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LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS Josenilton kaj Madragoa

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LER, ESCREVER E

OUTRAS INTROLIGÊNCIAS

Josenilton kaj Madragoa

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Sumário:

Sumário: 3 COMO LER COM UMA LENTE BIFOCAL 4

AS FONTES PRODUTIVAS DO TEXTO ARTÍSTICO E DO TEXTO LITERÁRIO 13 DA ORIGINALIDADE DOS TEXTOS 16 SINCRONIZANDO E SINTONIZANDO COM ONDAS DE PENSAMENTOS 28 LENDO PARA ESCREVER, ESCREVENDO PARA LER 30 LIVRO: PESSOA LITERÁRIA CHEIA DE OPINIÕES E DE EMOÇÕES 37 LER, MAS COM A LENTE DA CENSURA E DA CRÍTICA 41 O LIVRO E AS IDEOLOGIAS DE MASSA 60 LER E VIVER. CONJUGUE ESSES VERBOS CONJUGAIS 75 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA 83

A ESTESIA DA ARTE 88 A ARTE COMO ORAÇÃO DE NÓS PARA DEUS 103 E DE DEUS PARA NÓS 103

O PAPEL DO ESCRITOR SOCIAL 116

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COMO LER COM UMA LENTE BIFOCAL

Todo bom texto literário reúne em si três obras de arte. A

primeira é o jogo das expressões; a segunda, o jogo das ideias

explícitas; a terceira, o jogo das ideias implícitas. E a chave da

abertura dessas artes está mais na percepção de quem lê do que

de quem escreve. A inteligência leitoral é tão ou mais

importante do que a inteligência escritural.

Qualquer texto escrito, sonoro ou visual, por mais

aparentemente bem feito, belo, coeso, coerente e bem

estruturado que seja, deve ser absorvido sempre com alguma

criticidade (particularmente estes em forma de simples ensaios-

cartas argumentativas e que não gozam desses atributos todos).

As redações são normalmente montadas a partir de uma

inteligência meio artificial, principalmente as que constroem

ficções, onde tudo é possível, em detrimento das

impossibilidades lógicas na comparação com o mundo real.

[Contudo, as ilogicidades da ficção não se confundem

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necessariamente com as burrices lógicas das cenas de

ação, suspense, perseguição e perigo dos textos

cinematográficos, quando os personagens em perigo

reagem para se defender de forma sempre diferente

da vida real (para aflição ou irritação dos

espectadores). Via de regra, na boa literatura, as

ilogicidades guardam perfeita coerência com outras

realidades e são compreensíveis a partir de

construções lógicas profundas, ainda que mal

compreendidas ou normalmente refutadas pela

inteligência racional comum.] Contudo, mesmo as obras

ficcionais corriqueiras e normalmente absurdas e inverossímeis,

encerram verdades profundas, desde que se saiba entrever,

introver e superver através das camadas aparentemente ilógicas

que dão vida, sentido, coerência e coesão ao desencadeamento

ou desenovelamento da linha narrativa.

Por mais racionalmente inteligentes que sejam, textos são

redigidos por pessoas, quer queira, quer não, comprometidas

com visões parciais do mundo, por mais imparcial que seja a

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temática e por mais heterogênea que seja a experiência de vida ou

a postura conscientemente neutra de quem redige e de quem lê.

[A rigor, não existe ninguém cem por cento neutro

neste mundo, nem o chamado “livre-pensador”. Todo

mundo está ligado, direta ou indiretamente e

consciente ou inconscientemente, a várias linhas de

pensamento pré-existentes ou contemporâneas,

sucessiva ou paralelamente, e que se alternam a vida

inteira.

O que pode talvez permitir a intitulação a alguém de

“livre-pensador” é o seu não apego sistemático a

nenhum ismo ou logia reinante entre as grandes

formações sociais. Ou àquele que busca sintetizar das

várias correntes de pensamento o que entende ser

proveitoso ou verdadeiro para compor seu próprio

naipe de pensares e agires frente às questões maiores

da vida, durante as várias fases de sua jornada

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terrena.]

Mas também não é o caso de se viver a discordar, de forma

sistemática, de tudo que é textualizado. O criticismo como

ferramenta de enfrentamento dos fatos textuais seja aquele

proposto pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Ele

defendia a importância do conhecimento como base de

investigação filosófica, mas ressaltava que os seres humanos têm

limitações cognitivas e consequentemente suas produções não

podem trilhar pelo dogmatismo nem pelo ceticismo absoluto.

No caso dos textos escritos, não é raro questões nevrálgicas

de assuntos complexos serem discorridas com grande amplitude

por autores que pouco vivenciaram na prática quanto a isso. É

que muitos artistas do pensamento escrito têm uma inteligência

cognitiva adquirida pelas próprias leituras analíticas de textos de

outros autores, ou pelas conversas, entrevistas e aprendizados

escolares. Isso lhes afia e favorece o conhecimento geral das

coisas, por indução e por dedução. E esse afiamento lhes capacita

à produção do próprio discurso. Um exemplo clássico disso é o

de Franz Kafka, que ambientou na cidade de Nova Iorque, sem

nunca ter ido lá, o seu best-seller “O Desaparecido” (ou

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“Amerika”, na revisão post morten feita por seu amigo

Max Brod (talvez o amigo mais famoso no círculo dos

grandes autores da literatura mundial)).

Ademais, a arte de escrever é também inspiracional, mesmo

quando se limita a metafisicar derredor de questões eternas e

insolúveis, como são as questões humanas, sociais e espirituais.

Escrever e ler são fenômenos exclusivos da natureza humana,

porque integram a capacidade comunicativa dos seres

raciocinantes, envolvendo visão e/ou tato e também inteligência

humano-espiritual interativa.

Ninguém escreve sozinho. As variações são apenas de sintonia,

de faixa e de frequência. Disso bem soube Pietro Ubaldi (1886-

1972), filósofo e pensador italiano, que escreveu, com o apoio de

“ondas de pensamento” (a que ele chamava de “noúres”), todas as suas

obras, inclusive “A Grande Síntese” (livro escrito em 1951, que

trata da evolução dos seres, desde o estado da matéria

até o do espírito e seu retorno a Deus. Recebeu linhas

de elogio de Albert Einstein, em carta enviada ao

autor).

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Portanto, algumas “correntes de pensamento” que circulam

por aí podem ser mais literais do que se possa imaginar. Mas, a

qualidade transmissiva dessas ondas puras de conhecimento

depende das suas “portadoras”, que são outras ondas senoidais,

que fazem o seu transporte via aérea. [São semelhantes às

ondas portadoras de rádio.] E de onde se irradiam essas

“portadoras”? Justamente das nascentes dos próprios

pensamentos, que estão nos centros de consciência dos próprios

seres humanos geoterráqueos e dos seres humanos integrantes da

dimensão espiritual paralela à nossa.

{Você, que está aí momentaneamente “antenado” com estas

emissões de pensamento escrito, acredita que é possível haver uma

espécie de Física Quântica cabalística que pode surfar (estudar) tais

ondas desprendidas de qualquer ser pertencente a uma das

dimensões existentes? [Aproveitando para repisar: A Física

Quântica é o ramo da Física que estuda as partículas

subatômicas fundamentais que ainda não foram

mensuradas e talvez nunca o sejam com os

instrumentos até então conhecidos. Correntes afirmam

que as partículas fundamentais seriam a ponte entre o

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mundo tangível da nossa dimensão com o mundo

espiritual, que seria o conjunto de todas as outras

dimensões de vida acima da nossa. Neste caso, estamos

mais diante do que podemos chamar de Metafísica

Quântica, a partir da visão aristotélica. Já a Cabala,

entre outros conceitos, é um conjunto de ideias

místicas e esotéricas sobre as realidades naturais ou

humanas e que oferece soluções através de números,

letras e outros símbolos.] Seriam tais ondas seres inteligentes

e inteiramente autógenos? Seriam mesmo ondas? Se sim, a que

dimensão pertenceriam? Teriam alguma forma? Eu cá não

acredito, mas também não desacredito; apenas não tenho

referências aqui e agora, no bolso, para amparar qualquer

raciocínio a respeito. Minha tendência é não crer. Acho que ondas

de pensamentos, ou “noúres”, (ou “revelações”, segundo algumas

definições religiosas) e ondas de imagens virtuais, em si, não

existem. São reflexos ou projeções de centros inteligentes, que

usam os meios eletrônicos, químicos, físicos e biológicos

(mediunidade, inspiração, revelação, epifania ou simplesmente

pedido do redator-chefe) para expandir suas ideias. A contrario

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sensu, seria como imaginar que todos os computadores da Terra

fossem desligados ao mesmo tempo e, após esse apagão mundial

de hardwares, a Internet continuasse ligada com total

independência. Seria possível? Apesar de não termos como provar

que a Internet estaria no ar, ou não, é de se crer, a priori, que ela

não poderia. Afinal, os servidores-transmissores físicos de onde se

propagam os sons e as imagens portadoras de nossos registros

mentais, sem energia, não estariam propagando nada. É de se

(ainda) crer que nenhuma comunicação em malha ou em linha

possa existir se não estiver ligado energeticamente um emissor

físico com um receptor físico (ainda que de dimensões diferentes),

pelo menos. Ou não? Ou pode estar havendo alguma

realimentação de dados também por grandes redes neurais

extraterrestres já imiscuídos com outros resultados que chegam

aos nossos monitores-receptores? Ou isso força cálculos de uma

matriz quântica ainda inexistente nas nossas matemáticas terrenas?

Você, que adora Física, já tem posição firme nesse sentido? Acha

que só o tempo dirá? Ou, por enquanto, tudo não passa de ficção

científica deste ensaísta ou de uma lebre levantada apenas da

minha cartola prestidigitadora? Sim? Não? Mais ou menos? Mais?

Menos? Em que onda de pensamento Você costuma surfar a

respeito? Ou Você também está que nem eu, em busca da onda

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perfeita de raciocínio quanto a essas questões?

Por outro lado, ou seja, na ponta extrema da senoide portadora

de energias-pensamentos, há o receptor. Este pode ser qualquer

um de nós, inclusive os produtores, leitores, analistas de discursos

ou apreciadores de textos e de outras manifestações de

pensamentos e de artes.

Quanto à escrituralidade, não é raro perceber-se mudanças

quase repentinas de frequência ou até de faixas. Isso ocorre várias

vezes durante um processo da escrita longa como um livro, cheio

de meandros e de subterrâneos, ao ponto de se iniciar um capítulo

com uma ideia e terminá-lo com outras, muitas vezes, totalmente

diferentes da ideia inicial, mais profundas ou mais superficiais. É

que temos, escreventes, uma espécie de capacitor variável ou

“varicap” mental, que vai mudando de “estação”, às vezes à nossa

revelia, quando não gera até interferências. Normalmente, é a

nossa própria vibração mental ou psíquica que consegue girar o

botão “tunning” da frequência ou o seletor de bandas. Assim, o

estado de espírito de todo produtor escritural, durante sua lavoura,

é fator momentoso, embora não decisivo, na seleção do que ele

pretende passar para o papel rumo ao leitor/receptor final.

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AS FONTES PRODUTIVAS DO TEXTO ARTÍSTICO E

DO TEXTO LITERÁRIO

Todo texto tem uma espécie de “personalidade meio própria”,

que é a projeção da personalidade do autor ou de outras

personalidades através do autor, reforçada pelas fontes

bibliográficas e biográficas. [A outra parte é o escritor em si, suas

experiências próprias e seus tirocínios.] Isso é o que estimula

bastantes escritores a serem assíduos leitores de seus próprios

textos, mesmo sendo estes boa parte deles próprios.

Qualquer interpretação sobre qualquer escrito é

válida. É a leitura interpretativa que torna o

escrito um texto. É a leitura que cada um faz no

momento, de acordo com as circunstâncias, sua visão

de mundo, suas tendências interpretativas, suas

texturas emocionais, suas lembranças remotas ou

recentes automaticamente evocadas, ainda que no

plano inconsciente.

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+++Legi komprenante kaj interpretante siamaniere

kaj surbaze de sia mondvidado estas tiel grave, kiel

skribi same. Tiel, pere de tiu interŝanĝo de

vidpunktoj, la skribitaĵo fariĝas finfine teksto (per la

laboro de la skibinto, kiu legas per la manoj, kaj per la

laboro de la leganto, kiu skribas per la okuloj). +++

[Ler entendendo e interpretando à sua maneira e com

base na sua visão de mundo é tão importante quanto

escrever também assim. Dessa forma, por intermédio

da troca de pontos de vista, o escrito torna-se

finalmente um texto (pelo trabalho do escritor, que lê

com as mãos, e pelo trabalho do leitor, que escreve

com os olhos).]

É mesmo. De um lado do papel há o escritor e do

outro, o leitor, cada um com seu mundo cheio de

mundos. O pobre do escrito fica no meio do caminho,

ou melhor dizendo, no meio do encontro (ou talvez

choque) de caudalosos rios culturais e ideológicos. O

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bom é que a partir daí nasce um novo rio, e é assim que

as ondas de pensamento evoluem rumo ao grande mar

do conhecimento humano.

Enfim, todo texto é metade de quem escreve,

metade de quem lê. O significante idealizado

pelo escritor sobre o significado, que é o escrito,

nunca coincide integralmente com o significante

construído na mente do leitor, às vezes passando bem

longe, mas não importa. O importante é cada um fazer

sua leitura não deixando o escrito passar em branco

sem virar texto, sem virar-se texto.

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DA ORIGINALIDADE DOS TEXTOS

Em seu livro “Sobre o Ofício do Escritor”, o filósofo polonês

Arthur Schopenhauer (1788-1860) sentenciou nos seguintes

termos: “Só quem tira diretamente da própria cabeça a matéria do que

escreve é digno de ser lido.”

Jamais aqui pretendo desfazer nesse respeitabilíssimo ponto

de vista. Apenas entendo ser necessária uma interpretação a

respeito. O que pode haver de matéria genuinamente original em

um texto é a reflexão sobre o assunto ou a forma da sua textura

ou tessitura, não o assunto em si.

Todo escritor é antes de tudo um retratista de memórias

individuais ou coletivas, um resenhista dos fatos existentes,

existidos, a existir ou “existíveis”, ainda que na própria

imaginação. E entre estes fatos podem estar outras resenhas de

autores sobre o mesmo assunto “sub oculis”. [Por isso não há

direitos autorais sobre pensamentos. Só os há sobre

redação de pensamentos.]

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Do nada absoluto é que ninguém cria nada, ou melhor, é que

nada se cria (conforme a máxima latina ex nuhilo nihil = nada

nasce do nada), nem imaginação.

Tudo é criado, no mínimo, a partir de referências, ainda que

estas jazam eventualmente em uma dimensão transterráquea. É

uma lei da Física. Tem que haver uma linha de A para B. Daí em

diante, o recheio, a cobertura ou um novo arranjo de palavras é

com as inteligências recriadoras e expansionistas, quer da parte

escrevente, quer da parte legente.

Nenhum beletrista nos dias atuais pode pretender não usar os

recursos da intertextualidade. [Em Linguística, “intertexto”

é todo texto que vem antes de outro, servindo de base

para este. A intertextualidade tanto pode ser

histórica ou anacrônica, quanto espacial ou sincrônica.

Neste caso, a presença do texto anterior também

está em circulação na contemporaneidade.] Não pode

desprezar também a ferramenta da hipertextualidade

(característica do hipertexto ou texto digital

agregado de recursos informáticos, como som e

imagens) e até da hipermídia (complexo textual em que as

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palavras ocupam lugar mínimo em relação ao som e à

imagem.) Hoje em dia, quem apresentar qualquer escrito como

original corre grande risco de estar fazendo plágio indireto. Pode

achar que está descobrindo ideias inéditas, quando, em verdade,

está apenas reinventando a roda de pensamentos já prontíssimos

sobre a matéria, ainda que desdobrados fragmentariamente na

grande malha da intertextualidade.

{“Como o burrico mourejando à nora,

A mente humana sempre as mesmas voltas dá...

Tolice alguma nos ocorrerá

Que não a tenha dito um sábio grego outrora...”

(Poema “Do Exercício da Filosofia”, de Mário Quintana)}

Todo texto é, no mínimo, uma paráfrase indireta de outro

texto do passado recente ou do passado remoto, isso quando não

for um simples pasticho ou uma paródia. Por isso, e de qualquer

forma, eu contra-arrazoo esse raciocínio de Mário Quintana, com

a seguinte frase do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-

1881): “Não há assunto tão velho que não possa ser dito

algo de novo sobre ele”.

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Principalmente na atual contemporaneidade pós-moderna,

quase nada se cria apenas a partir de segmentos AB. As bases

criacionais têm sido quadrados e labirintos ou até cubos

(inclusive o famoso “cubo mágico”☺). Até os recursos

midiáticos trabalhados em conjunto são armas cada vez mais

interativas nos processos de conquistas de espaços, de clientelas,

de consumidores. É o instituto da transmídia, que procura

difundir uma ideia comercial, política ou ideológica, desde por

exemplo um livro até o twitter. Quando determinado público-

alvo não é atingido por uma mídia, ele é atingido por outra sobre

o mesmo assunto. Essa é a ideia.

De qualquer forma, as ondas de pensamento humano têm

suas ênfases produtivas no decorrer da história da Terra. Até

poucos séculos atrás, efetivamente havia o império dos textos

geniais, criacionais, solucionais e, por isso, unidemensionais e

estáticos, que eram norte de pensamentos coletivos (para os

poucos que sabiam ler intelectivamente). Era a fase da

supratextualidade. Havia revelações originais, ainda que baseadas

em pensamentos mais antigos de outras cristas cognitivas da

mesma longa onda.

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Hoje, a prevalência é a depressão da grande onda do saber.

Nada de novo tem surgido para impressionar ou mudar

radicalmente os pensares humanos. O que impera agora é a

intertextualidade, ou seja, a recriação, a reciclagem e a digestão

compartilhada de tudo o que já foi “jogado” anteriormente.

Nestas tendências pós-modernas de construção textual, que

apontam para uma espécie de criação compartilhada global, o escritor

se torna uma espécie de redator final. Isso é estimulado

especialmente pelo avanço das tecnociências de suporte

criacional (processadores de texto, dicionários e enciclopédias

virtuais, sites de buscas, hipertextos, hipermídias etc). A noção de

intertextualidade histórica e ambiental se amplia cada vez mais. A

citação a autores do passado e do presente caracteriza

sobremaneira as novas produções de texto, especialmente porque

os próprios leitores da atualidade têm suas habilidades

inteligenciais mais bem estimuladas e são mais bem multi-

informados do que os de outrora. Mas, por outro lado,

tendem a se cansar facilmente diante de simples

textuários (escritos sem formatação e sem

ilustrações).

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Influências e deslocamentos parafrásticos e parodísticos são

uma tônica cada vez mais presente. A intertextualidade linear

cede espaço para a multitextualidade, o que tem viabilizado,

inclusive, as criações coletivas (em que os coautores nem se

conhecem pessoalmente). Isso decorre da própria evolução e

barateamento dos meios de comunicação eletrônicos. Tudo hoje

tende a ser epistemologicamente multirreferenciado.

Portanto, a Literatura, em qualquer de seus gêneros, tem de

acompanhar as múltiplas possibilidades de criação já reinantes

nas demais artes atrativas do grande público (cinema, música,

arte contemporânea etc).

O escritor que pretender ser lido na atualidade

multicomunicativa tem de modernizar suas formas de abordagem

e tem de surfar nas novas ondas de predominância natural da

intertextualidade e da multidisciplinaridade. Urge se coadunar,

inclusive, com o sucesso cada vez mais crescente das chamadas

“ciberarte” e “ciberliteratura” e de outras formas midiáticas de

produção e divulgação textuais, inclusive através do ipod, e-book

etc.

Claro que a criatividade humana é progressivamente infinita e

sempre extrapola os limites do segmento AB, esticando-os,

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entortando-os, invertendo-os, rasgando-os e praticamente

confundindo-os. [Seria, por exemplo, o caso dos

singulares originalões Elomar, João Guimarães Rosa,

Clarice Lispector, Glauber Rocha, Salvador Dali, Pablo

Picasso, Franz Kafka e Machado de Assis? Quem Você

excluiria dessa lista ou incluiria nela? Frise-se que

eles não foram exatamente criativos nas ideias, mas,

sim, na forma de explorá-las, de recontextualizá-las e

de emocionar seus apreciadores através delas, cada

um em sua época própria.]

Não é raro mentes altamente inventivas ignorarem quase tudo

que já está instituído e montarem seu próprio subsegmento AB, a

partir do qual erigem seu universo criacional e suas leis

decorrentes. Podem até não ser vistos com bons olhos ou não

ser devidamente apreciados pela sua contemporaneidade, por

eventualmente faltar em suas criações alguma coerência ou lógica

aparente (típico de muitos criadores compulsivos). O importante

é que suas obras estão aí no mundo, criadas, à espera talvez de

gerações futuras de olhares contemplativos ou mais intelectivos

ou interpretativos. Podem demandar muito tempo para que

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sejam encaixadas epistemologicamente dentro de alguma teoria

criativa constituída.

[Muitos gênios e inspirados da criação, entretanto,

conseguem empolgar e agradar, mesmo no estreito

segmento AB, ainda que na chamada arte minimalista.

Conseguem explorar recursos cinematográficos apenas

nas palavras que escrevem, imprimindo emoção,

inteligência, suspense ou poesia em cada esquina, ou

melhor, em cada parágrafo.]

A depender da sua dimensão, alguma criação genuinamente

criativa[!] mais fundamental pode até receber um tratamento

taxonômico exclusivo. [Taxonomia ou taxinomia: ciência

da classificação das coisas por palavras, normalmente

agrupadas de acordo com o ideário geral de cada ramo

de saber, especialmente o científico. Principalmente

no campo das ideias, para cada realidade há sempre

duas palavras definidoras, sendo uma mais erudita e

outra mais popular, uma mais técnica e outra mais

vulgar.] Pode também receber uma definição epistemonímica

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inteiramente nova. [Epistemonímia é o estudo dos nomes

das ciências, artes, habilidades, técnicas,

conhecimento, práticas criativas e práticas

cognitivas.] Pode fazer surgir uma nova ciência, uma nova arte,

uma nova filosofia, uma nova religião ou uma nova doutrina, a

depender de sua serventia em algum campo social

contemporâneo. Geralmente, o primeiro tratado é a obra seminal

que vai desencadear toda a corrente de seguidores adiante. [O

pior inimigo do conhecimento, por um leigo, por um não

especialista acadêmico, sobre os fenômenos naturais

cientificizados, é a própria ciência e suas

nomenclaturizações engessantes e limitadoras de sua

compreensão direta. Essa dificuldade de

entendimento direto e rápido surge a partir da

generalização, metaforização ou signoneutralização

das palavras técnicas ou terminologias que são

escolhidas para definir cientificamente os fenômenos

sub oculis.

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LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS

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São quase duas ciências antagônicas: os fenômenos

vivos e pré-existentes e a taxinomia definidora desses

fenômenos. Para o novel pesquisador de fenômenos

naturais cientificizados, o importante, pois, é estudar

de dentro para fora e não de fora para dentro. É

entender primeiro o âmago do fenômeno, a partir de

métodos diretos de apreensão de conteúdos. Depois

disso pode-se tampar os fenômenos, já

compreendidos, com as correlatas terminações

científicas. O conteúdo é mais importante do que o

rótulo, isso em qualquer forma de abordagem, em

qualquer ciência. Primeiro desmitificar, destrinchar,

dissecar, abrir o conteúdo para identificar seu

mecanismo de funcionamento. Depois, procurar ou

escolher-lhe o rótulo. O importante é, ou

laboratorizar os assuntos excessivamente teóricos,

por conta própria, em estudos paralelos autodidáticos,

ou buscar teorizar ou pesquisar as nomenclaturas dos

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assuntos excessivamente práticos. Ou se cerque por

um lado, ou se cerque por outro, mas que se domine o

assunto, na teoria e na prática, mesmo considerando

as ciências da palavra, como Letras e Comunicação.]

Só não se pode mesmo, ao meu ver, é se criar a partir do

incriado absoluto.

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****

Somos perissológicos repetitivos) por natureza, não só para

relembrar e reafirmar, mas também para ressignificar, estender

conceitos ou ajustar o que já sabemos a novas realidades.

Estamos sempre reinventando a roda de saberes. De certa forma

a evolução dos pensamentos se opera através de círculos em

espiral, que vão se expandindo com as eras, a partir das próprias

reobservações e reconceitos individuais e coletivos. Por isso, os

famosos padrões de comportamento e de conduta

sociais se perpetram, como espécies de déjà-vu, déjà

vécu ou déjà entendu ouvido algo) meio previsíveis.

[Déjà-vu ou, literalmente, “já visto”, é a impressão de

já ter visto ou presenciado algo. Déjà vécu é a

impressão de já ter visto, vivido ou experimentado

algo. Déjà entendu é a impressão de já ter ouvido

algo.]

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SINCRONIZANDO E SINTONIZANDO

COM ONDAS DE PENSAMENTOS

As vibrações inspiracionais inferiores são controladas pelas

vibrações superiores, mas não impedem uma simbiose eventual

com a “estação” abaixo.

Na gradação dos mundos, os seres humanos não estão no piso.

Há inteligências mais baixas do que as nossas, sem poderes

primários de interferir na nossa mente. Mas, se nós baixarmos a

nossa vibração, vamos automaticamente abrir canal de passagem

para as inteligências menores poderem se infiltrar e influenciar nas

nossas mentes ou até nos nossos corpos e, consequentemente, nas

nossas decisões. (Seria uma subtextualidade?☺) Quando fechamos

o canal, mudando a sintonia através da elevação vibratorial,

deixamos de captar de novo a estação mais densa. O problema, às

vezes, são os estragos feitos enquanto estamos na sintonia vibrátil

inferior, alguns deles podendo resvalar em textos incitadores a

vícios, loucuras mentais, longos processos obsessivos ou auto-

obsessivos ou até ao suicídio(!), a depender sempre, é claro, da

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LER, ESCREVER E OUTRAS INTROLIGÊNCIAS

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qualidade receptiva de cada leitor.

Também o leitor-receptor tem formas diferentes de captação

da mensagem, a depender do seu estado humano-espiritual, da

necessidade, da pressa e, particularmente, da capacidade de

absorção do essencial.

Até a escolha de um texto pelo leitor ou espectador pode sofrer

influências de seu próprio estado de espírito. Da mesma forma, a

escolha de um leitor pelo texto(!) pode influenciar o próprio

estado de espírito daquele. Isso costuma fazer com que muitos

legentes abandonem uma leitura já engrenada, por já terem

mudado de estado íntimo, ou por causa do próprio texto ou por

outros fatores extratextuais. Nem sempre abandonar um texto pela

metade significa que o mesmo não presta ou que se teve preguiça

mental de ir até o fim. Pode ser também que o pedaço lido é que já

encerrou toda a necessidade mais premente e atual do leitor. O

resto poderá ser lido adiante, ou não, a depender também da

sequencialização subtemática que o autor deu à narrativa.}

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LENDO PARA ESCREVER, ESCREVENDO PARA LER

(ESPECIAL PARA A TURMA B DO PRIMEIRO ANO

NOTURNO DO ENSINO MÉDIO)

Mesmo não sendo necessariamente um erudito, é de se esperar

que todo escritor, especialmente o que escreve textos longos como

os livros, tem de saber mais um pouco do que o leitor, pelo menos

em nível de informações sobre o que discorre em profundidade.

Afinal, para corroborar as teses do seu texto, normalmente o autor

também lê um bocado e pesquisa um conjunto de fatos atinentes,

muitos deles inéditos para grande parte do público-alvo.

A partir de terminologias emprestadas da Filosofia grega

clássica, podemos dizer que todo beletrista exerce três trabalhos

bem distintos, a saber: a práxis, a poesis e o labor.

A práxis é o trabalho de pesquisa e de redação ascendente do

texto bruto, ao mesmo tempo em que o trabalhador-pensador vai

tentando decodificar os insights que recebe no momento do estro,

para enfeixar e indexar as ideias e propor soluções para os

problemas levantados no escrito.

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A poesis é justamente o trabalho mais felicitador, porque

consiste na própria captação dos insights, no voo feito nas asas da

imaginação, da inspiração ou da intuição. Enfim, é um

nivelamento por alto com pensamentos que não são os da sua

consciência formal, mas que interagem com esta, a fim de formar

o todo que vai para o papel.

Já o labor é a parte mais penosa, a mão de obra, ou seja, a mão

que escreve a obra, com suas correções, alterações, adições,

reduções, novas confirmações em pesquisas e leituras, entrevistas,

leituras e mais leituras do mesmo texto. O labor serve para

desembrutecer o texto e torná-lo o mais simpático e correto

possível para o leitor-apreciador. É um tormento. Mas fazer o quê?

Nada se faz sem sacrifício, não é mesmo? [Você aí, leitor ou

leitora, não está também tendo o sacrifício de ler este

texto artesanal, para captar a essência do que está

sendo dito, com apoio às vezes do fardo lateral

chamado dicionário? Faz parte do seu labor leitoral.

Mas qual será a sua poesis e a sua práxis como leitor(a),

aqui nesta lavoura literária?]

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Ler é desescrever. É passar o conteúdo de outra mente para a

sua própria, através de um duto de papel (no presente caso, um

“tubo de ensaios”). Mas ler funcionalmente é fazer o devido

reprocessamento e a devida reengenharia cognitiva decorrentes. É

escrever para si, nem que seja na própria mente. É adequar à

concretude de sua própria leitura da vida o novo feixe de ideias

absorvido. Neste contexto, mais importante do que saber é

readequar o que se sabe para uma melhor interação com as

realidades circunjacentes. É mudar o ponto de vista ou o

paradigma que está lhe causando problemas relacionais, o que uma

simples frase lida ao acaso pode provocar. [A Terapia

Cognitiva, espécie de ramo da Psicoterapia Breve, é que

agita mais especificamente essa questão e tem ajudado

milhares de pessoas a mudar de lente para enxergar

melhor o jogo relacional. Muitos terapeutas, aliás, tem

usado a chamada biblioterapia (cura através da leitura

de livros) para tratar distúrbios nervosos.]

Esta deve ser a função social e plurissocializadora da cultura

livresca e textual como um todo: ajudar o leitor a entender melhor

a vida, inclusive a sua, e a interagir de forma cada vez mais eficaz

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com o seu derredor social e seus ismos, logias, arias, ezas e outros

mistérios humanos sem fim. [Isso sem contar a função artística,

religiosa, espiritual, política, reflexiva, terapêutica, cultural, étnica,

econômica, técnica, informativa, contemplativa, emotiva, lúdica ou

meramente recreativa dos textos em geral. Não existe texto sem

função.]

Embora não tenham que ser tão cultos em nível de

informações, muitos ledores tendem a fazer ilações mais

profundas e certeiras do que aquelas expostas nos livros. Isso

quando já são multiarticulados pela experiência leitoral. Todo texto

admite múltiplas leituras. Há sempre vários textos superpostos

sobre um mesmo escrito. O escrito tem seu final com o ponto de

encerramento. O texto que ele gera não tem fim. O que já se

escreveu por exemplo sobre “Dom Quixote” (considerado o

melhor livro do mundo), de Miguel de Cervantes, desde o início

do século XVII, quando foi inicialmente lançado, até os dias de

hoje, deve ter pelo menos umas cinquenta mil folhas a mais em

relação à quantidade de folhas do próprio livro.

Quem é habituado a fazer leituras não obrigatórias costuma

levar vantagens, inclusive, nos ambientes escolares e acadêmicos,

em razão do raciocínio literário já pré-amadurecido. Os ledores

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que já têm forjada uma visão pessoal de mundo, solidificada pelo

sebo das velas frente aos livros, tendem a captar mais rapidamente

a massa crítica dos assuntos tratados, sem precisar decifrar todo o

escrito detidamente, frase a frase. Também assumem, com relativa

segurança, posicionamentos próprios e independentes em relação a

temários polêmicos, coincidentes, ou não, com o do autor da

escrita.

Por isso, entre outras, é que cada um de nós deve não só ler,

mas estudar livros, para ir gradualmente ampliando a capacidade de

raciocínio e escolarizando cada vez mais a inteligência,

ultrapassando até muitos escritores, em nível de percepção dos

universos trazidos à baila de papel. Um leitor atento e experiente

pode ver num texto muito mais do que viu o escritor do mesmo,

graças ao que podemos chamar de inteligência leitoral. O resultado

intelectivo e emotivo que emana das páginas escritas vai atingir de

forma diferente cada leitor que interage com o livro. Muitos

leitores têm reflexões, impressões e emoções tão diferentes sobre

um mesmo texto que nem o próprio autor teve ou pensou que

despertaria nos outros. Ademais, o escritor não escreve

com o controle frio e objetivo dos escrivães de

cartório. Ele também se denuncia. Ele também retrata

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a querência de onde ele veio. Ele também diz o que é

que comeu no jantar da noite anterior, nas entrelinhas.

A questão fatal que atormenta o universo de escritores e

leitores que estão também na batalha pela sobrevivência,

especialmente neste mundo capitalista que não privilegia mais a

erudição nem mesmo o cabedal de saberes próprios e autônomos,

é o pouco tempo livre de cada um de nós para os misteres da

palavra escrita. Por isso, temos de ser extremamente seletivos na

escrita e na leitura. Somos instados a escrever ou a ler o que tem

mais a ver com nossas necessidades atuais de ascensão, seja em

que nível for, preferencialmente sem a pretensão de acharmos que

o que já escrevemos ou lemos basta.

[Livro didático, por exemplo: leitura corrida? Assim,

ele se torna ininteligível. O ideal é não ler, mas

conversar com o autor. Mantenha-se um ritmo de

leitura interacionista, vendo no autor um contador de

fatos, fazendo entonações, pausas, exclamações,

repetições, perguntas e outras “intimidades”. “Discutir”

com o autor faz o assunto morar por muito mais tempo

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dentro da nossa memória. Deve haver uma leitura-

curso, sistemática, metódica, independente da

imposição curricular.

Livros de matemáticas. Cada capítulo é um livro em

si, dividido em duas partes: a introdução, geralmente

pequena, onde o autor expõe o tema e apresenta as

fórmulas, e a parte de exercícios, bem maior. O bom

leitor aí é o que aprende a introduçãozinha, faz os

exercícios propostos e vira escritor também: completa

o capítulo no seu próprio caderno, inventando outros

exercícios, para fixar a “alma” do assunto no fundo do

neocórtex cognitivo (lado esquerdo do cérebro).]

{"Os primeiros quarenta

anos de vida nos dão o texto:

os trinta seguintes, o

comentário" - Arthur

Schopenhauer}

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LIVRO: PESSOA LITERÁRIA

CHEIA DE OPINIÕES E DE EMOÇÕES

Seja, enfim, como for, o livro, em si, é uma espécie de pessoa.

Tem personalidade própria, em muitos pontos bem distinta da do

próprio autor. Embora seja destituída de qualquer senso moral (já

que isso é coisa de ser humano), essa pessoa literária(!) traz

mensagens que muitas vezes não têm nada a ver com a prática

vivencial do próprio autor, podendo estar bem acima dele, no

sentido moral, intelectual e emocional. Mas é claro que o autor é o

único responsável por todo o conteúdo objetivo exposto nas suas

páginas. Muito do que elas contêm corresponde apenas ao que ele

gostaria de vivenciar mesmo, ainda que vagamente. Ninguém

escreve ou é o que não gostaria de ter escrito ou sido, já que o

primeiro censor de cada obra de arte e de si mesmo é o seu

próprio artista ou primeiro apreciador, ainda na fase de elaboração

do trabalho. [Daí peço-lhe que Você, como leitor e censor

final, aprecie estes ensaios também com a sua caneta-

tinteiro, e envie-me pareceres para inspirarem um

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eventual repincelamento (próxima edição) com

melhorias. Só não garanto incluir todas em eventual

nova edição, porque Você pode levantar lebres maiores

do que as minhas daqui, e aí não haverá mesmo espaço

para mantê-las todas neste repositório de questões

basilares e seminais.]

O sucesso de um texto social ou popular deve se dirigir

preponderantemente para as consciências, ainda que também para

os corações. Os mestres e expertos do discurso, da oratória e da

retórica, e hodiernamente do marketing e da neurolinguística

social, de há muito exploram esse principio na produção de

mensagens de massa. [Foi o que levou ao sucesso, inclusive,

os discursos de Hitler e de Mussolini, por muito tempo.

Seus públicos-alvos na época foram atingidos muito

mais na emoção do que na razão.]

Num texto enfaticamente intelectivo e emotivo o autor deveria

ser chamado, por uma questão de justiça, de iniciador, porquanto

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um texto com esses atributos continua sendo criado mundo

leitoral afora.

O mais importante, reitero, é cada leitor tentar adaptar aos

seus os pontos de vista alheios, onde necessário. Afinal, cada

leitor é um mundo e é também um escritor para si mesmo. Às

vezes, apenas um parágrafo em um escrito redigido ainda na

época dos papiros pode ser o elo perdido que um leitor do

presente precisa para ligar os pontos de sua própria tese pessoal

sobre o que será a vida na Terra daqui a mil anos!

Ler, mas para fazer a própria leitura. Ler, mas ler-se pela

leitura. Ler com os olhos, mas também com a caneta. Ler

em voz alta, se quiser, mas principalmente com o

pensamento alto. Ler partindo do princípio de que nada do

que é lido deve ser aceito como verdade absoluta por si só,

inclusive a leitura de si mesmo.

Por mais monocórdio que eventualmente seja, todo livro é

bem estruturado e rico quanto à apresentação da tese, dos

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argumentos sustentadores da tese e da conclusão (mesmo

porque, do contrário, se for para alguma editora, o editor não

contrata para revender a ideia).

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LER, MAS COM A LENTE

DA CENSURA E DA CRÍTICA

Normalmente os livros defendem partes da verdade, não a

verdade completa dos fatos sociais e humanos. Daí Carlinhos

Brown ter dito que “os livros não são sinceros” (em sua canção

“Magamalabares”). Isso deve abranger, também, roteiros

cinematográficos, textos teatrais, teses, dissertações, artigos de

revistas, críticas, críticas a críticas, letras de música e outras

formas de manifestações sociocomunicativas escritas, sonoras ou

visuais.

É básico se ter o costume de ler livros, não como um

bibliófago (leitor voraz e insaciável de livros), mas sempre

tentando montar quebra-cabeças raciocinais em busca do sentido

da vida que melhor se coadune com a própria lufa-lufa

existencial.

Mas, como o tempo despendido para se ler um livro é

relativamente longo, é bom fazer pré-leitura sobre o tema

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tratado, para se fazer uma censura prévia e ver se vale a pena

mesmo gastar neurônios e tempo com a essa leitura maratônica.

Seria recomendável ler todo e qualquer livro sem critérios,

sem pré-julgamentos, sem preconceitos. A rigor, todo texto é

uma mídia, inclusive cada livro. Tudo que comunica está inserido

na chamada cultura digital, mesmo fora dos computadores, como

os livros impressos.

Essa relação livros-tecnologia midiática está muito estreita.

Ninguém escreve mais fora dos computadores e sem consultas à

internet nem deixando de visar à internet.

Mas, a questão maior não é a mídia como meio de

transmissão de dados em si. A questão maior é que, através de

uma mídia ou de várias delas, sempre está se tentando passar

algum produto comercial, político, econômico, religioso ou

ideológico, embora também alguma mensagem profunda, de

alerta, de segurança ou verdadeiramente aproveitável para

finalidades pragmáticas, intelectuais ou espirituais.

Daí o custo-benefício de se ler um livro tem sempre de ser

levado em conta. Ler um livro custa. Custa dinheiro, tempo,

neurônios e principalmente ideias. Mas, é um investimento

progressivamente obrigatório, para decifrarmos os enigmas

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ideológicos do sistema capitalista predatório, senão seremos

prejudicados em vários momentos da nossa vida biblioteca afora.

Há livros sinceros. Há deles que escondem o jogo, mas há

deles que exibem certos jogos, ainda que como verdades eternas

e universais, nas linhas ou nas entrelinhas. [Às vezes, a

grande verdade esposada por um livro está espraiada

na corrente de pensamento inteira que ele representa.

Aí tem-se de “continuar a leitura” em outras obras do

mesmo autor ou de outros autores da mesma corrente,

com alguma complementação até em livros de

correntes diferentes. Não é raro autores

apresentarem teses interessantíssimas e que

correspondem a verdades universais, mas fundamentá-

las mal, inclusive através de figuras de linguagem

pobres, palavras-ônibus e hiperônimos ou hipônimos de

baixo índice de representatividade, e

consequentemente concluí-las mal. Às vezes, é o

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contrário: teses fracas ou já batidas são bem

“refundamentadas” e têm novas conclusões

surpreendentes, por causa da apropriação a figuras de

linguagem mais inteligentes e de alto índice de

representatividade.]

Há livros que disseminam construções, ou destruições. Daí o

cuidado não só na escolha dos livros, mas também da inicial

prevenção e espírito de análise crítica no seu enfrentamento

página a página, para tentar ver se não se está sendo enganado,

levado ao ludíbrio, a discursos preconceituosos, terroristas,

suicidas ou simplesmente comerciais.

Ler livro em si é vital, não só para entender as bases

raciocinais de grandes pensadores e comunicadores, mas para se

defender das manhas e artimanhas dos traficantes ideológicos.

Temos que estar sempre em leitura, estudo ou análise de um

texto biblíaco (referente a livro, não às Sagradas Escrituras),

porém sempre atento para saber por que e para que estamos

dedicando tantos neurônios na absorção de uma sequência tão

longa de ideias em forma de caracteres. É o instituto da análise

do discurso. A questão é saber se o calhamaço de páginas da vez

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está nos ajudando a construir nossos próprios raciocínios, ou se

está nos ajudando a destruir raciocínios alheios, inclusive os

eventualmente mediados pelo próprio tomo, isso supondo que o

volume já passou pela catraca da nossa censura prévia e que já o

elegemos para ler. [Tal postura analítica estenda-se para qualquer

texto, desde o longo ao curto, desde o verbal ao não verbal

(sonoro, visual etc), desde o linguístico ao extralinguístico.

Também, muitas vezes, a “caixa preta” de um livro fica no

“making off” ou vai mesmo para a lixeira, quando o autor teme a

censura editorial ou a dos próprios leitores. A melhor solução

que muitos autores oferecem ao público no final do livro

ficcional é matar o personagem principal ou o antagônico, por

falta de ideação de uma solução mais abrangente e efetivamente

ética. Pode ser também por não querer propor a solução que

verdadeiramente acredita, mas que não tem coragem de exibir ao

público-alvo médio, que pode não concordar com ele, ou porque

simplesmente pode “desagradar” ao editor. Entretanto, quando o

autor consegue apresentar uma solução teórica exequível,

plausível, humana e justa, muitas vezes conclui a intriga antes

mesmo do clímax. Aí ocorre apenas a última batalha entre o bem

e o mal, mais impactante, porém o bem confirma sua vitória já

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pré-delineada, e ele e todos os seus aliados terminam felizes,

ainda que momentaneamente (até a próxima parte da história).

Muitas vezes o essencial de um texto também é invisível aos

olhos. Pode estar nas entrelinhas ou nas subentrelinhas, ou

simplesmente permanecer na gaveta, porque o autor não tem

permissão ou capacidade linguística para falar tudo nem de toda

maneira. Quase sempre o essencial está não clariceanamente nas

entrelinhas ou nas entrelinhas das entrelinhas, mas em muitas

linhas adiante mesmo, ainda por escrever ou por ler! Todo texto,

por mais plurilinear que seja, é sempre o ícone de um hipertexto

bem maior, sem letras, inacessível para ledores superficiais ou de

uma mesma geração do autor. Muitos textos, em si, são o

elemento referente na coesão intertextual anafórica, sendo que o

elemento consequente só vai surgir décadas ou séculos adiante, da

caneta de um autor que pode nem ter conhecido ou nunca ter

ouvido falar do seu colega antecedente.

Ler é decriptar, mormente quando se trata da leitura que vai

além da mera intelecção textualista. É quando se mergulha mais

profundamente em interpretações que vão às entrelinhas ou ao

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subsolo do território textual, extrapolando as perspectivas do

próprio textuador-escritor e do próprio textuador-leitor e

ultrapassando até os limites cronoespaciais do objeto textuado.

Os meandros e subterrâneos do texto são perceptíveis apenas

para os iniciados na misteriosa e quase esotérica arte da

hermenêutica profunda. Nos dias de hoje isso tem sido privilégio

de poucos ledores. Vivemos sob a prevalência do

neoignorantismo, imposto não mais pela Igreja da Idade das

Trevas, mas pelo Capitalismo, igualmente supranacional, que

prefere consumidores não pensantes e que contribuam para o

apressuramento, de forma segura e constante, das esteiras de

produção de culturas de massa altamente lucrativas, amparado

pelo tecnologismo dos textos eletrônicos.

Poucas pessoas leem livros por conta própria e de forma livre

na nossa contemporaneidade. Com o império do consumismo de

tempo, de emoções e de conhecimentos triviais e inculturais,

estamos coletivamente condicionados a não pensar criticamente, a

não contemplar um texto artístico, a não se nutrir

intelectualmente. A inteligência, reforçada pela intertextualidade

superficial, fica só até a primeira camada subcutânea das tessituras

discursivas, que favorece apenas a inteligência associativa, mas não

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as ilações próprias. Não se apura, assim, o sentido do intelecto

para perceber o que há atrás da parte de trás da textualidade formal

ou aparente.

Existe uma sensibilidade com as imaginações cadenciadas,

sequenciadas e profundas que só os livros de reflexões, lidos com

reflexão, conseguem despertar.

[As novelas televisadas têm sido muito mais

neuroimpactantes e extasiantes como textos de

comunicação ideológica e emocional do que as novelas

escritas. Do último quartel do século passado para cá,

temos sido educados, viciados e condicionados a apenas

sentir e nos emocionar a partir do que vemos e ouvimos

na telinha eletrônica. Estamos perdendo a capacidade

de criar e imaginar as cenas de um bom texto de ficção

quando estamos de frente para um livro.]

Cuidemos para não nos tornarmos apenas multi-inteligentes

em nível de conhecimentos superficiais de mundo, cheios de

informações, estressados de tantos fatos e factoides veiculados

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pela mídia televisiva e internética, mas intelijumentos no que se

refere aos conhecimentos sólidos e profundos, o que a cultura

livresca costuma sedimentar.

Para a grande maioria, ler tem sido um exercício cansativo. As

pessoas não têm paciência para concluir a leitura sequer de um

capítulo (a não ser quando estrategicamente exibido em forma de

mensagem internética ou de outros atrativos tecnoicônicos,

pictóricos e sonoros da hipermídia). O cérebro “não deixa” que se

leia um texto longo em um livro, e pior ainda se todo o livro for

um textuário (livro composto apenas de textos, sem

figuras, imagens, desenhos e nem mesmo notas

explicativas ou comentários), porque já está viciado em não

se viciar mais em ler. Tudo é questão de condicionamento do

corpo (e o cérebro pertence ao corpo, embora tenha sua mente

quadrimensional).

Há também as tendências e condicionamentos

comportamentais do cérebro coletivo. A resistência ao contato

com os livros vale principalmente para a maioria dos jovens

brasileiros, enquanto agregados em seus subgrupos sociais.

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Ademais, tem sido mais fácil conquistar uma garota ao ser visto

com um ipod, mp4, mp5 ou até com um aparelho leitor de e-

books do que com um livro de papel na mão. Para muitos jovens

tem sido vergonhoso portar um livro nas ruas sem obrigação

escolar. No mínimo, é mal visto e corre o risco de ser expulso ou

não ser recebido nas tribos urbanas e escolares e seus ecoletos

lexicalmente antilivreiros.

O capitalismo produtivo, por sua vez, privilegia não mais quem

apenas sabe e detém orgulhosamente seu patrimônio intelectual,

mas, sim, aqueles que sabem o que fazer com o que sabem, desde

que esse fazer interesse ao mercado e que seja vendido bem barato

aos empresários da “cultura de massa” e das transmídias, para ser

revendido bem mais caro aos consumidores de pensamentos,

sentimentos e emoções superficiais. De detentores de

conhecimento, os artistas e produtores textuais passam a ser

fornecedores de conhecimento-mercadoria, transformando-se em

capital intelectual.

Os livros, pois, viraram artigo de luxo. Não interessam no jogo

capitalístico das relações sociocomerciais por atacado e a varejo.

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Mas, justamente por isso, eles estão em alta cotação na preferência

dos poucos legentes e escreventes (relativamente) independentes e

dos consumidores conscientes, que não chegam a cinco por cento

da população do mundo capitalista atual. Pouca gente lê livros hoje

em dia. Porém, quem os lê é muito mais inteligente e articulado

argumentativamente do que a maioria dos faladores de esquina,

desde que cuide de adequar o saber livresco com a prática

convivencial.

Agora, mais do que nunca, precisamos de múltiplos

conhecimentos formais, profundos e livres, como arma de defesa

contra tentativas incessantes de esvaziamento das nossas

consciências pelas ideologias dominantes. E não importa a idade

nem o grau de instrução nem as inevitáveis contaminações

ideológicas de que somos vitimados. Ler não é só para conhecer,

mas é também para não ser levado de roldão pelas massificações

alienantes globais, para não perdermos nossa identidade

consciencial, cultural, emocional e sentimental profunda.

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****

Quanto mais se apuram os sentidos na captação da essência do

que é expresso, tanto mais inteligente ou introligente se fica e vice-

versa. Não é à toa que inteligência e intelecto vêm do latim “intro

legere” ou “inter leggere” e significa exatamente ler nas entrelinhas, ler

dentro, através da criatividade e da juntura ou ligação de ideias e

sinais ocultos e não sensorialmente aparentes.

[A rigor semântico, inteligência remete-nos mais

para a ideia de percepção dos bastidores dos símbolos,

ou das intenções logo atrás dos símbolos. Já a

introligência vai mais além ou mais fundo: é a percepção

do que há por trás dos bastidores dos símbolos. É um

mergulho mais profundo, mais próximo da verdadeira

sabedoria.]

{A pessoa que pensa que sabe alguma coisa, ainda não

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tem a sabedoria que precisa. - Coríntios I, 8:2.}

Qualquer texto só tem vida quando é lido e absorvido.

Enquanto isso não ocorre, ele não passa de um amontoado de

letras sem sentido, muito embora saibamos que todo texto escrito

tem sempre outro texto oculto em suas entrelinhas.

Hoje o texto é tido como um fenômeno multidimensional. É

sempre precisa uma segunda ou até uma terceira leitura, mais

profunda, para perceber as camadas de textos não aparentes. E

essas inter e introleituras podem escavar e encontrar textos que

nem o próprio autor superficial do texto (o redator da primeira

dimensão escritural, estática, aparente, formal) teve a intenção de

assentar nessa engenharia de subsolo. São criptografias mágicas da

inspiração.

Entretanto, o que mais importa, em princípio, é quando

coincide do texto exibir pela locução ou pela ilocução, o naco da

verdade que cada leitor ou mesmo o escritor está procurando

para satisfazer algum desejo, necessidade ou ânsia pessoal, de

acordo com o momento e o lugar atual da sua própria história. É

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uma verdade apenas relativa, mas suficientemente alterativa da

realidade existencial de cada um.

Alguém, por exemplo, pode dar uma boa sacudidela em sua

forma de ver os fatos sociais apenas a partir da leitura de um

livro de cordel. Outros podem se sensibilizar profundamente, ao

ponto de melhorar suas relações pessoais, após a leitura atenta de

um manual de sobrevivência na selva.

A dialética do pensamento humano está sempre evoluindo.

Um autor lança uma tese; outro, tempos depois, lança uma

antítese; outro, um século depois, lança uma síntese e por aí

afora, ou melhor, adiante. Sem contar as críticas, resenhas,

artigos, monografias e outros textos que complementam,

ajustam, esclarecem e adaptam as publicações. De certa forma,

todos os textos estão interligados e fazem parte do rascunho de

um único livro inacabado, qual seja, a História do Universo, no

qual todos nós somos coautores e coleitores. Trata-se de uma

grande criação coletiva hiper-histórica e hiperambiental. É o que

podemos finalmente chamar de unitextualidade.

Alguns textos têm o condão de enfeixar laivos de verdades

eternas, atemporais ou multitemporais, às vezes ditas de forma

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camuflada, sob figuras de linguagem e imagens, que buscam a seu

modo interpretar fenômenos da natureza e do Universo e seus

fundamentos e mundos paralelos (ou seja, fenômenos da Física

espiritual ou univérsica). O problema surge é com as leituras

posteriores para interpretação das interpretações e com as

correntes de pensamentos derivadas (Vixe!) e suas eisegeses

(interpretações de um texto com acréscimo de ideias

pessoais do próprio leitor). [Grosso modo, todas as

correntes de pensamento religiosas reconhecem e

interagem com esses fenômenos ditos

extrassensoriais, sobrenaturais ou paranormais,

apenas com interpretações e denominações diferentes

e especializações específicas. Contudo, a capacidade

perceptiva varia a partir das posturas sensitivas e

emocionais de cada um em cada fase de sua vida. E,

para seu refinamento, depende também dos

conhecimentos ocultistas acumulados ou do próprio

burilamento da personalidade individual ou social.]

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Por outro lado, existem construções perfeitas de meras

hipóteses residentes apenas na imaginação do escritor, reforçadas

por seu vasto conhecimento sobre a ciência que serve de fundo

para a sua “história”. E se ele também for “fera” em lógica, tiver

uma imaginação bem fértil e intrinsecamente coerente, pode

promover o casamento perfeito entre fatos reais e verdades,

ainda que, por ora, construídas apenas na sua cabeça. Podem ser,

por enquanto, apenas “verdades chutadas”. Mas, com o passar

do tempo, podem até vir a ser efetivamente comprovadas parcial,

aproximada ou totalmente.

Muitas dessas “verdades imaginadas” podem não ser

inteiramente imaginárias. Se forem “meias verdades”, o tempo

vai se encarregar de extrair a “verdade verdadeira” que há nelas e

desprezar os outros cinquenta por cento de eventuais

parlapatices. Se tiverem sido “verdades arredondadas” ou

“verdades aproximadas”, pode ser necessário apenas tirar os

excessos de embalagem imaginária, dar um “lustro” e exibir o

conteúdo quase pronto para uso (não desprezando as sobras

ideológicas, que podem ser verdades profundas para outras

mentes ainda relativamente iniciáticas). Entretanto, se tudo não

passou de uma historiada inteligentemente montada, ela será,

mais cedo ou mais tarde, inteiramente desmascarada,

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principalmente se seu criador usou de má-fé. A mentira, mesmo

com a aparência mais convincente de verdade eterna e capaz de

convencer longamente toda uma geração, sempre vai ter pernas

suficientemente curtas para tropeçar no corredor da história.

[Antes do ponto parágrafo, é importante apenas

arrematar que, mesmo antes da comprovação de

muitas teses defendidas como verdadeiras, é de se

considerar o que seus efeitos provisórios têm feito

em prol dos que as seguem. As crenças, convicções ou

certezas humanas nem sempre correspondem às

exigências frias e imperturbáveis da razão.

Entretanto, se elas ajudam pessoas a se reformar

intimamente para melhor, então seus efeitos são

reais. Isso pode ser o que mais importa, a depender do

momento histórico e do lugar em que se viva.]

O ideal é que, ao expor uma tese despertadora de polêmicas, o

defensor desafie a si mesmo e a todos a um confronto dessa tese

com a razão (em oposição à mera fé), frente a frente, tentando

provar que não se trata de mera hipóstase (em Filosofia

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contemporânea, ficção ou abstração falsamente

tomada como real). Só a coragem de propor esse desafio já

pode bastar para, pelo menos, imprimir alguma seriedade ao que

se está expondo. E se ele puder oferecer provas científicas ou

pelo menos “início de prova material” ou indícios claros da

verdade que apresenta, então há uma grande chance de se tratar

mesmo de alguma “verdade verdadeira”. Do contrário, corre-se o

risco de que tudo não passe mesmo é de uma “mentira bem

chutada”.

Enfim, somos ilhas de olhos cercadas de textos por todos os

lados. E tudo que comunica merece atenção, porque tem uma

causa e tem um propósito, explícito ou escuso. Ler a vida lá fora,

pela janela do coletivo, é tão necessário quanto ler Dostoievski

durante o trajeto para a faculdade. Mesmo porque se não

entendermos o que se passa além da janela de vidro, poderemos

nunca entender o que se passa aquém da janela de papel.

Poderemos nem perceber alguém na rua tentando nos jogar uma

flor, ou tentando nos jogar uma pedra. Sem livros, poderemos

nós mesmos não nos refinarmos o suficiente para lançar

sementes de flores janela afora. Poderemos lançar nós mesmos

nossas próprias pedras, ou sermos nós próprios as pedras.

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Enfim, parafraseando Einstein, ler livros demais pode ser um

problema; ler poucos livros, também. Ler um livro só ou

nenhum livro, pior ainda.

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O LIVRO E AS IDEOLOGIAS DE MASSA

Mesmo no passado mais “trevoso”, quando o conhecimento

era monopolizado por duas ou três correntes de pensamentos

antagônicas entre si, não havia, como nunca haverá, estruturas

culturais objetivamente puras. As barreiras entre os vários ramos

de conhecimento sempre foram mais conceituais e preconceituais

do que reais. No fundo, no fundo (ou por baixo mesmo), sempre

houve algumas brechas escondidas que permitiram o intercâmbio

entre as culturas, por baixo das cercas, na calada das noites,

mesmo na “idade das trevas”, ainda que sob os riscos de

enfrentar denúncias, fogueiras inquisitoriais, cicutas, guilhotinas,

forcas, torturas, paredões, masmorras, lavagens cerebrais e até

mesmo as lavagens conscienciais ainda predominantes.

Neste início de milênio não existem mais escolas ou correntes

de pensamento formadas, seguidas, estudadas ou analisadas

isoladamente, pelo menos no campo das Ciências Humanas.

Mas, não estamos à deriva por falta de ondas. Estamos

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“redescobrindo”, “relendo”, “ressignificando” e “redignificando”

algumas correntes holísticas mal interpretadas e criminosamente

engavetadas no arquivo morto da História (algumas às

margens do próprio Mar Morto!). [No meado do século

passado foram encontradas centenas de pergaminhos

em grutas às margens do Mar Morto, que revelaram

segredos revolucionários acerca das religiões, da

política e dos comportamentos sociais na época de

Jesus. Muitos livros têm sido escritos acerca dessa

descoberta.] Isso se deve, inclusive, aos eternos esforços dos

arqueólogos e restauradores e aos novos recursos tecnológicos.

Ressuscitam-se, quase por si mesmas, muitas linhas de

pensamento oprimidas pela ditadura ignorantista do passado e

também outras correntes neutras ou neutralizadas pelas

ideologias dominantes doutrora e ainda do presente.

É certo que muitas correntes do passado remoto e do passado

recente mereceram mesmo ir para a lixeira da história. Mas

outras, justamente por terem ido, atrasaram sobremaneira o

bonde biarticulado da evolução planetária, ainda que esta tenha

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várias estações de reabastecimento, transbordos e adaptações na

sua longa estrada cheia de escalas.

{Saber não é tudo, mesmo que seja sobre si mesmo. O

verdadeiro tudo é converter o saber que se tem em ações que

promovam o crescimento de si, dos indivíduos circundantes

e das coletividades em geral. – Caboclo Feé, fabricante de

artigos afrocaboclistas, para um ex-colega de curso primário que

insistia para que ele ingressasse no ginásio, em diálogo enquanto

atravessavam a ponte D. Pedro II, entre as cidades de Cachoeira e

São BA), em março de 1967. }

****

Às vezes, também muito do que deveria ser exposto em um

livro acaba ficando mesmo é nas entrelinhas ou mesmo atrás das

entrelinhas[!], a espera de subentendimentos do leitor. Isso é

grafado às vezes em eloquentes reticências, exclamações de alta

carga semântica, interrogações suspeitas, vírgulas ambíguas, aspas

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irônicas e parênteses comprometedores. A própria palavra “fim”

no fim do livro já encerra uma meia verdade.

Tais questões meio ocultas muitas vezes não são captadas pelo

radar menos calibrado dos leitores desatentos. Podem também

ser explanadas em linguagem encriptada ou em linguagem

matemática, normalmente inacessível aos “homens de letras”. [A

Teoria Geral da Relatividade que o diga, ou melhor, que o

calcule.]

Ler é inteligencial. Quem lê, com qualidade e não com

quantidade, dentro de uma rotina diária, normalmente investe

bem na capacidade de pensar melhor, de forma arrumada e

analítica. Aprende a concatenar melhor suas ideias. Habilita-se a

ter visões múltiplas e aninhadas sobre os fatos corriqueiros, a ter

opiniões formadas ou a construir raciocínios coerentes sobre as

questões mais amplas da vida e a evitar generalizações

conceituais.

Uma sugestão “da casa” é ler todo ano uma enciclopédia

universal de um volume só, na abertura das leituras anuais, mas

só ler, sem pretensões de dominar nada. O importante não é

saber minuciosamente os assuntos, mas é depois saber que já os

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viu em algum lugar e que por isso devem ser procurados para a

solução de um enigma ou qualquer problema.

Também, na média, que a cada mês se leia um livro e a cada

fim de semana, um conto, uma minibiografia, sinopse ou resumo

de livro.

Diariamente, quebre-se o jejum leitoral com um poema,

crônica, miniconto ou com uma página de um texto qualquer

interessante, desde que não seja de bula de remédio ou de manual

de instruções. [São metas ideais, mas ai de nós se não

fossem os ideais a nos servir de parâmetros para as

nossas realidades, não é mesmo? E que cada um siga e

não pare nunca de tentar se aproximar dos seus

ideais.]

Ainda idealmente, que cada um busque conteúdos que

somem, que se enquadrem em sua visão geral de vida, mesmo

eventualmente contra o que se pensa, através da adequação ou

correção da chamada “dissonância cognitiva” (Teoria

desenvolvida pelo psicólogo estadunidense Leon

Festinger (1919-1989), em meados do século passado,

segundo a qual nossos pensamentos e conhecimentos

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tendem a influenciar nosso comportamento, e vice-

versa. [É a finalidade milenar da educação, não é

mesmo?]). É muito uma questão também de custo (de tempo) x

benefício (de resultado).

****

A pobreza de vocabulário das pessoas que não leem livros,

reinante na nossa sociedade contemporânea, tem criado uma

espécie de Novilíngua às avessas.

Enquanto o Esperanto é uma língua planejada para expressar

qualquer nuance do pensamento humano (não só graças a sua

riqueza de nomes monorradicais, mas também pela grande

possibilidade de aglutinações e afixações), a Novilíngua ou

Novafala (língua oficial criada pelo governo do país

fictício citado em “1984”, romance de George Orwell),

era também planejada, mas para justamente não permitir

pensamentos abstratos. Tinha poucos recursos de expressão de

ideias, ao ponto de induzir os falantes a não crerem na existência

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de certas verdades, por não terem palavras para expressá-las. Era

a cegueira linguística.

Pois bem. Ao nosso povo não é imposta uma língua oficial

emburrecedora, mas não é possibilitada nem estimulada uma

educação para o domínio da parte rica da própria língua,

depositada principalmente nos livros.

{Sim, porque o português escrito das revistas e jornais e

veiculada nas demais mídias de alcance popular, espelha a parte

pobre da língua (já que tenta atingir o leitor genérico ou

universal), em que pese à riqueza de informações disseminadas

sobre os fatos e factoides da nossa cotidianidade. O português

dos meios de comunicação trivial não é rico nem de raízes nem

de aglutinações que expressam ideias. Busca alguma

compensação com as figuras de linguagem, clichês e lugares-

comuns.}

Não impor o pior, mas não educar para o melhor, é quase a

mesma coisa. Condiciona-se indiretamente para raciocínios

caliginosos, dislogias, alogismos, nonsenses... Induz à anorexia

intelectual ou à cegueira linguística.

Embora com baixa permissividade de aglutinação de raízes, a

língua portuguesa, mesmo sendo uma língua eminentemente

analítica, é uma das mais ricas do planeta em nível de sinônimos

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e antônimos primitivos, neologismos, afixos e possibilidades

metagramaticais e hipergramaticais. Isso se evidencia

sobremaneira nos livros. Diz-se que o alemão é o idioma perfeito

para a filosofia, por causa das possibilidades de aglutinações de

raízes. Também o português pode ser uma língua ideal para a

filosofia (e para os pensamentos puros e reflexões acadêmicas),

mas só para quem tem amplo vocabulário de substantivos

primitivos ligados a ideias. Os livros, quando lidos com o

dicionário, costumam ajudar nessa conquista. [Eu,

pessoalmente, que não tenho esse vocabulário todo tão

rebuscado, nem tematizo questões sociais e humanas

apenas pela ótica filosófica, tento prestigiar a

gramática lógica, artificial, porém mais esclarecedora.

Na escrituração, desenvolvo minhas próprias

formações aglutinais e formações parassintéticas

extravagantes. Contudo, ainda que ao arrepio da

norma culta, sempre tento antes alguma outorga

dicionarística.]

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As pessoas, em sua gigante maioria, desconhecem a língua

livresca, por não terem o hábito de ler textos em brochuras com

mais de cinquenta páginas, muito menos consultar dicionários.

[Refiro-me aqui a livros acadêmicos e aos ligados aos

pensamentos e à análise dos fenômenos sociais e humanos.]

Na fala, domina-se apenas o chamado português popular,

cheio de hipônimos e hiperônimos ou palavras-ônibus. Isso é um

solo fértil para as ideias curtas derredor de questões mais

profundas e amplas no campo da cultura, da filosofia, da história

e da política. Afastadas ou desestimuladas ao contato com os

livros, pelas ideologias de massa, as pessoas tornam-se, pois,

analfabetas cognofuncionais. Consequentemente, passam a

desconhecer certas verdades e certos fatos da sua própria

socialidade, virando mais facilmente massa de manobra de

manipulações espertas e expertas no campo da sociopsicologia,

da neurolinguística de comportamento, do terrorismo

informacional, do marketing consumista, da engenharia

memética, da engenharia social (ou espionagem

sociocomunicacional), do fascismo capitalista, das falácias lógicas

de convencimento, da inoculação de vírus ideológicos no corpo

mental coletivo e de outras formas de domínio, manipulação,

alteração ou anulação de consciências coletivas e individuais.

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Aqueles que já têm uma visão geral de vida baseada nalguma

religião, ciência, ou filosofia geralmente ganham mais tempo,

porque já enquadram as leituras em cima de uma plataforma

sólida de reflexão. É muito adiantador se ter, por exemplo, uma

linha de raciocínio jus-filosófico ou juspsicológico, filobíblico,

econômico, sociológico etc.

O ideal é se ter várias plataformas de linguagem de raciocínio

ou de transraciocínio disponíveis (na memória do cérebro, na

memória da biblioteca, na memória do computador) ou naquela

sua caixa de livros e revistas encostadas há muito no canto do

seu quarto, para uso sempre que oportuno. Quando uma base de

apoio não oferece imediata solução, busca-se outra. É a

vantagem da criação da intertextualidade e da inter, multi ou

transdisciplinaridade. [Lembra também os programadores

de softwares. Quando estão às voltas com uma grande

dificuldade de resolver por exemplo um problema de

cadastro de clientes em Delphi ou em Visual Basic,

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recorrem a outra linguagem ou sublinguagem, como

SQL ou C. Há, contudo, os cobras-criadas da escola

antiga, que se “safam” usando apenas a melhor das

linguagens de programação: o algoritmo e suas

infinitas possibilidades de programação em papel. No

campo do pensamento, o algoritmo guarda comparação

com a lógica filosófica, com a erística, a apagogia e a

epagoge. E ha a linguagem lexical, com seus termos

monossemânticos e mais precisos, montados

principalmente com afixos, no caso do português.]

Quando se diz que devemos ter cuidado com o homem de

um livro só, em verdade se quer dizer que devemos nos acautelar

contra o homem de uma só plataforma de raciocínio,

especialmente se esta não for em si muito abridora ou

estimulante a processamentos autorraciocinativos.

****

Quanto mais se aprende a ler fazendo sua própria

hermenêutica (interpretação do sentido das palavras),

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tanto mais se apreende nuances do que quis dizer o autor, no

fundo, quando o disse na linha de frente. É o instituto da

inteligência leitoral ou inteligência interpretativa. [É um

diferencial bastante proveitoso nos dias de hoje,

quando as mensagens subliminares cativantes,

mentirosas, falseadoras, omissoras de verdades e

dominadoras de consciências disputam espaço com

discursos e informações boas e honestas nos meios de

comunicação de massa. Só que aquelas levam vantagens

sobre estas, porque são direta ou indiretamente

patrocinadas por grandes corporações industriais,

comerciais, religiosas, políticas e informacionais.]

Às vezes, uma frase pode ter dez palavras, mas dizer trinta

para um leitor versado em análise do discurso, retórica, semiótica

verbal e teleologia (estudo das finalidades), ou bastante

experiente em leituras comparadas com a própria observação dos

fatos da vida. É quando se começa a emitir juízos de valor cada

vez mais refinados, tornando-se mais seletivo e crítico, sem

necessariamente perder o prazer da boa leitura, inclusive no

campo da literatura ficcional e da poesia. [Teses acadêmicas

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podem ser embrionadas ou inteiramente defendidas,

ainda que de forma indireta, dentro de romances ou

de outras formas ficcionais. É o caso de Jean Paul

Sartre, que defendeu quase todas as suas teses

filosóficas através da ficção.]

De todo estilo literário pode-se colher lições utilitaristas para

melhor enfrentar o jogo relacional da vida, cheio de regras,

fórmulas e estratégias. Quem é bibliófobo (que tem aversão a

livros), ou quem não recorre constantemente ao apoio livresco

sobre as várias questões gerais da vida, tende a perder mais do

que ganhar nos jogos mais refinados dos relacionamentos sociais

e pessoais. Não que os livros ofereçam soluções garantidas para

o que quer que seja, mas lê-los pelo menos nos faz conhecer

outras possibilidades de enfrentar os problemas que nos afligem

dia a dia. [E há quem enfrente problemas em série, em

paralelo e entrecruzados, envolvendo várias relações e

vários níveis de conflito, como se fossem uma mesma

personagem atuando em várias novelas

simultaneamente. [Vixe!] Conhecendo a teoria e a

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ambientação que envolvem cada uma de suas ações, é

de se entender, minimizar ou desenovelar melhor os

vários conflitos, porque se aprende não só a jogar

aleatoriamente, mas também a contar as cartas do

jogo, a seu favor, o que os livros costumam facilitar.]

Mesmo não sendo o sonho de consumo da grande maioria da

população nem sendo a única fonte de saber formal, os livros são

gêneros alimentícios de primeira necessidade da alma.

Precisamos consumir livros. E quanto mais nutritiva for essa

alimentação bibliófila, a partir da escolha de livros de qualidade

(considerando, inclusive, o pouco tempo livre para leitura livre da

maioria), tanto mais robustos e fortes vamos ficando do ponto

de vista intelectual, com evidentes repercussões na saúde mental.

Uma grande vantagem dos livros sobre outras formas de

comunicação é o total controle sobre o ritmo de absorção do

conteúdo. O livro é um cérebro vivo e portátil, sempre a nossa

disposição para consultas e reconsultas, como, quando e onde

quisermos. Isso sem contar que ele tem mais tempo (páginas)

para defender seus pontos de vista, e por isso acaba

convencendo mais os leitores do que as outras formas de

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comunicação.

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LER E VIVER.

CONJUGUE ESSES VERBOS CONJUGAIS

Depois de um longo tempo de leituras e reflexões simultâneas

(que são de certa forma autolivros), passamos a ter a capacidade

de, em poucos minutos, ir de 0 a 100km de entendimento geral e

básico de um livro. Isso quando pegamos um assunto não tão

novo para nós, a fim de formar uma ideia do que se trata mais

especificamente, muitas vezes só folheando o sumário ou dando

uma olhadela na introdução e na conclusão. Não se trata da

chamada “leitura dinâmica”, mas, sim, de uma compreensão

básica dinâmica (da mesma forma como é bastante

cronogerador ter uma compreensão dinâmica de todos

os fatos da vida que batem às portas sensoriais a todo

momento), ou, mais precisamente, de uma inferência rápida

acerca do conteúdo, o que é facilitado com o aumento do

vocabulário ou pela elevação do QI verbal, graças às viagens

leitorais de longo curso. Isso é também mais viabilizado pela

visão enciclopédica formada pelas longas sedimentações de

leituras e reflexões teleológicas. [Por via de consequência,

essa inteligência leitoral estimula ou desenvolve as

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inteligências cognitiva, social ou interpessoal e

intrapessoal.]

Muitas vezes, na “leitura” que um bom entendedor faz de um

prolixo de pensamentos, de sentimentos, de palavras ou de ações,

vê-se que o que este pretende “botar pra fora” é simples. Poderia

sê-lo feito em bem menos palavras ou ações.

Também no terreno minado das comunicações verbais,

explosões de emoções, mesmo ágrafas ou áfonas, subdizem todo

um discurso detalhado e facundo para o bom observador

treinado na janela da leitura de entrelinhas. O tomador de tempo

é que, não raro, a massa crítica ou o essencial só aparece em sua

resplandecência no fim do “discurso”. Mas também fazem parte

da natureza humana esses arrodeios de pensares e de sentires e

suas influências nos próprios seres humanos e seus arrabaldes. É

o que poderíamos chamar de Física Humana Quântica, nunca

aparente, sempre essencial, mas fundamental para decidir ou

fazer decidir o destino dos mundos, direta ou refletivamente.

Apesar dos muitos comportamentos acessórios supérfluos e

inúteis, a dramaticidade humana, com suas simulações de boa-fé

ou de má-fé, é sempre necessária para comover, para sensibilizar,

para chamar a atenção. Mas o recado por baixo do drama é

simples e pode até nunca se externar em palavras claras, mesmo

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porque não existem palavras suficientes para representar todas as

nuances do pensamento e do sentimento humanos. E estes são

infinitos. Por mais que alguém domine seu idioma e por mais que

o idioma de alguém seja rico de expressões semânticas ou de

possibilidades aglutinadoras (como o alemão e o Esperanto), a

verdade do pensamento e do sentimento humanos sempre será

incompletamente representada. E a culpa não é só do idioma,

mas é principalmente de nós, que sequer sabemos identificar um

décimo do que realmente pensamos ou sentimos em toda sua

profundidade, que dirá saber expressá-lo através de palavras. [É

também por essas limitações idiomáticas, aliadas às limitações

cognitivas dos autores e dos leitores, que “os livros não são

sinceros”, no dizer de Carlinhos Brown.]

Todo beletrista supersensível tem muito mais para dizer do

que consegue escrever, por falta de capacidade linguística, sua ou

do vernáculo, para decodificar tudo o que capta na

macrodimensão das ideias e das imaginações.

É aí que entra a importância da leitura e do conhecimento

linguístico e lexical progressivo. Quanto mais dominamos as

possibilidades lexicais, psicolinguísticas e sociolinguísticas do

idioma tanto melhor encerebramos as ideias e nos expressamos e

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entendemos as manifestações linguageiras da cotidianidade social,

inclusive as não verbais. Entender mensagens profundas de um

caboclo do grande sertão ou de um quilombola do Recôncavo

baiano é tão importante, para entender o universo, quanto

entender a linguagem acadêmica ou erudita dos cânones

filosóficos ou dos compêndios de Física Quântica, para entender

a si mesmo.

****

Em muitas hipóteses, o cerne da investigação de sentidos

dentro de uma expressão humana qualquer não é saber se esta é

verdadeira, ou não. É tentar saber onde há nela verdades e onde

há mentiras, inverdades ou não verdades. Mesmo porque as

palavras costumam ser traidoras. Diz-se normalmente o que não

se está pensando exatamente, por falta do devido vocabulário ou

por falta da devida emoção.

{"Então escrever é o modo de quem tem a palavra como

isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa

não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se

escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia

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com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a

não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva

então é escrever distraidamente." - Clarice Lispector, em seu

livro “Água Viva”. }

No geral, os livros evocam imaginações de outras realidades

profundas ou possíveis presentemente, como nenhuma outra

obra de arte ou veículo de comunicação. Por isso são os

melhores guias para conduzir à imaginação do mundo feliz. E

muitas vezes conduzem, se não a Shangri-Lá (a paradisíaca

comunidade tibetana do romance “Horizonte Perdido”

(1933), do escritor inglês-estadunidense James Hilton

(1900-1954)), pelo menos ao local onde se escondem os

óculos da razão e da inteligência. Estes, se bem polidos com a

flanelinha da paciência e da persistência, podem ajudar a enxergar

um caminho mais seguro rumo à tão sonhada felicidade relativa,

aqui e agora.

Quanto mais diversas forem nossas bibliografias, bem como o

domínio das várias linguagens sociais, tanto mais abrangente será

nossa capacidade epistêmica de entender “os postulados,

conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico,

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ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade

cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus

paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a

história; teoria da ciência” (segundo definição de

Epistemologia no Dic. Houaiss) e de fazer estudo

comparado dos institutos mais corriqueiros das realidades

humanas, desde, idealmente, que não percamos a noção de

realidades afetivas e interacionais com o mundo.

Um mesmo instituto, por exemplo, o instituto da depressão

pela perda de um emprego, o instituto da alegria pela vitória de

seu time, o instituto da morte ou o instituto do amor a gatos,

pode ser analisado sob diversas ciências. Cada uma delas tem

suas terminologias próprias, emprestadas, importadas ou

compartilhadas de outros saberes.

E o interessante é que há uma íntima comunicação entre as

várias ciências humanas, de modo que um determinado instituto

só existe porque várias causas pluricientíficas concorreram para

seu surgimento. Nós é que às vezes não percebemos prima facie

essas supraligações. Por exemplo, se tentarmos fazer um estudo

epistemológico sobre a Revolta dos Negros Malês na Bahia

(noite de 24 para 25 de janeiro de 1835), poderemos focar esse

evento sob diversos saberes interconexos ou sincrônicos:

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religião, religião muçulmana, Direito, direitos humanos,

Sociologia, História, Política, guerra, militarismo, Antropologia,

Psicologia e Psicologia social. Nenhum instituto ou

acontecimento real, imaginário ou até literário (ficcional ou não)

envolvendo seres humanos deve ser visto apenas sob uma única

lente cognitiva. [Essa tese é defendido pelo Cognitivismo

(“Teoria, doutrina, convicção segundo a qual a

capacidade de conhecer o real e o espiritual, o real e o

imaginário, o indivíduo e a sociedade está aberta ao

homem (individual e/ou social) indefinida e

indelimitadamente”. – Dic. Houaiss).] Já os atores diretos e

observadores contemporâneos do mesmo conflito nada

entreviram nem pensaram abrangentemente, por causa da

comoção pública e do impacto social à queima-roupa. [É a velha

constatação: quanto mais nos afastamos dos fatos históricos,

melhor os vemos panoramicamente, ainda que perdendo seus

detalhes reais em si.]

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****

Em resumo, ler acrescenta saberes. Faz-nos comparar o que

os outros pensam ou pensaram com o que nós mesmos

pensamos da vida e do mundo. Ajuda-nos a corrigir metas, focos

e rumos e a entender melhor o funcionamento da mecânica

criadora cósmica que faz girar as relações entre os seres. Reforça-

nos a ideia da existência de grandezas ocultas aos nossos

sentidos, mas que pertencem a nós e a quem pertencemos. Ler é

viver quando nos ajuda a ler-nos e a viver-nos, como autores e

como personagens simultaneamente. Quando em interação com

a realidade circunjacente, ler é essencial para expandir os sentidos

da alma.

Tanto intelectuais, doutores, “doutores”, acadêmicos e demais

teóricos quanto os não letrados, não eruditos e que não alisaram

os “bancos da ciência” precisam ler sempre, ainda que uns para

melhor montar seus quebra-cabeças e ainda que outros para

melhor desmontá-los.

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O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA

Todo bom texto literário que prima pela estética, em

princípio, deve ter compromisso com a Arte, até mais do que o

próprio autor em seu “natural”, caso pretenda atingir o leitor em

sua sensibilidade maior.

Geralmente, todo texto tem sempre um dos três públicos-

alvos a atingir: o público leitor não literato (que normalmente só

busca informação no conteúdo), o público leitor literato (que

busca também a estética da forma e a emoção) e o público leitor

artístico (que busca sublimes emoções, encantamento, vislumbre,

impressões, sentimentos nobres).

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Na produção de um texto literário, seja de que tipo for (prosa,

poesia, texto teatral, letra de música, cordel, roteiro de cinema,

mensagem etc), a Arte não se manifesta objetivamente, porque não

atinge de cheio os sentidos físicos de um espectador-

contemplador. Depende de como as palavras chegam no intelecto

do leitor ou ouvinte. Aí entram, como parte da expressão artística,

o significante e o significado que envolvem cada palavra em sua

relação frasal. A Arte literária só se manifesta a partir do

entendimento profundo de cada leitor-ouvinte sobre o que está

verbalizado. Aí, sim, surge o texto artístico. Aí, sim, pode-se falar

de Arte Literária.

[Os romances, por exemplo, são leituras

superfluamente úteis e necessárias[!] e são uma arte

complexa e inteligencial, porque aprimoram o

raciocínio amplo construído linearmente.

Mas o bom é ler romances com o coração. Dá mais

prazer e nos sensibiliza para o belo e para a vida. O

universo imaginário dos personagens se confunde com

o nosso próprio, ao ponto até de nos fazer externar

sentimentos normalmente encalhados e até raros. Faz

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muitos até chorarem de verdade. [Por exemplo, o

primeiro romance que eu li na infância, “Notre-Dame

de Paris”, de Victor Hugo, me deixou várias noites sem

dormir direito, ora lendo, ora “vendo” o

impressionante Quasímodo, o sineiro corcunda da

catedral, selvagemente lírico. Esse livro é uma das

maiores aulas de combate ao preconceito. Vale a pena

conferir. Quando, ainda na pré-adolescência, eu li o

romance “Agonia da Noite”, de Jorge Amado, lembro

que cheguei a sonhar (acordado) com o personagem

Russo. No diálogo imaginário, eu o incentivei a lutar

até o fim pelo ideal que defendia. Ele era membro do

Partido Comunista, que estava na clandestinidade no

Brasil. Sua função era colar cartazes do partido nas

ruas durante as gélidas madrugadas paulistas. E ele o

fazia diligentemente, firme, convicto, imbuído de fé,

energizado pela esperança, mesmo tossindo sem

cessar por causa da tuberculose! E olhe que toda essa

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minha interação não passou de simbiose entre

personagem ficcional e leitor real!]

A depender do grau de intelecção que cada leitor-ouvinte

atribui à obra, a Arte também vai se manifestar na mesma

proporção. É diferente das outras formas de Arte que não

dependem do texto verbal (música instrumental, pintura, efeitos

cinematográficos, fotografia, artesanato, escultura, designs gráficos

etc). Nestas, a Arte pode se manifestar por inteiro e objetivamente

atingir todos os que as estiverem espectando de forma

contemplativa ou pelo menos concentrada, ainda que os

sentimentos despertados variem de acordo com o grau de

sensibilidade de cada espectador.

No texto verbal (oral ou escrito), além da estética formal das

palavras e das frases e além dos recursos e artifícios da articulação

verbal, tem que haver também a intelecção ou compreensão do

conteúdo, ainda que cada um a seu modo e em sua subjetividade.

A palavra oral, em si, já carrega uma carga vibracional-

emocional muito envolvente. Neste caso, a Arte se apetrecha da

voz para se entranhar na alma do ouvinte através do sentido

auditivo, de forma instantânea. E o significado da palavra só tende

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a coroar o arrepio do conjunto Arte-vibração sonora no âmago do

espectador.

Em outras palavras, a Literatura, em si, não é Arte. É apenas

Literatura. A Arte não nasce no texto nem na leitura objetiva ou

identificativa do texto. Nasce da relação texto-leitor, do processo

leitoral de mão dupla, quando o leitor lê para identificar, e é lido,

ao se impressionar.

A estética da forma literária, por sua vez, pode contribuir para

uma aproximação da estética artística nos sentidos anímicos de

quem lê ou ouve. Porém, a contemplação e a receptividade

artísticas só são viáveis quando o texto desperta minimamente um

sentido e um sentimento em cada leitor ou ouvinte em particular.

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A ESTESIA DA ARTE

Os dicionários normalmente possuem de dez a vinte acepções

para o verbete “arte”, reproduzindo o conceito reinante nas

diversas correntes de pensamento e de estética do presente e do

passado. Porém, o conceito de Arte é o mais variado e infinito de

toda a história humana.

Peço licença para externar nosso conceito de Arte, a partir de

uma ótica estética transensitiva, apropriada ao contexto geral dos

pareceres por nós emitidos acerca da criação e da apreciação

artísticas.

Convencionou-se chamar de arte as principais formas de

expressão da criatividade estética, a exemplo da música, da pintura,

da literatura e da dança. [Convencionalmente, as sete artes

são: Música, Dança, Literatura, Cinema, Pintura, Teatro

e Escultura.] Logo, artista é quem produz ou representa alguma

arte.

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****

Arte não é filosofia, não é ciência, não é cultura e não é religião,

embora normalmente se utilize de vieses filosóficos, científicos,

religiosos ou culturais para se manifestar. A Arte pode e costuma

se perpassar através de uma obra que perpassa uma mensagem

profunda ou uma ideologia qualquer. Daí é lícito se afirmar a

existência, por exemplo, de uma arte filosófica, arte cultural, arte

popular, arte religiosa, arte espiritual via mediúnica, arte

assistencial, arte nutricional (ou arte culinária)...

A Arte, em si, é apenas Arte, embora não exista em si.

Depende sempre de uma forma para se pronunciar.

A Arte, quando manifestada pelo viés humano, sempre teve

que passar meio espremida entre as formas limitadas e

ideologizadas de seus produtores, reprodutores e apreciadores.

Limita-se a ser coautora da produção juntamente com o artista.

Não existe forma de arte pura quando produzida por um ser

humano, que depende inclusive da materialidade das palavras.

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Todo artista humano, além de suas subjetividades, sempre

representa também alguma ideia reinante, alguma ideologia, algum

interesse social, consciente ou inconscientemente. E isso

contamina a pureza da manifestação artística, ainda que essa

contaminação possa até ser útil e benéfica para o próprio artista e

para seu público-alvo. Há contaminações que até servem para

realçar e chamar mais ainda a atenção para a Arte. [O próprio ser

humano é a magnum opus da natureza.] Outras tendem a afastar ou

anuviar sua expressão.

{Muitas produções classificadas convencionalmente como

artísticas são verdadeiros canais de drogas ou psicopatias

ideológicas ou comportamentais. Muitas de tais produções

aparecem nas mesmas formas convencionais de manifestação

estética (música, pintura, literatura etc). Entretanto, embora às

vezes obedientes a regras de estilo, são verdadeiras antenas de

incitações a vícios, terrorismos, suicídios, alienações,

emburrecimentos, loucuras e depressões. Não são manifestações

artísticas, ainda que seus criadores sejam chamados de “artistas”.

É certo que muitas manifestações artísticas modernas têm seu

quê de hermetismo em relação aos pensares do povo. Porém, ao

invés da valorização e realce da Arte popular genuína, velha e

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sempre presente (ainda que cada vez mais anônima), os capitães da

indústria (in)cultural incentivam o movimento chamado Arte Pop,

fomentada por grupos estranhos às formações populares. [A

Arte Pop, ou Pop Art, por sua vez, desde seu

surgimento no início dos anos sessenta, sempre esteve

intimamente ligada ao consumismo (in)cultural de massa.

Sempre injetou nas veias fáceis do corpo social os seus

modismos efêmeros e de curta duração e as suas

propostas de diversões fúteis, muito mais

culturofágicas do que culturogênicas. Só nunca prestou

compromisso com a Arte propriamente dita.] O

argumento reinante é a necessidade de valorização da Arte popular

como forma de comunicação direta entre a Arte e o povo, como

se o povo não tivesse capacidade de produzir de suas entranhas

sua própria cultura artística, seja inspirado nas tradições, seja

motivado pelas inovações costumbristas espontâneas.}

Só pode ser considerada artística a manifestação ou emoção

estética que instiga, que provoca ou que relembra ao espectador-

contemplador sua origem divina; que lhe supersensibiliza ou

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desperta os sentimentos espirituais mais nobres; que lhe faz sentir-

se melhor do que é. Pode provir de uma fonte humana, espiritual

ou natural e pode se dirigir para a humanidade, para a

espiritualidade ou para a natureza.

[O “sentir-se melhor” acima referido é no sentido de expandir

a compreensão da vida, do mundo, de si mesmo e dos outros.

Pode ser uma melhoria das condições biopsicológicas com que se

enfrenta o dia a dia, através do despertamento de uma maior

sensibilidade, afetividade, inteligência e boas sensações. A Arte por

si só não transforma nem tem compromisso com a transformação.

Seu papel é despertar, suscitar, influir, apontar para o infinito de

onde viemos e para onde voltaremos. Por falta de uma palavra

mais específica e precisa, chamamos esse quê, que transcende da

obra e entra em comunhão com a transcendência supersensível do

apreciador, de Arte.]

Sempre há um quê de terapia na Arte, em qualquer de suas

formas e gêneros, seja para quem a manifesta, seja para quem a

aprecia.

Quem não precisa da Arte como terapia, melhora suas

potencialidades físicas, mentais ou anímicas com sua influência

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benfazeja. A Arte, vista a partir dessa perspectiva, é a grandeza que

se comunica intimamente com os sentidos anímicos,

independentemente da recepção consciente pela sensorialidade

física e intelectual. Não depende também do aspecto cultural,

social ou ideológico da obra. Pode se entremesclar numa sinfonia,

num aboio de vaqueiro, numa pintura paisagística (ou na própria

paisagem pintada) ou num boneco de artesanato. Pode sorrir numa

fotografia (ou no próprio fotografado), num soneto, num toque de

guitarra, num canto orfeônico ou num texto de cordel. Pode

resplandecer numa moda de viola, numa cena de teatro grego, num

toque de berimbau ou no gorjeio de um rouxinol... Afora isso,

pode se tratar de manifestação cultural, religiosa, intelectual,

ideológica, erotizante, libidinizante, psicótica ou psicotrópica. Pode

ser também mera expressão de uma subjetividade, de uma

carência, de um desabafo, de um protesto dadaístico, mas não

manifestação artística. Pode até haver todos os recursos possíveis

exigidos para as produções, tais como coerência, coesão, estilo e

outras regras, artifícios e artimanhas criacionais constituídas.

Porém, se não houver a presença e a crescença sutil desse

superbelo transformador e que transcende as expectativas do

artistismo, do artista e do apreciador, então não é Arte. [O Belo

artístico é exatamente a qualidade dinâmica que há na

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obra de Arte, e que é captada pela sensibilidade

humana e espiritual do espectador, ao ponto de causar

neste um contentamento profundo, um sentimento

maior, um despertar de valores mais nobres, ou pelo

menos uma estranheza que lhe chama à atenção ou lhe

faz pensar.]

Especialmente nestes nossos tempos atuais de

empobrecimentos estéticos ideológico-capitalistas, está ocorrendo

mais é o império da antiarte. [Produção “baseada em

propostas antagônicas das formas tradicionais ou na

rejeição total de práticas artísticas e valores estéticos

consolidados, em favor do choque, da arbitrariedade

e/ou do nonsense [Exemplos: o dadaísmo, as propostas

de Marcel Duchamps (1887-1968) etc.]” – Dic. Houaiss.]

A antiarte tem se fortalecido e se difundido muito mais do que

os movimentos dadaísta e futurista do início do século passado.

Isso se deve sobremaneira às novas estratégias da banda

socialmente irresponsável do marketing e às coalizões com

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recursos eletrônicos e midiáticos altamente rendosos para os seus

produtores-empresários. Neste passo, a sociedade de consumo

está cada vez menos estesiada, por causa do distanciamento e falta

de maior interação com produções verdadeiramente artísticas, e

cada vez mais extasiada, por causa da progressão multilateral

dessas massificações anestesiantes.

Faz-se urgente e necessária uma maior disseminação da

Logosofia e de outros vieses de comunicação desalienantes,

intrinsecamente neutra e estimulante a uma libertação subjetiva

dos modelos desqualificadores da inteligência e da sensibilidade

humanas. Precisamos de novos movimentos contraculturais que

produzam manifestações artísticas abundantemente, em todos os

campos e para alcançar todos os extratos sociais, apesar das

dificuldades financeiras e do desapoio apriorístico da grande mídia.

[Convencionalmente, contracultura é um movimento

minoritário que tenta subverter valores da cultura

dominante. No Brasil, teve seu auge nos anos sessenta,

especialmente com o movimento hippie.] O mote dessa

nova contracultura pós-vanguardista seja o combate não

exatamente à cultura dominante, mas, sim, à máfia capitalística que

mina e, através da disseminação das suas produções antiartísticas,

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destrói as culturas e as possibilidades de manifestação da Grande

Arte.

A Arte não pode se confinar em nichos herméticos e restritos a

seus anônimos, privilegiados e minoritários cultores. Os artistas

artísticos (ops!), ou melhor, que têm sensibilidade artística,

precisam “concretizar” uma grande união, através de cooperativas,

associações ou outras coalizões.

A intelligentsia resistente do Brasil precisa articular estratégias de

“guerrilha cultural”, campanhas e outros mecanismos de infiltração

nas camadas sociais e nas esferas públicas e midiáticas. É uma

missão urgente. Precisa restaurar a pujança e soberania da Arte,

ainda que para isso seja criado um movimento superartístico ou

reartístico. Que, pelo menos, se organize uma nova Semana de

Arte ou se redija um novo manifesto em que se defenda um

canibalismo multifrontal contra a antiarte predatória

contemporânea.

O povão precisa ter opções de escolha sensibilizantes. Precisa

se reeducar para valorizar suas origens e tradições estéticas e

também seu futuro. Precisa voltar a sentir pela estesia da Arte, em

qualquer de suas formas (erudita, acadêmica, cult, popular,

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artesanal, folclórica e de raiz). O povo tem “fome oculta” de Arte.

E a despensa de víveres artísticos nunca se esvazia; só está

trancada, ou melhor, trancafiada, como numa masmorra ditatorial

capitalística desculturalizante.

****

A Arte é uma realidade transcendental. Tem sua própria aura.

Está acima do artista e das ideias que ele eventualmente representa.

A Arte pode se manifestar com ou sem a interferência

consciente do artista. “A Arte se sustenta por si só”. Ainda que

seja camuflada pelas ideologias do artista, pela forma, pelas

representações culturais e pela própria visão contaminada do

contemplador, ela sempre vai ser Arte. Pode até não ser publicada

ou mercadizada em seu tempo ou ser abandonada nos

subterrâneos, nos arquivos mortos, nas gavetas e porões da sua

contemporaneidade, mas continuará imanente a sua manifestação

potencial. Se ela não for inteiramente destruída, vai continuar em

condições de brilhar, de arrepiar e de impressionar, mesmo que

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arruinada, quebrada, rasgada, queimada ou fossilizada. Bastará que

seja redescoberta e reexibida.

Contudo, mesmo estando impregnada em algum objeto, a Arte

não faz aparição simultânea para todos os olhares. A manifestação

da Arte precisa também de nossos sentidos espirituais, que devem

se estender para além das cercas da nossa sensorialidade, para ir se

encontrar com ela no meio do caminho.

{“A arte é a ideia da obra, a ideia que existe sem

matéria.” - Aristóteles}

Qualquer obra pode ser estetizada, estilizada, embalada para

viagem. Porém, nenhuma obra pode ser artistizada apenas de fora

para dentro. A obra de arte já nasce essencialmente artística.

Quando se trata de obras humanas, a manifestação da Arte

conta com a paternidade compartilhada do artista, através do

refino, da regulação formal e do acabamento aparente. É quando a

Arte precisa também dos sensores do artista para se evidenciar,

quando se apossa do artista e ambos formam um todo criativo.

Essa parceria fertilizante tanto mais e melhor produz, quanto mais

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sintônico e afinado for o artista. E se ambos, Arte e artista, se

apresentarem em perfeita sintonia e parelha harmoniosa, pode

provocar um duplo arrepio no contemplador: na forma e no

conteúdo.

Muitos artistas conseguem passear em direção à fronteira da

universalidade artística. Inicialmente, racionalizam e pré-ordenam

as ideias a discorrer e, de repente, se veem planando nas asas da

imaginação. E aí já não é mais somente ele. Já é a Arte em

comunhão com ele.

O que vale na identificação artística é a boa sensação que a

ideia representada desperta, do homem para sua essencialidade e

seus sentimentos maiores. E isso não depende da forma, das regras

de composição e dos artifícios criativos, embora normalmente se

valha deles também). E, em princípio, não depende da ideia

ostensiva emitida pela fonte e não depende da ideia que cada

espectador consegue captar.

Até uma obra tida como inspirada, intuída ou captada das

“ondas de pensamento” não se capacita a ser obrigatoriamente

uma obra de arte, especialmente se a sensação que a ideia

representa conduz o homem para sua animalidade e seus instintos

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menores. Tem-se que mensurar a qualidade vibracional da

produção, o tipo de arrepio que ela provoca na alma.

A estética da Arte transcende a beleza captável pelos sensores

físicos. [Estética é derivada de estesia, que tem a ver com a

sensibilidade e com a capacidade de percepção da beleza profunda.

Esta é transmitida mais para o sentimento do que para o

pensamento.] A estética jaz também na própria contemplação, o

que faz a Arte se deslocar da obra para o receptor, como se a este

coubesse o ônus de arte-finalizar o trabalho usando sua

sensibilidade como instrumento. A Arte está primariamente na

obra, em estado de expectativa, mas ela se perfaz e ganha corpo

justamente na ponte interacional com o receptor-contemplador. O

que vale mesmo é a comunicação entre a Arte e os sentidos

anímicos do receptor, ainda que através dos sentidos físicos

captativos deste. No meio dessa linha de comunicação estão o

artista e seus sentidos físicos criadores e as técnicas e instrumentos

de produção.

[No caso dos artistas do corpo (atores, dançarinos,

pantomimeiros, cantores, contadores de histórias,

repentistas etc), a Arte inicialmente se comunica com o

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artista. Em seguida, em comunhão com ele, se projeta

para os sentidos físico-anímicos do espectador.

O artista que usa seu próprio corpo como

instrumento de trabalho vai se sensibilizando e se

estesiando cada vez mais, na medida em que aprimora

suas técnicas e refina suas escolhas pessoais dos

textos que encena para o público. Quanto mais artístico

for o próprio texto escolhido, tanto mais artística é a

manifestação exibida da Arte final dupla, que é a

representação cênica.]

****

A Arte é uma manifestação do divino que há dentro de cada

artista, ou do divino que há dentro da natureza univérsica. Uma

obra de arte, por essa ótica, transcende a sua contemporaneidade.

Torna-se um clássico. Imortaliza-se. Não perde jamais a sua aura,

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que lhe fora imantada quando de sua elaboração. Mantém-se

pronta permanentemente para um diálogo com o contemplador de

qualquer lugar e de qualquer época. Um diálogo de sentimentos,

de altíssimo nível.

Quanto mais expandimos a nossa espiritualidade ou a nossa

consciência universal, tanto mais nos capacitamos a absorver os

eflúvios transcendentais da manifestação artística, que também tem

o seu quê de universalidade. É quando mais se estreita e mais bem

se perfaz a linha comunicacional Arte-espectador.

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A ARTE COMO ORAÇÃO DE NÓS PARA DEUS

E DE DEUS PARA NÓS

Deus nunca barra o caminho de quem quer interagir com Ele

através da elevação da alma a níveis superiores de vibração e

consciência. Isso pode ser viabilizado, inclusive, por meio da

religião e suas orações preponderantemente verbais, como

também por meio de experiências sensoriais científicas e naturais,

por meio da meditação, por meio da reflexão filosófica e por

meio da Arte.

O importante é a contrição do sentimento, a entrega, o

despertamento da sensibilidade espiritual, quer no processo de

produção, quer no processo de apreciação da obra de arte. O

importante é, seja no nível racional-consciente, seja no nível

semiconsciente, seja mesmo no nível inconsciente, ter um

propósito para a oração, que é pedir, louvar ou agradecer ou,

principalmente, pedir a Deus que lhe oriente sobre o que fazer

em cada situação de vida e forças para fazer o que tiver de ser

feito.

Isso vale, inclusive, para os artistas que se

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predispõem apenas a trabalhar sem maiores

compromissos, sem consciência de qualquer papel

social além da boa-fé e da boa vontade de produzir um

“material”, seja com fins lucrativos, ou não, seja ele

socialmente intitulado de “homem de bem”, ou não.

No instante criacional, o artista normalmente eleva-se acima

de si próprio, e Deus, “pessoalmente” (também denominado

então de “espírito santo”, “musa”, “veia inspiracional”, “fogo

demoníaco”, “noúres”, etc, etc), vem ao seu encontro, para trazer

suas contribuições e ajudá-lo com algumas “colas", “sopradas” e

outras inspirações ou intuições.

{“Não meu, não meu o quanto escrevo. A quem o

devo?" – Fernando Pessoa}

Agora, se, na volta para sua multirrealidade

interacional corriqueira, o artista desembarca e volta

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a ser o que era, ou volta para o seu “normal” errante e

navegante, como se a produção não tivesse nada a ver

com ele como sujeito comum, simples, primitivo e

concreto (o velho mito de que “a obra suplanta o

criador), aí é problema dele.

O que mais importa para Deus é que no momento da

interação criativa, o que ficar produzido e materializado há de

servir oportunamente adiante, quer para o próprio

transinteragente, quer para quem se aproximar com sua lupa,

para interagir, através de sua sensibilidade, com o resultado

concreto. Vale relembrar que também o apreciador da obra de

arte artistiza-se durante o processo de apreciação.

A Arte, quando direcionada para fins ascensionais,

transconscienciais ou simplesmente sociais é também uma

oração, ou mesmo uma religião no sentido de religação, quer

para o artista, quer para o apreciador. Ênfase para talvez o

mais lídimo representante humano dessa arte maior,

que foi o músico, regente e instrumentista alemão

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Johann Sebastian Bach (1685-1750). Já se disse, por

exemplo, que seus “Concertos de Brandenburgo”,

“Oratório de Natal” e “A Paixão Segundo São Mateus”

são como a voz do próprio Criador e Regente da

Orquestra Universal, em forma de música. Não foi à

toa que Ludwig Van Beethoven, outro gigante da

música clássica universal, chegou a dizer: “quando

quero falar com Deus, eu ouço Bach.”

Os artistas universais, sejam humanos ou espirituais,

normalmente têm essa missão ou vocação, consciente ou

inconsciente, de aproximar a humanidade de Deus, elevando-a

para acima do teto da vibratorialidade densa que cobre nosso

planeta. São momentos de oração pela estesia despertada com o

belo, com o profundo, com o arrepiante. [Os artistas

espirituais utilizam-se de alguns seres humanos

chamados comumente de médiuns, para produzir seu

“material”, ainda que estes não entendam patavinas de

nada do que intermedeiam. Bem, os artistas têm a

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visceral necessidade de produzir, não importando em

que dimensão estejam, principalmente quando têm

propósitos ou missões despertativas a cumprir. E essa

mediunidade fisiossensorial entre seres de dimensões

psicovibratoriais diferentes, para profecias,

orientações e produções artísticas, é tão velha quanto

a própria humanidade. [Veja, por exemplo, o relato

bíblico em que Moisés aprova a comunicação espiritual

por intermédio de dois de seus seguidores, em

Números, 11:26-29.]

Duvidinha: será o médium humano um médium de um

médium, quando ele intermedeia o trabalho artístico

de um artista espiritual, se considerarmos que o

“artista é o médium da natureza”, no dizer de Garcia

Lorca?]

A questão é achar instrumentos humanos e

materiais devidamente, ou pelo menos minimamente

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afinados, para a realização das sinfonias, sejam

musicais, coreográficas, verbais (escritas ou orais),

cinematográficas, pictóricas, teatrais ou esculturais,

sejam sinfonias artesanais, como o aboio de um

vaqueiro, os santos, bonecos e esculturas de barro, as

histórias de cordéis, as toques de berimbau e de

atabaque, as danças folclóricas, os retratos de lambe-

lambe, as xilogravuras e os quadros de pintores

anônimos.

Não importa se o viés tomado pela arte para se manifestar seja

o erudito ou o popular. O que importa é a impressão, o

enternecimento, a sensibilização que induz o artista ou o

apreciador a apreciar Deus em seu próprio íntimo, a apreciar a si

mesmo como obra divina, a maior no planeta Terra, que é outra

grande produção do Artista Supremo (em que pese às

tentativas de sua destruição pelo lado antiartístico do

próprio homem e suas dessensibilizantes “máquinas

maravilhosas”).

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Tudo que é feito com amor, esmero e boa vontade, serve para

a manifestação da Arte, inclusive a arte-culinária, a arte da

decoração, a arte da costura, a arte de construir instrumentos de

arte, a arte da tradução, a arte-final, a arte da revisão, a “arte de

cortar palavras”, a arte de dirigir produções artísticas, a arte de

apreciar arte, a arte de criticar arte... Colocar letra em melodia ou

melodia em letra, construir arranjos instrumentais para canções, a

estética dos movimentos instrumentais de uma orquestra...

Todo e qualquer trabalho que seja visto como um propósito

de melhorar as pessoas intimamente serve de arte, serve de

oração. Isso vale, inclusive, para a delicadíssima arte de carregar

piano, para a sutil arte de conduzir espectadores para se

assentarem na sala de projeção do cinematógrafo valendo-se

apenas de uma lanterninha, ou para a insofismável arte de educar.

A Arte é a Arte, e se sustenta por si só, já que seu tempo e seu

espaço são transdimensionais. Podem ser destruídas suas formas

materializadas. Porém, ela sempre aparece adiante, mais reluzente

e sinalizadora do que nunca. Sua função cósmica é não somente

despertar ou desenvolver a divindade que existe dentro de nós,

mas é também expandir essa divindade cada vez mais na direção

de Deus. Pode resistir até aos desgastes do tempo e destruições

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parciais. A “Venus de Milo” que o diga.

Lembra-se daquele ocorrido (e atualmente eternizado, ou

melhor, internetizado) com o violinista italiano Niccolò Paganini

(1782-1840)? Ele estava executando uma música tão

inspiradamente para uma plateia cheia e também inspirada, que

mesmo se quebrando uma corda, depois outra corda e por fim

tocando com apenas uma corda o seu violino, ele não perdeu a

fluxo inspiracional, nem a plateia percebeu qualquer redução de

qualidade na música inicialmente executada com as quatro

cordas. Aquilo produziu um êxtase tão eufórico a partir de certo

momento, que talvez tenha feito vibrar as cordas espirituais do

próprio Paganini e as cordas auriculares de todos os

espectadores, gerando o milagre da continuidade do mesmo som,

ainda que com as limitações físicas do instrumento parcialmente

quebrado. Foi a expansão mais transcendental daqueles

momentos em que o artista alimenta a plateia e a plateia alimenta

o artista com o nutriente da inspiração de mão dupla. É muito

comum nos espetáculos em teatro, que normalmente

são favorecidos pelos efeitos da acústica, da

iluminação, do som e principalmente pela comunicação

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sentimental e vibracional entre artistas e público. São

momentos únicos. Mas, naquele famoso momento/lugar onde

Paganini se apresentava, certamente produziu-se também uma

superação e uma superoração sustentada por uma plêiade de

anjos dos que transinspiram coletividades. Ali, certamente,

afinaram-se e vibraram as supercordas de todas as onze

dimensões do Universo. Tudo porque, não sei por que capricho,

a arte não estava querendo parar. A Arte não tinha de parar, e se

sustentou, não por si só, mas pelo enlevo da alma coletiva, ali

unificada pela intercomplementaridade univibratorializante

daquele superartista com a plateia extasiada e certamente com os

anjos músicos que voavam no invisível do ambiente, virando

todos um só. Foi um momento mais único ainda. Um milagre da

arte.

[Bem, eu não sei se esse fato foi fato mesmo, ou se

foi uma lenda criada a partir de uma habilidade

especial de Paganini historicamente reconhecida, que

era a de tocar violino com menos de quatro cordas, até

com uma (a corda sol). E talvez eu mesmo, com essa

minha descrição subjetiva aí, posso estar até

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aumentando o grau de lendariedade do “causo”. Mas,

se é verdade também, segundo corre nas fontes

oficiais e oficiosas da história, que esse incomparável

virtuose italiano conseguia tocar doze notas por

segundo, incluindo notas harmônicas, não sei, não. É

capaz de ter acontecido mesmo o fato, não com essa

miraculosidade toda que aparenta, mas como fruto de

um raro apuro técnico. Diz-se que um dos prazeres

dele era assombrar as pessoas com seus

contorcionismos musicais, reforçado por seu perfil

anatômico, tido na época como fantasmagórico.]

Igualmente, a eventual limitação física de si mesmo não

impede o artista de agigantar-se em alma e construir obras que

instigam e maravilham gerações. Foi o caso do surdo Beethoven?

Do aleijado Antonio Francisco Lisboa? Do epiléptico Machado

de Assis? Do louco Arthur Bispo do Rosário? Das três irmãs

cegas de Caruaru? Do paralítico cerebral Christy Brown (aquele

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que pintava com o pé esquerdo e que virou filme)? Dos vários e

vários pintores sem mãos do passado e do presente?

O artista, em êxtase criativo, já é capaz de antever a arte

dentro da pedra bruta que ele ainda vai esculpir, antes mesmo da

primeira cinzelada. A limitação da bruteza da pedra não o impede

de antever o que algumas pessoas não suficientemente sensíveis

não verão tão cedo, mesmo depois da última pincelada de verniz.

A manifestação artística tem um algo a mais que é logo

captável em sua amplitude e profundidade apenas pelos

sentimentos mais sensíveis. Esse algo a mais, nunca plenamente

descritível com as palavras, pode até transcender os limites da

técnica, da ética e da estética que embalam a sua produção

ostensiva, podendo até não se valer de nada disso. Quase sempre,

esse algo a mais mostra-se é nos detalhes invisíveis, nas

entrelinhas imperceptíveis pelos sentidos físicos, na própria

pedra bruta que ainda vai ser descoberta pelo artista.

Até entre linhas de produção cultural ou incultural

tipicamente antiartísticas ou voltadas para tendências pós-

modernas inartísticas, eletronicizadas e monocórdicas da

chamada Pop Art, a Arte costuma aparecer e dar uma palhinha

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de vez em quando, surpreendendo mentes mais sensíveis ou

menos insensíveis no meio das multidões acusticamente

drogadas.

Outrossim, quando quer se apresentar mesmo, principalmente

quando com propósitos consciencio ou sensitivo-despertativos, a

Arte manifesta-se diretamente no sentido das pessoas, mesmo no

daquelas corriqueiramente insensíveis, ao ponto de fazê-las

chorar, se arrepiar, se comover, lembrar de fatos, pessoas,

lugares, sentimentos e outros valores recolhidos. Com a

sensibilidade momentaneamente despertada, tais pessoas, tidas

como “duronas”, percebem a arte que elas precisam perceber,

seja para perceber algo ou alguém, seja para perceber Deus, seja

para perceber-se. A depender do enlevo, nunca mais voltam a ser

as mesmas. A Arte não tem preconceito preferencial, estético,

ético nem ambiental.

Antes mesmo de elevarmos as mãos, as palavras, o

pensamento, os sentidos ou o sentimento a Deus, Ele já vem

preparando o ambiente e as condições mais próprias para o

despertar dessa nossa própria sintonização direta pela via da

prece. E a Arte é um desses ambientes. É uma provocação de

Deus para que nos lembremos Dele a qualquer momento,

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preferentemente antes de precisarmos.

A Arte é, pois, uma forma de oração de Deus para nós, pela

templação da natureza para nossos sentidos, e é uma forma de

oração de nós para Deus, pela contemplação de nossa alma para

o que nossos sentidos captam.

Vamos apurar cada vez mais os sentidos para captar essa

prece.

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Josenilton kaj Madragoa

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O PAPEL DO ESCRITOR SOCIAL

{"O mais belo triunfo do

escritor é fazer pensar os

que podem pensar." - Eugène

Delacroix (1798-1863, pintor

francês)}

Não quero desmerecer a importância das cartas-

denúncias e dos textos revoltados que circulam abertas

para toda a população desde todos os tempos e nos dias de

hoje, agora utilizando-se principalmente da Internet.

Muitas mudanças são operadas na estrutura social a partir

de tais denúncias cheias de emoção (principalmente

quando chegam no monitor dos destinatários certos).

Muitos têm muito a dizer e o dizem muito bem, sem

serem necessariamente escritores ou usuários das técnicas

redacionais mais refinadas.

Nossa preocupação aqui é apenas com o cuidado que

todos que não somos profissionais da Comunicação nem

da Literatura devemos ter, para não produzir e divulgar

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textos eivados de rancores, revoltas e parcialidades, sem

concluir, sem fundamentar, sem dar qualquer roupagem

científica mínima para corroborar seu arrazoado. Em

razão disso, resolvemos discorrer sobre o papel do escritor

social na nossa contemporaneidade transicional.

Sei que este texto parecerá excessivamente

racionalista e talvez até inumano. Porém, veja nele apenas

um norte, um modelo, ainda que impossível de ser seguido

literalmente. A ideia é essa mesmo: que o texto social seja

efetivamente dissociado do texto individual ou emocional,

pelo menos em nível de premissa.

O escritor social, mesmo quando sendo um amador,

tem responsabilidade social. O que ele escreve espelha

suas opiniões, mas também tem compromisso com a

formação da opinião do seu leitorado. [Ouso estender uma

acepção neológica para a palavra “leitorado”, aqui como

sinônimo de “conjunto de leitores”, por entender que sua

definição tradicional (relacionada à atividade dos

professores que ensinam a língua e a literatura de seu país

em universidade estrangeira) está meio fora de uso,

concorda?] Ele é um pensador social que, ao invés de usar

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o microfone e os palanques, dissemina seus produtos

pensamentais através da escrita e as divulga

principalmente pela internet, que é o canal de

comunicação mais democrático já inventado. Ele escreve o

que pensa, para influenciar e interferir nas problemáticas

sociais, alertando para o que acha que está passando

batido perante os olhos coletivos, e eventualmente

apontando sugestões solucionadoras.

{“Lembro-me de que certa noite – eu teria

uns quatorze anos, quando muito –

encarregaram-me de segurar uma lâmpada

elétrica à cabeceira da mesa de operações,

enquanto um médico fazia os primeiros curativos

num pobre-diabo que soldados da Polícia

Municipal haviam “carneado”. (...) Apesar do

horror e da náusea, continuei firme onde estava,

talvez pensando assim: se esse caboclo pode

aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de

poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar

o doutor a costurar esses talhos e salvar essa

vida? (...)

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Desde que, adulto, comecei a escrever

romances, tem-me animado até hoje a ideia de

que o menos que o escritor pode fazer, numa

época de atrocidades e injustiças como a nossa, é

acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a

realidade de seu mundo, evitando que sobre ele

caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos

assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a

lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se

não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos

o nosso toco de vela ou, em último caso,

risquemos fósforos repetidamente, como um

sinal de que não desertamos nosso posto.” – Érico

Veríssimo, em seu livro autobiográfico “Solo de Clarineta”,

primeiro volume.}

Os textos sociais têm ligação direta com a Arte

Conceitual, em que prevalece muito mais o conteúdo do

que a forma e o estilo do autor. Nesse tipo de literatura, o

texto deve aparecer muito mais através do escritor, e não o

escritor aparecer através do texto.

O escritor social não deve se envolver

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emocionalmente com o tema suscitado pelo texto. É uma

premissa. Deve manter um distanciamento estratégico,

evitando emitir opiniões pessoais moralistas, inclusive

para não incorrer nos frequentes lapsos freudianos por

escrito[!], para não tropeçar em palavras turpiloquentes,

nem disseminar textos obsessionais. Deve também evitar

fazer aconselhamentos ostensivos, como se fosse o dono

da verdade.

O papel do escritor é mediar um diálogo entre o texto

e o leitor. Deve cuidar, pois, para não imiscuir no texto

suas emoções, revoltas, traumas e idiossincrasias. Daí a

importância de colocar o texto de molho após sua primeira

redação (quando ele ainda é chamado tecnicamente de

“texto bruto”), por mais inspirado que ele tenha sido, para

passar posteriormente por várias peneiradas, até o refino e

enriquecimentos complementares que bastem para deixá-

lo em condições médias de publicação.

A palavra muito melhor é dita quando se lhe edita.

É até saudável dar vazão ao primeiro fluxo

espontâneo de consciência, sob o calor da inspiração ou da

intuição. Em seguida, contudo, é de bom-tom submeter o

resultado a verificações de validade, preenchendo os claros

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argumentais, retirando os excessos, saneando os

inevitáveis ideologemas, recheando as teses, miniteses e

microteses com citações, dados, resultados de pesquisas

etc, dando, por fim, um tratamento revisional, científico e

ornamental.

Muitos escritores inexperientes na arte da paciência

têm o impulso de publicar imediatamente tudo que

escrevem. Para eles, a seguinte frase de Vitor Hugo:

"Escritores, meditem muito e corrijam pouco.

Fazei as vossas rasuras no vosso próprio

cérebro."

Uma premissa é que ninguém é tão bom quanto si

mesmo tempos adiante. O texto perfeito é o que ainda virá.

Entretanto, não podemos incorrer na neurose do

perfeccionismo sem fim. O importante minimamente é

burilar e dar soluções viáveis aos questionamentos

suscitados no texto, para que este fique tecnicamente

publicável.

Quem tiver prazo para apresentação do material, tem

que gerenciar a feitura e a revisão do texto com a maior

precisão técnica possível. Se puder também submeter o

escrito a um revisor, tanto melhor, partindo, inclusive, da

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premissa de que “não existe escritor sem erro”,

segundo Rui Barbosa. Um segundo par de olhos vê erros

crassos onde o escritor não vê nem cochilo.

****

O texto social, via de regra, é minguado de adjetivos e

advérbios emocionais, para não se tornar uma simples

carta-desabafo à população. Porém, quem os entender

eventualmente necessários, que deixe claro o porquê de

seu uso.

Tem que haver um ar de isenção, cientificidade,

filosoficidade ou neutralidade. Assim, ele tende a se tornar

perfeito e efetivamente orientador. A preocupação com a

objetividade externa imprime maior seriedade e

profissionalismo ao texto.

Por isso a necessidade que o escritor que acabou de

montar um texto bruto tem de burilar, trocar palavras e

enxugar parágrafos. Essa poda tende a artificializar o texto

em relação ao pensamento natural e puro do escritor, em

sua gênese, mas tende a manter um diálogo mais universal

e coerente com o leitorado. Nesse processo de edição,

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muitas ideias novas surgem e acabam enriquecendo ou até

mutilando o argumento central inicialmente delineado.

A premissa maior é esta: o escritor social escreve não

para si, mas escreve um texto que vai manter um diálogo

com um público.

O eu-textual é ou seja diferente do eu-autoral.

Muitos autores narrativos usam o recurso de se

imiscuir na história como um personagem-narrador. É o

chamado eu-narrador. Ele cria ou deixa viver uma espécie

de alter ego, através do qual, aí, sim, pode se soltar um

pouco mais, dizer certas verdades, sem comprometer a

imagem do texto como um ser meio autônomo e

tecnicamente dissociado da pessoa emocional do autor.

Pode haver três autores-personagens em um mesmo

texto: o autor em si ou eu-autor, o eu-narrador ou eu-

poético e o eu-personagem. Em muitos textos há também

o eu-digressionador, que interrompe o fluxo normal do

texto para fazer esclarecimentos ou divagações. O grau

de influência recíproca de uns sobre os outros depende

de vários fatores, principalmente do grau de

profissionalismo e capacidade de distanciamento e

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manipulação do eu-autor sobre os demais. A questão são

as influências alheias.

Mesmo fazendo parte dos sítios sociológicos e ainda

que amparado pelas culturas livresca e filosófica, o escritor

social deve se posicionar acima de si mesmo, numa espécie

de mirante meio distanciado, de onde possa perceber

nuanças críticas no fato ou objeto sub oculis, inclusive se o

objeto for ele mesmo como pessoa autoral. Com seu

binóculo de lente supertransparente e multifocal, fica mais

fácil antever tempestades que se avizinham, ou pode

constatar e gritar de vez em quando, se necessário: “Ei! O

rei está nu!”, ou então, “Ei! O povo está nu!”.

A escolha dos temas deve ser sempre de interesse

geral, chamativo à atenção para problemas que todos se

interessam ou se interessariam em ver resolvidos.

A escolha das palavras, inclusive com o auxilio do

dicionário, tem que reforçar os enfoques e as

contextualizações, buscando a harmonia e o melhor

sentido à ideia central esposada.

Uma ideia coletivista é não só disseminar seus

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pensares, mas ser também um carteiro das ideias alheias.

A recorrência a fatos, dados, pesquisas, bibliografias,

citações, frases etc muito enriquecem e reforçam o poder

de convencimento do que se está a expor. Podem até

reduzir o grau de originalidade e ineditismo dos

argumentos do autor, mas atingem melhor os sentidos dos

leitores que precisam mudar ou reforçar seus próprios

pontos de vistas, independentemente de quem o influencie

para isso.

Escrever é também reunir, rearranjar e monoblocar

informações. Nada de achismos vazios e

desfundamentados. Tudo que se propõe convencer tem de

ser o mais bem fundamentado possível. Deve-se fazer

abertura e encerramento coerente de silogismos

argumentais. Busque-se, em princípio, correlacionar

premissas universalmente aceitas ou já suficientemente

consagradas entre os especialistas, pensadores e

representantes de correntes sólidas de saber, ainda que

sejam agora questionadas ou contrariadas. O esperável é

que qualquer confirmação ou contrariedade a fatos, teses

ou posicionamentos anteriores seja sempre sobejamente

fundamentada, para não transformar o escrito em mero

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razoado tautológico ou em denúncia vazia.

O simples pensar ou achar sem maiores respaldos ou

fundamentações convincentes é visto, no máximo, como

uma hipótese a priori, que vai depender sempre de

alguém ou de algum dado ou fato posterior que o

corrobore. É melhor que o próprio suscitador da hipótese

cuide disso.

"O escritor curto em ideias e fatos será,

naturalmente, um autor de ideias curtas, assim

como de um sujeito de escasso miolo na cachola,

de uma cabeça de coco velado, não se poderá

esperar senão breves análises e chochas tolices."

- Rui Barbosa

O que o escritor social deve pretender, antes de tudo,

é a mudança ou melhoria dos pontos de vista ou a solução

dos problemas, para o que ele tenta contribuir através da

sua caneta.

Nos tempos atuais, caracterizados pela

intertextualidade, o que importa é mais um texto bem

montado e bem referenciado, que faça a diferença, do que

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o grau de originalidade de quem o materializou.

Não estou apologizando as paráfrases e outras formas

correntes de apropriação textual, muito menos o plágio

temático, mas creio ser inquestionável que um texto

preocupado em convencer, ou fazer seus leitores

matutarem, deve recorrer a fontes externas que bastem

para imprimir mais veracidade à ideia defendida.

Nenhum texto é obra exclusiva do escritor. Quanto

mais leve e sensível estiver o escritor no momento da

operação textual, tão mais fluente será a aterrissagem (ou

“papelagem”) da parte do texto que não é de sua biblioteca

raciocinal.

Favor, contudo, não confundir sensível com

emocionado. A emoção é um valor do homem. A

sensibilidade é um valor do espírito.

Eis uma frase de Fernando Pessoa que coroa esse

entendimento: “Ver muito lucidamente prejudica o

sentir demasiado. E os gregos viam muito

lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua

perfeita execução da obra de arte.”

O escritor, pois, deve preparar-se para seu labor

elevando-se espiritualmente.

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Com a palavra, João Cabral de Melo Neto:

“escrever é estar no extremo de si mesmo.”

Microfone para Clarice Lispector: “A palavra é a

minha quarta dimensão.”

O poeta estadunidense T. S. Elliot pede a palavra e

arremata: “Escrever é fugir da emoção.”

Porém, Jorge Amado também chegou a dizer: “o

escritor que quiser emocionar tem de escrever

emocionado.”

Graciliano Ramos acentuara: “Comovo-me em

excesso, por natureza e por ofício. Acho medonho

alguém viver sem paixões.”

Epa! Parece que já estamos invertendo tudo, não é

mesmo? Calma! Pelo menos no sentido pretendido neste

arrazoado, eu continuo grecista. Aqui estamos falando

precipuamente de textos sociais. [Emoçao é um

hiperônimo histórico, que serve para definir vários

sentimentos e sensações humanas. É usada no lugar de

sensibilidade, inspiração, consternação, afetividade,

comoção etc.]

Muitos escritores comprometem-se apenas com a

Arte em si, pelo menos no plano consciente. São os

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escritores artísticos, que buscam apenas emocionar ou

apenas entreter. [É uma arte também muito difícil. É

praticamente impossível não se escrever sem fazer

propaganda indireta ou merchandising de alguma

corrente de pensamento, ainda que inconscientemente,

sem estar vinculado a alguma ideologia ou sem manifestar

ideologemas a cada página.]

Outros lidadores da palavra escrita conseguem ser

artísticos-sociais, e fazem suas denúncias com muita

maestria e precisão, valendo-se inclusive dos romances,

como Vitor Hugo, Machado de Assis, Érico Veríssimo e

Graciliano Ramos. Muitos grandes poetas da nossa

história conseguiram emocionar e conscientizar usando

sua veia poética, como Castro Alves e Cruz e Souza.

Falavam para os corações e para as mentes.

Mas a questão aqui agitada é a “pessoa particular” do

autor e seus medos, suas revoltas e seus desequilíbrios

emocionais, que não devem macular demais o texto, sob

pena deste se tornar muito mais um divã psicológico do

que um meio de protesto transformador.

O escritor social tem que calcular bem o que diz.

Deve ser um engenhador das palavras e das ideias (ainda

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que brinque com elas), porque o que ele diz tem caráter de

documento e pode funcionar até como uma arma. [Um dos

maiores críticos sociais da literatura brasileira foi

Machado de Assis, embora indiretamente, tendo usado

com muita maestria o recurso retórico da ironia.

Desabafou como bem quis nas entrelinhas de seus

romances, mas sem ninguém perceber claramente. Um

mestre.]

"A verdade é que a pena, na mão de um

excelente escritor, resulta por si só numa arma

muito mais potente e terrível, e de efeito muito

mais prolongado, do que jamais poderia ser

qualquer outro cetro ou espada nas mãos de um

príncipe." - Vittorio Alfieri (1749-1803, poeta trágico

italiano.

[Muitas vezes, contudo, essa arma, quando não

disparada para atender aos interesses do povo, costuma

reforçar a munição dos dominadores e manipuladores das

consciências coletivas.]

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Diferentemente dos textos acadêmicos, que têm de se

subordinar a um rigorismo técnico e científico, com base

na engessante ABNT, o texto social tem como público a

sociedade como um todo. É necessário o chamamento à

ordem; a denúncia é sempre bem vinda; os

questionamentos são uma tônica essencial. Mas também é

de bom-tom e dá um certo gosto ao discurso o tempero

das figuras de linguagem, do jogo de palavras, das frases

de efeito e do humorismo. [É o “escrever com molho”, no

dizer de Luis Fernando Veríssimo.] Na dosagem certa

entre a coloquialidade (linguagem informal e popularesca)

e a adloquialidade (linguagem formal e gramaticalista)

tendem a suavizar um pouco a exposição, a minimizar sua

eventual sensaboria e a tirar o peso do sermão, sem

reduzir o peso da responsabilidade.

O básico é cuidar para que esses recursos acessórios

não roubem a cena de todo o conjunto da obra, nem

comprometam os pilares-mestres da arquitetura textual,

que está fincada na ideia central veiculada. Isso em si é

uma arte.

Mesmo nas obras de ficção e de poesia, que

demandam uma carga de sensibilidade do escritor e do

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leitor, é necessária muita inteligência emocional, para não

transformar o texto em um escrito escolar ou de amador

principiante.

Parafraseando Jorge Amado, podemos asserir,

portanto, que o escritor que quiser conscientizar, tem de

escrever conscientizado.

Enfim, todo escritor social, que podemos chamar de

eu-argumentador, que quer contribuir para a melhoria da

sociedade, através da sua caneta, tem de se habilitar para

isso em vários níveis, inclusive no apuro da arte do

convencimento, que impõe o bom uso do léxico, um certo

domínio dos princípios clássicos da retórica, quer nos

ataques, nas defesas ou nas respostas argumentativas.

Pensar antes, escrever em seguida, corrigir depois e

publicar finalmente. Eis o jogo de premissas. Eis o fim.