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Copyright © 2009 Gajop

Equipe Atual Projeto Justiça Cidadã

Alessandra de Lima e Silva

Aryanne Mariza Ribeiro de Vasconcelos

Ana Lúcia dos Santos Silva

Eloisa de Sousa Pessoa

Flávia Valença de Santa Cruz

Hermínia Martins

Julia Loonis Oliveira

Luís Felipe Andrade Barbosa

Mona Mirella Marques Meira

Marilene Gomes Cordeiro da Costa

Márcia Rosas Leite Pereira

Rômulo Silva Lopes Júnior

Socorro Alves da Silva

Nélia Bandeira Coutinho

Estagiários

Carolina Araújo Santos

Felipe Fonseca

Francisco Mateus Carvalho Vidal

Rhemo Antonio Guedes Silva

Vaneska Natazcha Fonseca Madureira

Equipe de Acompanhamento/Coordenação

Valdênia Brito Monteiro

Coordenação Colegiada

Jayme Benvenuto

Célia Rique

Programação visual

Clara Negreiros

Revisão Editorial

Juliana Cuentro

Revisão de texto

Maria Albuquerque

Fotografias

Capa

Roberto Burgos S.

Rodolfo Clix

Marja Flick-Buijs

Zanetta Hardy

Liz Fagoli

Páginas

Roberto Burgos S. | p19

Andy Stafiniak | p30

Adam Davis | p37

Liz Fagoli | p46

Luca Baroncini | p56

Rodolfo Clix | p60

Konrad Baranski | p66

Mateusz Stachowski | p74

Bazil Raubach | p83

Michael Monita | p91

O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Popu-lares (Gajop) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, criada em 1981, no Recife, Pernambuco, Brasil. Tem como missão institucional contribuir para a democratização e o fortalecimento da Sociedade e do Es-tado na perspectiva da vivência da cidadania plena.

Rua do Sossego 432 Boa Vista | Recife-PE | Fone [81] 3092-5252 | [email protected] | www.gajop.org.br.

É permitida a reprodução, desde que obrigatoriamente cita-da a fonte. Reproduções para fins comerciais são rigorosamen-te proibidas.

Parceria: Prefeitura Cidade do Recife/Secretaria de As-suntos Jurídicos

J96 Justiça Cidadã: uma experiência de me-diação de conflitos em direitos huma-nos/ Valdênia Brito Monteiro (organi-zadora); ._ Recife, Editora, 2009.

1. Projeto Justiça Cidadã. 2. Direitos humanos. 3. Mediação familiar − Pernambuco. 4. Violência contra as mulheres

CDU − 347.471.8

CDD − 361.7

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3

Sumário

Apresentação ...............................4

História Justiça Cidadã ...................5

Mediação de conflito: contribuição para a cultura de direitos humanos − Valdênia Brito Monteiro .....................9

Sistematização de experiências como parte constitutiva de projetos sociais: o caso do Justiça Cidadã − Mariângela Ribeiro de Almeida .......... 30

À sombra do Poder Judiciário: mediação de conflitos no bairro do Ibura − Júlia Loonis Oliveira....................... 37

A paternidade no contexto da ruptura conjugal de famílias pobres − Etiane Oliveira ............................. 46

O Projeto Justiça Cidadã e a perspectiva do acesso à justiça − Luís Felipe Andrade Barbosa .............. 56

As cortinas e a lentidão judicial − Eunari Galvão .............................. 60

A contribuição da psicologia e suas nu-ances na mediação de conflitos − Alessandra Lima ............................ 66

Violência doméstica contra mulher: “Em briga de marido e mulher, alguém tem que meter a colher” − Mona Mirella Marques Meira ............ 74

Atendimento Coletivo: exercício de ci-dadania e dimensão comunitária do Pro-jeto Justiça Cidadã − Hermínia Martins ...................... 83

Nas entrelinhas da pensão alimentícia: (re) conhecimento das organizações familiares a partir da experiência do Justiça Cidadã − Ana Lúcia dos Santos Silva, Márcia Rosas, Vaneska Natazcha Fonseca Madureira ..... 91

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4

Apresentação

A modernidade, na medida em que avan-ça, parece instaurar uma temporalidade marcada por mudanças aceleradas e sen-timentos de transitoriedade. Tudo faz pa-recer passageiro. A memória é permuta-da pelo esquecimento das coisas e das relações pessoais, com aparência de des-cartável. A atmosfera existente é de al-terações na dinâmica da realidade. Em minutos, tudo acontece e tudo parece superado. Outros ritmos, muitas altera-ções, mas não podemos negá-la (a mo-dernidade) só por suas contradições. Po-demos vê-la como uma possibilidade. É necessário por magias e encantamen-tos. É preciso ir para frente, buscando novo caminhar, desbravando o mundo e intercambiando experiências, palpites, aconselhamento..., só assim emerge a memória.

As experiências de projetos pessoais ou coletivos são a matéria viva para não dei-xar a memória de uma sociedade morrer. Nesse sentido, esta revista tem a preten-são de apresentar a experiência do Pro-

jeto Justiça Cidadã, trazendo uma série de fragmentos escritos pelos profissio-nais que compõem o programa, apre-sentando sua prática nesses sete anos de existência.

A sistematização do projeto contribui não somente para sua memória, como tam-bém para a adequação de suas ações. A Formação, a Sistematização e a Memória representam o tripé que orienta a pro-posta pedagógica do projeto, objetivando dar visibilidade, legitimidade e responsa-bilidade política às suas ações.

Diante de um desafio imenso de rea-lizar uma parceria entre a sociedade ci-vil e o poder público local − Prefeitu-ra da Cidade do Recife − na construção de uma política pública, é com satisfação que o Gajop disponibiliza a reflexão da prática interdisciplinar do Justiça Cida-dã, chamando todos a mergulhar na me-mória do projeto.

Valdênia Brito Monteiro

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55

História do Justiça Cidadã

Criado em 2002 como uma iniciativa

da Prefeitura do Recife em parceria

com o Gajop, o Projeto Justiça Cida-

dã busca favorecer o exercício da ci-

dadania (individual e coletiva) através

de ações de educação em direitos

que garantam às pessoas em situa-

ção de risco e vulnerabilidade social

oportunidades de acesso ao direito e

à justiça.

O projeto foi inicialmente criado co-mo uma Assistência Jurídica gratui-ta aos cidadãos. Buscando melhorar a qualidade do serviço que já era ofere-cido pela Prefeitura nos anos anterio-res, assim como facilitar o acesso da população a tal. Núcleos foram cria-dos de forma descentralizada e com um novo enfoque: priorizar a defesa e garantia dos direitos humanos e a pre-venção da violência. Nesse primeiro momento, o papel do Gajop era rea-lizar o acompanhamento sistemático das ações de assistência judiciária dos núcleos descentralizados, bem como do processo de capacitação e geren-ciamento dos técnicos.

Desde o início, o Gajop determinava que o projeto deveria ter como ob-

jetivo o fortalecimento do exercício da cidadania a partir da educação em direitos. Assim, ao longo dos anos, a prática cotidiana permitiu o amadu-recimento de um entendimento e de uma metodologia próprios, esta base-ada na mediação de conflitos pautada nos princípios norteadores dos direi-tos humanos, fomentando o diálogo e a liberdade das partes em solucionar seus conflitos.

Realizando exclusivamente atendi-mentos individuais, nos dois primei-ros anos (2002 e 2003), a demanda superou as expectativas numéricas, sendo necessária a adoção de estraté-gias para garantir a qualidade. A par-tir de 2004, mudanças foram feitas na forma de abordagem da popula-

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66

ção atendida pelos núcleos, sendo im-plantado também o “Atendimento Co-letivo”, com o intuito de favorecer um espaço de difusão, discussão de direitos e cidadania. Também se modificou o foco de atuação do Projeto, limitando-se, a partir de 2005, os atendimentos para casos na área do Direito de Famí-lia. Hoje, os técnicos do Justiça Cidadã atendem, em sua grande maioria, ca-sos de Pensão Alimentícia, por media-ção, ou Ações de Alimentos no Poder Judiciário.

Seguindo os pilares de sua proposta po-lítico-pedagógica − Formação, Sistema-tização e Memória −, o Projeto Justi-ça Cidadã tem investido na formação continuada da equipe técnica, na siste-matização de sua prática e no aprimo-ramento do banco de dados, com vis-tas à construção de sua memória, bem como objetivando dar visibilidade, legi-

timidade e responsabilidade política às suas ações.

Nos quatro primeiros anos de funciona-mento (2002 a 2005), realizaram-se mais de 15.000 atendimentos em cinco núcle-os descentralizados. A partir de 2006, a configuração do projeto mudou: passou a funcionar em três núcleos, e, sobretudo, estabeleceu-se um monitoramento siste-mático das ações do projeto, permitindo assim maior clareza no número e tipo de atendimentos efetuados, assim como o perfil da população atendida.

Desde 2006, mais de 6.000 pessoas fo-ram atendidas pela primeira vez por meio do Projeto Justiça Cidadã, cons-tatando-se, dessa forma, a confiança da população no projeto. Funciona em três Núcleos Descentralizados de Assistência Judiciária (situados nos bairros Caxangá, Ibura e Pina).

Com o objetivo de contribuir na promoção do acesso à justiça e da prevenção à violência,

o Projeto Justiça Cidadã realiza as seguintes ações:

Atendimento Coletivo (Roda de diálogo sobre direitos)

Atendimento individual de orientação jurídica

Mediação de conflitos (para casos de pensão alimentícia)

Intervenção judicial (para descumprimento de acordos e casos em-

blemáticos que não são mediáveis, como violência doméstica)

Acompanhamento dos processos distribuídos

Reuniões com entidades comunitárias para articulação, divulgação do projeto

e palestras sobre direitos.

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Em 2008, o número de pessoas que pro-curaram pela primeira vez um dos núcle-os do projeto foi de 1.298, em busca de resolver algum problema judicial. Além dessas, também compareceram aos nú-cleos, após serem convidadas para o pro-cesso de mediação, 416 pessoas, soman-do um total de 1.714 pessoas atendidas. Entre 2006 e 2008, uma média de 2.000 pessoas por ano receberam atendimento nos núcleos do Projeto Justiça Cidadã.

O Projeto Justiça Cidadã absorve mais de 70% da demanda dos solicitantes. Os ou-tros 29%, por buscarem resolução de con-flitos jurídicos que não os classificados na questão de alimentos, são encaminhados de forma cuidadosa a órgãos competentes.

Com essas ações, busca-se construir uma metodologia de educação em DDHH com foco no acesso ao direito e à justiça, considerando as desigualdades sociais es-truturadas pela estratificação de renda e riqueza, de gênero, de raça e de geração.

1560

518

0

500

1000

1500

2000

Solicitado

Solicitante

200820072006

1854

1298

760

416

Pessoas Atendidas | Atendimento Inicial

Figura 1 – Gráfico representativo do atendimento inicial às pessoas | Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

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88

21%

0

25

50

75

100

Outros Assuntos

Direito de Família

71%

Demanda por Tema Jurídico

Figura 2 – Gráfico representativo da demanda por tema jurídico | Fonte: Gajop/ Justiça Cidadã

Aos atendimentos iniciais, somam-se os atendimentos de retorno (Figura 3), ou seja, atendimento a pessoas que já par-ticiparam do processo de mediação, ou deram entrada em uma ação judicial de alimentos, e voltam a procurar os núcle-os, seja para orientações jurídicas, entre-ga de documentos e outras burocracias, seja por motivo de descumprimento ou revisão dos acordos resultantes de mediação.

Embora o Projeto não tenha condições estruturais de acompanhar ou desenvol-ver o acordo firmado, a equipe solicita aos envolvidos que, em caso de descum-primento, retorne ao núcleo para reali-zar um novo acordo ou mesmo propor ação judicial.

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99

Observa-se que o número de atendimen-tos de retorno quase dobrou em 2008 em comparação com os dois anos anteriores. Esse crescimento demonstra a confian-ça depositada pela população no trabalho dos núcleos (detalhe na Figura 4).

Outro dado importante que demonstra o sucesso do trabalho com Mediação é o baixo índice de descumprimento. Con-forme se observa na Figura 4, o descum-primento do acordo, em 2008, ano de maior número de mediações realizadas, teve o menor índice nos atendimentos de retorno. Também, é possível constatar o movimento de afirmação dos núcleos co-mo referência para orientação jurídica na comunidade:

0

750

1500

2250

3000

200820072006

Atendimento de Retorno

Figura 3 – Gráfico representativo dos atendimentos de retorno | Fonte: Gajop/ Justiça Cidadã

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1010

0

50

100

150

200

250

DEZNOVOUTSETAGOJULJUNMAIABRMARFEVJAN

Entrega de Documentose outras Burocracias

OrientaçãoJurídica

DescumprimentoAcordo

Retorno por Demanda

Figura 4 – Gráfico representativo do retorno por demanda | Fonte: Gajop/ Justiça Cidadã

A adesão à ferramenta Mediação como um meio eficaz de resolução de confli-tos tem crescido ano a ano, conforme a Figura 5:

0

100

200

300

400

500

600

700

800

200820072006

358

526

693

Mediações realizadas

Figura 5 – Gráfico representativo do número de mediações realizadas | Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

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1111

Além disso, considerando que os direitos adquiridos mediante tantas lutas, tal co-mo Direito a Alimentos, devam ser res-peitados, o Projeto Justiça Cidadã enca-minha ao Poder Judiciário aqueles casos em que os acordos são desrespeitados.

O Projeto Justiça Cidadã compreende

a Mediação Familiar como um meio de

resolução de conflitos, mas não o único

ou o mais importante. Assim, considera-

se que nem todos os casos são

mediáveis. O que chamamos de Casos

Emblemáticos por dizerem respeito a

complexas violações de direitos, por

exemplo, Violência Doméstica, são

trabalhados no Poder Judiciário.

O aumento do número de mediações re-alizadas, apesar da estabilidade da deman-da inicial, explica-se pelo número cada vez maior de mediações de descumpri-mento ou revisão em razão do trabalho de acompanhamento contínuo dos acor-dos efetuados nos anos anteriores, que se acumulam no decorrer do tempo.

Esse aumento demonstra a confiança da população no processo de mediação pa-ra assegurar o cumprimento dos acordos estabelecidos.

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1212

0

15

30

45

60

75

90

105

120

200820072006

54

73

98

Ações Propostas

Figura 6 – Gráfico representativo das ações propostas | Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

O aumento considerável de distribuição de ações no Poder Judiciário é explica-do, sobretudo, pelo número alarman-te de casos de Violência Doméstica diagnosticados no Núcleo do Ibura. Nes-se sentido, destacamos a parceria realiza-da com o Centro de Referência Clarice Lispector, unidade da Prefeitura do Re-cife que atende mulheres em situação de violência doméstica e sexista, e risco de morte, para quem se encaminham esses casos ao mesmo tempo em que se reali-za a ação.

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1313

Tramitando

Concluso

Parado (há 1 ou mais anos)

Parado (há 2 ou 3 anos)

Parado (há mais de 3 anos)

1%5%

66%

17%

11%

Andamento de Processos 2008

Figura 7 – Gráfico representativo do andamento de processos | Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

A porcentagem acima apresentada refle-te um Poder Judiciário lento, visto que 17% dos processos em andamento estão “parados” há, no mínimo, um ano. Ain-da vale ressaltar que, embora 66% dos processos estejam “tramitando”, aproxi-madamente 50% deles foram instaura-dos há mais de quatro anos (entre 2001 e 2004).

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1414

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

1%7%

16%

25%5%

12%

14%

20%

Processos em Tramitação por Ano de Instauração

Figura 8 – Gráfico representativo de processos em tramitação por ano em que foi instaurado Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

Com relação ao tipo de ação, os 431 re-ferem-se a processos na área cível, espe-cificamente na área Direito de Família, conforme o seguinte gráfico:

0 10% 20% 30% 40% 50%

Outras Ações Cíveis

Rec./DissoluçãoUnião Estável

Separação de Corpos

Retificação de Registro

Alvará

Divórcio Consensual

Divórcio Litigioso

Inv. Paternidade

Execução de Alimentos

Alimentos 43%

12%

8%

8%

7%

3%

3%

4%

11%

2%

Ações Distribuíodas por Tipo

Figura 9 – Gráfico representativo de ações distribuídas por tipo | Fonte: Gajop/ Justiça Cidadã

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1515

No decorrer do trabalho do Projeto Justiça

Cidadã, foram mulheres que mais procuraram

seus serviços. Esse dado explica o recorte

em alimentos, definido a partir de 2004; isto

é, mesmo quando os núcleos realizavam um

trabalho jurídico mais amplo, distribuindo

as mais diversas ações no campo cível, a

busca de mulheres por pensão alimentícia

representava a maior demanda. O ano de 2003,

que se destaca com uma demanda masculina

relativamente mais alta (26%), foi decisivo

para a definição do recorte em alimentos

posteriormente.

Como se pode observar, 42% das ações referem-se a alimentos, o que signifi-ca um pedido de pensão alimentícia (na grande maioria dos casos, para um ou mais filhos), e, nesse sentido, artigo de primeira necessidade para mulheres que residem na periferia do Recife.

Perfil das pessoas que procuram o Projeto Justiça Cidadã

Observando a média das informações ob-tidas nos relatórios mensais sobre aten-dimentos em seus cinco anos de existên-cia, o perfil mais frequente das pessoas usuárias é o da mulher de 30 anos, sol-teira, 1.º grau incompleto e com dois filhos.

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1616

Assim, embora o Projeto Justiça Cidadã não tenha sido criado como uma ação voltada para o público feminino, passou a trabalhar constantemente com ques-tões de gênero, tendo a necessidade de se capacitar cada vez mais nos assuntos referentes a desigualdades de gênero.

74%

26%

90%

10%

18%14% 15%

10%

0

20

40

60

80

100

Feminino

Masculino

200820072006200520042003

82% 85%86%90%

Sexo

Figura 10 – Gráfico representativo, por gênero, de pessoas que procuram atendimento nos núcleos Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

4%

4%

1%1%

10%

4%2%

49%

0 20% 40% 60% 80%

Média2003-2007

Ano 2008

Até 18

18-21

22-35

36-49

50-60

Acima de 61

9%

29%21%

66%

Faixa Etária

Figura 11 – Gráfico representativo, por faixa etária, do número de mulheres atendidas nos núcleos Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

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1717

Mais da metade do número de mulheres que buscam as ações do Projeto Justiça Cidadã é adulta, na faixa etária de 22 a 35 anos (57%), e outras na faixa etária de 36 a 49 anos (25%).

As mais jovens lutam pelos direitos dos filhos, fruto de relações ocasionais ou de namoros curtos.

Já as mais adultas, tiveram relações que duraram entre três e dez anos, mesmo não legalmente. O tipo de relacionamen-to mais comum é o de união estável.

20%32%

2%

2%2%

1%

3%2%

39%

0 10% 20% 30% 40% 50%

Média2003-2007

Ano 2008

Não Alfabetizado

1º a 4º

5º a 8º

EM Completo

EM Incompleto

Superior Incompleto

Superior Completo

19%

13%13%

12%

38%

Escolaridade

Figura 12 – Gráfico representativo da escolaridade de mulheres atendidas nos núcleos Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

Aproximadamente 40% das mulheres atendidas têm uma média de oito anos de estudo; com a média de quatro anos de estudo são 25%, e apenas 1% chegou a cursar o ensino superior.

Assim, a maioria da população atendida nos núcleos teve acesso à educação for-mal até o ensino fundamental (1.ª a 8.ª séries).

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1818

0

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

200820072006

Sem Renda

3SM

2SM

SM

Menos que SM

Renda Pessoal

Figura 13 – Gráfico representativo da renda pessoal da população atendida Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

Na Figura 13, percebe-se que 73% da população atendida recebem menos de um salário mínimo.

Tabela 1 – Situação de trabalho das pessoas atendidas

Situação de trabalho %

Anos Empregado Não empregado Eventual Autônomo Do lar

2006 37 51 12 N/c* N/c

2007 35 53 12 N/c N/c

2008 15 12 14 12 47 * N/c: Não consta Fonte: Gajop/Justiça Cidadã

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19

Valdênia Brito Monteiro1

Introdução

As discussões e iniciativas voltadas pa-ra mediação de conflito e acesso à justi-ça não são recentes, datam do início dos anos 70. Contudo, novas roupagens fo-ram sendo dadas aos debates e às possi-bilidades de trabalho sobre o tema. As novas iniciativas, no Brasil, tiveram seu boom nos últimos três a quatro anos com projetos de fortalecimento da cidada-nia que promovem o acesso à informa-ção e ao direito e à justiça, como capaz garantir os direitos humanos, envolven-do o indivíduo, a família, a comunidade e grupos locais. Há, também, os projetos dos grandes escritórios que vêm tentan-do afirmar-se, com base na perspectiva do mercado, realizando formas extrale-gais e se colocando como mediadores ou árbitros. É verdade que em cada período surgem as grandes ondas, os modismos

1 Mestra em Direito pela Universidade Federal de Per-nambuco, professora na área das Ciências criminais, co-ordenadora do Projeto Justiça Cidadã e sócia do Gajop.

em torno de temas. Foi assim com gêne-ro, criança e adolescente, articulação em rede, etc. Entretanto, a intervenção, ten-do a mediação de conflito como um ins-trumento da prática, por meio de parce-rias entre entidades da sociedade civil e governos, é de significativa relevância no contexto da construção da cultura de di-reitos humanos, tanto em nível nacional como internacional, uma vez que se tra-duz como a possibilidade de as pessoas conseguirem uma solução para seus pro-blemas mediante a construção da autono-mia para resolver situações sem que um terceiro possa dar uma decisão. Este tex-to tem a pretensão de provocar um diálo-go a respeito da concepção de interven-ção da mediação de conflito baseado na experiência realizada pelo Projeto Justi-ça Cidadã, parceria entre o Gajop, ONG de direitos humanos, e o Governo Mu-nicipal do Recife. O projeto tem como objetivo a disseminação do conhecimen-to sobre o acesso ao direito e à justiça e da resolução e mediação de conflitos, en-volvendo famílias, grupos comunitários

Mediação de conflito: contribuição para a cultura de Direitos Humanos

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20

locais. Destaque-se que a primeira parte faz um resgate histórico da literatura so-bre o tema.Acesso à justiça e resolu-ção de conflito extrajudicial

A concepção do Acesso à Justiça, se-gundo Cappelletti e Garth (1978), pas-sou por transformações, pois seu concei-to no sentido stricto sensu relacionava-se exclusivamente com a possibilidade de as pessoas exigirem seus direitos sob os auspícios do Estado. Traduzia-se na ideia de acesso na perspectiva da proteção for-mal, relacionando-se com os direitos in-dividuais, próprios da perspectiva do Es-tado liberal.

No fim dos anos 1960 e inicio dos 1970, surge na Europa um movimento teóri-co-prático formado por profissionais da área do Direito, que provoca uma série de discussões temáticas sobre o uso al-ternativo do direito, pluralismo jurídico, acesso à justiça entre outros. A intenção era trazer à tona uma nova concepção emancipatória do direito e o significado do pluralismo jurídico. Este entendido como mais de um sistema jurídico vigo-rando (oficialmente ou não), explorando a existência de meios alternativos de re-gulamentação social que não estavam ne-cessariamente atrelados ao Estado.2

Wolkmer (1994), ao dissertar sobre plu-ralismo jurídico, expressa que ele tem o mérito de demonstrar de forma abran-gente as múltiplas formas de normativas não estatais originadas dos diversos seto-

2 Dentre os autores que comungam dessa ideia, será des-tacado o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (1980), Vedonato (2004) e Wolkmer (1994).

res da sociedade e de lutas. A conjuga-ção da noção de pluralismo jurídico com a concepção de acesso à Justiça dá-se pe-la necessidade de responder às demandas sociais emergentes da crise do positivis-mo jurídico dos anos 1960 e 1970.

No Brasil, o debate torna-se efervescente nos anos 1980 com a publicação da obra de Cappelletti e Garth,3 e Santos.4 Es-te último tornou-se conhecido por seus estudos na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro. No seu texto sobre O Estado e o Direito na Transição Pós-moderna, já trazia à reflexão as características da me-diação como resolução de conflito extra-judicial, a saber: 1. Ênfase em resultados mutuamente acordados, em vez da es-trita obediência normativa. 2. Preferên-cia por decisões obtidas por mediação ou conciliação, em vez de decisões obtidas por adjudicações (vencedor/vencido). 3. Reconhecimento da competência das partes para proteger os próprios interes-ses e conduzir a própria defesa em um contexto institucional desprofissionali-zado e mediante um processo conduzido em linguagem comum. 4. Escolha como terceira parte de um não jurista (ainda que com alguma experiência jurídica), eleito ou não pela comunidade ou gru-po, cujos litígios se pretendem resolver. 5. Diminuto ou quase nulo o poder de

3 Florence Project, coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, com financiamento da Ford Foundation.

4 A pesquisa realizada por Boaventura de Sousa Santos, na década de 70, à qual ele deu o nome fictício de Pasárgada, constatou que, em relação às questões referentes ao uso e posse da terra na favela, os conflitos eram solucionados por meio da Associação de Moradores da favela, que uti-lizava normas confeccionadas por ela mesma, as quais di-vergiam das normas de Direito.

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coerção que a instituição pode mobilizar no próprio nome (SANTOS, 1991).

No Recife, não se pode esquecer o traba-lho de pesquisa de Falcão (1981),5 tra-zendo ao debate a importância da institu-cionalização e jurisdicização dos confli-tos sociais como passo decisivo para a transição democrática.. O autor envere-da para a discussão da democratização do Judiciário, esta com a função política de defender os direitos humanos e o acesso à Justiça como forma de permitir os mais amplos interesses coletivos da população marginalizada, condição essa para a ex-pansão da cidadania.

Esse período inicia-se com a reorgani-zação da sociedade civil dando um passo importante para o processo de abertura política e a democratização dos poderes constituídos. A exemplo de entidades da sociedade civil com a missão de assesso-ria jurídica popular, destaca-se neste tra-balho duas: o Instituto Apoio Jurídico Popular (Iajup) e o Gabinete de Asses-soria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) − entidade de direitos humanos, tendo como objeto de intervenção o di-reito à segurança e à justiça, o qual atual-mente tem a experiência de mediação de conflito com o Projeto Justiça Cidadã.6

5 Joaquim de Arruda Falcão tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: Poder Judiciário, in-ternet, reformas e globalização.

6 O Instituto Apoio Jurídico Popular, com sede no Rio de Janeiro, reuniu juristas e intelectuais de todo o Bra-sil, vinculados ao Movimento Social ou de visão crítica do Direito, fazendo surgir, a partir daí, uma produção jurí-dica alternativa que permitia reflexão e posicionamento. Essa instituição não existe mais, deixando um grande le-gado na produção crítica do direito.

O Gajop surgiu com a perspectiva de um trabalho crítico na área de educação jurí-dica popular. Entidade com sede no Re-cife, em Pernambuco, com 28 anos de existência, foi fundado em 1981 por ad-vogados que desejavam realizar uma ação educativa capaz de elevar o nível de in-formação, consciência e autonomia das organizações do movimento popular, bem como oferecer assessoria sobre a questão de posse da terra nas favelas da Região Metropolitana do Recife. A con-cepção de cidade como um espaço social, diminuindo o privilégio das elites, passa-va por conjugar esforços no sentido de que o Direito à Moradia sobrepunha-se ao Direito de Propriedade, e dessa for-ma, o Gajop estaria contribuindo para uma sociedade justa e igualitária.

Ainda nos anos 1980, no Brasil, pode-se considerar a existência de uma bibliogra-fia considerável a respeito da concepção de Direito e administração da Justiça, buscando a resolução de conflitos pelas vias extrajudiciais. Estas como mais uma possibilidade de a comunidade resol-ver seus conflitos mediante normas cria-das pela própria comunidade. Oliveira (2004), em 1984, na sua dissertação de mestrado, Sua Excelência, o Comissário, já expunha a experiência da polícia que, no trabalho de resolução de casos da po-pulação de baixa renda, assumia um com-portamento de uma justiça informal.

No campo da teoria do Direito, dois au-tores importantes, Lyra Filho e Warat, vêm contribuir para esse debate. O pri-meiro, nas suas discussões sobre o que é o Direito, faz estremecer os juristas con-

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servadores quando expressa que “a maior dificuldade, numa apresentação do Di-reito, não será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorci-das que muita gente aceita como retra-to fiel” (LYRA FILHO, 1982, p. 7). Tem claro que o direito não pode ser visto sob o auspício da lei, uma vez que esta é um simples acidente no processo jurídico, “e que pode, ou não, transportar as melho-res conquistas” (LYRA FILHO, 1983, p. 13). Essa concepção mais ampliada foi incorporada pelos militantes que traba-lham com direitos humanos, entendendo que estes se constroem nas lutas sociais e, por isso, são históricos.

Já Warat traz a discussão sobre o direito de uma forma mais irônica e tentando, como bem expressa, realizar uma “refun-dação” dos conceitos. Em vários textos, expõe que a dogmática jurídica implica a saturação ideológica no conhecimento do direito.

Outro autor importante nessa discussão é Faria (1991) ao chamar a atenção da di-ficuldade do Poder Judiciário resolver demandas coletivas diante do processo de globalização.

Nesse contexto, as discussões passaram pela crise do Judiciário para resolver de-mandas e, por isso, tiveram rebatimen-to na justiça formal. Os debates sobre o direito de acesso à Justiça, reconheci-do como “aquele que deve garantir a tu-tela efetiva de todos os demais direitos”, como diz Cappelletti (1994, p. 71), con-tribuíram para que a Justiça (perspectiva formal) brasileira acelerasse em 1995 a

implantação da chamada “Justiça do Fu-turo”, os chamados juizados especiais, co-mo forma de dar celeridade e efetivida-de ao processo, esperando que o Estado aperfeiçoasse suas atividades jurisdicio-nais, como aprimoramento da democra-cia e o aumento operacional da Justiça.

Com a criação das Leis n.º 9.099/95 e n.º 10.259/01, intensificaram-se os es-tudos dos operadores do Direito sobre a nova forma de resolução de conflitos e o alcance dos juizados como capazes de atender uma demanda reprimida por jus-tiça, e atendendo à necessidade de pra-ticar o direito fundado na prioridade da pacificação social e de resolução de con-flitos pela conciliação. Esta como uma tentativa de acordo amigável entre as partes antes do ajuizamento da ação ou durante um processo judicial. Como be-nefício, explicitaria: a) o ponto de vista da outra parte por meio da exposição de sua versão dos fatos, com a facilitação do conciliador; b) a possibilidade de admi-nistração do conflito de forma a manter o relacionamento anterior com a outra parte; c) celeridade do processo de con-ciliação. Percebe-se que no Judiciário va-le mais um “mau acordo do que uma boa questão judicial”.7

Passados quase quatorze anos da criação dos juizados, estes não têm conseguido dar conta das ações existentes, nem mes-mo das conciliações. Hoje, estudos admi-

7 A arbitragem é um instrumento de resolução de con-flitos em que há uma terceira pessoa para ajudar as par-tes a respeito de uma decisão, após ouvir argumentos e provas das partes ou de um conselho. Sobre o assunto, cf. Lima (2007).

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tem que, mesmo que se consiga a celeri-dade da justiça formal, esta não será su-ficiente para garantir o acesso efetivo à justiça.

Em 2004, vem a Emenda Constitucional n.º 45 da Constituição Federal sobre a re-forma do Judiciário. Percebeu-se que as alterações foram de natureza institucio-nal e procedimental, como a ideia da sú-mula vinculante, a Lei dos Recursos Re-petitivos e o critério de transcendência, etc. Infelizmente a reforma desejada não foi realizada. É perceptível que conflitos gerados por relações de exploração, falta de política, violação aos direitos econô-micos, sociais e culturais não têm lugar nos debates sobre o papel do Judiciário.

Sabe-se que algumas demandas levadas ao Judiciário buscam respostas para uma gama de situações que desafiam o pró-prio dogmatismo jurídico e que têm a ver com a diversidade de questões não con-sideradas objetos de pauta do Poder Ju-diciário. Faria (1991) questiona até que ponto estarão os tribunais e seus magis-trados aptos, funcional e tecnicamente, a lidar com conflitos classistas e transgres-sões de massa envolvendo grupos, clas-ses e coletividade. Esse questionamento traz em si a resposta sobre a não-modifi-cação da estrutura do Judiciário. Não há propósito de buscar resolver alguns con-flitos, porque a igualdade e a liberdade formal não vão dar conta da relação de poder e os limites expostos pelo sistema político vigente.

As discussões sobre justiça e movimen-tos sociais, crise mundial violência. etc.,

questões essas de direitos humanos, tor-nam-se mais complexas, e o Judiciário não deseja ou não quer entrar em deter-minadas searas, o que significa se posi-cionar sobre determinadas matérias. As soluções apresentadas para um universo cada vez mais amplo de demandas tra-zidas ao Judiciário não se encontram de modo explícito nas leis.

Mediação de conflito como prática de Direitos Humanos

O instrumento mediação de conflito co-mo prática de direitos humanos é recen-te e pouco trabalhado. De modo geral, tem-se valorizado a técnica de que co-mo por si só bastasse, distanciando-se da discussão de cidadania. Percebe-se, tam-bém, que algumas experiências práticas no Brasil fazem confusão entre mediação e conciliação. Em alguns casos, a media-ção tem sido realizada como forma de conseguir acordos entre pessoas que vi-vem um conflito, quando, na realidade, ela deve ser vista como a capacidade de as pessoas administrarem, lidarem com determinadas situações, baseadas no di-álogo, e possibilidade de restauração da harmonia entre as partes para a solução do problema.

A mediação como contribuição para a cultura de direitos humanos parte do pressuposto da necessidade de exercício da cidadania:

[...] compreendida como processos de criação de espaços sociais de luta por di-reitos, de participação política, nos quais os cidadãos e cidadãs são também inven-

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tores (as) e criadores (as) de direitos. É o que muitos chamam de ‘cidadania ativa’, já que pressupõe autonomia plena do su-jeito que, por sua vez, tem total sabedo-ria sobre seus direitos e deveres, indivi-duais e coletivos. (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006, p. 6).

Cabe-lhes, pela própria condição de su-jeitos de direitos, atuar no sentido de promover ações que alterem situações de exclusão. Essa é a noção básica para poder propor uma cultura de direitos (CARBONARI, 2008, p. 31).

O mediador tem o papel de decodificar o conflito, por isso faz-se necessária uma equipe interdisciplinar para que possa entender, baseada na fala e no não dito, o real desconforto entre as partes. O me-diador não precisa ser especializado em algum tema. Essa ideia difere muito da concepção do chamado advogado popu-lar das discussões dos anos 1970 e 1980. À época, mesmo inconsciente, parte de alguns advogados tinha a pretensão de que ensinar direito era algo exclusivo de advogados, cabendo a eles a conciliação. Em projetos de educação jurídica po-pular, cada profissional atuava nas fun-ções tidas como de sua especialidade. A exemplo disso, alguns diziam: “questões de pobreza envia para a assistente social.” O sociólogo? Seu lugar é na academia; e assim passavam algumas discussões. Por esse motivo, grande parte da bibliogra-fia sobre meios alternativos e acesso ao direito e à justiça encontra-se na área do Direito.

No entanto, nem tudo pode ser mediado. Inclusive, o mediador deve ter a capaci-dade de perceber se determinado caso é passível de mediação. Em uma situação com um grau de tensão grande, em que as partes chegam a um nível de violência e intolerância para o diálogo, não se pode propor a mediação.

A mediação não pode ser para amortecer violações aos direitos humanos, a exem-plo do tema criminalização dos movi-mentos sociais. Por isso é tão difícil pen-sar mediação de conflitos em questões de Direito Penal. Atrás da falsa ideia de igualdade jurídica, o controle social for-mal esconde uma desigualdade social, pois, na prática, a execução da lei não é igual para todos.

O status de criminoso é distribuído de modo desigual entre as parcelas da popu-lação vulnerabilizada na hierarquia social que terão as maiores chances de serem selecionadas como população criminosa. Por trás de funções declaradas do sistema penal − de manutenção da paz social, ou da tutela de bens jurídicos eleitos social-mente −, existe uma função sua não de-clarada, qual seja a de sustentar a hege-monia de um setor social sobre o outro. (BARATTA, 1999, p. 35).

Por isso, os conflitos agrários envolvendo os sem-terra e proprietários também não são mediáveis. Nesse caso, existem vá-rias discussões que não podem ser ocul-tadas, como a discussão da política pú-blica que transcende aos conflitos entre as partes, a criminalização dos movimen-tos sociais, o papel da mídia, entre ou-tros. Outro exemplo são os casos de vio-

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lência doméstica e exploração sexual, até o rompimento das relações diplomáticas entre os Estados-Nação que violam direi-tos fundamentais, em que não é possível realizar a mediação, porque vão de en-contro aos princípios de direitos.

A Comissão Interamericana de Mulheres da OEA, no relatório sobre o Informe Hemisférico (adotado na 2.ª Conferên-cia de Estados-Parte, em Caracas, Vene-zuela, 9 e 10 de julho de 2008, Caracas Venezuela) − mecanismo de seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESE-CVI) −, mostra preocupação com o fa-to de que alguns Estados estão realizando conciliação e mediação entre a vítima e o autor da violência, e expressa:

Es de notoria preocupación para el CEVI que se sigan usando estos métodos que no se puedem aplicar para casos de vio-lencia donde no cabe negociación alguna cuando se han vulnerado derechos funda-mentales. Por ello, el Comité pone énfa-sis en que los mecanismos de mediación o conciliación no deben ser usados previo a un proceso legal, sea que este se instau-re o no, y en ninguna etapa del proceso legal y de acompanamiento a las mujeres víctimas. (OEA, 2008).

A igualdade e o respeito à diferença é um valor relacionado com a dignidade hu-mana. Na perspectiva da justiça social apresentada por Nanci Fraser (2003), em “uma concepção que promova a in-teração entre as diferenças e que estabe-leça sinergias com a redistribuição“, não é possível discutir direitos humanos dei-xando de lado a questão política dos ato-res envolvidos.

Quando se coloca a mediação de con-flito como instrumento para trabalhar a cultura de direitos humanos, percebe-se que, cada vez mais, determinadas situa-ções extremas poderiam ser evitadas pe-la prevenção e, consequentemente, não passariam pela questão jurídica formal. Muller (1995, p.151) diz:

[...] a mediação visa conduzir dois prota-gonistas a passar da adversidade à conver-sação (do latim, conversari, voltar-se pa-ra), ou seja, levá-los a voltar-se um para o outro para conversar, compreender-se e, se possível, chegar a um acordo que abra caminho à reconciliação.

Destaca-se aqui que a concepção con-flito não tem seu caráter negativo, mas daquilo que faz parte da condição hu-mana. O conflito torna-se um proble-ma quando deixa de ser uma opor-tunidade para avançar no ideário de construções, pactos coletivos e possi-bilidades e torna-se obstáculo para a construção do diálogo sobre interes-ses. “A não violência não pressupõe, portanto, um mundo sem conflitos.” (Muller, 1995, p. 20). “A violência co-mo ato que transgride a complexidade entre as coisas e os homens.” (Muller, 1995, p. 147).

Nesse sentido, o meio pacífico da não-violência busca solucionar o conflito pro-curando entender as causas que levam ao espiral da violência. Os meios pacífi-cos buscam a possibilidade da escuta e o diálogo como capazes de construir es-tratégias e dinâmicas de transformação coletiva.

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Neste século, tem de se reforçar o prin-cípio cooperativo, o empoderamento das partes, o acesso ao direito e compromis-sos entre os indivíduos e grupos. A me-diação pode ser instrumento utilizado tanto nas relações individuais como nas comunitárias e políticas.

O exemplo claro das possibilidades da mediação está no papel da ONU para manutenção da paz e do seu interesse em controlar conflitos que ameaçam a paz e a segurança internacional. Pode-se per-guntar até que ponto esse instrumento é eficaz no caso específico como a ONU. Todas e quaisquer condições para tentar resolver determinadas disputas de forma pacífica e dialógica − voltadas para a im-portância dos acordos internacionais e a estabilidade dos países, pautadas numa diplomacia preventiva − colaboram pa-ra uma solução amistosa entre as partes. “A paz não é, não pode ser e nunca será, a ausência de conflitos, mas sim o con-trole, a gestão e a resolução dos conflitos por outros meios que não os da violên-cia destruidora e mortal.” (Muller,1995, p. 20).

O exemplo apresentado sobre a ONU ex-põe que é possível a mediação no âmbito internacional. Quando a persuasão falha, o instrumento para resolução de confli-to fica impossibilitado. O instrumento não vai ser possível em todos os casos. Só é provável estabelecer a paz duradoura quando as partes têm vontade política de pelo menos evitar a guerra. Mas quando falha a mediação, existem outros recur-sos para diminuir o impacto, a exemplo das ajudas humanitárias, proteção a civis,

remoção de minas dos caminhos, ajuda à reconstrução, etc. A manutenção da paz salvou inúmeras vidas, por mais que se questione esse órgão internacional.

A mediação por meio do projeto Justiça Cidadã

Nesses sete anos de prática do Justi-ça Cidadã,8 vem aprofundando-se qual a contribuição desse projeto para a mis-são do Gajop, que é contribuir para a de-mocratização e o fortalecimento da So-ciedade e do Estado, na perspectiva da vivência da cidadania plena e da indivisi-bilidade dos Direitos Humanos.

Nessa perspectiva, a mediação para o Projeto Justiça Cidadã é considerada um dos instrumentos da sua prática. Seu ob-jeto é o acesso ao direito e à justiça. O direito de ter direito, como diz Hannah Arendt (1973). O acesso ao direito passa primeiro por conhecê-lo, depois incor-porá-lo como tendo direitos e, por últi-mo, sua capacidade de exigi-lo, como su-jeito de direito.

O projeto é mais que um balcão de direi-tos. Se entender a palavra balcão (móvel comprido, que separa a parte da entra-da destinada ao público da parte de den-

8 Com o objetivo de estimular pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social ao exercício da cidadania (individual e coletiva) e contribuir para que elas tenham oportunidades de acessar o Direito e a Justiça, realizam-se diariamente nos três Núcleos (localizados nos seguin-tes bairros recifenses: Caxangá, Ibura e Pina) as seguin-tes ações: atendimento coletivo (Roda de diálogo sobre direitos); Atendimento individual (de orientação jurí-dica ou psicossocial); mediação de conflitos (para casos de pensão alimentícia); intervenção judicial (para casos emblemáticos que não são mediáveis, como a violência doméstica).

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tro, onde ficam os funcionários que fa-zem o atendimento) como aquele que é atendido do lado de fora e é um clien-te − entendido como consumidor − que compra um serviço. O Justiça Cidadã su-perou essa fase, porque colaborar para a consciência de direitos, mesmo que em nível micro, não pode ser visto em uma perspectiva instrumental. Há a clareza da importância dos direitos humanos por reconhecimento de direitos. Passando pelo acesso ao direito e à Justiça que sig-nifica potencializar ações no sentido de contribuir para as condições mínimas da ideia de dignidade humana, ponto orien-tador do projeto. Este, como formação em direitos humanos, tem os seguintes pressupostos:

• Abertura e diálogo, compreendidos na pers-pectiva de (I) reconhecimento do outro, por-tanto da diversidade de sujeitos individuais e coletivos; (II) desconstrução de verdades ab-solutas e discursos autoritários que se têm como referências únicas para compreensão da realidade e para as práticas cotidianas; (III) respeito à diversidade de saberes no processo de constituição de campos políticos de inte-resse público.

• Reconhecimento das dimensões de classe, ra-ça e gênero como constitutivas das relações sociais, portanto das desigualdades, devendo integrar práticas políticas e educativas que se proponham à afirmação da igualdade de di-reitos e do respeito à diversidade dos modos de ser. Construção/exercício da cidadania individual e coletiva, tanto na esfera da orga-nização política do Estado, como na micro-política da vida social.

• Produção coletiva de conhecimentos, articu-lando teoria e prática.

• Nesse sentido, a Formação articula a equipe consigo mesma e com outros atores que pos-sam contribui, trocar, participar e influir na proposta do Projeto Justiça Cidadã; e mobili-zar tais atores em uma rede social que tenha: 1. objetivos compartilhados e construídos coletivamente; 2. dinamismo, compromisso e cooperação dos envolvidos; 3. coexistência de diversidade; 4. produção, reedição e cir-culação de informação; 5. descentralização de poder; 6. ambiente fértil para parcerias; 7. empoderamento dos envolvidos; 8. oportuni-dades para crescimento individual e coletivo (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006, p. 9).

Portanto, apoiado na metodologia de educação em direitos humanos, o Proje-to Justiça Cidadã não entende a media-ção simplesmente como técnica, e sim como instrumento que colabora para a construção da cultura de direitos, levan-do em consideração a luta pelo reconhe-cimento da dignidade humana inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis, que constituem o fundamento da liberda-de, da justiça e da paz no mundo, tal co-mo exposto no preâmbulo da Declaração Universal de Direito Humanos. Como se sabe, a formalidade da lei não atende às tantas particularidades dos chamados grupos vulneráveis. Daí a importância de um conceito valorativo que defenda a igualdade como condição da dignidade humana. Isto é, que compreenda que to-da pessoa deve ter o direito de desenvol-ver plenamente como ser humano e ten-do uma vida digna.

O reconhecimento integral passa pela efetividade dos direitos: os civis e polí-ticos, econômicos, sociais e culturais.

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Quanto mais os sujeitos tiverem a capa-cidade de resolver seus conflitos com o princípio da não-violência e da tolerân-cia, mais serão aptos para serem sujeitos de direitos.

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Sistematização de experiências como parte constitutiva de projetos sociais: o caso do Justiça Cidadã

ponder às demandas internas de refle-xão e de apropriação coletiva dos con-teúdos e conceitos que fundamentam as ações; contrapor-se às exigências impos-tas de forma vertical e positivista de Pla-nejamento, Monitoramento e Avaliação (PMA) por parte das agências de coope-ração internacional.

Mas, afinal, o que significa sistematiza-ção de experiências nos termos utiliza-dos por movimentos sociais? Sabe-se que sistematização diz respeito a uma forma científica de conhecer a realidade, seja por meio de informações, dados quali-tativos, quantitativos, etc. Dito de outra forma, qualquer pesquisa ou avaliação é uma sistematização.

No entanto, quando se fala de sistema-tização de experiência a partir de tra-balhos sociais, há uma particularidade. Embora não exista um conceito exato, as definições utilizadas pelo Programa de Sistematização do Conselho de Educa-ção de Adultos da América Latina (CE-

Mariângela Ribeiro de Almeida1

Para Vânia Santos e Síria Silva,

do saudoso Cenap, que contribuíram

nos passos deste caminhar.

Considerações iniciais: alguns aspectos teóricos e históricos

Nos últimos anos, a chamada sistemati-zação de experiências tornou-se bastan-te cara às organizações da sociedade ci-vil. Como observa Meireles (2007), a demanda por reflexão acerca da prática social está em muitos “termos de refe-rência” de governos, agências de coope-ração internacional, fundações empresa-riais e institutos de pesquisa. Exigência que não é nova.

A sistematização de experiências surgiu como ferramenta de ação entre os mo-vimentos sociais da América Latina no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 para atender duas necessidades.2 Res-

1 Socióloga. Colaboradora do Gajop e coordenadora do Projeto Justiça Cidadã no período de 2006 a maio de 2009.

2 Nesse período, as contribuições de Centros de Estudos mexicano, chileno e peruano são consideradas fundamen-tais para a construção teórica da chamada sistematização de experiências como prática específica vinculada à con-cepção de Educação Popular. Para saber mais, consultar Palma (1992).

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AAL), Peru e Chile, que trabalha o tema por meio da Oficina Permanente de Sis-tematização, são aceitas por muitos pro-fissionais do campo social:

Entendemos a sistematização como um ‘processo permanente e acumulativo de produção de conhecimentos a partir das experiências de intervenção em uma rea-lidade social. Ele alude a um tipo particu-lar de intervenção, aquela que se realiza na promoção e na educação popular, arti-culando-se com setores populares e bus-cando transformar a realidade. (BARNE-CHEA; GONZALEZ; MORGAN, 1992, p. 11. Tradução livre).3

“[...] sistematização é uma espécie parti-cular de criação participativa de conheci-mentos teórico-práticos, a partir de e pa-ra a ação de transformação.” (CADENA apud JARA, 2006, p. 24).

Então, o que diferencia essa forma par-ticular de reflexão da experiência (pro-dução de conhecimento) é seu caráter coletivo/participativo e a sua relação in-trínseca com a experiência vivenciada. Assim, mesmo que não se tenha um ple-no acordo quanto ao conceito e aos con-teúdos que lhe atribuem, “[...] todas as propostas de sistematização expressam uma oposição flagrante com a orientação positivista que guiou e ainda guia as cor-rentes mais poderosas das Ciências So-ciais [...]” (PALMA, 1992, p. 13).

3 No original: “Entendemos a la sistematización como un ‘proceso permanente y acumulativo de producción de conoci-mientos a partir de las experiencias de intervención en una rea-lidad social”. Ello alude a un tipo particular de intervenci-ón, aquélla que se realiza en La promoción y la educación popular, articulándose con sectores populares y buscando transformar la realidad.”

Indo para além da compreensão do Cea-al, muitos estudiosos e profissionais de-finem que a prática de sistematização de experiências poderá ser assumida como dimensão constitutiva da ação político-educativa a caminho:

• de um pensamento e diálogo livre e fiel do sentido da ação no limiar da relação entre in-tenções e gestos, portanto a caminho da apro-priação crítica da própria experiência por parte dos seus sujeitos;

• da produção e publicização de conhecimentos e saberes, tomando isso como elemento da ação política e, por fim,

• do compartilhamento, fortalecimento e regis-tro histórico de modos possíveis de sociabili-dade, política, economia.

Como se observa, a noção de sistematiza-ção de experiências que se utilizará aqui se relaciona com as premissas da educa-ção popular, e não com aquela vinculada à administração instrumental, implicita-mente sugerida por muitos financiadores ao exigirem sistematizações que auxiliem na “replicação” de “boas práticas”, ou me-lhor, na rentabilidade do investimento.

Isso posto, apesar da inclusão da siste-matização no plano de trabalho de quase todas as entidades e movimentos sociais, nem sempre é a sistematização de ex-periência que prevalece. Em muitos ca-sos, ela é utilizada apenas como “instru-mento” externo, que só envolve toda a equipe em momentos pontuais, não sen-do compreendida como exercício, pro-cesso e parte constituinte da própria ação que se desenvolve.

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Para refletir sobre as dificuldades e pos-sibilidades do exercício da sistematiza-ção de experiência, apresentarei a pro-posta do Projeto Justiça Cidadã que, há mais de três anos vem-se esforçando pa-ra consolidar um modelo que define sis-tematização de experiências como parte fundamental (e fundante) do seu fazer. O resgate desse processo foi feito por meio da análise das falas dos integrantes da equipe do Justiça Cidadã que, em janeiro de 2009, como atividade avaliativa, revi-sitou coletivamente sua história.

O longo caminhar

O Projeto Justiça Cidadã, desde seu sur-gimento em 2002, realiza encontros for-mativos com a equipe. Porém, por muito tempo, essas atividades eram entendidas naquele conceito tradicional de capacita-ção, que quer dizer treinamento profis-sional pontual. As pessoas da equipe que viveram esse momento assim o descre-vem: “Não havia unidade nos modos de ação e a construção e definição de equi-pes tinha incongruências.” (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2009).

Esse formato era condizente para o pri-meiro ano de um projeto criado pela Pre-feitura que tinha um caráter estritamente jurídico-formal, cujo objetivo era “possi-bilitar às pessoas empobrecidas o acesso à justiça” (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2009). O Gajop, como ONG parceira, deveria apenas capacitar a equipe.

Passado o primeiro ano de experiên-cia, o Gajop começou a propor mudan-ças na tentativa de vincular esse obje-

tivo de acesso à justiça ao conceito de cidadania. A equipe também começa a sistematizar sua prática, questionando a “cultura de clientelismo da prefeitu-ra, o trabalho meramente jurídico, o lo-cal dos Direitos Humanos nas ações e a existência (ou não) de autonomia da equipe” (PROJETO JUSTIÇA CIDA-DÃ, 2009).

A convergência entre o desejo do Gajop e da própria equipe em fazer algo mais que um trabalho de “banca de advoga-dos” contribuiu para que, a partir de 2004, o projeto tomasse novos rumos: a equipe realiza coletivamente uma pes-quisa para sistematizar e planejar ações; os atendimentos coletivos são desenha-dos e implantados; faz-se um recorte em “direito de família” para delimitar melhor a ação e melhorar o atendimen-to; os Direitos Humanos tornam-se re-ferenciais mais fortes para as ações.

Porém, a formação continua uma ativi-dade externa e pontual, sendo realizada por meio de poucos encontros no de-correr do ano, conduzidos por entida-des ou profissionais externos. Formato que começa a mudar apenas em 2005, com a importante contribuição do Cen-tro Nordestino de Animação Popular (Cenap), ONG com grande acúmulo em processos formativos e sistemati-zação de experiências que infelizmente fechou suas atividades depois de dezoito anos de atuação.

A partir daí, aos poucos, de atividades pontuais e de caráter profissional, os en-contros formativos tornaram-se par-

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te constitutiva de sua ação. Ou seja, de um processo feito externamente para a equipe, tornou-se um processo contínuo da equipe.

Entre 2005 e 2007, o Projeto Justiça Ci-dadã realizou encontros formativos com as premissas da educação popular. Nas oficinas pedagógicas com o Cenap du-rante esse período, a equipe passou a atentar criticamente para as relações en-tre poder/saber, identidade/diferença, igualdade/autonomia, bem como para a ideia de justiça, iniciando a aposta nos chamados “meios alternativos de acesso à justiça”.

Opção que não significa facilidade ou tranqüilidade, pois exige disposição para abertura, diálogo sobre nossa atuação e a do outro, sobre as relações entre ação e discurso, sobre as contradições, tensões, posições, etapas; abertura para refletir e extrair contribuições tanto para a prática como para seus fundamentos teóricos.

Nesse sentido, o caminho foi longo, às vezes com retrocessos, dores, mas aos poucos, o que seria apenas uma forma-ção de equipe (capacitação) foi ganhan-do fôlego. Em julho de 2006, a forma-ção ganhou uma definição mais precisa, que vem balizando todo o seu desenvol-vimento. Seus objetivos são:

[...] contribuir para a construção de uma metodologia de educação em direitos hu-manos com foco nos mecanismos alter-nativos de acesso à justiça; Orientar e qualificar a prática político-pedagógica do projeto; aprofundar os referenciais te-óricos do projeto tendo como base a mis-

são institucional do Gajop. (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006).

Para tanto, a formação nesse documento se direciona a “três perspectivas: (I) re-direcionamento do projeto em suas di-mensões político-educativa; (II) análise da concepção e lugar do projeto no GA-JOP e (III) impulsionamento de mudan-ças nas concepções e práticas de atendi-mento e na compreensão de justiça que orienta o projeto” (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006).

Dito de outra forma, a proposta já apon-tava para a chamada sistematização de experiências, mesmo que não usasse es-se termo.

Na primeira etapa (entre julho de 2006 e janeiro de 2007), ainda com a consul-toria do Cenap, realizou-se a construção compartilhada da Proposta Político-Pe-dagógica do projeto. Esta se realizou em dois momentos:

1. Encontros da equipe de coordena-ção com as profissionais do Cenap para a elaboração: de referenciais conceituais (Justiça, Meios de acesso ao direito e à justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Elementos estruturantes da desigualdade social – classe, raça, gênero e geração); dos objetivos, da estrutura, referenciais e passos metodológicos do processo de formação; dos temas e categorias chaves a priorizar; da apresentação e discussão do esboço inicial com toda a equipe; 2. Encontros com toda a equipe do Proje-to para discutir e aprovar a Proposta e fa-zer dela o documento-base de fundamen-tação das ações do Projeto. (PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006).

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Como se pode verificar, embora a ideia fosse coletiva, o processo ainda ocorria de forma dividida: 1. elaboração reflexiva de conceitos pela coordenação; 2. apro-vação e apropriação dos conceitos pela equipe executora. Contudo, esse início ainda partido (pensamento/ação) não diminuiu a importância do momento. As premissas da educação popular impulsio-naram a equipe (coordenação/execução) a refletir criticamente sobre seu fazer e a sugerir alterações e inovações.

Um exemplo disso foi que, paralelamen-te à construção da Proposta Político- Pe-dagógica, timidamente, também se ini-ciou em 2006 atividades intermódulos, previstas na referida proposta: estudos e discussões, com a participação de profis-sionais externos, sobre temas importan-tes para a formação da equipe e desen-volvimento das atividades.

No entanto, foi em 2007 que o modelo mais participativo e amplo de formação foi aos poucos se realizando. As reuniões ganhavam maior freqüência e os profis-sionais da equipe ocupando espaço nas reflexões políticas e elaborações teóri-cas, e não mais apenas nas discussões so-bre execução.

Após a aposta na ação participativa, o cenário de 2008 estava propício ao tra-balho coletivo. Resgatando as referên-cias da Proposta Político-Pedagógica de 2006, bem como passando a compreen-der o sentido e a importância da siste-matização de experiências, a formação/sistematização foi integrada à lógica do projeto e possibilitou:

Abertura e diálogo, compreendidos na perspectiva de (I) reconhecimento do ou-tro, portanto da diversidade de sujeitos in-dividuais e coletivos; (II) desconstrução de verdades absolutas e discursos autoritários que se têm como referências únicas para compreensão da realidade e para as práti-cas cotidianas; (III) respeito à diversidade de saberes no processo de constituição de campos políticos de interesse público.

Reconhecimento das dimensões de clas-se, raça e gênero como constitutivas das relações sociais, portanto das desigualda-des, devendo integrar práticas políticas e educativas que se proponham à afirmação da igualdade de direitos, e do respeito à diversidade dos modos de ser.

Construção/exercício da cidadania indi-vidual e coletiva, tanto na esfera da orga-nização política do Estado, como na mi-cropolítica da vida social.

Produção coletiva de conhecimentos, ar-ticulando teoria e prática.

Articulação da equipe consigo mesma e com outros atores que possam contribuir, trocar, participar e influir na proposta do Projeto Justiça Cidadã; e mobilizar tais atores em uma rede social que tenha: 1. objetivos compartilhados e construídos coletivamente; 2. dinamismo, compro-misso e cooperação dos envolvidos; 3. coexistência de diversidade; 4. produ-ção, reedição e circulação de informação; 5. descentralização de poder; 6. ambien-te fértil para parcerias; 7. empoderamen-to dos envolvidos; 8. oportunidades para crescimento individual e coletivo. (PRO-JETO JUSTIÇA CIDADÃ, 2006, p. 9).

Mais que isso, a formação/sistematização passou a ser compreendida como priori-

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tária na medida em que favorece o inter-câmbio de experiências, auxilia a equipe na compreensão de seu trabalho, possibi-lita a aquisição de conhecimentos teóri-cos com da prática que, dialeticamente, orientará uma prática mais qualificada.

Ou seja, o processo coletivo de produção de conhecimento que orienta a ação dei-xou de ser um “evento” para ser uma “ro-tina”. Semanalmente, a equipe se reúne para dialogar sobre o fazer, sobre as ten-sões, as necessidades, as possibilidades de sua atuação; constantemente a equi-pe se reúne para estudar, discutir teorias, dados, informações, com ou sem a par-ticipação de convidados externos, que orientem o objetivo maior do projeto, contribuir para um mundo mais justo.

O desenvolvimento de um modelo mais participativo gera maior engajamento dos atores envolvidos e, consequente-mente, mudanças na concepção e execu-ção de qualquer ação. No caso do Justiça Cidadã, o antigo desejo de uma atuação mais voltada para educação em direitos foi definindo-se, bem como a preocupa-ção de maior aproximação e envolvimen-to com as comunidades onde se situam os três núcleos (Caxangá, Ibura e Pina).

A dinâmica desse exercício também ge-rou decisões coletivas, dialogadas e ne-gociadas constantemente. A maior foi, certamente, o processo de construção do conceito de Mediação Familiar des-de sua história e seus estudos coletivos. Por meio de discussões internas, partici-pações em espaços externos de discussão e formação, sistematização de dados e de

experiência e diálogo com outras práti-cas mediadoras, o projeto foi revisado, conhecido e alterado no necessário para atingir os objetivos sociais. Hoje, é refe-rência por sua mediação fundamentada nos Direitos Humanos.

Portanto, no caminho da produção e apropriação coletiva dos conteúdos, a equipe passou a sistematizar sua prática executora, a prática dos grupos que par-ticipam das ações do Justiça Cidadã e su-as relações no contexto do projeto. Nos termos que Jara (2006, p. 22) usa para descrever a sistematização, a equipe se apropriou da experiência vivida e deu conta dela, compartilhando com os ou-tros o aprendido.

Mesmo que não use esses termos, a equi-pe do Projeto Justiça Cidadã vem ex-perimentando, nos últimos dois anos, o exercício chamado sistematização de expe-riências. O que vem garantindo maior or-ganicidade à equipe, conforme compro-va o seguinte depoimento: “A formação continuada, planejada e realizada coleti-vamente, possibilitou maior segurança e autoestima na equipe, qualificou o aten-dimento e a relação da equipe.” (fala de um dos grupos de trabalho colhida na avaliação de janeiro de 2009).

Referências

BARNECHEA, Maria M.; GONZA-LEZ, Estela; MORGAN, María de la Luz. La producción de conocimientos en sistematizacion. in: Taller Permanen-te de Sistematizacion. 1998. Disponível

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em: <http://www.grupochorlavi.org/webchorlavi/

sistematizacion/barnechea.PDF>. Aces-so em: 3 jul. 2009.

JARA, Oscar. Para sistematizar experi-ências. Brasília: Ministério do Meio Am-biente, 2006.

MEIRELES, Maria Cristina. Conhecimen-to e prática social: a contribuição da sistema-tização de experiências. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) − Pontifícia Universidade católica, São Paulo, 2007.

PALMA, Diego: La sistematización como estrategia de Conocimiento en la Educa-ción Popular: el estado de la cuestión en América Latina. Papeles del CEAAL, San-tiago de Chile, n. 3, 1992.

PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ. Carto-grafia do tempo: construção coletiva. In: ______. Relatórios do processo avaliativo de 2009. Recife: Gajop, 2009.

______. Proposta político-pedagógica 2006. Recife: Gajop, 2006.

______. Relatórios do processo avaliativo de 2009. Recife: Gajop, 2009.

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À sombra do poder judiciário: mediação de conflitos no bairro do Ibura

Júlia Loonis Oliveira1

O Ibura é um bairro de periferia de uma metrópole brasileira, a cidade do Recife, e como tal tem características próprias, porém representativas de nossa realidade de violência, segregação e discriminação, lacunas dramáticas em educação, ausên-cia de familiaridade com os conceitos de cidadania, de direitos e deveres. É nesse bairro que funciona um dos três Núcleos de Assistência Judiciária da Prefeitura do Recife – Justiça Cidadã. Segundo dados recolhidos entre as pessoas atendidas no Núcleo, em 2007, no ensino médio não ingressaram 71,2% dessas pessoas, e um quarto delas não foi além da 4.a série do 1.º grau. Vale também ressaltar que, se-gundo dados coletados em 2008, 91,5% dos atendidos não participavam de ne-nhum grupo, associação ou entidade, o que denota um grau baixíssimo de orga-

1 Historiadora e internacionalista do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

nização, de participação na comunidade e prática da cidadania.2

As dificuldades que decorrem de uma realidade social tremendamente diferen-te da europeia, em que foi desenvolvi-do nos últimos anos o marco teórico do processo de mediação, eram previsíveis e são inevitáveis.

Um dos desafios com que nos confronta-mos todos os dias é conciliar um trabalho no nível extrajudicial com as expectati-vas de um público que só reconhece o va-lor de seus direitos e deveres no âmbito formal e pouco acessível do Judiciário.

O discurso mais comum que ouvimos por parte das pessoas que chegam pela primeira vez ao núcleo é: “Vim para bo-tar o pai” (ou, mais raramente, a mãe) “do meu filho na justiça.” Não há nada

2 Até o mês de setembro. Todos os dados relativos às ati-vidades de atendimento no Ibura são referentes a 2007, exceto este, uma vez que a pergunta "participa de algum grupo, associação, entidade?" não constava no questioná-rio de atendimento usado em 2007.

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de espantoso nesse discurso a priori, nes-sa esperança e expectativa de justiça. As pessoas que chegam ao núcleo o fazem esperando que seu problema seja resolvi-do por uma terceira parte.

Porém, passa a ser surpreendente ouvir essas mesmas pessoas repetindo e perpe-tuando a ideia de que “estão na justiça”, mesmo após terem recebido explicações sobre o processo de mediação oferecido no núcleo. Vale então perguntar a razão. Por que na hora de entregar a carta-con-vite ao ex-marido, quando o processo de mediação já lhes foi explicado, elas con-tinuam dizendo à outra parte que vão à Justiça? A resposta é simples e se torna evidente quando escutamos o depoimen-to das mulheres ou homens que vêm re-querer a atuação do núcleo: o peso da justiça, e somente ele, pensam, fará o ou-tro realmente comparecer.

Isso não significa que o processo de me-diação seja rejeitado. Pelo contrário, quando as duas opções – a de uma ação judicial e a da mediação – são apresen-tadas e propostas, observamos, quase surpreendentemente, que a opção pela mediação é, na grande maioria das ve-zes, privilegiada pelas pessoas que pro-curam o núcleo. A morosidade do Judici-ário, seu ponto fraco, acaba tornando-se o ponto forte da mediação.

No entanto, não se pode negar que a imagem do Judiciário continua predomi-nante, e quando as pessoas que procuram o núcleo se dirigem ao ex-companheiro para convocá-lo e lhe dizem que o colo-

cou na Justiça, elas ilustram perfeitamen-te essa realidade.

Como podemos explicar essa aparente ne-cessidade de judicializar seus conflitos?

Na verdade, nós mesmos, técnicos do Projeto Justiça Cidadã, em certos aspec-tos do nosso trabalho, acabamos endos-sando essa visão. Tentamos sair dela e não reproduzi-la, mas nos servimos dela para assegurar um mínimo de eficácia do pro-cesso de mediação.

Como já exposto, as pessoas que che-gam ao núcleo vêm à procura da Justiça no sentido de ordem judicial. A grande maioria delas nunca ouviu falar em me-diação, ou tem, no máximo, uma fami-liaridade com o conceito de conciliação. A ideia de que eles mesmos vão ser os próprios juízes, que a decisão tomada no núcleo deve partir deles mesmos, em si, não é rejeitada. Porém, sempre ou quase sempre, a preocupação da garantia é le-vantada, quando as mulheres (majoritá-rias em nos procurar) perguntam: “E se ele não vier, e se ele não cumprir?”

O Projeto Justiça Cidadã tem a particu-laridade de não ter começado como pro-jeto de mediação de conflitos, e sim co-mo um projeto de assistência judiciária descentralizada (identidade que ele ainda carrega no nome). Nos primeiros anos de atuação, os núcleos trabalharam com qualquer tipo de necessidade que apare-cesse no campo jurídico. Apesar do en-foque dado à mediação em questões de pensão alimentícia nos últimos anos, a equipe de advogados dos núcleos conti-

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nua entrando com ações judiciais de ali-mentos em certos casos, como aqueles caracterizados por violência doméstica e os casos de descumprimento de acordos feitos no núcleo.

No Ibura, os casos de violência domésti-ca são tão numerosos que deixam de ser uma exceção. Do mesmo modo, os ca-sos de descumprimento também são re-correntes. Em consequência, a atividade jurídica se desenvolveu tanto que exis-tem na verdade duas vias de ação: a me-diação e a ação judicial. O resultado dis-so foi que o esquema de atuação normal tornou-se o seguinte: se a tentativa de mediação não for bem-sucedida, parte-se para a ação judicial. Assim, quando as pessoas que procuram o núcleo pergun-tam “e se ele/ela (a outra parte) não vier, e se ele/ela não cumprir?”, a resposta da-da sempre é a mesma: se ele ou ela não vier, se ele ou ela não cumprir, restará a possibilidade de recorrer à Justiça.

É importante ressaltar que, na prática, a ação judicial – quando não por caso de violência, mas por descumprimento de acordo – só é intentada depois de várias tentativas de mediação, inclusive de me-diações de descumprimento. Quando um acordo não é cumprido, é comum pro-ceder a uma ou várias novas mediações, dando assim novas possibilidades para as partes resolverem seus conflitos fora do âmbito judicial stricto sensu, privilegiando sempre a mediação.

No caso da parte solicitada não compa-recer para a mediação, a parte solicitante é encaminhada para a Defensoria Públi-

ca. Afinal, não é mais objetivo do proje-to ser uma assistência judiciária propria-mente falando. Porém, antes disso, duas “cartas-convite” são enviadas ao solicita-do. Assim, se ele não comparecer à pri-meira solicitação, sempre é dada uma se-gunda chance para a mediação ocorrer. Na verdade, é interessante ressaltar aqui que não se trata duas vezes da mesma carta-convite.

De fato, a ambiguidade do nosso discur-so é evidente no caso desse convite pelo qual a “outra parte” é informada do dia e da hora da mediação. A primeira car-ta simplesmente estipula que a pessoa está convidada a comparecer para “tra-tar de assuntos de seu particular interes-se”. Fora o papel timbrado da Prefeitu-ra, não existe nenhum elemento objetivo ou subjetivo que possa dar a essa carta um peso legal ou coercitivo. Já a segunda carta, comporta um parágrafo adicional em letras capitais e em negrito: “O não comparecimento acarretará ajuizamento de ação judicial contra vossa senhoria, o que poderá findar em prisão.”

Com essa segunda carta, cai qualquer pretensão de voluntariedade das partes!

É difícil especular se teríamos baixas na demanda caso abandonássemos por com-pleto essa possibilidade de entrar com uma ação na Justiça. Incontestavelmen-te, esse amparo da ação judicial é essen-cial para as pessoas ali atendidas. Parado-xalmente, o que já se observa há vários anos, no Brasil e no mundo, é um proces-so de “informalização da Justiça”, o qual contrasta fortemente com o sentimento

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expressado pelas pessoas que são atendi-das no núcleo.

A informalização da Justiça está ligada, desde os anos 1980, à questão das difi-culdades de acesso à Justiça. Em meio a debates sobre essa questão, apareceram as chamadas três “ondas” de soluções, vi-sando ultrapassar obstáculos socioeco-nômicos para a primeira, obstáculos de representação jurídica para a segunda, e obstáculos processuais de acesso à Jus-tiça para a terceira. Basicamente, pode-mos dizer, citando Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 68), que “essa ‘terceira onda’ [...] centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanis-mos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir dispu-tas nas sociedades modernas”.

Esse enfoque produziu várias reformas, tanto nas formas de procedimento como nas estruturas, ou nas representações ju-diciais. No entanto, para o que nos in-teressa, a chamada “terceira onda” se ca-racteriza principalmente pela “utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71). É nessa caracte-rística da terceira onda que se encaixa o Projeto Justiça Cidadã, assim como ou-tras práticas existentes e desigualmente popularizadas como a arbitragem, a con-ciliação e a negociação.

Como explicar, então, que essas práti-cas – no caso, a utilização de mecanismos privados ou informais de solução de li-tígios – continuem não se refletindo no discurso das pessoas atendidas no Projeto

Justiça Cidadã? Em parte, provavelmen-te porque a ideia de um “poder coerciti-vo superior” continua sendo característi-ca de nossa sociedade. De modo geral, a sociedade moderna assimilou durante sé-culos que conflitos se resolvem no âmbi-to formal. Segundo Boaventura de Sou-sa Santos (1990, p. 25), “a atribuição ao Estado do monopólio da justiça formal, convertida assim em justiça oficial [...] constitui a inovação jurídica principal da modernidade”.

Essa organização societal foi assimilada e nos aparece como a forma “tradicional” de organização, na maioria dos casos não questionada pelos cidadãos, independen-temente de categorias socioeconômicas e profissionais. E se isso é verdade para as categorias socioeconômicas que têm mais acesso à instrução e informação so-bre as novas organizações e as novas pos-sibilidades, o que dizer das populações periféricas que têm pouco ou nenhum acesso a uma e outra?

Como já foi indicado, o trabalho nas pe-riferias se direciona a comunidades de baixa renda – em que 80,4% dos atendi-dos têm renda inferior a um salário mí-nimo – baixa escolaridade e baixo nível de organização na comunidade. O que notamos no discurso das pessoas atendi-das cotidianamente é que, para elas, uma concepção da justiça informal e extraju-dicial é, senão uma surpresa, uma novi-dade. Pelo menos, essa concepção ainda não chegou até elas. De certo modo, po-de-se dizer que as pessoas que chegam ao núcleo pela primeira vez não têm o pre-

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paro, não assimilaram essa nova propos-ta de organização da sociedade que é ao mesmo tempo não policial e não judiciá-ria. Por outro lado, como afirma Marília Pessoa de Mello:

A conciliação não agrada o ‘senso co-mum’, pois afasta qualquer idéia de puni-ção, diferindo da lógica do sistema penal. Esta medida procura atender aos anseios das partes quando proporciona o diálogo entre seus atores, possibilitando que es-tes encontrem a melhor maneira de mi-norar o seu conflito. Assim, esse instituto iria de encontro à tão almejada ‘seguran-ça jurídica’ prometida pelo sistema penal que se concretiza, simplesmente, com a imposição de uma pena. (MELLO, 2008, p. 114).

Essa constatação feita em relação à con-ciliação também é pertinente no que diz respeito à mediação, e fortalece a ideia de “desejo” de um poder coerciti-vo superior.

De certa forma, o que observamos de nossa pratica da mediação nos leva tam-bém a questionar a real efetividade desse processo não tão recente de informaliza-ção da Justiça, do qual a mediação pode-ria ser considerada uma das ilustrações mais representativas, e mais sendo resul-tado de uma parceria entre os poderes públicos e uma organização da sociedade civil. Aqui, é interessante notar que, no pensamento de Boaventura de Sousa San-tos (1990, p. 26), “a justiça informal nun-ca deixou de ser uma justiça oficial”, uma vez que, na verdade, “o poder do Estado insinua-se [...] no movimento de infor-malização da justiça”, pondo os poderes

sociais informais “ao serviço de uma nova eficácia da acção do Estado”. Poderíamos quase concluir, seguindo sua ideia, que, pelas incoerências relatadas anterior-mente, na verdade, as pessoas atendidas na mediação estão conscientes de que, apesar de ser extrajudicial e informal, há, sim, uma forma de Justiça estatal sendo exercida naquele momento. Como apon-ta Boaventura de Sousa Santos:

[...] o senso comum que serve de su-porte [aos mecanismos informais] tende a ser profissionalizado através de acções de formação de mediadores e de muitas outras formas; [...] as partes [...] vão a pouco e pouco confiando a representação a outros com mais conhecimentos [...]. Por estes e outros processos, a justiça in-formal vai duplicando, se não as formas, pelo menos, a lógica das formas da justiça formal. (SANTOS, 1990, p. 28).

Logo, na impossibilidade de negar a “cul-tura judiciária” que, sem dúvida alguma, reina na comunidade, nós a usamos e aca-bamos criando um processo de mediação efetivo sim, porém, graças à sombra do Poder Judiciário, que continua sempre existindo como um plano B.

Como encarar esses desafios: mediação e cidadania?

A mediação no Brasil é uma prática nova em processo de definição. Pode-se dizer, de certo modo, que a mediação se tor-nou uma opção na moda, e está muitas vezes vinculada à noção de cidadania.

Esse movimento partiu inicialmente das ONG vinculadas aos trabalhos comunitá-

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rios. Muitos projetos de mediação exis-tentes no Brasil têm por objetivo formar membros das comunidades para serem mediadores. A título de exemplo, po-demos citar o trabalho da JusPopuli na Bahia. Na base teórica desses projetos/programas, existe a crença originária na capacidade que têm as comunidades e os indivíduos − cidadãos livres e iguais − que a compõem de gerenciar parte de seus conflitos.

Porém, se os valores veiculados por esses movimentos são indiscutivelmente hu-manistas, é preciso definir o que se en-tende por “capacidade”. Na prática, en-tendemos por capacidade uma prática cidadã mínima que implica um conhe-cimento básico de seus direitos e deve-res. Infelizmente, não podemos nos dei-xar enganar quanto à realidade brasileira, em que a grande maioria da população não tem acesso à informação quanto aos seus direitos e deveres, e cuja garantia e pleno exercício continuam sendo mais um objetivo a ser alcançado do que uma realidade.

Como assinalado, o que observamos no discurso das pessoas que chegam ao nú-cleo é que os direitos são desconhecidos, muitos chegam baseando-se nas infor-mações que circulam na comunidade de modo errôneo: “Se eu sair do trabalho, não terei que pagar a pensão”; “a esposa que sai de casa perde seus direitos”, etc. Por outro lado, existem também dificul-dades relacionadas com o vocabulário comumente utilizado no âmbito jurídi-co e também repassado por nós. Termos

como “homologação”, “mediação” ou até mesmo a noção de “pensão alimentícia” não têm seu significado muito claro pa-ra os setores populares. Ora, a prática de mediação implica, sim, certa cidadania, tanto um conhecimento teórico como uma prática.

A mediação é um momento em que as partes devem estar em plena consciên-cia de seus direitos. É necessário, para fa-zer o acordo, que os dois estejam cientes de seus direitos e deveres que o acordo implica. Claro que transmitir essas in-formações é um dos papéis mais impor-tantes do mediador. Porém, também não se pode esperar que, em apenas algumas horas, os indivíduos que procuram o nú-cleo preencham as carências de um con-texto social caracterizado por baixo nível de escolaridade, baixa renda, violência nas relações interpessoais, etc.

Por outro lado, a mediação também sur-giu no âmbito do sistema judiciário na perspectiva de facilitação do acesso à Jus-tiça no contexto da “terceira onda”, que já assinalamos. Da instituição da media-ção, esperavam-se repercussões positivas na questão da cidadania. Como lembra Jaqueline Sinhoretto, é recorrente entre cientistas sociais, operadores jurídicos e gestores de políticas públicas considerar que a:

[...] expansão de serviços de justiça a ca-madas e bairros pobres, além da expansão do Estado de direito às áreas onde ele his-toricamente tinha sido falho, teria o efei-to pedagógico de aprendizado da demo-cracia e da cidadania, com reflexo sobre a redução da violência como mecanismo

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de resolução de conflitos interpessoais. (SINHORETTO, 2007, p. 3).

Daí se pode tirar duas constatações. A primeira é que a mediação dita comu-nitária, aquela que parte dos movimen-tos sociais, das ONG, que pressupõe uma autonomia e maturidade dos indivídu-os diante de seus conflitos, implica uma prática prévia de seus direitos, bem co-mo o conhecimento de seus deveres. Já a mediação, vista como “papel pedagógico da expansão dos serviços de justiça co-mo instrumento de consolidação de um estado democrático de direito” (SINHO-RETTO, 2007, p. 3), enfoca a cidadania como resultado da mediação, e não tanto como pressuposto indispensável.

As duas visões não são incompatíveis se pensarmos em termos de círculo virtuo-so: a mediação que permite uma difusão dos direitos, dos valores cívicos, que per-mitem a difusão de uma cultura de reso-lução de conflitos não violenta, não poli-cial e não judicial, que torna, por sua vez, a mediação o método mais eficaz de re-solução de certos conflitos, etc. Porém, como em muitos círculos virtuosos, o di-fícil é encontrar o ponto de partida.

Este artigo não tem a pretensão de jul-gar a efetividade dos serviços de justiça oferecidos aos bairros mais pobres como um todo, até porque é ainda impossível hoje ter uma visão global dos resultados de todos os projetos de mediação de con-flitos, ou outros de diferentes enfoques espalhados pelo Brasil. Contudo, o que se pode dizer, com a experiência do Jus-tiça Cidadã, é que antes de comprovar o

valor pedagógico da mediação, é preciso olhar para a capacidade das pessoas em participar do processo de mediação.

Portanto, a criação de uma cultura de mediação no Brasil logo se inscreve em um movimento global de divulgação dos direitos e deveres dos cidadãos, da au-tonomização das comunidades. Senão, o mediador sempre será assimilado a uma autoridade judiciária, detentor, se não do “poder coercitivo superior”, pelo menos da informação que lhe confere uma posi-ção de “superioridade”.

Em resposta a esse desafio, o Projeto Jus-tiça Cidadã procura estimular, por meio de seu atendimento, a consciência cidadã dos atendidos. Com esse objetivo, cria-ram-se dois momentos essenciais no pro-cesso de mediação: o Atendimento Cole-tivo para os solicitantes, no dia em que eles procuram o núcleo, e a pré-media-ção para os solicitados, momentos an-tes de começar a mediação propriamen-te falando.

O Atendimento Coletivo é o momento em que se procura trabalhar a questão da cidadania e da autonomia.3 É também o momento, com a pré-mediação, em que são repassadas as informações legais so-bre pensão e sobre o processo e a cultura da mediação em si. Porém, no processo inteiro de mediação, o Atendimento Co-letivo e a pré-mediação não deixam de ser uma introdução, uma preparação, e na vida das pessoas que procuram o nú-cleo, é um momento curto. Portanto, se

3 Cf. Hermínia Martins em artigo nesta publicação.

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o impacto positivo do Atendimento Co-letivo sobre o momento da mediação é indubitável, é muito difícil medir seu im-pacto na percepção dos direitos e da ci-dadania de modo geral e sobre a concep-ção da justiça e do direito em particular.

Principalmente, não se pode esquecer que as pessoas que vão núcleo chegam com necessidades e problemas muito precisos. Muitas vezes, escutamos o re-lato de mulheres violentadas, sem recur-sos para alimentar a si próprias e aos fi-lhos. São mulheres que precisam sair de casa, mas não têm as condições de fazê-lo. Na maioria dos casos, a vinda ao nú-cleo representa a “última opção”. Grande parte delas diz que não queria chegar até a justiça, mas não tiveram escolha. Nesse contexto, é difícil pedir a essas mulheres que estejam dispostas, abertas para um momento de “educação cidadã”. A urgên-cia de suas necessidades – por sinal, ne-cessidades básicas – é um obstáculo pa-ra que elas estejam receptivas a ingressar em um processo de conscientização para a cidadania.

Enquanto isso?

Enquanto isso, deve-se considerar que nossa atuação é uma mediação distor cida?

Na verdade, a resposta é não. Quando o técnico se encontra diante dos pais de uma criança para falar sobre pensão ali-mentícia, está atuando sim como me-diador. Naquele momento e naquele es-paço, ele atua como facilitador de um diálogo, uma negociação entre as du-

as partes. Graças à pré-mediação, tan-to o genitor como a genitora estão a par de seus direitos e deveres − pelo menos no que diz respeito ao assunto imediato, que é a pensão alimentícia −, assim co-mo das implicações de sua presença ali. O acordo depende da vontade das par-tes, e é resultado de uma negociação dos dois. Portanto, é possível, sim, trabalhar com mediação nas condições atuais. No entanto, é essencial guardar em mente as dificuldades e os desafios que existem e se manifestam no dia a dia, fora da sala de mediação.

É necessário também lembrar que existe uma diferença entre as práticas de me-diação entre vizinhos, ou ainda a media-ção escolar, e a mediação sobre pensão alimentícia. De fato, a questão da pensão alimentícia é estritamente enquadrada na lei brasileira. Seu pagamento é uma obri-gação da qual os pais não escaparão, quer seja por vontade própria, graças à atua-ção de um mediador, quer pela interven-ção da justiça. Essa particularidade do conflito em matéria de pensão alimentí-cia torna a questão do acesso à justiça co-mo plano B muito palpável, concreta e inevitável.

Assim, é preciso assumir o fato de que os acordos resultantes de uma mediação fei-tos nos núcleos do Projeto Justiça Cidadã são possíveis, na maioria dos casos, por-que existe uma ambiguidade. A media-ção cria um momento, uma situação de igualdade e de plena posse de seus direi-tos para as partes, “mimetizando o ritual da justiça civil”, que, porém (aqui, faço

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minhas as palavras de Jacqueline Sinho-retto a propósito das conciliações tradi-cionalmente feitas pela polícia), “cons-tantemente ameaça a mobilização do ritual penal, invoca o perigo da perse-cução do Estado sobre o indivíduo” (SI-NHORETTO, 2007, p. 4).

É possível então trabalhar com media-ção de conflitos sem se posicionar à som-bra do Poder Judiciário? Como tentamos demonstrar, nas condições atuais, a prá-tica de mediação de conflitos de pensão alimentícia está estreitamente vinculada ao Poder Judiciário e dependente de sua sombra.

No entanto, a grande novidade da me-diação como ela vem se desenvolvendo depois dos movimentos comunitários e com a atuação das ONG, em compara-ção com as práticas anteriores e tradicio-nais da conciliação policial, por exemplo, é que seu processo inteiro é assim vincu-lado à questão dos direitos humanos e da cidadania, sempre valorizado como espa-ço de promoção desses valores, direitos e deveres, cuja disseminação continua fa-lha nas periferias brasileiras.

Referências

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fa-bris, 1988.

MELLO, Marília Pessoa de. Do juizado es-pecial criminal à Lei Maria da Penha: teoria e prática da vitimização feminina no sis-tema penal brasileiro. Tese (Doutorado em Pós-Graduação em Direito) – Uni-

versidade Federal de Santa Catarina, Flo-rianópolis, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O Esta-do e o direito na transição pós-moderna: para um novo senso comum sobre o po-der e o direito. In: Revista Crítica de Ci-ências Sociais, Coimbra, n. 30, p. 13-43, jun. 1990.

SINHORETTO, Jacqueline. Informaliza-ção da justiça e pluralismo jurídico: o ca-so dos centros de Integração da Cidada-nia, SP. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 13., 2007. Recife. Trabalho apresentado. Recife: Universida-de Federal de Pernambuco, 2007. Dispo-nível em: <http://www.sbsociologia.com.br/congresso_v02/hot_papers.asp>. Acesso em 18 abr. 2009.

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A paternidade no contexto da ruptura conjugal de famílias pobres

Etiane Oliveira1

O interesse em pesquisar sobre o tema da paternidade surgiu durante o exercí-cio prático profissional no âmbito da psi-cologia jurídica no Projeto Justiça Cida-dã, uma iniciativa do governo municipal do Recife em parceria com o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop).

Tal projeto utiliza-se da ferramenta da mediação de conflito para estabelecer acordos de pensão alimentícia entre ho-mens e mulheres, que, na grande maio-ria, são moradores da periferia do Re-cife, com baixa escolaridade, exercem ocupações de baixa qualificação profis-sional, são mal remunerados ou estão completamente à margem do mercado de trabalho.

O tema central das mediações de confli-to familiar é o estabelecimento do acor-

1 Psicóloga clínica, professora do Departamento de Psi-cologia da Faculdade Vale do Ipojuca (Favip), mestranda do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE e ex-técnica do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

do de pensão alimentícia para os filhos, uma vez que os usuários do serviço, na maioria, apresentam o estado civil como separado. Durante essas mediações, o te-ma da paternidade é costumeiramente colocado em xeque e, muitas vezes, está completamente associado ao provimento das necessidades básicas do filho.

O contexto social da pobreza, sob o pon-to de vista dos homens que participaram das mediações de conflito, muitas vezes é caracterizado como a grande barreira para o exercício paterno, haja vista que eles se sentem impedidos de manter com dignidade os filhos, além de não partici-parem ativamente do dia a dia da prole devido à ruptura conjugal.

Sendo assim, foi nessa experiência profis-sional como mediadora de conflitos que surgiu o interesse em aprofundar leitu-ras e estudos sobre o universo masculi-no, enfocando o tema da paternidade em uma perspectiva psicossocial, em que são levados em consideração os recortes de classe e o estado civil.

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Aliado a esse interesse profissional, no âmbito acadêmico, o tema da paternida-de emerge como foco de pesquisa pelas demandas atuais da sociedade que visam compreender a importância das funções paternas em um contexto de mudanças sociais, o que acarretou uma verdadeira explosão de produções nas ciências so-ciais, saúde e, sobretudo, na psicologia. A crescente produção acadêmica em tor-no desse tema é comentada nos trabalhos de Dantas, Jablonski, Féres-Carneiro (2004), Perucchi (2008) e Vieira (2008).

Depois da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, que alertou para a importân-cia da participação masculina em ques-tões relacionadas com as doenças sexu-almente transmissíveis, o controle da natalidade e a participação masculina nos cuidados com os filhos, os estudos sobre homens e paternidade ganharam lugar de destaque no meio acadêmico.

Dessa forma, foi a partir da década de 90 que o tema paternidade garantiu seu lu-gar nas produções acadêmicas e poste-riormente cresceu de forma vertiginosa. Apesar da grande proliferação desses es-tudos, há ainda uma demanda de investi-gações que articulem o tema com o re-corte de classe. Essa crítica é expressa na pesquisa antropológica de Longhi sobre a construção cotidiana da relação pai−filho nas camadas de baixa renda, em que a au-tora faz a seguinte consideração: “[...] o pai-pobre não tem despertado grande interesse como objeto. Sendo ‘ausente’ o adjetivo que mais o qualifica, sua ausên-

cia na literatura também chama atenção.” (LONGHI, 2001, p. 26).

Estudos recentes sobre pobres urbanos mostram que a identidade masculina é fortemente ancorada no conceito de pro-vedor econômico e moral,2 o que carac-teriza o modelo tradicional de paterni-dade (BUSTAMANTE, 2005; LONGHI, 2001; SARTI, 1996). Partindo do prin-cípio de que esse grupo apresenta condi-ções desfavoráveis para arcar com o pa-drão hegemônico de masculinidade, que é reforçado pelo modelo tradicional de paternidade, torna-se relevante o desen-volvimento de pesquisas que abordem esse público, a fim de que possam contri-buir para elaboração e efetivação de polí-ticas públicas, programas e serviços vol-tados para homens.

Nesse sentido, é cada vez mais pertinente o desenvolvimento de estudos e pesqui-sas que favoreçam subsídios para a cons-trução de outros sentidos para a vivência da paternidade e da multiplicidade da ex-periência masculina, por meio da pers-pectiva de gênero como uma categoria de análise do sexo socialmente construí-do e incorporado como atributos mascu-linos e femininos (LYRA; MEDRADO, 2000).

2 Segundo Sarti (1996), esse conceito refere-se ao ho-mem como provedor da família no sentido econômico e moral, o que significa garantir a habitação, a alimentação e o respeito.

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Contextualizando a vivência paterna diante da separação e da pobreza

Segundo Bucher (1999), o crescente acervo da literatura sobre os novos ar-ranjos familiares é justificado pela cons-tatação da diversidade dos modelos de família na contemporaneidade, eviden-ciados nas estatísticas do mundo intei-ro, que apontam para o crescente núme-ro de divórcios, de família chefiada por mulheres, mães solteiras, homens soltei-ros ou viúvos que criam sozinhos os fi-lhos, entre outras formas de constituição familiar. Diante desse cenário, observa-se que algumas organizações familiares, como uniões homoafetivas, uniões está-veis, famílias reconstituídas, estão obten-do maior visibilidade e tornaram-se alvo de pesquisas e produções acadêmicas.

No Brasil, algumas estatísticas confir-mam que a instituição familiar depara-se com o aumento significativo de divór-cios, separações e uniões consensuais. Nesse sentido, Jablonski (2005) analisa a “crise do casamento contemporâneo” com base nos dados do IBGE, nos quais observou que o número de divórcios tri-plicou nos últimos anos, enquanto os ca-samentos registrados em cartórios dimi-nuíram em 12% no mesmo período.

Outro dado estatístico que merece desta-que é que, em 91,4% dos casos de ruptu-ra conjugal, a guarda dos filhos é conce-dida à mãe (IBGE, 2003). Isso se tornou alvo de pesquisa para Ridente (1998), que utilizou o exemplo da custódia dos fi-lhos para analisar a desigualdade de gêne-

ro nas relações parentais. A autora afirma que as distinções socialmente construí-das do gênero definem atribuições espe-cíficas para homens e mulheres no que se refere ao cuidado com os filhos, além de haver uma reiteração das instâncias ju-rídicas que, mediante o direito de famí-lia, também vê a mãe como a responsável “natural” pelo cuidado educacional-afeti-vo dos filhos, haja vista a grande tendên-cia jurídica em conceder à mãe a custódia dos filhos no caso de separação do casal, sendo um caso emblemático que expõe a desigualdade de gênero nas relações fa-miliares e nas instâncias jurídicas.

Apesar de a Constituição Federal de 1988 legitimar a condição de igualdade entre homens e mulheres no casamento e o no-vo Código Civil esclarecer que, no caso de separação consensual, a guarda dos fi-lhos deverá seguir a decisão dos pais, pa-ra Ridenti, a lei não explicita claramen-te o direito do pai à custódia dos filhos e ressalta: “[...] o direito paterno é pre-sumido e garantido somente se a mulher for considerada incapaz de assumir a cus-tódia.” (RIDENTI, 1998, p. 180), o que segundo a autora, favorece a formação de guetos intocáveis de poderes femininos e masculinos.

O momento de ruptura conjugal apre-senta-se como um tipo de catalisador pa-ra a crise e a mudança no contexto fami-liar, pois gera inúmeras transformações e propõe a reorganização dos papéis de ca-da um de seus integrantes, assim como da própria estrutura familiar. Dessa forma, alguns estudos observam como a separa-

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ção, o divórcio e a reconstituição fami-liar provocam mudanças significativas na constituição das famílias e o rebatimento que a separação conjugal provoca nas re-lações de gênero e, mais especificamen-te, no exercício da paternidade (VIEIRA, 2008; DANTAS; JABLONSKI; FÉRES-CARNEIRO; 2004; RIDENTI, 1998).

Segundo Henningen (2003), a rápida as-censão do número de separações/divór-cios e o afastamento do pai da convivência diária com os filhos geraram uma verten-te de pesquisa sobre as consequências da “ausência” do pai, em que se problema-tiza o processo de desenvolvimento dos filhos. Já os estudos que visam compre-ender as vicissitudes do universo mascu-lino, entre elas, a paternidade no contex-to de ruptura conjugal, surgem baseados nos estudos sobre a mulher, impulsiona-dos pelo movimento feminista, que se apresenta intrigado com as construções sociais dos papéis de gênero para a cons-trução da maternidade e da paternidade.

No que se refere aos estudos anteriores sobre o tema da paternidade com históri-co de ruptura conjugal, este artigo apoia-se nas pesquisas de Dantas, Jablonski, Fé-res-Carneiro (2004); Perucchi, Beirão, (2007); Fonseca (2004) e Vieira (2008).

Dantas, Jablonski, Féres-Carneiro (2004) buscaram investigar a formação da iden-tidade masculina e a construção/manu-tenção do vínculo afetivo entre pai e fi-lhos após a ruptura conjugal. Diante desse objetivo, observam que, nos momentos de redefinição familiar, os pais separados mesclam com a mãe de seus filhos as res-

ponsabilidades com os cuidados, educa-ção e provisão das questões materiais da prole.

Por outro lado, Perucchi e Beirão (2007) analisaram a paternidade, a parentalidade e as relações de gênero na ótica das mu-lheres chefes de família que cuidam sozi-nhas dos filhos e não coabitam com côn-juge ou companheiro. A coleta de dados foi realizada com entrevistas semi-estru-turadas com mulheres-mães, que man-tinham sozinhas o sustento familiar, as quais apresentaram as seguintes conside-rações: a valorização do pai para além do papel de provedor, ressaltando o papel de educador na vida dos filhos. Vale ressaltar que tanto a pesquisa de Perucchi e Beirão (2007) quanto a investigação de Dantas, Jablonski, Féres-Carneiro (2004) foram realizadas com famílias oriundas de ca-madas médias urbanas.

Nessa mesma perspectiva, que sugere a participação paterna no cuidado educa-cional-afetivo na vida dos filhos, Elaine Vieira (2008) apresenta um estudo fun-damentado na teoria das representações sociais sobre a guarda paterna. Dentre os sujeitos pesquisados, apresenta-se um grupo de 11 homens que são separados e detêm a guarda do filho, caracterizando o que alguns autores chamam de “nova paternidade”, marcada pelo exercício pa-terno por meio de uma relação de proxi-midade afetiva e o envolvimento nos cui-dados diários com os filhos. Quanto aos resultados das representações sociais de paternidade constituídas por esse gru-po, a autora apontou para a presença de

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elementos que caracterizam o modelo tradicional de paternidade, assim como elementos pertencentes ao conceito de “nova paternidade”. O nível socioeconô-mico dos participantes concentrava-se na classe média, mas três participantes eram oriundos de classes populares.

Porém, quando a discussão sobre pater-nidade se passa em um contexto de li-tígio conjugal, em que a figura do pai é questionada no seu caráter biológico, o estudo de Fonseca (2004) aponta para uma diversidade de facetas que perpas-sam as esferas jurídica e médica, além da influência dessas instâncias sobre as rela-ções de gênero e de parentesco na socie-dade contemporânea.

Dessa forma, no paper intitulado A Cer-teza que Pariu a Dúvida, Cláudia Fonseca (2004) apresenta os resultados de sua in-vestigação em diversos órgãos jurídicos de Porto Alegre em que acompanhou audi-ências com pessoas envolvidas em dispu-tas judiciais que dizem respeito à identifi-cação paterna por exame de DNA. Esses processos refletiam a solicitação de ho-mens que procuram desfazer um vínculo legal de paternidade que já existe, o que se subentende que o pai encontra-se em lití-gio e ruptura conjugal com a mãe dos fi-lhos. Nesse sentido, a autora afirma:

[...] há homens que, por não terem afi-nidades com a mulher, rejeitam qualquer relação com o filho; e, contrariamente, existem homens (em particular padras-tos) que assumem o status paterno, mes-mo sabendo que não existe fundamen-to biológico nenhum para essa relação. (FONSECA, 2004, p.16).

Sendo assim, a autora ressalta o aspecto afetivo/social como sobreposto do ca-ráter biológico da relação de paternida-de e afirma que a certeza tecnológica do DNA, muitas vezes acionado nos casos de ruptura conjugal, traz para o campo das relações familiares contemporâneas um julgamento técnico, com viés deter-minante da biologia, para a “resolução” de uma questão eminentemente social e afetiva, como o caso da paternidade.

Ao transitar pela literatura sobre conju-galidade, separação e reconstituição fa-miliar, observa-se que as pesquisas que abordam o tema da paternidade em um contexto de ruptura conjugal, na maioria, são desenvolvidas com sujeitos oriundos das camadas médias urbanas, o que su-gere o levantamento da hipótese de que existe um desinteresse em articular pa-ternidade e conjugalidade nos contextos de pobreza. Nesse sentido, seria interes-sante investigar como se dá a construção cotidiana da relação pai e filho, quando eles não convivem diariamente na mes-ma casa e se a pobreza colabora para maior afastamento do homem com rela-ção ao filho em razão da impossibilidade de arcar com o papel de provedor.

Desse modo, observa-se que a relevân-cia de estudos sobre homens e paternida-de surge em um cenário em que o papel definido e estabelecido para o homem no contexto social foi estremecido após a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho, dentre outras conquistas que caracterizam a emancipação feminina, assim como o alto índice de desempre-

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go dos homens, que coloca em questão o lugar do homem e da mulher na família e na sociedade.

Nesse cenário, o modelo tradicional de masculinidade e de paternidade caracte-rizado por um homem que arca com as despesas financeiras e é a referência mo-ral da família, é uma herança do patriarca-do de difícil manutenção. Afinal, as trans-formações socioeconômicas e políticas, além das redefinições provocadas pelo feminismo sobre o papel das mulheres na sociedade, sugerem novas referências de masculinidade na contemporaneidade.

Alguns autores chamaram essa instabili-dade do papel do homem contemporâ-neo de “crise da identidade masculina”, que é marcada pelo desconforto do ho-mem na relação com parceiras, mulheres e filhos, o que leva estes a questionar seu papel como homem, pai e companheiro (MEDRADO, 1997; NOLASCO, 1993; RIBEIRO, 2000; TREVISAN 1998). De acordo com Nolasco, esse desconforto masculino parece surgir quando os ho-mens adotam um modelo tradicional que não atende às demandas da sociedade contemporânea.

O modelo tradicional de paternidade que sugere o exercício paterno mediante o provimento do lar cria no homem-pai e pobre o sofrimento da aniquilação pa-terna, uma vez que, diante das condições socioeconômicas do País, os homens-pai encontram-se cada vez mais impedidos de executar o pleno papel de provedor. O crescente número de domicílios que estão sob a responsabilidade feminina

evidencia esse problema. Na cidade do Recife, por exemplo, 32% dos domicí-lios têm a mulher como pilar econômico, segundo o censo demográfico de 2000 (IBGE, 2003).

Esse dado é reforçado pelo Departamen-to Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), segundo o qual, na cidade do Recife, nos níveis mais baixos de escolaridade, a proporção de mulheres chefes de domicílio superou a de homens. Ressalta, ainda, que, nesse cenário, destacam-se as mulheres respon-sáveis pelo domicílio que são analfabetas, sendo essa condição uma característica marcante da população pobre do Brasil. (DIEESE, 2003).

No que se refere à configuração de famí-lias pobres, especificamente as que são chefiadas por mulheres, Sarti (1996) faz a seguinte observação sobre a atuação do papel masculino e feminino no contexto familiar de pobreza:

[...] Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econômica da família, ocorrem modificações importantes no jogo de relações de autoridade, e efeti-vamente a mulher pode assumir o papel masculino de ‘chefe’ (de autoridade) e definir-se como tal. A autoridade mascu-lina é seguramente abalada se o homem não garante o teto e o alimento da famí-lia, funções masculinas, porque o papel de provedor a reforça de maneira deci-siva. Entretanto, a desmoralização ocorri-da pela perda da autoridade que o papel de provedor atribui ao homem, abalando a base do respeito que lhes devem seus familiares, significa uma perda para a família como totalidade, que tende-

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rá a buscar uma compensação pela subs-tituição da figura masculina de autorida-de por outros homens da rede familiar. (SARTI, 1996, p. 67, grifos da autora).

Para a autora, a pobreza afeta diretamen-te o homem, porque ele tem sua identi-dade muitas vezes fundamentada no pa-pel de provedor da família, o que o torna sensível à recessão e à recuperação eco-nômica. Dessa forma, ressalta que a vul-nerabilidade da família pobre, quando centrada no pai/provedor, repercute na frequência de rupturas conjugais, respal-dadas no não-cumprimento das expec-tativas criadas em torno da figura mas-culina, que se sente “fracassado” por não garantir o sustento da família. (SARTI, 1996, p. 6).

Diante da reverberação que a pobreza exerce sobre a identidade masculina e da influência que essa situação econômi-ca provoca no exercício da paternidade, para realizar este artigo, foi necessário buscar maior fundamentação em estudos anteriores que investigaram as relações parentais nas famílias pobres do Brasil. Nesse sentido, as pesquisas de Bustaman-te (2005), Bustamante e Trad (2007), Longhi (2001) e Sarti (1996) foram es-senciais para maior compreensão dessa problemática.

A pesquisa de Longhi (2001) partiu de três eixos fundamentais para compreen-der os lugares possíveis de concretização da relação pai e filho, que são os concei-tos de família, de pobreza e de masculini-dade, para então observar na fala de filhos adolescentes do sexo masculino e dos ho-

mens-pai como se dá o vínculo paterno. Nesse estudo etnográfico, realizado na ci-dade do Recife com moradores da Favela do Bode, no bairro do Pina, o conceito de provedor apareceu em amplo sentido po-lissêmico, o que permitiu analisar outras formas de provimento paterno, tais co-mo provedor de conhecimento, de prote-ção, de autoridade, além do clássico con-ceito de provedor econômico.

Ainda na perspectiva antropológica, Vâ-nia Bustamante (2005) realizou uma pes-quisa de cunho etnográfico com homens pobres, pais de crianças menores de seis anos; o objetivo principal era conhecer as vivências em torno da paternidade por meio da relação entre os discursos e as práticas. Nessa pesquisa, a autora obser-vou que se sentir pai não é algo determi-nado pelo laço biológico com a criança, e sim fortemente influenciado pela quali-dade da relação com a mãe do filho e pela própria experiência como filho. Também ressaltou que no contexto de pobreza ser provedor é uma condição necessária pa-ra ter uma relação afetiva com os filhos, e os cuidados domésticos com a criança são considerados pelos pais como uma característica plenamente feminina.

No que se refere aos cuidados domés-ticos dos homens-pai com os filhos, em um contexto social de pobreza, Busta-mante e Trad (2007) realizaram um es-tudo sobre a participação paterna no cui-dado de crianças pequenas em famílias de camadas populares, em uma pesquisa et-nográfica, desenvolvida pelo método de observação participante e entrevistas,

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com famílias moradoras da periferia de uma capital nordestina. Como resultado, observou-se a identificação dos homens com o exercício de papéis tradicionais de gênero, mas, também, verificaram-se al-gumas dimensões da atuação masculina no que se refere aos cuidados domésticos com crianças pequenas, tais como proxi-midade física e emocional com os filhos.

Por outro lado, Sarti (1996), no seu re-nomado trabalho acadêmico denomina-do A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos pobres, realizou um estudo que abrange as relações familia-res enfocando não apenas a relação pa-terna e sim a amplitude dos arranjos afe-tivos que surge no âmbito familiar dos pobres. Nesse sentido, apresenta dados de uma pesquisa etnográfica com famí-lias de baixa renda da periferia paulista-na e enfoca as relações de gênero, entre pais e filhos, marido e mulher e como se dá a relação entre vizinhos. Nesse es-tudo a autora pôde observar quanto a condição de pobreza abala a estrutu-ra psíquica e as relações sociais do ho-mem que não consegue manter o papel de provedor do lar.

Apesar de alguns pesquisadores apon-tarem para outros modelos de paterna-gem − tais como a perspectiva moderna que enfatiza o papel do pai no desenvol-vimento moral, educacional e emocio-nal dos filhos, e a perspectiva emergente que alega a capacidade do pai em partici-par ativamente dos cuidados com a cria-ção dos filhos (FEIN, 1978 apud DAN-TAS; JABLONSKI; FÉRES-CARNEIRO,

2004) − os estudos anteriormente cita-dos sobre pobres urbanos (BUSTAMAN-TE, 2005; LONGHI, 2001; SARTI, 1996) mostram que a identidade dos pais das camadas populares é fortemente an-corada no conceito de provedor econô-mico e moral, mesmo que o contexto so-cioeconômico não favoreça a apropriação do homem nesse papel.

Assim, diante da impossibilidade de exer-cer na vida cotidiana o papel de prove-dor, torna-se imprescindível observar a existência de possíveis práticas de pater-nidade diante da separação e da pobreza, que vão além do ato de prover, tais como o resgate afetivo da relação pai−filho, o desejo de obtenção da guarda dos filhos, o interesse de se envolver mais com o co-tidiano de cuidados com a prole, dentre outras formas de se experimentar a vida familiar com os filhos após a separação; para, então, pensarmos em alternativas que também compõem a identidade de pai para além do “roteiro paterno” herda-do pela cultura patriarcal.

É nesse cenário que se torna relevan-te desenvolver novos estudos que vi-sem compreender como são represen-tadas as práticas de paternidade em um contexto de pobreza, que dificulta o es-tabelecimento do homem-pai no papel de provedor, assim como em um qua-dro de ruptura conjugal, no qual o pai se distancia do convívio diário com os filhos, tem o dever judicial de arcar com as despesas da prole e, acima de tudo, uma relação afetiva que merece ser alvo de cuidados.

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Referências

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O projeto Justiça Cidadã e a perspectiva do acesso à justiça

Luís Felipe Andrade Barbosa1

1. O acesso à justiça

De antemão, é imprescindível para nossa discussão entender o significado da ter-minologia acesso à justiça. Na doutrina jurídica brasileira, esse termo refere-se à ideia de acesso à ordem jurídica justa, não se coadunando apenas com a mera admissão no processo ou a possibilidade de ingresso em juízo.

Segundo Cintra, Grinover e Dinamarco (2004, p. 33), o acesso à justiça signifi-ca a ampla admissão de pessoas e causas ao processo: universalidade da juris-dição, garantindo-se a observância das regras que norteiam o processo; devido processo legal, em meio ao qual as par-tes possam participar de forma ativa, por meio do diálogo, para o convencimento do juiz; contraditório, de forma que se-ja preparada uma solução justa, capaz de eliminar qualquer resíduo de insatisfação – pacificação com justiça.

1 Advogado, cientista social e técnico do Projeto Justi-ça Cidadã.

Não obstante essa gama de princípios consagrados pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2005), existem alguns aspectos que não são observados pela justiça formal, edificada no Poder Judi-ciário. As características suscitadas pela doutrina jurídica implicam uma huma-nização do Judiciário, de forma que es-te proporcione uma acolhida efetiva dos cidadãos.

Outro aspecto extremamente relevante é que a acepção acesso à justiça admite uma interpretação extensiva, englobando outros mecanismos de pacificação social, além do processo. Nesse sentido, pode-mos enquadrar os mecanismos da conci-liação, da mediação e da arbitragem.

Os cidadãos devem ter em mente que na atualidade há uma confusão sobre o en-tendimento do acesso à justiça, ressaltan-do-se sua consagração no âmbito formal apenas com a possibilidade de ingres-so em juízo. Dessa forma, podemos res-saltar que nesse âmbito existe um aces-

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so inicial que não significa propriamente um acesso efetivo à justiça.

Ademais, devemos pontuar que o aces-so à justiça subtende a ideia de acesso ao direito, ou seja, da existência de instru-mentos que possibilitem a conscienti-zação da população sobre seus direitos, para que possam exercê-los. É a partir desse conhecimento que se proporciona o exercício da cidadania, transformando indivíduos em cidadãos.

Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 31) assevera que existe, além da falta de conscientização sobre direitos, uma de-manda suprimida, gerada por uma parce-la da população que tem consciência dos seus direitos, mas que se sente intimida-da e impotente quando estes são viola-dos. Conforme pontuaremos adiante, esse sentimento é perceptível nas classes populares.

Diante dessa problemática, o autor pro-põe uma revolução democrática da justi-ça, com a criação de uma cultura diferen-ciada de consulta jurídica e de assistência e patrocínio judiciário, sendo feita em ní-vel judicial e extrajudicial de forma inte-gral e gratuita.

2. Um olhar sobre o judiciário

Valendo-se do instrumento da Mediação, o Projeto Justiça Cidadã insere uma nova perspectiva acerca do acesso à justiça.

Contudo, é importante ressaltar que a Mediação não exclui a atividade jurisdi-cional. Muito pelo contrário. Seu prin-cipal objetivo é, conforme já ressaltado,

proporcionar instrumentos para que os cidadãos possam discutir, de forma pa-cífica, seus conflitos, encontrando solu-ção para eles. Porém, há casos em que a solução não é possível, ou mesmo não é indicada, a exemplo dos casos de violên-cia doméstica. Nesses casos, torna-se im-prescindível a prestação jurisdicional.

O que é defendido pelo Projeto Justiça Cidadã é que a população pode valer-se de outros mecanismos para pacificação de seus conflitos, além do Poder Judici-ário. No que concerne à fixação de uma pensão alimentícia, quem melhor do que as próprias partes para avaliar a real si-tuação na qual vivem, suas possibilida-des e a real necessidade daquele que a reivindica?

Sem dúvida, no âmbito do Poder Judici-ário do Recife – especificamente no que atine às Varas de Direito de Família –, há várias iniciativas que visam à celeridade da prestação jurisdicional, as quais consi-deramos bastante válidas. Contudo, ainda permanece, na grande maioria, um visível distanciamento entre os membros desse Poder e a população em geral, especial-mente em relação às classes populares.

Para essa parcela da população, o Fó-rum do Recife é visto como um ambien-te estranho, um prédio de tamanho es-magador, permeado por autoridades que utilizam uma linguagem de difícil com-preensão. Uma mistura de medo e de respeito toma conta da consciência cole-tiva desses indivíduos. Esses aspectos se constituem como o primeiro obstáculo encontrado.

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Quando essa barreira é quebrada, do pri-meiro contato com o mundo formal do Judiciário, ao qual nomeamos de pri-meiro acesso, há a dificuldade de acom-panhamento das suas ações dentro das Secretarias das Varas, em especial nas an-tigas Varas de Assistência Judiciária, cria-das outrora para as classes populares, as quais não possuem condições para cons-tituir um advogado particular, sem com-prometer a própria subsistência.

O fato a ser ressaltado é que, coinciden-temente, essas Varas de Família são as que têm números exorbitantes de ações. Além do grande número, há um déficit considerável no que atine aos técnicos e analistas judiciários, comprometendo so-bremaneira o atendimento à população e aos advogados.

Diante dessa situação, algumas varas es-tabelecem dias específicos de atendimen-to às partes, fato que visivelmente vai de encontro ao próprio conceito de acesso à justiça, tão difundido atualmente, em termos de doutrina jurídico-processual. O número de dias varia entre dois e três, dependendo da Vara de Família, coinci-dindo propositalmente com os dias em que o Defensor Público, que responde por ela, encontra-se presente.

É importante ressaltar, também, que as secretarias foram pensadas de uma for-ma que se possibilitou a divisão entre o balcão de atendimento e a secretaria propriamente dita, por meio das corti-nas. Excepcionalmente, em algumas va-ras de família, essas cortinas encontram-se abertas, vindo a coincidir com as que

apresentam os melhores resultados em termos de celeridade processual, segun-do nossa experiência.

Desse modo, em muitas secretarias, não é possível o contato visual com seus fun-cionários, ficando a população – e tam-bém os advogados – à mercê de longas esperas, configurando-se um verdadeiro exercício de paciência. Todos esses obs-táculos precedem o que chamamos de segundo acesso.

Por último, ultrapassados esses óbices, devemos pontuar a respeito da audiência. Para as classes populares, esse talvez seja o momento de maior temeridade, pois é ne-le que ficam frente a frente com o juiz. Esse fato não se circunscreve apenas às partes, sendo sentido também pelas testemunhas. Na cultura brasileira, o juiz é visto como uma figura colossal, ao qual se deve obedi-ência e respeito sobre-humanos

É de conhecimento público que os ma-gistrados são pessoas dotadas do saber jurídico, capacitadas para a aplicação da justiça. Contudo, esse tratamento en-deusador é um grande empecilho pa-ra a aproximação da população ao Judi-ciário, bem como para a sensibilização desse Poder sobre sua responsabilidade sociopolítica.

Ademais, a construção jurídico-positiva brasileira foi feita valendo-se de uma lin-guagem extremamente rebuscada, que não atende às necessidades da popula-ção, formada em geral por pessoas que tiveram pouco acesso ao conhecimento. Esse fato é visto com frequência nas au-diências de conciliação, instrução e julga-

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mento, em que as pessoas enfrentam difi-culdades para compreender aquilo que é dito, bem como nas sentenças proferidas, constituídas de termos que não fazem parte do vocabulário usual daquelas.

Esses óbices formam, portanto, a últi-ma etapa do acesso à justiça em primeira instância, ao qual nomeamos de terceiro acesso.

Considerações finais

De forma geral, entendemos que o Ju-diciário não foi edificado tendo-se em vista o atendimento à população. Nessa medida, é imprescindível uma reorienta-ção, uma mudança de paradigma, de for-ma que ele venha a se transformar em um espaço de humanização, de fortaleci-mento da cidadania.

Grande parte da culpa por essa situação é em face da construção sociopolítica brasileira, que impingiu outrora um pa-pel ao Judiciário que se coadunava com as necessidades de uma pequena parcela, que detinha plenos poderes na adminis-tração do Estado.

Contudo, mesmo diante dos avanços ob-tidos, principalmente a partir da rede-mocratização, com a promulgação de uma nova Constituição em 1988, que fi-cou conhecida como Constituição Cida-dã, alguns resquícios de outrora ainda permanecem. É verdade que a democra-cia brasileira tem pouco mais de vinte anos, mas já é o momento de pensarmos e construirmos meios que consagrem a

cidadania, tendo como subsídio a digni-dade da pessoa humana.

Os meios alternativos de acesso à justiça possibilitam, a exemplo do Projeto Jus-tiça Cidadã, maior aproximação da po-pulação com o mundo jurídico, no seu papel de agente propagador e conscienti-zador dos direitos individuais e coletivos. Proporcionam também, em um primei-ro momento, a diminuição das demandas discutidas em sede do Poder Judiciário, mas acabam por fortalecê-lo, ao reforçar seu papel político-social, como um ins-trumento de exercício da cidadania.

Conforme salienta Santos (2007, p. 89), devemos ter como meta a criação de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a se sentirem mais próximos da justiça, pois não haverá justiça mais próxima dos cida-dãos se os próprios cidadãos não se senti-rem mais próximos da justiça.

É nessa perspectiva que todo o ordena-mento jurídico pátrio, bem como nosso trabalho, devem ser pautados.

Referências

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As cortinas e a lentidão judicial

jurídica, da ambição financeira, aspectos infelizmente realçados, a depender, no decorrer da academia. O talento da es-cuta, da atenção é fundamental, sobretu-do a paciência para enfrentar o dia a dia nos fóruns.

Desenvolvemos um trabalho de assistên-cia judiciária gratuita, promovido por meio desse projeto no âmbito municipal, em Recife-PE, descentralizada em nú-cleos situados em bairros populosos, os quais abrangem os vizinhos. Nosso públi-co maior é composto de pessoas, na gran-de maioria, que vivem na linha ou abaixo da pobreza, sobrevivem de pequenos bis-cates e moram precariamente em região de periferia. Vulneráveis socialmente, bus-cam no serviço, por ser este localizado na comunidade, com proximidade geográfi-ca, a via imediata para ajudá-las a encon-trar e reunir informações no sentido de construir a melhor solução de dirimir seus conflitos e minimizar parte de suas difi-culdades, seja por meio de uma orienta-ção, mediação, seja de uma ação judicial.

Enauri Galvão1

Recebo de forma muito surpreendente − desde já agradeço − a oportunidade de nas breves linhas escrever um pouco sobre a vivência e atuação ao longo do período em que estou como advogada popular do Projeto Justiça Cidadã (PJC), composto por uma equipe multidiscipli-nar formada de assistentes sociais, psicó-logos e advogados, projeto que se pro-põe a promover e incentivar a cidadania. A ideia surgiu após ouvir as inúmeras ob-servações e insatisfações de pessoas que estão com processo na Justiça − seja re-presentadas por intermédio do Projeto Justiça Cidadã, seja de outra forma − nas vezes em que estive com elas ou sozinha atuando em seu processo nos balcões da Justiça, presenciando fatos que merecem uma intervenção.

Ser advogada popular, além de instru-mentadora dos direitos humanos, é ta-refa que exige de si despir-se da vaidade

1 Advogada do Gajop no Projeto Justiça Cidadã no pe-ríodo de 2003-2008.

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O trabalho é dinâmico e diverso. As orien-tações são das mais variadas, um balcão de cidadania. As questões de família se destacam, mais precisamente, no tocante à pensão alimentícia, sobre a qual surgem as perguntas e dúvidas, tais como, quem tem direito ao pedido, quem deve pres-tar os alimentos, até quando perdura o direito em receber, qual o valor que deve ser prestado, entre outras.

Com o olhar voltado para a promoção da cidadania, e diante do número elevado de público que nos procura e é atendido pelo projeto, em grande proporção, vale destacar, nossa equipe idealizou, concre-tizou e promove até o momento o aten-dimento coletivo, ou seja, diariamente, reunimos pessoas interessadas, dispos-tas a interagir e analisar seus conflitos de forma coletiva. Raramente realizamos o atendimento individual, este tradicional-mente conhecido como o de “bureau”, mas geralmente o de forma coletiva, co-mo falamos, no sentido de propiciar aos participantes a autonomia, reflexão e a construção coletiva na temática, a troca de informações e experiências e a opor-tunidade de alcançar resultados de for-ma mais rápida, mediante a utilização do instrumento da mediação, ferramenta considerada atualmente o carro-chefe de nosso trabalho.

Todavia, nem todos os casos trazidos e apresentados pelos munícipes sugerem a aplicação da técnica da mediação, es-pecialmente os que englobam violência (urbana e doméstica), tendo em vista re-comendar um caráter coercitivo na in-

tervenção. Esses casos serão levados para o conhecimento e providências judiciais.

Por exemplo, observamos que alguns conflitos aparecem com o objetivo prin-cipal de pedido da pensão alimentícia, entretanto gerado de uma violência do-méstica, instalada, sofrida, que nas pri-meiras palavras não é dita, encontra-se naquele momento mascarada. No de-correr do atendimento inicial, nas falas surge, e assim detectamos. Esses casos, denominados emblemáticos, serão ma-nifestados para o Judiciário por meio de representação legal, o eixo importante de atuação no nosso trabalho denomina-do assistência judiciária gratuita.

Vale destacar que a cultura de não denun-ciar a violência doméstica ainda é muito frequente, tendo em vista o receio da re-percussão que a violência urbana poderá vir a ter no caso, apesar do esforço que colaboradores, mídia, profissionais da área fazem para o êxito na denúncia. Ob-servamos que o temor para a denúncia é grande, por isso, há predominância em buscar o instrumento da mediação popu-larmente conhecido como o acordo.

Nos casos não emblemáticos, a mediação é bastante sugestiva em razão da opor-tunidade que favorecemos as partes pa-ra o diálogo facilitado por um terceiro diverso, estranho ao conflito, além da construção de entendimentos e rapidez na solução. Sobretudo, o que é pactua-do verbalmente é reduzido a termo, após lido, assinado pelas partes, ou colhida a impressão digital, a rogo, conforme o ca-so, ficando estabelecido os direitos e de-

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veres comuns. Esse é o aspecto de segu-rança e confiabilidade.

Outra ferramenta que utilizamos é a con-ciliação. Há casos em que a maneira de interagir com o conflito entre as partes é diferente. Nossa intervenção é mais téc-nica, direta, no sentido de apontar a for-ma adequada para a solução, e esta incide nos casos de descumprimento dos pactos firmados na mediação.

A fragilidade do nosso trabalho está quan-do ocorre o descumprimento habitual dos pactos firmados nos instrumentos de acordo, mesmo construídos sob a condu-ção de um técnico social, um psicólogo, assistente social e advogado, com as ade-quações necessárias, mas que não pros-perou. Essa situação será encaminhada para a tutela jurisdicional, por intermé-dio da assistência jurídica promovida pe-la equipe jurídico-popular do PJC. Tem sido um desafio conciliar o descumpri-mento da pessoa que insiste em continu-ar descumprindo com o prolongamento da decisão do Judiciário, quando provo-cado para olhar o caso.

Acompanhamos um número considerá-vel de processos judiciais, compreendi-dos em: ação de alimentos, investigação de paternidade, tutela, guarda, curate-la, separação de corpos, separação judi-cial, divórcio, justificação e dissolução de união estável, restauração de assenta-mento civil, retificação civil, etc. Em al-guns desses casos, a demora favorece a recusa do devedor se a ela for contencio-sa ou prejudicar o autor se carecer de uma posição declaratória judicial.

Houve um caso em que o suspeito foi al-cançado sem documentos de identifica-ção durante uma perseguição a assaltan-tes. Detido, permaneceu recolhido por um longo período, tendo em vista a ale-gação da falta de documentos, apesar de se encontrar tramitando em juízo a ação de restauração civil. O juízo foi comuni-cado do fato, mas, mesmo assim, a ques-tão se prolongou. A pessoa foi violada de sua liberdade por um longo período em razão da precariedade judicial.

Noutro caso, a representante do menor ingressou com um pedido de investiga-ção de paternidade. O suposto pai, pes-soa de classe social A, constituiu um grupo jurídico conhecido, utilizou-se de várias formas para evitar a citação. A re-presentante do menor, pessoa de clas-se C, de nível em entendimento baixo, porém visivelmente segura nas observa-ções. Declaradamente revel, ao reque-rido foi dada outra oportunidade de au-diência, ocorrida neste ano. Na ocasião, a requerente foi interpelada pelo Juízo. Nas perguntas, havia um certo ar para fragilizá-la. Sentindo-se prejudicada, a requerente protestou e foi mal interpre-tada. O juízo declarou-se suspeito. As-sim, a criança continuará sem a proteção paterna e sem a ampla cidadania.

Constitucionalmente a prerrogativa de acesso à Justiça pelo cidadão é assegura-da embora na prática os fatos demons-trem muito mais o contrário. A justiça é deficiente, lenta e, na maioria das vezes, não funciona corretamente; prejuízos so-ciais se somam e correspondem a núme-

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ros elevados. Apenas quem está na pon-ta, acompanhando, sofre na pele e pode afirmar tal posicionamento. Demandas judiciais que se estendem por anos e anos sem decisão. Temos ações que envol-vem a fome, a vida, a dignidade da pes-soa, mas permanecem há seis meses sem nenhuma providência judicial declara-da. A sociedade esbarra frequentemente em um sistema falido que urge por uma reestruturação.

Os prazos em despachos decorren-tes desses processos são cuidadosamen-te atendidos. Ressalta-se que na relação processual todos estão obrigados a cum-pri-los, embora, na prática, somente va-lha para advogados e partes, aspecto esse que contribui para a morosidade.

Nos casos analisados que não sugerem a mediação, sendo necessário ingressar em juízo, percebe-se nas palavras e no semblante das pessoas quanto recusam em amparar-se no sistema. Surge logo o questionamento: “A ação vai demorar? Em quanto tempo resolve?” Essa preo-cupação é geral. Temos vários casos em que as pessoas não retornam com os do-cumentos indispensáveis para a proposi-tura da ação judicial em razão da famosa lentidão na Justiça. A preferência é para a utilização da mediação, popularmente conhecida como acordo.

Outra característica de nossa atuação é a ênfase educativa que propiciamos ao mu-nícipe durante o atendimento, pois acre-ditamos que ela seja capaz de transformar positivamente, impedir que condutas negativas prosperem, consequentemen-

te, que iniba a violência. Na prática, isso funciona com o repasse de forma clara, objetiva, em linguagem de fácil compre-ensão, as orientações para cada caso.

Verificamos que a expressão “vim fa-zer um acordo” é muito comum nas fa-las trazidas, e aproveitamos o viés para destacar a vantagem, sensibilizar a comu-nidade, por meio daquele munícipe pre-sente, de que o diálogo firme, respeita-dor, facilitado por um terceiro diverso é capaz de melhorar o que não está bom, renovar forças e construir algo positivo. Por exemplo, no caso de pai que após a ruptura da relação despreza o filho. Na ocasião do encontro das partes para a mediação, trazemos para a reflexão a im-portância do acompanhamento daquele pai na vida de seu filho. Lembramos a ele que o apoio afetivo e educacional é es-sencial para o crescimento, assim como os alimentos ali requeridos, pois o filho que cresce acompanhado pelos pais não tem a tendência de se perder.

Como destacamos, acompanhamos um número de processos judiciais, a maior parte ação de alimentos, de procedimen-to especial, para crianças sob a guarda da genitora que se encontra em estado pre-cariíssimo material e de violência domés-tica. Outras causas envolvendo idosos (usucapião), com preferência na condu-ção do processo de acordo com a legisla-ção, porém não considerados; por isso se estendem por longos períodos sem moti-vos plausíveis.

A burocracia desnecessária vem exer-cendo grande influência na condução dos

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processos, um incentivo para a morosi-dade judicial. Mesmo com as facilidades que a tecnologia oferece, possibilitan-do que se resolvam coisas de forma mais simples, ainda existe uma tendência que não aceita desconstruí-la. Uma odisséia.

Na qualidade de advogados, assumimos a representação legal dessas pessoas; ins-trumentadores desses processos, por consequência, rotulados pela morosi-dade judicial. As partes e seus advogados são as verdadeiras vítimas de uma pres-tação jurisdicional morosa e tardia. Nós que estamos do lado de fora do balcão, avistando aquelas cortinas, sabemos a di-mensão dos reflexos de um processo que se estende e se estende.

É questionável e penosa a maneira como a população se planta perante o balcão dos cartórios à procura de informações acerca de sua demanda com o intuito de resguardar e apropriar-se de seus di-reitos. Filas são formadas, aglomeração; olha-se para os lados, somente cortinas. Estas impedem que a população acom-panhe o ruge-ruge dos trabalhos e pos-sa reivindicar do poder público uma pro-vidência. O tempo passa e haja espera. Portas fechadas, limitação em número e em dias para atendimento às partes e tu-do mais. O problema é crônico e exige posicionamento eficaz da administração pública. Processos que permanecem con-clusos por mais de dois anos, por maio-res que sejam as dificuldades naturais, o tempo não justifica! Esse é o aspecto pe-noso e frustrante de nossa trajetória.

Após o mapeamento das demandas para-das e para avançar em nossa atuação ju-rídico-procedimental e descaracterizar a vaga impressão de que somente o advoga-do pode circular na Justiça, procedemos com a orientação e incentivo para que os interessados, munidos do documento de identificação e do número de seu pro-cesso judicial, destemidos, ocupem seu verdadeiro lugar de cidadãos e façam va-ler o acesso à Justiça, recebam informa-ções acerca do seu processo e contribu-am para a quebra da resistência.

Ao advogado, cabe a impulsão e ade-quação dos procedimentos processuais, porém às informações para cada cida-dão, sendo parte da relação processual, ele pode ter acesso e recebê-las. A resis-tência está no tradicionalismo de alguns operadores da Justiça, que insistem em não fornecer informação pertencente ao processo às partes, alegando que somen-te o advogado poderá obtê-la, quando a parte, credenciada, encontra-se ali dis-posta a tirar cópia de um despacho pa-ra a possibilidade de cumprimento ou mesmo fazer uma anotação importante. Levando-se ainda em consideração que, para uma grande maioria, chegar ali, custou um considerável sacrifício. Essa cultura precisa ser modificada, pois a atuação colaborativa é próspera.

Em razão das características de nosso trabalho, do desenho de como proceder com as atividades do projeto, recebemos habitualmente pessoas emergentes da Defensoria Pública estadual, fruto do bo-ca-a-boca, para participarem das modali-

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dades de nossa atuação. Um acolhimento simples, porém significativo. Muitas de-las, carentes de informações, com ação já tramitando judicialmente, mas que pre-tendem firmar um acordo para acelerar e dissolver o mais rápido possível aque-le conflito. Outros casos, com sentença transitada em julgado, entretanto a parte contrária não vem cumprindo, daí a bus-ca de nossa intervenção no sentido de fa-cilitar o cumprimento por meio de um diálogo e possíveis ajustes no caso por desacreditarem na execução judicial.

Quando o Estado-Juiz chamou para si a responsabilidade de resolver de forma célere e eficiente as contendas da socie-dade, obrigou-se. A alegação da falta de estrutura para trabalhar, da insuficiência de pessoal, do número de processos, não deixa de ser verdade, contudo, tal carên-cia não é culpa das partes nem dos repre-sentantes legais, não devendo desse mo-do ser prejudicados.

Enfim... convém dizer: “A lentidão judi-cial se revela como a compra de facilida-des para uns e a venda de dificuldades pa-ra outros! Que retiremos as cortinas.”

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A contribuição da psicologia e suas nuances na mediação de conflitos

ar a clarificação das situações problemas na resolução deles. Resolução essa que deverá ser fundamentada na construção subjetiva de cada pessoa envolvida no conflito.

Nessa perspectiva, o trabalho desenvol-vido pelos Núcleos da Assistência Judi-ciária é especialmente focado na pensão alimentícia e na regulamentação de visi-tas, necessitando de uma intervenção in-terdisciplinar qualificada. O solicitante chega ao núcleo por encaminhamento de algumas instituições ou espontaneamen-te. Nesse momento, realiza-se uma en-trevista por técnicos e o solicitante é en-caminhado para a triagem da demanda, ocorrendo então o acolhimento do con-flito. Uma vez identificada uma demanda para mediação, realiza-se a pré-mediação em função das informações que são re-passadas sobre as etapas de todo o pro-cesso de mediação. Após esse procedi-mento e em continuidade à intervenção, a outra parte é solicitada a comparecer ao núcleo por meio de uma carta-convi-

Alessandra Lima1

Alternativas têm sido pensadas, nessas últimas décadas, objetivando a amplia-ção das intervenções dos fazeres da psi-cologia em todos os espaços. Isso ocorre no momento em que novos paradigmas científicos são dimensionados, na medida em que criam um marco, um referencial da prática psicológica, de forma que pos-sam responder ao chamado dessa gran-de demanda que são os conflitos familia-res. É possível pensarmos na participação efetiva da psicologia em processos de me-diação de conflitos, por favorecer um es-paço de construção e reconstrução de di-álogos e o restabelecimento de vínculos entre as partes envolvidas na questão.

Nesse sentido, os construtos teórico-práticos dos saberes da psicologia como ciência implementam ações da prática psi com o objetivo de facilitar o acolhimento do conflito e a escuta diferenciada, pos-sibilitando o desenvolvimento do pensa-mento reflexivo crítico, que vai perme-

1 Psicóloga do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

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te que, geralmente, é entregue pelo soli-citante. O procedimento a seguir será o mesmo do anterior: acolhimento e infor-mação sobre o processo de mediação. É importante esclarecer que a escuta é um ponto fundamental para que haja a pos-sibilidade de realização da mediação de uma forma respeitosa entre as partes.

O processo de mediação comumente é realizado em dois atendimentos, depen-dendo da análise criteriosa de cada caso, por parte da equipe interdisciplinar. Aná-lise essa que possibilitará a compreensão dos conflitos e, ao mesmo tempo, ofere-cer um atendimento mais qualificado aos solicitantes. A ação da equipe em mode-lo interdisciplinar favorece a cooperação e o diálogo entre os conhecimentos e as ações, facilitando a intervenção.

Nessa experiência, a psicologia agrega conhecimentos, possibilitando um novo olhar na resolução dos conflitos, em que contempla a subjetividade entre as par-tes de maneira a constituir um espaço re-lacional. Dessa forma, atuando nos valo-res que embasam os direitos humanos, descentralizando o poder e permitindo que o sujeito, saindo de si e indo ao en-contro do “outro”, possa facilitar o diálo-go, fundamentado na igualdade, na pers-pectiva de mudança do comportamento e na desejada construção da consciência coletiva.

A psicologia colabora nos processos de mediação oferecendo subsídios para me-lhor acolhimento e compreensão dos conflitos, favorecendo a escuta proativa durante todo o processo, contribuindo

para o entendimento do sentido emocio-nal, subjacente ao discurso dos sujeitos envolvidos no conflito, e promovendo sua ressignificação.

Mesmo quando o conflito se apresenta de forma unilateral e inerente às relações humanas, a experiência indica que nessas relações os conflitos são acompanhados de valores, expectativas, interesses, de-sejos e sentimentos que deveriam ser co-muns, e não são.

Percebem-se as dificuldades entre as par-tes para lidar uma com a outra. No ri-tual da mediação, as emoções e os senti-mentos costumam ser atualizados, assim como as dificuldades pessoais anterio-res. Nessa oportunidade, uma das partes aproveita para atribuir apenas ao outro a responsabilização da relação que não deu certo. Assim, a demanda do confli-to apresenta-se mais complexa, necessi-tando de uma abordagem mais precisa no sentido de não favorecer o deslocamento do objetivo da mediação, que é a pensão alimentícia e a regulamentação de visitas. A intervenção da psicologia é favorecida pelo conhecimento da constituição psí-quica e pela valorização da dinâmica dos aspectos subjetivos que aprofundam o di-álogo entre as partes, com o intuito de provocar a responsabilização e a maturi-dade entre eles.

Outro aspecto considerado importante é a dificuldade do realinhamento do siste-ma familiar, favorecendo a promoção da reorganização dos lugares simbólicos que cada um tem nas configurações familia-res. Para Osório (2002), a família, em seu

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contexto histórico, não é mais vista como algo estático, sendo, portanto, compre-endida como um processo de constru-ção, em que novos elementos são agre-gados como princípios, valores, crenças dentre outros, provocando a expansão de novos conceitos e modelos sobre as rela-ções e os novos vínculos familiares esta-belecidos. Muitas vezes observamos que a dificuldade é acentuada quando existe outro companheiro em cena.

Nesse sentido, M. Muszkat e S. Muszkat (2003, p. 126) ressaltam:

[...] cada ser humano, a partir de suas vivências e experiências dentro de uma determinada constelação familiar – in-dependentemente do modelo a que nos reportemos – desenvolverá suas concep-ções quanto ao que se entende por figu-ras parentais, irmãos, parentes família.

Nessa relação se constrói e se estabelece uma família, como nos sugere Winnicott (1978): A família “suficientemente boa”.2 Para o autor, a forma como se estabelece o lado emocional da criança é que vai ser a base estruturadora da vida social, inte-lectual e afetiva. Se a experiência for ne-gativa, essas condições básicas não serão preenchidas, podendo ocorrer dificulda-des na estruturação de sua personalida-de, o que deverá ser um complicador no futuro.

Portanto, os pais devem entender que a criança necessita de referências de pai e de mãe para que eles possam exercer seu

2 Aqui utilizamos de forma modificada o conceito de “mãe suficientemente boa” do psicanalista inglês Winni-cott (1978).

papel e responsabilidades parentais, “su-ficientemente bons”, e assim a criança te-nha seu desenvolvimento de uma forma sadia. O envolvimento dos pais na cria-ção dos filhos é que vai garantir uma es-tabilidade emocional adequada.

Surgem também nos atendimentos difi-culdades relacionadas com a comunica-ção, e esta deve ocorrer de forma efi-caz e produtiva no intuito de facilitar um acordo possível entre as partes. Obser-va-se que a tentativa de reformular o ca-minho é linear. É fundamental fortalecer o aprofundamento do diálogo com o in-tuito de promover que uma parte escute a outra, embora que não concorde com tudo, e cumpra o percurso do processo de mediação. A escuta implica estar dis-ponível a colocar-se em outro lugar que não é o seu, ampliar a compreensão so-bre suas diferenças e entender que elas possam resolver de forma autônoma seus conflitos. Reconhecer a singularidade da demanda de cada um em seu tempo, em sua realidade, e tentar compreender que existe também uma realidade comum entre eles: os filhos.

Porém, percebemos que existe o não di-to conforme descreve Mannoni (1980, p. 13): “É impossível para a comunicação transpor certos limiares.” Compreende-se, dessa forma, que, quando a linguagem termina, é o comportamento que conti-nua a falar. Assim, muitas vezes é mais fácil utilizar a criança como meio para atingir o outro. Conforme seguem al-guns recortes de relato no momento dos atendimentos:

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− Ele nunca foi de conversar muito, e agora que saiu de casa, fica difícil falar so-bre os filhos, até porque a outra tem ciú-mes [...]. (Ex-mulher).

− Já que ele nem consegue falar comigo, imagine com as crianças, por isso nem pergunto se eles querem falar com o pai. (Ex-mulher).

− Não mando minha filha visitar o pai, porque ela não gosta muito. (Ex-companheira).

− Depois dessa nova companheira, ele não tem dado atenção aos filhos, aí tam-bém não mando os meninos para a casa dele. (Ex-companheira).

Pela psicologia, identifica-se que as quei-xas iniciais trazidas são atinentes à solici-tação da pensão alimentícia, nem sempre coerentes com seu discurso; vão além do que está por trás de sua fala, o desejo de estar de alguma forma vinculado ao ou-tro, com a possibilidade de rever suas an-gústias ou até mesmo de manter uma re-lação mesmo que seja por intermédio do filho. Assim, a criança acaba tornando-se objeto desse desejo. É fundamental que se tenha uma escuta ativa sobre o contex-to, a organização dos fatos e o que se fala dos afetos envolvidos no conflito.

A psicologia, portanto, auxilia na compre-ensão desses dados que refletem o emo-cional que interfere no comportamento e nas relações do contexto familiar.

As mulheres, por serem a maioria a bus-car o serviço, descrevem suas antigas re-lações assim:

− Se ele mudasse, mas já tentei várias ve-zes, mas ele é mulherengo, gasta com ou-tras coisas, então [...] terá de gastar com os filhos também.

− Quando comecei com ele, era outra pessoa, agora só quero o que meu filho tem direito [...].

− Ele me deixou por outra e nem quer que eu passe na rua da casa dele, nem quer que eu leve meu filho lá, só se for com minha mãe [...], aí também eu não mando a criança [...].

Na tentativa de compreender essas fa-las, concordamos com Freud (1915), ao ressaltar que a gênese de todo ena-moramento é essencialmente narcisista: o amor consiste em supor o ideal de si mesmo no outro para completar o que falta no indivíduo até chegar ao ideal so-nhado. É como se diz: “Ama-se no outro o que falta em nós [...].” Assim, deseja-mos no outro o que nos falta. O desejo é diferente da necessidade, ele é susten-tado por fantasias e representações ima-ginárias. No entanto, nada vai satisfazer absolutamente, nenhum objeto vai pre-encher todas as lacunas. Em suma, os de-sejos e afetos é que movem o interesse do sujeito pelo outro.

Identificamos também outros sentimen-tos que são externados nos atendimen-tos como desprezo, raiva, vingança pelo outro, caracterizando uma forma incons-ciente de minimizar seu sofrimento, ou mesmo utilizar-se desse mecanismo de defesa para suportar a negação. Muitas vezes, as partes tentam de alguma for-ma se denegrirem, o que só aumenta o

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conflito. A tentativa é de compreender a situação, no sentido de mostrar aos pais que não será possível com esse compor-tamento resolver a questão, e o objetivo maior, no momento, é a solução do con-flito e o melhor interesse para a crian-ça. A ocasião deverá ser entendida como a possibilidade de desconstruir e recons-truir suas histórias; com isso, o outro não pode ser eliminado de sua vida, porque existem vínculos que são para sempre, os filhos.

Diante de tantas queixas, seja por par-te do pai, da mãe pela disputa dos filhos, seja de forma permanente, seja nas visi-tas em dias pré-determinados da sema-na, conforme rege o direito, ainda se tem muita dificuldade nesse aspecto, em que, dependendo do contexto, identifica-se um fenômeno de nomenclatura recen-te, mas de origem antiga, fenômeno es-se que se estabelece na convivência das estruturas familiares considerado como Síndrome de Alienação Parental (SAP), que segundo Gardner (2008. p. 1), “é um processo que consiste em programar uma criança para que odeie um dos seus genitores sem justificativa”.

Quando a síndrome está presente, a crian-ça dá sua contribuição na campanha pa-ra desmoralizar o genitor alienado, sem perceber que está sendo utilizada para atingir o ex-parceiro ou ex-parceira, que aproveita também para usar o filho como ferramenta de agressividade direcionada ao parceiro. Assim, entende-se que, com a ruptura do relacionamento que pode-rá causar entraves na relação, e por um

dos genitores não conseguir elaborar de forma adequada o fim do relacionamen-to, acaba facilitando a instalação da sín-drome, o que só atrapalha a relação pai-mãe-filho.

O rompimento da vida conjugal gera na mãe um sentimento de abandono, re-jeição, surgindo, então, uma tendência de vingança contra o ex-companheiro. A mãe monitora o tempo todo os sen-timentos da criança com relação ao pai, inclusive sabotando a convivência com o pai, criando dificuldades na visitação. A criança é levada a afastar-se do genitor gerando uma contradição de sentimen-tos e facilitando a destruição dos víncu-los entre ambos. O genitor torna-se um invasor na visão da mãe alienada.

Na síndrome da alienação parental, tam-bém a criança pode confundir a noção de realidade e fantasia e encenar sentimen-tos ou simular reações de uma agressão física ou até mesmo uma agressão sexual que não ocorreu.

A criança nesses casos é afastada da con-vivência do outro genitor de forma vela-da, de uma forma mais direta ou ser afas-tada completamente do outro genitor. Com isso, a criança acaba sendo influen-ciada emocionalmente e terá certamen-te seu comportamento alterado com re-lação a pai/mãe. Em geral, quem tem a guarda acaba de certa forma destruindo a relação do filho com o outro, e assumin-do o controle total perante a criança. Isso poderá gerar várias consequências para a criança, ao desviar seu afeto para apenas um dos genitores em detrimento do ou-

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tro, ocasionando um dano psíquico e po-dendo tornar-se mais tarde uma pato-logia, consoante observamos em alguns discursos. Por exemplo:

− Eu só quero que ele me ajude a com-prar a alimentação da minha filha, mas não quero que ele tenha contato com ela, não é preciso, cuido sozinha. (Mãe).

− Eu não quero que ele tenha contato com meu filho [...]. (Mãe).

− Já cansei de dizer a eles que o pai deles não presta [..]. (Mãe).

− Quando eu vejo meu menino, ele vem falar comigo todo estranho, até parece que nem sou seu pai. Se eu tenho sau-dades e ligo, ela sempre diz que ele está dormindo [...]. (Pai).

− Ela não me deixa ver a criança [...]. (Pai).

Contudo, percebemos nessas falas a pre-sença do fenômeno da SAP, que possivel-mente causará um dano psicoafetivo pela ausência do convívio e acabará afastando de um dos genitores e contribuindo para a destruição do vínculo parental.

Na oportunidade, quando estamos dian-te dos pais, é necessário intervir na cons-cientização dos laços afetivos, pois en-tendemos que é fundamental para a construção psíquica da criança e lem-brar-lhes sobre algumas responsabilida-des que dizem respeito aos direitos e de-veres como pai ou mãe.

O atendimento não pretende suprir as la-cunas existentes, mas valorizar a dimen-são subjetiva tão presente nos conflitos

familiares, podendo favorecer a produ-ção de novos significados para a reso-lução e transformação de sua vida e até mesmo de um entendimento efetivo no futuro.

Tentamos passar no espaço do atendimen-to que é necessário respeitar as diferen-ças e é fundamental para que o ex-casal possa ultrapassar a fase conflituosa e che-gar a um amadurecimento da situação.

Assim, conseguirá relativizar o conflito e dar outro formato na relação a ser esta-belecida. Essa é uma forma de produzir efeitos diferentes ultrapassando suas di-ferenças anteriores.

Por fim, com essas reflexões, podemos analisar que a intervenção da psicologia na mediação de conflitos vem significan-do um novo campo de atuação para os psicólogos. Denotando uma intervenção eficaz, com indicadores de resultados po-sitivos que possibilitam que o ser huma-no possa refletir sobre si mesmo e sobre seus atos; resgatando o espaço psíquico de cada um, embora com visões diferen-ciadas. A psicologia busca incentivar uma relação dialógica entre as partes, estimu-lando uma situação saudável não só para uma ou outra parte, mas para todos os envolvidos nesse contexto.

Essa intervenção também promove re-flexões que podem provocar atitudes conscientes em suas relações. Sobretudo, quando os ex-companheiros são compe-lidos a repensar e legitimar seus lugares e atribuições no conflito. Pois, passam a assumir um papel que requer um conta-

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to íntimo com eles próprios, que produz um processo de relativização das pró-prias crenças e valores pessoais. Sabemos que essa mudança está relacionada com um processo educativo de compreender que existem outros meios de interme-diar seus conflitos.

Importa enfatizar que na mediação as par-tes são protagonistas na solução dos res-pectivos conflitos. Com essa informação, o cenário muda, eles demonstram legiti-marem seus desejos e, principalmente, o de fazerem valer os direitos dos filhos.

Com isso, ressaltamos a responsabilida-de ética em relação às pessoas atendidas sempre com base no respeito aos senti-mentos e na confidencialidade por tra-tar de uma área extremamente delicada e estruturante do ser humano, que são as relações que envolvem a família e sua vivência; respeitando a singularidade de cada um, as características de sua realida-de e principalmente suas escolhas.

Para tanto, a contribuição da psicologia no âmbito da mediação de conflitos de-ve estar permanentemente orientada a responder ao chamado dos conflitos so-ciais com o intuito da resolução de im-passes configurados como judiciais, que dependendo de sua condução, é possível sua resolutividade de forma democrática com a própria mediação. Um dos com-promissos da psicologia é com o restabe-lecimento do diálogo e a construção das relações mais adequadas entre as pessoas, contribuindo para torná-las sujeitos re-flexivos e autodeterminados.

Portanto, cabe à psicologia compreender a linguagem emocional que permeia os litígios familiares e transformá-la em ele-mentos conscientes, possibilitando uma ressignificação do contexto apresentado, desde que esteja dentro dos limites cabí-veis da atuação do profissional de psico-logia, que, devidamente qualificado, en-caminhará a demanda que não atende aos requisitos da mediação.

É mister considerar as nuances da psi-cologia como uma ciência que amplia a compreensão da subjetividade nos pro-cessos de mediação, desvelando os con-flitos e principalmente contribuindo para a efetivação de práticas que possibilitem uma convivência social mais ética, huma-na e pacífica.

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Violencia doméstica contra mulher: “Em briga de marido e mulher, alguém tem que meter a colher”

o núcleo do Ibura em busca da garantia de pensão alimentícia para dos filhos.

Relações de poder e gênero: seus aspectos conceituais

De todos os tipos de violência contra a mulher existentes no mundo, aquela pra-ticada no âmbito familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado co-mo local acolhedor e de conforto, passa a ser, nesses casos, um ambiente de pe-rigo contínuo que resulta em um esta-do de medo e ansiedade permanente. A violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa sociedade. Tal questão refere-se, so-bretudo, à construção social de gênero.

Como observa Joan Scott (1993), o ter-mo gênero deve ser compreendido como elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças entre os sexos e como primeira forma de manifestação de poder, pois as relações de gênero, as-sim como as relações de poder, são mar-

Mona Mirella Marques Meira1

As Nações Unidas definem violência contra mu-

lher como “Qualquer ato de violência baseado

na diferença de gênero, que resulte em sofri-

mentos e danos físicos, sexuais e psicológicos da

mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção

e privação da liberdade seja na vida pública ou

privada.” (NAÇÕES UNIDAS, 1992).

A proposta é refletir sobre a violência doméstica contra a mulher a partir de ca-sos que surgem nos atendimentos reali-zados pelo núcleo do Ibura/Projeto Jus-tiça Cidadã.2

A violência doméstica é uma situação com a qual os profissionais do projeto se deparam diariamente por meio das histó-rias de vida das mulheres que procuram

1 Assistente social do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

2 O Ibura é um bairro localizado na zona sul do Reci-fe, com uma população de mais de 100 mil pessoas, si-tuado na RPA-6B; bairro bastante carente de recursos e de serviços. Caracterizado como o bairro mais violento da cidade do Recife, onde a violência doméstica contra a mulher é apenas mais uma das várias formas de violência praticadas ali.

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posta “fragilidade” do sexo feminino é o resultado de uma construção social, que é passível de mudança ao longo do tem-po. Observa-se que, atualmente, as mu-lheres exercem profissões que até pou-co tempo eram consideradas tipicamente masculinas, sendo também responsáveis pelo sustento de sua família.

O homem sempre teve como seu espa-ço o público, e a mulher foi confinada no espaço privado, qual seja, nos limites da família e do lar, ensejando, assim, a for-mação de dois mundos: um de domina-ção e outro de submissão. Dessa forma, ambos os universos, público e privado, criam polos de dominação e de submis-são. Com relação a essas diferenças, fo-ram associados papéis ditos como ideais a cada gênero: ele, o homem, como pro-vedor da família, e a mulher como cui-dadora do lar, cada um desempenhando sua função.

A emancipação da mulher, a conquista da total igualdade dos sexos, é essencial para o progresso humano e a transfor-mação da sociedade. A desigualdade re-tarda não só o avanço da mulher, mas o progresso da própria civilização. A per-sistente negação da igualdade para meta-de da população do mundo é uma afronta à dignidade humana e promove atitudes e hábitos destrutivos em homens e mu-lheres que passam pela família, local de trabalho, vida política e, em última aná-lise, para as esferas das relações interna-cionais. Não existe nenhuma base moral, biológica, nem tradicional, que justifique a desigualdade. O clima moral e psico-

cadas por hierarquia, obediência e desi-gualdade, o que demarca a presença de tensões, negociações e alianças, seja pela manutenção dos poderes masculinos, se-ja na luta das mulheres pela ampliação e busca de poder.

Assim, o gênero como uma categoria his-tórica ajuda-nos a refletir não apenas so-bre a violência contra mulher em sua for-ma mais drástica (familiar e doméstica), mas também sobre o lugar ocupado pe-lo sexo feminino nas outras esferas da vi-da. Pensando no caso latino-americano, Teresita Barbieri (1991) relaciona aspec-tos de gênero com a categoria de classe e nos ajuda a pensar a chamada femini-lização da pobreza, processo que se de-senvolve a partir do momento em que a mulher, com filhos, passa a não mais ter o marido ou companheiro morando no mesmo domicílio e torna-se responsável pelo sustento familiar, ou seja, prover a própria manutenção e a dos filhos.

A chefia feminina é vista como indica-dor de pobreza, pois pode ser associada a outros fatores relevantes como o mo-do de participação da mulher no merca-do de trabalho, afinal as mulheres esta-tisticamente recebem salário mais baixo do que os homens, ou, até mesmo, apre-sentam maior dificuldade de se inserirem na esfera pública do trabalho, embora os dados de educação comprovem que têm mais anos de estudo que os homens.

Assim, quando se falava, ou ainda hoje se fala, das mulheres como o suposto “sexo frágil”, há um questionamento se é um sexo biologicamente frágil, ou se a su-

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lógico necessário para capacitar a Nação para estabelecer a justiça social e contri-buir para a paz global será somente cria-do quando as mulheres alcançarem com-pleta parceria com os homens em todos os empreendimentos.

A despeito do avanço dos direitos políti-cos e civis das mulheres no Brasil, muito ainda necessita ser feito para a elevação da condição da mulher. Esse panora-ma de desigualdades e excesso de po-der dos homens gera, consequentemen-te, casos de violência doméstica contra a mulher.

Violência doméstica

A violência doméstica não tem distinção de cor, classe social ou de idade. Atinge não só as mulheres, mas seus filhos, a fa-mília e os próprios agressores. É uma das piores formas de violação dos direitos humanos de mulheres, uma vez que reti-ra seus direitos de desfrutar as liberdades fundamentais, afetando sua dignidade e autoestima. Além disso, seguindo a mes-ma tendência dos outros tipos de violên-cia, as mulheres agredidas no ambiente familiar resistem muito mais em denun-ciar seu agressor.

Na definição de violência doméstica, observa-se que ela é considerada como violência de gênero e como uma afron-ta direta aos direitos humanos, principal-mente à dignidade da mulher.

A Convenção Interamericana para Pre-venir, Punir e Erradicar a Violência, de

Belém do Pará definiu a violência contra mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológi-co à mulher, tanto na esfera pública co-mo na esfera privada (ASSEMBLEIA GE-RAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1994).

Nesse sentido, a Organização Mun-dial de Saúde coordenou em oito países uma pesquisa sobre o impacto da violên-cia na saúde da mulher e constatou que, em longo prazo, a mulher vítima de vio-lência costuma apresentar problemas de saúde incluindo dores crônicas, incapa-cidade física, abuso de álcool e drogas, além de depressão. Vale ressaltar que a tentativa de suicídio é de duas a três ve-zes maior entre mulheres que sofreram violência física e sexual.

Em relação a como ocorre esse tipo de violência, pesquisas diversas pontuam que é uma realidade que começa mui-to cedo. Em geral, os responsáveis pelas agressões é o marido ou companheiro. Os principais motivos dessa violência, se é que existe desculpa para tal ato de crueldade, é o ciúme do marido e uso de álcool.

Até poucas décadas atrás, o consenso social legitimava a máxima segundo a qual “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; o que ocorria dentro da unidade domiciliar não dizia respeito à polícia, justiça, vizinhança, comunida-de, sociedade nem mesmo ao restante da família, sendo considerados assuntos de “esfera privada”.

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A violência doméstica no bairro do Ibura

Após um levantamento de dados nas fichas de atendimento do Núcleo Ibura/ Projeto Justiça Cidadã, constatou-se que as mu-lheres atendidas, em grande parte, são ou foram vítimas de violência doméstica pra-ticada pelo marido ou pelo companhei-ro. Só em 2007, ingressaram 49 processos referentes à Ação de Alimentos, uma vez que, quando se detectam casos de violên-cia, o Projeto Justiça Cidadã distribui ação por compreender que esse tipo de violên-cia não é possível de ser mediada.

É importante destacar que, depois de muitas discussões com a equipe de pro-fissionais e considerando que muitas mulheres reivindicam uma mediação, a mediação de conflitos tornou-se um ins-trumento para a garantia de direitos refe-rentes à pensão alimentícia para aqueles casos em que a violência doméstica fora praticada há muitos anos e não gerou se-quela psíquica naquela mulher.

De acordo com um estudo realizado pelo SOS Corpo, publicado em 2007 − Infor-mações sobre o fim da violência contra as mulheres −, a Região Metropolitana do Recife continua a concentrar dois ter-ços dos homicídios de mulheres, e Re-cife, isoladamente, concentrou quase um terço de todos os homicídios. Saliente-se que quase 20% desses casos ocorreram em apenas seis bairros (SOS, 2007). O Ibura foi apontado como o bairro da ci-dade do Recife que teve o maior número de homicídios de mulheres, seguido de Nova Descoberta e da Imbiribeira.

A média de idade das vítimas foi de 28 anos e a dos agressores foi de 32 anos. Como se vê, portanto, são homens mais velhos que matam mulheres muito jo-vens, e 67,37% dos agressores foram companheiros ou ex-companheiros.

O bairro do Ibura, localizado a 20 km do centro do Recife, tem uma população com mais de 100 mil habitantes, distri-buída em empregados do comércio, Ban-co, mecânicos, artesãos, autônomos e de-sempregados. Seu destaque se deu no fim dos anos 1990, quando já se prenunciava ser um bairro onde o índice de violência se mostrava bastante alto. Atualmente o Ibura é considerado o bairro mais violen-to do Recife.

De acordo com uma pesquisa feita por Sônia Barbosa (2004), em relação à vio-lência, os moradores da comunidade do Ibura denotam total rejeição, muitas ve-zes respaldada em ideias de moralidade, de solidariedade e também de religião. Ao mesmo tempo, a violência é um dado de realidade do local, presente em maior ou menor intensidade nas mais variadas relações humanas. Assim, todos os tipos de violência existentes no Ibura consti-tuem uma rede intricada e complexa, em que os indivíduos são vítimas e autores ao mesmo tempo.

Dificuldades para o enfrentamento da violência doméstica

De acordo com o SOS Corpo, na Região Metropolitana do Recife existem ape-nas duas Delegacias da Mulher, o que é

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claramente insuficiente para responder à demanda existente na cidade. Quan-to à assistência jurídica, há oito serviços no Recife: sete oferecidos pelo governo e um por uma universidade. Em relação à assistência psicossocial, a maior parte foi implantada nos últimos dez anos, de-monstrando o incremento nesse tipo de assistência nas políticas para mulheres em situação de violência. No Recife, há maior presença das organizações gover-namentais na oferta desse tipo de assis-tência: dos sete serviços do Recife, qua-tro enquadram-se nessa categoria.

No Recife foi inaugurada em setembro de 2008 a Casa-Abrigo. Esses abrigos desenvolvem atividades para supera-ção da situação de risco e da situação de violência, acolhendo também as crian-ças das mulheres no entanto, eles têm limitação para o tempo de permanên-cia. O endereço é sigiloso e o encami-nhamento é realizado por meio das De-legacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) ou Centros de Refe-rência da Mulher.

Os mecanismos institucionais de prote-ção às mulheres previstos em lei preci-sam “sair do papel” e se tornarem aces-síveis a toda a população. Um grande avanço que o Brasil deu nos últimos anos foi a aprovação da Lei Maria da Penha, Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, trazendo a grande inovação de transfor-mar em crime a violência doméstica; além disso, qualifica cinco tipos de vio-lência doméstica: a física, a moral, a psi-cológica, a patrimonial e a sexual, sendo uma novidade tipificar a violência psico-

lógica, a mais difícil de se provar, uma vez que não deixa marcas na pele, mas, sobretudo, deixa grandes marcas na alma (BRASIL, 2006).

Nos últimos vinte e cinco anos, a trama de serviços voltados para as situações de violência contra a mulher cresceu bas-tante e diversificou-se, mas em alguns casos, é de difícil delimitação, incluindo serviços exclusivos para o atendimento à violência e outros que, apesar de serem específicos também para outros objetos, têm profissionais, normas e protocolos voltados à questão (exemplo de serviços especializados em DST/Aids e de atendi-mento a profissionais do sexo).

Também existem os serviços que, apesar de não serem voltados para o problema, atendem à maioria de casos de violência contra a mulher (a maior parte dos servi-ços jurídicos). Essa trama de serviços tem aumentado à custa do aumento de servi-ços psicossociais e de saúde. Um exem-plo disso é o Núcleo do Ibura descentra-lizado, que tem como principal objetivo mediar conflitos referentes à pensão ali-mentícia, mas, pela enorme procura do núcleo por mulheres que sofrem ou já sofreram algum tipo de violência, acaba por atender a esse tipo de demanda.

Um novo olhar

O que ficou evidente no trabalho reali-zado no núcleo do Ibura é que a rede de proteção à mulher existe, mas não fun-ciona como de fato deveria funcionar. São trabalhos pontuais que não se entre-laçam para ter um efetivo combate à er-

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radicação da violência doméstica contra a mulher.

Também está presente no relato das mu-lheres a continuidade do círculo da vio-lência, pois quando elas procuram os ór-gãos de proteção, sejam eles da saúde, sejam do âmbito jurídico, recebem aten-dimento desumanizado e com baixa efeti-vidade no que se refere à garantia da vida e proteção. Nesse sentido, a mulher víti-ma de violência percorre uma verdadeira “via-crúcis” em busca de proteção. Sem falar que a maioria dos órgãos de prote-ção à mulher são distantes do Ibura. Exis-tem associações que trabalham com essa temática no bairro, no entanto a princi-pal dificuldade é que os órgãos institu-cionais, na maioria, são de difícil acesso às mulheres. Sendo esses apenas alguns dos exemplos de como a categoria femi-nina é violada em seus direitos humanos.

Há uma tensão permanente na rede de proteção às mulheres entre o que são os serviços específicos para a violência e qual o trabalho a ser feito pela rede geral:

- A criação de serviços exclusivos de-sobrigaria os serviços gerais a atender a questão?

- Qual o papel da rede geral e qual a dos serviços específicos?

- Como articular a rede geral (saúde, po-lícia, justiça, escolas, serviços sociais) com a rede específica, visto que essa re-de geral tem a responsabilidade de iden-tificação e referenciamento dos casos pa-ra a rede específica?

- Como articular a rede específica en-tre si − portas de entrada, conhecimento mútuo, articulação de ações e interação dos agentes?

A fragmentação é grande: parece haver conexão entre serviços policiais e jurí-dicos de um lado e saúde e psicossociais de outro. Os serviços psicossociais pare-cem ser os mais conectados com todos os setores, ocupando o “centro” de uma rede incipiente. No entanto, o precário conhecimento mútuo, o encadeamento de ações assistenciais e a interação dos agentes dificultam projetos assistenciais comuns e conferem ao conjunto o cará-ter de trama, e não de rede de serviços. Os serviços de saúde e jurídicos são o de menor especificidade e os que menos se articulam com os demais: recebem e en-caminham para o próprio setor princi-palmente. É, ao que parece, onde a rede precisa ser mais fortalecida.

Nos casos emblemáticos identificados no Projeto Justiça Cidadã, caracterizados pela escuta qualificada, verifica-se a ne-cessidade de desmembramento das de-mandas: as absorvidas pelo projeto, que figuram no seu bojo de trabalho e, por isso, contempladas em sua estrutura de atividades; e as não absorvidas pelo pro-jeto, que não figuram em seu objetivo de trabalho, sendo encaminhadas de acordo com sua identificação para o local que as absorvam de acordo com seu objeto e atividade de trabalho.

Nos casos emblemáticos, o encaminha-mento dado às demandas absorvidas pe-lo Projeto é dado mediante a sensibiliza-

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ção para o fortalecimento da autonomia e responsabilização da problemática alia-da à interposição e ao acompanhamento da devida ação judicial pela equipe jurídi-ca do projeto.

O procedimento adotado para as deman-das não absorvidas pelo projeto é o en-caminhamento dos casos de violência contra a mulher ao Centro de Referên-cia Clarice Lispector, o qual desenvolve um atendimento especializado a mulhe-res em situação de violência no âmbito social, psicológico e jurídico. Este é re-alizado com parceria formal/institucio-nal firmada entre ambos, constituindo-se o principal suporte a essa demanda su-prema no atendimento aos casos emble-máticos, referendando outros possíveis encaminhamentos para outros locais de acordo com a necessidade identificada nas demandas. No entanto, não existe o chamado feedback, em que não sabemos se essa mulher, que já está fraquejada, foi de fato atendida na devida instituição.

O sentido da intervenção psicossocial, com a dimensão pedagógica e política, é desenvolver a atitude do “Cuidado e da Responsabilidade”, atitude essa que pode provocar preocupação, inquietação e sen-timento de responsabilidade. “O homem é um ser diante de escolhas, não há como não escolher e, se ele é totalmente livre para escolher, é também responsável por tudo que faz.” (RIBEIRO, 1985).

A visibilidade do problema da violência contra mulheres e o estímulo ao forta-lecimento, à cidadania e garantia de seus direitos vêm disseminando-se na trama

por intermédio de profissionais de sabe-res diferentes, estabelecidos em organi-zações governamentais e não governa-mentais. A construção de ações conjuntas e de um projeto assistencial comum ne-cessita, ainda, de muito empenho do po-der público, estabilidade das políticas, supervisão e apoio para ser construído, e já existem muitos elementos que au-torizam vislumbrar essa possibilidade. A trama, por meio dessas ações, pode aos poucos se transformar em rede e, assim, diminuir a violência contra as mulheres.

Parece ser necessária uma decisão do poder público em fomentar e garantir a sustentabilidade dessa rede intersetorial com ações permanentes de treinamento, supervisão e avaliação que não desmoro-nem e mudem tão frequentemente com a troca de governos estaduais, municipais e federais. Dessa forma, poderia haver uma articulação mais coesa de maior sus-tentabilidade ao longo dos anos, garan-tindo o sucesso das políticas públicas di-rigidas ao problema.

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Referências

ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Convenção de Belém do Pará, 1994. Ratificada pelo Decreto Legislati-vo n.º 107/1995 e promulgada pela Pre-sidência da República pelo Decreto n.º 1.973/1996. Belém, PA: A Convenção, 1994. Disponível em: <http://www.dh-net.org.br/direitos/sip/oea/mulher2.htm>. Acesso em: 6 jun. 2009.

BARBIERI, Teresita de. Sobre la cate-goria género: Una introdución teórico-metodológica. In: AZEREDO, Sandra; STOLKER, Verena (Coord.). Direitos re-produtivos. São Paulo: FCC/DPE, 1991. p. 25-45.

BARBOSA, Sônia M. C. Sexualidade e violência doméstica num bairro de peri-feria da cidade do Recife: o caso do Ibu-ra/Recife. In: CONGRESO VIRTUAL DE ANTROPOLOGÍA Y ARQUEOLO-GÍA, 4., 2004. Buenos Aires: Naya, Ciu-dad Virtual de Antropología y Arqueo-logía, 2004. Disponível em: <http://www.naya.org.ar/congreso2004/po-nencias/sonia_barbosa.doc>. Acesso em: 19 jun. 2009.

BRASIL. Lei Federal n.º 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Con-venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mu-

lheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-lência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Do-méstica e Familiar contra a Mulher; al-tera o Código de Processo Penal, o Có-digo Penal e a Lei de Execução Penal, e dá outras providências. Diário Ofi-cial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.trt02.gov.br/geral/tribunal2/Legis/Leis/11340_06. html>. Acesso em: 4 jun. 2009.

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Sum-mus, 1995.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS Corpo, 1993.

SOS CORPO. Informações sobre o fim da violência contra a mulher. Boletim Da-dos e Análises, 2007.

Bibliografia

PESQUISA de opinião pública nacional sobre violência doméstica contra mulher. Data Senado, 2007.

PORTELLA, Ana Paula. Caracteriza-ção dos homicídios de mulheres 2002-2007: apresentação de trabalho/conferência ou palestra. Recife: Observatório da violên-cia contra as mulheres em Pernambuco, 2008.

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PROJETO JUSTIÇA CIDADÃ. Relatório da intervenção psicossocial no Recife. Recife: Gajop, 2008.

SAFFIOTI, Heleieth. Violência de gêne-ro: poder e importância. Rio de Janeiro: Reinventer, 1995.

ZANOTTA. Lia Machado. Violência do-méstica contra as mulheres no Brasil: avanços e desafios ao seu combate. In: FERNANDES, F. A; PEREIRA, M. A. E (Org.). Protegendo as mulheres da vio-lência doméstica In: SEMINÁRIO PARA OPERADORES DO DIREITO E PRO-FISSIONAIS DE ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTI-CA. Brasília: Fórum Nacional de Educa-ção em Direitos Humanos, 2008.

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Atendimento coletivo: exercício de cidadania e dimensão comunitária do Projeto Justiça Cidadã

Hermínia Martins1

“O filho da gente fica com um pedaço

da gente e continua precisando de um

pedaço do que a gente ganha e tem.”

(Augusto)2

A proposta deste texto é refletir sobre o Atendimento Coletivo (AC)3 reali-zado no núcleo do Ibura durante o ano de 2007, ação de que participaram 449 pessoas. Importante destacar que dentre esse número 92% são mulheres e, nes-se sentido, a análise nos possibilita pen-sar sobre a situação de vida de mulhe-res que moram nas redondezas do Ibura, bairro considerado, segundo alguns es-tudos, um dos mais violentos da capital pernambucana.

Inicialmente, apresentaremos os chama-dos Atendimentos Coletivos, pontuan-do sua estrutura e dinâmica pedagógica para, num segundo momento, com base na teoria da psicologia social – Dinâmi-ca de Grupo - e das observações do agir e olhar da técnica em psicologia, analisar suas potencialidades e/ou limites consi-

1 Psicóloga do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

2 Técnico social, Ibura - Recife, em entrevista, 2 de agosto de 2006.

3 Será usada a sigla AC para se referir ao Atendimento Coletivo no desenrolar do texto.

derando o discurso das mulheres que de-les participaram, refletindo sobre alguns de seus resultados.

1 Dinâmica pedagógica e grupal do atendimento coletivo

O objetivo geral do AC é informar e orientar as (os) usuárias (os) sobre Pen-são Alimentícia e o processo de Media-ção. Também é um espaço de identifi-cação ou triagem de casos de violência domestica contra a mulher ou outras vio-lações de direitos.

No AC, a informação como instrumental pedagógico na reflexão de direitos é uma ferramenta imprescindível de suporte para o processo de mediação, contribuin-do para expectativas favoráveis de nego-ciação do participante com a outra parte envolvida. Integrada à fase de informa-ção, cumula-se a reflexão sobre processo de autonomia das partes para tomada de decisões e propostas durante a mediação, sendo esse um pressuposto necessário

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para atenuar o conflito familiar inerente à solicitação da pensão alimentícia. Por isso, pode-se dizer que o AC responde a uma verdadeira proposta pedagógica, pa-ra além de seu papel informativo.

No que diz respeito à sua realização, ocorre diariamente, através da facilitação de dois técnicos sociais do Projeto Justiça Cidadã. Tem duração média de uma hora e trinta minutos e obedece a uma dinâ-mica desenvolvida em três momentos.

PRIMEIRO MOMENTO

Etapas Atividades Objetivos

Acolhimto Apresen-tação Sensibilização

Boas-vindas para os par-ticipantes, situando-os como grupo; apresenta-ção por meio da pergun-ta: “Como você está se sentindo?”

Breve histórico individual

Favorecer a identificação grupal e cida-dã; sensibilizar e integrar para encami-nhar um processo de complementarida-de (a breve história de cada um prepara e amplia a percepção para o próximo).

Trabalhar sentimentos presentes para fa-vorecer a conscientização dos sentimentos e objetivos individuais (inteireza emocional da demanda trazida) e atenuar formalidades advindas de expectativas simbólicas do “es-paço de justiça”

Apresentação do Projeto Justiça Ci-dadã e objetivos do grupo

Informe sobre a parceria do Gajop com a PCR; In-forme sobre a dinâmica do Atendimento Coletivo

Referenciar o grupo em um contexto insti-tucional e metodológico, legitimando o Pro-jeto Justiça Cidadã e situar os participantes em relação às suas expectativas, apresen-tando o que será realizado durante o tempo do grupo.

SEGUNDO MOMENTO

Etapas Atividades Objetivos

Parte informativa; formativa

Informações jurídicas so-bre Pensão Alimentícia

Informar e orientar dentro da perspectiva de educação em direitos humanos; conscienti-zar e estimular o exercício da cidadania

Troca de experiências

Espaço para perguntas e respostas acerca do tema e depoimentos pessoais

Proporcionar interação das pessoas do grupo (participantes/técnicos); Identi-ficar casos emblemáticos ou que ne-cessitem de outra orientação e outro encaminhamento.

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TERCEIRO MOMENTO

Etapas Atividades Objetivos

Apresentação das formas de solicita-ção da pensão ali-mentícia/ Enca-minhamento dos casos.

Apresentar o trabalho de Mediação de Confli-tos em Pensão Alimentí-cia, foco do trabalho re-alizado no núcleo.

Apresentar as condições para a realização de ação judicial no núcleo.

Proporcionar aos participantes o conheci-mento sobre as possíveis formas de solução da demanda de pensão alimentícia; apre-sentar a Mediação como forma de acesso à Justiça que enfatiza o papel da pessoa soli-citante no processo, etc.

Situar os participantes sobre os casos em que não é possível a Mediação, e sim a Ação Judicial.

Avaliação Espaço para avaliação dos participantes

Direcionar os participantes para a autoava-liação: “Como estou me sentindo agora/ co-mo estou me saindo?”

Identificar o resultado do trabalho informativo.

Quadro 1 Momentos da dinâmica do Atendimento Coletivo

Avaliando todo o desenvolvimento ope-racional do AC, identifica-se o cresci-mento de uma proposta tendo como fio condutor a “educação para os direitos hu-manos”, considerando-se a realidade his-tórica das experiências do Projeto Justiça Cidadã e dos técnicos envolvidos, partiu-se de alguns princípios da psicologia so-cial para delinear ou justificar em que ru-mo este trabalho se desenvolveu.

Citaríamos, inicialmente, a proposta de formação de um grupo para se realizar um atendimento de forma coletiva, com tempo de duração definida e com obje-tivos claros a serem atingidos para a re-alização de uma tarefa, no caso do AC, a etapa de mediação ou o processo de ação judicial. Pode-se classificar, assim, o grupo constituído diariamente no AC como do tipo Operativo, visto que tra-ça estratégias coletivas para favorecer a

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ampliação da autonomia com o reconhe-cimento da pessoa humana como um ser de direitos e cidadania e dimensionar as etapas seguintes da demanda por meio da aprendizagem, comunicação, esclare-cimento e a resolução da tarefa (MINI-CUCCI, 1993, p. 186).

Assim, o propósito e a técnica dos Gru-pos Operativos são essencialmente apli-cados a um grupo centrado na aprendi-zagem, que, nesse caso do AC, parte da análise de situações conflitivas e cotidia-nas para alcance de um conhecimento objetivo (MINICUCCI, 1993, p. 186). A partir dos relatos vivenciais, que podem ir muito além do próprio conflito em torno da questão da pensão alimentícia, muitos elementos poderão ser ressignifi-cados subjetivamente por força da escuta favorecida pelo acolhimento do grupo e da instituição.

A Mediação em si mostra esse potencial educativo do AC quando o nível de obje-tividade, diálogo e respeito entre as par-tes é observado durante esse processo e a quantidade de acordos que se mantêm cumpridos após esse momento.

2 Observações da prática: comunicação interpessoal e cidadania

A comunicação influencia igualmente nos comportamentos por ser um veícu-lo de relação humana carregado de sig-nificados. No grupo, cada indivíduo con-cede/concebe um significado aos fatos, e ao expressar-se acrescenta algo de sua

parte. Cada pessoa que chega ao grupo vem com necessidades interpessoais es-pecíficas e identificadas (MOSCOVICI, 1985, p. 24).

Os conceitos jurídicos (Direito da Famí-lia) são fundamentais para responder à demanda que chega ao núcleo, e, portan-to, são repassados durante o AC. Porém, isso não impede que outros temas surjam, uma vez que a temática de alimentos traz no seu bojo pontos nodais de muitos ou-tros conflitos familiares e sociais. É tra-balho dos técnicos possibilitar e orientar o espaço para reflexões além da questão de pensão. Por isso, o AC se desenvolve com certa flexibilidade, apesar de sua di-nâmica planejada. O espaço de cada par-ticipante é respeitado, e os depoimentos pessoais são até estimulados, desde que seja essa a necessidade da pessoa partici-pante, e absorvida pelo grupo.

A força do AC está na amplitude do seu processo de comunicação, no seu funcio-namento como um Grupo Operativo, na transmissão de informações em prepara-ção para um momento de mediação que exige disponibilidade e habilidade na co-municação com o outro. Assim, além de ser um espaço de acolhimento e escuta, poderá delinear um caminho possível pa-ra o desenvolvimento de novas subjetivi-dades individuais e coletivas no processo de comunicação interpessoal numa pers-pectiva cidadã de aquisição de direitos.

O AC é, portanto, um momento de en-contro com o outro, de semelhante de-manda. É uma oportunidade de troca, de partilha de experiências, de reflexão so-

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bre posturas e atitudes para o momento da mediação.

3 Atendimento coletivo e demanda ampliada: quem chega

O AC apresenta um contínuo e diário diagnóstico da situação de vida das mu-lheres que moram no entorno social do núcleo. As mulheres que procuram o nú-cleo são as que lutam pela sobrevivência trabalhando como catadora de lixo, fa-xineira, doméstica, revendedora de cos-méticos, ambulantes. Muitas são manicu-re e cabeleireira em salões improvisados na própria casa ou na casa de parentes. Também conhecemos mulheres que uti-lizam “campanha”, como elas chamam a mendicância, para poder dar comida aos filhos. Mas a grande maioria depende da bolsa-família ou da ajuda de terceiros (companheiros, parentes, vizinhos, com-padres) para se sustentarem.

Verificando os diários de campo dos AC realizados em 2007, encontramos temas reincidentemente levantados pelos parti-cipantes: direito de visita dos filhos e do pai; violência doméstica; função da pa-ternidade na vida dos filhos; relações de gênero; direitos da criança e do adoles-cente e papel do Conselho Tutelar. Esses temas recorrentes “costuram” e contri-buem para a lógica de entendimento de violação de direitos que ocorrem.

Durante o AC, as mulheres apresentam sua história com toda carga emocional de conflitos e problemas que um núcleo familiar possa trazer, representativas das mazelas sociais e culturais de seu contex-

to de vida. Um exemplo: no ibura, é co-mum mulheres fazerem o caminho de ca-sa até o núcleo a pé, descendo e subindo ladeiras, por não terem dinheiro para pa-gar a passagem do ônibus.

A angústia e o medo da fome transpare-cem no rosto e na fala de pessoas que não querem perder a esperança e jogam mui-ta expectativa na pensão alimentícia. O AC esbarra no limite de sua tarefa quan-do confrontado com essa realidade so-cioeconômica, e, portanto, compete aos técnicos, quando a discussão exige, a ta-refa de informar aos participantes sobre soluções oferecidas pelas políticas públi-cas, que, se mesmo tênues ou insuficien-tes, se apresentam, como soluções para melhoria das condições de vida.

Frente a essa realidade, tentamos asso-ciar e ampliar a noção de “provedor fa-miliar”, desmistificando a visão unitária e masculina com a responsabilização da mantença da família. Esse ponto de refle-xão procura apontar aspectos da autoes-tima dessas mulheres e suas perspectivas de ação em meio às carências estruturais das políticas públicas, especialmente de emprego e geração de renda.

4 Observaçôes da prática: dinâmica real do atendimento coletivo

Baseado no resgate histórico do que foi vivenciado nos grupos de AC em 2007, o quadro abaixo apresenta o registro de como foram compostos esses grupos e como foi a participação e avaliação das pessoas em relação ao processo:

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Dinâmica dos grupos e participação das pessoas na percepção de técnicos

Sentimentos ini-ciais citados pelos participantes

Avaliação feita pelos participantes

-Grupos participativos, com pessoas questionadoras.

-Grupos com poucas perguntas, apáti-cos e tímidos

-Grupo integrado e aberto ao diálogo

-Pessoas abertas à expressão de seus sentimentos (longos depoimentos, choro)

-Grupo indagador (levantam outros assuntos)

-Grupo homogêneo quanto a sentimen-tos negativos, pessimismo, desespero

-Grupo de mulheres com relato de vio-lência doméstica

-Grupo de pessoas que receberam as informações participaram do AC, mas não quiseram levar carta para mediação

-Grupo com participação de homens: “Vim aqui para me colocar na justiça [...] acabo sendo mãe e pai, e ela ainda cobra mais assistência [...] quero en-trar em acordo.”

-Grupos realizados com a dinâmica fei-ta sobre o Dia Internacional da Mulher – participação na comemoração e na reflexão (O que tem de bom e de ruim na trajetória da mulher)

-Grupos grandes e tensos

-Grupo marcado por relato de realida-de de fome e necessidade de mendigar para supri-la

-Grupos marcados pela troca de expe-riência e apoio entre as participantes

-Mobilização emocional que contagia todo grupo (choro coletivo)

-Relatos de depoimento: desejo de sui-cídio pela falta de perspectivas de so-brevivência para os filhos

-Grupo com pessoa em surto psicótico

-Depoimento de mulheres subordi-nadas ao “não deixo” do marido e de-pois abandonadas por causa de outra mulher.

-Raiva

-Mágoa

-Incômodo

-Insegurança quan-to ao resultado da demanda

-“Estou bem”

-“Revoltada”

-“Péssima”

-Sentimento de injustiça

-Tristeza

-Ansiedade

-Desamparo

-Indignação: “por que precisei chegar até aqui?”

-Vergonha

-Aperreio

-Cansaço

-Desesperança

-Sono

-Tranquilidade

-Nervosismo

-Amargura

-“Sede de justiça”

-Conquistar direitos

-Agoniada

-Apreensiva

-Humilhada

-Ressentida

-Ódio

-Desespero

-Decepção

-Dúvida

-“Não foi nada de interro-gatório como eu pensava”

-“Deixa a gente à vontade”

-Merece elogios

-Esclareceu dúvidas

-Deixou mais confiança e tranquilidade para a reso-lução de problema

-“Cheia de esperança”

-“Fiquei mais confiante, mais leve”

-“Alívio”

-Informação segura

-Satisfação

-Acobertada

-“Saio mais informada e corajosa para resolver o problema”

- Satisfação

-“Gostei, deu atenção a gente [...] conversa menos burocrática”

-“Saio confortada

-“Saio do mesmo jeito”

-Frustração devido ao en-caminhamento para a De-fensoria Pública

-“Estou saindo do mesmo jeito”

-“Ainda tenho dúvidas”

(solicitação de conversa individual)

-“Não gostei dessa histó-ria de acordo” – descon-fiada/insegura quanto ao resultado do processo de mediação.

Quadro 2 Composição dos grupos do Atendimento Coletivo

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5 A experiência do ac sob o olhar da psicologia

A experiência como psicóloga no AC me deu base e espaço para propor algumas intervenções através de dinâmicas que pudessem atender ao imprevisto advindo do grupo, assim como uma leitura mais subjetiva de algumas questões fundamen-tais da demanda de pensão alimentícia e o processo de mediação de conflitos.

O propósito pedagógico do AC é prepa-rar os (as) participantes para a etapa de mediação. Ao longo de muitas observa-ções no grupo, percebeu-se que abordar o tema Autonomia Pessoal interessava as pessoas no sentido de que elas ampliavam o imaginário da negociação e se posicio-navam como “donas da situação”, cons-cientes do seu papel para aquele momen-to de mediação.

Abordar Autonomia Pessoal na forma apenas verbal permanece superficial e deslocada pelo breve tempo para refle-ti-la. A maioria das pessoas carrega um padrão energético instalado no corpo ao longo de uma trajetória de relações pes-soais e sociais, que levam a processos de submissão e medos ao longo da vida. Por isso, desde o início do grupo, solicita-se trabalhar com expressão corporal míni-ma, por exemplo, “vamos colocar os pés firmes no chão, tomar consciência de que estamos aqui e agora, e do que viemos e queremos fazer”.

A referência para esse trabalho corporal vem da Bioenergética4 que aborda a lin-guagem corporal. Os sinais e expressões do corpo transmitem informações so-bre a pessoa. A pessoa se descobre ten-do consciência da experiência e das rea-ções do seu corpo e do que ocorre na sua mente (LOWEN, 1982, p. 39).

Além da abordagem de expressão cor-poral, em muitas ocasiões, foi utilizada a dinâmica com imagens que estimulam reações ao que é perguntado e informa-do, o que contribui, também, para a não dispersão em caso de grupo grande. Es-se tipo de recurso, com figuras/ cola-gem é utilizado pela Arteterapia5 e muito contribui para sair um pouco do racio-nal, favorecer a concentração e abordar a sensibilidade das pessoas diante de su-as ideias.

Em algumas ocasiões, a dinâmica de “chu-vas de ideias” contribui para respostas a perguntas que tem como objetivo intro-duzir um tema, a exemplo da autonomia e mediação. Já realizamos também, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher e festas de final de ano, momento da elaboração de mensagens pelos parti-cipantes, as quais traduzem e reforçam o espírito de esperança e solidariedade.

4 Bioenergética – baseada no trabalho de Wilhelm Reich. Técnica terapêutica que ajuda a pessoa a entrar em conta-to com seu corpo e tirar o mais alto grau de proveito da vida que há nele. (sexualidade, respiração, movimento, sentimento e autoexpressão).

5 Arteterapia – Tratamento através da arte; é uma técni-ca que tem um suporte terapêutico. “O fazer artístico” é um facilitador da expressão. Utiliza-se como tratamento, diagnostico, sensibilização de grupo.

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Considerações finais

O AC se consolidou como uma etapa de construção da Mediação, assim como um instrumento de informação sobre direi-tos em adequação com a proposta peda-gógica do Projeto Justiça Cidadã.

A potencialização desse trabalho foi re-sultado de um processo de construção coletiva das equipes envolvidas no pro-jeto, desde seu planejamento à sua con-cretização. Sua dinâmica desenvolveu-se em etapas correspondentes às fases pelas quais o projeto passou. Seu crescimento foi planejado e adaptado após observa-ção de resultados positivos no momen-to das Mediações. De fato, esse momen-to de diálogo e acordo passou a ser mais objetivo e marcado pela sensibilização da consciência de papéis das partes em re-lação à pensão como um direito, e não como foco de conflitos (brigas), mas re-solução destes e retomada da comunica-ção entre as partes.

Durante a Mediação, as mulheres passa-ram a se posicionar de forma mais autô-noma e segura, graças a uma autoestima fortalecida, com capacidade de justificar sua condição pessoal. O AC preparou as mulheres a se posicionarem antes de tudo como pessoa autônoma, como represen-tante dos filhos e como co-responsável de seu sustento, e menos como ex-com-panheira. Assim, os papéis de provedores ficaram em base de equidade em muitas discussões e posições, as mulheres pas-sando a considerar também a realidade do ex-parceiro e sua disponibilidade para negociar na Mediação.

Outro resultado positivo do AC diz res-peito à identificação e sensibilização de mulheres vítimas de violência domés-tica, que são abordadas sob outro olhar no tocante aos encaminhamentos. Essas mulheres são ouvidas individualmente e podem se sentir acolhidas na escuta do seu caso. A partir de suas histórias pes-soais, o fenômeno social da violência do-méstica como crime é refletido buscan-do aprofundar o efeito desse em sua vida. Esse procedimento dialógico possibilita a compreensão da necessidade de serem encaminhadas para ação judicial de ali-mentos e procurar o Centro de Referên-cia Clarice Lispector para serem cuida-das em nível psicossocial.

Referências

ATENDIMENTO COLETIVO NÚ-CLEO IBURA. Registro da ficha de da-dos 2007.

LOWEN, Alexander. Bioenergetica. São Paulo: Summus, 1982.

MINICUCCI, Agostinho. Dinâmica de grupo: teorias e sistemas. 3. ed. São Pau-lo: Atlas, 1993.

MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento Interpessoal. 3 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1985.

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Nas entrelinhas da pensão alimentícia: (re)conhecimento das organizações familiares a partir da experiência do Justiça Cidadã

Ana Lúcia dos Santos Silva1

Márcia Rosas

Vaneska Natazcha Fonseca Madureira

As atividades de mediação, orientação ju-rídica e encaminhamento realizadas no nú-cleo do Pina, Projeto Justiça Cidadã, têm como participantes pessoas vindas da área que dá nome ao bairro e suas subdivisões (Bode, Beira-Rio e Ilha de Deus), bem co-mo de Brasília Teimosa e demais regiões circunvizinhas.4

1, 2 e 3 Advogada, assistente social e estagiária de Direito do Gajop no Projeto Justiça Cidadã.

4 A RPA 6 - SUL ( Região Político-administrativa 6) com-porta a MR 6.1, como a microrregião que mais tem mu-nícipes, os quais procuram o Núcleo Pina . Essa MR 6.1, por sua vez , é composta por bairros de diversos matizes : Boa Viagem , Brasília Teimosa , Imbiribeira, Ipsep, Pina e todas as comunidades adjacentes a essas localidades . Em pequena análise da RPA 6, pode-se constatar que seus ín-dices são satisfatórios com relação às condições básicas de desenvolvimento que uma região pudera desejar . Tem-se, por exemplo, o percentual de 94,15(%) de pessoas que têm geladeira no domicílio e 83,53% vivem em do-micílio que dispõe de banheiro e água encanada, além de ostentar uma quantidade percentual de apenas 14,67(%) de densidade de mais de dois habitantes por dormitório e em 30,47% dos domicílios têm microcomputadores. Fa-zendo uma correlação interna entre dois paradoxos bair-ros contidos na MR 6.1, tem-se a já esperada condição díspar de, por exemplo, Boa Viagem ter 59,36% domi-cílios com geladeira, para tão somente 4,69% da re-gião do Pina/Encanta Moça e Ilha de Deus, entre ou-tros números que podem ser mais detalhadamente vistos no Atlas do Desenvolvimento Humano do Recife (RECI-FE, 2005).

No dia a dia, o contato com mulheres que vão atrás de pensão alimentícia para os fi-lhos e acolhidas contam sua história de vida oferece a possibilidade de conhecer, de forma mais direta, as organizações fa-miliares das populações que vivem tanto nas periferias do Recife quanto nos bair-ros considerados de área central.

No caso da localidade onde atua o Núcleo Pina, estamos nos referindo a lugares on-de grande parte dos moradores não tem condições dignas de moradia, saneamen-to, saúde, atividades de lazer, programas sociais e perspectiva de trabalho para jo-vens, embora convivam diária e direta-mente com a ostentação da orla de Boa Viagem.

A instituição família - pequena gradação histórica em observação pelos técnicos do núcleo do Pina

Há várias teorias formuladas sobre a ins-tituição familiar. Enquanto alguns a ve-

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em como fato natural, outros a definem como conquista cultural: “A família não é um fato natural, trata-se de uma con-quista cultural, inserida em uma dimen-são histórica de construção ao longo dos séculos e, em conseqüência, atravessando mudanças.” (FÉRES-CARNEIRO, 1999, p. 83). No entanto, há um ponto pacífi-co, a família aparece como primeiro gru-po histórico ou a primeira forma de inte-ração humana.

Entendia-se por família apenas a compos-ta por pai, mãe e filhos, pensamento em que imperava apenas o poder patriarcal. Não havia como imaginar esposos se se-parando, igualdade socioeconômica entre os cônjuges, dentre outras ocorrências. Todavia, as coisas vêm mudando conside-ravelmente desde a década de 1970.

Dessa maneira, observam-se nuances an-tes rechaçadas pela sociedade, que caíram no rol das situações normais, a exemplo da separação, em que a mulher era tida como vulgar (era xingada e segregada), e hoje é aceita como heroína por conseguir trabalhar fora, em casa e criar os filhos, algumas vezes com ausência total do ge-nitor; a constatação da existência de uma infinidade de tipos de núcleos familiares e a gama de núcleos que se fundem e jun-tos compõem um só; ou a ocorrência de pais que, mesmo após a separação do ca-sal, desejam, juntos decidir sobre a vida de seus filhos, deixando de lado os desen-tendimentos e as diferenças e, até mesmo a considerável ocorrência da constituição de nova família, tendo filhos de outro companheiro (as famílias recompostas),

nas quais este sustenta seus enteados e, até mesmo se dá bem com o ex-esposo, são fatos cotidianamente observados no Núcleo Pina do Justiça Cidadã.

Sobre isso, há o reverso da moeda, se, por um lado, com o advento do reconhe-cimento da União Estável, os casais sepa-rados podem reconstituir novo laço afe-tivo com mais facilidade; por outro, pode implicar, muitas vezes a descartabilidade das coisas e das pessoas e a constatação de os genitores não procurarem seus filhos do primeiro relacionamento. Ratifica-se a modificação em 180 graus no padrão organizacional familiar, o surgimento de casais que têm, pelo menos, um filho de união anterior. Não menos digno de cita-ção, confirma-se o dado de a guarda dos filhos em menor idade continuarem, as mais das vezes, tendo a genitora como guardiã.

Os novos arranjos de família, o atendimento realizado pelo Projeto Justiça Cidadã

A mudança da família brasileira é obser-vada em nossas atividades cotidianas já que o público que atendemos, na maio-ria, é composto por pessoas que vivem ou viveram em união estável ou simples-mente tiveram um filho de um relaciona-mento e praticamente sozinhas os edu-cam e sustentam; afora isso, têm filhos de relacionamentos diferentes e, geralmen-te, são uniões de curta duração.

Há os divorciados que residem com os pais e são sustentados por eles, como Vi-

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tor 5 − o genitor da história −, que é sus-tentado pela mãe (avó do alimentando) e pela atual companheira. Ele não conse-gue emprego e, segundo a mãe da crian-ça, a reação foi a pior possível quando foi aconselhado a ser vendedor autônomo (de água mineral, por exemplo). Outro exemplo é o de Caio, que, além da crian-ça em questão, tem mais três filhas com outra companheira, é sustentado pelo pai (avô das crianças) e, além dessas fartas características das inovações familiares, afirma que a Sabrina (sua companheira anterior) tem ciúmes porque suas duas outras filhas residem com ele.

Como citado anteriormente, observa-se a incidência de famílias recompostas em que o segundo ou terceiro companhei-ro mantém os filhos do primeiro relacio-namento, tanto é observou-se a situação de muitas mulheres virem requerer pen-são dos filhos após a separação ao perde-rem o sustento oferecido pelo segundo ou terceiro companheiro.

Ademais, muito embora em alguns casos sejam os homens-pai que nos procurem para regularizar os alimentos e a visita, em virtude do aumento significativo de pais cuidando dos filhos, a maior incidên-cia do público que procura os Núcleos Descentralizados de Assistência Judiciá-ria é o feminino. São mulheres “chefes de família” que realizam trabalho informal para garantir o sustento próprio e dos fi-lhos, uma vez que o ex-companheiro só contribui com o que querem e quando

5 Todos os nomes foram trocados para preservar a iden-tidade dos munícipes.

querem (eles justificam que seu trabalho é informal e têm filhos de outros relacio-namentos); afora isso, acham-se no direi-to de controlar a vida da ex-companheira quando pagam a pensão devida por direi-to aos filhos.

Observando-se, assim, que, apesar da mudança nos núcleos familiares, algo permanece desde os primórdios, que é a ideia que o homem tem de superiorida-de, do poder patriarcal, de mandar tan-to nas mulheres quanto nos filhos, de ser, em tese, o provedor, portanto, achando-se donos deles, como no exemplo a se-guir: ela contava 13 anos de idade quando iniciaram o relacionamento; conviveram por cinco anos e estão separados há pou-co tempo. O genitor foi quem procurou o Justiça Cidadã. Segundo a mãe da crian-ça, ele insistiu para que ela engravidasse e dá tudo para o filho, inclusive em exces-so. Ele não queria que ela trabalhasse e já a agrediu na frente do filho. Atenta-se para a incontestável asseveração: prejudi-cam-se os filhos de várias formas.

Sem contar quando um ex-companheiro tenta atingir a ex-companheira não pro-vendo com o sustento dos filhos e afas-tando-se deles, e os mais prejudicados nessa história são as crianças e os ado-lescentes. O mesmo ocorre com o atual companheiro das mulheres que não que-rem que sua mulher vá atrás da pensão dos filhos que tiveram do relacionamen-to anterior, ou seja, só pensam nos seus interesses, nos seus sentimentos e esque-cem completamente que esse é um di-reito de toda criança, inclusive o de ter

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contato com o genitor. Creem os geni-tores que não é mais a responsabilidade deles, uma vez que eles saíram do núcleo familiar tradicional e a mãe figura como a provedora, a autoridade e, nas mais das vezes, a única referência.

Muitas das mulheres que procuram o nú-cleo se sentem e se afirmam mantenedo-ras dos filhos em todos os aspectos. Cui-dam da alimentação, dão suporte quando há alguma enfermidade, preocupam-se com a educação escolar (pelo menos com a presença na escola), com a inte-gridade física e demais aspectos do de-senvolvimento desses jovens. Há na ficha de atendimento a pergunta “O que é ser mãe?” e quase 100% das respostas: “TU-DO!”, ou alguma modalidade do vocábu-lo tudo. Será que a palavra “tudo” como resposta à pergunta “o que é ser mãe” es-tá solta no vácuo do papel ou revela algo mais? Questionar na pré-mediação não é somente desejar retorno verbal para confrontar dados, mas captam-se as im-pressões, os trejeitos ou os sorrisos dos olhos, cujo vislumbrar pelos medianei-ros é patente e auxilia na identificação das personalidades atuantes no processo de mediação em que a autonomia é valor inconteste. 5

5 “É na subjetividade das relações humanas que as men-sagens comunicacionais adquirem sentido. A comunica-ção humana compõe-se de aspectos verbais e não-verbais. Ambos são importantes para que a comunicação se dê de forma eficaz e eficiente. Porém, o aspecto não-verbal é dominante, não raro decisivo para a maneira como a men-sagem será assimilada e a como reagir-se-á a ela. Pesqui-sas demonstram que 70% da comunicação são compostos por tais aspectos. O peso do aspecto não-verbal da comu-nicação, como gestos, entonação etc, é mais evidente nas crises emocionais e sociais.” (NAZARETH, 2004, p. 1).

Vivem em situações de risco, todavia ten-tam trazer dignidade para a vida de sua prole. Desvencilham-se da falta de opor-tunidade, da falta de estudo, da possibi-lidade latente de ter seus filhos envolvi-dos com tráfico e lutam, principalmente, pelo bem-estar deles. Mesmo que is-so signifique encarar por alguns instan-tes alguém que não desejariam rever por algum tempo, haja vista a situação cor-riqueira de no fim do relacionamento amoroso uma parte querer a outra bem distante. Ademais, a mediação favorece o que se pode chamar de tentativa de con-trole das emoções, daí se presencia o que se pode chamar de exercício da inteli-gência emocional, a qual permite que se persiga o objetivo que está na origem.

Não obstante algumas situações bastan-te usuais de ex-companheiros que bus-cam a mediação para ter mais um contato com quem ainda lhe causa sentimentos, ou sensações atrativas, tal qual o exem-plo dos munícipes Jansen e Talita. Nes-se mesmo atendimento, o caso de Tali-ta, constatam-se outras nuances, de certa forma recorrentes no Núcleo do Pina e nas famílias da atualidade, visto que já te-ve resolvida a pensão dos demais filhos. Ou seja, a mesma genitora pedindo para dialogar com os diferentes pais de seus filhos. Quando a atual esposa de Jansen soube que ele registrou o filho de Tali-ta, ameaçou deixar o marido e, este pa-rou de contribuir com os 30 reais (pouco mais de 7% do salário mínimo vigente à época). Mais um exemplo típico da utili-zação da pensão alimentícia para um atin-

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gir o outro, em total detrimento dos in-teresses da criança que, como nesse caso, pode morar em palafitas, vivenciar di-ficuldades como a de passar fome que gera falta de nutrientes para o organis-mo humano, ocasionando transtornos no corpo e no cérebro, os quais permeiam o aprendizado escolar e demais circunstân-cias desagradáveis e indesejáveis.

Genitores que jogam com a vida dos seus filhos desconhecem o que vem a ser res-ponsabilidade paterna. Muitas vezes, têm um discurso bastante solto e superficial, como Carlos, que diz “ser pai é viver a vida”. Nos olhos dele (comunicação ges-tual), percebeu-se que seu grau de en-volvimento com o filho era fragilíssimo. Repetem-se comumente casos desse vi-és, inclusive, configurados na negligên-cia dos requeridos (“empurram com a barriga”), alegando estar desemprega-dos e contribuirão com pensão alimen-tícia quando estiverem trabalhando com carteira de trabalho assinada, a exemplo de Célio ou Geraldo, que afirmou estar disposto “quando trabalhar, a contribuir de livre e espontânea vontade”. Frise-se que muitos pedem demissão do trabalho formal e passam a laborar na eventualida-de ou sem carteira assinada para evitar a contribuição alimentar.

No entanto, é importante refletir na se-guinte situação: é certo que há exemplos de professores universitários, arquitetos e empresários moradores ou saídos da pe-riferia e das favelas, todavia, sabe-se que a situação da sociedade tem-se mostra-do drástica no concernente ao trabalho,

haja vista a precariedade das condições de especialização da maioria e a filtra-gem que a oferta do mercado de traba-lho sofre com o passar dos anos. Então, justificando o supostamente injustificá-vel, muitas vezes, quando o genitor afir-ma, “quero ir para o juiz, pois demora e daqui para lá posso estar trabalhando de carteira assinada”, pode ter por trás uma frustrante jornada de procura de subsis-tência para si e para pagar a pensão. Nota-se a expressão de alguns pais que dariam mais de 50% de seus rendimentos se es-tes existissem; no entanto, pode ocorrer o relatado acima, de haver homens que fogem da responsabilidade e utilizam o subterfúgio da frase “quero ir para o juiz [...]” intentando demora na solução do li-tígio, haja vista confiar nos prazos dilata-dos com os quais, normalmente, a justiça opera nos fóruns.

Dessa forma, em uma sociedade em que ser “virtuoso” é ter objetos ou títulos, tanto em um meio de opulência quan-to nas comunidades periféricas, algumas mães vinculam o registro com nome de “pai” apenas para fins pecuniários, como podemos visualizar em “não queria que ele registrasse a criança, mas meu pai me convenceu. Não queria, pois já sabia que ele não ajudaria” (Alice, revendedora da Avon, tem renda mensal entre 75 e 80 reais – aproximadamente 20% do salário mínimo vigente – e não participa de pro-gramas do governo). A pobreza exacerba o que é comum na atualidade: relações sociais pautadas pelo consumo, porquan-to, mesmo existindo esse tipo de víncu-lo em vários segmentos de todas as de-

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nominadas classes sociais, “junta-se a fome com a vontade de comer” e a chance du-plica quando há o sentimento de impotên-cia por saber que seus meninos podem es-tar sem ter o alimento necessário (diga-se alimento : o boné desejado, o caderno que acabou e carece de reposição ou a ausência da básica dupla cuscuz com ovo).

Não bastasse a questão pecuniária, mais grave é o descaso com o desenvolvimen-to emocional dos filhos (se é que os con-sideram filhos), que atualmente, de tanto ocorrer na vida real, há até um exemplo na jurisprudência brasileira de um filho que processou o pai, porque ele deixou de lhe propiciar afeto. Sentam-se à me-sa de mediação, algumas vezes, apenas com o objetivo de conseguir a contribui-ção financeira. Há os casos em que es-quecem que os filhos têm sentimentos, carecem de atenção e de ter alguém que os acompanhe.

Há, então, a recorrência das característi-cas das relações individualistas quando o provimento ou não em conta bancária é o mote da relação pai, mãe e filhos. Inclu-sive, considera-se mais de meio caminho percorrido quando a mediação parece re-solvida na questão financeira. Sobrema-neira, algumas munícipes chegam ao nú-cleo em busca do afeto paterno para seus filhos, a exemplo de Alice, que, segundo relatou, durante a gravidez, o pai de seu filho contribuiu com uma banheira, duas calças enxutas, um prendedor de chupe-ta e, uma única vez, deu roupas, porque ela pediu muito. Segundo Alice, o que ela mais deseja é atenção para o filho.

Alguns genitores não consideram que seus filhos carecem, além dos cuidados materiais, de desvelo moral e afetivo. Al-gumas crianças externam mais que ou-tras como no caso de Sueli e Roberto, uma vez que a munícipe afirmou que o filho Yuri é uma criança carente em re-lação ao pai. Mostrou, no momento da mediação, uma atividade escolar do me-nino em que considera triste o fato de o pai não dar atenção, “quando meu pai não liga para mim”. Dessa maneira, po-der-se-ia citar mais exemplos, como o de Clara e de Osvaldo; seu jovem filho tam-bém sente a falta do genitor. A munícipe relata que “gostaria que o pai fosse mais presente, pois seu filho gostaria de visitar mais o pai”. Osvaldo, por sua vez, já tem três filhos de outra relação, o que tem de-monstrado o diletantismo destes em de-trimento do filho adolescente. Enfim, é considerável o índice de descumprimen-tos de acordo na temática visitação.

Outros fatores fragilizam as famílias, ou os arranjos familiares são retratados nos casos com histórico de violência física e/ou psicológica, muitas vezes redundantes da embriaguez do genitor. Como se pode constatar na fala de Mariana, a qual afir-ma já ter fugido para o Sudeste porque o genitor das crianças “bateu” nela e se alterava com uma das filhas (do próprio casal). Disse que o João, o marido, está proibido de entrar na favela, porque is-so se dá com quem bate em mulher. Sus-tentou que ele só comete atos violentos quando embriagado. Contou, ainda, que ele a chamou para conversar em um mo-tel, mas a requerente não quis.

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Outro exemplo se dá no relato de Vivian: “O casamento não dá mais certo por cau-sa das traições e bebida”. Ou o exemplo de Lenildo, desempregado, e quando foi assinar a rescisão do contrato de traba-lho estava bêbado e aceitou um aparelho eletrônico no lugar da rescisão. No caso Sueli e Roberto, o fator alcoolismo pode ter relevância no desenrolar da história de vida familiar. A requerente afirma que ele bebe todo fim de semana (fato que o colocou em observação e posterior de-missão do trabalho). Já tentou agredir a requerente, e não foi às vias de fato por-que a mãe dele interveio.

Mesmo ao listar algumas dificuldades de-correntes das novas formações familiares e encarando difícil a jornada de exercer a maternagem ou paternagem solitária, há de se constatar que os exemplos de vitó-ria e real comprometimento com a pro-le são consideráveis. Há alguns genitores que, mesmo separados, conseguem divi-dir encargos e repartir atenção e afeto, não deixando ou minorando o sentimen-to de vazio que os filhos possam sentir ou deixar escapar com situações de frustra-ção ou rebeldia.

Há de se enfatizar que não existe deter-minismo, haja vista que tanto os órfãos de pais vivos residentes em Boa Viagem (pais cujo trabalho é a única ou maior priori-dade e não demandam tempo aos filhos) como os infantes das adjacências do Pina e Brasília Teimosa, que têm relegados al-guns direitos e atenções básicas, podem vencer. Não faltam exemplos, como o de Clarice, menina de apenas 10 anos de

idade, que esboça uma mentalidade cen-trada e desenvolvida, sabe o que quer (deseja ser médica) e pode contribuir pa-ra o progresso dos seus, da comunidade, da sociedade e, quiçá, do Planeta.

Em linhas gerais, pode-se inferir que uma nova formação ou arranjo familiar vai além dos ressentimentos da separa-ção, da crise financeira, da guarda hege-mônica ou compartilhada. Permeia dife-rentes gêneros, culturas ou classes sociais com os mesmos problemas e questiona-mentos do que seria “errado” ou “certo”.

Versar sobre as novas configurações da família pode conduzir à confecção de li-nhas, páginas ou compêndios, por ser um tema que reflete e mexe com os valores morais ou com a ausência deles.

Referências

FÉRES-CARNEIRO, T. Casal e família: entre a tradição e a transformação. Rio de Janeiro : Nau, 1999.

NAZARETH, Eliana Riberti. A influ-ência dos fatores psicológicos inconscien-tes nas decisões judiciais. 2004. Dispo-nível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo= 134>. Acesso em: 25 jun. 2009.

RECIFE. Prefeitura. Atlas do desenvolvi-mento humano no Recife. 2005. Disponí-vel em: <http://www.recife.pe.gov.br/pr/secplanejamento/pnud2006/doc/analiticos/

Desenvolvimento%20Humano%20e%20Habita%C3%A7%C3%A3o%20

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no%20Recife.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2008.

Bibliografia

IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da popula-ção brasileira. Rio de Janeiro: Comuni-cação social IBGE, set. 2008.

SANTOS, Jonny Maikel. O novo direito de família e a prestação alimentar. Jusna-vegandi, Teresina, ano 8, n. 208, 30 jan. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 20 maio 2009.

SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. A famí-lia afetiva: o afeto como formador de família.

Revista Pensar, v. 2, n. 2, jun. 2009.

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