. As cincias humanas tm uma relao direta com a realidade, ou procuram ter, e tm obrigao de dar ao seu leitor a veracidade de suas concluses.Essa foi minha primeira educao esttica, pela qual o mundo da imaginao e do sentimento formava um espao prprio que deveria ser estudado na sua especificidade. Mas as diferenas entre os sujeitos literrios, os autores, que realmente marcam a histria da literatura, mais do que os grandes blocos, como o renascimento e o barroco. preciso que se preocupe realmente com o diferencial individual. Croce chegou a dizer uma coisa que escandalizou os historicistas da poca, hoje menos: que a melhor histria da literatura seria por autores. Ento voc pensava: Dante e sua poca, Petrarca e sua poca, quer dizer, o sujeito em primeiro lugar, enquanto o historicista faz o contrrio, no ? Ele primeiro estuda as grandes caractersticas dos movimentos e depois situa os autores. Bom, essa posio radical do Croce me ajudou bastante, pois me deu uma base terica para dar literatura o que da literatura, dar poesia o que da poesia, mas, ao mesmo tempo, essa posio ficava um pouco marginal em relao sociologia da literatura, as relaes entre antropologia e literatura, entre cultura e literatura. Tudo isso, como se dizia, era interessante, s que no interessava. As pessoas achavam que deveriam fazer a relao, principalmente quem tinha uma formao marxista ou hegeliana, as duas posies sociolgicas mais fortes.Havia um mal-estar: ou se estabelecia uma autonomia da escrita de tudo que ficava em torno, e se focava inteiramente na intuio, na criao, que a posio croceana; ou ento o contrrio, colocava-se luz no perodo todo e tudo era iluminado, e os autores recebiam luz deste universo de valores e idias, que seria a posio da sociologia da literatura, do marxismo; em geral, das posies culturalistas. O importante saber o que h de comum em vrios autores para flagrar o esprito do tempo, da poca. Essa uma expresso profundamente historicista que vem de Dilthey, filsofo do final do sculo 19, criador da idia de que a gente precisa estudar os estilos histricos, pois, por mais que ns sejamos individualizados, personalizados, quem for ver de longe, dir: Ele quis ser muito original, mas veja quantos escritores pensaram igual. Ento havia uma coisa que os transcendia os estilos de poca.Como o senhor reagiu diante dessas duas possibilidades de histria da literatura?Isso que estou colocando passou a ser um problema para mim, no tinha uma soluo. As solues opostas eram drsticas: ou a autonomia do texto literrio, ou o que na Itlia se falava heteronomia, quer dizer, no h nada que seja especfico, tudo tem relao com o outro, que um outro que o transcende. A primeira posio acabou sendo chamada de idealista, porque ela evidentemente dava o maior crdito possvel originalidade individual. E a segunda posio era realista, ou, no caso, marxista materialista.Quando eu estudei, essa posio marxista no tinha ainda hegemonia nenhuma, como depois veio a ter em certos momentos da histria cultural, sobretudo nos anos 1970. Ns no nos preocupvamos em fazer uma relao fixa com a ideologia da poca, nos preocupvamos em entender o autor na sua especificidade. Mas o tempo vai mudando, os acontecimentos histricos vo nos pressionando. Eu escreviHistria concisa da literatura brasileirasob o fogo da ditadura militar, portanto, no era possvel que me subtrasse importncia das ideologias dominantes s quais, porm, j naquela poca eu contrapunha algo que eu no chamava de contraideologia, mas que sempre procurava mostrar uma intuio que eu tinha, que no era ainda perfeitamente formulada. A intuio era que mesmo nesses perodos to fechados, como realismo e naturalismo, ou ento, voltando atrs, ao barroco, a gente encontraria diferenas internas, que seriam quase tenses internas. Eu sentia que isso era importante, mas no teorizava a respeito. O perodo este, mas voc encontra barroco e antibarroco dentro do mesmo perodo; o perodo romantismo, mas voc encontra quatro ou cinco romantismos na literatura brasileira, e isso bastante evidente: a primeira, segunda e terceira geraes, muito prximas, que vo dos anos 1840 aos 1870; em 30 anos voc tem literaturas conservadoras como Gonalves e Magalhes at Castro Alves, e tudo romantismo. Mas ento o que esse romantismo que tem diferenas to profundas?Eu sentia que essas teorias de quem faz histria literria pagam muito tributo aos estilos e perodos. Evidentemente, ainda mais por vias didticas, no se pode deixar de pensar nos grandes perodos, como eu pensei poca. S que medida que eu escrevia o livro, verificava que era insuficiente s demarcar as caractersticas era muito escolar, naquele sentido menor, romantismo a, b, c, d, e, como faziam os cursinhos antes e ainda fazem; virava uma coisa mecnica. E assim mesmo, pois h quase que uma imposio de que preciso entender os grandes perodos. claro que, por trs disso, num nvel alto, havia o pensamento de Dilthey, de que Carpeaux, no Brasil, foi o grande divulgador naHistria da literatura ocidental. uma histria que acredita profundamente na unidade dos grandes perodos, mas como Carpeaux era um esprito dialtico, que tinha lido muito Hegel, e depois Marx, ele foi dialetizando dentro de cada grande perodo. Foi meu mestre, meu grande mestre, a quem dediquei esse meu livro em 1970, uma poca em que ele j estava se afastando da crtica literria e entrando numa militncia antiditadura, uma militncia que acabava escrevendo em jornais dos estudantes de esquerda. Grande homem, mas cujaHistria da literatura ocidentalfoi para mim o paradigma.O desenvolvimento do conceito de contraideologia passa tambm porDialtica da colonizao?Nos anos que antecederam a concepo daDialtica da colonizao, eu estava diante desse problema a ser resolvido, e j tinha escrito uma histria literria e vrias coisas sobre poesia, mas ainda no tinha centrado na histria das ideologias do Brasil. Ento, ao escrever esse livro, uma reunio de ensaios de perodos diferentes, realmente precisei enfrentar o problema das ideologias, que so pontos de vista quase grupais, coletivos. Quando se l um romance, procura-se o ponto de vista do autor, primeira pessoa, terceira pessoa, e isso est sendo cada vez mais aprofundado com a crise da idia do autor e do sujeito, mas o ponto de vista que se procura flagrar. Agora, quando se pensa num conjunto grande de obras, no s literrias, mas extraliterrias, qual seria o ponto de vista? A ideologia, de alguma maneira, o termo genrico que corresponde ao especfico ponto de vista da literatura. O ponto de vista est para o romance assim como a ideologia est para o conjunto de obras literrias e extraliterrias de um perodo.Antes de chegar emIdeologia e contraideologia, eu j tinha enfrentado de algum modo essa problemtica. Quando estudei Anchieta, Vieira, Gregrio de Matos, fui saltando para Alencar e Antonil, e ento voc v que para mim era muito importante ler estes autores num embate com o tempo, e cada um deles, de alguma maneira, absorvia o seu tempo, mas respondia ao seu modo. Eu voltava ao Croce, que estava l escondido, para mostrar que havia ideologia, mas que diferena entre eles! Entre Antonil e Vieira, por exemplo. Os sonhos de Vieira, as quimeras de Vieira, no eram as de Antonil, que foi seu secretrio (m idia, pois Antonil o traiu). Enfim, sabemos o quanto Vieira debateu-se contra o seu tempo, mas acho que seria muito complicado tir-lo do barroco, quando tantos de seus tpicos so barrocos. Ento, esse livro, que chega at Castro Alves, Lima Barreto, vai sempre acompanhando os estilos de poca e essas reaes individuais, at chegar o momento em que eu realmente dei as costas ao universo especificamente literrio e fui estudar a ideologia positivista do Rio Grande do Sul.Esse foi um momento em que estava preocupado com a histria da colonizao no Brasil antes e depois da independncia, com a maneira como as idias aqui frutificaram, entraram fundo na nossa vida poltica. Ento, o estudo sobre o positivismo, que a arqueologia do Estado por evidncia, uma espcie de germe do que viria a serIdeologia e contraideologia, isto , um estudo especfico de uma determinada ideologia, a positivista, to importante na formao da Repblica, sobretudo dos militares da repblica, depois dos gachos, e que vai dar em Getlio Vargas e na modernizao autoritria, que uma modernizao progressista.Mais tarde isso continuou dentro de mim, e nos anos 1990 fiquei preocupado, porque se entra em polmicas com outras correntes. H o marxismo ortodoxo, do qual me afastei, ficando mais prximo da Escola de Frankfurt, de Adorno, sobretudo, que d enorme importncia subjetividade, do ponto de vista individual, mesmo sendo um escritor e filsofo de origem marxista. Adorno diz especificamente que a grandeza do poema aquilo que a ideologia esconde. uma frase muito significativa, poderia ser at um lema do que eu escrevi. No conhecia esta frase quando escreviPoesia e resistncia, mas dava uma bela epgrafe.Depois daDialtica da colonizao, avultou dentro de mim a necessidade de entender efetivamente o que ideologia, porque comeou a poca da crtica ideolgica, no sei se muito no Rio de Janeiro, mas muito em So Paulo. Em So Paulo, todo mundo j sabe, por uma tradio que veio da traduo francesa dos anos 1930, a sociologia se implantou de modo muito sistemtico em nossos grandes professores dos quais Antonio Candido uma espcie de guru, mas em outros tambm talentosos, como Rui Coelho. Sempre havia preocupao em mostrar o trao sociolgico, o trao social e histrico, e isso nos acompanhou muito, formou toda uma equipe. Eu nunca pertenci equipe do professor Antonio Candido, tive uma formao lateral a ela. Eu era um leitor e, como todos ns, discpulo, porm no me formei naquele mbito muito especfico de sociologia da literatura, e minha formao croceana, de alguma maneira, me imunizou de um excesso de sociologia.Mas eu percebia que, talvez por motivos polticos, talvez por motivos de militncia, havia certa crtica derivada dele que levava s ltimas conseqncias o sociologismo, ao qual eu resistia muito no porque no me interessassem as relaes entre literatura e sociedade, mas porque o grau de determinismo era muito grande, e preciso relativizar o determinismo, pois se ele fosse verdadeiro, todos os autores de uma mesma poca teriam a mesma ideologia, no verdade? Se a ideologia algo que recobre totalmente no s o pensamento da classe dominante, mas tambm o pensamento dos dominados, que comeam a pensar como a classe dominante, do ponto de vista macroscpico da sociedade, muito verdadeiro que haja uma hegemonia de certo pensamento, hegemonia da globalizao. Tudo tinha que entrar nisso, no havia possibilidade nenhuma de reao, enquanto eu verificava, por toda minha leitura de poesia, que, muito ao contrrio, existia uma reao. Mas como cham-la? Se voc tem uma ideologia dominante e pensa em termos marxistas, essa reao s possvel pela revoluo isso aconteceu na Revoluo Francesa, na Sovitica, na Cubana, na Chinesa, independentemente do que aconteceu depois, do que os homens fizeram com os grandes ideais, como fizeram com o Cristianismo, havendo depois a Inquisio e coisas terrveis. O que possvel fazer com idias sublimes ns j sabemos, mas isso vem dos deslimites da humanidade e no vamos entrar por a. O fato que entre as ideologias, as idias mais puras e sua consecuo, sempre h um intervalo, muitas vezes doloroso.Eu verificava que a poesia, a literatura falo da poesia porque fiquei mais prximo dela, mas podemos fazer o mesmo com a literatura narrativa de imaginao, de sensibilidade, se articulava como defesa ou ataque em relao ideologia dominante, como Baudelaire, por exemplo, um dos grandes poetas. E que nome dar a isso? Em termos estritamente marxistas, o que se contrape ideologia burguesa a revoluo proletria, o que seria uma contraideologia, s que Marx no usa essa expresso, e os socilogos tambm no, mas eu achei que era necessria. Em certo momento, pensei: como mostrar que h uma tenso entre ideologia e poesia? E a voltei ao velho Croce, que todo mundo pensava que estava enterrado para sempre. Na Itlia, depois de Gramsci, Croce j era, como diziam, um furioso comunista, um co morto pela cultura italiana. Mas as coisas bem pensadas ficam sempre; volta e meia, as coisas bem pensadas emergem.Em 1921, Croce estava em plena forma e escreveu um livro chamadoA poesia de Dante, onde ele separa ideologia e no-ideologia. Vamos estudar Dante como idelogo do Sacro Imprio Romano, do catolicismo medieval, de So Toms de Aquino, e de tudo que era hegemnico no mundo da cultura ocidental. Muito bem, Dante tudo isso. Se voc abre uma obra comentada, verifica mil remisses a esses grandes filsofos medievais e concepo do Sacro Imprio Romano que ele defendia e pela qual foi exilado; foi um militante poltico e, digamos, ideolgico, no sentido de que tinha uma preferncia. No entanto, diz Croce, abre-se aDivina Comdiae o que encontramos? Tudo isso, s que isso no-poesia, e ele o dizia abertamente, para grande escndalo das esquerdas e at dos catlicos. As esquerdas achavam que o pensamento poltico de Dante tinha estruturado o seu poema, e os catlicos achavam que a religiosidade de Dante que tinha estruturado o poema. Eles colocavam a poltica e a religio como estruturadoras da forma, e vem Croce e diz no, isso cultura, Dante era um homem cultssimo, no poderia deixar de refletir tudo isso. Isso cultura, e organiza, ele chegava a dizer, a estrutura dos vrios ciclos; at a forma do inferno, do paraso, esto todos estruturados em virtude do pensamento aristotlico, em certos pecados mais graves ou menos graves, enfim, a moral que est l a moral aristotlico-tomista, mas no a que est a poesia de Dante.A poesia de Dante est quando as vozes dos condenados falam contra a sua vida, como Francesca da Rimini, por exemplo. Quando conta como se apaixonou e depois foi punida e assassinada, ela e seu amado, por seu marido. Quando canta, no V canto do Inferno, a aparece a poesia: ela essa voz em que as imagens e os sentimentos aparecem; no est no fato de ela ter sido condenada, porque o fato de ter sido condenada e estar no ciclo dos luxuriosos, do amores pecaminosos, ideologia, isto , pensamento da poca. Ela no podia deixar de estar l, Dante no tinha a possibilidade de coloc-la fora, porque ele estava inteiramente imerso nisso; mas o fato de ela falar, sair do meio das sombras e falar a Dante, que est caminhando, conversando com os condenados, e contar poeticamente como seu amor despertou e como depois foi condenada, e o fato de Dante ficar to emocionado que desmaia (ele termina o V canto dizendo: e eu ca como um corpo morto cai).E isso Croce diz de maneira admirvel: devemos separar conceitualmente poesia e no-poesia. Ora, transformando isso em termos sociolgicos e modernos, deve-se separar ideologia e contraideologia que a frase do Adorno em outros termos. A contraideologia um movimento individualizante que faz com que o singular aparea; aquele singular que parecia inteiramente absorvido pela universalidade da ideologia dominante est l, pulsando. E ele que vai dizer coisas que durante sculos e sculos sero repetidas e a gente vai ler e vai se comover com aquilo.O que eu quero dizer queA poesia de Dante inspirador, porque nele h uma diviso entre o que h de comum e o que h de individual. O que h de comum? A ideologia da poca. Ele muito justo com essa ideologia, mesmo sendo um esprito nada sociolgico, porque achava que no se podia fazer sociologia da literatura. Mas ele tem coisas radicais que hoje no seriam assimiladas. Ele foi justo e usa a palavra estrutura, no no sentido que se vai dar depois, estruturalista; mas a estrutura de um livro freqentemente representa, espelha as tendncias ideolgicas da poca. E isso verdade, mas a poesia ele separa, a voz individualizada.Ento, forrado dessas idias, quando voltei para o mundo dos valores, das ideologias, eu j estava bastante convicto de que era preciso estudar, em cada perodo, as tendncias contrastantes de ideologia e contraideologia, que est emPoesia e resistncia,mas ali s ligada poesia. Ento fiquei em ummare magnumde autores, e como enfrentar tudo isso? Foi uma ambio desmedida, talvez o futuro v julgar isso como uma pretenso, mas quando se est imerso, vai-se em frente. Estudei, desde o renascimento, momentos isolados e, depois, pensei mais no Brasil, na segunda parte do livro, no que eu chamo de Intersees Brasil-ocidente. Neste ponto, minha polmica contra aqueles que acham que as idias no Brasil esto coladas, que elas no esto consubstanciais nossa vida poltica. Eu acho que as idias no Brasil tiveram seu momento constitutivo, o liberalismo teve seu momento constitutivo na formao da nacionalidade com a independncia, com ela era absolutamente necessrio dar um cimento ideolgico nova nao. E que cimento poderia ser dado em 1822 seno o liberalismo que tinha triunfado no ocidente depois da Revoluo Francesa, o liberalismo burgus?Nesse ponto, fiz o que se pode chamar de histria ideolgica: fui s atas dos parlamentos para verificar como se dava o debate contra ou a favor da escravido. Infelizmente, nosso Alencar se saiu muito mal nisso: ele era senador nesta poca e se levantou contra a idia do ventre livre. Parece incrvel, no ? Um romancista to delicado, escritor brilhantssimo. Independentemente dos mritos literrios de Alencar, que, acho, so consensuais, do ponto de vista ideolgico, em 1871, depois de ter escritoO guaranie outras obras-primas, ele se levanta como senador e diz que contra a Lei do Ventre Livre, pois seria uma interferncia do Estado na vida particular, nas famlias que tinham o direito por terem comprado os escravos. Parece uma coisa escandalosa, mas ele diz isso, e falava em nome da liberdade naturalmente, a dos patres, pois eles compraram e a propriedade sagrada. Essas idias de propriedade sagrada e liberdade individual so idias do velho liberalismo, contra as quais o novo liberalismo de Nabuco, de Patrocnio, de Rui Barbosa, entre outros, se levanta. Ento, eu vi uma coisa muito forte, uma dialtica interna das ideologias. Num certo momento, os abolicionistas eram contraideolgicos. Os abolicionistas, comeando por Nabuco, depois todos os outros mais ligados ao mundo popular, como Jos do Patrocnio, estavam combatendo a ideologia dominante, que era escravista, mas escravista em nome da liberdade, como os Estados Unidos na mesma poca.O livro, portanto, procura enfrentar esse problema at praticamente sua parte final, onde tem um apndice, que a passagem para o literrio, mas no vou falar dele agora, pois estou respondendo como vem dentro de mim essa tenso e como a procurei formular em vrios livros, dos quais o ltimo o mais articulado.Quais as limitaes do estudo historiogrfico da literatura? claro que uma obra tem uma data final. Quando escrevi aHistria concisa da literatura, em 1970, ento meu horizonte era aquele, terminava nos anos 1960. poca de grandes escritores. Meu gosto ficou assim, quando se fala em grande poesia, penso em Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Os jovens dizem: Eles morreram h tanto tempo, escreveram as coisas desde o modernismo at o final dos anos 1960. Alguns ainda escreveram um pouco mais depois. Uma poca to grande, talvez. uma questo de gosto. E h um momento em que se formou esse gosto, ento tudo que vem depois interessa como movimento cultural, como surgimento de sensibilidades, mas se tem sempre um parmetro. Depois de Guimares Rosa e Clarice Lispector, o que vem dessa altura? s vezes, d um sentimento pessimista. Ser possvel que no haver algum outro poeta como Drummond, Bandeira, Jorge de Lima, Ceclia Meireles? Eu tive sorte de terminar aHistria concisaainda abordando autores que so os clssicos da modernidade. E, para mim, da contemporaneidade, porque a palavra contemporneo muito elstica. Cada gerao tem seu contemporneo. Meus contemporneos so os grandes escritores entre 1960 e 1970. A partir de 1970, j so contemporneos de uma nova gerao. Bem, Gullar comeou na dcada de 1950, j vem o prenncio. Mesmo os concretos, pelos quais no tenho particular paixo, comearam tambm na dcada de 1950. Ento, vejam como o contemporneo uma palavra difcil. Entre o moderno e o contemporneo, as coisas vo avanando. Qual o contemporneo hoje? Vamos dizer, se se faz uma tese sobre a poesia contempornea e se comea nos anos 1970, so 40 anos. Ento a pessoa tem que ter uma certa idade para se considerar contemporneo.Isso tudo para dizer como que terminou aHistria concisa. Depois houve muitas solicitaes e apelos para que eu no terminasse aHistriaum pouco antes de 1970, como foi publicada, para que eu a atualizasse. E no brincadeira, porque se comea a receber obras e mais obras e mais obras de autores novos e h que situ-los. Muitos poetas me mandavam livros de poesia e eu tinha que discernir quais as correntes que estavam l, se elas continuavam, se elas inovavam. Mesmo assim, conhecendo a dificuldade da tarefa, eu ainda, at o final dos anos 1980, fiz uma reviso, na verdade, uma pequena atualizao, onde aparecem apenas nomes. E pensei: esse livro vai virar um catlogo telefnico se eu comear a colocar todos os autores interessantes. Uma escolha, uma seleo, j uma crtica porque se acaba ressaltando alguns nomes e deixando outros na sombra. Os contemporneos no perdoam os crticos literrios que os deixam nas sombras. Eles nunca sabem se as condies so voluntrias ou no. Omitiu meu nome por qu? Porque esqueceu ou porque acha que ele no vale a pena?Ento, um campo minado, que eu acho que o campo da resenha, do jornal. Se eu tivesse continuado a fazer crtica jornalstica escrevi muito para oSuplemento do Estado, depois um pouco para oJornal do Brasil, eu realmente estaria empenhado e ficaria responsvel, de alguma maneira, pelos novos autores. Depois, a vida universitria me chamou para outros campos, campos mais da histria e da cultura. A partir dos anos 1970, embora eu tenha atualizado, achei que no era mais possvel ficar fazendo adendos, acrscimos, teria que escrever um captulo inteiro sobre a histria da literatura contempornea. Achei que isto j no era tarefa para mim, porque tinha outras, entrei para o caminho da histria das idias, da histria da cultura. Acho que esse papel de vocs agora. Vocs que esto fazendo, esto levando esse mapa, que difcil.Entrevistei Ungaretti quando ele voltou para So Paulo para receber o ttulo de DoutorHonoris Causa. A entrevista est no livroCu, inferno. Fiz uma pergunta que no deixa de ser ingnua ou muito de jornalista. Perguntei: para o senhor, quem so os grandes autores do sculo 20? Ele era um homem j de 80 anos, ento a memria dele era uma memria toda do sculo 20. E ele me respondeu, com aquela voz rouca: S vo sobrar Gadda e Moravia. Moravia um escritor realista por excelncia, neo-realista, grande neo-realista. E Gadda seria, muito entre aspas, o Guimares Rosa italiano, aquele que faz plurilingismo, que joga muito com as vrias semnticas, os vrios discursos. Como se se pudesse dizer que s vo sobrar Guimares Rosa e Graciliano Ramos eu ficaria contente, s esses dois j chegam. Mas, claro, um historiador no pode dizer isso, um historiador no tem direito de dizer que s sobram dois, para a nossa facilidade de fazer histria literria. Ento, inclumos dezenas e dezenas e dezenas. Depois pensamos: por que ser que inclu tanta gente assim? Na prpriaFormao [da literatura brasileira]que o Candido escreveu, h uma parte com alguns autores que nunca fizeram poesia nenhuma, quase se pode dizer que entre aGlaura[1799], de Silva Alvarenga, e os poemas de Gonalves Dias, que so dos anos 1740, foram 50 anos em que era um deserto, no h nenhum grande poeta, nenhum poeta aceitvel. Croce diria: pula tudo isso, estuda os grandes poetas rcades e depois vai estudar Gonalves Dias, porque o resto no foi poesia. O historiador no pode fazer isso. Ele at acredita que a presena de muitos medocres depois vai formando um estilo do qual sai um grande escritor. Eu nunca acreditei nisso! Mas h os que acreditam: precisa haver muita gente assim, que s representativa, que representa seu tempo, mas essa uma viso organicista no uma planta, cujas razes tm terras diversas, adubos diferentes dos quais sai a flor. No se pode fazer metfora dessa natureza porque justamente a criao potica tem entornos, umethosindividual fortssimo que separa, mesmo que o tema seja o ndio, como houve poemas indianistas nessa poca. Gonalves Dias disse de uma maneira que no pode ser repetida: no tem anterior nem posterior, porque o anterior e posterior temtico, mas a criao literria como tal no pode ser pensada em termos de evoluo. () Na histria literria, muito comum as pessoas quererem ver os antecessores, os precursores, os epgonos, como se um autor fosse o produto de vrias geraes, de temas, e depois ele escreve uma obra e a obra dele determina isso. Eu acho que isso pode acontecer no mundo do gosto, no mundo da cultura, mas no mundo da criao arriscado a gente fazer. Eu sempre achei muito arriscado dizer que, como Alencar escreveu emSenhoraproblemas ligados ao adultrio, ligados ao casamento por interesse, ele j, de alguma maneira, plantou aquilo que Machado de Assis ia fazer, pelo estudo do casamento e do mundo urbano, j com todas as suas ingratides e traies, etc. muito prximos um do outro, evidentemente. () A histria literria viveu muito disso, a velha histria literria, desses caminhos. Mas eu hoje teria muita desconfiana em relao a isso. Eu voltaria idia de dar a cada autor o que seu e no se preocupar muito com ecos que ele possa ter de outras obras.O senhor citou aHistria concisa da literaturae, hoje, se pensarmos nas obras historiogrficas, ela talvez seja a que de mais recente tem esse tipo de projeto. Com todas as revises que a historiografia literria j sofreu e ainda vem sofrendo, quanto s suas possibilidades e validade, existe a possibilidade de dar continuidade a esse projeto de historiografia de literatura brasileira? Ainda vale a pena?Hoje acho que esse projeto deve continuar. claro que acredito que continuou, assim, de uma maneira parcial. H pessoas que j estudaram aspectos da poesia contempornea, aspectos do romance contemporneo, mas uma histria da literatura contempornea, digamos, grosso modo, ps-moderna (usando esta expresso que vem dos anos 1970), ainda no. Comea-se a perceber que j alguns autores no so mais modernos, porque h alguma coisa que os afasta, esse universo da fragmentao, da globalizao, da cultura de massa. Tudo isso no universo dos modernistas, dos modernos. O mundo realmente mudou, a influncia norte-americana tambm foi tremenda nos anos 1960 e 1970 e tudo isso deve ser levado em conta. Mas estou esperando um historiador altura, porque agora as coisas so complexas, porque se produz muito. Curioso, no? Quando pude escrever aHistria concisaeu tinha, digamos, seis ou sete grandes poetas, seis ou sete grandes romancistas, dos anos 1930 aos 1970, e os outros eu citavaau bout des lvres, como diriam os franceses, s da boca para fora, porque eles apenas compunham um quadro. Mas hoje esse um fenmeno que deve ser estudado parte. quase impossvel acompanhar, porque no sei se o movimento editorial ficou mais aquecido, para usar um termo da economia, ou ento as pessoas publicam sem muita preocupao de difundir sua obra, quer dizer, publicam s suas prprias custas e ento sai muito livro, muito livro de poesia. Como catar, garimpar um diamante no meio disso? Eu teria muita dificuldade se tivesse que assumir essa tarefa (no vou assumir!). A seleo muito complicada, porque voc tem que ter j parmetros bastante slidos e injustias podem ser cometidas, porque, hoje, no Brasil inteiro que se publica. S quero dizer uma ltima palavra: no nada fcil.Eu acho que a tendncia vai ser a seguinte: antologias ampliadas e comentadas. Assim como fez a Heloisa Buarque de Hollanda: antologia da poesia marginal; antologia da poesia concreta e neoconcreta; as vrias tendncias da poesia participante, engajada. Isso j h, mas acho que preciso continuar fazendo, para dar matria comcorpusde historiador. Agora, que a histria literria est em baixa, est. Hoje, as pessoas tm a preocupao de fazer um ensaio tpico. Ter coragem de fazer histria literria de uma temeridade eu mesmo cometi essa temeridade, mas no pretendo fazer de novo.

O que faz com que determinados autores sejam relidos? O que faz com que eles permaneam mais fortemente at hoje?H uma primeira constatao: o que so os autores clssicos? Aqueles que resistem ao tempo? Ns s podemos responder issopost factum. Isto , depois que todos esses autores escreveram e que, por assim dizer, emergiram, ento ns os consideramos clssicos e os integramos ao cnone, conceito hoje to maltratado e to negado, s vezes. O que o cnone, no fundo? este elenco de autores que sobreviveram ao tempo, continuaram sendo lidos, estudados. A pergunta : por que eles sobreviveram? Por que eles so clssicos? uma pergunta que est embutida na sua questo. Eles so clssicos provavelmente porque dizem coisas diferentes a cada gerao, a cada poca, ento se fazem leituras diferentes, eles permitem leituras diferentes. A diferena inicial (pode no ser a nica), de base, entre um autor clssico e um autor, digamos, menor, no-cannico, que no entra na histria literria, que os autores que foram considerados clssicos sempre foram aqueles que puderam ser lidos de maneira diferente por cada uma das novas geraes.Autores de grande relevncia do passado parecem no ter sido totalmente abordados. Ento, no melhor que se os estude, que se esgotem determinados assuntos, a se perder no meio desse mar de novidades, que necessariamente no est consolidado? Quer dizer, como se consegue trazer esses autores, como o senhor tem feito com Padre Antnio Vieira, com Gregrio de Matos, para os estudos contemporneos?O caso de Vieira um caso tpico. Ele foi durante muito tempo lido como um escritor que dominava a lngua portuguesa. Foi muito no mbito da filologia e da literatura portuguesa clssica que Vieira apareceu. Quando o estudei no colegial e depois, nos primeiros anos na faculdade, via Vieira como o imperador da lngua portuguesa, na frase de Fernando Pessoa, aquele que dominava inteiramente a linguagem. Rui Barbosa, por exemplo, que pode ser considerado um cone dessa tendncia purista, dessa tendncia de exaltao da lngua portuguesa, da riqueza da lngua portuguesa, era um leitor de Vieira, e quando tinha alguma dvida de colocao de pronomes naquele tempo as pessoas se angustiavam com isso , ele recorria a Vieira: se Vieira colocou assim, ento est certo. Veja, as questes se colocavam em termos de valor, de norma, aquilo que era apreciado. Por exemplo, as gramticas numerosas, normativas, todas elas comearam a ser escritas no final do sculo 19. H todo um trabalho e estudo sobre isso, e o Evanildo Bechara sempre fala disso na Academia [Brasileira de Letras], de gramaticalizao da lngua portuguesa. At Alencar, as coisas eram meio fluidas, tanto que ele entrava em polmica com os portugueses, que achavam que ele colocava mal os pronomes, etc. Mas depois, a partir dos anos 1980, muito curioso, porque uma guinada convencional, embora seja a poca da revoluo (vejam como estamos no mbito daIdeologia e Contraideologia), poca do abolicionismo, poca, sobretudo, do republicanismo, esse perodo um perodo de forte gramaticalizao. preciso escrever como? Como os portugueses. No curioso isso? Nesse perodo avanado da Repblica a meta era escrever como alguns clssicos portugueses. Ento, o que se fazia? Citavam-se s esses autores. Se pegarmos, por exemplo, a gramtica do Eduardo Carlos Pereira, interessante estudar o seucorpus. Foi a primeira gramtica expositiva que norteou dezenas e dezenas de edies, que norteou aquilo que hoje se estuda: a colocao de pronomes, o uso do finito e infinito, coisas que ns estudamos e que viraram dogmas dos cursinhos, dos vestibulares, e que comeam nesse perodo. um perodo em que, ento, para se dizer que um texto bem escrito, preciso recorrer a quem? Vieira, Padre Manuel Bernardes, Frei Lus de Sousa. Trs ou quatro nomes. s vezes Cames; mesmo assim ele era desconsiderado porque s vezes usava certas figuras ou mesmo colocaes que ainda estavam dentro do renascimento. Mas depois do renascimento, ou seja, no perodo que passou a ser chamado de barroco, no incio do sculo 17, passou a ser ideal para a prosa. Ora, um Vieira que s fosse modelo de prosa tem seus anos muito contados. Porque, com o modernismo, com a grande liberdade ps-moderna, tudo isso j perdeu muito prestgio, embora se possa admirar e entender Vieira, admirar aquela fluncia extraordinria, suas metforas e sua conciso vocabular. Isso sempre admirvel, mas no que possa servir de norma, como antes era. Voc tinha que escrever como Vieira. Imagina escrever como Vieira? A fica como Rui Barbosa. lgico que eu prefiro Vieira, com o perdo Fundao Casa de Rui Barbosa, mas enfim Houve um purismo, Rui Barbosa discutiu com seu mestre Ernesto Carneiro Ribeiro, ficaram anos discutindo qual a verdadeira colocao. E curioso que nessas discusses, como na gramtica do Eduardo Carlos Pereira, s havia autores clssicos citados, com a exceo de um: Machado de Assis. Machado de Assis era citado altura e tinha morrido h pouco tempo, era contemporneo dessa gramaticalizao desses escritores. Ento, esse lado conservador da prosa machadiana curioso, interessante de saber. Como dizia Raul Pompia, num tom muito ferino, que ele era um escritor correto. Diminudo no, mas correto. O Lima Barreto, esse sim, tinha uma antipatia fundamental por Machado de Assis, e dizia que Machado escrevia com medo da Academia e dos fillogos do seu tempo. So as chamadas injustias justas, quando a pessoa diz mais do que deve e menos do que pode. Quando a pessoa diz tudo que quer, diz mais do que deve e menos do que pode. Ela pode dizer exatamente o que quer, mas a paixo impede que ela seja concisa e precisa. Por isso essas injustias cometidas contra o Machado de Assis, que hoje um cone idolatrado. Ento, no possvel dizer nada. Mas acho que devemos pensar muito.Vieira, naquela poca, era um escritor estudado, mas depois vieram outros momentos, por exemplo, depois da [Segunda] Guerra e depois dos estudos sobre semitismo e anti-semitismo, em que comearam a ver Vieira como um homem que foi preso pela Inquisio e que sempre defendeu os cristos-novos. Porque ele tinha motivos muito materiais, queria que os cristos-novos ficassem em Portugal porque tinham dinheiro, e porque com esse dinheiro ele iria alimentar a Companhia das ndias. e no , porque os escritos dele so contra as arbitrariedades da Inquisio, contra o estilo deles. A primeira coisa que eles faziam era apropriar-se dos bens do ru, do futuro ru, sem que ele pudesse ter se defendido ainda. interessante. Quer dizer, no s o clssico da lngua, ele era tambm um homem que se levantava contra o seu tempo e pagou tributo, ficou preso dois anos em Coimbra, por esse interesse que tinha, essa empatia. Depois, um livro dele no foi publicado na poca,Clavis Profetarum, que s agora integra a edio completa. Eram textos escritos em latim. Na medida em que se consegue ler textos em latim, ele coloca e praticamente compara os portugueses aos hebreus, o tempo todo: o xodo, o sofrimento deles na mo dos espanhis. Mas viria o messias, Dom Sebastio, e depois Dom Joo IV. Quer dizer, certos movimentos internos de Vieira que so movimentos pr-semitas, no sendo ele descendente de judeus (questo que foi feita na Inquisio para verificar se ele tinha sangue de judeu, e no encontraram nada). Ento, esse um Vieira que interessa muito histria, depois vieram os antroplogos. Os antroplogos que geralmente tm uma birra das misses catlicas e vm mostrar que realmente os missionrios no poderiam ter feito nada porque as culturas no se respeitavam, etc. Imagine o seguinte: se antes eles iam pensar que as culturas no se respeitavam, seria um anacronismo total querer que os missionrios no fizessem o que fizeram. Bem, mas os antroplogos comeam a ver o Vieira antropolgico, o Vieira que estuda as lnguas da poca, o Vieira que defendia os ndios, sob certos aspectos, e que, porm, no defendia os negros. A comea a sociologia a mostrar como Vieira tomava como fatalidade a escravido dos negros, mas no a dos ndios. ()Vieira, por exemplo, foi quem descobriu a natureza amaznica. Ele vai e fica apaixonado pelas tartarugas, que descreve, e fica revoltado porque os caboclos viravam ao contrrio a tartaruga para ela no fugir. Essas praias de virao que tem l, s margens do Tocantins, que ele descreve eu descobri isso. Lendo as cartas dele, que so numerosssimas, encontrei uma descrio belssima, com aquela fora do trabalho concreto e robusto que ele tem. Ele descreve essas praias dos rios do Amazonas, que ainda no conhecia. Ento, vejam: disso foi feita a aparncia de um Vieira ecolgico. possvel que algum do desenvolvimento sustentvel faa uma atualizao. Geralmente so foradas, porque talvez paream anacrnicas, mas feitas com tato elas revelam os vrios Vieiras, o Vieira tambm um pouco adulador, isso desgosta (na poca era to comum), adulador dos reis. Dos sete anos que ficou em Roma, lutou tremendamente para que fosse apagado o processo dele da Inquisio. E conseguiu. Voltou com o salvo-conduto para Portugal muito feliz, a Inquisio no podia mais apanh-lo porque o Papa tinha escrito um prvio (como eles chamam), um texto isentando-o da Inquisio portuguesa. Vejam s o que ele conseguiu com a lbia dele, um homem muito diplomtico. A histria diplomtica tem muito Vieira, a histria econmica de Portugal, so muitos aspectos.E tambm, Vieira barroco ou no? uma pergunta que a gente pode fazer. Carpeaux diz que no, que antibarroco, que pseudomorfose, parece barroco, mas no . uma coisa polmica porque o barroco sempre pode ser estudado sob vrios aspectos contraditrios, o prprio narroco contraditrio, mas no captulo O anti-barroco, do Carpeaux, ele mostra que a forma pode ser barroca. O barroco , portanto, ligado tradio, funo aristotlica, nobreza, quele universo todo em defensiva, mas a substncia era burguesa, j moderna. Porque, ele [Vieira] queria que todos pagassem impostos, inclusive o terceiro Estado, e no tivessem os privilgios da nobreza e do clero; ele diz coisas muito fortes contra a desigualdade das contribuies. Finalmente, ele diz que o que vale no homem o que ele faz, e no os seus ascendentes, sua linhagem. Parece uma idia que s na Revoluo Francesa vai ter seu momento tremendo, sua exploso. A idia de que somos iguais, filhos do mesmo Ado, e pela teologia no deve haver nobres, no deve haver hierarquias. Ento ele diz, num dos sermes, somos o que fazemos, no somos o nosso nome, mas a nossa ao. Ele d o exemplo de So Joo Batista, hoje muito oportuno de fazer, pois ele diz: Sou a voz que clama no deserto. Ele no diz sou o Joo Batista, filho de tal e tal, no faz a genealogia que era to comum naquele mundo judaico. Ele diz:Vox clamans, a voz que clama, sou clamante. Ento, quem faz o que faz, no seus antecedentes. Uma idia que eu diria moderna, at certo ponto. Voc considerar que pelo verbo e no pelo substantivo que se define, numa civilizao toda ela da metafsica de Aristteles, do mundo de Aristteles, que o mundo barroco. Ento, Carpeaux chama isso de pseudomorfose. como uma pessoa que tem forma muito conservadora, mas idias revolucionrias, ou ento uma pessoa que tem palavras muito revolucionrias na boca, mas ela tem toda uma ao conservadora. Isso muito comum na nossa poca, como que uma pessoa tem uma forma que no convm ao seu contedo? E isso a pseudomorfose.Ento, eu estou estimulando vocs a estudar os clssicos sem que deixe de lado os contemporneos. Os contemporneos j falam direto a ns. Eles j tm os nossos universos de violncia, ou de preconceito. Tudo que est por a nos jornais aparece muito na prosa contempornea. A prosa contempornea est, vamos dizer, entretecida de ideologias e contraideologias contemporneas. lgico que ficar longe de um escritor que j morreu h sculos para descobrir a pseudomorfose, acho que at certo ponto mais fascinante, porque os clssicos tm a tendncia de ficar fixados, so medalhes, esto bem desenhados pela fortuna crtica, e tem que dizer sempre aquelas coisas. Ento, uma forma de superar isso verificar como um escritor foi lido em vrios momentos. Como? A se estuda o que os italianos chamam com essa bela expresso: fortuna crtica. Mas essa palavra chama-se tambm recepo. Aqui se diz fortuna crtica, que, no italiano, a sorte do escritor. Ou s vezes o azar, o azar crtico. s vezes ele fica naquela escurido. Parece que por um sculo ningum fala dele, at que algum vai l e comea a ressuscit-lo. Isso bonito tambm, voc descobrir autores que a memria foi esquecendo.Hoje assistimos a uma espcie de revitalizao de Machado de Assis. Ele passa a ser lido fora do Brasil, sob os mais diversos pontos de vista. Como o senhor avalia essa voga: Machado de Assis internacional?Eu acho que a ns realmente podemos dizer que Machado de Assis ficou na sombra por um motivo histrico sabido: ele escreveu em portugus, no Brasil. Ento, isso pode estar acontecendo em outras culturas, chamadas na poca de perifricas. Hoje, acho que o termo est um pouco relativizado, porque o mundo est polarizado de vrias maneiras, sendo impossvel dizer aqui est o centro, aqui est a periferia. Mas durante muito tempo essa metfora foi vlida. E os pases que estavam, vamos dizer, numa condio de industrializao mais lenta e ainda no tinham uma lngua de projeo, como o francs e o ingls, ficaram na sombra. O caso de Machado de Assis foi uma injustia histrica que ter sido cometida tambm com outros autores. Mas, nesse sentido, a chamada globalizao foi-nos favorvel porque houve um momento em que a cultura brasileira e, sobretudo, o estudo da lngua portuguesa, passou a ser um fato na Europa e tambm nos Estados Unidos. Hoje podemos dizer que h um conhecimento razovel da literatura brasileira em alguns centros europeus: Berlim, Roma, Paris, Milo, Salamanca, Santiago, Madri e, nos Estados Unidos, nas melhores universidades. Acho que Machado de Assis se beneficiou dessa possibilidade de ser estudado e lido em grupos universitrios, alm, naturalmente, dos estudos sociolgicos que se fizeram. No s de Machado, os escritores contemporneos esto aparecendo na pauta. Clarice Lispector tem sido muito traduzida, por exemplo, e Guimares Rosa tambm considerado um dos maiores escritores do sculo 20, como Machado e outros grandes nomes. Pena que algum como Graciliano Ramos, que um escritor to poderoso, ainda no encontrou, a no ser muito limitadamente, a reputao que merece, mas h de chegar ainda seu momento como grandssimo escritor. Euclides da Cunha muito estudado pelos socilogos, antroplogos americanos.Ento, Machado est sociologicamente comeando a ser redimido da situao, mas isso do ponto de vista scio-histrico, porque do ponto de vista da mensagem, isto , do ponto de vista do texto do Machado, realmente ele comea a se impor como alguma coisa excepcional. Aqueles que tm mais sensibilidade nos aspectos individuais da literatura perceberam que esto diante de um autor extremamente complexo, da altura de um Henry James, a quem alguns aproximam muito, e alguns contistas americanos e ingleses. Aproximam s vezes do Proust, mas a eu j acho uma coisa meio forada. Mas v-se que a complexidade existencial de Machado digna da poca em que apareceu Freud, por exemplo, embora este absolutamente no o conhecesse, mas ele estava sintonizado com uma poca que estava cavando um conceito de inconsciente. Ento, pode-se fazer uma leitura interna de Machado com parmetros muito modernos. A psicanlise e suas vrias correntes, a literatura como despistamento, tudo isso que hoje estudado com tanta finura pelos crticos da modernidade foi descoberto em Machado. Machado era um escritor s aparentemente linear, mas ele tinha, vamos dizer, um subterrneo. Uma luta das paixes de um lado, do outro lado, do ponto de vista marxista, ou, digamos, sociolgicolato sensu,os interesses materiais so muito fortes na obra de Machado, os personagens esto profundamente ligados aos seus interesses materiais. Da deriva, vamos dizer, o sentimento de posse, deriva um aliciamento que os personagens fracos fazem dos fortes. Eles aliciam para poder subir. E da tambm, psicologicamente, tem a traio, a ingratido. Essa dinmica, que uma dinmica que os moralistas estudaram, os grandes moralistas franceses, La Rochefoucauld, Pascal, prenunciada no sculo 17, hoje estudada minuciosamente. Depois veio tambm a volta da literatura dos gneros, da mulher, das raas, e que a antropologia dos estudos culturais americanos tambm colocou em primeiro plano. Ento, de repente, num espectro de 30 a 40 anos, Machado se revela um autor extraordinariamente moderno. Acho que a ele se beneficiou tambm dessa abertura da globalizao.Especificamente sobre a leitura de um professor de Portugal, Abel Barros Baptista, existe alguma produtividade no tipo de leitura que proposta por ele?Eu j teria dificuldade de responder a sua pergunta e a no sei se vou dizer mais do que devo e menos do que posso. Eu no entendo muito as coisas do Abel, mas se eu disser isso vai ser lido de uma maneira irnica, de uma maneira ferina, e eu no gostaria que sasse dessa maneira, mas no sei como dizer isso fluentemente agora.Eu tenho dificuldade, porque ele tem uma polmica muito viva contra a leitura sociolgica. uma polmica na qual eu me inclu em parte. EmBrs Cubas em trs verses, precisei dizer que a leitura sociolgica j estava de alguma maneira extrapolando, mas que tambm as outras leituras podiam extrapolar. Mas, como essa era hegemnica, principalmente na Universidade de So Paulo, era preciso que algum dissesse: no, Machado mais do que um cronista do Rio de Janeiro do sculo 19, ou do Brasil; ele mais, por trs disso tem uma viso subterrnea, como diz Augusto Meyer, que vai decompondo, vai tirando sentido disso e de tudo aquilo que ele toca. As crnicas que ele faz, e que tm referncia Europa, Inglaterra, Frana, tambm esto penetradas dessa viso. Nesse livro procurei dizer o que penso. O ltimo captulo justamente sobre o teatro poltico na crnica de Machado de Assis. Realmente, a poltica aparece a ele, que foi observador do Senado quando jovem e um jornalista reputado doDirio do Rio. Ele via realmente aquilo que era uma farsa, um teatro, mas esse teatro um teatro que ele acha que uma coisa ligada ao final mesmo da poltica, que o poder instaura um teatro de representaes em toda parte, no mundo inteiro, como o poder se teatraliza. De modo que eu queria que sua pergunta no se estendesse especificamente ao Abel, porque ele, nessa polmica anti-sociolgica, acho que extrapola, no sentido de no reconhecer as vrias dimenses do Machado: a dimenso social; a dimenso existencial; que Augusto Meyer mostrou admiravelmente bem; a social, que vem do Schwarz e de seus discpulos; e a dimenso propriamente intertextual, que foi descoberta em grande parte pelo [Srgio Paul0] Rouanet. Gosto muito do livro do Rouanet, sobretudo a ligao com Sterne. Ele faz uma leitura completa do quanto realmente Machado deve aTristram Shandy, numa anlise mida.Ento, essas dimenses, separadamente, no conseguem explicar Machado. S uma delas transforma-se num verdadeiro fanatismo crtico. Agora, como conseguimos inter-relacionar as trs o Machado pblico, o Machado ntimo, o Machado formal , no meu ponto de vista, mais interessante, mais enriquecedor. Ento, deixemos em santa paz o Abel, porque minha confisso vai ser tomada de uma maneira irnica.O senhor dedicou sua vida literatura tanto como pesquisador quanto como professor, se que podemos dividir uma coisa da outra. O que o senhor pensa do ensino de literatura enquanto possibilidade de inquietao, de levar a paixo pelo objeto?Minha experincia cinqentenria, comecei dando aulas no colegial, ali pelos anos 1960, e eu tive uma surpresa, porque todos diziam que os alunos iam resistir muito. Tinha-se que dar literatura mesmo, desde o primeiro colegial, com alunos de 15 e 16 anos, para o cientfico. Eu dava aula no colgio Mackenzie, depois no Santa Cruz. Dei aula em vrios lugares, e mesmo no Estado, uma experincia que eu achei muito viva, no termo integral. A partir da minha tese de doutorado sobre Pirandello, em 1964, tive que deixar, mas eu deixei com uma certa tristeza, porque gostava muito de lidar com adolescentes, desmentindo tudo aquilo que diziam: Eles no vo se interessar, absolutamente. Voc vai dar histria literria, que est no programa, e pode comear com Cames ou com os poetas medievais, e eles vo bocejar o tempo todo e vo fazer a coisa para ter nota.Apesar dessa carga pessimista, que me assustou um pouquinho, eu tive uma experincia muito diferente, porque a maneira como eu abordava a literatura conseguiu despert-los. Porque eu lia mesmo os textos, e isso eu aconselho muito aos jovens, aos meus assistentes, s pessoas que eu formei e ficaram professores depois. Vocs no devem ter pudor da poesia, vocs tm que ler a poesia em voz volta. Ah, professor, eu tenho vergonha, ficar mostrando meus sentimentos. A poesia envolve evidentemente toda a vida subjetiva. Ns precisamos nos controlar, mas ler, porque no momento da leitura que tudo se esclarece. Vocs j esto interpretando, como algum que vai tocar alguma coisa no piano, num instrumento. Interpretar tocar bem, j se sabe o valor daquilo. Ento, vocs tm que ler em voz alta e mostrar tambm que esto profundamente interessados naquilo.Eu tive experincias to emocionantes. Quando eu dava, por exemplo, Cames, que estava no programa de Literatura Portuguesa, e parava, por exemplo, noVelho do Resteloou, sobretudo, na histria doAdamastor, que pico, tem um certo vigor, os alunos se entusiasmavam. Alguns at subiam na carteira. E ficavam declamando Cames! Parecia que ia ser incompreensvel, coisas que tinham sido escritas tantos sculos atrs. No! Lamos, aqui e l fazendo uma observao de vocabulrio, mas o contexto todo era um contexto que tinha uma unidade de significados, de sentimento, que eles se apaixonaram. Ento, depois que entrei na universidade, onde o clima era outro, um pouco mais sbrio, um pouco mais moderado, mesmo assim eu vi que era ler, era ler os poemas. Eu percebi que a leitura, uma leitura expressiva, uma leitura empenhada como se faz numa orao, em que se d o corao todo naquilo , melhor no fazer se voc no tem f. Voc tem que ler aquilo com a alma e com certo entusiasmo. Professor de literatura tem que ter certa vitalidade, entusiasmo, no pode ser muito anmico, tem que ter algum vigor na sua leitura para que ele contamine, no melhor sentido, para que ele chame vida. Porque tudo transborda para a vida, por isso a literatura acaba sendo, vamos dizer, uma organizao da vida, uma formulao dos nossos sentimentos, de nossas experincias, seja ambgua, seja moderna. Ento, a literatura na universidade tem uma grande funo humanizadora, ela humaniza. Os trabalhos que a gente consegue so muito bonitos quando a gente percebe que h esse empenho da parte dos alunos. E esse espao pblico tambm, voc fez uma pergunta que transborda os limites da universidade; eu acho que todos esses autores que vocs esto estudando, cada um deles organiza sua prpria experincia de um certo modo. O leitor que entrar em empatia com esses organizadores da experincia, esses estimuladores, certamente ter uma postura diante da vida mais engajada, mais nobre, mesmo quando pessimista. Mais compassiva. Vocs podem ter uma viso muito negra. A literatura contempornea tem momentos muito negros, o sujeito fica, assim, aterrado na violncia, com desrespeito pelo ser humano. A gente sente que, em geral, atrs daquele pessimismo, daquele ceticismo, h uma revolta, um desejo de que as coisas no sejam como so. Ento, voc acaba tendo uma posio crtica.A crtica literria ideolgica ou contraideolgica? Se ela for ideolgica, como aponta a contraideologia do texto? E se ela contraideolgica, em que medida se aproxima e se afasta da literatura?O problema da escrita ideolgica e contraideolgica que o crtico precisa estar sempre atento ao que escreve. Ele no vai fazer nada gratuitamente. Acho que quando o crtico descobre, ou acha que descobriu, num romancista, ou numa personagem, um cone ideolgico tpico caso de Machado de Assis, que tem famosos personagens, como o Pdua, ou o Cotrim, que so verdadeiras alegorias ideolgicas, a prpria essncia daquela burguesia cruel , tem que ter o trabalho de desdobrar isso, de mostrar como isso tem fios que levam histria contempornea, porque ali houve um esforo do Machado de Assis, no caso, de representar, um esforo de representao, mas no s. H personagens que primeira vista podem ser s catalogados dentro do livro, como Brs Cubas, que emvrias de suas aes, quando conta suas aes de juventude, seus atos em relao Eugnia, por exemplo, mostra que foi um pulha, um covarde, uma expresso da ideologia da poca. A est, no final do meu livro, o n ideolgico de Machado de Assis. Mostro que h em Machado uma denncia rigorosa desse universo, s que no s isso, porque se fosse s isso ele estaria como os naturalistas da poca, que esto fazendo denncias sem parar. Ea fazia, Alusio de Azevedo fazia, Raul Pompia, a seu modo, como tambm Lima Barreto. So grandes escritores contraideolgicos, mas Machado de Assis, como tem essa dobra de reflexo, faz com que, no caso do defunto-autor, ele fale do que fez e depois, como defunto-autor, reflita sobre o que ele era, quer dizer, a luz da conscincia est l dentro. Ento, essa luz da conscincia, usando um termo mais de psicologia tica, a cincia como uma luz, ela pode ser contraideolgica, embora ele no precise fazer uma afirmao. () Ento, Machado de Assis fez stira da sociedade. Sim! Mas acontece que as personagens dele, algumas delas, que so as que valem mais, como Bentinho, por exemplo, que depois vira Dom Casmurro essa transformao dele o que ? o momento de autoreflexo a que se chega a uma certa idade. Foi verdadeira ou no a histria que ele conta? Ela articulada em termos de reflexo, que no pode ser colocada simplesmente como tipo social, porque o tipo social no reflete. A literatura de caricatura tem muito isso, a stira vive muito disso: aquilo que as pessoas fazem e faro sempre igual, porque esto j com caracteres bem formados. Alguns datam de Rousseau (no vou fazer agora estudo da histria da arte), numa literatura autobiogrfica, das confisses dele; outros remontam a Montaigne; outros chegam mais perto de ns, da grande literatura introspectiva de Proust, de James Joyce, de Pirandello, de Kafka, enfim, um espectro enorme de literatura de auto-anlise. Esse momento de auto-anlise quer me parecer que pode ser contraideolgico, pelo menos ele dissolve a opacidade do tipo, que s aquilo, aquilo, aquilo. Por isso nunca aceitei que Bentinho fosse um homem da alta classe que desprezava, portanto, necessariamente, uma moa vinda de outra classe. Isso um empobrecimento terrvel, coloca cada um na sua classe, ento s se pode agir daquela maneira. No! O romance todo um desejo de confisso, de autoconfisso, de auto-anlise, de perplexidade, de tristeza. E isso Augusto Meyer viu bem. Ns demos sorte de ter tido um crtico como ele, que no era universitrio. Eu aconselho que vocs leiam com muita ateno a obra dele sobre Machado. O lvaro Martins tambm escreve de maneira muito bela e nada acadmica, mas ele foi muito sensvel; como era um grande leitor de Dostoivski, um grande leitor de Pirandello e a se v a importncia da literatura comparada , ele sai e consegue ver em Machado um eu subterrneo que a crtica sociolgica no conseguiu.