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Tese de doutorado da professora Evely Libanori

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  • EVELY VNIA LIBANORI

    A CONSTRUO DO ESPAO EM PERA DOS MORTOS, DE AUTRAN DOURADO, E PEDRO PRAMO, DE JUAN RULFO

    ASSIS 2006

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    EVELY VNIA LIBANORI

    A CONSTRUO DO ESPAO EM PERA DOS MORTOS, DE AUTRAN DOURADO, E PEDRO PRAMO, DE JUAN RULFO

    Tese apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista para a obteno do ttulo de Doutora em Letras (rea de Conhecimento: Literatura e Vida Social)

    Orientadora: Dra. Heloisa Costa Milton.

    ASSIS

    2006

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    EVELY VNIA LIBANORI

    A CONSTRUO DO ESPAO EM PERA DOS MORTOS, DE AUTRAN DOURADO, E PEDRO PRAMO, DE JUAN RULFO

    Tese apresentada Faculdade de Cincias e

    Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista para a obteno do ttulo de Doutora em Letras (rea: Literatura e Vida Social)

    Data da Aprovao: 24/08/2006

    BANCA EXAMINADORA

    Presidente: DRA. HELOISA COSTA MILTON UNESP / Assis

    Membros: DR. ANTONIO ROBERTO ESTEVES UNESP / Assis

    DRA. ANA MARIA CARLOS UNESP / Assis

    DRA. CLARICE ZAMONARO CORTEZ UEM / Maring

    DR. RAFAEL CAMORLINGA ALCARAZ UFSC / Florianpolis

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    Para

    Leo

    porque, diante das falas da temeridade, da insegurana, da imaturidade teimosa, manteve com todas um dilogo de carinho.

    Horeide meu mais seguro abrigo.

    Biba com muita saudade.

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    AGRADECIMENTOS

    Professora Doutora Heloisa Costa Milton, pela orientao segura e meticulosa.

    Aos Professores Doutores Ana Maria Carlos e Antonio Roberto Esteves, pelas valiosas colaboraes, sugestes e discusses no Exame Geral de Qualificao.

    Professora Cleiry de Oliveira Carvalho, por tantas leituras e livros.

    Professora Doutora Maria Regina Pante, pelo apoio providencial.

    Aos Professores Doutores da rea de Teoria da Literatura e Literaturas de Lngua Portuguesa da Universidade Estadual de Maring: Alice urea Penteado Martha, Clarice Zamonaro Cortez, Lcia Osana Zolin, Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, Marciano Lopes e Silva, Marisa Correa Silva, May Holmes Zanardi, Milton Hermes Rodrigues, Mirian Hisae Yaegashi Zappone, Rosa Maria Graciotto Silva, porque trabalharam muito enquanto eu estudava.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Cmpus de Assis.

    CAPES, pela concesso da Bolsa de Doutorado (PICDT).

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    LIBANORI, Evely Vnia. A construo do espao em pera dos mortos, de Autran Dourado, e Pedro Pramo, de Juan Rulfo. Tese de Doutorado em Letras Universidade Estadual Paulista UNESP, Assis, 2006.

    RESUMO

    Esta tese discute a construo do espao nos romances pera dos mortos (1967), de

    Autran Dourado, e Pedro Pramo (1955), de Juan Rulfo. Nestes romances, o espao como

    cenrio esttico e objetivo ultrapassado para dar vez representao da problemtica

    existencial do homem e, por isso, necessita ser entendido ontologicamente em sua relao

    com o ser. Neste caso, s ganham relevncia os seres e os objetos que se aproximam ou se

    distanciam do homem com vistas a participar de seu projeto existencial. Cada indivduo

    revela o sentido e a inteligibilidade dos objetos materiais no momento em que estes objetos se

    integram aos seus propsitos e intenes. Nas obras de Dourado e Rulfo, as personagens

    constroem diversos e diferentes espaos, muitos deles contraditrios e excludentes entre si.

    Tais espaos equivalem a formas do desvelamento das zonas sombrias da alma humana, o que

    faz com que os ambientes regionais se convertam em centros onde a solido, a

    incomunicabilidade e a morte sejam as nicas presenas constantes. Trata-se, portanto, de

    demonstrar, nos romances, a maneira pela qual o espao deixa de ser o elemento slido e

    esttico para se revelar um componente expressivo de concepo filosfico-existencial, que

    implica no apenas diferentes formas de percepo da realidade externa como tambm o

    desdobramento imprevisvel das possibilidades de instaurao de uma realidade no-

    subordinada lgica do mundo causal.

    Palavras-chave: pera dos mortos; Pedro Pramo; Autran Dourado; Juan Rulfo; espao existencial.

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    LIBANORI, Evely Vnia. The construction of space in pera dos Mortos by Autran Dourado and Pedro Pramo by Juan Rulfo. Doctorate Thesis in Languages Universidade Estadual Paulista UNESP, Assis, 2006.

    ABSTRACT

    The present study argues on the construction of space in the novels pera dos

    Mortos by Autran Dourado (1967) and Pedro Pramo by Juan Rulfo (1955) as well. In both

    novels the space, as an objective and static scenery, is transposed in order to give place to the

    representation of the existential problematic of mankind, thus, it should be understood

    ontologically in its relation to the human being existence. In such a case, the relevance is

    played only on beings and objects that either come close or go far from mankind, always with

    the purpose of participating in their existential project. Each individual reveals the meaning

    and the intelligibility of the material objects, in the right moment such objects integrate

    themselves to their own purposes and intentions. The characters of Dourado and Rulfos

    novels build up several and different spaces, many of them considered contradictory and one

    excluding the other. Such spaces aim at uncovering the obscure parts of the human soul, what

    makes the regional environments turn into centers in which loneliness; incommunicability and

    death are the only constant presences. Therefore, based on the plot of the novels, the aim of

    this study is to show that the space is not a solid element anymore, but, in fact, it reveals itself

    as an expressive component, part of an existential philosophic conception that embraces not

    only different forms of perception of external reality, but also, the unpredictable development

    of the possibilities of establishing a reality not subordinated to the logic of the casual world.

    Key words: pera dos mortos; Pedro Pramo; Autran Dourado; Juan Rulfo; existencial space.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................. p. 9

    1. AUTRAN DOURADO E JUAN RULFO: ITINERRIOS SEMELHANTES............ p. 20 1.1. A recepo crtica de Autran Dourado.................................................................... p. 21 1.2. A recepo crtica de Juan Rulfo ........................................................................... p. 37

    2. CONCEPES DE ESPAO....................................................................................... p. 58 2.1. Homem e terra......................................................................................................... p. 59 2.2. A natureza romntica: o espao como ordem de coexistncias.............................. p. 66 2.3. O conflito entre homem e natureza: o espao absoluto.......................................... p. 80

    3. EXISTNCIA E ESPAO............................................................................................ p. 94

    4. ESPAO DE INCOMUNICABILIDADE................................................................... p.127

    5. ESPAO DE MORTE.................................................................................................. p.159

    CONCLUSO.................................................................................................................. p.186

    REFERNCIAS................................................................................................................ p.192

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    INTRODUO

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    O objetivo deste trabalho mostrar a instaurao de uma concepo ontolgica de

    espao promovida pelos romances pera dos mortos (1967), do escritor mineiro Autran

    Dourado, e Pedro Pramo (1955), do mexicano Juan Rulfo. Tanto Autran Dourado como Juan

    Rulfo utilizam a matria regional para recriar um mundo que, embora apoiado na realidade de

    determinada regio, no se prende organizao lgica dos referentes externos. As situaes

    propostas por ambos no se limitam localizao do modelo regional, pois o que est em

    evidncia a viso de mundo transfigurada e remodelada pelos romancistas, capaz de dotar a

    realidade geogrfico-social de atributos outros que no os simplesmente exteriores.

    O espao regional, que na esttica romntica e realista servira formao da

    identidade do homem latino-americano, em pera dos mortos e Pedro Pramo, representa a

    possibilidade para engendrar uma viso nova e inslita do mundo externo. Nestas obras, os

    elementos contextuais, retirados de uma pequena vila mineira, em pera dos mortos, e do

    interior do estado mexicano de Jalisco, em Pedro Pramo, perdem sua funo de apenas

    situar geogrfica e socialmente a narrativa. No cenrio discursivo, prevalecem a

    fragmentariedade narrativa, a diluio do tempo mensurvel, a impreciso do espao fsico.

    A atitude criadora de Autran Dourado e de Juan Rulfo evoca a seguinte observao

    de Antonio Candido sobre a fico regional a partir de 1940, na Amrica Latina: "as regies se

    transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traos antes pitorescos a

    se descarnarem e adquirirem universalidade" (1979, p. 361). No entanto, nesta declarao

    subjaz uma pergunta sem resposta: de que maneira as regies adquirem universalidade? Em

    responder esta pergunta consiste a hiptese que norteia o presente trabalho, ou seja, a de que a

    realidade regional em Dourado e Rulfo necessita ser estudada de um ponto de vista

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    ontolgico, o que pressupe a importncia do cenrio medida que ele se relaciona com o

    destino do homem.

    Ainda que o referente externo esteja em evidncia, o propsito criador dos autores

    no se preocupa com a concepo mimtica da paisagem regional. No h inteno de

    promover uma correspondncia direta entre as situaes desenvolvidas na trama narrativa e os

    acontecimentos geograficamente localizados. Embora as aes se passem em ambiente que

    pode ser demarcado em seus limites fsicos, tais limites no so importantes "em si", bem

    como no so determinantes para o conflito das personagens. Pode-se, pois, afirmar que o

    lastro regional no minimiza o propsito inventivo dos escritores nem reduz o campo das

    aes das personagens fidelidade do meio localizado. Com tal afirmao no se pretende

    apenas enfatizar a liberdade criadora dos autores, uma vez que toda literatura nasce do

    trabalho inventivo do escritor, mas sim destacar que os romances de Dourado e Rulfo refletem

    a unidade e a ordem perdidas, caracterizando-se pela transgresso s leis do mundo externo,

    principalmente Pedro Pramo. O princpio constitutivo das obras nasce, portanto, do

    rompimento com a logicidade, a causalidade, a unidade de espao, a mensurabilidade do

    tempo.

    A quebra da linearidade espcio-temporal est, nos dois romances, acompanhada da

    multiplicidade de pontos de vista, o que impossibilita a apreenso de sentidos definitivos para

    as reflexes e aes e, portanto, impede qualquer certeza sobre os fatos. Ao mesmo tempo em

    que o espao inaugurado na obra de ambos se refere realidade especfica de uma

    determinada regio, dela se distancia para se projetar num campo universal. Neste sentido, os

    romances levantam um problema clssico da filosofia sobre o espao o de sua

    conceituao. Seria o espao uma relao entre os objetos, de modo que tal relao fosse

    determinante para sua construo, ou seria um cenrio constitudo por substncia slida que

    subsistisse retirada de todos os objetos nele contidos?

  • 12

    De acordo com a perspectiva relacionista, o espao um fenmeno que pressupe a

    movimentao dos elementos e no pode ser pensado sem a matria. Segundo a viso

    substantivista, o prprio espao material, um campo objetivo que engloba os pontos ou

    lugares em que os seres e as coisas se localizam. Ambas as correntes filosficas acentuam a

    prioridade da matria para a constituio do espao. Estas idias, no entanto, chocam-se com

    a concepo ontolgica que no v o espao como um fenmeno material em primeiro lugar,

    mas como o campo de proposio das possveis aes humanas, sendo compreendido em

    funo das possibilidades de atuao do homem sobre os elementos exteriores.

    Em ambos os escritores, a recusa organizao lgica do mundo externo para a

    construo de um novo cenrio dificultaria, sobremaneira, a concepo desta nova realidade

    como um espao material, substantivo. Neste sentido, a introduo de um espao no-

    subordinado aos aspectos reconhecveis do mundo externo associa-se necessidade de uma

    representao anticonvencional do fluxo da vida e dos dramas que ele impe. A realidade

    complexa que os romances apresentam j no pode ser organizada dentro de um espao

    imutvel e perene. Assim como a prpria verdade humana mostra-se mutvel e incompleta, os

    espaos da obra refletem tal mutabilidade e incompletude. Desta forma, por fora das suas

    dimenses e configurao estrutural, deve-se verificar a funcionalidade destes espaos e a este

    fim se prope o presente trabalho.

    No que diz respeito ao estudo das categorias romanescas, pode-se afirmar que

    empreender um estudo de flego sobre a categoria espacial trabalho que se defrontar com a

    rarefao de pesquisas sobre o assunto. Antonio Dimas, em seu Espao e romance constata:

    "No quadro da sofisticao a que chegaram os estudos sobre o romance, fcil perceber que

    alguns aspectos ganharam preferncia sobre outros e que o estudo do espao ainda no

    encontrou receptividade sistemtica" (1994, p. 6). O crtico declara ainda que " minguada a

    bibliografia terica do assunto de que tratamos, tanto no mbito nacional, como no

  • 13

    estrangeiro" (1994, p. 15). As observaes de Dimas fazem eco anterior reivindicao de

    Osman Lins em Lima Barreto e o espao romanesco. Para o escritor, o espao o "amplo

    aspecto da arte romanesca que, variamente visto, inventado e tratado pelos criadores,

    permanece, ainda ao contrrio do que se observa em relao ao tempo ,

    insuficientemente iluminado por um esforo analtico" (1976, p. 68). A constatao da escassez

    de trabalhos literrios sobre a funo do espao apresentou-se como mais uma motivao para

    o desenvolvimento desta pesquisa. A forte adeso do romance latino-americano poetizao

    do espao, seja urbano, seja regional, mereceria maior ateno por parte de crticos e

    estudiosos da literatura.

    Com o objetivo de entender a proposta esttica de Autran Dourado e Juan Rulfo, no

    primeiro captulo, ser enfocada a recepo crtica da obra dos autores de modo a revelar

    que o binmio regional/universal foi alvo de constante abordagem nos estudos voltados para a

    compreenso da estratgia narrativa de um e de outro escritor. O conjunto de obras dos

    escritores apresenta motivao semelhante. Em ambos, a composio narrativa se pauta pelo

    enfoque da vida de personagens inseridas em cenrios regionais, com as modalidades de

    linguagem e costumes que lhe so peculiares. De fato, a matria regional compe o cenrio de

    grande parte da produo de Autran Dourado e de toda a curta produo literria de Juan

    Rulfo. No entanto, o tom documentrio e a presena de elementos pitorescos, caractersticos

    da literatura regional, apresentam-se superados em funo da problematizao da existncia.

    A grande indagao, o pasmo fundamental dos agentes das narrativas de Dourado e Rulfo,

    reportam-se ao binmio vida/morte. Os cenrios regionais so perpassados por implicaes de

    ordem existencial e, por isso, o espao no s aquilo que aparenta ser, porque revela

    possibilidades de sentido transcendente. O ponto de interesse no a sucesso de

    acontecimentos (que, em pera dos mortos bastante escassa), mas as divagaes e reflexes

    que derivam dos prprios dramas cotidianos.

  • 14

    Discorrer sobre a apreciao crtica da obra de Autran Dourado e de Juan Rulfo

    significa selecionar os textos que mais interessam ao nosso propsito. A seleo, por sua vez,

    implica sempre a adoo de certos critrios que norteiam o processo de escolha e estes podem

    excluir materiais que, analisados sob outros critrios, mostrar-se-iam instrumentos valiosos. A

    adoo de determinados parmetros de seleo do material para comentar a recepo crtica

    dos autores levou em conta a situao desigual com que se apresenta o material analtico da

    obra desses escritores no Brasil. No que se refere a Autran Dourado, h uma abundncia de

    trabalhos acadmicos sobre o autor1, mas no se pode dizer o mesmo de obras crticas

    publicadas. Das apreciaes crticas mais representativas, uma das quais do prprio autor, o

    grande estudo iluminador do processo de construo da narrativa, assim como dos elementos

    e situaes mticas presentes em sua obra, Autran Dourado: uma leitura mtica (1976), de

    Maria Lcia Lepecki. A ele voltar-se- oportunamente. Em relao a Rulfo a situao

    inversa: h pouco material acadmico e farto material impresso2. No que se refere a estudos e

    referncias on-line em todas as lnguas, o site de pesquisas Google scholar3 registra 1.260

    ocorrncias para Juan Rulfo e 91 para Autran Dourado. Em relao a estudos on-line

    disponveis em lngua portuguesa h 31 ocorrncias para Juan Rulfo e 64 para Autran

    Dourado. Estes dados nos permitem afirmar que a obra de Rulfo ainda no est

    satisfatoriamente difundida no Brasil. Em contrapartida, Dourado est muito longe de ter o

    mesmo reconhecimento que Rulfo no mbito internacional.

    E como no se pode e no se quer dar tratamento diferenciado aos autores

    privilegiamos os textos crticos que tm como principal objetivo estudar o processo de

    composio das obras dos romancistas. Tendo em vista a desigualdade do reconhecimento dos

    escritores, no se poderia restringir a seleo ao mbito da crtica nacional, no caso de Rulfo,

    1 H vinte e duas dissertaes e sete teses disponveis no Banco de teses da Capes.

    2 H oito dissertaes e duas teses disponveis no Banco de teses da Capes. Destes dez trabalhos, cinco foram

    defendidos nos ltimos cinco anos, o que indica o crescimento de interesse pela obra do escritor. 3 A consulta foi realizada em abril de 2006.

  • 15

    bem como no se encontraria materiais analticos sobre a obra de Dourado em outros pases.

    Neste sentido, a busca de um critrio eqitativo norteou-se por priorizar as apreciaes que

    tiveram por propsito primeiro contextualizar e explicar o tratamento concedido ao espao, ao

    tempo, ao perfil do homem que consta na obra dos autores e ao olhar que este homem tem

    sobre si e sobre o mundo.

    O segundo captulo prope-se a rastrear aquilo que se pode entender por "espao" na

    mitologia e filosofia clssicas e em romances considerados regionais. Na mitologia e filosofia

    clssicas encontram-se exemplos em que o conceito de espao supe uma estreita ligao

    entre o elemento "terra" e o homem. O homem e sua vinculao com a terra foi tambm o

    principal enfoque do romance romntico no sentido de se proceder busca da expresso da

    identidade local e da alteridade humana. Dessa forma, houve uma ampla e estrondosa

    valorizao dos cenrios naturais durante o sculo XIX. O tom grandiloqente, combinado

    exaltao das paisagens naturais, passou a ser o tema comum literatura que relacionou a

    natureza identidade da ptria. A necessidade de valorizao dos cenrios naturais, aliada

    busca por pontos de contato para a livre expresso de estados emotivos do "eu", deu lugar a

    uma concepo de espao em que eram priorizados, ao mesmo tempo, os estados subjetivos e

    a realidade emprica. Neste caso, pretende-se mostrar no romance Mara, do colombiano

    Jorge Isaacs, publicado em 1867, a vigncia da concepo de Gottfried Wilhelm Leibniz,

    segundo a qual no pode haver um espao absoluto que no tenha relao com outro ser. Em

    Newton & Leibniz (1983), coletnea da intensa correspondncia entre Leibniz e os seguidores

    de Issac Newton, Leibniz defende a idia de que o espao a interao entre os objetos

    componentes de um cenrio e, portanto, sempre finito e mensurvel. A escolha pelo

    romance Mara deveu-se ao fato de que a obra surgiu numa poca em que predominavam os

    cuadros de costumbres, em virtude da preocupao com a cor local preceito romntico por

    excelncia. Neste romance, o homem no existe apenas como parte ou espectador da natureza.

  • 16

    O mundo exterior e os arrebatamentos da alma se confundem. Os estados internos das

    personagens e as realidades externas no so apreciados separadamente; ao contrrio, em

    Mara os elementos do cenrio so apreendidos por meio das camadas sentimentais do

    narrador que atribui determinado valor a tais elementos. O romance corresponde ao

    pensamento filosfico de que todo espao deveria manter ligao com algum objeto, razo

    pela qual Leibniz no admite a idia newtoniana de espao vazio ou absoluto. O espao

    constri-se, neste caso, segundo uma relao dinmica entre os seres.

    No Realismo, os romancistas se revoltaram contra a pintura "imaginativa" dos

    romnticos, procurando traduzir os costumes, as idias e os aspectos de uma poca de modo

    objetivo, o que significou a adoo de uma concepo tambm objetiva do espao. Com

    efeito, os realistas foram representantes da filosofia da objetividade. Assim, o alvo de

    interesse passou a ser o "objeto", isto , aquilo que est fora do eu, o "no-eu". No incio do

    sculo XX, o desdobramento do chamado "romance da terra" continuou a inteno realista em

    fixar a identidade das naes por meio da exposio de seus problemas sociais. O interesse

    pela ordem social, o deslocamento do centro de interesse para o "outro" em vez do "eu",

    determinaram significativas alteraes no modo como os cenrios regionais se apresentaram.

    Nesta poca, prevaleceu a concepo de Isaac Newton sobre espao exposta pela primeira vez

    em 1687 no ensaio filosfico Principia Princpios matemticos de filosofia e, nos anos

    seguintes, defendida pelo discpulo Samuel Clarke em correspondncia com o filsofo

    Gottfried Leibniz. Segundo Newton e seus seguidores, o espao de modo algum representa

    uma propriedade de coisas entre si e tampouco est em suas relaes recprocas com outros

    objetos. O espao considerado como a condio da possibilidade de existncia dos objetos e

    no uma determinao dependente destes; uma representao a priori que subjaz,

    necessariamente, aos fenmenos externos. Nos romances do comeo do sculo XX, a

    focalizao dos problemas sociais feita de modo a revelar um espao que subsiste ao poder

  • 17

    imaginativo do homem e que prescinde da necessidade de interao recproca entre os seres.

    Na Amrica Latina, esta concepo predominou nas obras de fundo regional at a criao do

    chamado "romance de trinta". O propsito mostrar que Mariano Azuela, em Los de abajo,

    lanado em 1916, representante de uma literatura em que o espao o continente em que os

    homens vivem e morrem e que, independentemente das relaes humanas, permanece como

    um cosmo inalterado, que no se modela e nem se modifica com a trajetria das personagens.

    No terceiro captulo ser estudada a importncia dada por Dourado e Rulfo ao

    homem em sua trajetria existencial rumo ao nada. Em pera dos mortos, os cenrios fsicos

    s adquirem importncia quando se relacionam com a existncia das personagens. Em Pedro

    Pramo, o narrador no se detm na descrio minuciosa da paisagem, o que no significa

    dizer que prescinda dela, uma vez que cada personagem se move num cenrio desrtico,

    expondo, a partir dele, seus tormentos. Em Dourado e Rulfo, as paisagens fsicas abertas e

    fechadas contm em si a virtualidade de mais de um sentido e h muitas ocasies em que,

    com relao a um mesmo agente, em dado momento, signifiquem vivncias contraditrias.

    Este captulo expe a constituio ontolgica do homem segundo a viso filosfica de Martin

    Heidegger no tratado filosfico Ser e tempo (2001-2), e aborda a maneira pela qual o homem

    atribui valor sagrado ao mundo de acordo com o pensamento de Mircea Eliade em O sagrado

    e o profano (2001). Segundo Heidegger, o ser revela a espacialidade do mundo circundante

    medida que se relaciona com os seres e objetos sua volta. Aquilo que no entra no domnio

    da existncia do homem permanece na instncia do no-ser. o homem que atribui

    espacialidade ao mundo, uma vez que pode escolher, dentre os cenrios fsicos, aqueles com

    os quais se relacionar. bem verdade que o homem no um demiurgo que pode deliberar

    sobre a estrutura e contedo do universo, mas o ser que, lanado vida, necessita construir a

    si prprio e, nesta direo, relaciona-se com a circunstncia mundanal de forma premente. O

    espao deve ser compreendido em funo de possibilidades de atuao da prxis humana e,

  • 18

    nesta ordem de idias, revela-se como a organizao proposta pelo homem. O prprio ser

    um ser-no-espao, ou seja, lida com os entes que vm ao seu encontro de modo a utiliz-los

    para suas finalidades. No cotidiano do existir, o homem opera uma relao com os elementos

    circundantes e, assim, espacializa a si prprio e aos objetos. De acordo com Eliade, o homem

    das civilizaes primitivas no considerava o mundo como uma massa natural e neutra

    absolutamente indiferente ao destino humano. Para tal homem, o mundo dividia-se em regies

    sagradas e profanas. As regies sagradas so aquelas que o homem elege como territrio de

    comunicao com o transcendente, com os deuses que devem ser cultuados. As regies

    profanas so aquelas habitadas por seres com os quais o homem se relaciona apenas nas

    atividades cotidianas. Os espaos sagrados, conquanto estejam instaurados na extenso neutra

    de um mundo profano, marcam a oposio entre dois universos e possibilitam ao homem a

    comunicao com um poder absoluto. Ambos os filsofos mostram-se complementares para

    entendimento da relao entre o homem e seu cenrio.

    O quarto captulo enfocar a organizao narrativa dos romances como reflexo da

    incomunicabilidade e solido em que vive cada personagem, em sua inacessibilidade ao outro.

    Em pera dos mortos, o narrador no mais o portador de um saber porque as personagens

    no logram a comunicao entre si de modo a participar de experincias que possam ser

    transmitidas. Assim sendo, a operao de "seleo" dos fatos passados para construo da

    trama romanesca no possvel. A voz narrativa comenta o processo de narrao, envolve-se

    com os atos e gestos das personagens. No h aes previamente selecionadas para

    composio de um painel de situaes cronolgicas e, por isso, os captulos que formam o

    romance tm valor em si e no em funo de um contexto que os englobe. A relativa

    autonomia dos captulos reflexo da trajetria individual das personagens, visto que elas

    vivem em espaos que no se comunicam com o espao de outras personagens. A

    conseqncia de tal separao a predominncia da incomunicabilidade, o que faz do silncio

  • 19

    a lei dominante. O ser est separado do outro e h esforos por parte das personagens em

    manter a incomunicabilidade e a ausncia de contato com o outro a fim de conservar a

    sacralidade do espao. Em Pedro Pramo, o desenvolvimento da narrativa nunca linear,

    mas enovelado, circular. A obra dividida em sessenta e trs micronarraes e os eventos se

    passam em diferentes espaos e tempos, havendo, por isso, diversos enfoques narrativos. As

    prprias personagens contam sua histria e, em vrios momentos, no se pode discernir qual

    ao teria vindo antes, qual teria vindo depois. O espao e o tempo se alteram de acordo com

    o enfoque narrativo. O ser encontra-se em um espao prprio e, embora no fuja do contato

    com o outro, no consegue partilhar o medo e a solido que experimenta. Vez por outra, os

    mundos se aproximam, mas no adquirem unidade. Cada mundo um mundo prprio,

    incomunicvel ao outro.

    O captulo cinco tem por objetivo destacar os diversos ndices relativos morte que

    fazem do homem um ser-para-a-morte, ou seja, um ser cujo aniquilamento a prpria base

    de sua vida. A morte , nos dois romances, o evento que justifica as aes e a rotina das

    personagens. O tempo futuro em que novos eventos se somam aos eventos presentes e

    passados est ausente enquanto possibilidade para as personagens. Em pera dos mortos, os

    mortos so cultuados como deuses de um tempo sagrado, tempo este que deve ser conservado.

    A negao do valor das aes presentes e futuras traduz a angstia do confinamento e da

    solido. Em Pedro Pramo, a morte sequer temida, pois vivos e mortos coabitam um

    mesmo territrio. No entanto, a morte no o fim; as personagens brotam da terra e a ela

    retornam para dela brotar novamente. Em ambos os romances, as personagens se encontram

    num destino comum, ou seja, o de se consumir um pouco a cada dia, o que faz delas smbolos

    das questes referentes existncia humana.

  • 20

    1. AUTRAN DOURADO E JUAN RULFO: ITINERRIOS SEMELHANTES

  • 21

    1.1. A recepo crtica de Autran Dourado

    O escritor mineiro Valdomiro Autran Dourado (1926 ) estreou no universo

    literrio em 1947, com o romance Teia. Em 1950 publicou Sombra e exlio. A postura crtica

    em relao aos dois primeiros romances foi bastante elogiosa. Associou-se a trajetria das

    personagens de suas obras temtica existencialista, ao trgico sentimento de solido do ps-

    guerra, constatao do abandono do homem ao absurdo do mundo. Em 1959, nos Cadernos

    de crtica, Antonio Olinto fez uma apreciao do processo de composio da obra Nove

    histrias em grupos de trs (1957). Olinto viu nos contos de Dourado uma "verdade potica,

    uma suavidade de obra de cmara" (1959, p. 73). Aludiu aproximao do discurso narrativo

    dos contos linguagem da poesia, uma vez que Dourado prescinde de "truques de tcnica", o

    que d a seus contos uma fluncia no-observvel facilmente em autores contemporneos. O

    ensasta advertiu, no entanto, que a fluncia no significa simplificao dos efeitos estticos.

    Olinto enfatizou a capacidade do autor para criar situaes simblicas no conjunto de textos

    autnomos. Para ele, em Nove histrias em grupos de trs, o "mar" e a "morte" so smbolos

    do movimento incessante e fugaz da vida. Tal recurso tem como finalidade demonstrar que,

    por mais diferentes que sejam as pessoas, suas vidas so sempre uma srie de situaes

    incertas e duvidosas que podem se concluir bem ou mal. Nem sempre o homem pode

    conduzir seus atos; muitas vezes a vida humana no seno um desenrolar de fatos

    controlados pelo Destino.

    As crticas mais importantes surgiram nos jornais mineiros aps a publicao de A

    barca dos homens (1961). Na dcada de sessenta, o autor mineiro foi tido como um dos nomes

  • 22

    mais expressivos da literatura nacional. O romancista foi saudado como exemplo de escritor

    que rompe com o processo de construo da narrativa tradicional, uma vez que problematiza o

    prprio instrumento de que se serve para construir seus romances. Alm disso, a exposio da

    densidade emocional das personagens valeu-lhe sempre estudos comparativos com autores j

    consagrados na literatura nacional e estrangeira.

    Em 1970, no artigo intitulado "O romancista Autran Dourado", Assis Brasil discorreu

    sobre o estilo de composio do autor mineiro nos romances A barca dos homens (1961), Uma

    vida em segredo (1964) e pera dos mortos (1967). Neste artigo, Autran Dourado foi

    comparado a Dalton Trevisan na inteno de criar uma obra em que a simplicidade a

    constante de uma arte sem "artificialismos cerebrais". Assis Brasil fez uma concisa avaliao

    da tcnica empregada pelo autor na composio de cada obra e resumiu o processo criador do

    romancista como o de um escritor que optou

    entre outros recursos j considerados "clssicos" no romance moderno, pela narrativa que desse maior autonomia criadora ao personagem e a sada que encontrou, dentro da aparente limitao do processo, foi a de isolar, individualmente, os personagens para arrancar-lhes os pensamentos e criar uma ao interior que iria justificar a ao exterior e o episdico da movimentao convencional. Todos os personagens, assim, passam por uma espcie de "corrente de pensamentos", que nasceu com a narrativa automtica dos surrealistas e se corporificou, em dimenso novelesca, em Joyce. (1970, p. 3).

    A autonomia das personagens em relao ao ambiente externo, de que falou Assis

    Brasil, transforma por vezes, os incidentes externos em frgeis fios de enredo e as pulsaes

    da vida ganham relevo principal. Os dramas humanos prevalecem sobre as situaes externas.

    Ainda em 1970, ano do lanamento do romance O risco do bordado, em artigo

    homnimo, Assis Brasil afirmou que o escritor se encontrava em "pleno domnio de seu

    instrumento de criao" (1970, p. 7). A observao de Assis Brasil decorreu do processo

    adotado pelo ficcionista para apresentar as aes lineares em captulos praticamente

  • 23

    autnomos, dotados de capacidade comunicativa mesmo se apreendidos isoladamente. Os

    "captulos" seriam as reminiscncias no-concatenadas de Joo, o protagonista da obra que

    participa de todos os eventos acumulados em cenrios no-uniformes. Segundo Assis Brasil,

    O risco do bordado apresenta aquilo que j se pde observar em outros romances de autor.

    Um destes traos a presena do narrador seguro que conduz a narrao e, ao mesmo tempo,

    promove um dilogo com o narratrio, expe os dramas existenciais de personagens pobres e

    destaca a camada subjetiva das personagens como fora propulsora da criao do texto.

    Em "Meu amigo Autran Dourado" (1985), Francisco Iglesias relembrou o ambiente

    intelectual de Minas Gerais no incio do sculo XX, que atraa escritores iniciantes,

    consagrados mais tarde. Avaliou Autran Dourado como escritor de vastssima cultura,

    iniciado em literatura clssica e um dos primeiros a perceber que a sintaxe ao estilo de Camilo

    Castelo Branco, Alexandre Herculano, Machado de Assis no serviria para criar o ambiente

    ficcional de uma literatura cuja ao se desenvolve em terra mineira, mas revela a capacidade

    de construir extraordinrios tipos humanos que refletem temas universais. De acordo com

    Iglesias

    h uma linha de criao, vigor inventivo, slida estrutura literria, linguagem sempre prpria, pessoal e livre, coerncia e justeza nesses contos, novelas, romances. Com eles, Autran Dourado afirma-se como uma das figuras proeminentes da literatura de nosso tempo, tendo j o seu espao conquistado e bem marcado. (1985, p. 4).

    E, de fato, na dcada de oitenta, Autran Dourado era j um escritor consagrado; o

    "espao conquistado" por ele compreendia a publicao de dezenove obras e a obteno de

    vrios prmios, dentre eles, o "Prmio Artur Azevedo do Instituto Universal do Livro", o

    "Prmio Paula Brito, do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro", o "Prmio Goethe

    de Literatura", o "Prmio Jabuti da Cmara Brasileira do Livro". Ademais, o romance pera

    dos mortos j integrava o elenco de obras mais representativas da literatura mundial segundo

    a Unesco.

  • 24

    Na opinio de Iglesias, Autran Dourado um dos autores mais conscientes da sua

    funo de prosador. De acordo com o crtico, o texto de Dourado nada tem de improvisao

    ou de armao de efeitos; ao contrrio, a prosa de quem trabalha com preciso e rigor. A

    linguagem do romancista resulta da leitura dos clssicos portugueses e brasileiros e a estrutura

    fabular "bem armada", conseqncia do longo e paciente exerccio de escritura. Iglesias

    ressaltou que o trabalho artstico de Dourado permanentemente aprimorado pelo escritor por

    meio do contnuo contato com a literatura de autores ingleses, franceses e norte-americanos.

    Distingue-o nestes termos: " escritor culto, coisa pouco comum no Brasil. Uma conscincia

    artstica superior e firme coisa rara no Pas. Autran Dourado um dos poucos que se situam

    nesse plano nobre de to poucos nomes" (1985, p. 4). Seja ou no um comentrio justo em

    relao aos demais escritores, o que sobressai da avaliao crtica de Iglesias o fascnio pela

    maneira como o escritor mineiro prepara as etapas da escritura, o que faz do texto um produto

    do trabalho consciente e rduo com os elementos de composio da narrativa. Este labor com

    o material artstico foi confirmado pelo prprio Autran Dourado em um comentrio sobre o

    processo de criao literria:

    No gosto da palavra inspirao, embora eu gostasse de ter o que chama de inspirao. Quando me aparece uma idia sbita, que como gosto de chamar o ato inicial criador, minha tendncia imediatamente ir escrever, como qualquer pessoa. Mas eu me refreio e vou deixando aquilo germinar dentro de mim por uns seis meses. Vejo palavras, nomes simblicos de personagens e lugares, isso, aquilo. Leio muito, fao pesquisa, estudo bastante. (apud SENRA, 1994, p. 60).

    Na declarao de Dourado sobressai-se a percepo de quem encara o ofcio de

    escrever como uma atividade que envolve "engenho", "arte" e minimizao da "inspirao",

    tal como apregoavam os ensinamentos clssicos. A escritura pressupe um lento processo de

    amadurecimento e implica a escrita e a reescrita como etapas da organizao das palavras

    com fins estticos. Neste sentido, Dourado torna-se tambm uma espcie de "crtico" dele

    mesmo.

  • 25

    O crtico literrio Sbato Magaldi em "Desencontros e encontros com Autran

    Dourado" (1985) norteou a apreciao do conjunto de obras do escritor mineiro pela mesma

    base de Iglesias, ou seja, tambm se refere a Dourado como escritor com vastssimo

    conhecimento literrio e com a percepo da literatura como ofcio a ser aprendido e

    aprimorado. Magaldi manifesta a mesma deferncia presente em Iglesias quando se refere ao

    repertrio intelectual do romancista:

    Quem ler Uma potica de romance: matria de carpintaria, e depois Meu mestre imaginrio, tomar conhecimento da slida cultura acumulada por Autran no correr dos anos. No erudio solta, conseguida para no parecer fora de moda. Cultura de verdade, assimilada na medida da preparao dos romances, alimento para a melhor estrutura de seu universo. (1985, p. 6).

    certo que nenhum texto literrio poderia desvincular-se do grande discurso da

    Cultura, do qual ser sempre um elemento. O que chamou a ateno de Magaldi foi o

    reaproveitamento que Dourado fez das prprias leituras, inserindo-as nos romances de modo

    que apenas o leitor sintonizado com os cdigos intertextuais do autor poder avaliar a riqueza

    esttica dos seus textos. Magaldi reportou-se ao fato de Dourado se movimentar com

    familiaridade por temas abordados na tragdia grega, mas ressaltou que o autor evita "abrir

    portas j escancaradas" e adapta os temas universais ao cotidiano do homem contemporneo.

    Para o crtico, a fico de Dourado revela o repertrio de mtodos modernos de composio,

    como a expresso do fluxo da conscincia, a construo de blocos narrativos autnomos, o

    abandono do desenvolvimento linear do tempo, a concepo de espao regional em uma

    perspectiva universal.

    Quando da publicao do romance Os sinos da agonia (1974), Flvio Loureiro

    Chaves, em "Sobre o romance de Autran Dourado" (1978), avaliou a obra do autor mineiro de

    forma a destacar, nela, os traos presentes na cosmogonia de seus romances. O crtico

    discorreu sobre a tendncia do autor para investigar os dramas individuais e abordou a

    maneira pela qual tais dramas revelam o destino incerto do homem moderno, o que faz com

  • 26

    que as indagaes existenciais ganhem preponderncia em relao ao conjunto de aes.

    Romance ambientado em Vila Rica do sculo XVIII, os eventos organizados de modo

    seqencial registram a decadncia da sociedade do ouro. No entanto, o crtico ressaltou que o

    autor concentra o foco da narrativa na vida interior de poucas personagens para perscrutar os

    motivos de suas aes. Na investigao desses motivos, a preciso geogrfica e a conspirao

    poltica das personagens passariam a funcionar como o suporte para a insero de elementos

    simblicos de uma realidade mais abrangente. As personagens, pondera Chaves, conquanto

    possuam a sua autonomia psicolgica, assumem uma qualidade de "arqutipos", o que

    assegura a universalidade da narrativa e seu desprendimento da intriga para revelao da

    complexidade da existncia humana. Porque expe a densidade emocional das personagens,

    ao mesmo tempo em que situa a ao num quadro histrico bem definido, o romance Os sinos

    da agonia, tal como os outros romances de Dourado, pertence "linhagem dos narradores que

    se voltam sobre o paradoxo da Histria na qual o homem procura saber o seu prprio destino

    sem poder jamais tornar-se sujeito da ao e executor da vontade" (CHAVES, 1978, p. 116).

    Chaves salientou que, em Autran Dourado, a intuio da existncia se orienta por um

    fatalismo intransponvel, uma vez que as personagens esto subjugadas por uma engrenagem

    superior e autnoma que segue girando indefinidamente sem lograr ser compreendida.

    O prprio Autran Dourado publicou, em 1973, o ensaio Uma potica do romance, em

    que discute, comenta e analisa o prprio fazer literrio, sua ars potica. Neste ensaio, atravs

    do seu "mestre imaginrio", um duplo que, sendo ao mesmo tempo o "eu" e o "outro",

    propicia um dilogo e um aprendizado, o autor dessacralizou o preconceito de que o escritor

    no deve ou no pode falar sobre a prpria arte. Tal atitude desnorteou parte dos crticos e fez

    com que o livro fosse, primeiramente, objeto de polmica no meio acadmico porque alguns

    crticos questionaram o fato de que o escritor pudesse contribuir, efetivamente, para o estudo

    analtico de seus romances. Mais tarde, o livro de Dourado foi saudado como valioso material

  • 27

    sobre o fazer literrio, como esclarece Affonso Romano de SantAnna: "livro incompreendido

    por uma minoria retrgrada, foi, no entanto, bem aceito pela parcela mais saudvel de nossos

    escritores, professores e alunos, que nele souberam ver o seu carter provocativo, estimulante

    e criador" (1976, p. 95).

    Em 1975, Dourado publicou Matria de carpintaria, material resultante de um curso

    ministrado como "professor visitante" na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Neste material, o autor discute o processo de composio de suas prprias obras. A partir de

    1976, tanto Uma potica do romance como Matria de carpintaria passaram a ser publicados

    num nico volume intitulado Potica de romance: matria de carpintaria. No primeiro

    captulo deste estudo, o escritor resgatou os poucos escritores brasileiros como Jos de

    Alencar e Mrio de Andrade, que ousaram comentar o prprio fazer literrio e citou autores

    famosos como Andre Gide, Henry James, Ezra Pound, Johann Wolfgang Goethe, Hermann

    Broch e Thomas Mann, que se movimentaram no terreno da fico e do ensaio. Neste estudo,

    Autran Dourado instigante e provocador:

    A propsito ou sem nenhum propsito, uma vez, em entrevista que me vi forado a dar, disse, mesmo com o risco da m interpretao e de ter os crticos voltados contra mim, que as coisas mais importantes, para os criadores, sobre romance, foram ditas por romancistas, e as coisas mais importantes sobre poesia foram ditas por poetas. (1976, p. 13).

    A percepo de que a obra de arte envolve um rduo trabalho com o material

    expressivo autoriza a incurso do escritor no territrio da avaliao literria, ainda que tal

    atitude desagrade os crticos. Ao comentar sobre o prprio processo criador, Autran Dourado

    referiu-se ao estudo Obra aberta, de Umberto Eco, porque seu texto um exemplo de um

    texto que permite variadas interpretaes, tendo em vista seu poder sugestivo. Trata-se,

    segundo ele, de uma narrativa que se vai gerando medida que exige a participao ativa do

    leitor na prpria organizao das cadeias textuais. No entanto, faz questo de ressaltar que "o

    autor continua comandando o espetculo" (1976, p. 27). Todo o quarto captulo do estudo de

  • 28

    Autran Dourado uma explicao de que sua obra no deve ser aproximada de Guimares

    Rosa, com a qual os crticos, apressadamente, viram pontos de contato e de quem Dourado se

    considera muito diferente. Alerta para o fato de que seu processo de composio no conta

    com a criao de neologismos: "Eu raramente invento palavras, no o meu forte" (1976, p.

    37). Em comum com Rosa, Dourado viu apenas o cenrio de que as obras de ambos se

    alimentam:

    O que temos em comum, Rosa e eu, o nosso cho de Minas. Em mim a alma barroca e torturada, o negrume arcdico e inconfidente das Minas. Em Rosa, o aberto dos gerais, o cerrado livre e descampado (os pssaros, os bandos de maitacas e papagaios passando no cu), o cerrado livre e solto que vai dar em Braslia. (1976, p. 37).

    Ainda que ambos se utilizem do mesmo ambiente e as aes de seus romances se

    passem em terras mineiras, a viso dos dois autores sobre o mesmo cenrio bastante

    diferente. Em Guimares Rosa prevalecem os cenrios abertos em que o homem se

    movimenta em vrias direes. Em algumas narrativas, as personagens esto integradas ao

    seu ambiente fsico, o que no as livra de inquietaes existenciais. Em outras, os cenrios

    naturais comunicam-se com os planos transcendentais e a vida aparece como uma trajetria

    enigmtica, nem sempre regida por princpios fsicos. Em Autran Dourado, o cenrio fsico

    quase sempre opressivo e claustrofbico. O ir-e-vir das personagens limitado, elas no

    empreendem longas travessias. Como o prprio autor definiu, trata-se de apanhar a "alma

    barroca e torturada" e o "negrume arcdico e inconfidente" de Minas, ou seja, o cho mineiro

    enfocado como cenrio de desolao e dor. Ainda que o autor faa aluso Inconfidncia

    Mineira, os aspectos histricos so minimizados como ponto de interesse. Por isso, na fala do

    autor, "alma" e "negrume" de Minas so os temas de interesse. E tanto assim que, no texto

    em destaque, tais palavras tm funo de "substantivos" enquanto "barroco" e "inconfidncia"

    tm funo de "adjetivos", ou seja, apenas qualificam os temas principais. Neste sentido,

    pode-se afirmar que o fato social fica em segundo plano. A paisagem ampla dos cenrios de

  • 29

    Guimares Rosa em Autran Dourado substituda pela opacidade dos cenrios, o que

    significa um mergulho sombrio no mistrio da existncia.

    Em Potica de romance: matria de carpintaria, o autor afirmou que o

    estabelecimento de correspondncias diretas entre os nveis textual e extratextual tarefa

    empobrecedora em face da articulao especfica dos elementos constitutivos do texto. O

    romancista e ensasta demonstrou lcida compreenso da tarefa reinventiva do escritor

    quando se referiu autonomia da arte literria em relao lgica do mundo externo: "O

    criador amassa e emprega a realidade para criar uma outra realidade, uma realidade que

    obedece complicada geometria literria, ao seu sistema de foras, que nada tem a ver com as

    cincias fsicas, naturais ou sociais" (DOURADO, 1976, p. 72-3). Embora percebesse a ligao

    entre as esferas textual e extratextual, o autor concebeu o texto literrio como um objeto

    autnomo em relao organizao do mundo externo. Assim, mesmo os romances com

    substrato histrico apresentam a diluio do espao fsico e do tempo cronolgico para

    criao de um espao-tempo indefinido.

    Em 1976, o ensaio de Maria Lcia Lepecki intitulado Autran Dourado: uma leitura

    mtica abordou o processo de composio das treze obras que o autor mineiro publicou entre

    1946 e 1976. Trata-se de um estudo extremamente erudito e complexo, cuja fundamentao

    terica transita entre os estudos sobre a natureza do smbolo, de Gaston Bachelard, as

    reflexes de Claude Lvi-Strauss referentes ao estruturalismo, os estudos de George Lukcs a

    respeito do romance histrico e os ensaios de Jacques Derrida voltados para o

    desconstrutivismo. Para conceituao do "mito" a autora apia-se em Roland Barthes e

    Mircea Eliade. A finalidade do estudo de Lepecki foi a de analisar o mundo ficcional de

    Autran Dourado para compreenso no s da sociedade ali retratada, como do posicionamento

    crtico-ideolgico do autor em relao a ela. Por isso, o estudo do "mito" como elemento do

    contedo seria uma das formas possveis de se penetrar na totalidade do universo narrativo, o

  • 30

    que no faz a avaliao da autora prescindir dos elementos de estruturao, uma vez que "uma

    leitura da estrutura do contedo no pode se desvincular da estrutura formal" (LEPECKI, 1976,

    p. XVIII). Lepecki observou que a morte o ncleo de todas as narrativas de Autran Dourado.

    Contudo, a morte tratada como uma etapa da vida e no como finitude, pois os mortos

    continuam, simbolicamente, a participar da rotina dos vivos. A dimenso mtica, que nega a

    morte como destruio, fundamenta a vida dos mortos o morto participa de um estatuto

    sagrado e tambm do dia-a-dia dos vivos. A ensasta observou que, em pera dos mortos, a

    imagem da morte se apresenta de forma mais complexa e mais rica do que nos outros textos

    do autor. A transio do mundo habitual para a esfera do mito se d por meio da presena de

    personagens vivendo situaes contrastantes: Rosalina entre o mundo do pai e do Largo do

    Carmo, Quiquina entre o silncio e o som, Juca Passarinho entre os lugares abertos e os

    fechados.

    A autora empreendeu ainda um vasto estudo sobre a importncia do espao nos

    romances de Autran Dourado. O romance Uma vida em segredo (1964) foi analisado segundo

    a relao espao/personagem. Biela, personagem principal, enfocada na conflituosa

    experincia de atrao e repulsa pela cidade, o lugar novo, desconhecido. Biela , na viso de

    Lepecki, uma "inicianda" no reino da morte, uma vez que sua conduta, ao se mudar da

    fazenda para a cidade, no s revela a aceitao como a busca simblica da morte, ao

    segregar-se do meio social e familiar. Neste sentido, a negao do "diferente" como forma de

    valorizao do espao antigo aponta para a recusa da vida nova, o que faz com que a

    personagem se assuma, voluntariamente, como vtima de um espao que a levar destruio

    psicolgica e emocional.

    Na viso de Lepecki, a dimenso mtica da narrativa de Dourado prope uma

    oposio entre espaos e, conseqentemente, entre tempos. A partir de qualidades atribudas

    ao lugar onde a personagem est, esteve ou desejaria estar, os espaos so definidos por meio

  • 31

    dos binmios "aberto x fechado", "aqui x alm", "superficial x profundo", "possvel x

    impossvel". A trajetria existencial das personagens, chamada pela ensasta de "viagem",

    sempre uma vivncia simultnea de trs espaos, porque atravs dela se vai, fsica ou

    imaginariamente, do "lugar 1" (de onde) ao "lugar 2" (para onde) atravs do "lugar 3" (por

    onde). Uma vez que a permanncia num lugar ou o deslocamento de um lugar para outro

    pressupe a movimentao temporal, a autora estudou tambm a importncia do tempo nos

    romances do escritor mineiro. Lepecki verificou a predominncia do "passado" sobre o

    presente e o futuro. Para ela, o passado supervalorizado em virtude da negao do novo e do

    indito e, por isso, "a maior parte dos textos incide em retrospeces. o culto do remoto que

    justifica a minimizao do presente e do futuro" (1976, p. 98).

    A estudiosa afirmou que a recusa ao espao e tempo presentes faz com que as

    personagens estejam em constante "busca" pelo tempo passado, busca que se d por meio de

    viagens fsicas efetivadas ou desejadas, deslocaes afetivas, projees imaginrias. As

    personagens esto sempre em perseguio de determinado valor e esse valor resulta da

    interrogao constante que a personagem mantm com o universo e da procura de um sentido

    mais amplo para a vida, sentido esse que no se esgota no imediatismo em que os objetos

    aparecem. Por isso, "o espanto uma das formas que com maior freqncia caracteriza o estar

    no mundo dos agentes" (1976, p. 161). A cosmoviso mtica de Autran Dourado faz das

    personagens projees do homem primitivo, homem este que no tem compreenso dos

    esquemas culturais racionais e para quem o universo cultural apresenta signos que no podem

    ser interpretados de acordo com a viso lgica. Por meio do entrelaamento de "mito" e

    "histria", a autora entendeu que a obra de Dourado est comprometida com questes sociais,

    chegando a constituir-se em libelo contra uma forma de vida inautntica que se esgota no

    imediatismo das aes cotidianas. A ensasta buscou traar um quadro dos vetores da

    sociedade burguesa no sentido de determinar a maneira como a obra de Autran Dourado,

  • 32

    incidindo sobre um cenrio muito restrito, veicula problemas e temas universais tratados pela

    literatura contempornea.

    Em 1973, em dissertao de mestrado intitulada Linguagem e silncio na obra de

    Autran Dourado, Maria Stella Camargo analisou os romances A barca dos homens, Uma vida

    em segredo e pera dos mortos, com vistas a discorrer sobre aquilo que a linguagem no

    nomeia explicitamente no nvel textual, mas sugere e evoca. Com base nos estudos de Claude

    Lvi-Strauss e Jacques Lacan, a pesquisadora enfocou os nveis de estruturao dos romances

    para demonstrar que, na linguagem concatenada e lgica, subjaz uma srie de lacunas e

    interditos que se referem ao medo do desconhecido, insegurana de existir, s dvidas sobre

    questes transcendentais. As personagens teriam, em comum, o fato de se apresentar como

    seres paradoxais, pois, ao mesmo tempo em que seriam indivduos incomunicveis, cerrados

    em si mesmos, tambm seriam pessoas abertas comunicao social, mas que evitariam a

    abordagem de assuntos metafsicos. Por este motivo, ao mesmo tempo em que a vida se

    apresenta como um cotidiano repleto de afazeres prticos, tambm se mostra como um

    caminho entretecido de mistrios cuja compreenso est para alm do universo tangvel. Para

    a autora, o silncio uma forma de proteo, uma vez que o calar-se impede que outras

    pessoas pensem o mundo com a mesma gravidade.

    A autora analisou a oposio linguagem/silncio do romance A barca dos homens

    como referncia s imagens de claridade e sombra. Desta forma, quando as personagens se

    renem em lugares amplos e abertos, a palavra falada abundante e fcil. No entanto, quando

    o encontro se d em lugares fechados e escuros, as personagens so acometidas por

    pensamentos que se relacionam compreenso da vida, mas no ousam falar sobre eles. O

    estudo das personagens mostra que "existe silncio no s na relao que o indivduo mantm

    com o sistema, mas tambm na relao indivduo para indivduo" (CAMARGO, 1973, p. 37). O

    romance seria, assim, um smbolo do ser mutilado em seu desejo de ultrapassar seu universo

  • 33

    individual porque necessita se integrar perfeitamente aos valores e comportamentos do grupo

    e este sufoca as angstias pessoais.

    Na viso da ensasta, Biela, personagem principal de Uma vida em segredo

    metaforiza a segregao e a vitria do silncio sobre a linguagem. Biela uma "figura plida

    na estrutura da famlia do primo Conrado" (1973, p. 78) porque se retrai em si mesma, de

    forma a rechaar a comunicao com o outro. As mudanas externas de Biela, como o fato de

    passar a vestir vestidos velhos, comer com os serviais e prestar auxlio domstico para as

    vizinhas so correlatas das suas alteraes internas e denunciam o abandono definitivo da

    integrao famlia do primo para se afirmar como individualidade solitria. O silncio de

    Biela instrumento dual que serve para proteger e atacar, pois "se inicialmente permanecia

    silenciosa por medo, usa depois o silncio como reao consciente e sua derrota social

    isomrfica sua tentativa de afirmao como indivduo" (1973, p. 83). A recusa aceitao do

    papel a ela reservado e a crena em poder seguir um traado prprio levam-na a um total

    isolamento.

    A autora anotou as sucessivas mudanas de pontos de vista durante a conduo da

    narrativa em pera dos mortos. Segundo ela, a alternncia confere ao romance uma estrutura

    de "narrao de narraes, atravs de um processo de encaixe" (1973, p. 91). A diversidade de

    narradores fragmenta a estrutura linear do romance e possibilita uma srie de narraes que se

    complementam de forma a construir o que Camargo definiu como "estrutura cclica", na qual

    se acham envolvidas todas as personagens. Nesta estrutura cclica, as histrias das

    personagens correm paralelas s do "sobrado". De acordo com pesquisadora, a construo do

    sobrado marca o incio em que o silncio deflagrado. Camargo observou na existncia de

    Rosalina um nvel to grande de solido que a denominou como "enterrada viva". A

    pesquisadora argumentou que, nos trs romances, a linguagem serve mais para esconder a

  • 34

    comunicao do que para estabelecer um verdadeiro vnculo entre os homens. Em

    contrapartida, o silncio expressa os aspectos mais sutis da experincia humana.

    O espao no o enfoque principal da obra de Camargo. No entanto, o estudo tece

    consideraes pertinentes ao propsito deste trabalho. Segundo ela, o espao dos trs

    romances de extrema relevncia porque permite s personagens consideraes tanto sobre a

    vida imediata como sobre a vida transcendental. Para a autora, o espao de Autran Dourado

    "rompe a tradio humana de se procurar nos horizontes longnquos, para alm das estrelas, as

    respostas para perguntas que ecoam desde que o homem comeou a questionar a vida"

    (CAMARGO, 1973, p. 107). A autora considera que o mar, a casa, a fazenda so os elementos

    fundadores de um palco em que o homem observa os outros e a si mesmo, onde sente a vida

    ora segura, ora em risco, uma vez que os espaos familiares tambm possibilitam

    questionamentos sem resposta. Os cenrios imanentes, como o mar, em A barca dos homens,

    a Fazenda do Fundo em Uma vida em segredo e o sobrado de pera dos mortos so eles

    mesmos os elementos que possibilitam reflexes de ordem transcendental.

    Em 1984, Reinaldo Martiniano Marques, na dissertao de mestrado Os sinos da

    agonia: tcnica narrativa e conscincia trgica na fico de Autran Dourado investigou os

    temas da tragdia clssica presentes na obra do autor. Inicialmente discorreu a respeito da

    importncia da obra do autor no contexto da literatura contempornea. Para ele, Dourado

    autor "inquieto, aberto para a pesquisa das formas e dos processos de expresso, a par do tom

    intimista e da anlise que lhe so peculiares" (1984, p. 22). O ensasta esclareceu que a

    prioridade de seu estudo levantar os aspectos simblicos e os estados subjetivos que

    permeiam a obra do escritor enquanto "componentes estruturadores e intensificadores da

    voltagem dramtica de sua obra" (1984, p. 34). Segundo Marques, Dourado busca os temas e

    motivos da sua obra na tragdia clssica ao mesmo tempo em que combina tais temas com a

    histria poltica de Minas Gerais. O entretecer de temas mticos e histria poltica local resulta

  • 35

    numa reflexo sobre o passado e o presente, na qual Dourado indaga a respeito de arqutipos

    do comportamento humano ao mesmo tempo em que problematiza o destino do homem

    moderno. Neste sentido, os acontecimentos poltico-sociais ficam reduzidos diante da

    permanncia de temas universais. A presena de temas da tragdia grega como a

    impossibilidade de fugir desdita traada pelo indiferente Destino, bem como o desejo do

    homem em dirigir os rumos de um grupo social implicam um "jogo de duplos", no qual

    personagens ambguas percorrem uma trajetria ao mesmo tempo mtica e histrica.

    Na viso do ensasta, as personagens se assemelham ao homem moderno no sentido

    de experimentar fantasias e desejos reprimidos que, uma vez realizados, afetariam no s o

    equilbrio do funcionamento psicolgico do indivduo, mas abalariam toda a integrao deste

    com a coletividade. Ao abafar (no sem sofrimento) as aspiraes mais secretas para se

    modelar a um padro de comportamento tido como adequado, as personagens so

    representantes das personagens de tragdias clssicas cujas aes individuais repercutem na

    conduta de todo um grupo, visto que h um lao vital entre os membros de um cl. Da tenso

    entre reprimir ou expor o que lhes vai no ntimo, resultam homens envoltos em dilemas e

    dvidas. De acordo com Marques, a ambivalncia e a complexidade que caracterizam as

    personagens de Os sinos da agonia so recorrentes em toda a obra do escritor.

    Em 1994, Angela Senra, na tese de doutorado Bas de couro, bas de ouro: Minas de

    Autran Dourado, levantou certos objetos e situaes que, dada a intensa carga simblica, so

    chamados por ela de sinais. Tais sinais acompanhariam obsessivamente a obra do escritor

    desde 1947, com a publicao de Teia. A autora se props a investigar a funcionalidade dos

    sinais em Teia (1947), Sombra e exlio (1950), Tempo de amar (1952), A barca dos homens

    (1961), Uma vida em segredo (1964), pera dos mortos (1967), O risco do bordado (1970) e

    Os sinos da agonia (1974). Teia, mesmo considerada pela pesquisadora uma narrativa "menos

    importante" e "linear", expe os elementos metafricos recorrentes no conjunto da obra do

  • 36

    escritor: o ba, a carta e os papis, a casa. Assim, "a partir da simbologia e das mitologias que

    cercam cada sinal, pretende-se ler os textos autranianos, fisgando as variantes de tais marcas"

    (SENRA, 1994, p. 6). O ba, que em Teia serve para guardar trastes, ganha elevada importncia

    em pera dos mortos, uma vez que o lugar onde Rosalina guarda os objetos pessoais e o

    lbum de fotografia dos antepassados, atualizando, com isso, a dor de no conseguir se

    desvencilhar do seu destino solitrio. Em Os sinos da agonia, o ba serve para guardar as

    cartas de amor de Malvina por Garpar, cartas estas que tambm so a prova que incriminam

    Janurio na morte de Joo Diogo. O ba , pois, o elemento-smbolo de um emaranhado

    complexo de relaes. De simples objeto em Teia, o ba o elemento da ligao vital entre os

    membros de uma comunidade em Os sinos da agonia. O "ba", na opinio da autora, seria o

    mais rico dos smbolos nas obras do autor:

    O ba, nos textos de Autran Dourado, guarda o passado; ele aparece, essencialmente, como protetor da memria do que foi, de quem passou, do vivido, do acontecido. Ba-caixo de objetos, fatos, documentos de histrias escondidas, tmulo de traos, retratos, medalha-corao partida, cordes de ouro rompido, panos desbotados. Passado que insiste em se fazer presente, mesmo descorado. Esfiapado. (SENRA, 1994, p. 68).

    De acordo com a estudiosa, a "carta" e os "papis" podem configurar, nos romances

    de Dourado, tanto um simples bilhete de amor como o segredo de uma confisso individual

    ou o registro da memria coletiva (certides de nascimento, certides de propriedade, mapas

    de navegao). Em Teia, a carta to-somente uma declarao de amor, mas em Os sinos da

    agonia a carta expe as etapas de elaborao e execuo de um crime. Assim que "os papis

    do universo individual entretecem-se com os documentos da vida coletiva das comunidades,

    integrando, todos eles, a Histria das gentes de Minas" (SENRA, 1994, p. 8). A "casa" um

    sinal que desempenha diversas funes nos romances autranianos. Em Teia, a penso com

    seus moradores apressados tematiza a transitoriedade e a fugacidade da vida. Em pera dos

    mortos, o sobrado tambm se liga ao destino humano porque est atrelado ascenso e queda

    da famlia Honrio Cota. A elevao de um segundo pavimento casa trrea coincide com o

  • 37

    prestgio poltico do Coronel e, portanto, a decepo e amargura implicam a runa do sobrado.

    Em Sombra e exlio e Tempo de amar, a casa est em runas, o que no seno reflexo da

    precariedade das relaes familiares.

    As apreciaes crticas da obra de Autran Dourado, cada qual com seu respectivo

    instrumento terico, permitem constatar em todas elas o levantamento de questes referentes

    relao do homem com seu espao fsico. Os cenrios regionais no se limitam reproduo

    de temas e tipos humanos especficos de dada localidade, uma vez que impem ao homem o

    prprio questionamento da vida em curso. Os cenrios como a fazenda, a casa, a cabana e o

    mar ganham relevo ontolgico, uma vez que so a base para consideraes sobre a trajetria

    humana. Assim, o mundo das coisas depende de uma finalidade humana que o ilumina com

    uma luz particular. Portanto, a atuao sobre o mundo das coisas que impele o homem para

    a aventura da vida e confere ao espao seu significado particular.

    1. 2. A recepo crtica de Juan Rulfo

    O escritor mexicano Juan Nepomuceno Carlos Prez Rulfo Vizcano (1918 1986)

    publicou El llano en llamas em 1953. Trata-se de uma coletnea de quinze contos cujas aes

    se desenvolvem num cenrio que, dadas as descries geolgicas, se aproxima das terras

    calcinadas do sudoeste do estado de Jalisco, no Mxico. Em 1955, a nova edio de El llano

    en llamas constou de dezessete contos. Neste mesmo ano lanado o romance Pedro

    Pramo. Em 1980, Juan Rulfo publicou El galo de oro, um roteiro para cinema. A excelncia

    literria das narrativas de Rulfo colocou-o entre os maiores escritores latino-americanos.

  • 38

    Trata-se do que Hugo Rodrguez-Alcal chamou de "la mxima fama con la mnima obra"4

    (1965, p. 88). No entanto, a crtica demonstrou de incio, uma reao negativa em relao

    obra do escritor. A primeira censura aconteceu ainda em 1955 e proveio de Ali Chumacero,

    paradoxalmente, editor-chefe da Editora Fondo de Cultura Econmica, responsvel pela

    publicao do romance Pedro Pramo. Chumacero classificou o romance como "una

    desordenada composicin [...] Sin ncleo, sin un personaje central en que concurran los

    dems, su lectura nos deja a postre una serie de escenas hiladas solamente por el vapor

    aislado de cada una"5 (1969, p. 109).

    A falta de ordenao lgica entre os fragmentos textuais, as idas e vindas temporais,

    o desdobramento do espao em diferentes camadas, a linguagem sinttica e aparentemente

    simples desnortearam os crticos da poca. A quebra da cerrada viso lgica do mundo de

    modo a afetar o pensamento racionalista era uma prtica estranha ao texto ambientado em

    regies rurais. A crtica norteava-se pela concepo de que, focalizao especfica do

    cenrio, deveria corresponder uma forma de conhecimento engendrada no contato com a

    realidade concreta, o que limitava sobremaneira as experincias estticas. Poucos crticos,

    dentre eles Salvador de la Cruz, puderam compreender, de incio, o propsito da inovao de

    Rulfo: "es que Juan Rulfo acaba de despertar con esta obra el marasmo en que se halla

    sumida la novela mexicana que hace muchos aos se ha anquilosado en la repeticin de los

    mismos temas"6 (apud MONTOTO, 1999, p.18). Ao enxergar nos romances mexicanos, a

    "repeticin de los mismos temas", Cruz revelou estar um passo frente de seus colegas, uma

    vez que no norteou a avaliao da obra de Rulfo com base nos parmetros estticos dos

    romances regionais de teor crtico-social.

    4 "a mxima fama com a mnima obra". (Vale esclarecer que todas as tradues apresentadas neste captulo so

    da autoria da pesquisadora) 5 "uma desordenada composio [...] Sem ncleo, sem uma personagem central em torno de quem se renam as

    demais. Sua leitura deixa-nos a posteriori uma srie de cenas alinhadas somente pelo vapor isolado de cada uma". 6 " que Rulfo acaba de despertar, com esta obra, o romance mexicano do marasmo em que estava perdido e no

    qual esteve por muitos anos enrijecido na repetio dos mesmos temas".

  • 39

    No obstante a inicial recepo negativa, apenas trs anos depois o romance j estaria

    traduzido para o alemo e, em 1970, para o ingls, sueco, noruegus, italiano, polons,

    francs, portugus, russo e esloveno. Na dcada de oitenta, o romance encontrava-se

    traduzido para mais de trinta idiomas.

    Passado o impacto inicial, os leitores mostraram-se receptivos e, mais tarde,

    completamente seduzidos pela obra de Rulfo. No difcil entender os fatores que permitiram

    a aproximao entre as narrativas densas de Rulfo e o leitor comum. Em primeiro lugar, o

    substrato regional no limita nem circunscreve os esquemas operacionais do texto, pois o

    homem de Rulfo o homem atormentado em sua trajetria existencial, aquele que busca um

    sentido para a vida, sendo o portador das inquietaes que perseguem o homem moderno. Um

    segundo ponto de identificao seria exatamente a aspirao ao indefinido, o desejo do

    ilimitado, aspectos que fazem o leitor valorizar Comala o cenrio onde se desenvolvem as

    aes de Pedro Pramo justamente naquele ponto que desagradou os crticos, ou seja,

    trata-se de um lugar onde os eventos no esto mais subordinados ao raciocnio de causa-

    efeito. A naturalidade e a espontaneidade com que acontece a quebra do ordenamento causal

    foi um recurso que agradou ao leitor no mais satisfeito com a lgica cartesiana presente nos

    textos regionalistas.

    A dcada de sessenta foi o momento de reviso da antiga postura crtica. Grande

    parte das mudanas no posicionamento crtico ante a obra de Rulfo se deveu ao estudo El arte

    de Juan Rulfo, de Hugo Rodrguez-Alcal, publicado em 1965. Com o subttulo "Historias de

    vivos y difuntos", Rodrguez-Alcal realizou o primeiro estudo de flego destinado a analisar

    a obra de Rulfo em sua complexidade estrutural e temtica. A primeira parte constitui-se de

    um exame de quatro contos de El llano en llamas. Neste exame, o autor abordou questes

    relacionadas com o processo de composio dos contos que, segundo ele, apresentam uma

    ao fragmentada e desordenada, mas que no se pode chamar de catica porque possvel

  • 40

    reconstituir o processo fabular, embora as aes no se apresentem lineares no discurso

    narrativo. Os contos tm por finalidade contrariar as expectativas habituais do leitor, de modo

    a instaurar significados no explcitos na manifestao textual. Na segunda parte, o autor

    procedeu ao estudo do que chamou "estrutura escatolgica" do romance e da paisagem

    desolada, entendida por meio do binmio "inferno/paraso". O autor analisou ainda a

    complexidade emocional das principais personagens de Pedro Pramo. Segundo o estudioso,

    o grande mrito de Rulfo consistiu em reaproveitar o cenrio da revoluo cristera7 no para

    destacar os conflitos ocorridos entre a Igreja e o Estado nos anos de 1926-29, mas para revelar

    o cotidiano do homem comum que habitava o interior mexicano quando da revoluo. O que

    ganha relevo no a pugna entre cristos e federalistas, mas o homem em sua trajetria

    solitria de existir. Quanto ao aspecto que mais desnorteou a crtica de ento, ou seja, o

    aparente "caos estrutural" da obra, o ensasta alega que a ausncia de laos conectivos entre as

    partes componentes das micronarraes de Pedro Pramo obedece a uma inteno

    subjacente, uma vez que no se pode "unir" logicamente aquilo que se apresenta fragmentado

    e inconcluso. No entender de Rodrguez-Alcal, a linguagem sinttica de Rulfo, ao mesmo

    tempo em que evoca sentidos no-manifestos no tecido textual, tambm mostra o homem que

    no se abre ao dilogo, como se pode constatar na declarao seguinte: "Esta parquedad se

    nos manifiesta ora como economa de medios expresivos con los que logra Rulfo um

    mximum de efectos cuando l mismo acta de narrador, ora como un laconismo propio de

    sus personajes ensimismados y, por consiguiente, caracterizador de su ndole

    7 A revoluo cristera consistiu no conflito armado entre guerrilheiros catlicos e soldados do governo. A Igreja

    se encontrava em conflito com o Estado desde 1917, quando da promulgao da Constituio que limitava a ao do clero. Em 1926, a tenso chega ao clmax quando o Estado expulsa duzentos padres estrangeiros. A Igreja contra-ataca com a suspenso dos cultos. fundada a Liga Nacional de Defesa da Liberdade Religiosa (LNDLR), que resolve iniciar um boicote econmico ao governo enquanto no fossem revogadas as leis anticlericais. A guerra comea no campo, apesar da liderana da LNDLR ser fundamentalmente urbana. Os conflitos se concentram nos estados de Jalisco, Guanajuato e Michoacn, chegando os cristeros, como passam a ser chamados os guerrilheiros, a arregimentar cerca de trinta mil homens. Com dificuldades para debelar o movimento, o governo mobiliza o exrcito e as milcias camponesas. Depois de trs anos de guerra, a Igreja e o Estado chegam a um acordo.

  • 41

    reconcentrada"8 (1965, p. 207). De fato, no nvel textual, o texto forma uma rede de sentidos

    que ultrapassa a ordem habitual do mundo organizado logicamente. No que se refere ao

    laconismo das personagens, pode-se afirmar que nem sempre a palavra possibilita revelar a

    amplitude e intensidade das emoes e o silncio , paradoxalmente, a forma de expresso de

    aspectos sutis da experincia subjetiva.

    As dcadas de setenta e oitenta foram profcuas em estudos crticos sobre a obra de

    Rulfo pois "o nmero de livros dedicados a estudar quase que exclusivamente a narrativa

    rulfiana quadruplicou" (MONTOTO, 1999, p. 31). Em 1970, no Mxico, o autor recebeu o

    Premio Nacional de Literatura, fator que chamou a ateno da crtica e dos leitores para sua

    obra. Na dcada de setenta, o nome de Rulfo como um dos melhores prosadores do mundo

    latino-americano era consenso entre os crticos literrios.

    A dcada de oitenta marcou um perodo em que os estudos sobre a arte de Rulfo

    foram to intensos que os Cuadernos Hispanoamericanos, de nmeros 421 a 423 9, publicados

    entre julho e setembro de 1985, foram inteiramente dedicados ao estudo da obra do escritor

    mexicano. Trata-se de quarenta e um artigos em que o estilo do autor, os contos e o romance

    so abordados sob diferentes enfoques temticos. um alentado volume de quinhentas e

    quinze pginas, a maior reunio de artigos que se destinam compreenso da obra de Rulfo.

    De tal legado crtico, destacar-se-, a seguir, alguns estudos.

    Julio Rodrguez-Luis em "La funcin de la voz popular en la obra de Rulfo"10 teve

    como objetivo oferecer algumas claves para explicar o fenmeno Rulfo. Para o ensasta, os

    temas que perpassam toda a obra do autor so a violncia, a indiferena em relao morte, a

    solido e a tristeza. De acordo com Rodrguez-Luis, as personagens so representantes de um

    8"Esta moderao nos manifestada ora como economia dos meios expressivos com os quais Rulfo logra um

    mximo de efeitos quando ele mesmo atua como narrador, ora como um laconismo prprio de suas personagens ensimesmadas e, por conseguinte, caracterizador de sua ndole densa". 9 Cuadernos Hispanoamericanos. Madrid: Instituto de Cooperacin Iberoamericana, nos. 421-3, jul/sept.

    1985, 515 p. 10

    "A funo da voz popular na obra de Rulfo"

  • 42

    povo que parece ser vtima de uma interminvel opresso. O crtico observou que o resgate de

    entrevistas concedidas por Rulfo serviu para o estudo do contexto social e histrico de El

    llano en llamas e Pedro Pramo, resultado do interesse do autor pelo povoado campons,

    cuja vida recria em tons doloridos de solido. Para o crtico, o compromisso de Rulfo com a

    realidade histrica faz de sua obra um ato poltico que se expressa por vias muito diferentes

    das empregadas nas obras comprometidas com a explcita denncia de uma economia agrria

    injusta. Assim sendo, o silncio e o sentimento de abandono substituem as vozes de

    solicitao de mudana poltica, o que confere um tom trgico ao romance. As personagens

    so vtimas tanto do sistema poltico como de um destino que no lhes possibilita outro

    caminho seno a morte.

    Na segunda parte do estudo, Rodrguez-Luis analisou os monlogos interiores dos

    contos de Rulfo e verificou que as personagens expressam seus pensamentos de acordo com a

    ordem em que eles ocorrem em sua mente, sem submet-los a uma anlise lgica. Isto faz

    com que se estabelea um contato direto entre o leitor e a personagem, contato que prescinde

    da mediao do narrador. Conforme assinala o crtico

    son las voces de los personajes las que importan, son ellas las que el narrador desea que recordemos, y no la propia, de ah que los cuentos ms efectivos de El llano sean aquellos donde desde un principio nos habla el personaje directamente, o en los que la presencia del narrador es mnima.11 (1985, p. 138).

    Rodrguez-Luis estudou ainda a estrutura coloquial e o uso de palavras populares na

    narrativa de Rulfo. Segundo ele, a palavra popular vista como "unidade significativa", ou

    seja, apresenta uma pluralidade de significantes num s significado, prpria da poesia. A

    recriao da fala popular se conduz por um propsito que no visa reproduzir a linguagem

    especfica de dada localidade. No caso de Rulfo no se trataria de "reproduo", mas sim de

    11 so as vozes das personagens que importam, so elas que o narrador deseja que recordemos e no sua prpria

    voz. Segue-se que os contos mais efetivos de El llano sejam aqueles em que desde o princpio nos fala diretamente a personagem ou aqueles em que a presena do narrador mnima.

  • 43

    uma inteno de identificao total com a mentalidade liberta das amarras causais do discurso

    lgico. O ensasta argumentou que os dilogos curtos, as perguntas sem resposta, as frases

    impessoais e a adjetivao comprometida com a idia de opacidade conferem fala popular

    um sentido que transcende a ordem do mundo objetivo e se projeta num universo onrico.

    Neste universo, o sortimento de representaes e relaes imediatas substitudo por imagens

    que desconhecem as limitaes da realidade material e temporal.

    O crtico constatou que a linguagem aparentemente simples a forma de Rulfo captar

    "pedaos" da vida diria. Por isso, os enunciados so curtos, as histrias no podem ser

    compreendidas seqencialmente, faltam explicaes sobre como teria acontecido um ou outro

    fato. que, na viso do crtico, as personagens de Rulfo so portadoras da articulao sem

    consistncia lgica, tpica dos povos primitivos. Tal como o homem primitivo, as personagens

    de Pedro Pramo pensam e raciocinam de modo diferente do homem civilizado. O modo

    como o homem das sociedades antigas enxergava o mundo no obedecia s leis da coerncia

    do homem civilizado e no se baseava na estreita causalidade de aes. O homem primitivo

    no entendia a necessidade de evitar contradies, uma vez que as coisas podiam ser elas

    mesmas e algo mais, elas e outras. No estgio inicial da evoluo, o homem no conhecia o

    princpio da "oposio". Rodrguez-Luis explica que, para o pensamento primitivo, era

    concebvel a interveno de fatos e seres sobrenaturais na camada da vida habitual.

    Jos Manuel Garca Rey iniciou o estudo "La pltica: una memoria colectiva de la

    desgracia"12 com uma apreciao valorativa sobre a obra de Rulfo. Para ele, a linguagem

    rulfiana "breve", "contundente", "seca" e "definitiva". Segundo o ensasta, tal linguagem

    entra em contraste com as extensas pginas que a crtica tem dedicado narrativa. O mundo

    de Rulfo, imediato e natural, est representado no planalto seco e deserto, que a geografia do

    desassossego vital, da tragdia que pesa e atua sobre as personagens de modo ineludvel. A

    12 "A conversao: uma memria coletiva da desgraa"

  • 44

    tristeza que emana constantemente da obra de Rulfo resulta da captao de um cosmo sem

    humor, sem alegrias e sem risos. O ensasta d destaque para o fato de que Rulfo buscou os

    nomes para suas personagens em cemitrios. Assim sendo, argumentou que a morte, enquanto

    evento nivelador de todas as diferenas em vida, a motivadora real para a composio do

    processo fabular das obras do autor. No universo narrativo no h nenhuma razo que

    justifique a luta pela vida, no h relutncia das personagens em se entregar ao mistrio final

    da morte. Segundo o crtico, todos os indivduos tm em comum a mesma falta de esperana,

    a mesma desolao e tristeza e por isso que todos os seres so reconduzidos circunstncia

    que fundamentou a sua criao a morte.

    Garca Rey comparou a trajetria existencial das personagens de Rulfo ao destino das

    personagens das tragdias clssicas, pois em ambos os casos o homem impotente presa de

    um emaranhado de situaes que o levaro morte. No entanto, diferentemente das tragdias

    clssicas, em Rulfo, as aes mais terrveis, como os assassinatos, fazem parte da vida

    cotidiana e a morte no significa o acesso para um outro nvel de existncia. As mortes

    provocadas obedeceriam apenas necessidade de um "ajuste de contas" que substituiria a

    desacreditada justia humana. Estas circunstncias so, em geral, rgidas e imutveis e, frente

    a elas, as personagens nada questionam. Os textos de Rulfo apresentam-se, na opinio do

    autor, perpassados por uma "conciencia o memoria colectiva de la desgracia13 (1985, p. 180).

    Trata-se de uma funda convico de que o homem vive como se carregasse uma carga vital

    dolorida e antiga e, por isso, as personagens se movem em direo a um destino infausto.

    De acordo com o ensasta, a situao comum a quase todas as personagens de Rulfo

    sentir a pobreza material de que so vtimas como uma culpa ancestral que se deve pagar com

    o sofrimento e a morte. A desgraa o tema caracterstico e o "planalto" o seu ambiente de

    13 "conscincia ou memria coletiva da desgraa".

  • 45

    desenvolvimento. Tal cenrio de desgraas configura o universo particular de Rulfo, na

    opinio do crtico, j que o planalto este mundo cerrado por la sangre, la muerte y la miseria es la ambientacin, configura la particular geografa textual de Rulfo; el cosmos de Rulfo. All suceden las terribles historias, las acciones como accidentes casi de una historia infinita que empieza siempre y que siempre termina. El llano es marco y smbolo y este marco no transcurre aunque es iluminado por el transcurrir, por la sucesin de historias desarrolladas.14 (1985, p. 181).

    Garca Rey entendeu que a geografia de desgraas est amparada em uma estrutura

    terceiro-mundista de dependncia econmica e poltica de pases pobres em relao a pases

    desenvolvidos. Para ele, o estancamento e o empobrecimento dos pases terceiro-mundistas

    so facilmente perceptveis nos modelos econmicos rurais. Trata-se de um

    subdesenvolvimento que, em certas zonas camponesas, converte-se em misria, gerando

    formas de vida que se pode chamar de "subcultura". A morte constitui uma das circunstncias

    do mundo recriado por Rulfo e se revela presena habitual nesse cenrio o que, no entanto,

    no significa que a morte esteja presente como conseqncia natural da vida. O crtico

    relembrou que h poucos casos de morte natural j que, na grande maioria das vezes, ela

    decorrncia de crimes e de vinganas pessoais. A violncia e o dio revelam a inexistncia da

    atitude protetora, comum em pequenas comunidades. Os indivduos integrantes de um cl ou

    de uma classe com rotina e interesses comuns costumam desenvolver um sistema de defesas

    que, protegendo o grupo, protege tambm cada indivduo. No entanto, conforme Garca Rey,

    no o que acontece com as personagens de Pedro Pramo. A proteo e o zelo para com o

    outro inexistem porque nada h que seja perene. Mesmo a fora econmica de Comala s

    perdura alguns anos. Por isso, na opinio do crtico, a runa e a desolao no permitem o

    surgimento de um sentido de unio, visto que, na maioria das vezes, a existncia do outro

    uma ameaa para o indivduo.

    14 este mundo cerrado pelo sangue, morte e misria a ambientao, configura a particular geografia textual de

    Rulfo, o cosmo de Rulfo. Ali sucedem as terrveis histrias, as aes como acidentes de uma histria quase infinita que sempre comea e sempre termina. O planalto marco e smbolo e este marco no se altera, embora seja iluminado pela passagem do tempo, pela sucesso de histrias que se desenvolvem.

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    Em "Dualidad y desencuentro em Pedro Pramo"15, Mario Muoz comentou a

    existncia de uma vasta bibliografia crtica que traz luz os mltiplos significados suscitados

    pelo romance Pedro Pramo em diferentes pocas de leitura. O crtico enfatizou o "salto

    qualitativo" do escritor ao resgatar elementos regionais que transcendem seu campo

    semntico para adotar funes que ultrapassam a superfcie textual ganhando novos

    significados. De acordo com Muoz, o romance um clssico da literatura universal que,

    cada vez mais, tem sido alvo de interesse dos crticos, o que deriva das mltiplas

    possibilidades interpretativas da obra. Muoz viu a "dualidade" e o "desencontro" como

    fatores de estruturao do romance. Por "dualidade" deve-se entender a capacidade da

    narrativa em diminuir o distanciamento entre plos opostos, ou seja, haveria uma conjuno

    entre o real e o pressentido, o regional e o universal, o concreto e o transcendente. O

    "desencontro" refere-se capacidade da narrativa em levantar elementos de oposio que se

    comunicam diretamente, mas que continuam apartados. Assim, por exemplo, as "recordaes"

    das personagens expem a semelhana entre o tempo passado e presente. O "desencontro" das

    personagens com o tempo em que vivem advm da angstia de no haver o tempo futuro.

    A captao das situaes de dualidade e de desencontro corresponde a uma leitura

    crtico-social do romance que, na