14
8/6/2019 Liberdade Em Berlin http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 1/14 283 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 283-295, jun. 2008 Júlio César Casarin ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE Recebido em 22 de fevereiro de 2007. Aprovado em 24 de maio de 2007.  Este texto propõe-se a oferecer uma análise crítica da liberdade liberal tal como formulada por Isaiah  Berlin, e entendida substancialmente como liberdade negativa. Tal entendimento da liberdade, em diversas de suas formulações, segue sendo hegemônico no debate contemporâneo sobre liberdade, direitos e suas circunstâncias. Com base nessas considerações, tentamos demonstrar que a liberdade negativa não é capaz de promover a autonomia individual -bem cuja proteção é a sua sempre alegada razão de ser-sem recorrer a um projeto de justiça distributiva que leve em conta elementos da crítica de inspiração socialista ao liberalismo. PALAVRAS-CHAVE: liberdade; liberalismo; direitos; Isaiah Berlin. I. INTRODUÇÃO Em um pequeno artigo escrito por ocasião da morte de Isaiah Berlin em 1997, Edward Said atri- buía a enorme influência política e intelectual de Berlin antes a seu papel de consolidador de idéias previamente estabelecidas que a de um criador de modelos explicativos próprios (SAID, 2000, p. 218). A afirmação de Said parece-nos acertada; provavelmente, o que tinha em mente ao escrever esse juízo fosse precisamente a emblemática re- cuperação feita por Berlin, no século XX, dos moldes intelectuais criados por Benjamin Constant no século anterior e utilizada como mote para sua inserção (de Berlin) no debate político do tempo em que escrevia, por meio do ensaio Dois concei- tos de liberdade, publicado originalmente em 1958. Este pode ser identificado como um compo- nente importante da obra de Berlin, que não se deve perder de vista ao avaliar-se sua obra: era capaz de, ao mesmo tempo em que mantinha um alto nível de debate intelectual e acadêmico e uma grande capacidade de abstração, empenhar-se de maneira resoluta e apaixonada nos embates políti- cos concretos, contrapondo-se vigorosamente ao que denominava de “totalitarismos”, estes com diversas posições no leque ideológico. Dominan- do com desenvoltura o arcabouço da Teoria Polí- tica, Berlin, em cada debate, em cada palestra, em cada texto publicado, mantinha um olho na vida política concreta, situando-se ideologicamente, tomando e marcando posição. Não poderia ser diferente: um liberal ardoroso, escreveu o referi- do ensaio em plena década de 1950, nos primórdios da Guerra Fria, em Oxford, centro intelectual eu- ropeu em que a hegemonia acadêmica pertencia então aos filósofos da linguagem. Esse sistema de pensamento, ao conceber a análise filosófica pre- ferencialmente como análise da linguagem, man- tinha distância das circunstâncias sociais e políti- cas concretamente consideradas. Nesse ensaio Berlin investe contra tal postura, defendendo o compromisso inequívoco dos intelectuais com as questões sócio-políticas (GUSMÃO, 2001, p. 251- 252). Há uma nítida tendência, nos estudos con- temporâneos sobre Berlin, a “esquecer” ou a ne- gligenciar a importância para sua obra das esco- lhas de minerva exigidas pelo contexto geopolítico do século XX. Sua oposição a algumas tradições intelectuais (especialmente ao marxismo) muitas vezes resultava em uma internalização da lógica dicotômica tão comum nesse momento e bastan- te evidente em seu sistema de pensamento (KENNY, 2000, p. 1037). A popularidade de Berlin (que chegou a ter um programa televisionado na emissora britânica BBC), sua extensa e prestigiada produção intelectual e sua amizade pessoal com figuras de grande importância na Europa ociden- tal e nos Estados Unidos (Churchill considerava uma manhã de conversa com Berlin como algo afortunado) (SAID, 2000, p. 217) foram circuns- tâncias que, somadas, fizeram dele uma espécie de expressão pessoal do liberalismo mainstream do século XX, para o qual confluiu a tradição in-

Liberdade Em Berlin

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 1/14

283

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 283-295, jun. 2008

Júlio César Casarin

ISAIAH BERLIN:

AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

Recebido em 22 de fevereiro de 2007.Aprovado em 24 de maio de 2007.

 Este texto propõe-se a oferecer uma análise crítica da liberdade liberal tal como formulada por Isaiah

 Berlin, e entendida substancialmente como liberdade negativa. Tal entendimento da liberdade, em diversas

de suas formulações, segue sendo hegemônico no debate contemporâneo sobre liberdade, direitos e suas

circunstâncias. Com base nessas considerações, tentamos demonstrar que a liberdade negativa não é capaz

de promover a autonomia individual -bem cuja proteção é a sua sempre alegada razão de ser-sem recorrer 

a um projeto de justiça distributiva que leve em conta elementos da crítica de inspiração socialista ao

liberalismo.

PALAVRAS-CHAVE: liberdade; liberalismo; direitos; Isaiah Berlin.

I. INTRODUÇÃO

Em um pequeno artigo escrito por ocasião damorte de Isaiah Berlin em 1997, Edward Said atri-buía a enorme influência política e intelectual deBerlin antes a seu papel de consolidador de idéiaspreviamente estabelecidas que a de um criador demodelos explicativos próprios (SAID, 2000, p.218). A afirmação de Said parece-nos acertada;

provavelmente, o que tinha em mente ao escreveresse juízo fosse precisamente a emblemática re-cuperação feita por Berlin, no século XX, dosmoldes intelectuais criados por Benjamin Constantno século anterior e utilizada como mote para suainserção (de Berlin) no debate político do tempoem que escrevia, por meio do ensaio Dois concei-

tos de liberdade, publicado originalmente em 1958.

Este pode ser identificado como um compo-nente importante da obra de Berlin, que não sedeve perder de vista ao avaliar-se sua obra: eracapaz de, ao mesmo tempo em que mantinha um

alto nível de debate intelectual e acadêmico e umagrande capacidade de abstração, empenhar-se demaneira resoluta e apaixonada nos embates políti-cos concretos, contrapondo-se vigorosamente aoque denominava de “totalitarismos”, estes comdiversas posições no leque ideológico. Dominan-do com desenvoltura o arcabouço da Teoria Polí-tica, Berlin, em cada debate, em cada palestra, emcada texto publicado, mantinha um olho na vidapolítica concreta, situando-se ideologicamente,tomando e marcando posição. Não poderia ser

diferente: um liberal ardoroso, escreveu o referi-do ensaio em plena década de 1950, nos primórdiosda Guerra Fria, em Oxford, centro intelectual eu-ropeu em que a hegemonia acadêmica pertenciaentão aos filósofos da linguagem. Esse sistema depensamento, ao conceber a análise filosófica pre-ferencialmente como análise da linguagem, man-tinha distância das circunstâncias sociais e políti-cas concretamente consideradas. Nesse ensaioBerlin investe contra tal postura, defendendo ocompromisso inequívoco dos intelectuais com asquestões sócio-políticas (GUSMÃO, 2001, p. 251-252). Há uma nítida tendência, nos estudos con-temporâneos sobre Berlin, a “esquecer” ou a ne-gligenciar a importância para sua obra das esco-lhas de minerva exigidas pelo contexto geopolíticodo século XX. Sua oposição a algumas tradiçõesintelectuais (especialmente ao marxismo) muitasvezes resultava em uma internalização da lógicadicotômica tão comum nesse momento e bastan-te evidente em seu sistema de pensamento

(KENNY, 2000, p. 1037). A popularidade de Berlin(que chegou a ter um programa televisionado naemissora britânica BBC), sua extensa e prestigiadaprodução intelectual e sua amizade pessoal comfiguras de grande importância na Europa ociden-tal e nos Estados Unidos (Churchill consideravauma manhã de conversa com Berlin como algoafortunado) (SAID, 2000, p. 217) foram circuns-tâncias que, somadas, fizeram dele uma espéciede expressão pessoal do liberalismo mainstream

do século XX, para o qual confluiu a tradição in-

Page 2: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 2/14

284

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

telectual a que Benjamin Constant já dera contri-buição decisiva.

Feitas essas considerações, passemos propri-amente à obra de Berlin, ou aos aspectos dela que

aqui desejamos abordar: a discussão em torno daliberdade liberal, de seu valor e sua relação com ademocracia, tema presente em diversos dos en-saios, artigos e conferências que a compõem. Oautor parte da distinção – recorrente no terrenoda Teoria Política e Constitucional – já plenamen-te estabelecida em seu tempo e tão cara ao libera-lismo entre “liberdade positiva” e “liberdade nega-tiva”. Berlin retoma assim os dilemas e a termino-logia de Constant na defesa do liberalismo, princi-palmente contra seus detratores mais à esquerdanessa época “de extremos”.

A questão é: de que liberdade estamos a tratar, já que o próprio Berlin chegou a contabilizar cer-ca de 200 sentidos para o termo? Há, portanto,que o definir. “Coagir um homem é privá-lo deliberdade”, diz ele, em uma antecipação de qualseria a sua concepção. Dentre os 200 significa-dos da palavra, somente dois guardariam relevân-cia para a política contemporânea, pois seriamcapazes de mobilizar e articular as variáveis pre-cisas de identificação política: os conceitos nega-tivo e positivo da liberdade. O autor (re)define-aspor meio de duas questões, formuladas de diver-

sos modos: o sentido negativo é aquele derivadoda questão: “Qual é a área em que um sujeito –uma pessoa ou um grupo de pessoas – é ou deveter permissão de fazer ou ser, sem a interferênciade outras pessoas?” ou, em termos mais simples:“Até que ponto sou governado?” (BERLIN, 1981,p. 23). O segundo sentido, “positivo”, por suavez, é aquele resultante da seguinte indagação: “Oque ou quem é a fonte de controle ou interferên-cia capaz de determinar que alguém faça ou sejauma coisa em vez de outra?”, ou ainda: “Por quemsou governado?”. Se quisermos colocar em ter-

mos ainda mais simples, podemos identificar asliberdades como “liberdade de” e “liberdade para”.Diante de tais categorias, alguém familiarizado coma história e a terminologia do liberalismo dificil-mente pode deixar de fazer associações com ca-tegorias semelhantes: liberdade individual eautogoverno coletivo, liberalismo e democracia ou,ainda, liberdade dos modernos e liberdade dosantigos, conforme a nomenclatura que se prefira.Embora afirme que as liberdade positiva e negati-va sejam absolutamente diferentes, Berlin admite

que as respostas podem coincidir parcialmente eque em alguns pontos há sobreposição das esfe-ras de uma e outra liberdade (BERLIN, 2002a, p.229).

O autor não inaugura o debate, mas entra paratomar partido inequívoco em favor da forma ne-gativa de liberdade, única verdadeira e merecedo-ra do nome, segundo ele. Com a palavra, maisuma vez, o próprio Berlin: “O sentimento funda-mental da liberdade é a liberdade dos grilhões, doaprisionamento, da escravidão por outros. O res-to é extensão desse sentido, ou então é metáfora”(BERLIN, 1981, p. 32).

A palavra “negativa” justaposta a “liberdade” étambém uma descrição de seu funcionamento: aliberdade é negativa porque opera “negativamen-

te”, ou seja, pela não-interferência alheia naquelasesferas protegidas da vida do indivíduo, dos gru-pos e das associações. Bastaria, portanto, que ospotenciais violadores da liberdade não realizassema intervenção para que a liberdade se efetivasse.Se tomamos a liberdade de imprensa como exem-plo, bastaria que o Estado não realizasse uma ope-ração de censura para que se formasse uma im-prensa livre de amarras cumprindo sua funçãoinformativa. A inviolabilidade de domicílio seriagarantida pela não-invasão do domicílio por partedo Estado. Mas e se um particular, movido por

seus desejos, paixões e interesses, resolver violara esfera de direitos negativos de outrem? Bem,para coibir semelhantes intenções ou punir even-tuais violações, caberia ao Estado manter um apa-rato policial-preventivo e judicial-punitivo. As li-berdades de consciência (na qual se pode incluir areligiosa), expressão, locomoção, a inviolabilidadede domicílio, o direito à integridade física e umconjunto de regras destinadas a garantir certaracionalidade e proporcionalidade no sistema pe-nal compõem o núcleo duro dos chamados direi-tos negativos. Merece uma extensa discussão,

impossível de fazer-se aqui, a pretensão de seremestes os direitos de maior exigibilidade, por umlado, e, por outro lado, a questão de que eles ga-rantam-se e realizem-se simplesmente de maneira“negativa”. Neste momento, limitamo-nos a afir-mar que, tradicionalmente, esses direitos sempreforam tidos em alta conta pelo liberalismo, poissão em grande parte direitos de privacidade e, comosabemos, a estipulação de uma área de individua-lidade e de privacidade apresenta-se como umavaliosa conquista liberal. Entenda-se que não se

Page 3: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 3/14

285

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

está afirmando que a privacidade e a individuali-dade sejam invenções liberais: a invenção liberal éa elevação de tais valores a objeto de proteção pormeio dos direitos a que nos referimos.

Não nos parece questionável a importânciacontemporânea de uma esfera de direitos destina-dos a garantir a privacidade, e a necessidade dedefendê-la mesmo com alguma instransigência,por sua importância na formação da personalida-de e na afirmação do que entendemos como ascondições mais básicas para a autonomia indivi-dual. A preservação de uma esfera individual deautonomia, o oferecimento ao indivíduo de umespaço no qual suas concepções do bem e seusplanos de vida não estejam sujeitos à arbitrarieda-de e conveniências de terceiros sem dúvida algu-

ma representam uma valiosa contribuição do pro- jeto liberal. Garantir tal autonomia é a alegada ra-zão de ser da liberdade negativa. Contudo, IsaiahBerlin não parece ter o propósito de afirmar a im-portância e o valor intrínseco da liberdade negati-va para a autonomia individual, mas sim o de con-formar a autonomia do indivíduo aos limites daconcepção negativa de liberdade.

Para ele, qualquer maneira de entender esse bemde maneira mais ampla e generosa seria uma arma-dilha, pois a força da concepção negativa residiria justamente em sua precisão. “Confundir a liberda-

de com suas irmãs, a igualdade e a fraternidade,leva a conclusões iliberais” (BERLIN, 2002a, p.257). Com isso pretendia responder aos críticosda liberdade entendida como esfera de não-interfe-rência e aos democratas radicais, com sua insis-tência em que a liberdade fosse considerada do pontode vista de sua efetividade, levando-se em conta ascondições materiais para seu usufruto. Desse modo,Berlin empenha-se, com suas intervenções políti-cas e acadêmicas, em provar a superioridade mo-ral da liberdade negativa, ao mesmo tempo em queadverte seus leitores sobre os perigos da liberdade

positiva para a autonomia individual.Sua defesa da primazia da liberdade negativa

está assentada sobre três pilares principais: a afir-mação do pluralismo de valores, o argumento con-tra a “divisão do eu” e, finalmente, um terceiroponto, que recorre a evidências empíricas e his-tóricas e diz respeito à possibilidade de a concep-ção positiva da liberdade degenerar ela própria emum totalitarismo, avançando sobre os direitos in-dividuais e ameaçando a autonomia individual.Examinemos esses três argumentos.

II. O PLURALISMO DE VALORES

A defesa da concepção negativa de liberdadecomo a única liberdade válida está fortemente re-lacionada com a defesa de um princípio chamado

por Berlin de “pluralismo”. Um estudo biográficoescrito há pouco mais de dez anos aponta o“pluralismo” como a idéia que ordenou e deu for-ma às principais intervenções intelectuais de Berlin(GRAY, 1995). O uso reiterado de categorizaçõese imagens dicotômicas – ao pluralismo opõe-se o“monismo” – é uma característica distintiva daarquitetura intelectual berliniana, de tal maneira queuma mesma contraposição pode aparecer mais deuma vez em sua obra, seja nos ensaios sobre Filo-sofia Política, seja – ainda que sob outros mantos– nos que têm como tema a crítica literária. Em

um desses ensaios de crítica literária, chamado“O ouriço e a raposa”, o autor expõe em outros emelhores termos as razões da diferença entrepluralismo e monismo. O ensaio tem seu títuloderivado de um enigmático verso dos fragmentosdo poeta grego Arquíloco: “A raposa conhecemuitas coisas, mas o ouriço conhece uma únicagrande coisa”. Berlin parte dessas palavras de sen-tido um tanto turvo e, tomando-as em sentido fi-gurado, constrói sua argumentação de acordo coma qual uma das grandes e fundamentais diferen-ças entre os seres humanos é entre “aqueles que

relacionam tudo a uma única visão central, umúnico sistema, menos ou mais coerente e articu-lado, em função do qual compreendem, pensam esentem – um único princípio organizador e uni-versal apenas a partir do qual tudo o que são edizem adquire significado – e, por outro lado, aque-les que buscam muitos fins, freqüentemente nãorelacionados e até contraditórios, ligados, se é queo são, somente de algum modo de fato, por algu-ma causa psicológica ou fisiológica, não relacio-nada a nenhum princípio moral ou estético. Essesúltimos levam vida, executam atos e nutrem idéi-

as que são centrífugas em vez de centrípetas; seupensamento é disperso ou difuso, movendo-se emmuitos níveis, apoderando-se da essência de umaimensa variedade de experiências e objetos peloque eles são em si mesmos, sem procurar, cons-ciente ou inconscientemente, ajustá-los a qualquervisão interior unitária, inalterável, abrangente, àsvezes contraditória em si mesma e incompleta, àsvezes fanática, ou sem procurar excluí-los dessamesma visão. O primeiro tipo de personalidade ar-tística e intelectual pertence aos ouriços. O segun-do, às raposas [...]” (BERLIN, 2002c, p. 447-448).

Page 4: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 4/14

286

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

As “raposas” de que nos fala são aqueles quese deram conta de que a vida humana não podeser regida, explicada ou guiada por um único prin-cípio, um único valor, uma única doutrina, os“pluralistas”. A riqueza mesma da vida consistiriana diversidade e na pluralidade conflitante de pon-tos de vista, valores e objetivos considerados vá-lidos e verdadeiros pelos seres humanos. O con-flito “diversidade de valores” versus “valor úni-co”, colocado como está, pode ser entendido comouma idéia destinada a promover a convivência entrediferentes. Mas seria então o pluralismo de valo-res apenas um relativismo respeitoso de valores ede concepções do bem – impedindo o Estado li-beral de levar a cabo ações que punam ou incenti-vem concepções determinadas do bem – e surgi-do da consciência da diversidade humana? Se acei-tamos a hipótese de que o pluralismo correspondea essa velha idéia liberal, estaríamos contra as pre-tensões do próprio Berlin, que pretendia assinalara originalidade do conceito. Ora, é verdade queem uma sociedade de massas, urbana e democrá-tica, o respeito pelo Estado às liberdades individu-ais e aos direitos civis tende a contribuir para aformação de um ambiente de diversificação deestilos de vida, de interesses, de opiniões e deconcepções do bem em geral. A pluralidade emer-ge como resultado natural da promoção da tole-rância e do oferecimento de um desenho das ins-

tituições destinado a proteger as escolhas de pla-nos de vida feitos pelas pessoas. Nesse caso, comovimos acima, a pretensão de Berlin de que opluralismo seria algo original não poderia ser sus-tentada.

No entanto, o pluralismo de valores não é ape-nas um fato decorrente do oferecimento às pes-soas da liberdade para escolher o plano de vidaque mais lhes convenha: há realmente algo mais acompor esse conceito. O pluralismo berlinianodescarta a possibilidade de encontrar-se uma ver-

dade última, um grande valor último, uma harmo-nia ou uma grande utopia capazes de reger a vida,que tende a ser múltipla, plural e anárquica no quese refere a essas características. A rejeição domonismo gira em torno não só da compreensãode que nenhum dos grandes valores humanos éabsoluto, mas também da consciência de que ascircunstâncias da vida inevitavelmente impõem ochoque entre eles. Em suma, a principal idéia portrás do conceito de pluralismo é uma difusa no-ção de incomensurabilidade entre os grandes va-lores humanos, como “liberdade”, “igualdade”, ou

“justiça”. De acordo com Berlin, dessaincomensurabilidade deriva a futilidade inerente aqualquer objetivo para o qual todos os esforços eprojetos humanos devessem contribuir ou tenderou que tivesse a pretensão de fornecer um crité-rio de julgamento para os objetivos dos seres hu-manos (KENNY, 2000, p. 1028). Berlin identificaem Maquiavel o iniciador da tradição intelectualpluralista, argumento cuja prova seria a possibili-dade da gama larga de leituras e interpretaçõesque costumam ser feitas de sua obra, na qual va-lores cristãos e fundados nas virtudes cívicas re-publicanas e pagãs conviveriam lado a lado, sema pretensão de exclusivismo ou exclusividade,garantindo-lhe (a Maquiavel) um lugar honrosoentre as “raposas” intelectuais.

Mas qual a conseqüência pretendida por Berlinao afirmar tal incomensurabilidade? O que opluralismo de valores parece indicar é a impossi-bilidade última de harmonização dos grandes bensvalorizados pela humanidade sem que ocorramperdas e renúncias, pois esses valores não se aco-modam automática e harmonicamente uns aosoutros, mas disputam espaço em cada escolhahumana relevante. O aspecto dilacerante daincomensurabilidade entre os valores perpassa avida humana em todas as dimensões, tornando asescolhas feitas pelos homens (mesmo aquelas de

repercussão apenas na vida privada) extremamentedolorosas. Os valores relevantes são assim vistosa priori como rivais, não inter-relacionáveis demaneira racional: qualquer tentativa de combinar-se de maneira relativamente harmoniosa “liberda-de” e “justiça”, por exemplo, estaria destinada afracassar, pois a justiça avançaria sobre a liberda-de ou a liberdade obrigaria a justiça a recuar. Essaparece ser a função mais evidente do “pluralismocomo valor” dentro da obra berliniana e é capazde explicar sua defesa da liberdade negativa comoa única maneira de promover a liberdade individu-

al sem riscos: “O pluralismo, com a dose de liber-dade ‘negativa’ que acarreta, parece-me um idealmais verdadeiro e mais humano do que as metasdaqueles que buscam nas grandes estruturas dis-ciplinadas e autoritárias o ideal de autodomínio‘positivo’ por parte de classes, povos ou de todaa humanidade” (BERLIN, 2002a, p. 272).

Assim, a liberdade negativa não poderia ser umvalor dentre outros a promover a autonomia indi-vidual porque ela não pode ser combinada comoutros valores. Tratar-se-ia de uma escolha dolo-

Page 5: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 5/14

287

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

rosa, mas necessária. Entre liberdade negativa e justiça, Berlin escolhia a primeira. Embora reco-nhecesse alguns de seus limites na promoção daautonomia individual – limites apontados peloscríticos –, era a autonomia individual possível. Seaceitamos essa incomensurabilidade, então a li-berdade não pode ser conjugada com a justiça,ou, se pode, deve sê-lo com todo o cuidado e emdoses muito pequenas da última, porque é a inten-sidade da combinação que pode trazer o “risco”.

Admitamos por um instante que Berlin estejacorreto ao diagnosticar uma incomensurabilidadeterrível, dolorosa e inafastável entre os valoresarquetípicos. Por que motivo a liberdade indivi-dual é que deveria ter prioridade às custas de ou-tros valores igualmente relevantes? Porque a li-

berdade negativa, diria provavelmente Berlin, é oúnico dos bens realmente comprometido com aautonomia individual de maneira não ambígua;Constant já afirmava que uma sociedade modernasem ela seria simplesmente intolerável. Em Berlin,o pluralismo representa o compromisso com adiversidade – e a diversidade é o preço da justiça.

Mas até que ponto podemos dar crédito a essaincomensurabilidade? Será verdade que valoresarquetípicos não podem ser promovidosconcomitante em um mesmo sistema político? Aidéia de que liberdade e igualdade, ou liberdade

individual e justiça, estão cada qual de um lado deuma gangorra, de modo que se uma delas ascen-de necessariamente o fará às custas do descensoda outra, não nos parece apenas implausível, mastambém um modelo primitivo demais para expli-car as complexas interações entre a liberdade, aigualdade e a justiça social nas sociedades con-temporâneas. Consideremos esses três valores:não poderíamos afirmar que cada um deles podeprestar-se a ser interpretado de tal maneira queestejam prenhes de ambos os outros? A liberdadenão carrega em si mesma uma dimensão igualitá-

ria e justa e, reciprocamente, o mesmo não se dácom os outros dois bens, grávidos de muitos sig-nificados? Na verdade, parece bastante difícil sus-tentar uma contradição ontológica entre liberda-de, igualdade, justiça ou outros bens. Na era docapitalismo industrial em que Berlin escrevia, aautonomia individual não podia ser consideradacom seriedade e adequadamente promovida semque se tivessem em conta questões de igualdade ede justiça, combinadas com a liberdade individual“negativa”. Seu pensamento, constituído pela ex-

ploração de categorias polarizadas, despreza o jogodialético entre ambos os pólos e o autor faz umaopção inflexível por um deles.

III. O ANTIPATERNALISMO

Mas enquanto parte dos críticos do liberalis-mo questionava a liberdade negativa por sua fali-bilidade e insuficiência na promoção da autono-mia, havia aqueles que atacavam o liberalismoobjetando a própria autonomia individual. Essaparcela dos adversários do liberalismo situada àesquerda era-o nos seguintes termos: uma vez queo eu-juiz-de-mim-mesmo dos liberais talvez nãotenha as condições de escolher ou de discernirseus verdadeiros interesses, já que muitas vezessua percepção do mundo é prejudicada pelo véuda ideologia, qual a razão para defender uma or-

dem normativa (a liberal) cuja justificação estejana autonomia individual? De acordo ainda comessa crítica, a escolha dos verdadeiros interessesde um indivíduo seria algo capaz de realizar-se demaneira plena somente após sua emancipação reale simbólica em relação a uma estrutura econômi-ca, social e política de caráter profundamente in- justo e alienante; ou seja, a autonomia seria poste-rior à emancipação (que se realiza de outra manei-ra, por meio de outros processos) e em conseqü-ência dela, mas não se realizaria na própria esco-lha dos fins últimos da vida feita por indivíduos

relativamente “incapazes” disso. O indivíduo con-creto estaria muito melhor representado na esco-lha de seus interesses por um determinado grupode quem se houvesse removido esse véu ideológi-co que tantas visões enevoava.

Há aí o perigo latente – deixa aproveitada pe-los liberais – de o auto-arvorado intérprete dasescolhas individuais e coletivas descambar para omais brutal totalitarismo em nome de um porviremancipatório permanentemente adiado. Nos diasque correm – quando temos o peso da história doséculo XX sobre nossos ombros – é mais naturalmanifestarmos ceticismo para com concepçõespolíticas que exigem a entrega de nossa autono-mia e responsabilidade (ainda que relativas) a mãosalheias ou que apelem a argumentos paternalistas,fundados em um conhecimento pretensamentesuperior e elevado de nosso próprio bem-estar. Écerto que concepções desse tipo podem impor-sepela força, mas evidentemente lhes faltaria o re-quisito básico da legitimidade. Faltaria legitimida-de política a alguém que julga representar melhorque nós mesmos nossos próprios interesses em

Page 6: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 6/14

288

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

favor de uma utopia de realização futura e incerta.Esse espírito cético casava-se muito bem com ascaracterísticas do autor de que estamos a tratar,definido por Perry Anderson como “um liberal decaracterísticas tipicamente inglesas –socialmentehumano, empírico e cético” (ANDERSON, 2002a,p. 301). Berlin rejeitava energicamente concepçõespolíticas que arrebatavam do indivíduo a capacida-de de avaliar seus próprios interesses e aspirações.O “eu” empírico é o único verificável: “A bipartiçãodo ‘eu’ entre um eu empírico e um eu mais alto,entre um eu real e outro eu ideal, este pretensamenteidentificado com instituições, nações, igrejas e par-tidos, raças, classes, que se autoproclamam os ver-dadeiros intérpretes dos ‘verdadeiros’ interesses doeu mais alto, constitui algo em franco confrontocom o sentido da auto-identidade. Os discursosfundados na harmonia total com os outros,centrados nas formas coletivas de identidade emdetrimento da identidade individual são inconsis-tentes, pois isso é incompatível com os pressupos-tos mais elementares da auto-identidade e do indi-vidualismo”, conforme diz Berlin (1981, p. 24).

Bem, essa defesa contundente da autonomiaindividual é parte da estratégia argumentativa devalorização da concepção negativa de liberdade, já que o liberalismo seria, das doutrinas políticasdisponíveis, a mais comprometida com esse en-

tendimento de autonomia. Mais uma vez: se po-demos concordar com Berlin a respeito da impor-tância da liberdade negativa para promover a au-tonomia do “eu”, não podemos deixar todo o pesode promover essa autonomia nas costas da liber-dade negativa, pois parece claro que ela não é ca-paz de tanto: há outras ameaças que pesam sobrea liberdade individual incapazes mesmo de seremdetectadas por um desenho institucional excessi-vamente dependente da concepção negativa de li-berdade. Álvaro de Vita afirma: “Qualquer versãodo liberalismo político tem entre suas preocupa-

ções centrais a de tratar os indivíduos como res-ponsáveis por suas próprias preferências e pelosfins que escolheram seguir em suas vidas. Issoresponde em larga medida por aquilo que o pen-samento liberal entende por liberdade” (VITA,1993, p. 69). Entretanto, a liberdade não pode seruma variável completamente abstrata e alheia asuas circunstâncias, ou, como nos lembra o mes-mo Álvaro de Vita, não podemos pressupor queas condições de escolha e de manejo individualestejam presentes, mesmo estando claro que nãoestão (idem, p. 70).

Uma objeção como essa pode perfeitamenteestar fundada em um compromisso ainda maisforte com a autonomia individual. Um compro-misso profundo com a promoção desse valor ne-cessita encontrar uma razão bastante mais rele-vante para desconsiderar completamente outrasformas de arrebatar dos indivíduos sua capacida-de de escolha e de agir como sujeitos morais, comoas privações intensas de bens básicos, por exem-plo. Mencionamos um certo grau de justiçadistributiva como um elemento necessário para apromoção da autonomia individual (se o que setem em mente é a identidade e a liberdade indivi-dual de todos, não somente de alguns), mas issotem apenas um caráter exemplificativo. Podería-mos imaginar centenas de mecanismos e regula-mentações institucionais necessários para prote-ger a capacidade individual de “ser dona de simesma”, que podem perfeitamente ser combina-dos com as liberdades clássicas, e que no entantoestão além delas. A nenhum liberal ocorre negar,por exemplo, que o consentimento estritamentevoluntário dos súditos é um requisito básico delegitimidade política hoje, consentimento apuradopor meio de um procedimento-padrão eleitoral. Masum liberal também é capaz de reconhecer a exis-tência de processos de manipulação coletiva e odesenvolvimento de instrumentos cada vez maissofisticados de psicologia de massa que permi-

tem, senão controlar, ao menos influenciar parteimportante da opinião pública, mesmo nas demo-cracias liberais com plena e irrestrita vigência dosdireitos políticos e civis. Isso não reduz a impor-tância e a necessidade dos direitos políticos e ci-vis, mas exige medidas em outras frentes. Sabe-mos que a concentração dos meios de comunica-ção em poucas mãos tende a tornar o público maissuscetível à manipulação, por exemplo. Portanto,uma regulamentação dos meios de comunicaçãoque promova ou incentive a fragmentação e a di-versidade pode diminuir a influência que grupos

mais poderosos teriam em um contexto regula-mentado de maneira mais frouxa. Não queremosestender-nos muito sobre esses pontos; o quedesejamos é afirmar que a liberdade, a autonomiae a identidade individuais estão muito além do merocompromisso com um núcleo de liberdades ga-rantidas de maneira negativa. Em outras palavras,há diversas e sofisticadas formas de alienação do“eu”: elas também podem ser denunciadas emnome de um compromisso forte com a autono-mia individual e não para escamotear o “eu

Page 7: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 7/14

289

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

empírico” dos indivíduos, como temia Berlin. Aautonomia moral tem alguns pré-requisitos (demanutenção física da vida, por exemplo) que nãopodem ser ignorados, ainda menos em nome daautonomia moral.

IV. A AMEAÇA VINDA DO PÓLO POSITIVO

O terceiro gênero de argumento de Berlin con-tra a liberdade positiva evoca antigos medos edesconfianças liberais e está freqüentemente apoi-ado em razões empíricas ou históricas escolhi-das; diz respeito às relações entre os dois gênerosde liberdade ou à maneira como Berlin vê e explo-ra essas relações. A expressão de receios eventu-ais sobre a possibilidade de a soberania do povosobrepujar e desconsiderar a dos indivíduos esta-va presente em muitos dos liberais do século XIX,

como Tocqueville e o “pais da pátria” estaduniden-ses, que dessa maneira expunham suas reservaspara com a democracia (e com a promessa deisonomia levada um pouco mais longe que aisonomia “perante a lei” do liberalismo). De qual-quer modo, a tirania da maioria não é uma preo-cupação exclusiva da órbita liberal, mas represen-ta um tema recorrente dentro da própria teoriademocrática. A tradicional e recorrente (no pen-samento liberal) dicotomia entre liberdade e de-mocracia ora assume a característica de oposiçãofranca, ora de oposição eventual, com possibili-

dades de superposição, subsistindo na forma deuma antinomia sempre latente. Por vezes, um au-tocrata “bondoso” é menos temido que os usosque a multidão pode fazer da isonomia democráti-ca. Berlin expressou-se do seguinte modo: “A li-berdade em sentido negativo não é incompatívelcom certos tipos de autocracia, ou pelo menoscom a ausência de autogoverno. A liberdade nes-se sentido preocupa-se principalmente com a áreade controle, não com a fonte” (BERLIN, 2002a,p. 235). É verdade que um sentido minimalista deliberdade pode ser encontrado até mesmo no inte-

rior de um Estado autocrático e com ele conviverrazoavelmente bem, conforme alguns exemploshistóricos podem confirmar; portanto, a liberda-de liberal não necessita coexistir com a formademocrática1.

Podemos identificar uma sutil mudança deopinião de Isaiah Berlin ao longo de sua vida noque se refere às duas liberdades, ou ao menosuma mudança de tom com respeito à sua opiniãoa respeito da “ameaça” representada pela liberda-de positiva. No texto de 1958, Berlin revelava-senão só desconfiado ou prudente, mas francamen-te hostil em relação ao papel do componente posi-tivo da liberdade em uma sociedade liberal e tam-bém à possibilidade de conciliar e combinar osdois pólos da liberdade: “Isso [liberdade comoesfera garantida contra a interferência alheia] estáquase no pólo oposto dos objetivos daqueles queacreditam em liberdade no sentido ‘positivo’ – deautogoverno. Os primeiros querem refrear a au-toridade como tal. Os últimos a querem em suaspróprias mãos. Essa é uma questão cardinal. Nãosão duas interpretações diferentes de um únicoconceito, mas duas atitudes profundamente diver-gentes e irreconciliáveispara com os fins da vida”(BERLIN, 2002a, p. 266; sem grifo no original).Ou então: “Devo estabelecer uma sociedade naqual haja regras que a ninguém seja permitido cru-zar. Posso dar nomes diferentes a essas regras.[...] Pois está claro que não se pode esperar mui-to do governo das maiorias; a democracia comotal não está logicamente comprometida com essemínimo de liberdade e historicamente às vezesfalhou em protegê-lo” (ibidem). E mais: “Talvez o

principal valor dos direitos políticos – ‘positivos’– de participar do governo seja, para os liberais, ode ser um meio de proteger aquilo que eles consi-deram um valor supremo, a saber, a liberdade in-dividual – ‘negativa’” (ibidem). Assim, os valoresda liberdade positiva e da democracia ficam de-gradados a uma função instrumental para prote-ger as conquistas da liberdade negativa, o que é iralém da subordinação da primeira à segunda. Atémesmo Benjamin Constant e Stuart Mill foramcapazes de afirmar uma conexão mais generosaou menos reticente entre liberalismo e democra-

cia, estatuindo a possibilidade de um compromis-so mútuo entre a liberdade negativa e oautogoverno democrático. Na verdade, ambos iamainda mais além: julgavam tal conexão fundamen-tal e indispensável para a manutenção dessas li-berdades, embora demarcassem didática e enfa-ticamente a diferença entre soberania do povo esoberania dos indivíduos.

Ao fim e ao cabo, as possibilidades de chegara uma solução de compromisso entre as duas li-berdades seguem como algo vago e pouco pro-

1 O exemplo citado por Perry Anderson (2002a, p. 302) éo do Império Austro-Húngaro dos Habsburgos, em quevigiam “procedimentos legais, liberdades civis, liberdadede imprensa e organização política, mesmo que não assem-bléias eficazes ou governo responsável”.

Page 8: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 8/14

290

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

missor e a mirada de Berlin em direção à liberdadepositiva não abandona o viés de desconfiança. Oautogoverno coletivo tem seu valor bastante de-preciado e diminuído na métrica berliniana, rara-mente se apresentando como algo dotado de va-lor intrínseco. Para ele, a liberdade positiva não éum complemento da liberdade negativa, que, jun-tamente com ela, comporia uma versão da liber-dade maior que ambas.

Algum tempo depois, Berlin corrigiu esses “ex-cessos” – a expressão mais uma vez é de PerryAnderson (2002a, p. 304) – em relação à sua féquanto à suficiência da liberdade negativa na pro-moção da autonomia individual. Em um texto pu-blicado anos mais tarde (já em 1969), Berlin vol-tou um pouco atrás em relação a isso: nesse texto

reconhece que a forma negativa da liberdade podeter uma face bastante perversa (a que se referecomo “darwinismo social”): “liberdade para oslobos quase sempre significa morte para os cor-deiros”. Para ele, os excessos do individualismo edo laissez-faire “levaram a violações brutais daliberdade negativa – de direitos humanos básicos,inclusive o de livre expressão ou o de associação”(BERLIN, 1981, p. 25). Reconhece também que“As liberdades legais são compatíveis com extre-mos de exploração, brutalidade e injustiça” (idem,p. 26). Arremata, em seu influxo um pouco mais

à esquerda: “[...] as responsabilidades do Estadopara com seus cidadãos precisam crescer e cres-cerão, em vez de diminuírem [...]” (ibidem). Nessemomento Berlin estatui e reconhece que formasextremas do liberalismo econômico (com sua ên-fase dogmática na liberdade negativa) podem es-tar em contradição com as promessas de emanci-pação individual do liberalismo político. No en-tanto, “a despeito de seus excessos”, diz ele, “aliberdade negativa não tem sido historicamentedeturpada por seus teóricos com tanta freqüênciaou tão efetivamente para tornar-se algo tão obs-

curamente metafísico, socialmente sinistro ouafastado de seu significado original quanto suacontrapartida positiva” (ibidem). Assim, apesar deser um “objetivo universal válido”, a liberdadepositiva continua a representar o papel históricode um “disfarce para o despotismo em nome deuma liberdade mais ampla”.

As razões para a hostilidade e a desconfiançaestão na já conhecida “incomensurabilidade entreos valores”. Assim, as liberdades positiva e nega-tiva podem chocar-se de maneira irreconciliável enesses casos há que escolher: “Deve a democra-

cia, em determinada situação, ser promovida àsexpensas da liberdade individual, ou a igualdade aexpensas da realização artística, ou a misericórdiaàs expensas da eficiência [...]?”; “Entre valorescategóricos em conflito não pode haver soluçõesfixas e categóricas” (idem, p. 27). Um dos doisvalores avançará sobre o outro, se levamos a sé-rio sua afirmação de que valores absolutos emchoque “não podem ser resolvidos pela síntese”(idem, p. 28). A liberdade negativa continuava aser sua preferência manifesta e grande valor dereferência.

Por vezes, Berlin chega perto de acolher asobjeções de seus adversários, admitindo a valida-de de considerar-se de maneira distinta a liberda-de e as condições de seu exercício: “Se um ho-

mem é muito pobre ou muito fraco para fazer usode seus direitos legais, a liberdade que esses direi-tos lhe conferem não significam nada para ele,mas a liberdade não é, dessa forma, aniquilada”.“Liberdades inúteis devem ser tornadas úteis, masnão são idênticas às condições indispensáveis parasua utilidade” (idem, p. 27). Em outro trecho, re-conhece a “progressiva e consciente subordina-ção de interesses políticos a interesses sociais eeconômicos. [...] Por outro lado, depara-se-nos aconvicção de que a liberdade política é inútil semo poder econômico necessário para usá-la e, em

conseqüência, a negação implícita ou explícita dacontraposição de que a oportunidade econômicasó pode ser utilizada por homens politicamentelivres” (idem, p. 61). Assim, acaba corroborandouma das principais razões pela qual a liberdadenegativa (ao menos sua versão de liberdade nega-tiva) é alvo do ceticismo de muitos: admite quenão se trata de um bem para o desfrute de todos:“A liberdade de uma sociedade, uma classe ou umgrupo, nesse sentido [negativo] de liberdade, émedida pela força dessas barreiras e pelo númeroe importância dos caminhos que mantêm abertos

a seus membros – se não para todos, pelo menos para grande parcela deles” (BERLIN, 2002a, p.272; sem grifos no original).

Contudo, Berlin não dá maiores conseqüênci-as a essas observações: o desconforto trazido porelas conduz a um arremate resignado. O reconhe-cimento da incapacidade de a liberdade negativarealizar a autonomia individual de todos vem rentecom um chamado à prudência e um alerta aosriscos de “combinar” a liberdade com a justiça oua igualdade. Na métrica berliniana, cada coisa é oque é: liberdade é liberdade, igualdade é igualdade.

Page 9: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 9/14

291

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

O libelo berliniano em favor da liberdade nega-tiva depara-se com um muro de objeções. Muitosde seus críticos afirmam a extrema capciosidadeda distinção entre suas liberdades, apresentadascomo extremos de um leque, como valores

arquetípicos, absolutos e contrapostos, em que aliberdade positiva muitas vezes aparece de manei-ra caricaturada. Não só a distinção é capciosa earbitrária, mas também o é a maneira como Berlinexplora as relações entre elas: importantes cone-xões entre as duas concepções de liberdade sãosimplesmente deixadas de lado. Voltaremos a esseponto ao discutir o conceito de liberdade positiva.Mas se considerarmos que a razão de ser da liber-dade negativa reside na promoção da autonomiaindividual, temos motivos para lembrar-nos dosinúmeros aspectos em que esses dois componen-

tes da liberdade reforçam-se mutuamente. Alémdisso, pode-se sustentar por muito tempo que oautogoverno coletivo tem poucas conexões coma autonomia individual? Se para o próprio libera-lismo a distinção bipolar das liberdades tem umaimportância capital, sob a perspectiva da própriaautonomia individual a distinção perde importân-cia e significação. Se somente poucos e simplesmecanismos institucionais merecem ser chama-dos pelo nome de “Liberdade”, podemos perderbastante de nossa capacidade de levar adiante osfins que a nossos olhos tornam a vida valiosa; o

que ganhamos em precisão conceitual perdemosem outro aspecto.

Para discutirmos melhor esse ponto, precisa-mos deter-nos com um pouco mais de calma so-bre a liberdade positiva, o que até agora nos es-quivamos de fazer. Afinal de contas, seria a liber-dade positiva simplesmente o autogoverno coleti-vo? Até que ponto será mesmo possível defini-lade maneira mais precisa recorrendo a Isaiah

 Berlin? Já afirmamos que a liberdade negativa e a“liberdade dos modernos” constantiana têm sen-tidos correlatos. Podemos estabelecer que a liber-dade positiva é o mesmo que a “liberdade dos an-tigos”? Creio que podemos realizar essa passa-gem. A inspiração constantiana de Berlin parecenítida e deixa pouco lugar a dúvidas. Se a liberda-de negativa representa um conjunto de direitosdestinados principalmente a proteger aspectos daprivacidade e da individualidade, a liberdade posi-tiva representa a esfera política coletiva, as ondasque podem ameaçar as barreiras “negativas” den-tro das quais está a individualidade protegida. Nessecaso, podemos justificar em alguma medida a des-

confiança berliniana recorrendo a seusantecessores na tradição liberal: há o medo fre-qüente de que o procedimento decisório majoritá-rio converta-se em uma ditadura da maioria, emuma forma de opressão desta sobre os direitos da

minoria.

Ora, uma vez que o exercício cotidiano dapolítica forma maiorias e minorias eventuais, for-tuitas e transitórias, e não estáticas; uma vez quea maioria formada em torno de determinado temaé possivelmente diferente da maioria que se for-ma em torno de outro assunto, os grupos “maio-ria” e “minoria” não são congregados pelos temassob deliberação. Somos levados a supor que amobilização dos grupos majoritário e minoritárioa que se referem os zelos liberais dá-se em torno

de características mais ou menos perenes da iden-tidade dos indivíduos, tais como classe social,casta, etnia, língua, religião ou até mesmo condu-ta sexual. As preocupações liberais por ocasião dauniversalização dos direitos políticos, tão familia-res aos liberais do século XIX, tinha como razãoexplícita o receio de que a maioria não-proprietá-ria fizesse uso de sua condição de maioria paraavançar sobre o direito (negativo) de propriedadeda parcela da população que a ele tinha acesso.Nesse caso, a divisão maioria-minoria tem comocritério a classe social e essa preocupação estárelacionada à tentativa de manter longe da retóri-ca da liberdade questões de justiça distributiva.Mas podemos objetar que decisões ou ações polí-ticas majoritárias envolvendo distribuição de ren-da e de riqueza não estão sempre contra os direi-tos civis e a liberdade negativa, como parcela datradição liberal pode fazer-nos crer. Para alémdesse receio específico, a possibilidade de havernegação “democrática” majoritária de direitos li-berais de minorias étnicas, lingüísticas e/ou religi-osas não pode ser desprezada ou descartada e estáamparada em inúmeros exemplos históricos oucontemporâneos bastante contundentes: nunca édemais relembrar que o partido nazista chegou aopoder na Alemanha em 1933 pela via eleitoral; aminoria negra no Sul dos Estados Unidos estevedurante muito tempo sujeita a duras leis de segre-gação e privada de garantias liberais mínimas; aviolência política vivida pela Argélia nos dias dehoje se deve ao fato de a Frente Islâmica de Sal-vação (FIS) haver vencido as eleições majoritári-as naquele país no início da década de 1990 como projeto de instalação de um governo de inspira-ção religiosa e haver sido impedida de tomar pos-

Page 10: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 10/14

292

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

se; a população israelense de origem árabe estáprivada de uma série de direitos conferidos aoscidadãos judeus, estes majoritários; o mesmo ocor-re com os norte-irlandeses católicos, também pri-vados de facto de direitos básicos pela maioriaprotestante. Enfim, são inúmeras as possibilida-des de que haja um aniquilamento “democrático”dos direitos civis de minorias. Entretanto, pode-mos da mesma maneira listar diversos exemplosde minorias que negam a extensão de direitos ci-vis à maioria da população: o apartheid sulafricanoe a dominação sunita no Iraque (cuja população émajoritariamente xiita) são apenas dois exemplos.De qualquer modo, podemos objetar que uma es-trutura de dominação assim dificilmente pode seridentificada como algo independente de outrasestruturas mais amplas: provavelmente ela neces-sitaria de reforço por privações econômicas e sernelas apoiada, por exemplo.

Retornando ao tema da definição da liberdadepositiva, a clareza da liberdade negativa não bene-ficia sua “rival”. Dizer que a liberdade positivarepresenta os direitos de participação política quepropiciam o autogoverno coletivo não é suficien-te, porque às vezes parece significar algo mais:Berlin dá-nos a impressão de que não tem em menteapenas a soberania popular e o risco de ela supe-rar a soberania individual. Mais que os próprios

direitos político-democráticos, a liberdade positi-va seria a instrumentalização da isonomia políticapara adquirir-se isonomia econômica, um com-promisso com a igualdade maior do que o próprioBerlin julga conveniente ao liberalismo. Assim,concluímos que a liberdade em seu sentido positi-vo representa um amálgama mais ou menosmaleável de representações do bem comum e deseus pressupostos igualitários. Mas o fato é quenão necessitamos ver um fantasma totalitário emcada vez em que se levam mais a sério alguns dosimpulsos igualitários presentes na própria teoria

liberal. Formulações liberais anteriores a Berlin,contemporâneas e posteriores a ele julgam a igual-dade e a participação política não só importantemas fundamental para realizar as promessas libe-rais.

No que se refere às relações entre essas duasrepresentações da liberdade, já dissemos que sobo ponto de vista da sustentação da autonomia in-dividual a dicotomia perde bastante de sua força.Se é a autonomia individual que está em foco,poderíamos perguntar-nos se não haveria um

momento ou uma configuração institucional a par-tir do qual a liberdade negativa passaria aconstrangê-la. Creio que somos todos capazes deimaginar configurações institucionais da liberda-de negativa em que os coparticipantes de umacomunidade política poderiam ser oprimidos econstrangidos em seus objetivos de vida de ma-neira arbitrária em plena vigência de direitos polí-ticos e civis. Por exemplo, em situações de extre-ma desigualdade material na qual a concepção deliberdade (negativa) vigente atribuísse supremaprioridade, digamos, à proteção do direito de pro-priedade daqueles que já são proprietários, emdetrimento mesmo das condições de reproduçãomínima das condições de vida dos mais destituí-dos. Certamente uma contradição marcada entreo bem que a liberdade negativa alega defender – aautonomia individual – e a justiça distributiva é oresultado de uma construção política e não de umconfronto ontológico entre liberdade e justiça.

Berlin afirma que “o critério da opressão é opapel que acredito estar sendo desempenhado poroutros seres humanos, direta ou indiretamente,com ou sem intenção, para frustrar meus dese-  jos. Ser livre, nesse sentido, para mim significanão sofrer a interferência dos outros. Quanto maiora área de não interferência, mais ampla a minhaliberdade” (BERLIN, 2002a, p. 229). Poderíamos

perguntar se a opressão econômica está abarcadapor esse critério, uma vez que o arranjo social eeconômico (tanto quanto o arranjo político emsentido mais estrito) pode tolher-nos considera-velmente a liberdade e a autonomia e produzir in-terferências alheias das mais sérias em nossospropósitos. A reiterada objeção de socialistas edemocratas radicais ao caráter “formal” da liber-dade negativa permanece sem respostas na obrade Berlin. A liberdade, tão valorizada e proclama-da pelos liberais, realmente perderia o sentido ouestaria ameaçada se se fizesse acompanhar de um

mínimo de condições materiais para gozá-la, emvez de ser considerada exclusivamente de modoabstrato?

Podemos apontar também problemas lógicosem como se constrói a associação entre liberdadepositiva e a autocracia. Como afirmou PerryAnderson: “A evidência entre essa ligações [entreo autoritarismo e a liberdade positiva] é essencial-mente circular: o despotismo moderno comprovaos perigos do ideal de liberdade positiva, portantoaquele ideal deve haver contribuído para a ascen-

Page 11: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 11/14

293

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

são do despotismo” (ANDERSON, 2002a, p. 300).E se é verdade que regimes democráticos cami-nharam democraticamente para o autoritarismo,podemos afirmar com base em observaçõesempíricas de igual relevância que “as catástrofesdo século XX não começaram como Berlin àsvezes sugere, com correntes obscuras em círcu-los mínimos de emigrados socialistas [conspiran-do contra a liberdade], mas na carnificina da Gran-de Guerra, quando a civilização liberal preparou aEuropa para a barbárie moderna” (idem, p. 315).

Além do mais, Berlin deixa de lado o fato deque a liberdade negativa tem componentes positi-vos: ela mesma é uma conquista coletiva e, em-bora seja desfrutada individualmente, é um bemcomum, coletivamente conquistado, e necessita

ser coletivamente garantido. Se a todos diz res-peito uma vida privada e inviolável, a inviolabilidadee a privacidade necessitam ser garantidas pela es-fera pública. A conquista, a construção e a pre-servação da liberdade negativa passam pela liber-dade positiva. Por que razão passar ao largo des-sa evidência, exceto por capciosidade? Se assimnão for é que estará seriamente ameaçada a con-cepção negativa de liberdade. Ameaças bastantemais concretas insinuam-se contra a liberdadenegativa e contra os direitos civis e políticos emambientes em que imperam severas desigualda-

des sócio-econômicas: o surgimento de umaplutocracia costuma produzir estragos sérios novalor eqüitativo dessas liberdades, degradando-ase conferindo razão aos que afirmam seu caráterprescindível. Mas para Berlin, o justo sequer secoloca como uma variável relevante da moralidadepolítica.

Como muito bem observou Anderson, a ques-tão da autodeterminação nacional é outro pontoque representa um elemento capaz de confundir,diluir a oposição entre liberdade positiva e liberda-de negativa, já que “em dado momento, não pode

ser confundida com nenhum dos dois tipos deliberdade, em outro, representa uma forma híbri-da de liberdade com elemento de ambas. Ela ten-de a reabilitar o sentido positivo colocado sob sus-peita” (ANDERSON, 2002a, p. 314). A caracteri-zação das liberdades positiva e negativa é por de-mais elusiva: suas fronteiras não são claras, ascategorias têm a flexibilidade que cada circuns-tância exige-lhes e a própria relação de Berlin comas categorias criadas por ele mudou conforme al-teraram-se as circunstâncias (KENNY, 2000, p.1031).

Podemos observar ainda que, em matéria dedireitos e de liberdades, a distinção entre direitospositivos e direitos negativos não tem muito sen-tido dos pontos de vista de sua eficácia ou dobem que se tem em mente proteger: a autonomiaindividual, entendida como a oportunidade de bus-car o que se entende como valioso na vida e queseja capaz de fazer a vida valer a pena ser vivida.Destituições de liberdades “negativas” costumamser combinadas com violações de liberdades “po-sitivas”. A privação de direitos civis a determina-do grupo (majoritário ou minoritário) necessitaapoiar-se na privação dos direitos políticos. Issosó é facilitado se esse grupo encontrar-se em si-tuação de fragilidade econômica séria, portantosem o gozo de direitos econômicos e sociais. As-sim, as múltiplas constrições sobre a liberdadeindividual somam-se e complementam-se. Viola-ções de liberdades raramente vêm isoladas umasdas outras. Mas desconsideremos isso edetenhamo-nos apenas nos direitos civis mais ele-mentares. Violações de direitos civis podem serprevenidas por meio de determinados mecanis-mos institucionais: um desenho institucional podeprevenir violações de direitos que ocorreriam soboutra formação institucional. A pouca atenção queBerlin dá ao tema não deixa de ser curiosa, umavez que o desinteresse pela estrutura jurídica desalvaguarda da liberdade negativa é infreqüente

entre os liberais (ANDERSON, 2002a, p. 305).

Em Berlin, há o reconhecimento tímido, masclaro, da insuficiência da liberdade negativa comoinstrumento da promoção da liberdade humana.Preocupações como as esboçadas acima e mani-festadas em diversos momentos sobre a necessi-dade de um Estado que fosse além de suas fun-ções negativas, somadas à admiração por FranklinRoosevelt e por seu  New Deal e à animosidadeque liberistas intransigentes votavam-lhe (idem,p. 302) valeram a Berlin a possibilidade de culti-

var uma auto-imagem de um homem da esquerdamoderada. Contudo, sua identidade como um li-beral moderadamente igualitário parece advir maispor auto-identificação do que derivar de compo-nentes de sua obra (KENNY, 2000, p. 1030) ounela produzir conseqüências. Não se podem co-lher nela elementos capazes de corroborar essaidentidade, pois sua obra não reserva qualquerpapel importante, qualquer protagonismo às ques-tões de justiça distributiva – salvo por vagas men-ções como as colhidas acima, distribuídas ao lon-go de seus escritos. Mas há também, paralela-

Page 12: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 12/14

294

ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE

mente um tom de resignação quanto à insuficiên-cia da liberdade negativa. Se por um lado é insufi-ciente, é tudo quanto podemos almejar sem cor-rer os riscos de perdê-la e portanto deve ser oponto final da luta humana por liberdade: os quetentaram ir mais adiante do que ela perderam-seno autoritarismo deslavado. Esse é o caminhopercorrido por suas inquietações sobre as limita-ções da liberdade negativa. Em geral, o que pode-mos escutar é uma insegura mas clara manifesta-ção de oposição aos projetos emancipatórios pre-sentes no interior do próprio liberalismo. A timi-dez da manifestação mal é capaz de encobrir-lheo caráter conservador.

Em suma, as reflexões de Berlin abusam do queAlbert Hirschman denominou “argumento da ame-

aça”, um dos componentes da “retórica daintransigência” (HIRSCHMAN, 1996a). Ameaçassemelhantes foram brandidas quando do processode universalização dos direitos de voto nos estados

liberais da Europa ocidental, que no século XIXprogressivamente passaram de oligarquias a demo-cracias plenas: afirmava-se que tal realização colo-caria em risco a liberdade individual. Já no cursodo século XX a retórica da ameaça às liberdadesindividuais voltou a ser ouvida quando da extensãode direitos de seguridade social para toda a popula-ção da mesma Europa ocidental (idem, p. 60ss.).

Alguns não escutaram as advertências deBerlin, ousando tomar a liberdade negativa comoum ponto de partida, mas sem dela abrir mão.Outras visões liberais enriquecem o entendimentosobre a liberdade, ao incorporar-lhe a noção de justiça e ao debilitar a velha dicotomia entre liber-dades e direitos “positivos” e “negativos”. Esseenriquecimento do conceito de liberdade não se

deu sem a assimilação de certas críticas às liber-dades liberais formuladas a partir da esquerda,dialogando de maneira mais transigente com ou-tras vertentes e tradições do pensamento político.

ANDERSON, P. 2002a. O pluralismo de Berlin.

 In : _____.  Afinidades seletivas. São Paulo :Boitempo.

_____. 2002b. A direita intransigente do fim doséculo.  In : _____.  Afinidades seletivas. SãoPaulo : Boitempo.

BERLIN, I. 1981. Quatro ensaios sobre a liber-

dade. Brasília : UNB.

_____. 1991. Limites da utopia : capítulos da His-tória das Idéias. São Paulo : Companhia dasLetras.

_____. 2002a. Dois conceitos de liberdade.  In :_____. Estudos sobre a Humanidade – Umaantologia de ensaios. São Paulo : Companhiadas Letras.

_____. 2002b. A originalidade de Maquiavel. In :_____. Estudos sobre a Humanidade – Umaantologia de ensaios. São Paulo : Companhiadas Letras.

_____. 2002c. O ouriço e a raposa.  In : _____. Estudos sobre a Humanidade – Uma antologiade ensaios. São Paulo : Companhia das Letras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Júlio César Casarin ([email protected]) é doutorando em Ciência Política na Universidade deSão Paulo (USP).

CÂNDIDO, A. 1980. Raízes do Brasil. In : _____.

Teresina etc. Rio de Janeiro : Paz e Terra.CONSTANT, B. 2001. Annexe : De la liberté des

anciéns comparée à celle des modernes.  In :WINOCK, M.   Les voix de la liberté . Lesécrivains engagés au XIXe siécle. Paris : Seuil.

GARGARELLA, R. 2001. Liberalismo frente aSocialismo.  In : BORÓN, A. & VITA, A.(comps.). Teoría y Filosofía Política. Larecuperación de los clásicos en el debatelatinoamericano. Buenos Aires : CLACSO.

GRAY, J. 1995. Berlin. London : Fontana.

GUSMÃO, L. A. S. C. 2001. Constant e Berlin : aliberdade negativa como a liberdade dos mo-dernos.  In : SOUZA, J. (org.).  Democracia

hoje. Novos desafios para a teoria democráti-ca contemporânea. Brasília : UNB.

HIRSCHMAN, A. O. 1996a. A retórica daintransigência – dois anos depois. In : _____. Auto-subversão. Teorias consagradas em xe-que. São Paulo : Companhia das Letras.

Page 13: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 13/14

295

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 283-295 JUN. 2008

_____. 1996b. O argumento contra “uma coisapor vez”. In : _____. Auto-subversão. Teoriasconsagradas em xeque. São Paulo : Compa-nhia das Letras.

MILL, J. S. 1991. Sobre a liberdade. Petrópolis :Vozes.

RIBEIRO, R. J. 2000. Democracia versus repú-blica – A questão do desejo nas lutas sociais. In : BIGNOTTO, N. (org.). Pensar a repúbli-

ca. Belo Horizonte : UFMG.

SAID, E. 2000. Isaiah Berlin : An Afterthought. In : _____. The End of the Peace Process. NewYork : Vintage.

VITA, Á. 1993. Justiça liberal. Argumentos libe-

rais contra o neoliberalismo. São Paulo : Paz eTerra.

_____. 2000. A justiça igualitária e seus críticos.São Paulo : UNESP.

KENNY, M. 2000. Isaiah Berlin’s Contribution toModern Political Theory. Political Studies,Oxford, v. 48, n. 5, p. 1026-1039.

Page 14: Liberdade Em Berlin

8/6/2019 Liberdade Em Berlin

http://slidepdf.com/reader/full/liberdade-em-berlin 14/14

ISAIAH BERLIN: AFFIRMING AND CONFINING LIBERTY

 Júlio César Casarin

This text offers a critical analysis of the liberal concept of freedom as it has been elaborated by

Isaiah Berlin, who has understood it basically in the negative. This understanding of freedom, in itsnumerous formulations, has remained hegemonic within contemporary debates on freedom, rightsand their circumstances. Based on such considerations, we have tried to demonstrate that whenfreedom is conceived of in the negative, it is unable to promote individual autonomy – exactly thatwhich it supposedly exists in order to protect – without resorting to a project of distributive justicethat takes elements of the socialist-inspired critique of liberalism into account.

KEYWORDS: Isaiah Berlin; liberty; liberalism; rights; distributive justice.

ISAIAH BERLIN: AFFIRMATION ET LIMITATION DE LA LIBERTÉ

 Júlio César Casarin

Le texte offre une analyse critique du concept libéral de liberté, selon l’élaboration d’Isaiah Berlin, etentendue notamment comme liberté négative. Cet entendement de la liberté, sous différentesformulations, reste hégémonique dans le débat contemporain sur la liberté, les droits et leurscirconstances. Appuyés sur ces réflexions, nous avons essayé de montrer que la liberté négativen’est pas capable de promouvoir l’autonomie individuelle – bien dont la protection est sa supposée

raison d’être – sans faire appel à un projet de justice distributive prenant en compte les éléments dela critique d’inspiration socialiste à l’égard du libéralisme.

MOTS-CLÉS: Isaiah Berlin ; liberté ; libéralisme ; droits ; justice distributive.