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LER, ESCREVER E
OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
Josenilton kaj Madragoa
Josenilton kaj Madragoa
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LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
3
Sumário:
Sumário: 3 COMO LER COM UMA LENTE BIFOCAL 4
AS FONTES PRODUTIVAS DO TEXTO ARTÍSTICO E DO TEXTO LITERÁRIO 13 DA ORIGINALIDADE DOS TEXTOS 16 SINCRONIZANDO E SINTONIZANDO COM ONDAS DE PENSAMENTOS 28 LENDO PARA ESCREVER, ESCREVENDO PARA LER 30 LIVRO: PESSOA LITERÁRIA CHEIA DE OPINIÕES E DE EMOÇÕES 37 LER, MAS COM A LENTE DA CENSURA E DA CRÍTICA 41 O LIVRO E AS IDEOLOGIAS DE MASSA 60 LER E VIVER. CONJUGUE ESSES VERBOS CONJUGAIS 75 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA 83
A ESTESIA DA ARTE 88 A ARTE COMO ORAÇÃO DE NÓS PARA DEUS 103 E DE DEUS PARA NÓS 103
O PAPEL DO ESCRITOR SOCIAL 116
Josenilton kaj Madragoa
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COMO LER COM UMA LENTE BIFOCAL
Todo bom texto literário reúne em si três obras de arte. A
primeira é o jogo das expressões; a segunda, o jogo das ideias
explícitas; a terceira, o jogo das ideias implícitas. E a chave da
abertura dessas artes está mais na percepção de quem lê do que
de quem escreve. A inteligência leitoral é tão ou mais
importante do que a inteligência escritural.
Qualquer texto escrito, sonoro ou visual, por mais
aparentemente bem feito, belo, coeso, coerente e bem
estruturado que seja, deve ser absorvido sempre com alguma
criticidade (particularmente estes em forma de simples ensaios-
cartas argumentativas e que não gozam desses atributos todos).
As redações são normalmente montadas a partir de uma
inteligência meio artificial, principalmente as que constroem
ficções, onde tudo é possível, em detrimento das
impossibilidades lógicas na comparação com o mundo real.
[Contudo, as ilogicidades da ficção não se confundem
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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necessariamente com as burrices lógicas das cenas de
ação, suspense, perseguição e perigo dos textos
cinematográficos, quando os personagens em perigo
reagem para se defender de forma sempre diferente
da vida real (para aflição ou irritação dos
espectadores). Via de regra, na boa literatura, as
ilogicidades guardam perfeita coerência com outras
realidades e são compreensíveis a partir de
construções lógicas profundas, ainda que mal
compreendidas ou normalmente refutadas pela
inteligência racional comum.] Contudo, mesmo as obras
ficcionais corriqueiras e normalmente absurdas e inverossímeis,
encerram verdades profundas, desde que se saiba entrever,
introver e superver através das camadas aparentemente ilógicas
que dão vida, sentido, coerência e coesão ao desencadeamento
ou desenovelamento da linha narrativa.
Por mais racionalmente inteligentes que sejam, textos são
redigidos por pessoas, quer queira, quer não, comprometidas
com visões parciais do mundo, por mais imparcial que seja a
Josenilton kaj Madragoa
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temática e por mais heterogênea que seja a experiência de vida ou
a postura conscientemente neutra de quem redige e de quem lê.
[A rigor, não existe ninguém cem por cento neutro
neste mundo, nem o chamado “livre-pensador”. Todo
mundo está ligado, direta ou indiretamente e
consciente ou inconscientemente, a várias linhas de
pensamento pré-existentes ou contemporâneas,
sucessiva ou paralelamente, e que se alternam a vida
inteira.
O que pode talvez permitir a intitulação a alguém de
“livre-pensador” é o seu não apego sistemático a
nenhum ismo ou logia reinante entre as grandes
formações sociais. Ou àquele que busca sintetizar das
várias correntes de pensamento o que entende ser
proveitoso ou verdadeiro para compor seu próprio
naipe de pensares e agires frente às questões maiores
da vida, durante as várias fases de sua jornada
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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terrena.]
Mas também não é o caso de se viver a discordar, de forma
sistemática, de tudo que é textualizado. O criticismo como
ferramenta de enfrentamento dos fatos textuais seja aquele
proposto pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Ele
defendia a importância do conhecimento como base de
investigação filosófica, mas ressaltava que os seres humanos têm
limitações cognitivas e consequentemente suas produções não
podem trilhar pelo dogmatismo nem pelo ceticismo absoluto.
No caso dos textos escritos, não é raro questões nevrálgicas
de assuntos complexos serem discorridas com grande amplitude
por autores que pouco vivenciaram na prática quanto a isso. É
que muitos artistas do pensamento escrito têm uma inteligência
cognitiva adquirida pelas próprias leituras analíticas de textos de
outros autores, ou pelas conversas, entrevistas e aprendizados
escolares. Isso lhes afia e favorece o conhecimento geral das
coisas, por indução e por dedução. E esse afiamento lhes capacita
à produção do próprio discurso. Um exemplo clássico disso é o
de Franz Kafka, que ambientou na cidade de Nova Iorque, sem
nunca ter ido lá, o seu best-seller “O Desaparecido” (ou
Josenilton kaj Madragoa
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“Amerika”, na revisão post morten feita por seu amigo
Max Brod (talvez o amigo mais famoso no círculo dos
grandes autores da literatura mundial)).
Ademais, a arte de escrever é também inspiracional, mesmo
quando se limita a metafisicar derredor de questões eternas e
insolúveis, como são as questões humanas, sociais e espirituais.
Escrever e ler são fenômenos exclusivos da natureza humana,
porque integram a capacidade comunicativa dos seres
raciocinantes, envolvendo visão e/ou tato e também inteligência
humano-espiritual interativa.
Ninguém escreve sozinho. As variações são apenas de sintonia,
de faixa e de frequência. Disso bem soube Pietro Ubaldi (1886-
1972), filósofo e pensador italiano, que escreveu, com o apoio de
“ondas de pensamento” (a que ele chamava de “noúres”), todas as suas
obras, inclusive “A Grande Síntese” (livro escrito em 1951, que
trata da evolução dos seres, desde o estado da matéria
até o do espírito e seu retorno a Deus. Recebeu linhas
de elogio de Albert Einstein, em carta enviada ao
autor).
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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Portanto, algumas “correntes de pensamento” que circulam
por aí podem ser mais literais do que se possa imaginar. Mas, a
qualidade transmissiva dessas ondas puras de conhecimento
depende das suas “portadoras”, que são outras ondas senoidais,
que fazem o seu transporte via aérea. [São semelhantes às
ondas portadoras de rádio.] E de onde se irradiam essas
“portadoras”? Justamente das nascentes dos próprios
pensamentos, que estão nos centros de consciência dos próprios
seres humanos geoterráqueos e dos seres humanos integrantes da
dimensão espiritual paralela à nossa.
{Você, que está aí momentaneamente “antenado” com estas
emissões de pensamento escrito, acredita que é possível haver uma
espécie de Física Quântica cabalística que pode surfar (estudar) tais
ondas desprendidas de qualquer ser pertencente a uma das
dimensões existentes? [Aproveitando para repisar: A Física
Quântica é o ramo da Física que estuda as partículas
subatômicas fundamentais que ainda não foram
mensuradas e talvez nunca o sejam com os
instrumentos até então conhecidos. Correntes afirmam
que as partículas fundamentais seriam a ponte entre o
Josenilton kaj Madragoa
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mundo tangível da nossa dimensão com o mundo
espiritual, que seria o conjunto de todas as outras
dimensões de vida acima da nossa. Neste caso, estamos
mais diante do que podemos chamar de Metafísica
Quântica, a partir da visão aristotélica. Já a Cabala,
entre outros conceitos, é um conjunto de ideias
místicas e esotéricas sobre as realidades naturais ou
humanas e que oferece soluções através de números,
letras e outros símbolos.] Seriam tais ondas seres inteligentes
e inteiramente autógenos? Seriam mesmo ondas? Se sim, a que
dimensão pertenceriam? Teriam alguma forma? Eu cá não
acredito, mas também não desacredito; apenas não tenho
referências aqui e agora, no bolso, para amparar qualquer
raciocínio a respeito. Minha tendência é não crer. Acho que ondas
de pensamentos, ou “noúres”, (ou “revelações”, segundo algumas
definições religiosas) e ondas de imagens virtuais, em si, não
existem. São reflexos ou projeções de centros inteligentes, que
usam os meios eletrônicos, químicos, físicos e biológicos
(mediunidade, inspiração, revelação, epifania ou simplesmente
pedido do redator-chefe) para expandir suas ideias. A contrario
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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sensu, seria como imaginar que todos os computadores da Terra
fossem desligados ao mesmo tempo e, após esse apagão mundial
de hardwares, a Internet continuasse ligada com total
independência. Seria possível? Apesar de não termos como provar
que a Internet estaria no ar, ou não, é de se crer, a priori, que ela
não poderia. Afinal, os servidores-transmissores físicos de onde se
propagam os sons e as imagens portadoras de nossos registros
mentais, sem energia, não estariam propagando nada. É de se
(ainda) crer que nenhuma comunicação em malha ou em linha
possa existir se não estiver ligado energeticamente um emissor
físico com um receptor físico (ainda que de dimensões diferentes),
pelo menos. Ou não? Ou pode estar havendo alguma
realimentação de dados também por grandes redes neurais
extraterrestres já imiscuídos com outros resultados que chegam
aos nossos monitores-receptores? Ou isso força cálculos de uma
matriz quântica ainda inexistente nas nossas matemáticas terrenas?
Você, que adora Física, já tem posição firme nesse sentido? Acha
que só o tempo dirá? Ou, por enquanto, tudo não passa de ficção
científica deste ensaísta ou de uma lebre levantada apenas da
minha cartola prestidigitadora? Sim? Não? Mais ou menos? Mais?
Menos? Em que onda de pensamento Você costuma surfar a
respeito? Ou Você também está que nem eu, em busca da onda
Josenilton kaj Madragoa
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perfeita de raciocínio quanto a essas questões?
Por outro lado, ou seja, na ponta extrema da senoide portadora
de energias-pensamentos, há o receptor. Este pode ser qualquer
um de nós, inclusive os produtores, leitores, analistas de discursos
ou apreciadores de textos e de outras manifestações de
pensamentos e de artes.
Quanto à escrituralidade, não é raro perceber-se mudanças
quase repentinas de frequência ou até de faixas. Isso ocorre várias
vezes durante um processo da escrita longa como um livro, cheio
de meandros e de subterrâneos, ao ponto de se iniciar um capítulo
com uma ideia e terminá-lo com outras, muitas vezes, totalmente
diferentes da ideia inicial, mais profundas ou mais superficiais. É
que temos, escreventes, uma espécie de capacitor variável ou
“varicap” mental, que vai mudando de “estação”, às vezes à nossa
revelia, quando não gera até interferências. Normalmente, é a
nossa própria vibração mental ou psíquica que consegue girar o
botão “tunning” da frequência ou o seletor de bandas. Assim, o
estado de espírito de todo produtor escritural, durante sua lavoura,
é fator momentoso, embora não decisivo, na seleção do que ele
pretende passar para o papel rumo ao leitor/receptor final.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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AS FONTES PRODUTIVAS DO TEXTO ARTÍSTICO E
DO TEXTO LITERÁRIO
Todo texto tem uma espécie de “personalidade meio própria”,
que é a projeção da personalidade do autor ou de outras
personalidades através do autor, reforçada pelas fontes
bibliográficas e biográficas. [A outra parte é o escritor em si, suas
experiências próprias e seus tirocínios.] Isso é o que estimula
bastantes escritores a serem assíduos leitores de seus próprios
textos, mesmo sendo estes boa parte deles próprios.
Qualquer interpretação sobre qualquer escrito é
válida. É a leitura interpretativa que torna o
escrito um texto. É a leitura que cada um faz no
momento, de acordo com as circunstâncias, sua visão
de mundo, suas tendências interpretativas, suas
texturas emocionais, suas lembranças remotas ou
recentes automaticamente evocadas, ainda que no
plano inconsciente.
Josenilton kaj Madragoa
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+++Legi komprenante kaj interpretante siamaniere
kaj surbaze de sia mondvidado estas tiel grave, kiel
skribi same. Tiel, pere de tiu interŝanĝo de
vidpunktoj, la skribitaĵo fariĝas finfine teksto (per la
laboro de la skibinto, kiu legas per la manoj, kaj per la
laboro de la leganto, kiu skribas per la okuloj). +++
[Ler entendendo e interpretando à sua maneira e com
base na sua visão de mundo é tão importante quanto
escrever também assim. Dessa forma, por intermédio
da troca de pontos de vista, o escrito torna-se
finalmente um texto (pelo trabalho do escritor, que lê
com as mãos, e pelo trabalho do leitor, que escreve
com os olhos).]
É mesmo. De um lado do papel há o escritor e do
outro, o leitor, cada um com seu mundo cheio de
mundos. O pobre do escrito fica no meio do caminho,
ou melhor dizendo, no meio do encontro (ou talvez
choque) de caudalosos rios culturais e ideológicos. O
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
15
bom é que a partir daí nasce um novo rio, e é assim que
as ondas de pensamento evoluem rumo ao grande mar
do conhecimento humano.
Enfim, todo texto é metade de quem escreve,
metade de quem lê. O significante idealizado
pelo escritor sobre o significado, que é o escrito,
nunca coincide integralmente com o significante
construído na mente do leitor, às vezes passando bem
longe, mas não importa. O importante é cada um fazer
sua leitura não deixando o escrito passar em branco
sem virar texto, sem virar-se texto.
Josenilton kaj Madragoa
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DA ORIGINALIDADE DOS TEXTOS
Em seu livro “Sobre o Ofício do Escritor”, o filósofo polonês
Arthur Schopenhauer (1788-1860) sentenciou nos seguintes
termos: “Só quem tira diretamente da própria cabeça a matéria do que
escreve é digno de ser lido.”
Jamais aqui pretendo desfazer nesse respeitabilíssimo ponto
de vista. Apenas entendo ser necessária uma interpretação a
respeito. O que pode haver de matéria genuinamente original em
um texto é a reflexão sobre o assunto ou a forma da sua textura
ou tessitura, não o assunto em si.
Todo escritor é antes de tudo um retratista de memórias
individuais ou coletivas, um resenhista dos fatos existentes,
existidos, a existir ou “existíveis”, ainda que na própria
imaginação. E entre estes fatos podem estar outras resenhas de
autores sobre o mesmo assunto “sub oculis”. [Por isso não há
direitos autorais sobre pensamentos. Só os há sobre
redação de pensamentos.]
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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Do nada absoluto é que ninguém cria nada, ou melhor, é que
nada se cria (conforme a máxima latina ex nuhilo nihil = nada
nasce do nada), nem imaginação.
Tudo é criado, no mínimo, a partir de referências, ainda que
estas jazam eventualmente em uma dimensão transterráquea. É
uma lei da Física. Tem que haver uma linha de A para B. Daí em
diante, o recheio, a cobertura ou um novo arranjo de palavras é
com as inteligências recriadoras e expansionistas, quer da parte
escrevente, quer da parte legente.
Nenhum beletrista nos dias atuais pode pretender não usar os
recursos da intertextualidade. [Em Linguística, “intertexto”
é todo texto que vem antes de outro, servindo de base
para este. A intertextualidade tanto pode ser
histórica ou anacrônica, quanto espacial ou sincrônica.
Neste caso, a presença do texto anterior também
está em circulação na contemporaneidade.] Não pode
desprezar também a ferramenta da hipertextualidade
(característica do hipertexto ou texto digital
agregado de recursos informáticos, como som e
imagens) e até da hipermídia (complexo textual em que as
Josenilton kaj Madragoa
18
palavras ocupam lugar mínimo em relação ao som e à
imagem.) Hoje em dia, quem apresentar qualquer escrito como
original corre grande risco de estar fazendo plágio indireto. Pode
achar que está descobrindo ideias inéditas, quando, em verdade,
está apenas reinventando a roda de pensamentos já prontíssimos
sobre a matéria, ainda que desdobrados fragmentariamente na
grande malha da intertextualidade.
{“Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...”
(Poema “Do Exercício da Filosofia”, de Mário Quintana)}
Todo texto é, no mínimo, uma paráfrase indireta de outro
texto do passado recente ou do passado remoto, isso quando não
for um simples pasticho ou uma paródia. Por isso, e de qualquer
forma, eu contra-arrazoo esse raciocínio de Mário Quintana, com
a seguinte frase do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-
1881): “Não há assunto tão velho que não possa ser dito
algo de novo sobre ele”.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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Principalmente na atual contemporaneidade pós-moderna,
quase nada se cria apenas a partir de segmentos AB. As bases
criacionais têm sido quadrados e labirintos ou até cubos
(inclusive o famoso “cubo mágico”☺). Até os recursos
midiáticos trabalhados em conjunto são armas cada vez mais
interativas nos processos de conquistas de espaços, de clientelas,
de consumidores. É o instituto da transmídia, que procura
difundir uma ideia comercial, política ou ideológica, desde por
exemplo um livro até o twitter. Quando determinado público-
alvo não é atingido por uma mídia, ele é atingido por outra sobre
o mesmo assunto. Essa é a ideia.
De qualquer forma, as ondas de pensamento humano têm
suas ênfases produtivas no decorrer da história da Terra. Até
poucos séculos atrás, efetivamente havia o império dos textos
geniais, criacionais, solucionais e, por isso, unidemensionais e
estáticos, que eram norte de pensamentos coletivos (para os
poucos que sabiam ler intelectivamente). Era a fase da
supratextualidade. Havia revelações originais, ainda que baseadas
em pensamentos mais antigos de outras cristas cognitivas da
mesma longa onda.
Josenilton kaj Madragoa
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Hoje, a prevalência é a depressão da grande onda do saber.
Nada de novo tem surgido para impressionar ou mudar
radicalmente os pensares humanos. O que impera agora é a
intertextualidade, ou seja, a recriação, a reciclagem e a digestão
compartilhada de tudo o que já foi “jogado” anteriormente.
Nestas tendências pós-modernas de construção textual, que
apontam para uma espécie de criação compartilhada global, o escritor
se torna uma espécie de redator final. Isso é estimulado
especialmente pelo avanço das tecnociências de suporte
criacional (processadores de texto, dicionários e enciclopédias
virtuais, sites de buscas, hipertextos, hipermídias etc). A noção de
intertextualidade histórica e ambiental se amplia cada vez mais. A
citação a autores do passado e do presente caracteriza
sobremaneira as novas produções de texto, especialmente porque
os próprios leitores da atualidade têm suas habilidades
inteligenciais mais bem estimuladas e são mais bem multi-
informados do que os de outrora. Mas, por outro lado,
tendem a se cansar facilmente diante de simples
textuários (escritos sem formatação e sem
ilustrações).
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
21
Influências e deslocamentos parafrásticos e parodísticos são
uma tônica cada vez mais presente. A intertextualidade linear
cede espaço para a multitextualidade, o que tem viabilizado,
inclusive, as criações coletivas (em que os coautores nem se
conhecem pessoalmente). Isso decorre da própria evolução e
barateamento dos meios de comunicação eletrônicos. Tudo hoje
tende a ser epistemologicamente multirreferenciado.
Portanto, a Literatura, em qualquer de seus gêneros, tem de
acompanhar as múltiplas possibilidades de criação já reinantes
nas demais artes atrativas do grande público (cinema, música,
arte contemporânea etc).
O escritor que pretender ser lido na atualidade
multicomunicativa tem de modernizar suas formas de abordagem
e tem de surfar nas novas ondas de predominância natural da
intertextualidade e da multidisciplinaridade. Urge se coadunar,
inclusive, com o sucesso cada vez mais crescente das chamadas
“ciberarte” e “ciberliteratura” e de outras formas midiáticas de
produção e divulgação textuais, inclusive através do ipod, e-book
etc.
Claro que a criatividade humana é progressivamente infinita e
sempre extrapola os limites do segmento AB, esticando-os,
Josenilton kaj Madragoa
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entortando-os, invertendo-os, rasgando-os e praticamente
confundindo-os. [Seria, por exemplo, o caso dos
singulares originalões Elomar, João Guimarães Rosa,
Clarice Lispector, Glauber Rocha, Salvador Dali, Pablo
Picasso, Franz Kafka e Machado de Assis? Quem Você
excluiria dessa lista ou incluiria nela? Frise-se que
eles não foram exatamente criativos nas ideias, mas,
sim, na forma de explorá-las, de recontextualizá-las e
de emocionar seus apreciadores através delas, cada
um em sua época própria.]
Não é raro mentes altamente inventivas ignorarem quase tudo
que já está instituído e montarem seu próprio subsegmento AB, a
partir do qual erigem seu universo criacional e suas leis
decorrentes. Podem até não ser vistos com bons olhos ou não
ser devidamente apreciados pela sua contemporaneidade, por
eventualmente faltar em suas criações alguma coerência ou lógica
aparente (típico de muitos criadores compulsivos). O importante
é que suas obras estão aí no mundo, criadas, à espera talvez de
gerações futuras de olhares contemplativos ou mais intelectivos
ou interpretativos. Podem demandar muito tempo para que
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
23
sejam encaixadas epistemologicamente dentro de alguma teoria
criativa constituída.
[Muitos gênios e inspirados da criação, entretanto,
conseguem empolgar e agradar, mesmo no estreito
segmento AB, ainda que na chamada arte minimalista.
Conseguem explorar recursos cinematográficos apenas
nas palavras que escrevem, imprimindo emoção,
inteligência, suspense ou poesia em cada esquina, ou
melhor, em cada parágrafo.]
A depender da sua dimensão, alguma criação genuinamente
criativa[!] mais fundamental pode até receber um tratamento
taxonômico exclusivo. [Taxonomia ou taxinomia: ciência
da classificação das coisas por palavras, normalmente
agrupadas de acordo com o ideário geral de cada ramo
de saber, especialmente o científico. Principalmente
no campo das ideias, para cada realidade há sempre
duas palavras definidoras, sendo uma mais erudita e
outra mais popular, uma mais técnica e outra mais
vulgar.] Pode também receber uma definição epistemonímica
Josenilton kaj Madragoa
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inteiramente nova. [Epistemonímia é o estudo dos nomes
das ciências, artes, habilidades, técnicas,
conhecimento, práticas criativas e práticas
cognitivas.] Pode fazer surgir uma nova ciência, uma nova arte,
uma nova filosofia, uma nova religião ou uma nova doutrina, a
depender de sua serventia em algum campo social
contemporâneo. Geralmente, o primeiro tratado é a obra seminal
que vai desencadear toda a corrente de seguidores adiante. [O
pior inimigo do conhecimento, por um leigo, por um não
especialista acadêmico, sobre os fenômenos naturais
cientificizados, é a própria ciência e suas
nomenclaturizações engessantes e limitadoras de sua
compreensão direta. Essa dificuldade de
entendimento direto e rápido surge a partir da
generalização, metaforização ou signoneutralização
das palavras técnicas ou terminologias que são
escolhidas para definir cientificamente os fenômenos
sub oculis.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
25
São quase duas ciências antagônicas: os fenômenos
vivos e pré-existentes e a taxinomia definidora desses
fenômenos. Para o novel pesquisador de fenômenos
naturais cientificizados, o importante, pois, é estudar
de dentro para fora e não de fora para dentro. É
entender primeiro o âmago do fenômeno, a partir de
métodos diretos de apreensão de conteúdos. Depois
disso pode-se tampar os fenômenos, já
compreendidos, com as correlatas terminações
científicas. O conteúdo é mais importante do que o
rótulo, isso em qualquer forma de abordagem, em
qualquer ciência. Primeiro desmitificar, destrinchar,
dissecar, abrir o conteúdo para identificar seu
mecanismo de funcionamento. Depois, procurar ou
escolher-lhe o rótulo. O importante é, ou
laboratorizar os assuntos excessivamente teóricos,
por conta própria, em estudos paralelos autodidáticos,
ou buscar teorizar ou pesquisar as nomenclaturas dos
Josenilton kaj Madragoa
26
assuntos excessivamente práticos. Ou se cerque por
um lado, ou se cerque por outro, mas que se domine o
assunto, na teoria e na prática, mesmo considerando
as ciências da palavra, como Letras e Comunicação.]
Só não se pode mesmo, ao meu ver, é se criar a partir do
incriado absoluto.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
27
****
Somos perissológicos repetitivos) por natureza, não só para
relembrar e reafirmar, mas também para ressignificar, estender
conceitos ou ajustar o que já sabemos a novas realidades.
Estamos sempre reinventando a roda de saberes. De certa forma
a evolução dos pensamentos se opera através de círculos em
espiral, que vão se expandindo com as eras, a partir das próprias
reobservações e reconceitos individuais e coletivos. Por isso, os
famosos padrões de comportamento e de conduta
sociais se perpetram, como espécies de déjà-vu, déjà
vécu ou déjà entendu ouvido algo) meio previsíveis.
[Déjà-vu ou, literalmente, “já visto”, é a impressão de
já ter visto ou presenciado algo. Déjà vécu é a
impressão de já ter visto, vivido ou experimentado
algo. Déjà entendu é a impressão de já ter ouvido
algo.]
Josenilton kaj Madragoa
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SINCRONIZANDO E SINTONIZANDO
COM ONDAS DE PENSAMENTOS
As vibrações inspiracionais inferiores são controladas pelas
vibrações superiores, mas não impedem uma simbiose eventual
com a “estação” abaixo.
Na gradação dos mundos, os seres humanos não estão no piso.
Há inteligências mais baixas do que as nossas, sem poderes
primários de interferir na nossa mente. Mas, se nós baixarmos a
nossa vibração, vamos automaticamente abrir canal de passagem
para as inteligências menores poderem se infiltrar e influenciar nas
nossas mentes ou até nos nossos corpos e, consequentemente, nas
nossas decisões. (Seria uma subtextualidade?☺) Quando fechamos
o canal, mudando a sintonia através da elevação vibratorial,
deixamos de captar de novo a estação mais densa. O problema, às
vezes, são os estragos feitos enquanto estamos na sintonia vibrátil
inferior, alguns deles podendo resvalar em textos incitadores a
vícios, loucuras mentais, longos processos obsessivos ou auto-
obsessivos ou até ao suicídio(!), a depender sempre, é claro, da
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
29
qualidade receptiva de cada leitor.
Também o leitor-receptor tem formas diferentes de captação
da mensagem, a depender do seu estado humano-espiritual, da
necessidade, da pressa e, particularmente, da capacidade de
absorção do essencial.
Até a escolha de um texto pelo leitor ou espectador pode sofrer
influências de seu próprio estado de espírito. Da mesma forma, a
escolha de um leitor pelo texto(!) pode influenciar o próprio
estado de espírito daquele. Isso costuma fazer com que muitos
legentes abandonem uma leitura já engrenada, por já terem
mudado de estado íntimo, ou por causa do próprio texto ou por
outros fatores extratextuais. Nem sempre abandonar um texto pela
metade significa que o mesmo não presta ou que se teve preguiça
mental de ir até o fim. Pode ser também que o pedaço lido é que já
encerrou toda a necessidade mais premente e atual do leitor. O
resto poderá ser lido adiante, ou não, a depender também da
sequencialização subtemática que o autor deu à narrativa.}
Josenilton kaj Madragoa
30
LENDO PARA ESCREVER, ESCREVENDO PARA LER
(ESPECIAL PARA A TURMA B DO PRIMEIRO ANO
NOTURNO DO ENSINO MÉDIO)
Mesmo não sendo necessariamente um erudito, é de se esperar
que todo escritor, especialmente o que escreve textos longos como
os livros, tem de saber mais um pouco do que o leitor, pelo menos
em nível de informações sobre o que discorre em profundidade.
Afinal, para corroborar as teses do seu texto, normalmente o autor
também lê um bocado e pesquisa um conjunto de fatos atinentes,
muitos deles inéditos para grande parte do público-alvo.
A partir de terminologias emprestadas da Filosofia grega
clássica, podemos dizer que todo beletrista exerce três trabalhos
bem distintos, a saber: a práxis, a poesis e o labor.
A práxis é o trabalho de pesquisa e de redação ascendente do
texto bruto, ao mesmo tempo em que o trabalhador-pensador vai
tentando decodificar os insights que recebe no momento do estro,
para enfeixar e indexar as ideias e propor soluções para os
problemas levantados no escrito.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
31
A poesis é justamente o trabalho mais felicitador, porque
consiste na própria captação dos insights, no voo feito nas asas da
imaginação, da inspiração ou da intuição. Enfim, é um
nivelamento por alto com pensamentos que não são os da sua
consciência formal, mas que interagem com esta, a fim de formar
o todo que vai para o papel.
Já o labor é a parte mais penosa, a mão de obra, ou seja, a mão
que escreve a obra, com suas correções, alterações, adições,
reduções, novas confirmações em pesquisas e leituras, entrevistas,
leituras e mais leituras do mesmo texto. O labor serve para
desembrutecer o texto e torná-lo o mais simpático e correto
possível para o leitor-apreciador. É um tormento. Mas fazer o quê?
Nada se faz sem sacrifício, não é mesmo? [Você aí, leitor ou
leitora, não está também tendo o sacrifício de ler este
texto artesanal, para captar a essência do que está
sendo dito, com apoio às vezes do fardo lateral
chamado dicionário? Faz parte do seu labor leitoral.
Mas qual será a sua poesis e a sua práxis como leitor(a),
aqui nesta lavoura literária?]
Josenilton kaj Madragoa
32
Ler é desescrever. É passar o conteúdo de outra mente para a
sua própria, através de um duto de papel (no presente caso, um
“tubo de ensaios”). Mas ler funcionalmente é fazer o devido
reprocessamento e a devida reengenharia cognitiva decorrentes. É
escrever para si, nem que seja na própria mente. É adequar à
concretude de sua própria leitura da vida o novo feixe de ideias
absorvido. Neste contexto, mais importante do que saber é
readequar o que se sabe para uma melhor interação com as
realidades circunjacentes. É mudar o ponto de vista ou o
paradigma que está lhe causando problemas relacionais, o que uma
simples frase lida ao acaso pode provocar. [A Terapia
Cognitiva, espécie de ramo da Psicoterapia Breve, é que
agita mais especificamente essa questão e tem ajudado
milhares de pessoas a mudar de lente para enxergar
melhor o jogo relacional. Muitos terapeutas, aliás, tem
usado a chamada biblioterapia (cura através da leitura
de livros) para tratar distúrbios nervosos.]
Esta deve ser a função social e plurissocializadora da cultura
livresca e textual como um todo: ajudar o leitor a entender melhor
a vida, inclusive a sua, e a interagir de forma cada vez mais eficaz
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
33
com o seu derredor social e seus ismos, logias, arias, ezas e outros
mistérios humanos sem fim. [Isso sem contar a função artística,
religiosa, espiritual, política, reflexiva, terapêutica, cultural, étnica,
econômica, técnica, informativa, contemplativa, emotiva, lúdica ou
meramente recreativa dos textos em geral. Não existe texto sem
função.]
Embora não tenham que ser tão cultos em nível de
informações, muitos ledores tendem a fazer ilações mais
profundas e certeiras do que aquelas expostas nos livros. Isso
quando já são multiarticulados pela experiência leitoral. Todo texto
admite múltiplas leituras. Há sempre vários textos superpostos
sobre um mesmo escrito. O escrito tem seu final com o ponto de
encerramento. O texto que ele gera não tem fim. O que já se
escreveu por exemplo sobre “Dom Quixote” (considerado o
melhor livro do mundo), de Miguel de Cervantes, desde o início
do século XVII, quando foi inicialmente lançado, até os dias de
hoje, deve ter pelo menos umas cinquenta mil folhas a mais em
relação à quantidade de folhas do próprio livro.
Quem é habituado a fazer leituras não obrigatórias costuma
levar vantagens, inclusive, nos ambientes escolares e acadêmicos,
em razão do raciocínio literário já pré-amadurecido. Os ledores
Josenilton kaj Madragoa
34
que já têm forjada uma visão pessoal de mundo, solidificada pelo
sebo das velas frente aos livros, tendem a captar mais rapidamente
a massa crítica dos assuntos tratados, sem precisar decifrar todo o
escrito detidamente, frase a frase. Também assumem, com relativa
segurança, posicionamentos próprios e independentes em relação a
temários polêmicos, coincidentes, ou não, com o do autor da
escrita.
Por isso, entre outras, é que cada um de nós deve não só ler,
mas estudar livros, para ir gradualmente ampliando a capacidade de
raciocínio e escolarizando cada vez mais a inteligência,
ultrapassando até muitos escritores, em nível de percepção dos
universos trazidos à baila de papel. Um leitor atento e experiente
pode ver num texto muito mais do que viu o escritor do mesmo,
graças ao que podemos chamar de inteligência leitoral. O resultado
intelectivo e emotivo que emana das páginas escritas vai atingir de
forma diferente cada leitor que interage com o livro. Muitos
leitores têm reflexões, impressões e emoções tão diferentes sobre
um mesmo texto que nem o próprio autor teve ou pensou que
despertaria nos outros. Ademais, o escritor não escreve
com o controle frio e objetivo dos escrivães de
cartório. Ele também se denuncia. Ele também retrata
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
35
a querência de onde ele veio. Ele também diz o que é
que comeu no jantar da noite anterior, nas entrelinhas.
A questão fatal que atormenta o universo de escritores e
leitores que estão também na batalha pela sobrevivência,
especialmente neste mundo capitalista que não privilegia mais a
erudição nem mesmo o cabedal de saberes próprios e autônomos,
é o pouco tempo livre de cada um de nós para os misteres da
palavra escrita. Por isso, temos de ser extremamente seletivos na
escrita e na leitura. Somos instados a escrever ou a ler o que tem
mais a ver com nossas necessidades atuais de ascensão, seja em
que nível for, preferencialmente sem a pretensão de acharmos que
o que já escrevemos ou lemos basta.
[Livro didático, por exemplo: leitura corrida? Assim,
ele se torna ininteligível. O ideal é não ler, mas
conversar com o autor. Mantenha-se um ritmo de
leitura interacionista, vendo no autor um contador de
fatos, fazendo entonações, pausas, exclamações,
repetições, perguntas e outras “intimidades”. “Discutir”
com o autor faz o assunto morar por muito mais tempo
Josenilton kaj Madragoa
36
dentro da nossa memória. Deve haver uma leitura-
curso, sistemática, metódica, independente da
imposição curricular.
Livros de matemáticas. Cada capítulo é um livro em
si, dividido em duas partes: a introdução, geralmente
pequena, onde o autor expõe o tema e apresenta as
fórmulas, e a parte de exercícios, bem maior. O bom
leitor aí é o que aprende a introduçãozinha, faz os
exercícios propostos e vira escritor também: completa
o capítulo no seu próprio caderno, inventando outros
exercícios, para fixar a “alma” do assunto no fundo do
neocórtex cognitivo (lado esquerdo do cérebro).]
{"Os primeiros quarenta
anos de vida nos dão o texto:
os trinta seguintes, o
comentário" - Arthur
Schopenhauer}
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
37
LIVRO: PESSOA LITERÁRIA
CHEIA DE OPINIÕES E DE EMOÇÕES
Seja, enfim, como for, o livro, em si, é uma espécie de pessoa.
Tem personalidade própria, em muitos pontos bem distinta da do
próprio autor. Embora seja destituída de qualquer senso moral (já
que isso é coisa de ser humano), essa pessoa literária(!) traz
mensagens que muitas vezes não têm nada a ver com a prática
vivencial do próprio autor, podendo estar bem acima dele, no
sentido moral, intelectual e emocional. Mas é claro que o autor é o
único responsável por todo o conteúdo objetivo exposto nas suas
páginas. Muito do que elas contêm corresponde apenas ao que ele
gostaria de vivenciar mesmo, ainda que vagamente. Ninguém
escreve ou é o que não gostaria de ter escrito ou sido, já que o
primeiro censor de cada obra de arte e de si mesmo é o seu
próprio artista ou primeiro apreciador, ainda na fase de elaboração
do trabalho. [Daí peço-lhe que Você, como leitor e censor
final, aprecie estes ensaios também com a sua caneta-
tinteiro, e envie-me pareceres para inspirarem um
Josenilton kaj Madragoa
38
eventual repincelamento (próxima edição) com
melhorias. Só não garanto incluir todas em eventual
nova edição, porque Você pode levantar lebres maiores
do que as minhas daqui, e aí não haverá mesmo espaço
para mantê-las todas neste repositório de questões
basilares e seminais.]
O sucesso de um texto social ou popular deve se dirigir
preponderantemente para as consciências, ainda que também para
os corações. Os mestres e expertos do discurso, da oratória e da
retórica, e hodiernamente do marketing e da neurolinguística
social, de há muito exploram esse principio na produção de
mensagens de massa. [Foi o que levou ao sucesso, inclusive,
os discursos de Hitler e de Mussolini, por muito tempo.
Seus públicos-alvos na época foram atingidos muito
mais na emoção do que na razão.]
Num texto enfaticamente intelectivo e emotivo o autor deveria
ser chamado, por uma questão de justiça, de iniciador, porquanto
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
39
um texto com esses atributos continua sendo criado mundo
leitoral afora.
O mais importante, reitero, é cada leitor tentar adaptar aos
seus os pontos de vista alheios, onde necessário. Afinal, cada
leitor é um mundo e é também um escritor para si mesmo. Às
vezes, apenas um parágrafo em um escrito redigido ainda na
época dos papiros pode ser o elo perdido que um leitor do
presente precisa para ligar os pontos de sua própria tese pessoal
sobre o que será a vida na Terra daqui a mil anos!
Ler, mas para fazer a própria leitura. Ler, mas ler-se pela
leitura. Ler com os olhos, mas também com a caneta. Ler
em voz alta, se quiser, mas principalmente com o
pensamento alto. Ler partindo do princípio de que nada do
que é lido deve ser aceito como verdade absoluta por si só,
inclusive a leitura de si mesmo.
Por mais monocórdio que eventualmente seja, todo livro é
bem estruturado e rico quanto à apresentação da tese, dos
Josenilton kaj Madragoa
40
argumentos sustentadores da tese e da conclusão (mesmo
porque, do contrário, se for para alguma editora, o editor não
contrata para revender a ideia).
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
41
LER, MAS COM A LENTE
DA CENSURA E DA CRÍTICA
Normalmente os livros defendem partes da verdade, não a
verdade completa dos fatos sociais e humanos. Daí Carlinhos
Brown ter dito que “os livros não são sinceros” (em sua canção
“Magamalabares”). Isso deve abranger, também, roteiros
cinematográficos, textos teatrais, teses, dissertações, artigos de
revistas, críticas, críticas a críticas, letras de música e outras
formas de manifestações sociocomunicativas escritas, sonoras ou
visuais.
É básico se ter o costume de ler livros, não como um
bibliófago (leitor voraz e insaciável de livros), mas sempre
tentando montar quebra-cabeças raciocinais em busca do sentido
da vida que melhor se coadune com a própria lufa-lufa
existencial.
Mas, como o tempo despendido para se ler um livro é
relativamente longo, é bom fazer pré-leitura sobre o tema
Josenilton kaj Madragoa
42
tratado, para se fazer uma censura prévia e ver se vale a pena
mesmo gastar neurônios e tempo com a essa leitura maratônica.
Seria recomendável ler todo e qualquer livro sem critérios,
sem pré-julgamentos, sem preconceitos. A rigor, todo texto é
uma mídia, inclusive cada livro. Tudo que comunica está inserido
na chamada cultura digital, mesmo fora dos computadores, como
os livros impressos.
Essa relação livros-tecnologia midiática está muito estreita.
Ninguém escreve mais fora dos computadores e sem consultas à
internet nem deixando de visar à internet.
Mas, a questão maior não é a mídia como meio de
transmissão de dados em si. A questão maior é que, através de
uma mídia ou de várias delas, sempre está se tentando passar
algum produto comercial, político, econômico, religioso ou
ideológico, embora também alguma mensagem profunda, de
alerta, de segurança ou verdadeiramente aproveitável para
finalidades pragmáticas, intelectuais ou espirituais.
Daí o custo-benefício de se ler um livro tem sempre de ser
levado em conta. Ler um livro custa. Custa dinheiro, tempo,
neurônios e principalmente ideias. Mas, é um investimento
progressivamente obrigatório, para decifrarmos os enigmas
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
43
ideológicos do sistema capitalista predatório, senão seremos
prejudicados em vários momentos da nossa vida biblioteca afora.
Há livros sinceros. Há deles que escondem o jogo, mas há
deles que exibem certos jogos, ainda que como verdades eternas
e universais, nas linhas ou nas entrelinhas. [Às vezes, a
grande verdade esposada por um livro está espraiada
na corrente de pensamento inteira que ele representa.
Aí tem-se de “continuar a leitura” em outras obras do
mesmo autor ou de outros autores da mesma corrente,
com alguma complementação até em livros de
correntes diferentes. Não é raro autores
apresentarem teses interessantíssimas e que
correspondem a verdades universais, mas fundamentá-
las mal, inclusive através de figuras de linguagem
pobres, palavras-ônibus e hiperônimos ou hipônimos de
baixo índice de representatividade, e
consequentemente concluí-las mal. Às vezes, é o
Josenilton kaj Madragoa
44
contrário: teses fracas ou já batidas são bem
“refundamentadas” e têm novas conclusões
surpreendentes, por causa da apropriação a figuras de
linguagem mais inteligentes e de alto índice de
representatividade.]
Há livros que disseminam construções, ou destruições. Daí o
cuidado não só na escolha dos livros, mas também da inicial
prevenção e espírito de análise crítica no seu enfrentamento
página a página, para tentar ver se não se está sendo enganado,
levado ao ludíbrio, a discursos preconceituosos, terroristas,
suicidas ou simplesmente comerciais.
Ler livro em si é vital, não só para entender as bases
raciocinais de grandes pensadores e comunicadores, mas para se
defender das manhas e artimanhas dos traficantes ideológicos.
Temos que estar sempre em leitura, estudo ou análise de um
texto biblíaco (referente a livro, não às Sagradas Escrituras),
porém sempre atento para saber por que e para que estamos
dedicando tantos neurônios na absorção de uma sequência tão
longa de ideias em forma de caracteres. É o instituto da análise
do discurso. A questão é saber se o calhamaço de páginas da vez
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
45
está nos ajudando a construir nossos próprios raciocínios, ou se
está nos ajudando a destruir raciocínios alheios, inclusive os
eventualmente mediados pelo próprio tomo, isso supondo que o
volume já passou pela catraca da nossa censura prévia e que já o
elegemos para ler. [Tal postura analítica estenda-se para qualquer
texto, desde o longo ao curto, desde o verbal ao não verbal
(sonoro, visual etc), desde o linguístico ao extralinguístico.
Também, muitas vezes, a “caixa preta” de um livro fica no
“making off” ou vai mesmo para a lixeira, quando o autor teme a
censura editorial ou a dos próprios leitores. A melhor solução
que muitos autores oferecem ao público no final do livro
ficcional é matar o personagem principal ou o antagônico, por
falta de ideação de uma solução mais abrangente e efetivamente
ética. Pode ser também por não querer propor a solução que
verdadeiramente acredita, mas que não tem coragem de exibir ao
público-alvo médio, que pode não concordar com ele, ou porque
simplesmente pode “desagradar” ao editor. Entretanto, quando o
autor consegue apresentar uma solução teórica exequível,
plausível, humana e justa, muitas vezes conclui a intriga antes
mesmo do clímax. Aí ocorre apenas a última batalha entre o bem
e o mal, mais impactante, porém o bem confirma sua vitória já
Josenilton kaj Madragoa
46
pré-delineada, e ele e todos os seus aliados terminam felizes,
ainda que momentaneamente (até a próxima parte da história).
Muitas vezes o essencial de um texto também é invisível aos
olhos. Pode estar nas entrelinhas ou nas subentrelinhas, ou
simplesmente permanecer na gaveta, porque o autor não tem
permissão ou capacidade linguística para falar tudo nem de toda
maneira. Quase sempre o essencial está não clariceanamente nas
entrelinhas ou nas entrelinhas das entrelinhas, mas em muitas
linhas adiante mesmo, ainda por escrever ou por ler! Todo texto,
por mais plurilinear que seja, é sempre o ícone de um hipertexto
bem maior, sem letras, inacessível para ledores superficiais ou de
uma mesma geração do autor. Muitos textos, em si, são o
elemento referente na coesão intertextual anafórica, sendo que o
elemento consequente só vai surgir décadas ou séculos adiante, da
caneta de um autor que pode nem ter conhecido ou nunca ter
ouvido falar do seu colega antecedente.
Ler é decriptar, mormente quando se trata da leitura que vai
além da mera intelecção textualista. É quando se mergulha mais
profundamente em interpretações que vão às entrelinhas ou ao
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
47
subsolo do território textual, extrapolando as perspectivas do
próprio textuador-escritor e do próprio textuador-leitor e
ultrapassando até os limites cronoespaciais do objeto textuado.
Os meandros e subterrâneos do texto são perceptíveis apenas
para os iniciados na misteriosa e quase esotérica arte da
hermenêutica profunda. Nos dias de hoje isso tem sido privilégio
de poucos ledores. Vivemos sob a prevalência do
neoignorantismo, imposto não mais pela Igreja da Idade das
Trevas, mas pelo Capitalismo, igualmente supranacional, que
prefere consumidores não pensantes e que contribuam para o
apressuramento, de forma segura e constante, das esteiras de
produção de culturas de massa altamente lucrativas, amparado
pelo tecnologismo dos textos eletrônicos.
Poucas pessoas leem livros por conta própria e de forma livre
na nossa contemporaneidade. Com o império do consumismo de
tempo, de emoções e de conhecimentos triviais e inculturais,
estamos coletivamente condicionados a não pensar criticamente, a
não contemplar um texto artístico, a não se nutrir
intelectualmente. A inteligência, reforçada pela intertextualidade
superficial, fica só até a primeira camada subcutânea das tessituras
discursivas, que favorece apenas a inteligência associativa, mas não
Josenilton kaj Madragoa
48
as ilações próprias. Não se apura, assim, o sentido do intelecto
para perceber o que há atrás da parte de trás da textualidade formal
ou aparente.
Existe uma sensibilidade com as imaginações cadenciadas,
sequenciadas e profundas que só os livros de reflexões, lidos com
reflexão, conseguem despertar.
[As novelas televisadas têm sido muito mais
neuroimpactantes e extasiantes como textos de
comunicação ideológica e emocional do que as novelas
escritas. Do último quartel do século passado para cá,
temos sido educados, viciados e condicionados a apenas
sentir e nos emocionar a partir do que vemos e ouvimos
na telinha eletrônica. Estamos perdendo a capacidade
de criar e imaginar as cenas de um bom texto de ficção
quando estamos de frente para um livro.]
Cuidemos para não nos tornarmos apenas multi-inteligentes
em nível de conhecimentos superficiais de mundo, cheios de
informações, estressados de tantos fatos e factoides veiculados
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
49
pela mídia televisiva e internética, mas intelijumentos no que se
refere aos conhecimentos sólidos e profundos, o que a cultura
livresca costuma sedimentar.
Para a grande maioria, ler tem sido um exercício cansativo. As
pessoas não têm paciência para concluir a leitura sequer de um
capítulo (a não ser quando estrategicamente exibido em forma de
mensagem internética ou de outros atrativos tecnoicônicos,
pictóricos e sonoros da hipermídia). O cérebro “não deixa” que se
leia um texto longo em um livro, e pior ainda se todo o livro for
um textuário (livro composto apenas de textos, sem
figuras, imagens, desenhos e nem mesmo notas
explicativas ou comentários), porque já está viciado em não
se viciar mais em ler. Tudo é questão de condicionamento do
corpo (e o cérebro pertence ao corpo, embora tenha sua mente
quadrimensional).
Há também as tendências e condicionamentos
comportamentais do cérebro coletivo. A resistência ao contato
com os livros vale principalmente para a maioria dos jovens
brasileiros, enquanto agregados em seus subgrupos sociais.
Josenilton kaj Madragoa
50
Ademais, tem sido mais fácil conquistar uma garota ao ser visto
com um ipod, mp4, mp5 ou até com um aparelho leitor de e-
books do que com um livro de papel na mão. Para muitos jovens
tem sido vergonhoso portar um livro nas ruas sem obrigação
escolar. No mínimo, é mal visto e corre o risco de ser expulso ou
não ser recebido nas tribos urbanas e escolares e seus ecoletos
lexicalmente antilivreiros.
O capitalismo produtivo, por sua vez, privilegia não mais quem
apenas sabe e detém orgulhosamente seu patrimônio intelectual,
mas, sim, aqueles que sabem o que fazer com o que sabem, desde
que esse fazer interesse ao mercado e que seja vendido bem barato
aos empresários da “cultura de massa” e das transmídias, para ser
revendido bem mais caro aos consumidores de pensamentos,
sentimentos e emoções superficiais. De detentores de
conhecimento, os artistas e produtores textuais passam a ser
fornecedores de conhecimento-mercadoria, transformando-se em
capital intelectual.
Os livros, pois, viraram artigo de luxo. Não interessam no jogo
capitalístico das relações sociocomerciais por atacado e a varejo.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
51
Mas, justamente por isso, eles estão em alta cotação na preferência
dos poucos legentes e escreventes (relativamente) independentes e
dos consumidores conscientes, que não chegam a cinco por cento
da população do mundo capitalista atual. Pouca gente lê livros hoje
em dia. Porém, quem os lê é muito mais inteligente e articulado
argumentativamente do que a maioria dos faladores de esquina,
desde que cuide de adequar o saber livresco com a prática
convivencial.
Agora, mais do que nunca, precisamos de múltiplos
conhecimentos formais, profundos e livres, como arma de defesa
contra tentativas incessantes de esvaziamento das nossas
consciências pelas ideologias dominantes. E não importa a idade
nem o grau de instrução nem as inevitáveis contaminações
ideológicas de que somos vitimados. Ler não é só para conhecer,
mas é também para não ser levado de roldão pelas massificações
alienantes globais, para não perdermos nossa identidade
consciencial, cultural, emocional e sentimental profunda.
Josenilton kaj Madragoa
52
****
Quanto mais se apuram os sentidos na captação da essência do
que é expresso, tanto mais inteligente ou introligente se fica e vice-
versa. Não é à toa que inteligência e intelecto vêm do latim “intro
legere” ou “inter leggere” e significa exatamente ler nas entrelinhas, ler
dentro, através da criatividade e da juntura ou ligação de ideias e
sinais ocultos e não sensorialmente aparentes.
[A rigor semântico, inteligência remete-nos mais
para a ideia de percepção dos bastidores dos símbolos,
ou das intenções logo atrás dos símbolos. Já a
introligência vai mais além ou mais fundo: é a percepção
do que há por trás dos bastidores dos símbolos. É um
mergulho mais profundo, mais próximo da verdadeira
sabedoria.]
{A pessoa que pensa que sabe alguma coisa, ainda não
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
53
tem a sabedoria que precisa. - Coríntios I, 8:2.}
Qualquer texto só tem vida quando é lido e absorvido.
Enquanto isso não ocorre, ele não passa de um amontoado de
letras sem sentido, muito embora saibamos que todo texto escrito
tem sempre outro texto oculto em suas entrelinhas.
Hoje o texto é tido como um fenômeno multidimensional. É
sempre precisa uma segunda ou até uma terceira leitura, mais
profunda, para perceber as camadas de textos não aparentes. E
essas inter e introleituras podem escavar e encontrar textos que
nem o próprio autor superficial do texto (o redator da primeira
dimensão escritural, estática, aparente, formal) teve a intenção de
assentar nessa engenharia de subsolo. São criptografias mágicas da
inspiração.
Entretanto, o que mais importa, em princípio, é quando
coincide do texto exibir pela locução ou pela ilocução, o naco da
verdade que cada leitor ou mesmo o escritor está procurando
para satisfazer algum desejo, necessidade ou ânsia pessoal, de
acordo com o momento e o lugar atual da sua própria história. É
Josenilton kaj Madragoa
54
uma verdade apenas relativa, mas suficientemente alterativa da
realidade existencial de cada um.
Alguém, por exemplo, pode dar uma boa sacudidela em sua
forma de ver os fatos sociais apenas a partir da leitura de um
livro de cordel. Outros podem se sensibilizar profundamente, ao
ponto de melhorar suas relações pessoais, após a leitura atenta de
um manual de sobrevivência na selva.
A dialética do pensamento humano está sempre evoluindo.
Um autor lança uma tese; outro, tempos depois, lança uma
antítese; outro, um século depois, lança uma síntese e por aí
afora, ou melhor, adiante. Sem contar as críticas, resenhas,
artigos, monografias e outros textos que complementam,
ajustam, esclarecem e adaptam as publicações. De certa forma,
todos os textos estão interligados e fazem parte do rascunho de
um único livro inacabado, qual seja, a História do Universo, no
qual todos nós somos coautores e coleitores. Trata-se de uma
grande criação coletiva hiper-histórica e hiperambiental. É o que
podemos finalmente chamar de unitextualidade.
Alguns textos têm o condão de enfeixar laivos de verdades
eternas, atemporais ou multitemporais, às vezes ditas de forma
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
55
camuflada, sob figuras de linguagem e imagens, que buscam a seu
modo interpretar fenômenos da natureza e do Universo e seus
fundamentos e mundos paralelos (ou seja, fenômenos da Física
espiritual ou univérsica). O problema surge é com as leituras
posteriores para interpretação das interpretações e com as
correntes de pensamentos derivadas (Vixe!) e suas eisegeses
(interpretações de um texto com acréscimo de ideias
pessoais do próprio leitor). [Grosso modo, todas as
correntes de pensamento religiosas reconhecem e
interagem com esses fenômenos ditos
extrassensoriais, sobrenaturais ou paranormais,
apenas com interpretações e denominações diferentes
e especializações específicas. Contudo, a capacidade
perceptiva varia a partir das posturas sensitivas e
emocionais de cada um em cada fase de sua vida. E,
para seu refinamento, depende também dos
conhecimentos ocultistas acumulados ou do próprio
burilamento da personalidade individual ou social.]
Josenilton kaj Madragoa
56
Por outro lado, existem construções perfeitas de meras
hipóteses residentes apenas na imaginação do escritor, reforçadas
por seu vasto conhecimento sobre a ciência que serve de fundo
para a sua “história”. E se ele também for “fera” em lógica, tiver
uma imaginação bem fértil e intrinsecamente coerente, pode
promover o casamento perfeito entre fatos reais e verdades,
ainda que, por ora, construídas apenas na sua cabeça. Podem ser,
por enquanto, apenas “verdades chutadas”. Mas, com o passar
do tempo, podem até vir a ser efetivamente comprovadas parcial,
aproximada ou totalmente.
Muitas dessas “verdades imaginadas” podem não ser
inteiramente imaginárias. Se forem “meias verdades”, o tempo
vai se encarregar de extrair a “verdade verdadeira” que há nelas e
desprezar os outros cinquenta por cento de eventuais
parlapatices. Se tiverem sido “verdades arredondadas” ou
“verdades aproximadas”, pode ser necessário apenas tirar os
excessos de embalagem imaginária, dar um “lustro” e exibir o
conteúdo quase pronto para uso (não desprezando as sobras
ideológicas, que podem ser verdades profundas para outras
mentes ainda relativamente iniciáticas). Entretanto, se tudo não
passou de uma historiada inteligentemente montada, ela será,
mais cedo ou mais tarde, inteiramente desmascarada,
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
57
principalmente se seu criador usou de má-fé. A mentira, mesmo
com a aparência mais convincente de verdade eterna e capaz de
convencer longamente toda uma geração, sempre vai ter pernas
suficientemente curtas para tropeçar no corredor da história.
[Antes do ponto parágrafo, é importante apenas
arrematar que, mesmo antes da comprovação de
muitas teses defendidas como verdadeiras, é de se
considerar o que seus efeitos provisórios têm feito
em prol dos que as seguem. As crenças, convicções ou
certezas humanas nem sempre correspondem às
exigências frias e imperturbáveis da razão.
Entretanto, se elas ajudam pessoas a se reformar
intimamente para melhor, então seus efeitos são
reais. Isso pode ser o que mais importa, a depender do
momento histórico e do lugar em que se viva.]
O ideal é que, ao expor uma tese despertadora de polêmicas, o
defensor desafie a si mesmo e a todos a um confronto dessa tese
com a razão (em oposição à mera fé), frente a frente, tentando
provar que não se trata de mera hipóstase (em Filosofia
Josenilton kaj Madragoa
58
contemporânea, ficção ou abstração falsamente
tomada como real). Só a coragem de propor esse desafio já
pode bastar para, pelo menos, imprimir alguma seriedade ao que
se está expondo. E se ele puder oferecer provas científicas ou
pelo menos “início de prova material” ou indícios claros da
verdade que apresenta, então há uma grande chance de se tratar
mesmo de alguma “verdade verdadeira”. Do contrário, corre-se o
risco de que tudo não passe mesmo é de uma “mentira bem
chutada”.
Enfim, somos ilhas de olhos cercadas de textos por todos os
lados. E tudo que comunica merece atenção, porque tem uma
causa e tem um propósito, explícito ou escuso. Ler a vida lá fora,
pela janela do coletivo, é tão necessário quanto ler Dostoievski
durante o trajeto para a faculdade. Mesmo porque se não
entendermos o que se passa além da janela de vidro, poderemos
nunca entender o que se passa aquém da janela de papel.
Poderemos nem perceber alguém na rua tentando nos jogar uma
flor, ou tentando nos jogar uma pedra. Sem livros, poderemos
nós mesmos não nos refinarmos o suficiente para lançar
sementes de flores janela afora. Poderemos lançar nós mesmos
nossas próprias pedras, ou sermos nós próprios as pedras.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
59
Enfim, parafraseando Einstein, ler livros demais pode ser um
problema; ler poucos livros, também. Ler um livro só ou
nenhum livro, pior ainda.
Josenilton kaj Madragoa
60
O LIVRO E AS IDEOLOGIAS DE MASSA
Mesmo no passado mais “trevoso”, quando o conhecimento
era monopolizado por duas ou três correntes de pensamentos
antagônicas entre si, não havia, como nunca haverá, estruturas
culturais objetivamente puras. As barreiras entre os vários ramos
de conhecimento sempre foram mais conceituais e preconceituais
do que reais. No fundo, no fundo (ou por baixo mesmo), sempre
houve algumas brechas escondidas que permitiram o intercâmbio
entre as culturas, por baixo das cercas, na calada das noites,
mesmo na “idade das trevas”, ainda que sob os riscos de
enfrentar denúncias, fogueiras inquisitoriais, cicutas, guilhotinas,
forcas, torturas, paredões, masmorras, lavagens cerebrais e até
mesmo as lavagens conscienciais ainda predominantes.
Neste início de milênio não existem mais escolas ou correntes
de pensamento formadas, seguidas, estudadas ou analisadas
isoladamente, pelo menos no campo das Ciências Humanas.
Mas, não estamos à deriva por falta de ondas. Estamos
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
61
“redescobrindo”, “relendo”, “ressignificando” e “redignificando”
algumas correntes holísticas mal interpretadas e criminosamente
engavetadas no arquivo morto da História (algumas às
margens do próprio Mar Morto!). [No meado do século
passado foram encontradas centenas de pergaminhos
em grutas às margens do Mar Morto, que revelaram
segredos revolucionários acerca das religiões, da
política e dos comportamentos sociais na época de
Jesus. Muitos livros têm sido escritos acerca dessa
descoberta.] Isso se deve, inclusive, aos eternos esforços dos
arqueólogos e restauradores e aos novos recursos tecnológicos.
Ressuscitam-se, quase por si mesmas, muitas linhas de
pensamento oprimidas pela ditadura ignorantista do passado e
também outras correntes neutras ou neutralizadas pelas
ideologias dominantes doutrora e ainda do presente.
É certo que muitas correntes do passado remoto e do passado
recente mereceram mesmo ir para a lixeira da história. Mas
outras, justamente por terem ido, atrasaram sobremaneira o
bonde biarticulado da evolução planetária, ainda que esta tenha
Josenilton kaj Madragoa
62
várias estações de reabastecimento, transbordos e adaptações na
sua longa estrada cheia de escalas.
{Saber não é tudo, mesmo que seja sobre si mesmo. O
verdadeiro tudo é converter o saber que se tem em ações que
promovam o crescimento de si, dos indivíduos circundantes
e das coletividades em geral. – Caboclo Feé, fabricante de
artigos afrocaboclistas, para um ex-colega de curso primário que
insistia para que ele ingressasse no ginásio, em diálogo enquanto
atravessavam a ponte D. Pedro II, entre as cidades de Cachoeira e
São BA), em março de 1967. }
****
Às vezes, também muito do que deveria ser exposto em um
livro acaba ficando mesmo é nas entrelinhas ou mesmo atrás das
entrelinhas[!], a espera de subentendimentos do leitor. Isso é
grafado às vezes em eloquentes reticências, exclamações de alta
carga semântica, interrogações suspeitas, vírgulas ambíguas, aspas
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
63
irônicas e parênteses comprometedores. A própria palavra “fim”
no fim do livro já encerra uma meia verdade.
Tais questões meio ocultas muitas vezes não são captadas pelo
radar menos calibrado dos leitores desatentos. Podem também
ser explanadas em linguagem encriptada ou em linguagem
matemática, normalmente inacessível aos “homens de letras”. [A
Teoria Geral da Relatividade que o diga, ou melhor, que o
calcule.]
Ler é inteligencial. Quem lê, com qualidade e não com
quantidade, dentro de uma rotina diária, normalmente investe
bem na capacidade de pensar melhor, de forma arrumada e
analítica. Aprende a concatenar melhor suas ideias. Habilita-se a
ter visões múltiplas e aninhadas sobre os fatos corriqueiros, a ter
opiniões formadas ou a construir raciocínios coerentes sobre as
questões mais amplas da vida e a evitar generalizações
conceituais.
Uma sugestão “da casa” é ler todo ano uma enciclopédia
universal de um volume só, na abertura das leituras anuais, mas
só ler, sem pretensões de dominar nada. O importante não é
saber minuciosamente os assuntos, mas é depois saber que já os
Josenilton kaj Madragoa
64
viu em algum lugar e que por isso devem ser procurados para a
solução de um enigma ou qualquer problema.
Também, na média, que a cada mês se leia um livro e a cada
fim de semana, um conto, uma minibiografia, sinopse ou resumo
de livro.
Diariamente, quebre-se o jejum leitoral com um poema,
crônica, miniconto ou com uma página de um texto qualquer
interessante, desde que não seja de bula de remédio ou de manual
de instruções. [São metas ideais, mas ai de nós se não
fossem os ideais a nos servir de parâmetros para as
nossas realidades, não é mesmo? E que cada um siga e
não pare nunca de tentar se aproximar dos seus
ideais.]
Ainda idealmente, que cada um busque conteúdos que
somem, que se enquadrem em sua visão geral de vida, mesmo
eventualmente contra o que se pensa, através da adequação ou
correção da chamada “dissonância cognitiva” (Teoria
desenvolvida pelo psicólogo estadunidense Leon
Festinger (1919-1989), em meados do século passado,
segundo a qual nossos pensamentos e conhecimentos
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
65
tendem a influenciar nosso comportamento, e vice-
versa. [É a finalidade milenar da educação, não é
mesmo?]). É muito uma questão também de custo (de tempo) x
benefício (de resultado).
****
A pobreza de vocabulário das pessoas que não leem livros,
reinante na nossa sociedade contemporânea, tem criado uma
espécie de Novilíngua às avessas.
Enquanto o Esperanto é uma língua planejada para expressar
qualquer nuance do pensamento humano (não só graças a sua
riqueza de nomes monorradicais, mas também pela grande
possibilidade de aglutinações e afixações), a Novilíngua ou
Novafala (língua oficial criada pelo governo do país
fictício citado em “1984”, romance de George Orwell),
era também planejada, mas para justamente não permitir
pensamentos abstratos. Tinha poucos recursos de expressão de
ideias, ao ponto de induzir os falantes a não crerem na existência
Josenilton kaj Madragoa
66
de certas verdades, por não terem palavras para expressá-las. Era
a cegueira linguística.
Pois bem. Ao nosso povo não é imposta uma língua oficial
emburrecedora, mas não é possibilitada nem estimulada uma
educação para o domínio da parte rica da própria língua,
depositada principalmente nos livros.
{Sim, porque o português escrito das revistas e jornais e
veiculada nas demais mídias de alcance popular, espelha a parte
pobre da língua (já que tenta atingir o leitor genérico ou
universal), em que pese à riqueza de informações disseminadas
sobre os fatos e factoides da nossa cotidianidade. O português
dos meios de comunicação trivial não é rico nem de raízes nem
de aglutinações que expressam ideias. Busca alguma
compensação com as figuras de linguagem, clichês e lugares-
comuns.}
Não impor o pior, mas não educar para o melhor, é quase a
mesma coisa. Condiciona-se indiretamente para raciocínios
caliginosos, dislogias, alogismos, nonsenses... Induz à anorexia
intelectual ou à cegueira linguística.
Embora com baixa permissividade de aglutinação de raízes, a
língua portuguesa, mesmo sendo uma língua eminentemente
analítica, é uma das mais ricas do planeta em nível de sinônimos
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
67
e antônimos primitivos, neologismos, afixos e possibilidades
metagramaticais e hipergramaticais. Isso se evidencia
sobremaneira nos livros. Diz-se que o alemão é o idioma perfeito
para a filosofia, por causa das possibilidades de aglutinações de
raízes. Também o português pode ser uma língua ideal para a
filosofia (e para os pensamentos puros e reflexões acadêmicas),
mas só para quem tem amplo vocabulário de substantivos
primitivos ligados a ideias. Os livros, quando lidos com o
dicionário, costumam ajudar nessa conquista. [Eu,
pessoalmente, que não tenho esse vocabulário todo tão
rebuscado, nem tematizo questões sociais e humanas
apenas pela ótica filosófica, tento prestigiar a
gramática lógica, artificial, porém mais esclarecedora.
Na escrituração, desenvolvo minhas próprias
formações aglutinais e formações parassintéticas
extravagantes. Contudo, ainda que ao arrepio da
norma culta, sempre tento antes alguma outorga
dicionarística.]
Josenilton kaj Madragoa
68
As pessoas, em sua gigante maioria, desconhecem a língua
livresca, por não terem o hábito de ler textos em brochuras com
mais de cinquenta páginas, muito menos consultar dicionários.
[Refiro-me aqui a livros acadêmicos e aos ligados aos
pensamentos e à análise dos fenômenos sociais e humanos.]
Na fala, domina-se apenas o chamado português popular,
cheio de hipônimos e hiperônimos ou palavras-ônibus. Isso é um
solo fértil para as ideias curtas derredor de questões mais
profundas e amplas no campo da cultura, da filosofia, da história
e da política. Afastadas ou desestimuladas ao contato com os
livros, pelas ideologias de massa, as pessoas tornam-se, pois,
analfabetas cognofuncionais. Consequentemente, passam a
desconhecer certas verdades e certos fatos da sua própria
socialidade, virando mais facilmente massa de manobra de
manipulações espertas e expertas no campo da sociopsicologia,
da neurolinguística de comportamento, do terrorismo
informacional, do marketing consumista, da engenharia
memética, da engenharia social (ou espionagem
sociocomunicacional), do fascismo capitalista, das falácias lógicas
de convencimento, da inoculação de vírus ideológicos no corpo
mental coletivo e de outras formas de domínio, manipulação,
alteração ou anulação de consciências coletivas e individuais.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
69
****
Aqueles que já têm uma visão geral de vida baseada nalguma
religião, ciência, ou filosofia geralmente ganham mais tempo,
porque já enquadram as leituras em cima de uma plataforma
sólida de reflexão. É muito adiantador se ter, por exemplo, uma
linha de raciocínio jus-filosófico ou juspsicológico, filobíblico,
econômico, sociológico etc.
O ideal é se ter várias plataformas de linguagem de raciocínio
ou de transraciocínio disponíveis (na memória do cérebro, na
memória da biblioteca, na memória do computador) ou naquela
sua caixa de livros e revistas encostadas há muito no canto do
seu quarto, para uso sempre que oportuno. Quando uma base de
apoio não oferece imediata solução, busca-se outra. É a
vantagem da criação da intertextualidade e da inter, multi ou
transdisciplinaridade. [Lembra também os programadores
de softwares. Quando estão às voltas com uma grande
dificuldade de resolver por exemplo um problema de
cadastro de clientes em Delphi ou em Visual Basic,
Josenilton kaj Madragoa
70
recorrem a outra linguagem ou sublinguagem, como
SQL ou C. Há, contudo, os cobras-criadas da escola
antiga, que se “safam” usando apenas a melhor das
linguagens de programação: o algoritmo e suas
infinitas possibilidades de programação em papel. No
campo do pensamento, o algoritmo guarda comparação
com a lógica filosófica, com a erística, a apagogia e a
epagoge. E ha a linguagem lexical, com seus termos
monossemânticos e mais precisos, montados
principalmente com afixos, no caso do português.]
Quando se diz que devemos ter cuidado com o homem de
um livro só, em verdade se quer dizer que devemos nos acautelar
contra o homem de uma só plataforma de raciocínio,
especialmente se esta não for em si muito abridora ou
estimulante a processamentos autorraciocinativos.
****
Quanto mais se aprende a ler fazendo sua própria
hermenêutica (interpretação do sentido das palavras),
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
71
tanto mais se apreende nuances do que quis dizer o autor, no
fundo, quando o disse na linha de frente. É o instituto da
inteligência leitoral ou inteligência interpretativa. [É um
diferencial bastante proveitoso nos dias de hoje,
quando as mensagens subliminares cativantes,
mentirosas, falseadoras, omissoras de verdades e
dominadoras de consciências disputam espaço com
discursos e informações boas e honestas nos meios de
comunicação de massa. Só que aquelas levam vantagens
sobre estas, porque são direta ou indiretamente
patrocinadas por grandes corporações industriais,
comerciais, religiosas, políticas e informacionais.]
Às vezes, uma frase pode ter dez palavras, mas dizer trinta
para um leitor versado em análise do discurso, retórica, semiótica
verbal e teleologia (estudo das finalidades), ou bastante
experiente em leituras comparadas com a própria observação dos
fatos da vida. É quando se começa a emitir juízos de valor cada
vez mais refinados, tornando-se mais seletivo e crítico, sem
necessariamente perder o prazer da boa leitura, inclusive no
campo da literatura ficcional e da poesia. [Teses acadêmicas
Josenilton kaj Madragoa
72
podem ser embrionadas ou inteiramente defendidas,
ainda que de forma indireta, dentro de romances ou
de outras formas ficcionais. É o caso de Jean Paul
Sartre, que defendeu quase todas as suas teses
filosóficas através da ficção.]
De todo estilo literário pode-se colher lições utilitaristas para
melhor enfrentar o jogo relacional da vida, cheio de regras,
fórmulas e estratégias. Quem é bibliófobo (que tem aversão a
livros), ou quem não recorre constantemente ao apoio livresco
sobre as várias questões gerais da vida, tende a perder mais do
que ganhar nos jogos mais refinados dos relacionamentos sociais
e pessoais. Não que os livros ofereçam soluções garantidas para
o que quer que seja, mas lê-los pelo menos nos faz conhecer
outras possibilidades de enfrentar os problemas que nos afligem
dia a dia. [E há quem enfrente problemas em série, em
paralelo e entrecruzados, envolvendo várias relações e
vários níveis de conflito, como se fossem uma mesma
personagem atuando em várias novelas
simultaneamente. [Vixe!] Conhecendo a teoria e a
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
73
ambientação que envolvem cada uma de suas ações, é
de se entender, minimizar ou desenovelar melhor os
vários conflitos, porque se aprende não só a jogar
aleatoriamente, mas também a contar as cartas do
jogo, a seu favor, o que os livros costumam facilitar.]
Mesmo não sendo o sonho de consumo da grande maioria da
população nem sendo a única fonte de saber formal, os livros são
gêneros alimentícios de primeira necessidade da alma.
Precisamos consumir livros. E quanto mais nutritiva for essa
alimentação bibliófila, a partir da escolha de livros de qualidade
(considerando, inclusive, o pouco tempo livre para leitura livre da
maioria), tanto mais robustos e fortes vamos ficando do ponto
de vista intelectual, com evidentes repercussões na saúde mental.
Uma grande vantagem dos livros sobre outras formas de
comunicação é o total controle sobre o ritmo de absorção do
conteúdo. O livro é um cérebro vivo e portátil, sempre a nossa
disposição para consultas e reconsultas, como, quando e onde
quisermos. Isso sem contar que ele tem mais tempo (páginas)
para defender seus pontos de vista, e por isso acaba
convencendo mais os leitores do que as outras formas de
Josenilton kaj Madragoa
74
comunicação.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
75
LER E VIVER.
CONJUGUE ESSES VERBOS CONJUGAIS
Depois de um longo tempo de leituras e reflexões simultâneas
(que são de certa forma autolivros), passamos a ter a capacidade
de, em poucos minutos, ir de 0 a 100km de entendimento geral e
básico de um livro. Isso quando pegamos um assunto não tão
novo para nós, a fim de formar uma ideia do que se trata mais
especificamente, muitas vezes só folheando o sumário ou dando
uma olhadela na introdução e na conclusão. Não se trata da
chamada “leitura dinâmica”, mas, sim, de uma compreensão
básica dinâmica (da mesma forma como é bastante
cronogerador ter uma compreensão dinâmica de todos
os fatos da vida que batem às portas sensoriais a todo
momento), ou, mais precisamente, de uma inferência rápida
acerca do conteúdo, o que é facilitado com o aumento do
vocabulário ou pela elevação do QI verbal, graças às viagens
leitorais de longo curso. Isso é também mais viabilizado pela
visão enciclopédica formada pelas longas sedimentações de
leituras e reflexões teleológicas. [Por via de consequência,
essa inteligência leitoral estimula ou desenvolve as
Josenilton kaj Madragoa
76
inteligências cognitiva, social ou interpessoal e
intrapessoal.]
Muitas vezes, na “leitura” que um bom entendedor faz de um
prolixo de pensamentos, de sentimentos, de palavras ou de ações,
vê-se que o que este pretende “botar pra fora” é simples. Poderia
sê-lo feito em bem menos palavras ou ações.
Também no terreno minado das comunicações verbais,
explosões de emoções, mesmo ágrafas ou áfonas, subdizem todo
um discurso detalhado e facundo para o bom observador
treinado na janela da leitura de entrelinhas. O tomador de tempo
é que, não raro, a massa crítica ou o essencial só aparece em sua
resplandecência no fim do “discurso”. Mas também fazem parte
da natureza humana esses arrodeios de pensares e de sentires e
suas influências nos próprios seres humanos e seus arrabaldes. É
o que poderíamos chamar de Física Humana Quântica, nunca
aparente, sempre essencial, mas fundamental para decidir ou
fazer decidir o destino dos mundos, direta ou refletivamente.
Apesar dos muitos comportamentos acessórios supérfluos e
inúteis, a dramaticidade humana, com suas simulações de boa-fé
ou de má-fé, é sempre necessária para comover, para sensibilizar,
para chamar a atenção. Mas o recado por baixo do drama é
simples e pode até nunca se externar em palavras claras, mesmo
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
77
porque não existem palavras suficientes para representar todas as
nuances do pensamento e do sentimento humanos. E estes são
infinitos. Por mais que alguém domine seu idioma e por mais que
o idioma de alguém seja rico de expressões semânticas ou de
possibilidades aglutinadoras (como o alemão e o Esperanto), a
verdade do pensamento e do sentimento humanos sempre será
incompletamente representada. E a culpa não é só do idioma,
mas é principalmente de nós, que sequer sabemos identificar um
décimo do que realmente pensamos ou sentimos em toda sua
profundidade, que dirá saber expressá-lo através de palavras. [É
também por essas limitações idiomáticas, aliadas às limitações
cognitivas dos autores e dos leitores, que “os livros não são
sinceros”, no dizer de Carlinhos Brown.]
Todo beletrista supersensível tem muito mais para dizer do
que consegue escrever, por falta de capacidade linguística, sua ou
do vernáculo, para decodificar tudo o que capta na
macrodimensão das ideias e das imaginações.
É aí que entra a importância da leitura e do conhecimento
linguístico e lexical progressivo. Quanto mais dominamos as
possibilidades lexicais, psicolinguísticas e sociolinguísticas do
idioma tanto melhor encerebramos as ideias e nos expressamos e
Josenilton kaj Madragoa
78
entendemos as manifestações linguageiras da cotidianidade social,
inclusive as não verbais. Entender mensagens profundas de um
caboclo do grande sertão ou de um quilombola do Recôncavo
baiano é tão importante, para entender o universo, quanto
entender a linguagem acadêmica ou erudita dos cânones
filosóficos ou dos compêndios de Física Quântica, para entender
a si mesmo.
****
Em muitas hipóteses, o cerne da investigação de sentidos
dentro de uma expressão humana qualquer não é saber se esta é
verdadeira, ou não. É tentar saber onde há nela verdades e onde
há mentiras, inverdades ou não verdades. Mesmo porque as
palavras costumam ser traidoras. Diz-se normalmente o que não
se está pensando exatamente, por falta do devido vocabulário ou
por falta da devida emoção.
{"Então escrever é o modo de quem tem a palavra como
isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa
não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se
escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
79
com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a
não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva
então é escrever distraidamente." - Clarice Lispector, em seu
livro “Água Viva”. }
No geral, os livros evocam imaginações de outras realidades
profundas ou possíveis presentemente, como nenhuma outra
obra de arte ou veículo de comunicação. Por isso são os
melhores guias para conduzir à imaginação do mundo feliz. E
muitas vezes conduzem, se não a Shangri-Lá (a paradisíaca
comunidade tibetana do romance “Horizonte Perdido”
(1933), do escritor inglês-estadunidense James Hilton
(1900-1954)), pelo menos ao local onde se escondem os
óculos da razão e da inteligência. Estes, se bem polidos com a
flanelinha da paciência e da persistência, podem ajudar a enxergar
um caminho mais seguro rumo à tão sonhada felicidade relativa,
aqui e agora.
Quanto mais diversas forem nossas bibliografias, bem como o
domínio das várias linguagens sociais, tanto mais abrangente será
nossa capacidade epistêmica de entender “os postulados,
conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico,
Josenilton kaj Madragoa
80
ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade
cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus
paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a
história; teoria da ciência” (segundo definição de
Epistemologia no Dic. Houaiss) e de fazer estudo
comparado dos institutos mais corriqueiros das realidades
humanas, desde, idealmente, que não percamos a noção de
realidades afetivas e interacionais com o mundo.
Um mesmo instituto, por exemplo, o instituto da depressão
pela perda de um emprego, o instituto da alegria pela vitória de
seu time, o instituto da morte ou o instituto do amor a gatos,
pode ser analisado sob diversas ciências. Cada uma delas tem
suas terminologias próprias, emprestadas, importadas ou
compartilhadas de outros saberes.
E o interessante é que há uma íntima comunicação entre as
várias ciências humanas, de modo que um determinado instituto
só existe porque várias causas pluricientíficas concorreram para
seu surgimento. Nós é que às vezes não percebemos prima facie
essas supraligações. Por exemplo, se tentarmos fazer um estudo
epistemológico sobre a Revolta dos Negros Malês na Bahia
(noite de 24 para 25 de janeiro de 1835), poderemos focar esse
evento sob diversos saberes interconexos ou sincrônicos:
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
81
religião, religião muçulmana, Direito, direitos humanos,
Sociologia, História, Política, guerra, militarismo, Antropologia,
Psicologia e Psicologia social. Nenhum instituto ou
acontecimento real, imaginário ou até literário (ficcional ou não)
envolvendo seres humanos deve ser visto apenas sob uma única
lente cognitiva. [Essa tese é defendido pelo Cognitivismo
(“Teoria, doutrina, convicção segundo a qual a
capacidade de conhecer o real e o espiritual, o real e o
imaginário, o indivíduo e a sociedade está aberta ao
homem (individual e/ou social) indefinida e
indelimitadamente”. – Dic. Houaiss).] Já os atores diretos e
observadores contemporâneos do mesmo conflito nada
entreviram nem pensaram abrangentemente, por causa da
comoção pública e do impacto social à queima-roupa. [É a velha
constatação: quanto mais nos afastamos dos fatos históricos,
melhor os vemos panoramicamente, ainda que perdendo seus
detalhes reais em si.]
Josenilton kaj Madragoa
82
****
Em resumo, ler acrescenta saberes. Faz-nos comparar o que
os outros pensam ou pensaram com o que nós mesmos
pensamos da vida e do mundo. Ajuda-nos a corrigir metas, focos
e rumos e a entender melhor o funcionamento da mecânica
criadora cósmica que faz girar as relações entre os seres. Reforça-
nos a ideia da existência de grandezas ocultas aos nossos
sentidos, mas que pertencem a nós e a quem pertencemos. Ler é
viver quando nos ajuda a ler-nos e a viver-nos, como autores e
como personagens simultaneamente. Quando em interação com
a realidade circunjacente, ler é essencial para expandir os sentidos
da alma.
Tanto intelectuais, doutores, “doutores”, acadêmicos e demais
teóricos quanto os não letrados, não eruditos e que não alisaram
os “bancos da ciência” precisam ler sempre, ainda que uns para
melhor montar seus quebra-cabeças e ainda que outros para
melhor desmontá-los.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
83
O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA
Todo bom texto literário que prima pela estética, em
princípio, deve ter compromisso com a Arte, até mais do que o
próprio autor em seu “natural”, caso pretenda atingir o leitor em
sua sensibilidade maior.
Geralmente, todo texto tem sempre um dos três públicos-
alvos a atingir: o público leitor não literato (que normalmente só
busca informação no conteúdo), o público leitor literato (que
busca também a estética da forma e a emoção) e o público leitor
artístico (que busca sublimes emoções, encantamento, vislumbre,
impressões, sentimentos nobres).
Josenilton kaj Madragoa
84
Na produção de um texto literário, seja de que tipo for (prosa,
poesia, texto teatral, letra de música, cordel, roteiro de cinema,
mensagem etc), a Arte não se manifesta objetivamente, porque não
atinge de cheio os sentidos físicos de um espectador-
contemplador. Depende de como as palavras chegam no intelecto
do leitor ou ouvinte. Aí entram, como parte da expressão artística,
o significante e o significado que envolvem cada palavra em sua
relação frasal. A Arte literária só se manifesta a partir do
entendimento profundo de cada leitor-ouvinte sobre o que está
verbalizado. Aí, sim, surge o texto artístico. Aí, sim, pode-se falar
de Arte Literária.
[Os romances, por exemplo, são leituras
superfluamente úteis e necessárias[!] e são uma arte
complexa e inteligencial, porque aprimoram o
raciocínio amplo construído linearmente.
Mas o bom é ler romances com o coração. Dá mais
prazer e nos sensibiliza para o belo e para a vida. O
universo imaginário dos personagens se confunde com
o nosso próprio, ao ponto até de nos fazer externar
sentimentos normalmente encalhados e até raros. Faz
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
85
muitos até chorarem de verdade. [Por exemplo, o
primeiro romance que eu li na infância, “Notre-Dame
de Paris”, de Victor Hugo, me deixou várias noites sem
dormir direito, ora lendo, ora “vendo” o
impressionante Quasímodo, o sineiro corcunda da
catedral, selvagemente lírico. Esse livro é uma das
maiores aulas de combate ao preconceito. Vale a pena
conferir. Quando, ainda na pré-adolescência, eu li o
romance “Agonia da Noite”, de Jorge Amado, lembro
que cheguei a sonhar (acordado) com o personagem
Russo. No diálogo imaginário, eu o incentivei a lutar
até o fim pelo ideal que defendia. Ele era membro do
Partido Comunista, que estava na clandestinidade no
Brasil. Sua função era colar cartazes do partido nas
ruas durante as gélidas madrugadas paulistas. E ele o
fazia diligentemente, firme, convicto, imbuído de fé,
energizado pela esperança, mesmo tossindo sem
cessar por causa da tuberculose! E olhe que toda essa
Josenilton kaj Madragoa
86
minha interação não passou de simbiose entre
personagem ficcional e leitor real!]
A depender do grau de intelecção que cada leitor-ouvinte
atribui à obra, a Arte também vai se manifestar na mesma
proporção. É diferente das outras formas de Arte que não
dependem do texto verbal (música instrumental, pintura, efeitos
cinematográficos, fotografia, artesanato, escultura, designs gráficos
etc). Nestas, a Arte pode se manifestar por inteiro e objetivamente
atingir todos os que as estiverem espectando de forma
contemplativa ou pelo menos concentrada, ainda que os
sentimentos despertados variem de acordo com o grau de
sensibilidade de cada espectador.
No texto verbal (oral ou escrito), além da estética formal das
palavras e das frases e além dos recursos e artifícios da articulação
verbal, tem que haver também a intelecção ou compreensão do
conteúdo, ainda que cada um a seu modo e em sua subjetividade.
A palavra oral, em si, já carrega uma carga vibracional-
emocional muito envolvente. Neste caso, a Arte se apetrecha da
voz para se entranhar na alma do ouvinte através do sentido
auditivo, de forma instantânea. E o significado da palavra só tende
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
87
a coroar o arrepio do conjunto Arte-vibração sonora no âmago do
espectador.
Em outras palavras, a Literatura, em si, não é Arte. É apenas
Literatura. A Arte não nasce no texto nem na leitura objetiva ou
identificativa do texto. Nasce da relação texto-leitor, do processo
leitoral de mão dupla, quando o leitor lê para identificar, e é lido,
ao se impressionar.
A estética da forma literária, por sua vez, pode contribuir para
uma aproximação da estética artística nos sentidos anímicos de
quem lê ou ouve. Porém, a contemplação e a receptividade
artísticas só são viáveis quando o texto desperta minimamente um
sentido e um sentimento em cada leitor ou ouvinte em particular.
Josenilton kaj Madragoa
88
A ESTESIA DA ARTE
Os dicionários normalmente possuem de dez a vinte acepções
para o verbete “arte”, reproduzindo o conceito reinante nas
diversas correntes de pensamento e de estética do presente e do
passado. Porém, o conceito de Arte é o mais variado e infinito de
toda a história humana.
Peço licença para externar nosso conceito de Arte, a partir de
uma ótica estética transensitiva, apropriada ao contexto geral dos
pareceres por nós emitidos acerca da criação e da apreciação
artísticas.
Convencionou-se chamar de arte as principais formas de
expressão da criatividade estética, a exemplo da música, da pintura,
da literatura e da dança. [Convencionalmente, as sete artes
são: Música, Dança, Literatura, Cinema, Pintura, Teatro
e Escultura.] Logo, artista é quem produz ou representa alguma
arte.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
89
****
Arte não é filosofia, não é ciência, não é cultura e não é religião,
embora normalmente se utilize de vieses filosóficos, científicos,
religiosos ou culturais para se manifestar. A Arte pode e costuma
se perpassar através de uma obra que perpassa uma mensagem
profunda ou uma ideologia qualquer. Daí é lícito se afirmar a
existência, por exemplo, de uma arte filosófica, arte cultural, arte
popular, arte religiosa, arte espiritual via mediúnica, arte
assistencial, arte nutricional (ou arte culinária)...
A Arte, em si, é apenas Arte, embora não exista em si.
Depende sempre de uma forma para se pronunciar.
A Arte, quando manifestada pelo viés humano, sempre teve
que passar meio espremida entre as formas limitadas e
ideologizadas de seus produtores, reprodutores e apreciadores.
Limita-se a ser coautora da produção juntamente com o artista.
Não existe forma de arte pura quando produzida por um ser
humano, que depende inclusive da materialidade das palavras.
Josenilton kaj Madragoa
90
Todo artista humano, além de suas subjetividades, sempre
representa também alguma ideia reinante, alguma ideologia, algum
interesse social, consciente ou inconscientemente. E isso
contamina a pureza da manifestação artística, ainda que essa
contaminação possa até ser útil e benéfica para o próprio artista e
para seu público-alvo. Há contaminações que até servem para
realçar e chamar mais ainda a atenção para a Arte. [O próprio ser
humano é a magnum opus da natureza.] Outras tendem a afastar ou
anuviar sua expressão.
{Muitas produções classificadas convencionalmente como
artísticas são verdadeiros canais de drogas ou psicopatias
ideológicas ou comportamentais. Muitas de tais produções
aparecem nas mesmas formas convencionais de manifestação
estética (música, pintura, literatura etc). Entretanto, embora às
vezes obedientes a regras de estilo, são verdadeiras antenas de
incitações a vícios, terrorismos, suicídios, alienações,
emburrecimentos, loucuras e depressões. Não são manifestações
artísticas, ainda que seus criadores sejam chamados de “artistas”.
É certo que muitas manifestações artísticas modernas têm seu
quê de hermetismo em relação aos pensares do povo. Porém, ao
invés da valorização e realce da Arte popular genuína, velha e
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
91
sempre presente (ainda que cada vez mais anônima), os capitães da
indústria (in)cultural incentivam o movimento chamado Arte Pop,
fomentada por grupos estranhos às formações populares. [A
Arte Pop, ou Pop Art, por sua vez, desde seu
surgimento no início dos anos sessenta, sempre esteve
intimamente ligada ao consumismo (in)cultural de massa.
Sempre injetou nas veias fáceis do corpo social os seus
modismos efêmeros e de curta duração e as suas
propostas de diversões fúteis, muito mais
culturofágicas do que culturogênicas. Só nunca prestou
compromisso com a Arte propriamente dita.] O
argumento reinante é a necessidade de valorização da Arte popular
como forma de comunicação direta entre a Arte e o povo, como
se o povo não tivesse capacidade de produzir de suas entranhas
sua própria cultura artística, seja inspirado nas tradições, seja
motivado pelas inovações costumbristas espontâneas.}
Só pode ser considerada artística a manifestação ou emoção
estética que instiga, que provoca ou que relembra ao espectador-
contemplador sua origem divina; que lhe supersensibiliza ou
Josenilton kaj Madragoa
92
desperta os sentimentos espirituais mais nobres; que lhe faz sentir-
se melhor do que é. Pode provir de uma fonte humana, espiritual
ou natural e pode se dirigir para a humanidade, para a
espiritualidade ou para a natureza.
[O “sentir-se melhor” acima referido é no sentido de expandir
a compreensão da vida, do mundo, de si mesmo e dos outros.
Pode ser uma melhoria das condições biopsicológicas com que se
enfrenta o dia a dia, através do despertamento de uma maior
sensibilidade, afetividade, inteligência e boas sensações. A Arte por
si só não transforma nem tem compromisso com a transformação.
Seu papel é despertar, suscitar, influir, apontar para o infinito de
onde viemos e para onde voltaremos. Por falta de uma palavra
mais específica e precisa, chamamos esse quê, que transcende da
obra e entra em comunhão com a transcendência supersensível do
apreciador, de Arte.]
Sempre há um quê de terapia na Arte, em qualquer de suas
formas e gêneros, seja para quem a manifesta, seja para quem a
aprecia.
Quem não precisa da Arte como terapia, melhora suas
potencialidades físicas, mentais ou anímicas com sua influência
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
93
benfazeja. A Arte, vista a partir dessa perspectiva, é a grandeza que
se comunica intimamente com os sentidos anímicos,
independentemente da recepção consciente pela sensorialidade
física e intelectual. Não depende também do aspecto cultural,
social ou ideológico da obra. Pode se entremesclar numa sinfonia,
num aboio de vaqueiro, numa pintura paisagística (ou na própria
paisagem pintada) ou num boneco de artesanato. Pode sorrir numa
fotografia (ou no próprio fotografado), num soneto, num toque de
guitarra, num canto orfeônico ou num texto de cordel. Pode
resplandecer numa moda de viola, numa cena de teatro grego, num
toque de berimbau ou no gorjeio de um rouxinol... Afora isso,
pode se tratar de manifestação cultural, religiosa, intelectual,
ideológica, erotizante, libidinizante, psicótica ou psicotrópica. Pode
ser também mera expressão de uma subjetividade, de uma
carência, de um desabafo, de um protesto dadaístico, mas não
manifestação artística. Pode até haver todos os recursos possíveis
exigidos para as produções, tais como coerência, coesão, estilo e
outras regras, artifícios e artimanhas criacionais constituídas.
Porém, se não houver a presença e a crescença sutil desse
superbelo transformador e que transcende as expectativas do
artistismo, do artista e do apreciador, então não é Arte. [O Belo
artístico é exatamente a qualidade dinâmica que há na
Josenilton kaj Madragoa
94
obra de Arte, e que é captada pela sensibilidade
humana e espiritual do espectador, ao ponto de causar
neste um contentamento profundo, um sentimento
maior, um despertar de valores mais nobres, ou pelo
menos uma estranheza que lhe chama à atenção ou lhe
faz pensar.]
Especialmente nestes nossos tempos atuais de
empobrecimentos estéticos ideológico-capitalistas, está ocorrendo
mais é o império da antiarte. [Produção “baseada em
propostas antagônicas das formas tradicionais ou na
rejeição total de práticas artísticas e valores estéticos
consolidados, em favor do choque, da arbitrariedade
e/ou do nonsense [Exemplos: o dadaísmo, as propostas
de Marcel Duchamps (1887-1968) etc.]” – Dic. Houaiss.]
A antiarte tem se fortalecido e se difundido muito mais do que
os movimentos dadaísta e futurista do início do século passado.
Isso se deve sobremaneira às novas estratégias da banda
socialmente irresponsável do marketing e às coalizões com
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
95
recursos eletrônicos e midiáticos altamente rendosos para os seus
produtores-empresários. Neste passo, a sociedade de consumo
está cada vez menos estesiada, por causa do distanciamento e falta
de maior interação com produções verdadeiramente artísticas, e
cada vez mais extasiada, por causa da progressão multilateral
dessas massificações anestesiantes.
Faz-se urgente e necessária uma maior disseminação da
Logosofia e de outros vieses de comunicação desalienantes,
intrinsecamente neutra e estimulante a uma libertação subjetiva
dos modelos desqualificadores da inteligência e da sensibilidade
humanas. Precisamos de novos movimentos contraculturais que
produzam manifestações artísticas abundantemente, em todos os
campos e para alcançar todos os extratos sociais, apesar das
dificuldades financeiras e do desapoio apriorístico da grande mídia.
[Convencionalmente, contracultura é um movimento
minoritário que tenta subverter valores da cultura
dominante. No Brasil, teve seu auge nos anos sessenta,
especialmente com o movimento hippie.] O mote dessa
nova contracultura pós-vanguardista seja o combate não
exatamente à cultura dominante, mas, sim, à máfia capitalística que
mina e, através da disseminação das suas produções antiartísticas,
Josenilton kaj Madragoa
96
destrói as culturas e as possibilidades de manifestação da Grande
Arte.
A Arte não pode se confinar em nichos herméticos e restritos a
seus anônimos, privilegiados e minoritários cultores. Os artistas
artísticos (ops!), ou melhor, que têm sensibilidade artística,
precisam “concretizar” uma grande união, através de cooperativas,
associações ou outras coalizões.
A intelligentsia resistente do Brasil precisa articular estratégias de
“guerrilha cultural”, campanhas e outros mecanismos de infiltração
nas camadas sociais e nas esferas públicas e midiáticas. É uma
missão urgente. Precisa restaurar a pujança e soberania da Arte,
ainda que para isso seja criado um movimento superartístico ou
reartístico. Que, pelo menos, se organize uma nova Semana de
Arte ou se redija um novo manifesto em que se defenda um
canibalismo multifrontal contra a antiarte predatória
contemporânea.
O povão precisa ter opções de escolha sensibilizantes. Precisa
se reeducar para valorizar suas origens e tradições estéticas e
também seu futuro. Precisa voltar a sentir pela estesia da Arte, em
qualquer de suas formas (erudita, acadêmica, cult, popular,
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
97
artesanal, folclórica e de raiz). O povo tem “fome oculta” de Arte.
E a despensa de víveres artísticos nunca se esvazia; só está
trancada, ou melhor, trancafiada, como numa masmorra ditatorial
capitalística desculturalizante.
****
A Arte é uma realidade transcendental. Tem sua própria aura.
Está acima do artista e das ideias que ele eventualmente representa.
A Arte pode se manifestar com ou sem a interferência
consciente do artista. “A Arte se sustenta por si só”. Ainda que
seja camuflada pelas ideologias do artista, pela forma, pelas
representações culturais e pela própria visão contaminada do
contemplador, ela sempre vai ser Arte. Pode até não ser publicada
ou mercadizada em seu tempo ou ser abandonada nos
subterrâneos, nos arquivos mortos, nas gavetas e porões da sua
contemporaneidade, mas continuará imanente a sua manifestação
potencial. Se ela não for inteiramente destruída, vai continuar em
condições de brilhar, de arrepiar e de impressionar, mesmo que
Josenilton kaj Madragoa
98
arruinada, quebrada, rasgada, queimada ou fossilizada. Bastará que
seja redescoberta e reexibida.
Contudo, mesmo estando impregnada em algum objeto, a Arte
não faz aparição simultânea para todos os olhares. A manifestação
da Arte precisa também de nossos sentidos espirituais, que devem
se estender para além das cercas da nossa sensorialidade, para ir se
encontrar com ela no meio do caminho.
{“A arte é a ideia da obra, a ideia que existe sem
matéria.” - Aristóteles}
Qualquer obra pode ser estetizada, estilizada, embalada para
viagem. Porém, nenhuma obra pode ser artistizada apenas de fora
para dentro. A obra de arte já nasce essencialmente artística.
Quando se trata de obras humanas, a manifestação da Arte
conta com a paternidade compartilhada do artista, através do
refino, da regulação formal e do acabamento aparente. É quando a
Arte precisa também dos sensores do artista para se evidenciar,
quando se apossa do artista e ambos formam um todo criativo.
Essa parceria fertilizante tanto mais e melhor produz, quanto mais
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
99
sintônico e afinado for o artista. E se ambos, Arte e artista, se
apresentarem em perfeita sintonia e parelha harmoniosa, pode
provocar um duplo arrepio no contemplador: na forma e no
conteúdo.
Muitos artistas conseguem passear em direção à fronteira da
universalidade artística. Inicialmente, racionalizam e pré-ordenam
as ideias a discorrer e, de repente, se veem planando nas asas da
imaginação. E aí já não é mais somente ele. Já é a Arte em
comunhão com ele.
O que vale na identificação artística é a boa sensação que a
ideia representada desperta, do homem para sua essencialidade e
seus sentimentos maiores. E isso não depende da forma, das regras
de composição e dos artifícios criativos, embora normalmente se
valha deles também). E, em princípio, não depende da ideia
ostensiva emitida pela fonte e não depende da ideia que cada
espectador consegue captar.
Até uma obra tida como inspirada, intuída ou captada das
“ondas de pensamento” não se capacita a ser obrigatoriamente
uma obra de arte, especialmente se a sensação que a ideia
representa conduz o homem para sua animalidade e seus instintos
Josenilton kaj Madragoa
100
menores. Tem-se que mensurar a qualidade vibracional da
produção, o tipo de arrepio que ela provoca na alma.
A estética da Arte transcende a beleza captável pelos sensores
físicos. [Estética é derivada de estesia, que tem a ver com a
sensibilidade e com a capacidade de percepção da beleza profunda.
Esta é transmitida mais para o sentimento do que para o
pensamento.] A estética jaz também na própria contemplação, o
que faz a Arte se deslocar da obra para o receptor, como se a este
coubesse o ônus de arte-finalizar o trabalho usando sua
sensibilidade como instrumento. A Arte está primariamente na
obra, em estado de expectativa, mas ela se perfaz e ganha corpo
justamente na ponte interacional com o receptor-contemplador. O
que vale mesmo é a comunicação entre a Arte e os sentidos
anímicos do receptor, ainda que através dos sentidos físicos
captativos deste. No meio dessa linha de comunicação estão o
artista e seus sentidos físicos criadores e as técnicas e instrumentos
de produção.
[No caso dos artistas do corpo (atores, dançarinos,
pantomimeiros, cantores, contadores de histórias,
repentistas etc), a Arte inicialmente se comunica com o
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
101
artista. Em seguida, em comunhão com ele, se projeta
para os sentidos físico-anímicos do espectador.
O artista que usa seu próprio corpo como
instrumento de trabalho vai se sensibilizando e se
estesiando cada vez mais, na medida em que aprimora
suas técnicas e refina suas escolhas pessoais dos
textos que encena para o público. Quanto mais artístico
for o próprio texto escolhido, tanto mais artística é a
manifestação exibida da Arte final dupla, que é a
representação cênica.]
****
A Arte é uma manifestação do divino que há dentro de cada
artista, ou do divino que há dentro da natureza univérsica. Uma
obra de arte, por essa ótica, transcende a sua contemporaneidade.
Torna-se um clássico. Imortaliza-se. Não perde jamais a sua aura,
Josenilton kaj Madragoa
102
que lhe fora imantada quando de sua elaboração. Mantém-se
pronta permanentemente para um diálogo com o contemplador de
qualquer lugar e de qualquer época. Um diálogo de sentimentos,
de altíssimo nível.
Quanto mais expandimos a nossa espiritualidade ou a nossa
consciência universal, tanto mais nos capacitamos a absorver os
eflúvios transcendentais da manifestação artística, que também tem
o seu quê de universalidade. É quando mais se estreita e mais bem
se perfaz a linha comunicacional Arte-espectador.
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
103
A ARTE COMO ORAÇÃO DE NÓS PARA DEUS
E DE DEUS PARA NÓS
Deus nunca barra o caminho de quem quer interagir com Ele
através da elevação da alma a níveis superiores de vibração e
consciência. Isso pode ser viabilizado, inclusive, por meio da
religião e suas orações preponderantemente verbais, como
também por meio de experiências sensoriais científicas e naturais,
por meio da meditação, por meio da reflexão filosófica e por
meio da Arte.
O importante é a contrição do sentimento, a entrega, o
despertamento da sensibilidade espiritual, quer no processo de
produção, quer no processo de apreciação da obra de arte. O
importante é, seja no nível racional-consciente, seja no nível
semiconsciente, seja mesmo no nível inconsciente, ter um
propósito para a oração, que é pedir, louvar ou agradecer ou,
principalmente, pedir a Deus que lhe oriente sobre o que fazer
em cada situação de vida e forças para fazer o que tiver de ser
feito.
Isso vale, inclusive, para os artistas que se
Josenilton kaj Madragoa
104
predispõem apenas a trabalhar sem maiores
compromissos, sem consciência de qualquer papel
social além da boa-fé e da boa vontade de produzir um
“material”, seja com fins lucrativos, ou não, seja ele
socialmente intitulado de “homem de bem”, ou não.
No instante criacional, o artista normalmente eleva-se acima
de si próprio, e Deus, “pessoalmente” (também denominado
então de “espírito santo”, “musa”, “veia inspiracional”, “fogo
demoníaco”, “noúres”, etc, etc), vem ao seu encontro, para trazer
suas contribuições e ajudá-lo com algumas “colas", “sopradas” e
outras inspirações ou intuições.
{“Não meu, não meu o quanto escrevo. A quem o
devo?" – Fernando Pessoa}
Agora, se, na volta para sua multirrealidade
interacional corriqueira, o artista desembarca e volta
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
105
a ser o que era, ou volta para o seu “normal” errante e
navegante, como se a produção não tivesse nada a ver
com ele como sujeito comum, simples, primitivo e
concreto (o velho mito de que “a obra suplanta o
criador), aí é problema dele.
O que mais importa para Deus é que no momento da
interação criativa, o que ficar produzido e materializado há de
servir oportunamente adiante, quer para o próprio
transinteragente, quer para quem se aproximar com sua lupa,
para interagir, através de sua sensibilidade, com o resultado
concreto. Vale relembrar que também o apreciador da obra de
arte artistiza-se durante o processo de apreciação.
A Arte, quando direcionada para fins ascensionais,
transconscienciais ou simplesmente sociais é também uma
oração, ou mesmo uma religião no sentido de religação, quer
para o artista, quer para o apreciador. Ênfase para talvez o
mais lídimo representante humano dessa arte maior,
que foi o músico, regente e instrumentista alemão
Josenilton kaj Madragoa
106
Johann Sebastian Bach (1685-1750). Já se disse, por
exemplo, que seus “Concertos de Brandenburgo”,
“Oratório de Natal” e “A Paixão Segundo São Mateus”
são como a voz do próprio Criador e Regente da
Orquestra Universal, em forma de música. Não foi à
toa que Ludwig Van Beethoven, outro gigante da
música clássica universal, chegou a dizer: “quando
quero falar com Deus, eu ouço Bach.”
Os artistas universais, sejam humanos ou espirituais,
normalmente têm essa missão ou vocação, consciente ou
inconsciente, de aproximar a humanidade de Deus, elevando-a
para acima do teto da vibratorialidade densa que cobre nosso
planeta. São momentos de oração pela estesia despertada com o
belo, com o profundo, com o arrepiante. [Os artistas
espirituais utilizam-se de alguns seres humanos
chamados comumente de médiuns, para produzir seu
“material”, ainda que estes não entendam patavinas de
nada do que intermedeiam. Bem, os artistas têm a
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
107
visceral necessidade de produzir, não importando em
que dimensão estejam, principalmente quando têm
propósitos ou missões despertativas a cumprir. E essa
mediunidade fisiossensorial entre seres de dimensões
psicovibratoriais diferentes, para profecias,
orientações e produções artísticas, é tão velha quanto
a própria humanidade. [Veja, por exemplo, o relato
bíblico em que Moisés aprova a comunicação espiritual
por intermédio de dois de seus seguidores, em
Números, 11:26-29.]
Duvidinha: será o médium humano um médium de um
médium, quando ele intermedeia o trabalho artístico
de um artista espiritual, se considerarmos que o
“artista é o médium da natureza”, no dizer de Garcia
Lorca?]
A questão é achar instrumentos humanos e
materiais devidamente, ou pelo menos minimamente
Josenilton kaj Madragoa
108
afinados, para a realização das sinfonias, sejam
musicais, coreográficas, verbais (escritas ou orais),
cinematográficas, pictóricas, teatrais ou esculturais,
sejam sinfonias artesanais, como o aboio de um
vaqueiro, os santos, bonecos e esculturas de barro, as
histórias de cordéis, as toques de berimbau e de
atabaque, as danças folclóricas, os retratos de lambe-
lambe, as xilogravuras e os quadros de pintores
anônimos.
Não importa se o viés tomado pela arte para se manifestar seja
o erudito ou o popular. O que importa é a impressão, o
enternecimento, a sensibilização que induz o artista ou o
apreciador a apreciar Deus em seu próprio íntimo, a apreciar a si
mesmo como obra divina, a maior no planeta Terra, que é outra
grande produção do Artista Supremo (em que pese às
tentativas de sua destruição pelo lado antiartístico do
próprio homem e suas dessensibilizantes “máquinas
maravilhosas”).
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
109
Tudo que é feito com amor, esmero e boa vontade, serve para
a manifestação da Arte, inclusive a arte-culinária, a arte da
decoração, a arte da costura, a arte de construir instrumentos de
arte, a arte da tradução, a arte-final, a arte da revisão, a “arte de
cortar palavras”, a arte de dirigir produções artísticas, a arte de
apreciar arte, a arte de criticar arte... Colocar letra em melodia ou
melodia em letra, construir arranjos instrumentais para canções, a
estética dos movimentos instrumentais de uma orquestra...
Todo e qualquer trabalho que seja visto como um propósito
de melhorar as pessoas intimamente serve de arte, serve de
oração. Isso vale, inclusive, para a delicadíssima arte de carregar
piano, para a sutil arte de conduzir espectadores para se
assentarem na sala de projeção do cinematógrafo valendo-se
apenas de uma lanterninha, ou para a insofismável arte de educar.
A Arte é a Arte, e se sustenta por si só, já que seu tempo e seu
espaço são transdimensionais. Podem ser destruídas suas formas
materializadas. Porém, ela sempre aparece adiante, mais reluzente
e sinalizadora do que nunca. Sua função cósmica é não somente
despertar ou desenvolver a divindade que existe dentro de nós,
mas é também expandir essa divindade cada vez mais na direção
de Deus. Pode resistir até aos desgastes do tempo e destruições
Josenilton kaj Madragoa
110
parciais. A “Venus de Milo” que o diga.
Lembra-se daquele ocorrido (e atualmente eternizado, ou
melhor, internetizado) com o violinista italiano Niccolò Paganini
(1782-1840)? Ele estava executando uma música tão
inspiradamente para uma plateia cheia e também inspirada, que
mesmo se quebrando uma corda, depois outra corda e por fim
tocando com apenas uma corda o seu violino, ele não perdeu a
fluxo inspiracional, nem a plateia percebeu qualquer redução de
qualidade na música inicialmente executada com as quatro
cordas. Aquilo produziu um êxtase tão eufórico a partir de certo
momento, que talvez tenha feito vibrar as cordas espirituais do
próprio Paganini e as cordas auriculares de todos os
espectadores, gerando o milagre da continuidade do mesmo som,
ainda que com as limitações físicas do instrumento parcialmente
quebrado. Foi a expansão mais transcendental daqueles
momentos em que o artista alimenta a plateia e a plateia alimenta
o artista com o nutriente da inspiração de mão dupla. É muito
comum nos espetáculos em teatro, que normalmente
são favorecidos pelos efeitos da acústica, da
iluminação, do som e principalmente pela comunicação
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
111
sentimental e vibracional entre artistas e público. São
momentos únicos. Mas, naquele famoso momento/lugar onde
Paganini se apresentava, certamente produziu-se também uma
superação e uma superoração sustentada por uma plêiade de
anjos dos que transinspiram coletividades. Ali, certamente,
afinaram-se e vibraram as supercordas de todas as onze
dimensões do Universo. Tudo porque, não sei por que capricho,
a arte não estava querendo parar. A Arte não tinha de parar, e se
sustentou, não por si só, mas pelo enlevo da alma coletiva, ali
unificada pela intercomplementaridade univibratorializante
daquele superartista com a plateia extasiada e certamente com os
anjos músicos que voavam no invisível do ambiente, virando
todos um só. Foi um momento mais único ainda. Um milagre da
arte.
[Bem, eu não sei se esse fato foi fato mesmo, ou se
foi uma lenda criada a partir de uma habilidade
especial de Paganini historicamente reconhecida, que
era a de tocar violino com menos de quatro cordas, até
com uma (a corda sol). E talvez eu mesmo, com essa
minha descrição subjetiva aí, posso estar até
Josenilton kaj Madragoa
112
aumentando o grau de lendariedade do “causo”. Mas,
se é verdade também, segundo corre nas fontes
oficiais e oficiosas da história, que esse incomparável
virtuose italiano conseguia tocar doze notas por
segundo, incluindo notas harmônicas, não sei, não. É
capaz de ter acontecido mesmo o fato, não com essa
miraculosidade toda que aparenta, mas como fruto de
um raro apuro técnico. Diz-se que um dos prazeres
dele era assombrar as pessoas com seus
contorcionismos musicais, reforçado por seu perfil
anatômico, tido na época como fantasmagórico.]
Igualmente, a eventual limitação física de si mesmo não
impede o artista de agigantar-se em alma e construir obras que
instigam e maravilham gerações. Foi o caso do surdo Beethoven?
Do aleijado Antonio Francisco Lisboa? Do epiléptico Machado
de Assis? Do louco Arthur Bispo do Rosário? Das três irmãs
cegas de Caruaru? Do paralítico cerebral Christy Brown (aquele
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
113
que pintava com o pé esquerdo e que virou filme)? Dos vários e
vários pintores sem mãos do passado e do presente?
O artista, em êxtase criativo, já é capaz de antever a arte
dentro da pedra bruta que ele ainda vai esculpir, antes mesmo da
primeira cinzelada. A limitação da bruteza da pedra não o impede
de antever o que algumas pessoas não suficientemente sensíveis
não verão tão cedo, mesmo depois da última pincelada de verniz.
A manifestação artística tem um algo a mais que é logo
captável em sua amplitude e profundidade apenas pelos
sentimentos mais sensíveis. Esse algo a mais, nunca plenamente
descritível com as palavras, pode até transcender os limites da
técnica, da ética e da estética que embalam a sua produção
ostensiva, podendo até não se valer de nada disso. Quase sempre,
esse algo a mais mostra-se é nos detalhes invisíveis, nas
entrelinhas imperceptíveis pelos sentidos físicos, na própria
pedra bruta que ainda vai ser descoberta pelo artista.
Até entre linhas de produção cultural ou incultural
tipicamente antiartísticas ou voltadas para tendências pós-
modernas inartísticas, eletronicizadas e monocórdicas da
chamada Pop Art, a Arte costuma aparecer e dar uma palhinha
Josenilton kaj Madragoa
114
de vez em quando, surpreendendo mentes mais sensíveis ou
menos insensíveis no meio das multidões acusticamente
drogadas.
Outrossim, quando quer se apresentar mesmo, principalmente
quando com propósitos consciencio ou sensitivo-despertativos, a
Arte manifesta-se diretamente no sentido das pessoas, mesmo no
daquelas corriqueiramente insensíveis, ao ponto de fazê-las
chorar, se arrepiar, se comover, lembrar de fatos, pessoas,
lugares, sentimentos e outros valores recolhidos. Com a
sensibilidade momentaneamente despertada, tais pessoas, tidas
como “duronas”, percebem a arte que elas precisam perceber,
seja para perceber algo ou alguém, seja para perceber Deus, seja
para perceber-se. A depender do enlevo, nunca mais voltam a ser
as mesmas. A Arte não tem preconceito preferencial, estético,
ético nem ambiental.
Antes mesmo de elevarmos as mãos, as palavras, o
pensamento, os sentidos ou o sentimento a Deus, Ele já vem
preparando o ambiente e as condições mais próprias para o
despertar dessa nossa própria sintonização direta pela via da
prece. E a Arte é um desses ambientes. É uma provocação de
Deus para que nos lembremos Dele a qualquer momento,
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
115
preferentemente antes de precisarmos.
A Arte é, pois, uma forma de oração de Deus para nós, pela
templação da natureza para nossos sentidos, e é uma forma de
oração de nós para Deus, pela contemplação de nossa alma para
o que nossos sentidos captam.
Vamos apurar cada vez mais os sentidos para captar essa
prece.
Josenilton kaj Madragoa
116
O PAPEL DO ESCRITOR SOCIAL
{"O mais belo triunfo do
escritor é fazer pensar os
que podem pensar." - Eugène
Delacroix (1798-1863, pintor
francês)}
Não quero desmerecer a importância das cartas-
denúncias e dos textos revoltados que circulam abertas
para toda a população desde todos os tempos e nos dias de
hoje, agora utilizando-se principalmente da Internet.
Muitas mudanças são operadas na estrutura social a partir
de tais denúncias cheias de emoção (principalmente
quando chegam no monitor dos destinatários certos).
Muitos têm muito a dizer e o dizem muito bem, sem
serem necessariamente escritores ou usuários das técnicas
redacionais mais refinadas.
Nossa preocupação aqui é apenas com o cuidado que
todos que não somos profissionais da Comunicação nem
da Literatura devemos ter, para não produzir e divulgar
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
117
textos eivados de rancores, revoltas e parcialidades, sem
concluir, sem fundamentar, sem dar qualquer roupagem
científica mínima para corroborar seu arrazoado. Em
razão disso, resolvemos discorrer sobre o papel do escritor
social na nossa contemporaneidade transicional.
Sei que este texto parecerá excessivamente
racionalista e talvez até inumano. Porém, veja nele apenas
um norte, um modelo, ainda que impossível de ser seguido
literalmente. A ideia é essa mesmo: que o texto social seja
efetivamente dissociado do texto individual ou emocional,
pelo menos em nível de premissa.
O escritor social, mesmo quando sendo um amador,
tem responsabilidade social. O que ele escreve espelha
suas opiniões, mas também tem compromisso com a
formação da opinião do seu leitorado. [Ouso estender uma
acepção neológica para a palavra “leitorado”, aqui como
sinônimo de “conjunto de leitores”, por entender que sua
definição tradicional (relacionada à atividade dos
professores que ensinam a língua e a literatura de seu país
em universidade estrangeira) está meio fora de uso,
concorda?] Ele é um pensador social que, ao invés de usar
Josenilton kaj Madragoa
118
o microfone e os palanques, dissemina seus produtos
pensamentais através da escrita e as divulga
principalmente pela internet, que é o canal de
comunicação mais democrático já inventado. Ele escreve o
que pensa, para influenciar e interferir nas problemáticas
sociais, alertando para o que acha que está passando
batido perante os olhos coletivos, e eventualmente
apontando sugestões solucionadoras.
{“Lembro-me de que certa noite – eu teria
uns quatorze anos, quando muito –
encarregaram-me de segurar uma lâmpada
elétrica à cabeceira da mesa de operações,
enquanto um médico fazia os primeiros curativos
num pobre-diabo que soldados da Polícia
Municipal haviam “carneado”. (...) Apesar do
horror e da náusea, continuei firme onde estava,
talvez pensando assim: se esse caboclo pode
aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de
poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar
o doutor a costurar esses talhos e salvar essa
vida? (...)
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
119
Desde que, adulto, comecei a escrever
romances, tem-me animado até hoje a ideia de
que o menos que o escritor pode fazer, numa
época de atrocidades e injustiças como a nossa, é
acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a
realidade de seu mundo, evitando que sobre ele
caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos
assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a
lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se
não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos
o nosso toco de vela ou, em último caso,
risquemos fósforos repetidamente, como um
sinal de que não desertamos nosso posto.” – Érico
Veríssimo, em seu livro autobiográfico “Solo de Clarineta”,
primeiro volume.}
Os textos sociais têm ligação direta com a Arte
Conceitual, em que prevalece muito mais o conteúdo do
que a forma e o estilo do autor. Nesse tipo de literatura, o
texto deve aparecer muito mais através do escritor, e não o
escritor aparecer através do texto.
O escritor social não deve se envolver
Josenilton kaj Madragoa
120
emocionalmente com o tema suscitado pelo texto. É uma
premissa. Deve manter um distanciamento estratégico,
evitando emitir opiniões pessoais moralistas, inclusive
para não incorrer nos frequentes lapsos freudianos por
escrito[!], para não tropeçar em palavras turpiloquentes,
nem disseminar textos obsessionais. Deve também evitar
fazer aconselhamentos ostensivos, como se fosse o dono
da verdade.
O papel do escritor é mediar um diálogo entre o texto
e o leitor. Deve cuidar, pois, para não imiscuir no texto
suas emoções, revoltas, traumas e idiossincrasias. Daí a
importância de colocar o texto de molho após sua primeira
redação (quando ele ainda é chamado tecnicamente de
“texto bruto”), por mais inspirado que ele tenha sido, para
passar posteriormente por várias peneiradas, até o refino e
enriquecimentos complementares que bastem para deixá-
lo em condições médias de publicação.
A palavra muito melhor é dita quando se lhe edita.
É até saudável dar vazão ao primeiro fluxo
espontâneo de consciência, sob o calor da inspiração ou da
intuição. Em seguida, contudo, é de bom-tom submeter o
resultado a verificações de validade, preenchendo os claros
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
121
argumentais, retirando os excessos, saneando os
inevitáveis ideologemas, recheando as teses, miniteses e
microteses com citações, dados, resultados de pesquisas
etc, dando, por fim, um tratamento revisional, científico e
ornamental.
Muitos escritores inexperientes na arte da paciência
têm o impulso de publicar imediatamente tudo que
escrevem. Para eles, a seguinte frase de Vitor Hugo:
"Escritores, meditem muito e corrijam pouco.
Fazei as vossas rasuras no vosso próprio
cérebro."
Uma premissa é que ninguém é tão bom quanto si
mesmo tempos adiante. O texto perfeito é o que ainda virá.
Entretanto, não podemos incorrer na neurose do
perfeccionismo sem fim. O importante minimamente é
burilar e dar soluções viáveis aos questionamentos
suscitados no texto, para que este fique tecnicamente
publicável.
Quem tiver prazo para apresentação do material, tem
que gerenciar a feitura e a revisão do texto com a maior
precisão técnica possível. Se puder também submeter o
escrito a um revisor, tanto melhor, partindo, inclusive, da
Josenilton kaj Madragoa
122
premissa de que “não existe escritor sem erro”,
segundo Rui Barbosa. Um segundo par de olhos vê erros
crassos onde o escritor não vê nem cochilo.
****
O texto social, via de regra, é minguado de adjetivos e
advérbios emocionais, para não se tornar uma simples
carta-desabafo à população. Porém, quem os entender
eventualmente necessários, que deixe claro o porquê de
seu uso.
Tem que haver um ar de isenção, cientificidade,
filosoficidade ou neutralidade. Assim, ele tende a se tornar
perfeito e efetivamente orientador. A preocupação com a
objetividade externa imprime maior seriedade e
profissionalismo ao texto.
Por isso a necessidade que o escritor que acabou de
montar um texto bruto tem de burilar, trocar palavras e
enxugar parágrafos. Essa poda tende a artificializar o texto
em relação ao pensamento natural e puro do escritor, em
sua gênese, mas tende a manter um diálogo mais universal
e coerente com o leitorado. Nesse processo de edição,
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
123
muitas ideias novas surgem e acabam enriquecendo ou até
mutilando o argumento central inicialmente delineado.
A premissa maior é esta: o escritor social escreve não
para si, mas escreve um texto que vai manter um diálogo
com um público.
O eu-textual é ou seja diferente do eu-autoral.
Muitos autores narrativos usam o recurso de se
imiscuir na história como um personagem-narrador. É o
chamado eu-narrador. Ele cria ou deixa viver uma espécie
de alter ego, através do qual, aí, sim, pode se soltar um
pouco mais, dizer certas verdades, sem comprometer a
imagem do texto como um ser meio autônomo e
tecnicamente dissociado da pessoa emocional do autor.
Pode haver três autores-personagens em um mesmo
texto: o autor em si ou eu-autor, o eu-narrador ou eu-
poético e o eu-personagem. Em muitos textos há também
o eu-digressionador, que interrompe o fluxo normal do
texto para fazer esclarecimentos ou divagações. O grau
de influência recíproca de uns sobre os outros depende
de vários fatores, principalmente do grau de
profissionalismo e capacidade de distanciamento e
Josenilton kaj Madragoa
124
manipulação do eu-autor sobre os demais. A questão são
as influências alheias.
Mesmo fazendo parte dos sítios sociológicos e ainda
que amparado pelas culturas livresca e filosófica, o escritor
social deve se posicionar acima de si mesmo, numa espécie
de mirante meio distanciado, de onde possa perceber
nuanças críticas no fato ou objeto sub oculis, inclusive se o
objeto for ele mesmo como pessoa autoral. Com seu
binóculo de lente supertransparente e multifocal, fica mais
fácil antever tempestades que se avizinham, ou pode
constatar e gritar de vez em quando, se necessário: “Ei! O
rei está nu!”, ou então, “Ei! O povo está nu!”.
A escolha dos temas deve ser sempre de interesse
geral, chamativo à atenção para problemas que todos se
interessam ou se interessariam em ver resolvidos.
A escolha das palavras, inclusive com o auxilio do
dicionário, tem que reforçar os enfoques e as
contextualizações, buscando a harmonia e o melhor
sentido à ideia central esposada.
Uma ideia coletivista é não só disseminar seus
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
125
pensares, mas ser também um carteiro das ideias alheias.
A recorrência a fatos, dados, pesquisas, bibliografias,
citações, frases etc muito enriquecem e reforçam o poder
de convencimento do que se está a expor. Podem até
reduzir o grau de originalidade e ineditismo dos
argumentos do autor, mas atingem melhor os sentidos dos
leitores que precisam mudar ou reforçar seus próprios
pontos de vistas, independentemente de quem o influencie
para isso.
Escrever é também reunir, rearranjar e monoblocar
informações. Nada de achismos vazios e
desfundamentados. Tudo que se propõe convencer tem de
ser o mais bem fundamentado possível. Deve-se fazer
abertura e encerramento coerente de silogismos
argumentais. Busque-se, em princípio, correlacionar
premissas universalmente aceitas ou já suficientemente
consagradas entre os especialistas, pensadores e
representantes de correntes sólidas de saber, ainda que
sejam agora questionadas ou contrariadas. O esperável é
que qualquer confirmação ou contrariedade a fatos, teses
ou posicionamentos anteriores seja sempre sobejamente
fundamentada, para não transformar o escrito em mero
Josenilton kaj Madragoa
126
razoado tautológico ou em denúncia vazia.
O simples pensar ou achar sem maiores respaldos ou
fundamentações convincentes é visto, no máximo, como
uma hipótese a priori, que vai depender sempre de
alguém ou de algum dado ou fato posterior que o
corrobore. É melhor que o próprio suscitador da hipótese
cuide disso.
"O escritor curto em ideias e fatos será,
naturalmente, um autor de ideias curtas, assim
como de um sujeito de escasso miolo na cachola,
de uma cabeça de coco velado, não se poderá
esperar senão breves análises e chochas tolices."
- Rui Barbosa
O que o escritor social deve pretender, antes de tudo,
é a mudança ou melhoria dos pontos de vista ou a solução
dos problemas, para o que ele tenta contribuir através da
sua caneta.
Nos tempos atuais, caracterizados pela
intertextualidade, o que importa é mais um texto bem
montado e bem referenciado, que faça a diferença, do que
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
127
o grau de originalidade de quem o materializou.
Não estou apologizando as paráfrases e outras formas
correntes de apropriação textual, muito menos o plágio
temático, mas creio ser inquestionável que um texto
preocupado em convencer, ou fazer seus leitores
matutarem, deve recorrer a fontes externas que bastem
para imprimir mais veracidade à ideia defendida.
Nenhum texto é obra exclusiva do escritor. Quanto
mais leve e sensível estiver o escritor no momento da
operação textual, tão mais fluente será a aterrissagem (ou
“papelagem”) da parte do texto que não é de sua biblioteca
raciocinal.
Favor, contudo, não confundir sensível com
emocionado. A emoção é um valor do homem. A
sensibilidade é um valor do espírito.
Eis uma frase de Fernando Pessoa que coroa esse
entendimento: “Ver muito lucidamente prejudica o
sentir demasiado. E os gregos viam muito
lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua
perfeita execução da obra de arte.”
O escritor, pois, deve preparar-se para seu labor
elevando-se espiritualmente.
Josenilton kaj Madragoa
128
Com a palavra, João Cabral de Melo Neto:
“escrever é estar no extremo de si mesmo.”
Microfone para Clarice Lispector: “A palavra é a
minha quarta dimensão.”
O poeta estadunidense T. S. Elliot pede a palavra e
arremata: “Escrever é fugir da emoção.”
Porém, Jorge Amado também chegou a dizer: “o
escritor que quiser emocionar tem de escrever
emocionado.”
Graciliano Ramos acentuara: “Comovo-me em
excesso, por natureza e por ofício. Acho medonho
alguém viver sem paixões.”
Epa! Parece que já estamos invertendo tudo, não é
mesmo? Calma! Pelo menos no sentido pretendido neste
arrazoado, eu continuo grecista. Aqui estamos falando
precipuamente de textos sociais. [Emoçao é um
hiperônimo histórico, que serve para definir vários
sentimentos e sensações humanas. É usada no lugar de
sensibilidade, inspiração, consternação, afetividade,
comoção etc.]
Muitos escritores comprometem-se apenas com a
Arte em si, pelo menos no plano consciente. São os
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
129
escritores artísticos, que buscam apenas emocionar ou
apenas entreter. [É uma arte também muito difícil. É
praticamente impossível não se escrever sem fazer
propaganda indireta ou merchandising de alguma
corrente de pensamento, ainda que inconscientemente,
sem estar vinculado a alguma ideologia ou sem manifestar
ideologemas a cada página.]
Outros lidadores da palavra escrita conseguem ser
artísticos-sociais, e fazem suas denúncias com muita
maestria e precisão, valendo-se inclusive dos romances,
como Vitor Hugo, Machado de Assis, Érico Veríssimo e
Graciliano Ramos. Muitos grandes poetas da nossa
história conseguiram emocionar e conscientizar usando
sua veia poética, como Castro Alves e Cruz e Souza.
Falavam para os corações e para as mentes.
Mas a questão aqui agitada é a “pessoa particular” do
autor e seus medos, suas revoltas e seus desequilíbrios
emocionais, que não devem macular demais o texto, sob
pena deste se tornar muito mais um divã psicológico do
que um meio de protesto transformador.
O escritor social tem que calcular bem o que diz.
Deve ser um engenhador das palavras e das ideias (ainda
Josenilton kaj Madragoa
130
que brinque com elas), porque o que ele diz tem caráter de
documento e pode funcionar até como uma arma. [Um dos
maiores críticos sociais da literatura brasileira foi
Machado de Assis, embora indiretamente, tendo usado
com muita maestria o recurso retórico da ironia.
Desabafou como bem quis nas entrelinhas de seus
romances, mas sem ninguém perceber claramente. Um
mestre.]
"A verdade é que a pena, na mão de um
excelente escritor, resulta por si só numa arma
muito mais potente e terrível, e de efeito muito
mais prolongado, do que jamais poderia ser
qualquer outro cetro ou espada nas mãos de um
príncipe." - Vittorio Alfieri (1749-1803, poeta trágico
italiano.
[Muitas vezes, contudo, essa arma, quando não
disparada para atender aos interesses do povo, costuma
reforçar a munição dos dominadores e manipuladores das
consciências coletivas.]
LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS
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Diferentemente dos textos acadêmicos, que têm de se
subordinar a um rigorismo técnico e científico, com base
na engessante ABNT, o texto social tem como público a
sociedade como um todo. É necessário o chamamento à
ordem; a denúncia é sempre bem vinda; os
questionamentos são uma tônica essencial. Mas também é
de bom-tom e dá um certo gosto ao discurso o tempero
das figuras de linguagem, do jogo de palavras, das frases
de efeito e do humorismo. [É o “escrever com molho”, no
dizer de Luis Fernando Veríssimo.] Na dosagem certa
entre a coloquialidade (linguagem informal e popularesca)
e a adloquialidade (linguagem formal e gramaticalista)
tendem a suavizar um pouco a exposição, a minimizar sua
eventual sensaboria e a tirar o peso do sermão, sem
reduzir o peso da responsabilidade.
O básico é cuidar para que esses recursos acessórios
não roubem a cena de todo o conjunto da obra, nem
comprometam os pilares-mestres da arquitetura textual,
que está fincada na ideia central veiculada. Isso em si é
uma arte.
Mesmo nas obras de ficção e de poesia, que
demandam uma carga de sensibilidade do escritor e do
Josenilton kaj Madragoa
132
leitor, é necessária muita inteligência emocional, para não
transformar o texto em um escrito escolar ou de amador
principiante.
Parafraseando Jorge Amado, podemos asserir,
portanto, que o escritor que quiser conscientizar, tem de
escrever conscientizado.
Enfim, todo escritor social, que podemos chamar de
eu-argumentador, que quer contribuir para a melhoria da
sociedade, através da sua caneta, tem de se habilitar para
isso em vários níveis, inclusive no apuro da arte do
convencimento, que impõe o bom uso do léxico, um certo
domínio dos princípios clássicos da retórica, quer nos
ataques, nas defesas ou nas respostas argumentativas.
Pensar antes, escrever em seguida, corrigir depois e
publicar finalmente. Eis o jogo de premissas. Eis o fim.