Liberdade Religiosa em um Estado Religioso: liberalismo e catolicismo nos debates da Assembleia Constituinte de 1823 - Françoise Jean de Oliveira Souza

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    Temporalidades Revista DiscenteUFMG

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    Liberdade Religiosa em um Estado Religioso:liberalismo e catolicismo nos debates da Assembleia

    Constituinte de 1823Franoise Jean de Oliveira Souza

    Doutora em Histria pela [email protected]

    RESUMO: O presente artigo tem como objeto de anlise os debates transcorridos naAssembleia Constituinte de 1823 que trataram de temas referentes religio do Estado e queacabaram por denunciar uma tentativa de compatibilizao do catolicismo com o universointelectual do liberalismo. Com isto, busca-se refletir acerca das relaes entre a tradio e amodernidade na dinmica da construo do nosso Estado nacional, compreendendo melhor em

    que medida a religio, enquanto um dos aspectos estruturantes da cultura poltica daquelasociedade, influenciou no processo inicial de elaborao das nossas bases jurdico-polticas.

    PALAVRAS-CHAVE: Constituinte de 1823, Catolicismo, Liberalismo, Religio.

    ABSTRACT: This article has as object of analysis the debates in the Constituent Assembly of1823 about the state religion and who show the attempt to reconcile Catholicism with theintellectual universe of liberalism. So, we try to reflect about the relationship between traditionand modernity in the dynamics of building our State, to understand how religion, as one of thefundamental aspects of political culture of that society, influences on the process of elaborationof our legal and political bases.

    KEYWORDS:Constituent Assembly of 1823, Catholicism, Liberalism, Religion.

    Introduo

    No dia 17 de abril de 1823, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa reuniu-se pela

    primeira vez a fim de elaborar as bases sobre as quais se pretendia constituir o Brasil

    independente. O primeiro trabalho daquela Assembleia, ainda em sesso preparatria, foi o de

    escolher o seu presidente. Por aclamao, saiu vencedor o bispo do Rio de Janeiro, d. Jos

    Caetano da Silva Coutinho. Com isto, o comando da provncia episcopal do Rio de Janeiro e aconduo dos trabalhos legislativos do Imprio do Brasil encontraram-se, por algum tempo, nas

    mesmas mos.

    Em 1 de maio, dois dias antes da abertura oficial dos trabalhos, d. Jos Caetano rezou a

    missa do Esprito Santo. Os deputados que se encontravam reunidos no salo da Assembleia, em

    uma das sesses preparatrias, chegaram Capela Imperial por volta das 11 horas. porta da

    Capela encontrava-se postada uma guarda de honra a qual na passagem do corpo legislativo fazia

    as devidas continncias militares. Aps a missa, tambm assistida pelos monsenhores e pelos

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    membros do Cabido1do Rio de Janeiro, o bispo entoou o hino Veni Creator Spiritus. Em seguida,

    procedeu-se o ritual do juramento sobre os evangelhos. A festa foi encerrada por um Te Deum

    Laudamus.2 Com isto, a primeira experincia legislativa, genuinamente brasileira, nascia,

    significativamente, sob o auspcio da f catlica, numa demonstrao da fora com que a cultura

    religiosa se fazia presente na nossa sociedade.

    Tambm representativo do peso da religio, no Brasil, naquele contexto histrico, foi a

    grande presena numrica do clero catlico entre os membros da Constituinte de 1823,

    assembleia para a qual 22 padres saram eleitos deputados em um total de 100 cadeiras. Este

    fenmeno eleitoral, alis, j havia se manifestado anteriormente. Dos deputados eleitos para as

    Cortes de Lisboa, 26 eram sacerdotes, o correspondente de 29,2% do total, constituindo o

    segundo grupo mais votado entre os brasileiros naquela Constituinte.3

    1 Antnio da Rocha Franco2 Antnio Manuel de Sousa (no tomou assento)3 Belchior Pinheiro de oliveira4 Francisco Agostinho Gomes (no tomou assento)5 Francisco Ferreira Barreto6 Francisco Muniz Tavares7 Francisco Pereira de Santa Apolnia (no tomou assento)8 Incio de Almeida Fortuna9 Jos Antnio Caldas10 Jos Caetano da Silva Coutinho11 Jos Custdio Dias12 Jos Ferreira Nobre13 Jos Joaquim Xavier Sobreira14 Jos Martiniano Pereira de Alencar15 Lus Incio de Andrade Lima16 Manoel Pacheco Pimentel17 Manoel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcante18 Manoel Rodrigeus da Costa19 Nuno Eugnio Lssio e Seiblitz20 Silvestre lvares da Silva21 Venncio Henrique de Resende22 Virgnio Rodrigues Campelo (no tomou assento)

    Quadro 1 - Padres Eleitos para a Assemblia Constituinte de 18234

    Pelos nmeros descritos acima se observa que o clero brasileiro ajudou a conformar a

    elite dirigente do Imprio, em um momento crucial para a organizao das bases do nosso

    Estado independente. , pois, muito significativo o fato de que na primeira oportunidade em que

    os habitantes do Brasil tiveram de se manifestar politicamente, por meio de uma eleio geral

    1O Cabido ou Captulo correspondia ao conjunto de clrigos responsveis por auxiliar os bispos no governo dasdioceses. Este rgo era responsvel por aconselhar o bispo e por governar a diocese, durante seu estado devacncia, elegendo um dos seus membros para exercer o governo eclesial. Ver: SILVA, Cndido da Costa e. OsSegadores e a Messe:O clero oitocentista na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2000.2BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823/ Introduo Pedro Calmon.Ed. Fac-similar. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.3NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais. A Cultura Poltica da Independncia. (1820-

    1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 62.4 BRASIL. Congresso. Cmara dos Deputados. Centro de Documentao e Informao. O Clero no ParlamentoBrasileiro. v. 1. Braslia; Rio de Janeiro, Fundao Casa de Rui Barbosa, 1979.; NOGUEIRA, Otaciano e FIRMO,Joo Sereno. Parlamentares do Imprio. Braslia: Centro Grfico do Senado Federal, 1973.

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    dentro dos limites impostos verdadeira representatividade da opinio pblica no resultado dos

    pleitosfoi, em grande medida, no clero que eles depositaram sua confiana.5

    Fenmenos como o descrito acima nos levam a questionar em que medida a filiao a

    uma crena religiosa modela as atitudes polticas dos indivduos e por quais vias as foras

    religiosas intervm no domnio do poltico a ponto de constituir uma dimenso deste.

    Particularmente no estudo ora proposto, somos instigados a analisar em que medida a religio,

    enquanto um dos aspectos estruturantes da cultura daquela sociedade, influenciou no processo

    inicial de construo do Estado brasileiro e na fundamentao de uma comunidade imaginada,

    tal como nos termos apresentados por Benedict Anderson.6 Para tanto, voltamo-nos para a

    leitura dos anais da Assembleia Constituinte de 1823, a fim de recuperar as discusses

    estabelecidas em torno da religio, sobretudo no que se refere aos termos sob os quais se

    procurou estabelecer uma religio oficial para o Estado brasileiro. Afinal, apesar da curta

    existncia e da dissoluo violenta daquela Constituinte, as discusses que nela transcorreram no

    deixaram de representar, tal como nas palavras de Celso Rodrigues, uma importante etapa no

    processo de montagem do aparelho poltico institucional da jovem nao, consubstanciando o

    momento crtico de introduo da modernidade no Brasil7.

    Finalmente, lembramos que a proposta de estudo ora apresentada s possvel graas

    renovao historiogrfica ocorrida em meados dos anos de 1970, denominada de Nova HistriaPoltica. A partir desta poca, observa-se a abertura dos estudos de histria poltica para novos

    objetos e novos enfoques que, at ento, no eram encarados e nem tratados como parte do

    poltico8, tais como os poderes, os saberes como poderes, as instituies supostamente no

    polticas e as prticas discursivas.9A histria poltica aprendeu que o poltico tem relaes com

    os outros domnios: liga-se por mil vnculos, por toda espcie de laos, a todos os outros aspectos

    5Para um maior aprofundamento acerca do fenmeno eleitoral do clero, na primeira metade do sculo XIX ver:SOUZA, Franoise Jean de Oliveira. Religio e Poltica no Primeiro Reinado e Regncias: a atuao dos padres-polticos no contexto de formao do Estado imperial brasileiro. Almanack Braziliense, So Paulo n. 8, p. 127, nov.2008. Disponvel em: Acesso em: 03 mai. 2012; ______. Sotainas polticas do Imprio: breveanlise do fenmeno eleitoral do clero e de sua atuao no parlamento brasileiro (1823 a 1841). In: SIMPSIONACIONAL DA ASSOCIAO BRASILEIRA DE HISTRIA DAS RELIGIES, 12., 2011, Juiz de Fora.

    Anais... Juiz de Fora: UFJF, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 03 mai. 2012.6ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a origem e a difuso do nacionalismo.So Paulo:Companhia das Letras, 2008.7RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823. Ideias Polticas na Fundao do Imprio Brasileiro. Curitiba:Juru Editora, 2002, p. 268LE GOFF, Jaques. A Poltica ser ainda a ossatura da Historia? In: ______. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente

    Medieval.Lisboa: ED, 1990, p. 221.9 FALCON, Francisco Jos Calass. Histria e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo.Domnios da Histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 75.

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    da vida coletiva10. Em decorrncia disto, hoje, as foras religiosas so levadas em considerao

    como fator de explicao poltica em numerosos domnios. Elas fazem parte do tecido poltico,

    relativizando a intransigncia das explicaes baseadas nos fatores scio-econmicos.11

    Consideramos que o desafio de pensar sobre o papel da religio no processo de

    formao do Estado nacional brasileiro, passa pela compreenso do conceito de cultura poltica.

    Segundo Berstein12, a cultura poltica corresponde a um sistema de representaes compartilhadas

    por um grupo, que, interiorizada, determina as motivaes do ato poltico. Considerando que as

    religies e os religiosos difundem um ensinamento que no se limita s cincias do sagrado, mas

    que, ao contrrio, proferem julgamentos em relao sociedade, impem advertncias,

    interdies e normas de comportamento, conclui-se que a religio um importante agente

    conformador de determinadas identidades polticas. Nas palavras de Aline Coutrot, socializados

    por prticas coletivas [...] os cristos adquirem um sistema de valores muito profundamente

    interiorizado que subentende suas atitudes polticas13.

    Entretanto, o catolicismo brasileiro, no perodo imperial, no foi capaz de construir uma

    cultura poltica prpria. Isto explica o fato de que muito embora compartilhem da mesma crena

    religiosa, os catlicos, leigos ou clrigos, assumiram posturas polticas diversas. Esta constatao

    no diminui, de modo algum, a influncia da religio na constituio de uma determinada cultura

    poltica, mas demonstra que os princpios bsicos do catolicismo comportam, segundo aconjuntura, diferentes tendncias polticas. Aline Coutrot, em seu estudo sobre o catolicismo

    francs, percebeu que se o princpio da direita a hierarquia natural e o princpio da esquerda

    a fraternidade, vemos as afinidades que os cristos podem manter com uma ou com outra dessas

    grandes tendncias da vida poltica francesa14. No caso do Brasil, foi possvel perceber que

    princpios religiosos estiveram na base das mais diferentes batalhas travadas pelos Constituintes

    de 1823, muitas das quais opostas entre si, tal como veremos adiante.

    O Contexto ideolgico: um liberalismo de colorao crist

    A temtica da religio foi largamente discutida nos ltimos meses da Assembleia

    Constituinte de 1823. Afinal, o Brasil de ento se mostrava herdeiro da cristandade colonial, isto

    , de uma organizao na qual Igreja e sociedade se interpenetravam e se confundiam e onde os

    10REMOND, Ren. Uma Historia presente. In: ______. Por uma Historia Poltica. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro:Editora UFRJ/Editora FGV, 1996, p. 36.11COUTROUT, Aline. Religio e Poltica. In: REMOND, Ren. Por uma Histria Poltica, p. 331.12BERSTEIN, Serge. A Cultura Poltica. In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-Franois . Para uma HistoriaCultural. Trad. Ana Moura. So Paulo: Estampa, 1998.13COUTROUT, Aline. Religio e Poltica, p. 336.14______. Religio e Poltica, p. 339.

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    poderes jurisdicionais da Igreja Catlica ultrapassavam o domnio exclusivo do campo religioso. 15

    Por conseguinte, durante a Constituinte de 1823, os assuntos relacionados religio acabaram

    por se situar como ponto de confluncia de vrias outras questes que desafiavam os deputados,

    tais como a definio dos direitos individuais, a capacidade de promoo da mo de obra livre, a

    da identidade catlica como instrumento de controle da populao e como elemento constitutivo

    da conscincia nacional.

    A resoluo das questes que perpassavam direta ou indiretamente o tema da religio

    no era, contudo, uma tarefa simples. No por acaso, as discusses referentes religio e sua

    vinculao com o Estado no estavam sendo colocadas somente aos Constituintes do Brasil, mas,

    ao contrrio, faziam-se pungentes em grande parte do mundo cristo ocidental e,

    particularmente, nos pases de credo catlico.

    Nos primeiros decnios do sculo XIX, os reinos europeus e suas dominaes

    ultramarinas depararam-se com a difcil tarefa da reorganizao poltica dos Estados, aps a

    experincia da Revoluo Francesa e da posterior expanso napolenica. O ponto de partida

    deste processo foi o Congresso de Viena (1815) que tentou restaurar o mapa da Europa, segundo

    a situao anterior revoluo de 1789, e os efeitos desta restaurao fizeram-se sentir

    fortemente no campo religioso. O Papa recuperou seus Estados. Os soberanos, representantes

    das vrias religies crists, se comprometem em nome da santssima e indivisvel trindade a

    defenderem os princpios cristos, abalados pelas famigeradas idias francesas. Vivia-se em um

    clima de renascimento do catolicismo. Este renascimento, por sua vez, foi incrementado por uma

    corrente espiritual do romantismo contemporneo que, diante da aridez do iluminismo,

    despertou a nostalgia pela religio e pela Igreja.16Deste contexto, emergiu um movimento de

    idias conhecido pela designao de conservadorismo.

    O termo conservadorismo comporta dois significados. Um primeiro, mais amplo,

    refere-se a um fenmeno mais ou menos universal, que pode ser entendido, tambm, comotradicionalismo, ou seja, a tendncia a apegar-se a padres e modos de vida j consolidados,

    antigos. O tradicionalismo pode ser considerado, portanto, como uma reao deliberada s todas

    as tentativas de reforma. O segundo significadoque o utilizado no presente textorefere-se a

    um fenmeno poltico claramente moderno, produzido por circunstncias histricas especficas.17

    Em linhas gerais, o conservadorismo foi um pensamento desenvolvido como tentativa dos

    15AZZI, Riolando. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal. Histria do Pensamento Catlico no Brasil. v. 2. So

    Paulo: Edies Paulinas, 1991.16BIHLMEYER, Karl. Histria da Igreja. Idade Moderna. v. 3. So Paulo: Edies Paulinas, 1965.17 MANNHEIM, Karl. O Significado do Conservadorismo. In: FORACCHI, Marialice Mencarini (Org.). Karl

    Mannheim: Sociologia. So Paulo: tica, 1982. (Coleo Grandes Cientistas Sociais, 25).

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    setores mais abalados pela Revoluo Francesa de deter o processo desintegrador dos antigos

    valores. Em pleno sculo da cincia e do progresso, os conservadores defenderam a compreenso

    dos direitos como determinados pela tradio e no como dados naturais. Neste sentido, negaram

    a ideia de homem natural, de direitos naturais, respeitando-se to somente os valores

    historicamente construdos. Propugnou-se ainda a crtica razo, ao individualismo e defendeu-

    se o coletivismo, a ideia da subordinao das relaes sociais ao princpio da ordem e disciplina, a

    obedincia e a submisso s autoridades constitudas, a crena na origem divina do mundo e a

    importncia do mistrio e do obscuro como base da vida social e poltica.18 Em sua vertente

    catlica, o movimento afirmou a infalibilidade do Papa e exaltou a monarquia como uma

    instituio de origem divina. Consequentemente, defendeu a unio entre trono e altar como

    uma aliana intocvel, vendo na monarquia e no catolicismo uma associao indissolvel, na qualuma instituio no poderia viver sem a outra.

    Mas a restaurao no se imps de maneira homognea. Ainda vivia-se naqueles

    tempos, uma gerao, crescida em poca revolucionria, que permanecia embebida das idias

    liberais. No campo poltico-religioso, a epistemeliberal definia trs grandes princpios normativos:

    o de que os assuntos e convices religiosas diziam respeito s esferas privadas dos grupos e

    indivduos; a neutralidade do Estado diante das disputas pela veracidade das questes religiosas; e

    a separao entre Igreja e Estado, no sentido da autonomia institucional de um domnio emrelao ao outro.19 Todavia, os princpios liberais assumem uma dimenso histrica, e, no

    obstante o fato deles se orientarem fundamentalmente pela idia da liberdade, acabam sujeitos a

    variaes e ambiguidades.20De maneiraque outro conjunto de intelectuais catlicosminoritrio

    entre aqueles que professavam tal credo procurou reabilitar o cristianismo aos olhos dos seus

    contemporneos, conformando o que ficou conhecido por catolicismo liberal. Este movimento

    compactuava com algumas conquistas da Revoluo Francesa e propunha uma modernizao da

    Igreja no sentido de coloc-la em sintonia com as aspiraes da poca. Em sntese, defendiam a

    integrao do cristianismo aos princpios da liberdade e igualdade, dando-lhes uma maior

    fundamentao evanglica. A defesa da liberdade em suas diversas manifestaes de

    conscincia, de expresso, de ensino e de associao etc.fizera dos catlicos liberais, crticos da

    intolerncia religiosa e defensores da liberdade de credo. Paulatinamente, tambm, chegaram

    concluso de que o nico relacionamento entre a Igreja e o Estado, verdadeiramente compatvel

    18SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Dicionrio Critico do Pensamento da Direita. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad,

    2000.19 BURITY, Joanildo A. Religio e Poltica na Fronteira: desinstitucionalizao e deslocamento numa relaohistoricamente polmica. Teoria & Sociedade, Belo Horizonte: UFMG, n. 8, p. 98-115, dez. 2001.20REMOND, Ren.O sculo XIX. 1815-1914. Trad. Frederico Pessoa de Barros. So Paulo: Cultrix, 1990.

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    com o Evangelho, era o da radical separao entre os dois poderes. 21 Para que a Igreja fosse

    verdadeiramente livre na sua misso evangelizadora, ela deveria iniciar um sincero dilogo com a

    sociedade, rompendo os incmodos laos com um regime de privilgios e dependncia. A

    ingerncia do Estado em assuntos religiosos era entendida como um empecilho unio da Igreja

    com os povos.

    Apesar dos dois movimentos presentes no interior da Igreja que, por caminhos opostos,

    defendiam a f catlica perante o sculo, esta ltima no se livrou dos ataques daqueles que,

    tambm embebidos de ideias liberais, a olhavam com desprezo e viam-na como baluarte do

    absolutismo, do atraso e como freio do desenvolvimento poltico, cultural e econmico da

    humanidade. O sentimento antirreligioso e anticlerical no havia se extinguido com a restaurao.

    Para muitos, a religio era considerada como instrumento de legitimao da tirania sob a natureza

    humana, sendo premente, portanto, a secularizao da sociedade e o estabelecimento de Estados

    laicos.

    A modernidade trazia assim, entendimentos diferentes acerca da religio, da Igreja e da

    sua vinculao aos Estados. E, como no poderia deixar de ser, o Brasil foi afetado pelas

    diferentes proposies advindas destes entendimentos, colaborando para as divises estabelecidas

    no interior da Constituinte de 1823, como entre os presbteros catlicos. Contudo, os projetos

    forjados para a religio no Brasil, no interior deste contexto intelectual, foram elaborados emtermos relativamente diferentes. Enquanto em muitos pases o movimento liberal teve uma

    conotao tipicamente anticlerical, no Brasil, o liberalismo recebeu uma colorao crist,

    rechaando a ideia de total separao entre Igreja e Estado. No houve no Brasil das primeiras

    dcadas dos oitocentos, um manifesto sentimento antirreligioso. Tampouco o anticlericalismo se

    imps de maneira incisiva, como bem prova o grande nmero de padres eleitos para a

    Assembleia Constituinte. Apesar das manifestaes contra o clero regular e as congregaes

    religiosas, o clero secular brasileiro no foi objeto de ataques violentos, ao menos no tantoquanto se deu na Europa, onde foram abertamente acusados de corruptos, hipcritas e apartados

    dos princpios do evangelho. Afinal, o anticlericalismo, no plano poltico, pressupunha a

    laicizao do Estado, e, isto, por sua vez, no foi objeto de desejo de nenhum dos construtores

    do Estado imperial brasileiro durante a Assembleia Constituinte de 1823.

    Um rpido passar de olhos pelos membros da Assembleia Constituinte ajuda-nos a

    compreender as razes pelas quais, no Brasil, o nosso liberalismo no prescindiu dos princpios

    21 MATOS, Henrique Cristiano Jos. Caminhos pela Histria da Igreja: uma orientao para iniciantes. v. 3. BeloHorizonte: Editora O Lutador, 1996.

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    religiosos como elemento constitutivo da modernidade poltica, ou seja, como um dos esteios do

    Estado que se queria forjar. Segundo Lcia Maria Bastos Pereira das Neves, os homens que

    constituram a elite intelectual e poltica do Brasil, entre 1821 e 1823, pertenceram a uma gerao

    que vivenciou as reformas pombalinas, recebendo uma educao formal marcada pelo

    iluminismo caracterstico do projeto poltico de regenerao do Estado portugus.22Do mesmo

    modo, Ruth M. Chitt Gauer destaca a grande presena numrica, na Assembleia Constituinte de

    1823, de bacharis egressos da Universidade de Coimbra, espao de difuso do iluminismo

    portugus23, de onde se conclui que a construo do pensamento brasileiro foi mediada por

    Coimbra24.

    O Reformismo ilustrado portugus, difundido por Coimbra, consistiu na absoro de

    alguns princpios iluministas que levaram adoo de uma poltica de reformas em questes

    pontuais, visando a evitar o abalo das estruturas vigentes. Os tericos executores do programa

    reformista acreditavam que, mais do que nunca, o poder deveria centrar-se no governante, o que

    tornaria possvel a efetiva promoo do desenvolvimento do Estado.25Propugnavam, portanto, a

    modernizao do Estado portugus sem um rompimento radical com as suas formas tradicionais.

    As reformas pombalinas orientaram-se no sentido de eliminar todas as formas de

    contestao da autoridade estatal. Para tanto, foi imprescindvel submeter a Igreja autoridade

    central, pondo termo hegemonia eclesistica sobre a sociedade civil. Inicia-se um processo desecularizao, isto , a emancipao da sociedade em relao religio que, por sua vez,

    colocada sob a tutela do Estado, como instncia suprema do poder. Consagrou-se, portanto, a

    poltica do regalismo e a ideia de que a religio e a Igreja deveriam ser nacionalizadas e

    subordinadas aos interesses do Estado, transformando-os emverdadeiros servios pblicos26.

    No entanto, o iluminismo adotado em Portugal foi essencialmente catlico e cristo,

    tendo sido promovido, no por livres pensadores, como o foi na Frana, mas por homens

    ilustrados da prpria Igreja, particularmente, pelos Oratorianos.27A influncia religiosa naquelacultura era forte o bastante para rechaar qualquer pensamento secularizado mais radical. Neste

    sentido, o que se realizou foi uma transformao que pretendeu, simultaneamente, preservar a f

    22NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais. A Cultura Poltica da Independncia. (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 62.23GAUER, Ruth Maria Chitt.A Modernidade portuguesa e a reforma pombalina de 1772. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.24______. Violncia e medo na fundao do Estado-Nao. In: Civitas- Revista de Cincias Sociais, Porto Alegre, a.1, n. 2, p. 95, dez. 2001.25LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Imprio . Portugal e Brasil: bastidores da poltica. 1798-1822.Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 33.26FALCON, Francisco Jos Calass. A poca pombalina: poltica econmica e monarquia ilustrada. So Paulo: tica,1982.27CARRATO, Jos Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. (Notas sobre a cultura de decadncia mineirasetecentista). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. 125.

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    catlica, porm, desvencilhando-a da filosofia escolstica. Implantou-se uma cultura moderna,

    sob a gide do Estado secular, mas sobre uma base espiritual e religiosa. Preservou-se, portanto, a

    viso litrgica do mundo na qual o conjunto de crenas e valores religiosos era entendido como

    indispensvel conservao da sociedade.28Nas palavras de Francisco Falcon: a Igreja, uma vez

    conservada nos seus verdadeiros limites, no devia ser considerada apenas como permitida, mas

    como absolutamente necessria29.

    Herdeiros da cultura poltica difundida pelo reformismo ilustrado portugus, os

    membros da Constituinte de 1823 no puderem abrir mo do elemento religioso, no momento de

    elaborar, com base no pensamento poltico moderno, o arcabouo poltico-jurdico para o Estado

    brasileiro. Com esta constatao, abre-se um campo para reflexes acerca das relaes entre a

    tradio e a modernidade na dinmica da construo do nosso Estado nacional.

    Liberdade Religiosa versusTolerncia

    Partindo do pressuposto de que a religio possua uma forte funo pblica, visto ser ela

    o sustentculo moral da sociedade, os Anais da Assembleia Constituinte de 1823 relatam que a

    unio entre Estado e Igreja foi um ponto pacfico entre os deputados. O artigo 16 do projeto de

    constituio que estabelecia a religio catlica como a religio do Estado por excelncia e nica

    mantidapor ele30no foi objeto de polmicas, sendo acatado por unanimidade.

    Das inmeras falas registradas nos anais da Constituinte pode-se concluir que a religio

    era entendida como um importante instrumento de controle social e que, portanto, no deveria

    estar apartada do Estado. O Padre Muniz Tavares, por exemplo, afirmava querer sempre que o

    homem tenha uma religio porque da sua observncia pende a boa moral e com ela formam-se

    bons cidados31. J Carneiro de Campos entendia que o Estado e a Igreja eram coisas muito

    distintas e que um no poderia ter ingerncia sobre o outro, devendo o Estado permanecer

    absolutamente imparcial aos dogmas dos diferentes cultos. No entanto, acreditava que aquele

    mesmo Estado, religiosamente imparcial, no poderia ser indiferente falta total de religio. Ao

    contrrio, achava essencial que um esprito verdadeiramente religioso anime toda a nao. Isto

    porque os meios que possui o governo para reprimir os crimes so limitados e, portanto, torna-

    se indispensvel que haja um meio de prevenir que eles se formem no corao, e a s pode

    entrar a religio. S na religio, segue dizendo Carneiro de Campos se encontrar o suplemento

    28NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais, p. 27.29FALCON, Francisco Jos Calass.A poca pombalina, p. 430.30BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 1 de setembro de1823, p. 689. /Introduo Pedro Calmon. T. 3. Ed. Fac-similar. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.31BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 1 de setembro de1823, p. 191.

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    necessrio s Leis civis e a uma moral sempre incompleta32. Em sntese, era unnime a crena

    de que a religio era um instrumento moral que dava uma imprescindvel sustentao ao Estado,

    j que s teramos bons cidados se houvesse bons cristos.

    Nota-se, portanto, que no contexto da Constituinte de 1823, alm de um ausente

    sentimento antirreligioso, tambm no havia um catolicismo liberal, expresso da maneira como se

    dera na Europa, isto , defensor de um Estado laico. No se queria isto e nem seria possvel. O

    que se queria, antes, era uma necessria compatibilizao entre o liberalismo e o catolicismo,

    casando a nova ideologia com o quadro mental religioso profundamente enraizado na nossa

    cultura. Tampouco havia se consolidado um movimento que, baseado em princpios liberais,

    intentava renovar o catolicismo no Brasil, fato este que s viria a se manifestar a partir da

    primeira legislatura do Imprio, iniciada em 1826.

    Havia, no entanto, um conjunto de deputados, clrigos ou leigos que, realizando uma

    leitura particular do pensamento catlico desenvolvido na Europa, mostrou-se mais afeito s

    ideias de liberdade de conscincia, no possuindo tanto escrpulo quando do questionamento de

    determinados preceitos da Igreja. Tambm, esse grupo de tendncia mais liberal compartilhava

    do entendimento de que ao Estado caberia intervir nos assuntos da Igreja que tocassem

    diretamente nas questes morais, responsveis por guiar a conduta do homem em sociedade.

    Contudo, excetuando as questes religiosas que se relacionassem ao interesse pblico, tudo omais era entendido como um assunto de natureza privada, de conscincia individual, no

    devendo sofrer a ingerncia do Estado. neste sentido que defendiam a convivncia entre o

    moderno preceito da liberdade de religio no interior do tradicional modelo de Estado religioso.

    As divergncias religiosas existentes no interior da primeira Assembleia Constituinte do

    Brasil fizeram-se evidentes no momento da apreciao do artigo 7 do projeto da Constituio,

    referente aos Direitos Individuais dos Brasileiros. Alm da liberdade pessoal, do juzo por

    jurados, da liberdade de indstria, da inviolabilidade da propriedade e da liberdade da imprensa, oartigo consagrava, tambm, a liberdade religiosa como um direito individual a ser preservado. J

    os artigos 14 e 15 do mesmo captulo, explicavam a quem, de fato, cabia o referido direito:

    Art. 14. A liberdade religiosa no Brasil s se estende s comunhes crists; todos osque as professarem podem gozar dos direitos polticos do Imprio.

    Art. 15. As outras religies, alm da crist, so apenas toleradas e a sua profisso inibeo exerccio dos direitos polticos.33

    32BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 1 de setembro de1823, p.197.33BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 1 de setembro de1823, p. 689.

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    Dentre as liberdades individuais elencadas pelo projeto constitucional, a religiosa foi a

    que mais causou polmica, tendo sua discusso se estendido por muitas sesses. Por conseguinte,

    a Assembleia dividiu-se em dois grupos: o primeiro, favorvel ao projeto de lei e, um segundo,

    que, embora no negasse por completo a necessidade da liberdade de crena, exigia limites bem

    claros mesma.

    Muito significativo o fato de, no primeiro grupo, encontrar-se a maior parte dos

    padres Constituintes. Alis, a causa da liberdade religiosa foi a que mais conseguiu aglutinar os

    padres deputados, visto que estes no conformaram uma bancada clerical naquela Assembleia.

    Foi esta proposta que, por exemplo, conseguiu reunir em um mesmo campo de batalha os

    religiosos mais influentes da Constituinte como Custdio Dias, Muniz Tavares, Henrique de

    Resende e Martiniano de Alencar, alm de outros sacerdotes como Rocha Franco e Antnio

    Caldas. Esta constatao, por um lado, demonstra a fora da orientao poltico-religiosa baseada

    na compatibilizao entre liberalismo e catolicismo, capaz de deixar marcas profundas at mesmo

    no corpo da Igreja. Por outro lado, no entanto, acreditamos ser possvel perceber no

    posicionamento do clero ante questo da liberdade religiosa, a manifestao de uma

    sensibilidade religiosa mais moderna, que valoriza a devoo sincera e espontnea.

    O argumento elaborado pelos defensores da liberdade religiosa, tal qual esta se

    apresentava no projeto constitucional, era baseado em um princpio caro ao pensamento polticomoderno. Tomando como referncia a doutrina jusnaturalista, defendia-se a liberdade de crena

    como sendo um direito natural, ou seja, um direito anterior e superior ao direito positivo, no

    estando, portanto, sob a tutela do Estado. Esse entendimento bem demonstrado quando os

    prprios redatores do projeto constitucional saem em defesa de suas proposies. O primeiro a

    faz-lo foi Antnio Carlos, para quem a liberdade de crena no fazia parte daquele conjunto de

    liberdades das quais os homens abriram mo quando forjaram o pacto social; ao contrrio,

    entendia que liberdade de adorar o ente supremo da forma que melhor lhe parecesse, diziarespeito a algo to ntimo entre a criatura e o criador que nem deveria entrar no catlogo dos

    direitos garantidos. Justificava, no entanto, a presena deste direito no texto constitucional, como

    forma de proteg-lo do risco iminente de v-lo usurpado.34

    Na mesma linha de raciocnio, Jos Joaquim Carneiro de Campos explicava que no

    tocante questo religiosa, cabia ao Estado somente a parte de policiamento externo, ou seja, de

    evitar que, a pretexto da crena, perturbassem a ordem pblica. A opo religiosa, por sua vez,

    no poderia ser administrada pelo Estado porque este no tinha direito de regular um artigo que

    34BRASIL. Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 7 de outubro de1823, p. 185.

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    no entrou, nem podia entrar no Pacto Social. A liberdade era um direito inalienvel do homem

    que no poderia ser cedida no pacto devendo este direito ser conservado ileso to

    integralmente como o possua antes da Associao Poltica35. Era dessa maneira, portanto, que

    justificavam a liberdade de crena a todas as religies, fossem elas crists ou no. J a vedao do

    direito ao culto pblico de religies no crists explicado pelo fato destas ltimas possurem

    costumes morais muito diferentes dos nossos, o que poderia atrapalhar a ordem pblica. Estavam

    claras, portanto, as bases jurdico-polticas sobre as quais se propunha a liberdade de crena e de

    culto no Brasil.

    Todavia, os que defenderam o projeto de liberdade religiosa buscaram ampliar sua

    argumentao para alm do campo poltico. A estratgia era demonstrar em que medida a

    liberdade de religio poderia ser positiva para a prpria Igreja Catlica.

    Dos padres deputados, Francisco Muniz Tavares, um dos redatores do projeto

    constitucional, foi o que mais saiu em defesa do princpio da liberdade religiosa. Utilizando seus

    conhecimentos sobre a histria da Igreja, fez uma dura crtica aos tempos obscuros do

    catolicismo, relatando os principais momentos de intolerncia da Igreja e perguntando aos mais

    intransigentes se, por acaso, gostariam de renovar entre ns os dias de S. Bartolomeu; se

    querem que se restabelea esse horrvel tribunal chamado por insolncia de Santo Ofcio36. Em

    seguida, disse que faria a defesa de suas ideias, pois acreditava no estar vivendo mais no tempoem que se receava ser queimado vivo como herege ou heterodoxo s por discordar da opinio de

    telogos.

    Ao longo dos debates, Muniz Tavares explicou que seguia a religio catlica, reconhecia

    que ela era a nica verdadeira, mas sabia que a sua convico ntima da verdade no o dava o

    direito de proscrever os que erravam. Argumentou que se a religio tivesse sido sempre

    perfeitamente livre, ela s teria sido objeto de amor, nunca instrumento de dspotas, e alegou que

    aintolerncia colocando a fora ao lado da f, colocou igualmente a coragem ao lado da dvida37. Alm de enfraquecer a f dos crentes, aquele padre argumentou que as perseguies sempre

    provocaram resistncia, pois h no homem um princpio de revolta contra todo o

    constrangimento intelectual; este princpio pode degenerar em furor38. Neste sentido, entendia

    35BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 8 de outubro de1823, p. 198.36BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823,p. 191.37BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823,p. 190.38BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823, p. 190

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    que a ausncia de liberdade religiosa s geraria perdas para a verdadeira Igreja de Roma, alm de

    causar reaes negativas entre o povo.

    Seguindo a mesma linha de argumentao, padre Henrique de Resende diz acreditar que

    o zelo acre, intolerante e inquisitorial tem feito mais males do que bens ao catolicismo; ele teria

    adquirido muitos filhos e outros se no teriam segregado de seu seio, se os ministros de culto

    tivessem sido tolerantes39. Em seguida, utiliza-se da histria da Igreja e dos reinos para

    comprovar a tese de que em um ambiente de tolerncia religiosa, o catolicismo s tende a crescer.

    J em outro momento, Henrique de Resende voltou a sustentar que, ao contrrio de enfraquecer

    o catolicismo, a tolerncia religiosa s tendia a fortalec-lo, acreditando que os protestantes, em

    contato com a verdadeira f, seriam certamente convertidos. E como que falando aos no

    catlicos chamou-os: venham ver o nosso culto, que a fora da verdade os atrair40.

    Outro argumento bastante utilizado pelos padres para obter a aprovao da liberdade

    religiosa foi o da necessidade de se estabelecer uma relao de sinceridade entre os fiis e Deus,

    extirpando da Igreja a hipocrisia originada da imposio religiosa. Curioso perceber como um

    argumento tido, aos nossos olhos contemporneos, como de interesse exclusivo da Igreja (a

    obteno de fiis verdadeiramente devotos) foi apresentado naquela Constituinte como

    justificativa para determinadas decises polticas, demonstrando a imbricao em que ainda se

    encontravam as esferas poltica e religiosa, o tradicional e o moderno. Nesse sentido, MunizTavares dizia, quase em tom de pregao: o Deus a quem adoro, no quer ser adorado fora,

    quer, segundo o salmista, que voluntariamente se lhe sacrifique41. Tambm Custdio Dias

    lembrava que Deus no quer coisas obrigadas, livre ao homem escolher esta ou aquela religio;

    se errar na escolha, ele pagar,42e o padre Rocha Franco dizia-se persuadido de que o autor da

    religio, Deus, s quer adoradores em esprito e em verdade43. Tratava-se, portanto, da defesa da

    autenticidade religiosa. Esta era, sem dvida, uma formulao bem avanada para o campo da

    conscincia religiosa dominante na poca, principalmente se lembrarmos que preocupaes comoestas s foram verdadeiramente tratadas pela Igreja Romana no Conclio do Vaticano II (1961-

    1965).

    39BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 7 de outubro de1823, p. 192.40BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 29 de outubro de1823 p. 331.41BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823, p. 191.42BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 9 de outubro de1823, p. 213.43BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 29 de outubro de1823, p. 330.

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    interessante observar que, embora defendessem abertamente a ideia da liberdade

    religiosa, os sacerdotes apresentaram certo desconforto com a discusso daquela lei, temendo

    serem mal interpretados pela populao. E este receio no carecia de fundamentao. Afinal, os

    adversrios do projeto de lei procuraram mexer com a opinio pblica ao denunciarem,

    constantemente, os intentos de destruio da religio catlica.

    O padre Rocha Franco, por exemplo, admitiu que procurou evitar colocar suas opinies

    em funo do seu estado eclesistico, mostrando-se preocupado com o que o povo estaria

    entendendo de toda aquela situao, isto , de padres votando em favor da liberdade religiosa:

    porque pertencendo ao estado eclesistico emitimos nossa opinio face do povo, onde no

    falta quem confunda a liberdade religiosa com atesmo, e assente consigo que dizer liberdade de

    religio tanto monta como dizer religio nenhuma, como se fora incompatvel a liberdade com areligio44. Na sesso do dia seguinte, quando ento resolveu falar, Rocha Franco no se furtou a,

    antes, realizar uma profisso pblica da sua f catlica: depois de protestar face desta

    assemblia minha ntima convico de que a religio Catlica Apostlica Romana a nica

    verdadeira [...] julgo no estar em contradio com estes meus sentimentos...45. O mesmo

    cuidado tomou Muniz Tavares ao declarar: Sou ministro da Religio Catlica Romana que adoro

    em esprito e verdade; e se preciso mais a vista da presente questo, que nunca pensei, se

    suscitasse, farei publicamente a minha protestao (sic) de f, declararei que creio e professo tudoquanto cr e professa a Igreja Romana46. J Henrique de Resende chegou a dizer-se preocupado

    com a reao popular, visto que existiriam muitos fanticos no Brasil que incitavam os povos,

    dizendo que se quer plantar o atesmo e incentivar a abjurao da f catlica por parte dos

    brasileiros. Dizendo-se forado a ir contra os seus princpios para aplacar o receio dos mais

    conservadores, ele apresentou uma emendaque restringia liberdade religiosa ao estabelecer que:

    o catlico que apostar abraando outra seita ficar provado dos direitos polticos47. A todo o

    momento, portanto, os padres mais liberais procuraram demonstrar que, como sacerdotes,

    zelavam pelo catolicismo no Brasil e que a defesa de que faziam da liberdade de religio no

    representava riscos para a f comungada pela maioria da populao. Percebe-se, portanto, que ao

    44BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 29 de outubro de1823, p. 330.45BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 30 de outubro de1823, p. 342.46BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 15 de setembro de1823, p. 4.47BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 29 de outubro de1823, p. 332.

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    contrrio do que apontam muitos estudos48, para os quais os padres polticos ostentaram sempre

    um indiferentismo religioso, o que se viu na Constituinte foram padres muito zelosos de sua

    imagem sacerdotal e cnscios da influncia que tal sacerdcio exercia.

    Alm das questes jurdico-polticas e das suas implicaes para o culto catlico, a

    defesa da questo da liberdade religiosa tambm passava por um ponto importante da economia

    brasileira: a necessidade de reduo gradativa do comrcio de escravos a partir da migrao de

    colonos europeus para o Brasil. Havia, pois, uma viso utilitarista da tolerncia religiosa, posto

    que a mesma era entendida como condio sine qua nonpara a vinda de imigrantes estrangeiros.

    vlido registrar que naquele contextoera quase unnime entre os constituintes a crena de que a

    prosperidade do Brasil dependia de dois fatores primordiais: o desenvolvimento da agricultura e o

    aumento da populao a fim de povoar o nosso enorme territrio. Majoritria era, tambm, a

    certeza de que os imigrantes s viriam ao Brasil se tivessem a garantia de que seus direitos

    individuais seriam resguardados. Nesse sentido, o deputado Carvalho e Melo falava da liberdade

    religiosa como o meio de convidar estrangeiros para aumentar a nossa povoao, que to

    minguada est, e to desproporcionada a grande extenso do terri trio que possumos,

    lembrando que ningum se expatria sem a certeza que h de encontrar garantias de seus direitos

    individuais49; e Ferreira Frana apelava aos mais conservadores: no sejamos maus polticos a

    custa de parecermos mui catlicos. O Brasil necessita de povoao, de homensindustriosos[...].50V-se, portanto, que a necessidade de mo de obra foi o ponto chave que fez

    com que a liberdade religiosa ganhasse muitos defensores.

    Se, por um lado, os padres defensores da liberdade religiosa temiam ser confundidos

    com inimigos da religio, por outro, os opositores daquela proposta evitavam serem tidos como

    inimigos da ilustrao e dos valores liberais to em voga naquela Assembleia. De maneira que

    estes ltimos, em geral, no questionaram a liberdade de crena como um princpio, mas

    entendiam que ela no poderia impor-se irrestritamente. Havia, naquele contexto, um pudor emquestionar as liberdades individuais, visto que qualquer crtica a estas era vista como atraso e

    intolerncia. Alm disto, os deputados mais conservadores em matria de religio sabiam da

    importncia da liberdade de credo como incentivo imigrao. Assim, eles concordavam com a

    necessidade de conceder aos estrangeiros a liberdade de crena, mas no aceitavam que o seu

    48Cf. ALMEIDA, Cnego Luis Castanho de. O Sacerdote Diogo Antnio Feij. Rio de JaneiroSo Paulo: Vozes, 1951;MONTENEGRO, Joo Alfredo de Sousa. Evoluo do Catolicismo no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1972; VIEIRA, DavidGueiros. O Protestantismo, A Maonaria e a Questo Religiosa no Brasil. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1980.49BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 29 de outubro de

    1823, p. 334.50BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 29 de outubro de1823, p. 332.

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    culto fosse realizado publicamente. Alm disto, abominavam a ideia de que a liberdade religiosa

    fosse concedida aos naturais da terra, temendo que, com ela, nossa populao se apostasse da

    verdadeira f, diminuindo o nmero de catlicos no Brasil. Em sntese, defend iam unicamente

    a tolerncia de crena para os estrangeiros, vedando-lhes, porm, a liberdade de culto.

    Os padres que mais rejeitaram a proposta de liberdade religiosa foram o bispo d. Jos

    Caetano da Silva Coutinho e o ex-inconfidente Manoel Rodrigues da Costa. Das falas do

    primeiro, entretanto, no restaram muitos registros, visto que os taqugrafos da Assembleia no

    conseguiram acompanh-las. Quanto ao segundo padre, este iniciou suas intervenes dizendo-se

    escandalizado com a proposta de que fosse livre ao homem adorar a Deus no seu corao como

    bem lhe aprouver. Contrapondo-se ao projeto, sustentou sua postura a partir de um argumento

    de natureza religiosa: no restaria aos brasileiros a plena liberdade religiosa uma vez que Deus j

    haveria se revelado, fazendo-se conhecer como Ele gostaria de ser adorado. Ou seja, a liberdade

    religiosa s seria possvel se no existisse uma religio revelada, o que no era o caso do Brasil.

    Entendia, portanto, que uma vez que os catlicos foram ilustrados pela revelao, a aceitao do

    livre convvio com outras religies era uma introduo do demnio.51

    Contudo, foi trazendo a discusso para o campo da poltica que Rodrigues da Costa e os

    demais opositores do projeto construram sua principal argumentao. A justificativa mais

    utilizada para se negar a liberdade religiosa aos brasileiros foi a de que esta proposta de lei norepresentava os interesses da maioria da nao, majoritariamente catlica, ou seja, era um projeto

    antipoltico porque no representava o sentimento geral dos povos. As leis, dizia Rodrigues

    Costa, devem seguir sempre o esprito dos povos e no h nem pode haver razo alguma para o

    contrrio; ora legislando ns para um povo inteiramente catlico [...] vamos contra a sua vontade

    e atacamos os sentimentos que ele tem ampla e energicamente manifestado52.

    Elaborando melhor esta argumentao, Severiano Maciel da Costa dizia ser uma grande

    incoerncia estabelecer a liberdade de religio em um Estado cujos membros eram inteiramentecatlicos, ou seja, para um povo catlico, que legisla para um Estado catlico, onde no h

    seitas. Este mesmo povo defenderia a religio de seus pais, com a qual est todo identificado e

    teria colocado como condio sine qua non do pacto social a manuteno da Religio Catlica53,

    ou seja, a mesma ideia de pacto social era utilizada simultnea e diferentemente pelos dois

    campos em oposio: enquanto para uns a escolha do indivduo por uma religio em particular

    51BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 8 de outubro de1823, p. 189-190.52BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil1823. Sesso de 5 de novembro de1823, p. 356.53BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 7 de outubro de1823, p. 186.

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    estaria fora das imposies previstas pelo pacto social, para outros, a defesa do catolicismo como

    credo nacional era uma condio bsica da existncia desse mesmo pacto. foroso admitir que

    este ltimo entendimento no era completamente infundado, afinal, todo o processo eleitoral

    para a escolha dos Constituintes, assim como a posse dos deputados e mesmo a abertura da

    Assemblia, desenrolaram-se em meio a rituais permeados de elementos da f catlica, rituais

    estes que concediam legitimidade aos atos polticos que por meio deles se fundavam.

    Quem melhor percebeu as implicaes polticas da liberdade religiosa e melhor as

    expressou naquela Assembleia foi Jos da Silva Lisboa, um dos mais conservadores deputados

    constituintes. Foi este leigo quem mais se interps aos intentos liberais relativos condio

    religiosa no Brasil.

    Demonstrando toda sua perspiccia poltica, Silva Lisboa procurou convencer os

    colegas constituintes que a instaurao da liberdade religiosa tinha conseqncias diretas no plano

    poltico. Utilizando a Revoluo Francesa como contra-exemplo, demonstrou em que medida a

    tolerncia religiosa nela propugnada acabou desvirtuando-se para outros campos. Dizia ele que,

    atravs de simples declaraes contra a intolerncia, os cabalistas abusaram logo das sucessivas

    concesses da tolerncia e derrubaram o governo estabelecido e as suas prprias constituies,

    alis, cheias de Declaraes dos Direitos do Homem54. V-se que aquele conservador foi um dos

    poucos a atentar para o fato de que, se o valor fundamental da liberdade religiosa no admitiacoero na aceitao de uma verdade ou de uma instituio religiosa, o mesmo poderia ser

    pensado no que se refere aceitao de uma soluo poltica que se queira estabelecer como

    sendo a verdadeiramente melhor. Em outras palavras, era preciso evitar o pluralismo religioso

    para que o seu princpio no fosse utilizado como embasamento para um possvel pluralismo

    poltico, o que, por sua vez, poderia afetar o princpio monrquico do Estado brasileiro.

    Tambm foi Silva Lisboa quem melhor chamou a ateno para a importncia da unidade

    religiosa no processo de construo do Estado brasileiro, ento carente de uma verdadeira nao.Para ele, era claro o quanto contribui para a unidade e fora do governo a tranqilidade do

    povo, a uniformidade da religio, que se acha entrelaada com a constituio do Estado55. Em

    outra passagem, ele declara que a uniformidade da religio dominante e a conformidade de

    todos os naturais do Estado a ela, concorrem muito para dar carter Nao56; e, lembrando das

    54BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 8 de outubro de1823, p.194.55BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 9 de outubro de1823, p. 207.56BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 9 de outubro de1823, p. 209.

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    adversidades pelas quais o Brasil passava, em funo da multiplicidade de projetos polticos que

    se digladiavam, argumentou:

    [...] j vemos tristes sintomas de divises em objetos de governo, pelas reclamaes de

    ilimitadas liberdades polticas: em que abismo cairemos, se tambm acrescentamosdivises de opinies e comunhes a pretexto de direito individual da liberdadereligiosa e de tolerncia de seitas, ainda fora das comunhes crists. Era por venturaeste o melhor momento escolhido para to inopinada inovao na Lei Fundamentaldo Imprio?57

    Para Silva Lisboa, o momento pelo qual o Brasil passava no se mostrava oportuno para

    a aprovao daquele projeto, tendo em vista quediante da falta de identidade entre as provncias

    e de consenso poltico entre os dirigentes, o catolicismo apresentava-se como o nico elemento

    que, de alguma maneira, poderia conferir uma unidade aos habitantes do territrio do novo

    Imprio. Assim, diante da complexa misso de criar uma unidade nacional a partir de umarealidade bastante diversa: escravos, ndios, portugueses, negros, pobres ricos estrangeiros,

    mulheres etc, o catolicismo era tido, portanto, como um dos poucos elementos, seno o nico,

    capaz de cimentar a nossa identidade nacional.

    Silva Lisboa ser o responsvel, ainda, por desnudar os problemas prticos inerentes a

    um projeto de lei que prev a liberdade religiosa dentro de um Estado confessional, ou seja, que

    assume e se faz mantenedor de uma religio oficial. A contradio frente qual se colocava a

    Assembleia foi denunciada por aquele deputado ao levantar os seguintes questionamentos: comoa Constituio poderia obrigar o imperador a jurar e manter a religio catlica se os brasileiros

    teriam a liberdade de no observ-la? Como ficaria a nao se o imperador, que jurou defender o

    catolicismo, resolver utilizar-se de sua liberdade individual para mudar de crena? Ou ainda, se os

    legisladores do Imprio, que tambm juraram proteger a religio catlica, resolverem tambm

    abjurarem a sua f?58

    De fato, Silva Lisboa no se equivocava ao ver dificuldades em compatibilizar a

    liberdade de religio com um Estado confessional. Afinal, o princpio liberal que se encontravapor trs da defesa da liberdade religiosa, embora no necessariamente seja antirreligioso, rejeita a

    tutela da religio e afirma para a razo o direito de examinar tudo, contrariando o mtodo da

    autoridade. Reivindicando a autonomia da sociedade civil em termos de conscincia, este

    princpio exigia a laicizao do Estado. Neste sentido, pode-se afirmar que os artigos do projeto

    de lei referentes liberdade religiosa e ao catolicismo como religio oficial do Estado criavam

    uma situao, aos nossos olhos contemporneos, de contradio. Eram, contudo, contradies

    57BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823, p. 195.58BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823.Sesso de 29 de outubro de1823, p. 335.

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    inerentes ao prprio processo de transio de uma sociedade regida pelas regras do Antigo

    Regime para uma de preceitos mais modernos. Neste contexto, os deputados, sob a liderana de

    muitos padres, foram capazes de unir a defesa da liberdade de conscincia, ou seja, de uma moral

    individual, com a necessidade de imposio de uma moral social, baseada em princpios

    religiosos, capazes de unir um homem a outro homem na sociedade, garantindo a manuteno da

    ordem pblica. Era essa moral que, por ser social, criava a necessidade da manuteno do vnculo

    da religio ao Estado.59Ademais, esta soluo de meio termo no foi uma exclusividade brasileira;

    ao contrrio, fez-se presente em grande parte do mundo cristo.

    Nas dcadas iniciais do sculo XIX, a noo moderna de liberdade religiosa associada ao

    princpio da laicidade do Estado no foi levada a termo pela maioria dos Estados cristos, sejam

    os europeus, sejam os novos que se formavam no continente americano. Tanto estes como

    aqueles no foram capazes de dispensar a religio, oficial ou extra-oficialmente, como elemento

    conformador de sua nacionalidade e garantidor da ordem pblica.

    A Constituio liberal de Cdiz (1812), por exemplo, que tanto serviu de modelo a

    Portugal, ao Brasil e aos demais pases recm independentes da Amrica latina, estabelecia em seu

    captulo II, Artigo 12 que A religio da nao espanhola e ser perpetuamente a catlica,

    apostlica, romana, nica e verdadeira. A nao a protege por leis sbias e justas e probe o

    exerccio de outra qualquer.60Por esta carta, exclui-se, portanto, a liberdade de crena e de culto.J a Constituio portuguesa promulgada em 23 de setembro 1822, estabeleceu em seu artigo 25

    que a religio da Nao Portuguesa a catlica apostlica romana. Permite-se, contudo, aos

    estrangeiros o exerccio particular de seus respectivos cultos.61Neste caso, percebe-se que no

    h nenhuma meno liberdade religiosa, embora se tenha avanado no sentido da tolerncia aos

    demais credos, que tambm no possuiriam liberdade de culto. O mesmo se deu com as

    Constituies dos Estados latino-americanos, nas quais se estabelecia a religio Catlica como

    sendo oficial do Estado, adotando, quando muito, o princpio da tolerncia religiosa.62

    V-se que o Brasil, no quadro geral das naes catlicas, situava-se em uma posio de

    relativa vanguarda no que se refere s discusses atinentes liberdade religiosa. Este direito,

    previsto no projeto de constituio e que fora amplamente defendido por um grande nmero de

    59 CORREIA, Jos Eduardo Horta. Liberalismo e Catolicismo. O problema Congreganista (1820-1823). Coimbra:Universidade de Coimbra, Publicaes do Seminrio de Cultura Portuguesa, 1974.60BIBLIOTECA Virtual Miguel de Cervantes. Disponvel em: . Acesso em: 1jun. 2009.61BIBLIOTECA Virtual Miguel de Cervantes. Disponvel em: . Acesso em: 1jun. 2009.62BETHEL, Leslie. Histria da Amrica latina. Da independncia a 1870. v. 3. So Paulo: EDUSP; Imprensa Oficialdo Estado. Braslia, DF: Fundao Alexandre de Gusmo, 2001.

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    padres, apresentou-se como uma grande ousadia para a sua poca, podendo ser entendida como

    um avano na compreenso da garantia dos direitos individuais. Alis, os opositores do projeto

    cansaram-se de denunciar tal avano. Silva Lisboa, por exemplo, foi um dos que mais alertou a

    Assembleia para o fato de que nenhuma constituio tinha reconhecido amplamente aquele

    direito, como o se queria fazer no Brasil: Que dir de ns o povo de Portugal, onde os

    arquitetos da sua constituio, publicamente anunciando que queriam faz-la, se fosse possvel,

    mais liberal que a da Espanha, no concederam a liberdade religiosa [...]?63, perguntou o

    deputado. Tais constataes ajudam-nos, tal como sugere Celso Rodrigues64, a refutar anlises

    tradicionais em nossa historiografia segundo a qual a modernidade, no Brasil, seguiu sempre um

    padro retardatrio (em relao Europa), no qual o repertrio do pensamento liberal no teria

    sido suficientemente cumprido.

    fato que o modelo religioso, consolidado pela Constituio de 1824, perdeu muito dos

    avanos apresentados no ano anterior, visto que to somente tolerava as religies no catlicas,

    no permitindo a liberdade de culto. Todavia, ainda que o texto constitucional de 1823 no tenha

    chegado a ser promulgado, no menos significativo o fato de que o seu artigo 7, que

    estabelecia a liberdade religiosa, chegou a ser votado e aprovado pela Assembleia, indicando,

    portanto, os caminhos que esta seguiria se suas atividades no fossem interrompidas por ordem

    do monarca.Consideraes Finais

    Por meio das discusses da Assembleia Constituinte de 1823 foi possvel observar que a

    manuteno do catolicismo como religio oficial do Estado era um ponto pacfico para a elite

    dirigente do Brasil. No obstante as divergncias acerca da liberdade religiosa e de culto, os

    deputados constituintes mostraram-se cnscios da importncia da religio do Estado como

    instrumento de manuteno da ordem social, de reforo e legitimao do poder estabelecido, da

    idia de nao, em suma, de organizar da vida pblica. Afinal, no Brasil de ento, no havia umaclara ciso entre o mundo da poltica e o da religio. Estas duas esferas ainda no haviam sido

    identificadas como completamente distintas, no haviam se dissociado e se tornado plenamente

    autnomas. Ao contrrio, o Brasil independente herdou da antiga metrpole uma cultura poltica

    63BRASIL.Dirio da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil 1823. Sesso de 8 de outubro de1823, p. 194.64RODRIGUES, Celso.Assembleia Constituinte de 1823. Ideias Polticas na Fundao do Imprio Brasileiro.Curitiba:Juru Editora, 2002.

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    marcada por uma forte viso litrgica do mundo, corporificada na religio como conjunto de

    crenas e valores indispensveis conservao da sociedade65.

    Por conseguinte, o Estado brasileiro que ento se desejava construir no poderia, de

    imediato, substituir a perspectiva religiosa que dava sentido existncia de seus habitantes por

    uma ideologia estritamente secular. A consequncia disto foi o surgimento de projetos que

    visavam compatibilizar o catolicismo com o universo intelectual do liberalismo, gerando um

    pensamento hbrido, sustentado por homens que, vivendo em um perodo de transio da

    transcendncia imanncia66 - procuravam estruturar um Estado moderno, lanando mo de

    instrumentos tpicos do Antigo Regime, tal com a religio. Longe estvamos, portanto, do fim da

    estruturao religiosa da sociedade.

    Em suma, no momento de se elaborar o arcabouo poltico-jurdico para o Estado

    brasileiro, com bases no pensamento poltico moderno, a religio, enquanto elemento

    constitutivo da cultura poltica daquela sociedade, foi tomada como um dos elementos

    norteadores daquele processo histrico. Tal como observou Celso Rodrigues, a modernidade

    brasileira no se realizou pela brusca eliminao das formas sociais e polticas tpicas do regime

    anterior, substituindo-as por modelos modernos. A construo do nosso Estado no

    correspondeu a uma ruptura abrupta com a tradio e a implantao do modelo civilizatrio

    moderno67. Esta constatao, de maneira nenhuma, denuncia a natureza retardatria do processode organizao do nosso Estado em bases modernas, mas, to somente, demonstra as

    singularidades do nosso processo histrico, dotando-lhe de uma especificidade impossvel de ser

    apreendida por esquemas tericos ortodoxos68, tomados como parmetros para as mais diversas

    realidades.

    Recebido: 17/09/2011

    Aprovado: 25/05/2012

    65NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais, p. 2766FERRY, Luc; GAUCHET, Marcel. Depois da Religio. O que ser do homem depois que a religio deixar de ditar alei? Rio de Janeiro: Difel, 2008.67 RODRIGUES, Celso. O Tempo do Direito: patrimonialismo e modernidade na ordem jurdica e polticabrasileira. In: Novos Estudos Jurdicos, [Itaja], v. 12, n.1, p. 92, jan./jun. 2007. Disponvel em: .68RODRIGUES, Celso. O Tempo do Direito, p. 93.