26
Conquista Livre não sou, que nem a própria vida Mo consente. Mas a minha aguerrida Teimosia É quebrar dia a dia Um grilhão da corrente. Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino. E vão lá desdizer o sonho do menino Que se afogou e flutua Entre nenúfares de serenidade Depois de ter a lua! Miguel Torga Quem nos Ama não Menos nos Limita Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita. Que os deuses me concedam que, despido De afetos, tenha a fria liberdade Dos píncaros sem nada. Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada É livre; quem não tem, e não deseja, Homem, é igual aos deuses. Ricardo Reis

Liberdade - Poesia de abril

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Compilação de vários poemas acerca da temática da Liberdade (25 de abril), organizada pela equipa da Biblioteca Escolar de Arões (Sta Cristina).

Citation preview

  • Conquista

    Livre no sou, que nem a prpria vida

    Mo consente.

    Mas a minha aguerrida

    Teimosia

    quebrar dia a dia

    Um grilho da corrente.

    Livre no sou, mas quero a liberdade.

    Trago-a dentro de mim como um destino.

    E vo l desdizer o sonho do menino

    Que se afogou e flutua

    Entre nenfares de serenidade

    Depois de ter a lua!

    Miguel Torga

    Quem nos Ama no Menos nos Limita

    No s quem nos odeia ou nos inveja

    Nos limita e oprime; quem nos ama

    No menos nos limita.

    Que os deuses me concedam que, despido

    De afetos, tenha a fria liberdade

    Dos pncaros sem nada.

    Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada

    livre; quem no tem, e no deseja,

    Homem, igual aos deuses.

    Ricardo Reis

  • Liberdade

    Liberdade, que estais no cu...

    Rezava o padre-nosso que sabia,

    A pedir-te, humildemente,

    O pio de cada dia.

    Mas a tua bondade omnipotente

    Nem me ouvia.

    Liberdade, que estais na terra...

    E a minha voz crescia

    De emoo.

    Mas um silncio triste sepultava

    A f que ressumava

    Da orao.

    At que um dia, corajosamente,

    Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,

    Saborear, enfim,

    O po da minha fome.

    Liberdade, que estais em mim,

    Santificado seja o vosso nome.

    Miguel Torga

  • Para Aqum de Abril

    Entardeceram

    nos umbrais da aurora

    as memrias do teu rosto

    Abril...

    Nunca mais soprou o vento

    depois

    de Novembro

    a vida

    petrificou-se na inconstncia

    do rio...

    no mais navegam

    o teu sorriso

    de florestas virgens

    Hoje

    passeio atnito

    na neblina

    das montanhas

    fluir no tempo

    na inrcia da aventura

    sonhar parado

    no caminho em movimento

    vir estrada

    e saber oscilar no horizonte

    ser a terra

    o mar

    o sol

    e a boca

    cantar poema aberto

    esperana viva

    olhar o homem disperso

    e cant-lo

    com a herana do ventre

    reinvento-me

    e no passo da superfcie

    deste mar austero

    nos flancos do dia

    arde o inatingvel

    torno a inventar

    (o desfraldar das areias

    vai-se consumindo

    at que o sol nasa)

    Francisco Duarte,

    in Afluentes de Liberdade

  • Explicao do Pas de Abril

    Pas de Abril o stio do poema.

    No fica nos terraos da saudade

    no fica nas longas terras. Fica

    exactamente aqui

    to perto que parece longe.

    Tem pinheiros e mar tem rios

    tem muita gente e muita solido

    dias de festa que so dias tristes s avessas

    rua e sonho dolorosa intimidade.

    No procurem nos livros que no vem nos

    livros

    Pas de Abril fica no ventre das manhs

    fica na mgoa de o sabermos to

    presente

    que nos torna doentes sua ausncia.

    Pas de Abril muito mais que pura

    geografia

    muito mais que estradas pontes

    monumentos

    viaja-se por dentro e tem caminhos veias

    - os carris infinitos dos comboios da vida.

    Pas de Abril uma saudade de vindima

    terra e sonho e melodia de ser terra e

    sonho

    territrio de fruta no pomar das veias

    onde operrios erguem as cidades do

    poema.

    No procurem na Histria que no vem

    na Histria.

    Pas de Abril fica no sol interior das uvas

    fica distncia de um s gesto os ventos

    dizem

    que basta apenas estender a mo.

    Pas de Abril tem gente que no sabe ler

    os avisos secretos do poema.

    Por isso que o poema aprende a voz

    dos ventos

    para falar aos homens do Pas de Abril.

    Mais aprende que o mundo do

    tamanho

    que os homens queiram que o mundo

    tenha:

    o tamanho que os ventos do aos homens

    quando sopram noite no Pas de Abril.

    Manuel Alegre, in Praa da Cano

  • Abril de Sim Abril de No

    Eu vi Abril por fora e Abril por dentro

    vi o Abril que foi e Abril de agora

    eu vi Abril em festa e Abril lamento

    Abril como quem ri como quem chora.

    Eu vi chorar Abril e Abril partir

    vi o Abril de sim e Abril de no

    Abril que j no Abril por vir

    e como tudo o mais contradio.

    Vi o Abril que ganha e Abril que perde

    Abril que foi Abril e o que no foi

    eu vi Abril de ser e de no ser.

    Abril de Abril vestido (Abril to verde)

    Abril de Abril despido (Abril que di)

    Abril j feito. E ainda por fazer.

    Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia

  • Abril de Abril

    Era um Abril de amigo Abril de trigo

    Abril de trevo e trgua e vinho e hmus

    Abril de novos ritmos novos rumos.

    Era um Abril comigo Abril contigo

    ainda s ardor e sem ardil

    Abril sem adjectivo Abril de Abril.

    Era um Abril na praa Abril de massas

    era um Abril na rua Abril a rodos

    Abril de sol que nasce para todos.

    Abril de vinho e sonho em nossas taas

    era um Abril de clava Abril em acto

    em mil novecentos e setenta e quatro.

    Era um Abril viril Abril to bravo

    Abril de boca a abrir-se Abril palavra

    esse Abril em que Abril se libertava.

    Era um Abril de clava Abril de cravo

    Abril de mo na mo e sem fantasmas

    esse Abril em que Abril floriu nas armas.

    Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia

  • Tanto Mar

    Sei que ests em festa, p

    Fico contente

    E enquanto estou ausente

    Guarda um cravo pra mim

    Eu queria estar na festa, p

    Com a tua gente

    E colher pessoalmente

    Uma flor do teu jardim

    Sei que h lguas a nos separar

    Tanto mar, tanto mar

    Sei tambm que preciso, p

    Navegar, navegar

    L faz primavera, p

    C estou doente

    Manda urgentemente

    Algum cheirinho de alecrim.

    Chico Buarque

  • A Rapariga do Pas de Abril

    Habito o sol dentro de ti

    descubro a terra aprendo o mar

    rio acima rio abaixo vou remando

    por esse Tejo aberto no teu corpo.

    E sou metade campons metade

    marinheiro

    apascento meus sonhos io as velas

    sobre o teu corpo que de certo modo

    um pas martimo com rvores no meio.

    Tu s meu vinho. Tu s meu po.

    Guitarra e fruta. Melodia.

    A mesma melodia destas noites

    enlouquecidas pela brisa no Pas de Abril.

    E eu procurava-te nas pontes da tristeza

    cantava adivinhando-te cantava

    quando o Pas de Abril se vestia de ti

    e eu perguntava atnito quem eras.

    Por ti cheguei ao longe aqui to perto

    e vi um cho puro: algarves de ternura.

    Qaundo vieste tudo ficou certo

    e achei achando-te o Pas de Abril.

    Manuel Alegre , in 30 Anos de Poesia

  • Elefante de Abril

    A Revoluo

    teve uma flor

    o cravo.

    No teve um animal

    e, como tal,

    proponho o elefante

    to paciente e sofredor

    durante tanto ano

    mas quando a pacincia se esgotou

    foi coisa de se ver

    violento

    eficaz

    empolgante.

    Depois, voltou a ser

    lento

    bom rapaz

    algo distante.

    Mas, ateno

    nunca se viu morrer

    um elefante!

    Carlos Pinho, in Bichos de Abril

  • Crocodilo de trazer por casa

    Aquilo

    do crocodilo

    era uma mania

    que Madame vestia.

    Tinha crocodilo para todo o servio

    sapato de crocodilo

    mala de crocodilo

    aplicaes de crocodilo

    no casaco e no chapu.

    O crocodilo era todo seu.

    Ao quilo.

    E no se ficou por aqui

    digo eu que vi

    Madame Reaa

    cheia de graa

    tirar um frasco da mala

    e pr pinguinhos nos olhos

    enquanto explicava

    aos circunstantes

    reverentes

    que no usava culos

    (isso era dantes)

    usava lentes.

    S que, no Vero

    no via bem secava-se-lhe a vista

    e, de a, o expediente

    do frasco lacrimal.

    Concluso a tirar: eram de crocodilo as

    lgrimas tambm.

    Carlos Pinho, in Bichos de Abril

  • Ser ou no ser carneiro

    Votava de cruz

    ordem do pastor

    mas veio Abril

    e j comea a ter cor

    e j comea a saber

    o que quer

    e j comea a votar

    a pensar

    pela prpria cabea

    e no pela cabea do parceiro.

    Em resumo j no carneiro.

    Carlos Pinho, in Bichos de Abril

    Oportunismo

    O camaleo

    tem a cor da ocasio.

    Usa-se muito em poltica

    prtica muito vista

    a situao pode mudar

    ele no

    sempre situacionista

    Carlos Pinho, in Bichos de Abril

  • Ouvindo Beethoven

    Venham leis e homens de balanas,

    mandamentos daqum e alm mundo.

    Venham ordens, decretos e vinganas,

    desa em ns o juiz at ao fundo.

    Nos cruzamentos todos da cidade

    a luz vermelha brilhe inquisidora,

    risquem no cho os dentes da vaidade

    e mandem que os lavemos a vassoura.

    A quantas mos existam peam dedos

    para sujar nas fichas dos arquivos.

    No respeitem mistrios nem segredos

    que natural os homens serem esquivos.

    Ponham livros de ponto em toda a parte,

    relgios a marcar a hora exacta.

    No aceitem nem queiram outra arte

    que a proeza do registo, o verso acta.

    Mas quando nos julgarem bem seguros,

    cercados de bastes e fortalezas,

    ho-de ruir em estrondo os altos muros

    e chegar o dia das surpresas.

    Jos Saramago, in Poemas Possveis

  • Portugal

    Portugal, se fosses s trs slabas,

    linda vista para o mar,

    Minho verde, Algarve de cal,

    jerico rapando o espinhao da terra,

    surdo e miudinho,

    moinho a braos com um vento

    testarudo, mas embolado e, afinal,

    amigo,

    se fosses s o sal, o sol, o sul,

    o ladino pardal,

    o manso boi coloquial,

    a rechinante sardinha,

    a desancada varina,

    o plumitivo ladrilhado de lindos

    adjectivos,

    a muda queixa amendoada

    duns olhos pestantidos,

    se fosses s a cegarrega do estio, dos

    estilos,

    o ferrugento co asmtico das praias,

    o grilo engaiolado, a grila no lbio,

    o calendrio na parede, o emblema na

    lapela,

    Portugal, se fosses s trs slabas

    de plstico, que era mais barato!

    Doceiras de Amarante, barristas de

    Barcelos,

    rendeiras de Viana, toureiros da Goleg,

    no h papo-de-anjo que seja o meu

    derrio,

    galo que cante a cores na minha

    prateleira,

    alvura arrendada para o meu devaneio,

    bandarilha que possa enfeitar-me o

    cachao.

    Portugal: questo que eu tenho comigo

    mesmo,

    golpe at ao osso, fome sem entretm,

    perdigueiro marrado e sem narizes, sem

    perdizes,

    rocim engraxado,

    feira cabisbaixa,

    meu remorso,

    meu remorso de todos ns...

    Alexandre ONeill, in Poesias completas

  • Vai-se o canto vo-se as armas

    No sei se as pedras andam

    Mas o meu pas pedra

    e anda. Desloca-se. Foge.

    Pula ribeiros nas pernas

    do povo. Salta fronteiras

    nas minhas pernas. Rasteja.

    Nada. Esconde-se. Atravessa

    montanhas. Desaparece.

    Disfara-se. O meu pas

    deixou de ser pas.

    qualquer coisa que caminha.

    Que se procura. Saudade

    de ser Ptria. Pas em

    movimento. Pas sem

    cho. Assim cortado

    pela raiz o meu pas

    feito de dois pases:

    um dono o outro no.

    Fica o dono e vai-se o outro.

    O que se fica tem tudo

    o que se vai nada tem:

    nem terra para ficar

    nem licena para ir.

    O meu pas no dono.

    No tem licena de nada.

    Pas clandestino. Pedra

    ambulante. Cho que sangra.

    Que caminha. Pula

    ribeiros. Corre. Derrama-se.

    E vai-se com ele a fora

    a guitarra a pena a foice.

    Vai-se o canto. Vo-se as armas.

    Manuel Alegre, in O Canto e as Armas

  • A foice e a pena

    Com outra que no pena arma

    trabalhas.

    Se minha a pena tua a foice. Mas

    se acaso so diferentes nossas armas

    as penas so as mesmas e as batalhas.

    Eu ceifo com a pena ervas daninhas

    e a mentira que a todos envenena.

    E tu ceifando penas essa pena

    que fraterna se junta s penas minhas.

    Onde tu ceifas eu ceifeiro sou

    da tua dor ceifeira e dessas queixas

    que dizes a ceifar e nunca ceifas.

    Se j teu canto a foice te ceifou

    canta ceifeira canta: a dor destri-se

    juntando a foice pena e a pena foice.

    Manuel Alegre, in Trinta anos de poesia

  • O grito claro

    De escadas insubmissas

    de fechaduras alerta

    de chaves submersas

    e roucos subterrneos

    onde a esperana enlouqueceu

    de notas dissonantes

    dum grito de loucura

    de toda a matria escura

    sufocada e contrada

    nasce o grito claro.

    Antnio Ramos Rosa

    Quem a tem

    No hei-de morrer sem saber qual a cor

    da liberdade.

    Eu no posso seno ser desta terra em

    que nasci:

    Embora ao mundo pertena

    e sempre a verdade vena

    qual ser ser livre aqui,

    no hei-de morrer sem saber.

    Trocaram tudo em maldade,

    quase um crime viver.

    Mas, embora escondam tudo

    e me queiram cego e mudo,

    no hei-de morrer sem saber

    qual a cor da liberdade.

    Jorge de Sena, in Fidelidade

  • Esta lei

    Ainda que no houvssemos feito

    mais nada desde o sculo XVI,

    erigimos este corpo de leis

    invulgarmente justas e certas,

    em nome da vontade popular.

    A lei democraticamente escrita

    pelos representantes legtimos de um

    povo

    e o rosto que esse povo levanta

    perante as outras naes.

    Resplandecente de esperana e

    dignidade,

    esta lei h-de fazer-nos maiores

    do que somos na adversidade e

    dependncia,

    porque os homens so construdos ou

    destrudos

    pelas leis que os obrigam e abrigam.

    Esta uma Constituio aventurosa,

    projecto de vida certa

    deste povo para este povo.

    Estes so os novos mandamentos

    a que ater-nos durante a longa travessia

    at justia de todas as leis do mundo.

    Mais uma vez chegamos primeiro,

    acaso sem ter com qu.

    Mas destruir estas tbuas seria

    destruir algo daquilo em que sempre

    fomos grandes a capacidade de

    inscrever

    o sonho realizvel

    na memria e no assombro dos outros

    povos.

    M. Velho da Costa

  • Os medos

    a medo que escrevo. A medo penso.

    A medo sofro e empreendo e calo.

    A medo peso os termos quando falo

    A medo me renego, me conveno

    A medo amo. A medo me perteno.

    A medo repouso no intervalo

    De outros medos. A medo que resvalo

    O corpo escrutador, inquieto, tenso.

    A medo durmo. A medo acordo. A medo

    Invento. A medo passo, a medo fico.

    A medo meo o pobre, meo o rico.

    A medo guardo confisso, segredo.

    Dvida, f. A medo. A medo tudo.

    Que j me querem cego, surdo, mudo.

    Jos Cutileiro

  • Poema sobre Salazar

    Antnio de Oliveira Salazar

    Trs nomes em sequncia regular

    Antnio Antnio.

    Oliveira uma rvore.

    Salazar s apelido.

    At a est bem.

    O que no faz sentido

    o sentido que tudo isto tem.

    Este senhor Salazar

    E feito de sal e azar.

    Se um dia chove,

    A gua dissolve o sal,

    E sob o cu

    Fica s azar, natural.

    Oh, cos diabos!

    Parece que j choveu

    Coitadinho

    Do tiraninho!

    No bebe vinho.

    Nem sequer sozinho

    Bebe a verdade

    E a liberdade.

    E com tal agrado

    Que j comeam

    A escassear no mercado.

    Coitadinho

    Do tiraninho!

    O meu vizinho

    Est na Guin

    E o meu padrinho

    No Limoeiro

    Aqui ao p.

    Mas ningum sabe porqu.

    Mas enfim

    Certo e certeiro

    Que isto consola

    E nos d f:

    Que o coitadinho

    Do tiraninho

    No bebe vinho,

    Nem at

    Caf.

    Fernando Pessoa

  • Portugal, cravo vermelho

    Em vinte e cinco de Abril,

    em Portugal, de repente,

    no termo da madrugada,

    floriram cravos vermelhos.

    J quarenta e oito anos

    a treva nos tinha cegos,

    quando da treva rasgada

    floriram cravos vermelhos.

    Veio a manh que tardava.

    Estava a longa noite finda.

    Num rumor de asas de pombas,

    floriram cravos vermelhos.

    Desde os peitos dos soldados

    aos peitos dos marinheiros,

    nas prprias metralhadoras,

    floriram cravos vermelhos.

    Mal rompeu o dia novo,

    logo por ruas e praas,

    das cidades s aldeias,

    floriram cravos vermelhos

    Quer nas mos dos operrios,

    quer nas mos dos camponeses,

    no tempo de um pensamento,

    floriram cravos vermelhos.

    Nos olhos baos dos velhos,

    na gralhada das crianas,

    no enlevo das mulheres,

    floriram cravos vermelhos.

    Nas pginas dos escritores,

    na ateno dos estudantes,

    na comoo da razo,

    floriram cravos vermelhos.

    Era um povo renascido

    da morte em que estava morto,

    cujos gestos e gritos

    floriram cravos vermelhos

    No sol, na lua, no vento..

    nas searas, nos montados,

    nos olivais, nas charnecas,

    floriram cravos vermelhos.

    Na voz das fontes e rios,

    por ondas do mar amigo,

    nas penedias dos montes,

    floriram cravos vermelhos.

    No po, no vinho, nos frutos,

    de sangue e suor nutridos,

    mais na fome e sede deles,

    floriram cravos vermelhos.

    No azul do cu profundo,

    no branco leve das nuvens,

    no canto alegre das aves,

    floriram cravos vermelhos.

    Na sombra vil das prises

    abertas de par em par,

    dos irmos delas libertos,

    floriram cravos vermelhos.

    Mas no Primeiro de Maio

    foi que, em todo o Portugal,

    Portugal todo floriu

    num mesmo cravo vermelho.

    Armindo Rodrigues

  • Cravo Mal Temperado II

    Vamos sentar

    devagar no regao deste mal

    armado dia

    o perfume quebradio das glicnias

    e a tarde manifesta de abril

    vamos revelar as dores manuscritas

    nas costas oficiais

    do caixilho da alegria

    cheia de perigos

    a medio dos passos

    organizado

    s o esforo do cho

    pelas encostas da garganta

    os gritos descansam

    sombra do que no sabem

    o sol ainda milita

    arroxeado.

    Boaventura de Sousa

  • Festejar no teu corpo a liberdade

    que a obra desta noite pronuncia

    sobre o nervo da voz fora de alarme

    garganta milimtrica de abril

    um cravo na coronha de um soldado

    no carmo h meia hora ainda em sentido

    para o gesto to fundo to volvel

    infncia j da luz dentro do sismo

    Jornais no censurados no tapete

    uma fbula frtil de fogueiras

    crepitando onde rola o som da estampa

    interior ao rumo labareda

    o desenho final do nosso beijo

    na premissa mais livre do meu sangue

    Olga Gonalves

  • Revoluo

    Como casa limpa

    Como cho varrido

    Como porta aberta

    Como puro incio

    Como tempo novo

    Sem mancha nem vcio

    Como a voz do mar

    Interior de um povo

    Como pgina em branco

    Onde o poema emerge

    Como arquitectura

    Do homem que ergue

    Sua habitao

    Sophia de Mello Breyner Andresen

  • Que pas constris?

    Porque tens nos olhos

    o sol

    e o mar

    Porque tens nos olhos

    o rio

    e tambm:

    o riso

    e o fogo

    Porque tens no ventre

    a raiz de todas

    as crianas

    que pas constris

    diariamente?

    Maria Teresa Horta

  • 25 de Abril

    Este dia um canteiro

    com flores todo o ano

    e veleiros l ao largo

    navegando a todo o pano.

    E assim se lembra outro dia febril

    que em tempos mudou a histria

    numa madrugada de Abril,

    quando os meninos de hoje

    ainda no tinham nascido

    e a nossa liberdade

    era um fruto prometido,

    tantas vezes proibido,

    que tinha o sabor secreto

    da esperana e do afecto

    e dos amigos todos juntos

    debaixo do mesmo tecto.

    Jos Jorge Letria

  • Ei-los Que Partem

    Ei-los que partem

    novos e velhos

    buscando a sorte

    noutras paragens

    noutras aragens

    entre outros povos

    ei-los que partem

    velhos e novos.

    Ei-los que partem

    de olhos molhados

    corao triste

    e a saca s costas

    esperana em riste

    sonhos dourados

    ei-los que partem

    de olhos molhados.

    Viro um dia

    ricos ou no

    contando histrias

    de l de longe

    onde o suor

    se fez em po

    viro um dia

    ou no.

    Manuel Freire