Leyla Perrone-Moisés. Roland Barthes: o saber com sabor

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    . L Y

    PERRONE MOISES

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    Roland

    B RTHES

    S BER COM S BOR

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    Roland

    B RTHES

    LEYL

    PERRONE MOISS

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    opyright

    Leyla Perrone Moiss

    Capa diagramao

    :

    Moema

    Cavalcanti

    Caricaturas

    :

    Em lio Darniani

    Rev/sa o:

    Herc

    tio e

    Lourenzi

    Jos E. Gugelmin

    editora

    brasiliense

    01223

    r

    general

    so

    paulo

    brasil

    .a

    jardim 16

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    INDI E

    Captulo

    Biografemas

    . . . . . . . . .

    Captulo

    Mitologias . . . . . . .

    20

    Captulo

    A nova

    cr t ica .

    . . . . . . . . . . . . . . . . .

    3

    aptulo 4

    O semilogo . . . . . a . . . . . . .

    40

    Captulo

    5

    Escritura

    prazer

    . . . . . . . .

    49

    Captulo

    6

    Amor

    poder . . . . . . . . . . . . . . . .

    60

    Captulo

    7

    O Mestre

    anarquista

    .

    . .

    . . . . . . . .

    .

    69

    Captulo 8

    Anamneses . . . . . . . . . . .

    88

    Cronologia

    . . . . . . . . . 102

    I

    ndicaco

    Bibliografica

    . . . . . . . . . . . . . 106

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    "Meu

    mestre,

    meu mestre, perdido to

    cedo

    Revejo-o na sombra

    que

    sou

    em

    mim, na mem6ria que conservo do que

    sou

    de

    morto.

    Aivaro

    de

    Campos

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    A B R E V I A T U R A S

    Usarei as seguintes abreviaes (entre parnteses, as edies

    francesas

    a

    que

    remeto

    :

    SF

    L

    (Sade, Fourier

    oyola,

    eu

    i 1

    97

    1

    R

    B/

    R Roland

    Barthes par

    Ro/and Barthes

    Seu i

    . 1975)

    M (Mythalogies, Seuil,

    1957

    C Essais critiques Seu I,

    1

    964

    C V

    Critique

    et Vrite,

    Seuil, 1966

    (Leon Inaugurale, Col

    ge de

    France. 1977

    G V

    ( L e

    grain

    de

    /a

    voix,

    Seui

    I,

    1

    981

    D Z L edegr z e I criture, Seuil, 1972

    ES (L Empire

    des

    signes, Flammarion, 1980

    FDA Fragrnents

    d un discours amoureux

    Par t Seu i

    I,

    1977

    AS

    ( Au sminaire , L Arc

    nP 56, Aix-en-Provence,

    1974

    E IP ( crivains, Intellec tuels , Professeurs .

    Te/

    Que/

    no 47,

    Paris,

    Seuil, 1971

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    CAPITULO 1

    BIOGR FEM S

    Se

    eu

    fosse

    escritor

    e

    morto

    como

    eu

    gostaria

    que

    minha

    vida se reduzisse,

    pelos

    cuidados de

    um

    bigrafo

    amistoso e desenvolto,

    a

    alguns

    pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexes,

    digamos:

    'biografemas',

    cuja distino e mobilidade

    poderiam viajar

    fora

    de

    qualquer destino

    e

    vir

    tocar,

    como

    tomos

    epicuristas,

    algum corpo

    futuro

    prometido a mesma dispersof' (SFL p 14 .

    De Sade, Barthes gostava de

    lembrar

    os punhos

    de

    renda branca; de

    Fourier, os v sos

    de flores

    entre

    os quais

    caiu

    morto; de Loyola, os belos olhos

    espanhis.

    B iografemas, pequenas unidades

    biogr-

    ficas, ndices e um corpo

    perdido agora

    recupe-

    rvel

    como

    um

    simples plural

    de

    encantos .

    A

    vida no

    como

    destino ou epopia,

    mas como texto

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    B I O G R A FEM A S

    r~manesco, um

    canto

    descontinuo

    de

    amabili-

    dades .

    Em

    Roland Barthes p r Roland Barthes

    ele

    reuniu

    alguns autobiografemas, que

    chamou

    e

    anamneses: tem branas de

    infnci

    fixadas como

    breves haicais: o

    defeito

    na loua de um tijela;

    um

    morcego

    rechaado

    pela famlia, armada

    de

    pinas; o

    c nto do

    jardim onde

    se enterravam

    ninhadas

    indesejveis

    de

    gatos;

    o

    sabor

    insosso

    de

    um

    caf

    com

    leite

    claro;

    etc.

    Se o texto que agora escrevo fosse apenas um

    tex to e prazer, bigrafa amistosa e desenvolta

    eu

    continuaria nessa

    linha acrescentando

    s anamneses

    de Barthes

    minhas anamneses a

    seu

    respeito.

    To

    fictcias

    umas como as outras, porque os biogra-

    fem s pertencem o

    c mpo

    do imaginrio afetivo.

    u

    falaria ento de seus

    calmos olhos azuis,

    o

    charuto pendurado no c nto da boca dando

    ao

    rosto um

    ricto ps-guerra (vejam-se

    as

    fotos

    de

    Camus, Malraux, Prvert).

    Falaria

    de seu jeito

    e

    mal-estar n vida,

    sempre

    suspenso ent re

    a

    iminncia de

    um

    divertimento

    e

    a

    recorrncia do

    tdio,

    entre o impulso socialidade

    bondosa e a

    conscincia

    de um

    irremedivel

    solido.

    Mas

    devo ser

    aqui

    uma

    bigrafa

    informativa.

    Alis, prprio sabor dos

    biografemas

    depende

    de

    uma prvia informao.

    Os

    punhos

    de Sade e

    os vasos de Fourier

    so contrapontos de

    suas

    vidas-obras,

    o

    insignificante

    que

    a

    memria

    seleciona,

    ludicamente,

    dentro de um

    conjunto

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    R O L A N D

    BARTHES

    ma

    ior. Recoloquernos, pois

    os biografemas

    barthesianos

    no

    contexto

    de

    uma

    existncia

    narrvel.

    Roland Barthes

    nasceu

    no dia 2 de novembro

    - d e

    191

    5,

    em Cherburgo, porto

    do

    Canal da Mancha.

    Seu

    pai Louis Barthes,

    segundo-tenente

    da Marinha,

    morreu

    numa

    batalha naval da

    Guerra

    de 14, quando

    Roland tinha onze meses

    Seguiu-se uma

    infncia

    tranquila em

    Baiona, no

    sul

    da

    Frana,

    dentro

    de

    urna fam

    ia

    burguesa

    privada

    de

    pai, empobrecida,

    protestante, respeitosa das

    convenes

    e

    extrema-

    mente afetuosa. De

    um segun o

    casamento da

    me nasceu outro filho. Em 1924 mudaram-se

    para Paris, onde Roland prosseguiu seus estudos

    no Liceu

    Montaigne

    e

    no Liceu

    Louis-le-Grand.

    Em

    1934

    foi

    acometido

    de tuberculose

    e passou

    um

    ano

    em tratamento, nos Pirineus. De volta

    Paris,

    licenciou-se

    em

    Letras

    Clssicas

    e

    participou,

    como ator,

    de

    um grupo de

    teatro

    antigo. Tornou-se

    professor secundrio e redigiu

    um trabalho

    univer-

    sitrio sobre

    a

    tragdia

    grega. Em

    1941

    teve

    uma

    recada

    da

    tuberculose;

    passou

    os

    cinco

    anos

    seguintes

    em sanatrios.

    Finalmente

    restabelecido,

    em 1948 partiu

    para

    o

    estrangeiro

    como professor

    universitrio

    Bucareste

    e Alexandria).

    De

    952

    a

    1959

    foi

    pesquisador o

    C N R S

    Centro Nacional

    de Pesquisas Cient

    [ficas), em

    lexicologia

    e

    sociologia.

    Nesse per iodo, publicou

    trs

    livros

    e

    vrios

    artigos,

    em

    especial

    sobre

    teatro. A partir

    de

    1962, tornou-se orientador

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    B I O G R A FEM A S

    de

    pesquisas

    na

    Escola

    Prtica de

    Altos Estudos

    da

    Sorbona.

    Publicou

    mais

    alguns livros

    de crtica

    literria, que

    provocaram

    uma

    inesperada e intensa

    imitao em Rayrnond Picard, mestre

    poderoso

    e

    tradicionalista da velha Sorbona. Seguiu-se uma

    polmica em torno da nova

    crtica assim

    batizada

    por Picard

    -

    esse

    deb te tornou Roland

    Barthes

    conhecido

    por

    um largo pblico.

    Suas

    aulas

    comearam a atrair

    ouvintes

    cada vez

    mais

    numerosos.

    os anos seguintes, o movimento

    estruturalista

    nas

    vrias cincias

    do homem

    ocupou

    as

    atenes da

    universidade

    e at mesmo dos meios

    de comunicao de massa. Barthes foi considerado

    como

    um dos papas o

    estruturalismo, papel

    confortvel

    mas

    para

    ele

    insuportvel,

    como

    qualquer papel) que abandonou

    em

    1973, com

    a

    publicao de um livro

    reivindicando

    o prazer,

    o corpo,

    o

    individualismo e

    o diletantismo

    contra

    a

    cincia , os modelos abstratos, a

    objetividade

    e

    o

    rigor universitrios. Novas

    polmicas

    que,

    como

    a anterior, reforaram o

    prestgio

    de

    Barthes.

    Cada

    vez

    m is

    solicitado,

    tambm

    no

    exterior, tinha

    passado

    um temporada

    nos Estados

    Unidos 66),

    outra

    no

    Marrocos

    69-70); fez

    tambm

    uma viagem ao

    Japo

    69),

    outra

    China 74) (achou o Japo

    fascinante e

    a China sem graa).

    Em

    1977, Barthes tomou posse d nova cadeira

    de

    Semiologia

    Literria

    no

    Colgio

    de

    Frana,

    ins-

    tituio

    acima e

    fora da

    universidade,

    local

    onde

    12

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    R O L A ND BARTHES

    os

    mais ilustres

    professores

    franceses

    de todas

    as

    especial

    idades

    oferecem cursos l

    ivres

    e

    abertos

    ao

    grande pblico. Era

    uma faanha para

    algum que

    nunca escreveu um

    verdadeiro

    trabalho cientfico

    e jamais

    defendeu

    qualquer tese universitria.

    Em 1978 perdeu a me, em companhia de

    quem

    sempre vivera. Estava

    no

    auge

    de seu prestgio;

    suas

    aulas

    atraam multides, os veiculos de massa

    o

    requ

    isi

    tavam

    constantemente, seus I ivros

    tinham

    sido traduzidos em

    numerosas I

    nguas.

    Em

    fevereiro

    de 80 ao sair do Colgio de Frana, foi atropelado

    por

    uma

    caminhonete,

    sofrendo

    graves

    ferimentos

    no

    peito; desde a tuberculose da

    juventude,

    este

    era

    exatamente

    seu

    ponto

    mais

    frgil.

    Faleceu

    um

    ms

    depois

    na

    unidade de

    terapia

    intensiva

    do

    Hospital

    Piti-Salptrire.

    Foi

    enterrado

    em

    Baiona, como su

    me,

    numa

    cerimnia

    oficiada

    por

    um

    pastor

    protest nte

    e assistida por alguns

    amigos

    Em

    Roland arthes por

    Roland

    Barthes aps

    t r alinhado os dados principais de sua vida

    ele

    acrescentou, entre

    parnteses: (Uma vida:

    estudos,

    doenas,

    nomeaes.

    E

    o

    resto?

    Os encontros,

    as

    amizades,

    os amores, as viagens, as leituras, os

    prazeres,

    os medos, as

    crenas,

    os gozos, as felici-

    dades, as

    indignaes,

    as

    tristezas:

    em uma

    s

    palavra:

    as ressonncias?

    o

    texto

    mas

    no

    na obra.)

    E

    essa

    distino

    entre

    texto

    e obra

    que

    me

    vai

    permit ir

    retomar,

    prazei

    rosamente,

    os biografemas.

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    obr de Barthes conjunto de seus livros,

    atravs

    dos

    quais

    se

    pode

    segui

    r

    a

    evoluo

    (os

    deslo-

    camentos)

    de

    suas idias tericas

    e crticas.

    O

    t xto

    de Barthes

    est

    nas entrelinhas

    desse discurso falsa-

    mente

    acadmico,

    n s

    conotaes de seu lxico,

    nas vibraes de seus arranjos

    frsicos, nas

    tonali-

    dades de sua

    enunciao

    inconfundvel: em sua

    escritura. E

    quando se teve

    a

    sorte de

    conhecer

    Roland

    Barthes em

    pessoa,

    esse

    texto

    se

    entrelaa

    a u m o u t r o texto , de anamneses: cenas

    a que

    se assistiu ou

    que

    nos contaram, fragmentos de

    suas

    falas,

    indissoluvelrnente

    ligadas ao timbre particular

    de sua voz

    grave e pausada.

    Pedacinhos

    de u

    vitral

    que projetam luzes

    mveis

    e

    intermitentes

    sobre

    a

    'figura acabada

    e n tida

    d

    obra.

    Esse

    texto

    de

    anamneses,

    cujas

    unidades

    so

    biografemas,

    no preceder,

    aqui, ao

    sobrevo da

    obra barthesiana.

    Porque no se

    trata de

    proceder

    como

    nos manuais literrios tradicionais, colocando

    sucessivamente o homem e a obra ,

    segundo

    a

    boa lgica positivista da

    causa

    efeito. Trata-se

    de ressaltar

    na

    obra o

    texto,

    de mostrar como este

    ilumina

    aquela

    com

    seus

    intermitentes

    fulgores;

    e de indicar

    a

    circulao permanente de temas e

    tons, entre a

    obra

    pessoa

    do escritor Barthes

    que

    conheci. Esse Barthes

    que

    conheci

    no

    pode

    ser

    s no uma

    viso de Barthes, um leitura

    conjunta

    de sua

    obra e

    de

    seu corpo vivo; uma

    fico,

    na

    medida

    em

    que

    sou

    eu

    quem

    seleciona,

    ordena e escreve essa leitura. m tipo de leitura

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    ROL ND

    B A R T H E S

    que

    Barthes,

    o terico,

    encorajava, cujo caminho

    ele

    indicava.

    O biografema,

    segun o

    ele,

    nunca

    uma verdade

    objetiva: O biografema nada mais do que uma

    anamnese

    factcia:

    a que eu empresto ao

    autor

    que

    amo (RB/RB,

    p. 114).

    A

    biografemtica

    cincia do biografema teria como objeto

    pormenores isolados,

    que comporiam

    uma biografia

    descontnua;

    essa

    biografia diferiria

    da

    biografia-

    destino,

    onde tudo

    se

    liga, fazendo entido.

    O

    biografema

    o detalhe insignificante,

    fosco;

    a

    narrativa

    e a personagem no grau zero, meras

    virtual idades

    de

    significao. Por

    seu

    aspecto

    sensual,

    o biografema convida

    o

    leitor a fantasmar; a compor,

    com

    esses fragmentos, um

    outro texto que , ao

    mesmo

    tempo,

    do

    autor

    amado

    e

    dele mesmo

    leitor.

    biografia

    f ctu l contnua e

    Barthes,

    que

    resumi acima,

    j impele

    a

    procurar outras coisas,

    na medida em que

    seu destino nada tem de herico,

    de conseqente ou de instrutivo.

    E

    isso porque

    o

    modo discreto

    como

    Barthes viveu e

    comunicou

    esses

    f tos coincide, perfeitamente, com sua

    repugnncia

    pelo tipo de imaginrio

    que preside

    s

    biograf as-destino.

    O primeiro

    fato trgico

    a perda prematura

    do pai

    no

    trouxe conseqincias espetaculares

    (como

    na vida de

    Baudelaire

    por exemplo). A

    psicologia

    no

    pode dizer que ele ficou

    revoltado ,

    nem a

    psicanlise

    pode afirmar, om

    segurana,

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    18/111

    B I O G R A FEM A S

    que esse fato explica seu apego a

    me

    e/ou seu

    homossexuaIismo.

    Embora

    morto

    tragicamente,

    o

    pai deixou

    uma lembrana leve: O

    pai, morto

    muito

    cedo

    (na guerra),

    no

    estava preso a nenhum

    discurso

    da lembrana

    ou do sacrifcio.

    Por

    interm-

    dio da

    me, sua memria, jamais opressiva,

    apenas

    roava a

    infncia,

    com uma gratificaco quase

    silenciosa

    RBIRB,

    p. 19 .

    A

    infncia

    comum

    (passada

    no na

    pobreza,

    mas

    apenas no

    aperto )

    os estudos

    normais no

    permitem qualquer

    ilao. A juventude poderia

    ter

    sido magnificada

    pela experincia histrica

    da

    2a

    Guerra

    Mundial;

    mas, nesse

    momento,

    Barthes

    estava tuberculoso. Em vez da Guerra da

    Ocupao

    da Resistncia, que

    seus

    contemporneos viveram

    intensamente,

    ele teve ento a experincia

    da

    vida

    reclusa

    comunitria: o silncio, as leituras, as

    amizades, o

    sofrimento

    obscuro. Barthes no deu

    a essa doena

    nenhum

    sentido

    de

    purgao

    ou e

    fortalecimento de carter.

    Apenas observou

    que

    teve

    uma

    doena

    retro,

    historicamente superada

    pelos

    antibiticos: Doena indolor,

    inconsistente

    doena

    limpa

    sem

    cheiros,

    sem 'isso'; ela no tinha

    outras marcas

    a

    o ser seu tempo, interminvel,

    o tabu social

    do

    contagio; quanto ao mais,

    estava-se

    doente ou

    curado,

    abstratamente, por

    um

    puro

    decreto

    do mdico R IRB, p. 39 .

    Depois,

    ele se tornou escritor. Seria esse seu

    destino,

    para

    onde

    tudo

    se

    encaminharia

    e

    que

    tudo justificaria? Mas o escritor, enquanto perso-

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    19/111

    ROLAND B A R T H E S

    nagem,

    tambm desmistificado por ele como

    um

    fantasma : Com

    certeza no

    h

    mais nenhum

    adolescente ue

    tenha este fantasma : ser escritor

    De

    que

    contemporneo querer copiar, no a obra,

    m s as

    prticas, as

    posturas,

    aquele

    modo

    de

    passear

    pelo rnuildo

    com

    uma caderneta

    no bolso

    e uma

    fr se

    na

    cabea (assim eu

    via

    Gide

    circu-

    lando d

    Rssia ao

    Congo,

    lendo

    seus

    clssicos e

    escrevendo

    seus

    apontamentos

    no

    vago-restaurante,

    enqu nto esper v

    os

    pratos; assim

    eu

    o

    vi

    real-

    mente, num dia

    de

    1939 no fundo da

    cervejaria

    Luttia comendo

    uma

    pera e

    lendo i im l ivro)?

    Pois quilo que o fantasma impe e o escritor t a l

    como podemos v-lo em seu

    dirio ntimo, e o

    escritor menos sua obra: form suprema do sagrado:

    a

    marca

    e

    vazio

    ( R B I R B ,

    p.

    81 .

    O

    escritor

    foi sistematicamente dessacralizado por Barthes:

    aquele

    que

    trabalha em casa e , por isso, visto

    pelos

    outros

    como

    um

    desocupado

    e/ou aferninado;

    ser

    escritor no

    uma uno,

    uma

    funo; ser

    escritor tr b lh r para

    nada,

    pois

    a

    escritura

    tem por f im

    ela

    mesma.

    O

    engajamento

    pol

    itico

    podia

    ser

    a

    justificativa

    m ior de sua vida. Profundamente

    tico,

    Barthes

    no se esquecia de que tudo pol tico.

    Entretanto

    no

    acreditava que

    a ao poltica do escritor

    estivesse em

    seu

    engajamento pessoal,

    mas

    em

    seu

    poder de deslocar as

    linguagens

    de

    seus

    centros

    de poder.

    O que

    aborrecia no

    comportamento

    poltico,

    como

    no

    das

    vanguardas artsticas,

    era

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    20/111

    B I O G R A FEM A S

    a jactncia ,

    a

    arrogncia e a

    rnilitncia

    dos

    que defendem certezas.

    A

    essa espcie

    de

    triunfo da boa

    conscincia

    p l tica' ou esttica),

    ele preferia a posio

    instvel

    do sujeito impuro ,

    fora de qualquer poder,

    mais

    subversivo do que

    revolucionrio.

    Vem entretanto a glria , e esta o

    entedia.

    Os grandes

    pblicos

    o

    assustam,

    a

    televiso

    o

    mortifica,

    as

    viagens

    o

    cansam.

    E

    os

    pequenos

    acessos de

    vaidade que o acometem acabam por

    mortific-lo ainda mais: alm

    da

    certeza de

    um

    engano

    o

    outro ( o desconhecimento

    em que

    se

    funda todo prestgio pblico),

    a

    auto irriso: por

    quem

    estou-me tomando?

    A

    pergunta

    Voc

    tem

    o sentimento de escrever para a posteridade? ,

    respondeu

    Francamente

    no

    (entrevista

    em

    Le

    Nouvel Observateor, 1

    11 77).

    Por tuda

    isso, tinha razo quando

    disse um dia

    que,

    se tivesse de

    escolher

    uma

    divisa,

    adotaria

    esta,

    de Valry: Nem

    um deus ousaria

    tomar

    por

    divisa:

    Eu decepciono . A

    vida

    de Barthes decepciona:

    ou, pelo

    menos ele

    fez tudo para que seu

    relato

    decepcionasse.

    Tudo

    o

    que

    ia

    fazer

    um

    sentido

    maior, dar uma

    moral

    da histria. um explicao

    dos fatos posteriores ou uma concluso dos

    anteriores,

    foi

    desmontado por ele

    mesmo:

    a

    doena, vocao a

    misso,

    a glria. Barthes

    atenuou, sutil e

    tenazmente,

    sua autobiografia;

    e frequentemente deu a

    seus fragmentos

    auto-

    narrativos

    um

    leve

    tom

    de

    farsa.

    omo

    quando

    18

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    21/111

    R O L A N Q

    B A R T H E S

    contou

    que fez

    com a costela

    que

    lhe

    haviam

    extra

    ido

    em

    1945

    num

    pneumatrax:

    lancei

    a costeleta

    sua

    gaze do alto d o balco.

    como

    se estivesse

    dispersando romanticamente minhas

    prprias cinzas, na

    rua Servandoni. onde algum

    cachorro deve ter vindo farej-las ( R B I R B , p. 65 .

    E omo que de encomenda, sua

    morte tambm

    teve algo de irnico: atropelado por um caminho-

    n t

    de

    tinturaria,

    em

    frente

    do

    Colgio

    de

    Frana.

    az

    sentido?

    No.

    Mas

    esse

    fato final vibra com

    uma

    virtualidade

    de

    sentido; convida

    um

    inter-

    pretao

    simblica, que f ica

    porm suspensa.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    22/111

    MITOLOGI S

    No comeo dos

    anos

    50

    Barthes publicou, em

    vrias revistas, crnicas

    sobre

    determ inados aspectos

    d atualidade francesa.

    m 1957 esses textos

    foram

    reunidbs

    em livro, sob ttulo de Mythofogies

    Mitologias).

    O m to

    a i

    entendido em

    seu

    sentido corrente

    de

    falsa

    evidncia,

    de

    mentira

    aceita por

    um

    comunidade

    Os

    mitos que at ra am a ateno

    de Barthes eram certas representaes da vida

    cotidiana, menores e aparentemente inocentes:

    uma notcia de jornal sobre as farn l

    ias reais

    europias,

    um

    texto

    qualquer de

    publicidade,

    espetculos esportivos ou

    erticos

    (a luta livre

    ou

    o strep-tease),

    fotografias

    de

    atores

    ou

    de

    polticos, nfim tudo que ocupa o pblico

    2

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    23/111

    ROLAIVD B A R TH ES

    mdio

    em

    suas horas de lazer.

    Por

    que um

    intelectual refinado

    e j

    especiali

    zado como

    Barthes, que naquele momento

    pesquisador do CNRS, critico teatral de vanguarda

    e autor de

    u livro

    dif icil como Le

    degr zero

    de

    I cr:

    tur

    O rau

    zero da escritura), se interessaria

    por assuntos to

    corriqueiros, andinos

    e pouco

    culturais ? Por impacincia, como ele mesmo

    explicou depois.

    Porque

    algo

    o

    incomoda

    profun-

    damente

    no

    modo

    como

    esses

    mitos

    se veiculavam,

    na confuso entre Natureza e Histria

    sobre a

    qual

    eles

    se

    instalavam.

    O prprio desses

    discursos

    (fossem

    eles

    verbais ou

    icnicos)

    era apresentarem-

    se om uma aparncia

    de

    naturalidade absoluta,

    como

    aquilo que simplesmente assim , que

    senso

    comum

    no

    discute

    mas

    apenas

    aceita.

    Barthes resolveu ento observar de perto esses

    mitos, dedicar-lhes uma total ateno,

    justamente

    aquela ateno excessiva

    que

    eles

    no podem

    suportar, na

    medid

    em que se destinam a um

    consumo desatento

    e, por

    isso, conivente.

    Partindo ento e

    observaes

    quase

    bvias,

    ele

    vai estabelecendo relaes

    insuspeitas

    para o

    consumidor desprevenido, at que a

    notcia,

    o

    espetakulo, a

    imagem se

    revelem,

    de

    repente, como

    algo diferente daquilo que pareciam

    ser.

    NO artigo Os romanos no

    cinema ,

    ele comea

    por

    observar, como um

    simples dado,

    que

    todos

    os

    atores

    do

    Jlio

    Csar

    de Mankiewicz

    usam

    franjinha e suam

    muito.

    Por qu? (e

    a

    que l

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    24/111

    MITOLOGIAS

    j abandona

    a atitude do espectador comum,

    simplesmente

    receptivo).

    A

    franjin ha,

    observa

    ele,

    funciona

    como

    reclame de romanidade ; compe

    uma testa

    romana

    cuja exiguidade indicia o

    direito,

    a

    virtude e

    a

    conquistarf. Quanto ao suor

    (de vaselina) que b nh indistintamente os rostos

    dos homens do povo, dos soldados, dos

    patrcios,

    um

    sinal da

    moralidade romana.

    Todos

    suam,

    combinando

    economicamente

    num

    nico

    signo,

    a

    intensidade

    da

    emoo

    e trabalho

    rduo o

    pensamento; pois, para

    um

    povo de

    homens de

    negcios,

    pensar uma

    operao violenta,

    cata-

    clismica, da qual suor 6 o menor dos signos

    M, p. 28 .S um

    homem

    no sua, no

    filme

    Csar

    a vitima, que no

    sabe

    de

    nada

    e por isso

    no

    sofre.

    Interpretados os

    signos,

    resta saber

    omo

    eles

    funcionam nessa linguagem, que t ipo de c6digo

    esse

    onde

    eles aparecem. Revela-se ento o

    interesse

    geral das observaes

    iniciais sobre

    as

    franjinhas e o suor. Barthes

    aponta a duplicidade

    do signo,

    prpria

    do espetculo burgus: a

    se

    confundem

    signo

    e

    significado,

    sem

    optar

    nem

    pelo

    irrealismo

    artstico, nem por um realismo

    documen-

    tal; mantm-se um sistema de

    signos

    bastardo, um

    falso realismo que se apresenta como natural.

    Em

    Saponceos

    e detergentes , ele examina a

    retric da

    publicidade

    desses produtos,

    mostrando

    que ela se apia

    sobre

    mito

    vertical

    da profun-

    didade

    ( lavar

    profundamente )

    e

    o

    mito

    hori-

    zontal da espuma

    (luxo de1 icado, espiritual ).

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    25/111

    ROL ND B RTHES

    No s sai impun

    da

    leitura de Mitologias, sa-se pelo

    menos,

    desconfiado daquilo

    que

    s

    consome

    como informao ou

    lazer no

    fensivos.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    26/111

    MITOLOGIAS

    E conclui: O importante mascarar a funo

    abrasiva

    do

    detergente

    sob

    imagem

    deliciosa

    de

    uma

    substncia ao

    mesmo tempo

    profunda

    e

    area,

    que pode reger

    a ordem

    molecular

    do tec ido

    sem atac-lo

    Toda

    essa retrica para

    que

    o consumidor

    colabore om os trustes

    muI inacionais.

    Em outros artigos, ele

    explora

    os

    mitos

    alimen-

    tares

    dos

    franceses.

    Em

    O

    vinho

    o

    leite ,

    esmiua

    modo

    como os franceses

    vem esses

    dois

    l quidos:

    qualquer

    francs

    aceita

    o

    carter benfico dessas

    bebidas, sem saber

    t

    que ponto suas virtudes

    esto arraigadas

    em

    associaes

    inconscientes

    sem fundamento

    real.

    O vinho associado

    ao

    sangue, I

    quido

    denso vital,

    dotado

    de

    poderes

    de

    transmutao:

    transforma

    o fraco

    em

    forte

    o

    silencioso

    em tagarela,

    o

    intelectual em popular

    etc.

    Aspectos

    mticos

    que ocultam simplesmente

    o alcoolismo

    do francs mdio estimulado

    pelo

    capitalismo metropolitano

    colonial. O contrrio

    do vinho, segundo Barthes,

    no

    gua, mas

    o

    leite, cosmtico reparador ,

    infantil e

    inocente. Mas para

    francs, o

    leite

    uma

    substncia

    extica , consumida nos filmes

    americanos;

    o autenticamente nacional continua

    sendo o

    vinho.

    J O bife om batatas

    fritas .

    este tambm

    esconde,

    sob

    a aparente obviedade, um conjunto

    de

    m tos

    inconscientes,

    com

    inquietantes

    impl

    i

    caes

    xenfobas. O bife as batatas fritas torna-

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    27/111

    ROLAND B A R T H E S

    ram-se sinais alimentares da f rancidade . Assim,

    os

    jornais

    notici r m

    que,

    depois

    do

    armistcio

    na

    Indochina,

    o General de Castries

    pediu

    batatas

    fritas .

    Nada

    inocente esse pedido, pois as batatas

    fritas funcion m a como comida nostlgica e

    patritica .

    Assim,

    implacvel em sua

    ateno

    e hilariante

    em suas

    observaes,

    Barthes vai percorrendo os

    aspectos

    aparentemente

    mais

    bvios

    insignificantes

    do dia-a-dia francs, para mostrar em

    que

    imagin-

    rios

    eles

    se

    ancoram. O Tour

    de France campeo-

    nato

    de

    ciclismo a epopia

    nacional

    narrada por

    hom6ricos comentadores esportivos. O

    famoso

    Guide Bleu e

    turismo

    age sobre

    as

    imaginaes

    insistindo sobre o pitoresco das elevaes s6

    as

    montanhas

    so

    pitorescas,

    sobre

    as

    plancies

    no h grande coisa

    a dizer,

    so

    apenas

    frteis ),

    e as particularidades dos habitantes transformados

    em tipos .

    As fotos

    dos

    candidatos

    politicos

    em campanha

    ( fotogenia

    eleitoral ) revelam obedecer a cdigos

    su

    blirninares

    muito

    precisos: e

    frente realismo,

    franqueza;

    de

    trs-quartos

    olhar

    perdido

    no

    futuro, perseguio tirnica do ideal.

    Nos

    inocentes

    conselhos astrolgicos dos jornais ( Astrologia ),

    Barthes

    l o

    moralismo e o conformismo

    dos

    astros, que sempre aconselham coragem, pacincia,

    prudncia, bom humor

    Os astros jornal

    sticos

    nunca

    postulam uma derrubada da ordem vigente; separam

    convencionalmente

    trabalho ,

    fam

    l a ,

    corao ;

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    28/111

    MITOLOGIA S

    acompanham

    o

    ritmo da

    semana

    laboriosa, respei-

    tosos

    para

    com

    o

    status

    social

    e

    os horrios

    patronais

    (M., p.

    187 .

    A leitura

    de

    Mitologias diverte e

    subverte.

    o

    se

    sai

    impune

    desse livro:

    sai-se,

    pelo menos,

    desconfiado daquilo que se consome omo 'infor-

    mao ou

    lazer inofensivos; ou, como me disse

    algum a quem

    recomendei

    essa leitura, com a

    sensa~o

    de

    ter

    ficado

    mais

    inteligente.

    Note-se

    bem: no mais culto, mas

    mentalmente mais

    gil.

    As itologias so, realmente,

    uma ginstica

    ou um

    estimulante da inteligncia.

    O que particular, no trabalho

    de desmistificao

    efetuado por Barthes,

    decorre

    de

    seu

    ponto de

    partida o mito

    para ele

    fala

    linguagem

    forma

    o

    se

    trata,

    para

    ele,

    de

    atacar

    idias

    com

    idias;

    por

    exemplo: mostrar que tal

    atitude diante

    dos

    negros racista e

    que no se

    deve ser racista;

    ou

    que aquilo que se iz e determinado produto

    falso, e

    portanto

    no

    devemos compr-lo. Trata-se

    de mostrar embuste na prpria forma da mensagem

    que, desmontada,

    revela

    sua artificialidade. Ora,

    a

    eficcia

    da

    mensagem

    ideolgica

    reside

    justa-

    mente no fato

    de

    ela

    se

    apresentar

    como

    transpa-

    rente, sem nenhuma

    inteno.

    Apontar o arranjo

    oculto

    de

    suas

    formas naturais

    fazer

    desmoro-

    nar

    no ato

    as

    idias que ela veicula.

    A

    linguagem da

    mitologia

    burguesa

    insidiosa

    porque

    ela

    se apresenta

    como

    geral, annima e

    eterna; mostrar

    que

    ela particular,

    que t em

    uma

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    29/111

    ROLAND B A R T H E S

    fonte precisa,

    que

    historicamente

    datada (ligada

    aos interesses

    de

    uma

    classe

    em

    determinado

    momento)

    um modo

    eficiente

    de destru

    i-Ia. Ao

    desmontar

    essas mensagens

    inocentes , Barthes

    ps

    a

    nu

    certas constantes do

    imaginrio pequeno-

    burgus, indicando o

    exato

    lugar dessas

    constantes

    na ideologia

    dominante. Mais tarde,

    ele

    observaria

    que

    a expresso ideologia

    dominante

    redundante,

    pois

    a

    ideologia,

    no

    sentido de

    representao

    falsa

    do real, emana da

    classe dominante;

    e os

    dominados

    s6

    o so

    por uma

    carncia

    de linguagem prpria,

    que os obriga a engolir e a

    adotar,

    sem saber, a

    ideologia

    dominante.

    Desmistificar esses mitos era pois uma tarefa

    poltica. Entretanto, Barthes

    comentou mais

    tarde

    O

    propsito

    das

    itologias

    no

    poltico,

    mas ideolgico'' Te / Que/, nQ 47 p. 96).

    De

    fato,

    seria poltico

    se visasse

    a derrubada

    de

    certas

    posies para ubstitu -Ias por outras; apenas

    ideolgico porque

    consiste

    em

    apontar

    o logro

    sem propor, em troca, uma verdade.

    Como

    sempre,

    Barthes

    assumiu

    essa

    tarefa

    sem

    nenhu

    ma gr ndiloqunci

    demaggica.

    Desmistif car

    essas representaes,

    disse ele,

    no uma

    operao

    olmpica

    (M, p.

    8).

    O desmistificador

    no est

    acima e

    a

    salvo dessa gelia geral da

    cultura

    de

    massa; est dentro dela, procurando apenas ter

    uma

    viso

    mais crtica do que a do simples consu-

    midor.

    A

    arma

    do

    desmistificador no

    o

    antema

    ou

    a

    censura, mas

    o humor;

    foice

    (e

    no martelo)

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    30/111

    A NOVA CR~TICA

    O sculo X V I I (Luis X I V , Versalhes, o Classi-

    cismo) a

    cultura

    francesa

    em

    seu

    momento

    de

    glria;

    nesse sculo de florescimento

    artstico, o

    teatro foi o gnero maior

    nesse teatro,

    as

    tragdias

    de Racine ocupam

    o

    lugar

    de

    honra.

    Desde o sculo XVII, Racine tem

    sido venerado

    como

    um

    monumento

    nacional,

    como

    o

    exemplo

    mais

    acabado

    do gnio f rancs , capaz de apresentar

    as paixes mais violentas

    com clareza,

    equil ibrio

    e nobreza.

    Geraes sucessivas

    assistiram

    s

    represen-

    taes de Fedra u

    Ifignia

    como s cerimnias

    religiosas

    da

    tribo, e decoraram

    os

    alexandrinos

    racinianos como

    fbrmulas rituais.

    Em

    1963

    Barthes

    publicou

    u

    livrinho intitulado

    discretamente ur

    Racine (Sobre Racine .

    Ningum

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    31/111

    ROLAND B A R T H E S

    podia imaginar o que esse livrinho iria

    desencadear

    Nada

    mais

    nada

    menos

    do

    que

    um

    amplo

    debate

    sobre a crtica literria, implicando perguntas

    fundamentais como: o

    que

    a l iteratura? como

    deve

    ser lida e ensinada? qual

    a

    funo

    do

    cr t ico?

    quais os

    seus

    deveres

    e

    direitos?

    Tudo

    comeou

    com a

    irritao

    da

    parte

    e

    certos

    criticos, que logo transformou-se em

    indignao

    e

    explodiu

    em

    ofensas,

    num

    crescendo

    que

    durou

    dois anos.

    m

    1965

    algum se tornou o porta-voz

    dos ofendidos. Raymond

    Picard,

    professor titular

    da Sorbona

    autor de

    extensa tese sobre

    Racine,

    publicou nto

    u

    rn panfleto Nouvelle critique,

    noovelfe

    imposture

    Nova crtica,

    nova impostura ,

    onde

    Barthes

    era chamado de

    "esc

    roque intelectual

    .

    que

    ser

    que Barthes

    tinha

    ousado

    fazer

    com

    Racine?

    Dizer

    que este no

    era to

    bom

    quanto

    se pensava? No Como qualquer outro Barthes

    achava Racine admirvel. Barthes tinha

    apenas

    lido Racine de um modo

    pouco cannico, e falado

    dele

    com uma linguagem

    inusitada.

    Para se

    compreender

    a diferena,

    vou

    dar apenas

    alguns exemplos.

    Na

    tragdia

    Fedra,

    a

    jovem

    Arcia

    ama

    o

    casto

    Hiplito. Nada mais normal como

    explica Picard: "A atitude de

    rcia

    clara.

    Ela

    ama

    Hiplito e, para

    justificar-se, ela

    observa que

    tem

    todas as

    razes para preferir, por exemplo,

    a

    um

    vulgar conquistador, um

    heri

    altivo que

    nunca caiu nas fraquezas do amor".

    O

    que diz

    Barthes?

    "Arcia

    quer

    fazer

    explodir

    em

    Hip

    ito

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    32/111

    o

    segredo de sua virgindade, como se

    faz saltar

    uma

    carapaa .

    Em Britannicus, Nero

    o

    tirano que

    se sabe,

    arrastado por seus maus instintos e por uma sede

    sanguinria de

    poder.

    Pelo menos

    que

    dizem

    todos os manuais de literatura, confirmando os

    manuais

    de

    Histria Geral

    e as verses

    de Hollywood.

    Barthes

    o

    vai dizer

    o

    contrrio. Para ele,

    Nero

    est

    diante

    de

    duas

    alternativas:

    o

    Bem ou

    o

    Mal,

    a luz ou a .sombra.

    udo

    bem. Mas a surgem

    formulaes

    um

    tanto raras: A jorn d trgica

    tem a solenidade e uma experincia qumica

    .

    )

    Como um

    colorante que de repente

    purpura

    ou escurece a substncia testada, em Nero o Mal

    vai

    fixar-se . Em

    vez de fa la r da

    louca ambio

    de

    Nero,

    Barthes

    diz

    que ele

    quer

    ocupar

    trono

    para cortar o corto umbilical

    que

    o une me

    e conquistar u

    espao autnomo ; e

    que seu

    desespero final

    o de um

    homem

    condenado

    a

    envelhecer

    sem t e r nascido .

    E assim

    por diante.

    Onde Picard e todos os autores

    de

    manuais

    falam de

    prncipe

    orgulhoso

    e

    genero-

    so ,

    de

    caracteres

    viris ,

    Barthes

    vai

    falar

    de

    figuras

    do Pai

    e

    da

    Lei ;

    onde eles dizem que o heri

    perscruta

    seu aliado , Barthes diz que

    ele

    emprega

    esforcos

    imensos para l r o parceiro ,

    cuja

    carne

    a esperana

    de uma

    significao objetiva , e

    cujos olhos so a ltima instncia da verdade .

    Onde qualquer um

    pode

    reconhecer um harm

    (cenrio

    e

    Bajazet ,

    Barthes

    v

    um

    habitat

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    33/111

    R O L A N D BARTHES

    eunucide, elstico e pleno como a gua .

    Era

    demais

    para

    Picard e

    companhia.

    Picard

    acusa

    Barthes

    e pedantismo

    e de imoralidade

    sexuali-

    dade obsessiva, desenfreada, c

    inica .

    Acusa-o de

    subjetivisrno. de interpretaes abusivas.

    Para

    Picard,

    se Racine

    cria personagens apaixonadas,

    simples-

    mente

    porque Racine estava apaixonado quando

    escreveu

    as tragdias; se ele trata da luta pelo poder,

    porqu

    ele

    tinha

    problemas

    desse

    tipo

    na

    corte

    de

    Luis XI V.

    Barthes

    teria sado dessa

    objetividade

    ao falar

    de ambigidades

    sexuais,

    e

    rivalidades

    da

    horda

    primitiva, de

    incestos e

    assassinatos

    do pai,

    etc

    Segundo Picard, Barthes

    queria escandalizar

    e

    fazer sucesso com

    suas

    formulaes

    estranhas.

    Picard arranjou logo numerosos

    aliados.

    o mesmo

    tom

    exaltado do mestre sorbonista, outros publi-

    caram

    artigos

    falando em

    levar

    Barthes ao

    reforma-

    trio , ao

    pelourinho ,

    ao

    cadafalso , em

    torcer-

    lhe

    o pescoo ou cortar-lhe

    a cabea e

    brandi-la .

    Alguns, como

    Jean

    Cau, manifestaram

    o

    desejo

    de

    beijar Picard

    por ter

    escrito

    aquela

    denncia.

    o

    jornal

    a

    roix

    detlarava,

    satisfeito:

    E

    uma

    execuo .

    Parecia realmente

    a volta aos bons

    velhos tempos inquisitoriais,

    quando

    o

    tribunal

    da Sorbona

    interrogava

    e condenava os jesutas

    (sculo

    X V I ) , os

    jansenistas (sculo X V I I ) e

    os

    filsofos

    (sculo

    X V I

    ) .

    Por

    que

    t nto furor

    e

    tanto interesse o pblico?

    Seria

    um

    perigo

    terrivel

    para

    a

    lngua,

    para

    a

    cultura

    e os bons costumes

    franceses, aceitar

    que

    Barthes

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    34/111

    A

    NOVA

    C R ~ T I C A

    f l sse

    de

    habitat

    eunucide

    ou de

    imaginao

    descensional ?

    O prprio

    Barthes encarregou-se

    de responder,

    num

    tom espantosamente

    tranquilo,

    em ritique

    e t

    Vrite.

    Crtica e Verdade).

    que

    tinha sido

    violado por ele era um

    tabu

    de linguagem:

    tratar

    Racine como

    uma

    linguagem sobrepondo a seu

    texto, explicitamente, outra

    linguagem;

    o que,

    naqueles

    anos,

    comeava

    a

    ser

    designado pelo

    termo brbaro

    proposto

    por

    um russo

    (Jkobson)

    a

    metalinguagem. Atravs

    dessa

    infrao maior, Barthes tinha posto

    em discusso

    e em crise alguns

    mitos indiscutveis

    (j se viu um

    mito discutvel ?) como o Bom Gosto.

    a

    Razo,

    a Clareza (de que todos os seres humanos seriam

    dotados,

    mas

    os franceses

    mais); a

    objetividade,

    a

    verdade

    histrica, a hierarquia dos discursos.

    Em um artigo

    de 63, Barthes j

    havia detectado

    a existncia de duas criticas na Frana ( Les deux

    critiques ,

    n Essais

    crit iques): u m a universitria ,

    baseada na

    histria e na psicologia do

    sculo X I

    X;

    outra

    interpretativa

    ou

    ideolgica ,

    baseada

    nas filosofias

    e

    nas

    cincias

    humanas

    do

    sculo

    XX.

    A

    primeira,

    herdeira

    do historiador Lanson e

    do

    crtico biogrfico

    Sa

    inte-Beuve,

    examinava os

    fatos

    om objetividade , estabelecendo

    entre

    eles relaes de causa e efeito. Assim, um de

    seus

    grandes objetivos era detectar as fontes das obras,

    nas

    circunstncias histricas

    ou

    individuais,

    ou

    nas obras anteriores. Cr i'tica

    de erudio,

    consistia

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    35/111

    R O L A N D

    B A R T H E S

    em

    cercar a

    obra com um aparato

    de

    leitura, s m

    entretanto interpret-la, a

    no

    ser om o

    simples

    bom senso

    u

    om

    tranqilas

    noes

    de psicologia.

    Esse tipo

    de

    crtica,

    segundo

    Barthes, considera

    a

    obra literria

    como um dado, omo o bvio;

    nunca se pergunta o

    que

    a

    literatura, por

    que

    se escreve,

    por

    que

    se

    l por que escrita e leitura

    variam

    conforme

    as pocas. valor de determinadas

    obras

    tambm

    para essa

    cr t ica

    indiscutivel:

    so grandes autores aqueles que j esto

    reconhecidos

    omo

    ta l

    e

    s

    esto

    reconhecidos os

    mortos).

    A

    segunda crtica,

    que

    surgia

    como

    um

    conjunto

    forte naquele momento, pretendia interpretar as

    obras

    luz de algum dos movimentos de

    idias

    contemporneos:

    existencial ismo,

    marxismo, psica-

    nlise,

    fenomenologia;

    utilizava

    mtodos

    novos

    das

    cincias humanas;

    aceitava o relativisrno his-

    trico

    de qu lquer

    interpretao.

    Que

    a

    crit ica

    universitria resistisse a

    essa

    crtica

    nova era

    muito compreensivel tratava-se de uma questo

    de

    ensino.

    A

    Universidade

    sempre

    resiste ao

    novo,

    defende a

    repetio,

    a

    reproduo de uma ideologia.

    Por outro

    lado,

    ela

    prefere

    a

    erudio

    segura

    experimentao duvidosa, omo um meio de

    garantir o poder da corporao professional pela

    dificuldade

    e pela lentido que a erudio exige.

    Barthes no

    era o

    primeiro

    nem nico

    crt ico

    l

    iterrio francs

    a

    enveredar por

    cam inhos novos.

    Antes dele Bachelard, Blanchot,

    Sartre (e

    at

    mesmo

    Mauron,

    um

    sorbonista

    respeitado) j

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    36/111

    A

    NOVA C R ~ T I C A

    haviam recorrido a

    psicanlise

    para examinar

    a

    literatura.

    E,

    no

    mesmo

    momento em

    que Barthes

    escrevia

    seu inslito Racine outros crticos

    estavam renovando sua

    disciplina luz de outros

    saberes:

    Lucien

    Goldman, socilogo marxista;

    Georges

    Poulet,

    Jean-Pierre

    Richard

    e

    Jean

    Starobinski, que

    analisavam

    os temas das obras,

    detectando

    estruturas

    profundas e lendo-as como

    f

    igu

    ras.

    a

    verdade,

    era imprprio chamar apenas

    a

    velha

    critica

    de universitria ; porque a

    nova

    crtica

    tambm

    era

    obra

    de

    universitrios,

    e as

    escaramuas

    entre

    as duas

    indicavam

    apenas

    duas

    grandes

    correntes no

    ensino da I

    iteratura.

    A

    repercusso

    do

    debate Picard-Barthes

    se devia a um

    sentimento

    e

    mal estar

    no ensino em

    geral,

    mal-estar

    que

    logo faria explodir a

    universidade francesa,

    na

    revoluo de maio de 1968. Nem

    preciso dizer

    que

    o

    conservadorismo dos velhos sorbonistas,

    com relao literatura,

    era tambm

    um

    conser-

    vadorismo pol tico; e que os

    novos

    crticos

    eram,

    em

    geral,

    de

    esquerda

    (um dos

    ataques

    de

    Picard

    a

    Barthes

    consistia

    em

    cham-lo

    de

    o

    progressista

    Barthes ).

    A exploso

    violenta

    de

    maio de

    68

    evidenciaria o

    fato

    de

    as

    crises

    na

    educao serem

    sempre

    sintomas

    de uma doena

    social

    muito mais

    ampla.

    Se, nesse

    mal-estar

    relativo

    ao ensino

    da literatura,

    Barthes foi o precipitador

    involuntrio

    da

    crise,

    isso

    se

    devia

    ao radicalismo tanto

    e

    suas

    posies

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    37/111

    ROL ND

    BART HE S

    crticas quanto de seu

    estilo, que

    mesmo os

    simpa-

    tizantes caracterizavam

    como

    precioso ;

    um

    estilo

    cheio de imagens

    inesperadas, de

    termos tcnicos

    e cientficos. de neologismos criados

    por

    ele.

    O

    radicalismo de suas posies de seu estilo se

    devia

    a

    uma

    nica

    e mesma

    causa:

    Barthes, mais

    do que

    qualquer

    outro

    novo

    crtico .

    misturava

    dois gneros que sempre

    tinham

    sido distintos:

    a

    crtica

    literria

    (linguagem segunda,

    submissa

    linguagem

    primeira da obra) e a criao literria

    (linguagem autnoma, que tem por referncia e

    por

    f im

    ela mesma).

    Picard tinha razo quando

    acusava Barthes

    de

    no ser objetivo ;

    de fato,

    para

    ele

    a obra literria sempre foi u

    pretexto

    para,

    a

    partir dela,

    criar

    uma nova obra. Tal prtica

    realmente

    esc p

    aos

    objetivos didticos

    da

    crit ica

    literria que,

    como qualquer ensino, visa

    a trans-

    misso e

    um

    saber

    e

    no a criao de um novo

    objeto.

    No artigo Ecrivains et crivants ( Escritores

    e escreventes ), de 1960

    Barthes

    j distinguia os

    que escrevem s6

    bre

    alguma

    coisa

    (os

    escreventes )

    daqueles

    que

    escrevem,

    ponto

    final

    (os escritoresf').

    Para os primeiros, a linguagem instrumento,

    para

    os

    segundos

    ela

    meio

    e

    fim; para os primeiros,

    escrever

    falar

    de alguma coisa, para os segundos

    escrever

    um

    verbo

    intransitivoff

    (EC,

    p. 149 ;

    para

    os

    primeiros, interessa

    um

    p rqu (do mundo,

    da

    literatura), para os segundos s interessa o

    como os primeiros buscam respostas

    atravs da

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    38/111

    A

    NOVA C R ~ T I C A ' *

    linguagem,

    os segundos

    formul m

    perguntas

    na

    e

    nguagem.

    Essa

    distino

    barthesiana

    deslocava

    consideravelmente

    a

    questo

    do

    engajamento

    do escritor

    que, desde Sartre, era um

    ponto pacfico

    para os crticos progressistas.

    Barthes

    afirmava

    que o engajamento

    do escritor

    no com o mundo

    ou

    com

    as idias,

    mas com

    a linguagem;

    no trabalho

    de linguagem d o

    escritor,

    o mundo e

    as idias so

    indiretamente

    questionados, deslocados,

    e

    final-

    mente transforrnados

    No f im de Crtica e Verdade

    Barthes

    sai

    para

    for do

    debate

    velha crtica versus

    nova

    crtica .

    No discute mais a propriedade

    de

    novos mtodos

    ou novos vocbulos, mas coloca algo muito mais

    polmico: o

    direito de

    o

    discurso critico ser

    um

    discurso

    artstico

    autnomo,

    que

    nada tem

    a ver

    com qualquer verdade

    mas

    apenas

    com

    a

    validade

    que

    um coerncia interna do

    sistema.

    Trata-se

    de

    afirmar

    que o

    desejo

    do rti o

    no tem

    por

    objeto a

    obra

    analisada,

    mas

    a

    sua

    prpria

    linguagem (CV, p. 79 . a ltima palavra do livro

    a

    palavrachave

    de toda a obra

    barthesiana:

    escritura.

    (Veremos

    isso

    mais

    de

    perto

    no

    c ptulo

    5.

    Quanto

    polmica

    da

    nova

    crtica , hoje, vinte

    anos

    depois, ela

    perdeu qualquer sentido. Ningum

    precisa mais

    defender

    os direitos e

    as

    vantagens

    de

    urna crtica psicanaltica,

    sociolgica,

    temtica ou

    I ngu stica; os termos tcnicos dessas discip inas

    j

    so moeda corrente at

    na imprensa

    de massa.

    Esse

    envel

    hecimento

    d polm

    ca

    demonstra

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    39/111

    ROL ND B A R T H E S

    simplesmente que a Histbria assimilou a nova

    cr t ica

    e

    esta,

    como

    o

    prprio

    Barthes previra,

    seria apenas

    um

    momento

    na histria das linguagens.

    E como

    ele

    detestava acima

    e tudo

    a repetio,

    a

    institucional zao,

    as

    l

    inguagens

    que se coagu Iam

    e

    se estereotipam, seu

    desejo de

    escritor

    f o i

    mudando

    e

    objeto. Se a paixo pela linguagem

    continuou

    viva at o fim, a crtica

    literria

    foi,

    'entretanto,

    deixando

    de

    ser

    um

    objeto

    desejvel para o escritor Barthes.

    Nos ltimos tempos, ele no

    escrevia

    mais cr-

    tica literria .

    Dizia ler

    pouco,

    desordenadamente,

    s

    por prazer, e de preferncia os clssicos. s

    tem s de

    seus cursos passaram a

    ser o amor ,

    a

    vida

    em

    comum ,

    a

    voz ,

    a

    fotografia ,

    o

    tempo

    que

    faz .

    Os

    textos literrios s habitavam

    seu discurso aos

    pedaos,

    sem obedecer a nenhuma

    hierarquia: tanto podia

    ser

    um verso

    de

    Heine, como

    um

    haicai de

    Bash

    ou

    uma frase e algum romance

    fora de moda.

    E

    essas referncias literrias eram

    fragmentos de um texto

    mais

    amplo, que inclu

    ia

    o

    cinema,

    a

    msica.

    as

    publicaes

    de

    massa,

    uma

    cena de rua

    ou

    um conversa de caf.

    Sonhava com escrever um texto romanesco.

    Se

    algum viesse ento fa lar- lhe

    de

    metalinguagem

    ou

    de

    sistema

    de

    signos ,

    ele

    apenas

    sorriria, poli-

    damente.

    Esse

    j era o jargo

    dos

    novos

    Raymond

    Picard, sacramentado em todas

    as universidades

    do

    mundo.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    40/111

    Os

    anos

    6 7 foram

    um

    perodo de

    grande

    produo terica no

    campo das cincias do homem

    Na Frana, enquanto a produo propriamente

    literria comea a

    estagnar,

    a

    ensa stica

    conhecia

    um enorme impulso. A

    ltima

    tentativa

    de

    reno-

    vao literria o novo

    romance tivera

    vida

    breve e

    desembocara

    numa

    cansativa

    repetio

    de

    receitas. O

    interesse do pblico

    leitor voltou-se

    ento para

    estudos

    sobre

    o

    homem,

    a

    sociedade,

    a l

    inguagem.

    s

    mais instigantes

    sugestes

    tericas

    e metodo

    lgicas vindas

    dos pontos

    mais

    diversos, foram

    arrebanhadas pelos parisienses

    e postas

    em

    movimento,

    num

    clima

    animado

    de

    publicaes,

    seminrios

    e

    debates

    pblicos.

    Experimentaram-se,

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    41/111

    R O L A N D

    B A R TH ES

    com

    resu Itados brilhantes, casamentos inesperados

    de

    idias

    e

    mtodos:

    marxismo

    e

    psicanlise,

    lingu

    stica

    e

    antropologia, etnologia e sociologia

    de

    massa

    Depois

    de um gerao

    de

    pensadores humani-

    trios, ticos e polticos, como fora

    dos existen-

    cialistas

    (Sartre,

    Carnus,

    Malraux),

    surgia

    uma

    nova

    gerao no uniforme

    quanto faixa

    etria)

    caracterizada

    por

    um

    saber

    especializado,

    tcnico;

    uma gerao de mestres que no pretendiam ensinar

    a

    pensar

    ou

    a se

    engajar , mas

    a

    decifrar

    signos

    estudar o

    funcionamento de sistemas, desmontar

    discursos, destacando

    rr njos

    formais e estruturas

    subjacentes.

    Era o

    estruturalismo.

    Foram

    promovidos a grandes

    mestres

    do

    estrutu-

    ralismo:

    Lvi-Strauss

    na

    antropologia

    Lacan na

    psicanlise;

    oucault na

    filosofia; Barthes na

    in u

    stica-potica.

    Por

    um fenmeno

    tipicamente

    francs, esses nomes-obras

    foram

    captados

    pela

    imprensa

    de

    massa

    e pela televiso, de modo que

    um

    vasto

    pblico familiarizou-se,

    ento, com o

    jargo

    desses especialistas.

    E

    claro

    que

    havia

    nisso

    uma boa

    dose de esnobismo.

    Pais

    centralizado

    na

    Capital, e

    contando

    com um

    grande

    nlimero

    de

    d iplomados desempregados ou mal empregados,

    s

    a

    Frana

    poderi

    apresentar

    ta l fenmeno de

    demanda

    cultural.

    Os

    rostos

    dos

    mestres tornaram-se familiares

    para

    os

    espectadores

    de

    televiso

    e

    para

    os

    leitores

    dos

    grandes

    hebdomadarios

    franceses. Seus

    sem

    inrios

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    42/111

    se

    transformaram

    em

    acontecimentos

    mundanos,

    em

    shows

    quase

    to

    concorridos

    como

    nossos

    festivais de

    msica popular. O

    sucesso era tamanho

    que

    outras

    estrelas ascendentes tambm comearam

    a oferecer

    shows

    particulares:

    Derrida, Deleuze,

    Kristeva, Todorov,

    Greimas,

    Lyotad, Morin. Um

    amigo

    meu

    chamava

    essa

    lista

    de escapulrio :

    quando

    se

    encontrava, num texto, um desses nomes,

    os

    outros

    se seguiam obrigatoriamente, como as

    contas de

    um

    tero.

    Boa

    parte do pblico desses seminrios era latino-

    americano. Os maus momentos

    por que

    passavam,

    sucessiva ou

    concom itantemente, nossos

    pa ses,

    foravam ou convidavam

    os latino-americanos

    a

    arribar

    para

    outras

    plagas;

    e

    ir

    para

    Paris

    era

    um

    espcie de

    reflexo cultural.

    ambm

    no mesmo

    momento floresciam

    em

    nossos pases os

    cursos

    de psgradu

    ao

    e,

    por necessidade

    profissional

    ou

    por

    fatal

    idade

    histrica,

    os latino-americanos

    das reas human

    sticas iam especial izar-se

    em

    Paris.

    Houve um momento em que esses mestres pari-

    sienses,

    maiores

    ou

    menores, contavam

    e

    comparavam

    o nmero

    de

    seus respectivos BrsiJiens ; era uma

    espcie de teste de

    popularidade. .

    preciso dizer

    que

    o

    que

    se

    discutia n ss s

    semi-

    nrios

    parisienses

    era realmente

    interessante.

    Descobriam-se e exploravam-se, ao mesmo tempo,

    teorias

    o

    comeo do

    sculo e

    outras

    contempo-

    rneas:

    a

    lingstica

    estrutural

    de

    Saussure

    e

    a

    ingu istica

    transf

    ormacional de Chosmky; o forrna-

    42

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    43/111

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    44/111

    Como

    quase todos em

    Paris,

    estavam

    trabalhando

    por uma cincia

    geral

    das

    linguagens,

    desenvolviam-se

    pesquisas

    minuciosas,

    em

    que

    o contraste entre

    o

    aparato conceitual

    e

    metodolgico e a pequenez

    do

    objeto (do corpus ) seria cmico, no

    fosse

    a

    seriedade

    dos estudos. (Lembro-me que tive minha

    primeira dvida sobre esse tipo de trabalho

    quando

    vi

    um grupo

    respeitvel de pesquisadores

    dedicando

    um

    ano

    de

    trabalhos

    intensos

    a

    decodificar,

    sem

    chegar

    a grandes concluses, uma frase de publici-

    dade, relativa a

    uma graxa de

    sapatos E porque

    Barane

    um creme

    que

    ela penetra to

    profun-

    damente o

    couro . Senti

    ento

    um

    certo desnimo

    ao

    pensar

    o

    que

    aconteceria se o corpus fosse

    um

    verso

    de Fernando Pessoa, ou mesmo de

    Casimiro de Abreu.)

    E

    Barthes em tudo isso? Barthes

    era

    o estrutura-

    lista literrio

    mais

    respeitado. O rigor estruturalista

    coincidia

    com um aspecto

    de sua inteligncia

    e

    seu temperamento a habilidade em desmontar

    as linguagens (que

    ele

    j

    demonstrara, empirica-

    mente,

    nas

    Mitologias ,

    o gosto pelas

    frmulas

    e

    classificaes,

    a

    atrao

    pelas

    palavras

    novas

    (as

    novas

    cincias

    exigiam

    a

    criao e o uso

    de

    t rmos espec cos).

    o

    indiferente saber que

    Barthes,

    naquele

    momento,

    ocupava

    um cargo de

    direo na Escola Prtica de Altos

    Estudos,

    e que

    ele levava muito a

    srio

    suas funes administrativas

    e

    didticas.

    Dizem

    que

    nunca

    quele

    setor

    da

    universidade francesa esteve to bem organizado.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    45/111

    R O L A N D B A R T H E S

    Era lado sistemtico e tico de

    sua

    personalidade,

    que

    alguns

    viam como sendo

    seu

    lado

    protestante .

    Em

    1964,

    ele

    se

    sentou, como

    um

    professor

    consciencioso

    e apl

    icado, e redigiu uma apostila

    Elementos de

    Semiologia), onde resumia,

    para

    d

    ivulgao, as teorias de Saussure.

    A

    semiologia

    era a

    cigncia

    geral

    dos

    signos , que o

    grande

    lingista genebrino

    deixara

    esboada,

    e

    que os

    franceses tentavam

    agora

    sistematizar e

    levar adiante.

    Esse

    trabalhinho

    de

    Barthes,

    ditado

    pelo

    zelo

    didtico, talvez

    tenha

    sido o que mais prejudicou

    o julgamento

    de sua

    obra, provocando

    um

    engano

    que

    prossegue

    at hoje,

    em certos

    meios. Porque

    esse trabalho necessrio,

    til naquele momento

    em que poucos

    conheciam

    Saussure, modesto porque

    era

    mera

    compilao didtica

    permitiu

    aquilo

    que os apressados

    mais desejam:

    colocar

    uma

    etiqueta nas pessoas inclassificvel

    Barthes

    ficou

    sendo

    ento,

    para alguns,

    o sernilogo ;

    o

    que

    permitiu

    que

    lhe

    imputassem, depois,

    todas

    as

    limi-

    taes, os usos

    e

    abusos

    da

    semiologia francesa .

    Com

    o

    mesmo zelo

    didtico,

    ele

    aceitou

    f zer

    um

    balano

    da

    anlise

    estrutural

    da

    narrativa ,

    no

    h str

    ico n 8 da revista Communications. Tarefa

    difcil, pois

    consistia em d r um3 certa unificao

    a pesquis s diversas e por vezes

    contraditrias,

    algumas promissoras, outras j mortas

    de

    nascena;

    e de faz-lo

    sem pretender

    orientar essas pesquisas,

    e sobretudo

    sem

    ferir

    suscetibilidades.

    ambm na

    mesma

    poca

    ele resolveu levar

    a

    cabo

    aquilo

    que

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    46/111

    seri

    sua

    tese de doutoramento um estudo

    semiolgico o discurso

    sobre

    a moda,

    nas

    revistas

    femininas.

    Acabou

    desistindo da

    tese,

    e

    publicou

    o estudo como livro : Systeme

    de

    la

    mode

    Sistema

    d

    moda .

    Essa defesa e ilustrao do

    estruturalismo

    e da

    semialogia, a que Barthes dedicou

    in o ou

    seis

    nos

    de

    sua vida, geraram o mal-entendido de

    que

    falei acima. Todos viram que

    l podia

    ser

    sistemtico, minucioso,

    formal

    izante. Poucos

    viram

    que

    essa era apenas uma faceta de Barthes, e no

    a predominante. A predominante, que obras anterio-

    res

    e posteriores demonstram, era a do indixiplinado-

    indisciplinador, do ldico

    para

    quem as palavras

    (mesmo as da cincia) eram objetos de prazer

    sensual,

    do

    ctico

    diante

    de

    sistemas

    total

    izantes

    e totalitrios.

    Se

    examinarmos hoje seus textos estruturalistas ,

    veremos que

    a

    subverso j est

    a

    inscrita. No

    artigo

    A

    atividade

    estruturalista

    1963),

    epois

    de

    exaltar

    o aspecto ldico

    do

    estruturalismo (seu carter

    de bricolage),

    ele

    termina anunciando o fim

    do

    movimento,

    qu

    a

    Histria

    superaria,

    como

    supera

    qualquer

    linguagem.

    Na

    Introduo anlise

    estrutural das narrativas 1966), ele insiste no

    provisrio das concluses.

    assinala

    o carter

    exclusivamente

    didtico

    de sua

    exposio,

    e

    sugere, numa nota,

    tu o

    o

    qu no

    diz a de

    suas

    dvidas: Tive

    a

    preocupao, nesta Introduo, de

    atrapalhar o menos possvel

    as

    pesquisas em curso .

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    47/111

    ROLAND B A R T H E S

    Tambem

    contrariamente aos

    estrutural

    istas I

    ite-

    rrios

    ortodoxos,

    Barthes

    nunca

    se deteve na

    descrio

    das

    formas por elas

    mesmas, mas

    sempre

    insistiu no valor critico que podia ter a atividade

    estruturalista: desvendar

    o

    intel igvel , buscar

    o

    modo e produo dos sentidos. Convencido

    de que

    a ideologia se cristaliza

    em

    formas,

    conti-

    nuava

    acreditando

    que anal

    isar

    o

    agenciamento

    dessas formas era um meio

    de

    desnudar idias,

    aval ia r suas funes, critic-las, derrub-las.

    Barthes tambm nunca esqueceu a Histria, como

    alguns estruturalistas:

    o

    que lhe interessava no

    era a permanncia captvel em gr ndes modelos

    mas

    as

    sucessivas transformaes

    das

    l

    inguagens.

    Mas

    o

    estruturalismo

    e

    a

    semiologia,

    omo

    modis-

    mos irnperantes

    naqueles anos, aplastavam

    as

    particularidades de

    Barthes.

    E o

    mal-entendido

    permitiu

    que

    numerosos

    pesquisadores universi-

    trios

    de vrias

    partes do

    mundo acorressem a

    seus seminrios em

    busca

    de uma cincia

    dos

    signos ou

    de um

    cincia da literatura de que

    ele seria

    o

    patrono.

    Como

    um Macunama francs,

    Barthes considerou ento

    toda

    a parafernl a

    estruturalista

    e

    semiolgica

    que ajudara a montar,

    e declarou: Ai, que preguia. . .

    Dez anos mais tarde, ele explicitaria

    suas

    razes

    de

    abandonar o projeto cient i f ico

    da

    semiologia.

    A cincia, segundo ele

    di fric (termo de

    Nietzsche),

    isto

    ,

    indiferente

    com

    relao

    a

    seu

    objeto. Ele havia pleiteado

    uma

    cincia semiolgica;

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    48/111

    ela

    veio

    e era

    triste:

    A

    cincia

    semiolgica

    no

    evoluiu

    bem:

    muitas vezes ela no era mais

    do

    que

    um murmrio de trabalhos indiferentes, que indife-

    renciavam

    o

    objeto,

    o

    texto,

    o

    corpo ( R B I R B ,

    p.

    163 . O

    corpus ,

    n s anlises

    semiolgicas,

    era

    apenas

    um

    imaginrio

    cientfico

    e

    no,

    como

    ele

    desejaria,

    um

    objeto com o qual o pesquisador

    mantivesse

    um

    relao

    amorosa .

    Do

    projeto

    cientfico restou-lhe

    ento

    apenas uma

    utopia:

    de

    uma cincia das diferenas ,

    que

    s poderia

    ser um saber, e

    no uma

    cincia no sentido corrente

    do termo.

    Ao assumir,

    em 77,

    a Cadeira de

    Semiologia

    Literria

    no

    Colgio

    de Frana, sua definio

    dessa

    disciplina 6

    to

    pessoal,

    que nada

    mais

    t m

    a

    ver

    om

    aquela que se busc e j se impe como

    cincia

    positiva dos

    signos

    e

    que

    se desenvolve em

    revistas,

    associaes, universidades e

    centros

    de

    estudos LI, p. 21) . E

    uma

    semiologia

    neg tiv

    (porque

    ela

    nega a estabilidade cientfica de seu

    objeto, o signo) e

    tiv (porque ela brinca com os

    signos,

    saboreia-os

    como

    fices)

    Esvanecera-se

    o

    pretexto

    semiolgico

    em proveito do texto

    do

    escritor.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    49/111

    C PITULO

    ESCRITUR

    E PR ZER

    Em

    197 Barthes

    subverte, na prtica,

    o

    estrutu-

    ralismo.

    Sua

    anlise

    de Sarrasine,

    novela de

    Balzac,

    desenvolvida

    num

    curso

    e

    publicada depois

    em

    livro S/Z ) , retoma

    aparentemente

    a velha expli-

    cao de texto , prtica tradicional no ensino da

    l iteratura:

    ele percorre o texto passo a passo, frase

    a

    frase,

    palavra

    por

    palavra. as

    o recorte

    que

    ele

    vai

    dando ao

    texto,

    e

    as formas

    que

    sua

    leitura

    vai

    de1

    ineando

    constituem uma

    pratica nova da critica

    literria. Essas

    formas

    no so estruturas achadas

    no

    texto,

    mas invent d s

    em

    cima

    dele. Esse duplo

    aspecto

    de

    S/Z uma pretensa volta ao

    passado

    da

    crit ica,

    e um

    avano

    em direo

    a

    algo to novo

    que destri o prprio conceito e crtica ope

    sua

    anlise

    ao estruturalismo reinante.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    50/111

    E S C R I T U R A P R A Z E R

    O que antiestruturalista em S/Z, precisamente

    a

    estruturao. Como

    ele

    explicou

    numa

    entrevista,

    sua inteno era

    ultrapassar

    o estatismo

    da

    semio-

    Iogia,

    que

    pretendia encontrar estruturas-produtos

    e

    buscar outra coisa: a produtividade do texto.

    A

    produtividade

    do texto

    literrio

    sua

    capacidade

    de

    produzir sentidos

    mltiplos e renovveis, que

    mudam de leitura a leitura. Ler no seria, ento,

    aplicar

    modelos

    prvios,

    mas

    criar

    formas

    nicas,

    que so

    form s virtuais do

    texto

    ativadas

    pela

    imaginao do leitor (GV, p. 80 .

    Reagindo contra a indiferena d

    semiologia

    com

    relao a seus objetos,

    ele

    reivindica a diferena:

    Cada texto nico em sua diferena .

    Cada

    leitura

    t mbm

    unica em sua diferena:

    No

    creio

    no desejo

    que meu trabalho tenha o valor

    de um

    modelo cientfico

    suscetvel

    de ser aplicado a outros

    textos .

    Ligada a essa reivindicao de

    liberd de crftica,

    su rge a reivindicao

    do

    prazer, plenamente

    ssum

    id

    no

    livro que ele escreve

    ento

    sobre

    o

    Japo:

    L Em pire

    des

    signes

    O

    mprio

    dos

    Signos .

    Sob

    um t i tu lo que parecia prometer uma

    leitura

    semiol-

    gica do Japo

    (do

    espao urbano, das

    prticas

    sociais

    e

    art

    sticas dos

    japoneses),

    desvendado

    como

    sistema

    de signos,

    o que

    ele f z u texto de

    puro

    prazer

    pessoal. Renunciando voluntariamente a qualquer

    pretenso um

    leitura

    sistemtica, baseada

    em

    verdades

    ingu

    sticas,

    histricas ou

    sociolgicas,

    Barthes

    inventa

    seu

    prprio Japo;

    um Japo

    dese-

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    51/111

    ROLAND

    B A R T H E S

    jado sonhado, saboreado, transformado em texto

    nico, texto barthesiano o mais prazeiroso

    e

    deslumbrante

    de sua obra.

    Essas subverses no

    foram imediatamente

    perce-

    bidas pelos disc (pulos semiolgicos. Foi preciso que,

    em

    1973 Barthes publicasse e plaisir du texte

    O

    razer do tex to ,

    para

    que

    a explicitao terica

    de

    seu

    abandono

    semiologia

    pusesse

    em

    pnico

    aqueles

    que

    pretendiam

    abrigar-se

    sombra

    d

    cincia

    barthesiana.

    No Prazer o texto,

    Barthes assume

    o

    individual

    contra o

    univesal

    do

    modelo

    estruturalista,

    o

    corpo contra o conceito o prazer contra a seriedade

    acadmica, o ditetantismo

    contra o cientif

    icismo.

    Distingue

    o

    prazer

    do

    gozo, ligando

    o

    primeiro

    aos

    textos

    literrios

    clssicos,

    e

    o segundo

    aos

    textos

    radicais

    da modernidade; os

    primeiros

    seriam legveis

    recept

    veis

    e interpretveis segundo cdigos estveis

    e conhecidos),

    os

    segun os escrip tveis, isto ,

    suscitadores

    de

    uma

    outra

    escritura.

    Dependendo

    da leitura, certos

    textos

    antigos podem encaixar-

    se na

    segunda

    categoria.

    Prazer

    o

    texto

    desagradou

    a

    muitos,

    atraindo

    protestos de c mpos diversos e mesmo

    politicamente

    opostos.

    Os marxistas

    acusaram

    Barthes de

    ser um

    aristocrata, um individualista, um alienado;

    os estru-

    turalistas e serni6Iogos cobraram dele a

    ausncia

    de rigor

    cientfico, o

    abandono

    do

    mtodo.

    Firmou-se ento em opinio

    o

    que antes era

    suspeita:

    no se

    podia

    confiar

    em Barthes,

    no

    se

    5

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    52/111

    E S C R I T U R A

    E

    P R A Z E R

    podia

    ser

    barthesiano,

    porque ele no parava

    nunca

    no

    mesmo

    lugar.

    Para

    escndalo

    dos

    que exigem

    do

    intelectual

    seno uma estabilidade

    ideolgica

    pelo

    menos

    uma evoluo coerente

    e lgica (justifi-

    cada), verificou-se que Barthes se

    desloc v

    com

    um +vontade despudorado. Ora, o deslocamento

    barthesiano

    era uma

    ttica extremamente coerente

    com suas convices fundamentais essas

    perma-

    nentes.

    Barthes

    no

    acreditava

    em

    nenhuma

    posio

    de verdade ;

    pelo

    contrrio, achava

    que qualquer

    posio

    que se

    instala, que

    toma

    consistncia

    e

    se repete, torna-se uma posio ideolgica no

    mau sentido: urna

    posio

    que pode ser

    facilmente

    recuperada

    e

    utilizada

    pelo sistema dominante,

    para

    manter-se

    ele

    mesmo

    imutvel.

    Considerando

    sempre

    como

    sua

    inimiga

    n?

    1

    a

    Doxa

    ou Opinio

    dominante

    (conceito colhido

    em

    Brecht ,

    seu

    campo

    s

    podia

    ser o

    do

    paradoxo.

    como a oxa est

    sempre

    recuperando qualquer

    posio

    paradoxal,

    era preciso sempre deslocar-se

    para continuar exercendo a

    funo que,

    segundo

    ele, era a do escritor: uma

    funo

    crtica

    e

    utpica

    Assim,

    a semiologia tinha

    sido para ele,

    num

    determinado

    momento,

    u

    rn

    instrumento de

    critica

    da

    Doxa; mas no momento

    em

    que a semiologia

    j

    tinha virado

    moda, repetio

    de

    receitas, boa

    conscincia

    cient

    {fica ,

    garantia

    de

    saber univer-

    sitrio,

    e

    ele

    mesmo corria o risco de ser fixado

    como

    modelo

    de

    mestre

    a

    imitar,

    seu

    impulso

    e

    sua

    conscincia o levaram a

    cair fora

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    53/111

    ROLAND BARTHES

    Barthes no

    era

    pois

    imitavel, fihvel. Todo o

    debate

    sobre

    seu

    direito

    ou

    no de

    ser

    to

    individual,

    to

    pouco cient

    (fico

    ou to

    pouco

    militante,

    cessaria

    imediatamente se se reconhecesse o bvio: Barthes

    no era

    um pensador, era u escritor.

    Seu

    nico

    valor

    estvel

    era

    a

    escritura. E o

    que

    afinal,

    a

    escritura? A

    escritura

    a escrita do escritor. Isso

    pode parecer u n trusrno,

    mas

    se

    nos reportarmos

    d

    ist

    no

    escrevncia/escritura

    veremos

    qu

    no

    o . A escritura aquela linguagem

    nica, indireta,

    auto-referencial e

    au

    tosuf iciente que caracteriza

    o

    tex to potico moderno.

    De seu

    primeiro

    a seu

    ltimo

    texto,

    era a escritura

    que

    Barthes perseguia, na prtica e

    na teoria:

    uma

    teoria que,

    parecendo pretender conceituar a

    escri-

    tura,

    era ela

    mesma

    u m

    discurso

    escritural.

    A

    escri-

    tura

    isto:

    a

    cincia

    dos gozos

    da

    linguagem,

    s u

    Kamasutra

    (dessa cincia, h um

    tratado:

    a prpria

    escritura) PT,

    p. 14).

    Apesar

    W M r t o s deslocamentos que

    se

    efetuaram,

    na obra de Barthes, com refernca conceituao

    da escritura, os traos fundamentais dessa prtica

    se

    mantiveram

    estveis.

    A

    escritura

    no

    se

    confunde

    com

    o estilo.

    O

    estilo

    um

    conceito clssico, baseado

    na distino entre forma e fundo e na idia tradi-

    cional de

    que

    o pensamento precede linguagem:

    o estilo e uma forma elegante, esttica,

    de

    revestir

    u m conteiido. Um bom estilista aquele que

    escreve

    bem ,

    qu

    comunica

    om habil dade

    e

    com

    graa

    suas

    idias.

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    54/111

    ESC R ITU R A E P R A Z E R

    Ora, a escritura no expresso. uma linguagem

    enviezada

    que, pretextando

    falar

    do

    mundo,

    remete

    para

    s i

    mesma

    como

    referente e

    como forma

    particular de refratar o mundo. A escritura

    questiona

    o mundo, nunca oferece respostas; libera a signifi-

    cao,

    mas no

    fixa

    sentidos. Nela, o

    sujeito

    que

    fala no preexistente e

    pr-pensante,

    no

    est

    centrado

    num

    lugar seguro

    de

    enunciao, mas

    produz-se,

    o

    prprio

    texto,

    em

    instncias

    sempre

    provisrias.

    A

    escritura

    u mo o e

    dizer

    as

    coisas.

    uma

    enu

    nciao,

    uma voz .

    sse

    modo de dizer

    provm

    do

    mais ntimo e nico de

    cada

    escritor:

    de seu corpo de seu inconsciente, de sua histria

    pessoal;

    o termo de uma metamorfose cega

    e

    obstinada,

    partida

    de

    uma

    infralinguagem

    que

    se

    elabora no limite da

    carne

    e o mundo

    ( D Z ,

    p. 12 .

    Na escritura

    no temos

    idias ou, pensamentos;

    temos idias-palavras, pensamento4 ras onde

    a forma

    no

    exprime m s

    faz

    o contedo. A

    escritura, diferentemente

    do estilo, no se

    presta

    anlise tpica.

    Podemos

    mostrar

    as

    tcnicas

    que

    fazem

    um

    bom

    estilo

    m s no

    podemos

    isolar

    aquilo

    que

    transforma um

    bom

    estilo

    em

    escritura.

    Porque a escritura

    uma

    rajada forte

    de

    enuncia-

    o .

    m texto

    escritura1 quando

    nele ouvimos

    a voz

    nica

    e

    um corpo,

    e a

    recebemos

    como um

    gozo:

    e

    o gozo

    inanalisvel,

    irrecupervel

    por

    qualquer metalinguagem. Ele

    sentido

    como

  • 7/25/2019 Leyla Perrone-Moiss. Roland Barthes: o saber com sabor

    55/111

    R O L N D B R T H E S

    A escritura

    question