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Liberdades Imaginárias * Luiz Carlos Villalta ** O final do século XVIII na América Portuguesa marcou-se pela ocorrência das denominadas Inconfidências: em Minas Gerais (1789), no Rio de Janeiro (1794) e na Bahia (1798). A denominação comum Inconfidência segreda diferenças substantivas: em Minas, tratou-se de uma conspiração abortada, protagonizada por pessoas cujas origens se circunscreviam às elites; na outrora capital do Vice-Reino do Brasil, os supostos conspiradores, pertencentes a um espectro social mais amplo, embora restrito à limitada camada dos homens livres, não foram além de discussões e tertúlias, não cogitando nenhuma ação contra a monarquia portuguesa ou contra o domínio colonial; enquanto em solo soteropolitano assistiu-se à gestação de um projeto de revolução que articulava, de modo fluido e, ainda hoje, difícil de precisar, as elites locais e indivíduos egressos da escravidão ou que ainda se encontravam no estado de cativos. Essas “Inconfidências” de fins do século XVIII, protagonizadas por gentes de perfil socioeconômico tão distinto, não se inspiraram num modelo comum: a Inconfidência Mineira pode ser associada tanto às rebeliões ocorridas anteriormente na capitania de Minas Gerais quanto à independência dos Estados Unidos e à Restauração Portuguesa de 1640; já no Rio de Janeiro e na Bahia, a fonte de inquietação e inspiração foi a Revolução Francesa. Esses movimentos, ademais, não beberam das mesmas fontes intelectuais: enquanto em Minas Gerais as Luzes conjugaram-se com tradições histórico-culturais luso-brasileiras, com destaque para a Segunda Escolástica 1 e para os escritos do padre * Conferência proferida no Museu Nacional de Belas Artes, no dia 10 de outubro de 2000, dentro do curso A Invenção da Liberdade, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Artepensamento e Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 25 de setembro a 31 de outubro de 2000. Capítulo publicado em: NOVAES, Adauto (Org.). O Avesso da Liberdade. São Paulo, 2002, v. , p. 319-341. ** Professor Adjunto do Departamento de História da UFMG. 1 Segunda Escolástica ou Neo-Escolástica designa o sistema teológico-filosófico constituído no início da Idade Moderna, em torno da revitalização da escolástica medieval, relendo as idéias de Aristóteles e os ensinamentos de são Tomás de Aquino, assentando-se fundamentalmente no método dedutivo e refutando o experimentalismo. Dentro desse sistema, destacavam-se as concepções corporativas de poder, segundo as quais esse último, embora fosse oriundo de Deus, não transitava diretamente para o Rei, passando, ao contrário, pela mediação da comunidade, cujo bem estar deveria ser objeto de cuidado do soberano e que, caso o governante se tornasse um tirano, teria legitimidade para insurgir-se, ainda que em relação a isso alguns teóricos fossem bastante cautelosos, descrevendo os modos apropriados de fazê-lo. Na Ibéria, tais concepções predominaram até meados do século XVII, impregnando a doutrinação política até o século XVIII, constituindo-se como as premissas do pensamento político luso-brasileiro e hispano-americano (SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 417 e 450-454; MORSE, Richard M. O

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Historia Villalta

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  • Liberdades Imaginrias*

    Luiz Carlos Villalta**

    O final do sculo XVIII na Amrica Portuguesa marcou-se pela ocorrncia das

    denominadas Inconfidncias: em Minas Gerais (1789), no Rio de Janeiro (1794) e na

    Bahia (1798).

    A denominao comum Inconfidncia segreda diferenas substantivas: em

    Minas, tratou-se de uma conspirao abortada, protagonizada por pessoas cujas origens

    se circunscreviam s elites; na outrora capital do Vice-Reino do Brasil, os supostos

    conspiradores, pertencentes a um espectro social mais amplo, embora restrito limitada

    camada dos homens livres, no foram alm de discusses e tertlias, no cogitando

    nenhuma ao contra a monarquia portuguesa ou contra o domnio colonial; enquanto

    em solo soteropolitano assistiu-se gestao de um projeto de revoluo que articulava,

    de modo fluido e, ainda hoje, difcil de precisar, as elites locais e indivduos egressos da

    escravido ou que ainda se encontravam no estado de cativos.

    Essas Inconfidncias de fins do sculo XVIII, protagonizadas por gentes de

    perfil socioeconmico to distinto, no se inspiraram num modelo comum: a

    Inconfidncia Mineira pode ser associada tanto s rebelies ocorridas anteriormente na

    capitania de Minas Gerais quanto independncia dos Estados Unidos e Restaurao

    Portuguesa de 1640; j no Rio de Janeiro e na Bahia, a fonte de inquietao e inspirao

    foi a Revoluo Francesa.

    Esses movimentos, ademais, no beberam das mesmas fontes intelectuais:

    enquanto em Minas Gerais as Luzes conjugaram-se com tradies histrico-culturais

    luso-brasileiras, com destaque para a Segunda Escolstica1 e para os escritos do padre

    * Conferncia proferida no Museu Nacional de Belas Artes, no dia 10 de outubro de 2000, dentro do curso A Inveno da Liberdade, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Artepensamento e Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 25 de setembro a 31 de outubro de 2000. Captulo publicado em: NOVAES, Adauto (Org.). O Avesso da Liberdade. So Paulo, 2002, v. , p. 319-341.** Professor Adjunto do Departamento de Histria da UFMG.1 Segunda Escolstica ou Neo-Escolstica designa o sistema teolgico-filosfico constitudo no incio da Idade Moderna, em torno da revitalizao da escolstica medieval, relendo as idias de Aristteles e os ensinamentos de so Toms de Aquino, assentando-se fundamentalmente no mtodo dedutivo e refutando o experimentalismo. Dentro desse sistema, destacavam-se as concepes corporativas de poder, segundo as quais esse ltimo, embora fosse oriundo de Deus, no transitava diretamente para o Rei, passando, ao contrrio, pela mediao da comunidade, cujo bem estar deveria ser objeto de cuidado do soberano e que, caso o governante se tornasse um tirano, teria legitimidade para insurgir-se, ainda que em relao a isso alguns tericos fossem bastante cautelosos, descrevendo os modos apropriados de faz-lo. Na Ibria, tais concepes predominaram at meados do sculo XVII, impregnando a doutrinao poltica at o sculo XVIII, constituindo-se como as premissas do pensamento poltico luso-brasileiro e hispano-americano (SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno. Trad. de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 417 e 450-454; MORSE, Richard M. O

  • Antnio Vieira e, ainda, para livros de histria da Restaurao Portuguesa de 16402, no

    Rio de Janeiro, as Luzes ampliaram seu espao, sem contudo eliminar totalmente a

    influncia da Neo-Escolstica, e, na Bahia, as idias ilustradas imperaram, ainda que se

    conjugando com elementos msticos e ocultistas de provenincia francesa3. A influncia

    das Luzes, elemento comum s Inconfidncias, preciso salientar, foi bastante

    matizada. Em Minas sobressaiu a Histoire philosophique et politique des etablissements

    et du commerce des europens dans les Deux Indes, do abade Raynal4. Na capital do

    Vice-Reino do Brasil tambm houve, ao que parece, influncia de escritos de

    pensadores ilustrados, mais precisamente de Mably e de Rousseau, porm nenhum

    desses foi to onipresente quanto os jornais, alguns proibidos (Correio da Europa e

    Mercrio), outros autorizados pela censura portuguesa (Gazeta de Lisboa e Correio de

    Londres), e que, ao noticiarem os fatos contemporneos, emanavam e popularizavam

    mximas ilustradas ou narravam fatos revolucionrios. Na Bahia, por fim, essa vertente

    espelho de Prspero: cultura e idias nas Amricas. Trad. de Paulo Neves. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 28-29, 64, 72 e 92-93; TORGAL, Lus Reis. Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981, vol. 1, p. 110 e 245; XAVIER, ngela Barreto. El Rei aonde pde, & no aonde qur: razes da poltica no Portugal Seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998; MACEDO, Jorge Borges de. Formas e Premissas do Pensamento Luso-Brasileiro, Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1(1): 76-77, jan./jun. 1981; MIRANDA, Tiago Costa Pinto dos Reis. Ervas de Ruim Qualidade: a expulso da Companhia de Jesus e a aliana anglo-portuguesa: 1750-1763. So Paulo: FFLCH-USP, 1991, p. 256-257 (Dissertao de Mestrado); e HOLANDA, Srgio Buarque de. Captulos de literatura colonial. Org. e notas de Antnio Cndido. So Paulo: Brasiliense, 1991, p. 447-448). 2 Com relao Inconfidncia Mineira, a influncia mais perceptvel de Antnio Vieira foi o sermo feito na Bahia, aos 2 de julho de 1640, em homenagem ao marqus de Montalvo, d. Jorge de Mascarenhas, primeiro vice-rei do Brasil. Sobre este Sermo (que pode ser encontrado em VIEIRA, Padre Antnio. Por Brasil e Portugal. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 156-158),veja: CIDADE, Hernani. Antnio Vieira. Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 22. Dos livros de histria de Portugal, so influncias presumidas: sobretudo Histria de Portugal restaurado, de D. Lus de Menezes, Conde da Ericeira; e, ainda, Histoire des rvolutions de Portugal, do Abb Vertot; Histoire gnrale de Portugal, de Nicolas de La Clde; e Histria genealgica da Casa Real Portuguesa, de D. Antnio Caetano de Souza.3 Os textos msticos encontrados pela devassa na Bahia so: Aviso de Petesburgo Fevereiro de 1796 e Les ruines ou mditation sur les rvolutions des empires, de Volnay, este ltimo extrado do captulo XXII, intitulado Origem da idia de Deus (MATTOSO, Katia de Queirs. Presena francesa no movimento democrtico baiano de 1798. Salvador: Itapu/ Secretaria de Educao e Cultura do Estado da Bahia, 1969, p. 122-124 e 139).4 Obra publicada inicialmente em 1770, analisa a colonizao europia nas duas ndias e narra a Independncia das Treze Colnias Inglesas da Amrica do Norte; contm uma parte, o tomo 5, inteiramente dedicada Amrica Portuguesa. Segundo Raynal, a dualidade entre riqueza e pobreza; opresso fiscal e comercial, vlida para o Novo Mundo em geral, tambm se encontrava na Amrica Portuguesa. Raynal criticava as alteraes tributrias feitas pela Coroa portuguesa e o descuido desta com as atividades econmicas no-mineratrias aps a descoberta das minas (RAYNAL, G. T. [Guillaume-Thomas Franois]. Histoire philosophique et politique des etablissements et du commerce des europens dans les Deux Indes. nouvelle edition, corrige et augmente daprs les manuscrits autographs de lauteur... par M. Peuchet. Paris, Amable Costes et C.ie., 1820, vol. 5, p. 74-75). Esse tomo, bem como a narrativa sobre a Independncia dos Estados Unidos foram editados em portugus recentemente: RAYNAL, Guillaume-Thomas Franois. A Revoluo da Amrica. Trad. de Regina Clara Simes Lopes. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993 e Idem, O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Trad. Mnica F. Campos de Almeida e Flvia Roncari Gomes. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional: Braslia: Editora UnB, 1998.

    2

  • vulgarizada do pensamento ilustrado, isto , das Luzes aplicadas e repensadas no calor

    da ao, em meio ao clima revolucionrio francs, teve uma repercusso sem par, por

    meio de O Orador dos Estados Gerais de 1789, texto de grande xito internacional,

    encontrado praticamente entre todos os participantes do movimento baiano, que contm

    idias frontalmente contrrias ao absolutismo de Lus XVI e aos abusos e privilgios de

    sua Corte; e Fala de Boissy dAnglas 30 de janeiro de 1795, texto elaborado pelo

    conde de mesmo nome, que tinha por objetivo desarticular a coligao formada contra a

    Frana, apresentando, para tanto, a Rssia e a Inglaterra como as duas grandes inimigas

    dos pases europeus, secundadas pela ustria, e conclamando esses ltimos a se unirem

    com a Frana, cujo governo, por ser plenipotencirio e nomeado pela totalidade do

    povo francs para fazer a paz, poderia, por isso mesmo, assegur-la de forma muito

    mais slida5.

    Nas discusses e/ou nos projetos de que as Inconfidncias se constituram,

    consequentemente, a palavra e a idia de liberdade apresentaram amplitudes e

    significados radicalmente diversos. Este artigo prope-se a falar dessas liberdades

    diversas, na verdade imaginrias, posto que no se traduziram nem em Minas, nem no

    Rio, nem na Bahia, em prticas vitoriosas.

    Libertas quae sera tamen:

    a liberdade imbricada entre a nsia de riqueza e de comando do poder poltico

    Nos idos de 1788-1789, figuras proeminentes da sociedade de Minas Gerais

    fizeram sucessivas reunies, nas quais debateram a situao da Capitania, a

    possibilidade, as estratgias e os alvos de uma sedio, traando as linhas muito gerais

    de uma nova ordem poltica e econmica. Desses homens, 24 foram condenados por

    Dona Maria I em 1792, prevalecendo numericamente, dentre esses ltimos, os que se

    dedicavam a um ofcio que pressupunha uma formao especfica: 17 eram ou clrigos,

    ou advogados, ou dentistas, ou oficiais de tropa paga. Mais da metade (14) dos

    condenados eram senhores de escravos; metade deles (12) dedicava-se agropecuria, 8

    5 Discurso de Boissy DAnglas. In: MATTOSO, Katia de Queirs. Presena francesa no movimento democrtico baiano de 1798. Salvador: Itapu/ Secretaria de Educao e Cultura do Estado da Bahia, 1969, p. 122,-124 e 129. Sobre os textos que influenciaram os Inconfidentes da Bahia, veja: MATTOSO, Katia de Queirs, op. cit.; Idem, Bahia 1798: os panfletos revolucionrios: proposta de uma nova leitura. In: COGGIOLA, Osvaldo. A Revoluo Francesa e seu impacto na Amrica Latina. So Paulo: Edusp/ Novastela: Braslia: CNPq, 1990, p. 341-356; NEVES, Guilherme Pereira das. Bahia, 1798: uma leitura colonial da Revoluo Francesa: a propsito da traduo portuguesa de um texto de Jean-Louis Carra. Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 4 (1): 121-125, jan. jun. 1989.

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  • dos quais conjugavam-na minerao; 4 desenvolviam s a agricultura; 1, apenas a

    minerao6.

    Por que homens como o mineralogista Jos lvares Maciel e os poetas Cludio

    Manuel da Costa, Incio Jos de Alvarenga Peixoto e Toms Antnio Gonzaga, esses

    dois ltimos tambm magistrados, todos eles formados pela Universidade de Coimbra,

    engajaram-se numa conspirao? Por que o fizeram clrigos como o cnego Lus Vieira

    da Silva, o padre Carlos Correia de Toledo, o padre Jos da Silva e Oliveira Rolim e o

    padre Manuel Rodrigues da Costa? O que movera na mesma direo o tenente-coronel

    Francisco de Paula Freire de Andrade, o segundo homem na hierarquia militar da

    Capitania; o alferes Joaquim Jos da Silva Xavier; grandes proprietrios de terras

    minerais e agrcolas como Jos Aires Gomes, Francisco Antnio de Oliveira Lopes, e

    Jos Resende Costa, o pai, e seu filho homnimo; e, ainda, contratantes de impostos

    como Domingos de Abreu Vieira, devedor da Fazenda Real? Por fim, por que tambm

    conspiraram os devedores e contratantes Joo Rodrigues de Macedo e Joaquim Silvrio

    dos Reis, ambos escapando ilesos da devassa e da condenao ordenadas pela Coroa?

    Todos esses homens envolveram-se numa conjura, empunhando a bandeira da

    liberdade, mas o que exatamente entendiam por liberdade?

    Um dos sentidos da liberdade imaginada pelos Inconfidentes insinua-se num

    brinde, ocorrido em So Jos del Rei, hoje Tiradentes, no dia 08 de outubro de 1788,

    quando vrias pessoas se reuniram para o batizado de dois filhos de Incio Jos de

    Alvarenga Peixoto e de Brbara Heliodora. Nessa ocasio, houve manifestaes de

    descontentamento contra o governo, tendo um dos presentes brindado sade de

    Silvrio dos Reis, dizendo-lhe que cedo se havia de ver livre da Fazenda Real7.

    Liberdade, pode-se depreender desse brinde, consiste em escapar do fisco rgio;

    liberdade imbrica, ao mesmo tempo, a economia e a poltica, a nsia pela riqueza e a

    contestao velada da ordem poltica instituda. A liberdade sonhada pelos

    Inconfidentes se inscreveu nessa imbricao, transitando do econmico para o poltico,

    envolvendo a oposio s diretrizes governamentais que vinham de Lisboa e que tinham

    nas autoridades coloniais seus executores.

    certo, assim, que o envolvimento daqueles homens numa conspirao tinha,

    primeiramente, motivaes socioeconmicas. No ltimo quartel do sculo XVIII, a

    6 FURTADO, Joo Pinto. Inconfidncia Mineira: crtica histrica e dilogo com a historiografia. So Paulo: FFLCH-USP, 2000 [Tese de Doutoramento], p. 131.7 GONALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 224-226.

    4

  • economia de Minas Gerais experimentava um processo de diversificao, que produzia

    demonstraes de relativa auto-suficincia, e paralelamente enfrentava o declnio da

    produo aurfera e a mudana de eixo da regio central para o sul, mais precisamente

    para a comarca do Rio das Mortes.

    Existiam, alm disso, motivos de ordem poltica para aqueles homens

    conspirarem: de um lado, sobretudo questes de poltica econmica ou, ao menos, de

    impacto econmico e, de outro, de representao poltica. As restries impostas pela

    poltica imperial da rainha Dona Maria I, dentre elas a proibio s manufaturas e

    principalmente as medidas implementadas e/ou anunciadas por Lus da Cunha Menezes,

    e Lus Antnio Furtado de Castro do Rio de Mendona, Visconde de Barbacena,

    governadores de Minas, respectivamente, entre 1783 e 1788 e 1788 e 1797. Em sua

    maioria apresentando um cunho fiscal e impactos econmicos, tais medidas, de algum

    modo, reforavam o sistema colonial, provocavam danos e suscitavam temores,

    agudizando as tenses polticas entre aquelas figuras proeminentes de Minas e o

    governo local e, em ltima instncia, a prpria Coroa portuguesa.

    Cunha Menezes afastou muitos dos membros da elite local de posies e

    possibilidades lucrativas, lcitas e ilcitas. Assumiu o controle da rede de contrabando,

    da qual antes o padre Jos da Silva e Oliveira Rolim, Cludio Manuel da Costa e Toms

    Antnio Gonzaga conseguiam ganhos. Promoveu muitos de seus protegidos na carreira

    militar e, inversamente, suspendeu os pagamentos de soldos aos soldados e oficiais

    irregularmente listados por Freire de Andrada. Preteriu o alferes Tiradentes em vrias

    promoes e tirou-o do comando do destacamento da Mantiqueira, afastando-o da

    possibilidade de lucrar com o contrabando. Iniciou uma ao para que o sogro de Freire

    de Andrada pagasse seus dbitos com a Fazenda Real. Deu ordem de banimento da

    Capitania ao padre Rolim e, ainda, contrariou os interesses do ouvidor Toms Antnio

    Gonzaga em diversos momentos8.8 Em 1784, como Presidente da Junta da Fazenda, imps Jos Pereira Marques como contratante do arrendamento das entradas, enquanto Gonzaga se ops, defendendo outro candidato; deu a Pereira Marques e a Joaquim Silvrio dos Reis poderes especiais para cobrar dvidas e executar hipotecas, com o que Gonzaga perdeu ganhos correspondentes a custos e remuneraes legais; desrespeitou a autoridade do ouvidor ao dar uma contra-ordem em relao priso de Baslio de Brito Malheiros, acusado de assassinato; e feriu suas suscetibilidades estamentais, fazendo concesses a indivduos de cor ou que exerciam ofcios mecnicos MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidncia Mineira, Brasil Portugal, 1750-1808. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 120-121; SOUZA, Laura de Mello e. Os ricos, os pobres e a revolta nas Minas Gerais do sculo XVIII (1707-1789). Anlise & Conjuntura, Belo Horizonte, 4 (2-3): 35, mai./dez. 1989; e GONZAGA, Toms Antnio. Cartas Chilenas. In: PROENA FILHO, Domcio (Org.). A poesia dos Inconfidentes: poesia completa de Cludio Manuel da Costa, Toms Antnio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 809, 833, 836 e 889. A animosidade de Gonzaga com Menezes tinha tambm motivaes particulares: o governador tomara a amante do ouvidor, Maria Joaquina Anselma de Figueiredo (GONALVES, Adelto,

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  • As instrues trazidas pelo Visconde de Barbacena, passadas por Martinho de

    Mello e Castro, ministro de Dona Maria I, em 1788, continham medidas para aumentar

    a receita e ampliar a dependncia da economia mineira em relao a Portugal. Tais

    medidas afetavam especialmente os rendimentos dos clrigos, a autonomia dos

    magistrados, a riqueza dos arrematadores de impostos e, ainda, as condies

    econmicas do povo em geral. Neste ltimo caso porque se cogitava a decretao da

    derrama: obrigao, extensiva toda a populao, de complementar as 100 arrobas

    anuais de ouro atravs do pagamento per capita, soma essa devida ao fisco e que no

    estava sendo paga. Todo esse rol, obviamente, desagradava aos arrematadores de

    impostos, aos magistrados, aos clrigos, aos envolvidos com o contrabando e, ainda, s

    Cmaras e s gentes no geral.

    A isso se somava o fato da regio Rio das Mortes encontrar-se sub-representada

    politicamente, na medida em que localidades como Campanha do Rio Verde, Borda do

    Campo e Igreja Nova no possuam o status de vila, no tendo, assim, cmaras9.

    Significativamente, dos 24 rus condenados pelo crime de Inconfidncia, 14 eram da

    comarca mais rica, a do Rio das Mortes, os quais, ademais, eram os mais ricos e os

    maiores proprietrios de escravos.

    Esses fatos todos fizeram com que a idia de liberdade, bem como sua

    amplitude, transitasse do mbito econmico para o campo da gesto do poder. A

    imbricao do poltico ao econmico encontra-se sintetizada numa afirmao feita pelo

    alferes Joaquim Jos da Silva Xavier. Segundo Tiradentes, os mazombos [isto , os

    naturais da Colnia] tambm tinham valimento e sabiam governar; e que dando a sua

    terra tantos haveres, se achavam pobres por lhe tirarem tudo para fora, mas que a

    haviam de pr em liberdade, que s esperavam se botasse a derrama, pois que a terra

    no podia pagar e que tudo ia para o Reino10. Nessa afirmao v-se, primeiramente,

    uma percepo econmica, aquela segundo a qual a terra comportava tantos haveres,

    sendo, portanto, compreendida como potencialmente rica. A isso, mistura-se uma crtica

    velada, seno ao sistema colonial, ao menos poltica tributria da metrpole em

    relao Colnia: os mazombos seriam pobres por lhe tirarem tudo para fora, ou seja,

    devido ao fato da riqueza ser drenada para o Reino, sendo a derrama algo impossvel de

    pagar. Essas idias complementavam-se com a crena na capacidade de governar dos

    op. cit., p. 153 e 217).9 FURTADO, Joo Pinto, op. cit., p. 214.10 AUTOS de Devassa da Inconfidncia Mineira [ADIM]. 2 ed. Braslia: Cmara dos Deputados: Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980, vol. 1, p. 124.

    6

  • mazombos e, por fim, com o anncio de um movimento poltico pelo qual a terra seria

    posta em liberdade, sendo essa conquista associada decretao da derrama, medida

    que demarcava um arrocho tributrio, o que, conforme o alferes e outros conjurados

    disseram vrias vezes, acirraria os nimos das gentes, colocando-as ao lado de uma

    sedio. A liberdade surgia, portanto, de uma anlise e uma compreenso que

    transitavam do econmico para o poltico: confunde-se com uma ruptura poltica, que

    seria desencadeada tendo como estopim um arrocho tributrio; ruptura esta, ainda, cujo

    contedo no declarado, mas que claramente anuncia o fim da pobreza, a realizao de

    um potencial de riqueza.

    Sob as inspiraes assinaladas no incio deste artigo e premidos pelo anseio de

    garantir e ampliar as possibilidades de enriquecimento para si mesmos e para sua

    ptria, nutrindo ambies em relao gesto do poder, os conjurados de Minas

    Gerais defendiam liberdades de carter econmico e liberdades polticas. Do ponto de

    vista econmico, primeiramente, advogavam a liberdade de comrcio, a qual, segundo

    Tiradentes, alaria o ouro ao seu legtimo valor, fazendo com que se tornasse

    desnecessrio contrabande-lo. O livre-comrcio, esperava-se, ademais, granjearia o

    apoio das potncias estrangeiras, possivelmente interessadas em ter liberdade de

    negociar nos portos da Amrica, tendo portanto uma conotao tambm poltica11.

    Liberdade, alm disso, significava para os Inconfidentes pr abaixo os limites at ento

    estabelecidos extrao dos diamantes, tornando-a a livre; implicava, ainda, a

    destinao dos dzimos aos vigrios e a alforria para alguns cativos, proposta esta

    motivada por fatores tticos era possvel que os escravos, para conseguirem a

    liberdade, tomassem o partido contrrio da sedio e que no contava com o

    consenso12.

    Os Inconfidentes propunham mudanas polticas cujo contedo fica difcil

    precisar com rigor, mesmo porque eles mesmos contemplavam alternativas diversas,

    11 VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808 O Imprio Luso-Brasileiro e os Brasis. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 47-48.12 Alvarenga Peixoto e o padre Correia de Toledo defenderam a alforria dos mulatos e dos crioulos (isto , negros nascidos na Colnia), inscrevendo-a numa estratgia de confronto com a metrpole; outros Inconfidentes, contudo, posicionaram-se contra a medida. lvares Maciel afirmou que os servios das Minas ficariam muito mal com a abolio da escravido; paradoxalmente, Maciel familiarizara-se na Inglaterra com a produo fabril e o trabalho assalariado (ADIM, vol. 5, p. 330 e FURTADO, Joo Pinto, op. cit., p. 98-101). As liberdades econmicas propugnadas pelos Inconfidentes, bem como a associao entre a sua falta e a situao de pobreza e s crticas veladas ou explcitas tributao ecoam idias presentes na obra j citada do abade Raynal. certo, porm, que as crticas tributao encontram reforo em obras de histria referentes Restaurao Portuguesa, nas quais se atribui a aspectos fiscais um papel importante na caracterizao do domnio espanhol como tirnico e, por conseguinte, na legitimao do levante dos portugueses contra o mesmo.

    7

  • liberdades distintas. certo que implicavam o fim da tirania representada pelas

    medidas tomadas pelo governo da Capitania. A oposio tirania, de forma mais

    genrica, sem ter claramente um sentido anti-colonial ou, muito menos, envolver uma

    oposio Coroa portuguesa, encontra-se claramente nas Cartas Chilenas, de Toms

    Antnio Gonzaga13. Outros exemplos so os pronunciamentos feitos pelo Tiradentes a

    favor da liberdade. O alferes criticava o Vice-Rei do Brasil, dizendo que no podia

    habitar na cidade do Rio de Janeiro, porque eram tantas as violncias que o

    Excelentssimo Senhor Vice-Rei praticava que todo o povo estava aflito e desesperado,

    de tal sorte que, se houvesse um que gritasse Viva a liberdade, todo o resto o seguia 14 Tiradentes, porm, queixava-se amargamente dos Governadores destas Minas: que

    se achavam assoladas e que j se faziam intolerveis os seus despotismos,

    classificando Lus da Cunha Menezes como um demnio e dizendo desejar que assim

    tambm fosse o Visconde de Barbacena, pois isso legitimaria a ecloso de um levante,

    com a subseqente instalao de uma repblica15. A recusa tirania, portanto, assumiu

    tambm contornos mais definidos: a instalao de uma Repblica em Minas Gerais,.

    Nessa Repblica, haveria um parlamento central e vrios parlamentos locais, que no

    parecem ser seno as cmaras j existentes das vilas, projeto este que aparece nas falas

    de Tiradentes e tambm de outros conjurados16. No se dizer que essa via republicana

    tenha sido a tendncia dominante entre os Inconfidentes, mas o fato de ser aventada

    indica que havia, em algum grau, propsitos decididamente anti-coloniais e anti-

    monrquicos.

    Contraditoriamente, no entanto, a variante monrquica tambm foi cogitada.

    Enquanto Tiradentes, Alvarenga Peixoto e Joaquim Silvrio dos Reis, o traidor dos

    Conjurados de Minas, aludiam vagamente transformao da Capitania num Imprio

    florente17, o cnego Lus Vieira da Silva sonhava com a constituio de um Imprio

    13 Nas Cartas Chilenas de Toms Antnio Gonzaga, obra em que se costumou enxergar h at bem pouco tempo influncias ilustradas pela denncia que faz da tirania e, inversamente, pelo que apresenta como o modelo do bom governo, ntida a adeso s idias da Segunda Escolstica. L esto a compreenso de que o soberano no pode tudo, de que deve respeitar as leis, as diferenas de direito e as hierarquias no interior da sociedade, a capacidade dos povos de pagar os tributos; necessita procurar a felicidade do reino, repartir com justia prmios e castigos (VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808 O Imprio Luso-Brasileiro e os Brasis, op. cit., p. 52-53). 14 AUTOS de Devassa da Inconfidncia Mineira [ADIM]. 2 ed. Braslia: Cmara dos Deputados: Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980, vol. 1, p. 220.15 ADIM, vol. 1, p. 200. Tiradentes dissera que, antes Barbacena, fosse um demnio; porque se disporiam as coisas ao estabelecimento de uma Repblica: e que agora com a nova derrama se desesperariam os povos para fazer algum levante (ADIM, vol. 5, p. 48).16 Ibidem, vol. 5, p. 33, 48 e 180-181 e vol. 1, p. 156 e 251. 17 Ibidem, vol. 5, p. 125, 251 e vol. 1, p. 169, 199 e 203.

    8

  • Luso-Brasileiro com sede na Amrica, isto , com a transferncia da Corte portuguesa

    para a Colnia. Nesta ltima proposta v-se explicitamente a defesa da via monrquica,

    da manuteno da submisso dinastia de Bragana e da preservao dos laos, embora

    invertidos, com a ptria me-portuguesa18. Tal ideal foi esboado tambm por Incio

    Jos de Alvarenga Peixoto quando, j preso sob acusao de Inconfidncia, rogava a

    Dona Maria I que viesse ser aclamada no Rio de Janeiro19.

    Essas opes distintas que emergem das falas dos diferentes conjurados anti-

    tirania no genrico e anti-tirania confundida com a implantao de uma Repblica ou de

    um Imprio Luso-Brasileiro sediado na Amrica sinalizam uma indefinio poltica.

    Ecos dessa ambigidade foram as discusses sobre a bandeira a ser adotada. Na casa de

    Cludio Manuel ou de Gonzaga, assim, falou-se em umas bandeiras, que o Alferes

    Joaquim Jos da Silva Xavier tinha ideado para servirem na nova premeditada

    Repblica, que eram trs tringulos enlaados em comemorao da Santssima

    Trindade20. Ento, se lembrou o Doutor Cludio Manuel da Costa das bandeiras da

    Repblica Americana Inglesa, que era um gnio da Amrica, quebrando as cadeias com

    a inscrio Libertas aquo Spiritus e que podia servir mesma21. Divergindo da

    sugesto, Alvarenga Peixoto disse que seria pobreza o uso dessa inscrio, tendo,

    ento, Cludio replicado que podia servir a letra Aut libertas, aut nihil22. Alvarenga,

    no entanto, apresentou aquilo que pareceu agradar aos demais: se lembrou do versinho

    de Virglio Libertas quae sera tamem que ele achou, e todos os que estavam

    presentes, muito bonito23. Se toda essa discusso traduzia uma patente simpatia dos

    Inconfidentes de Minas pelos norte-americanos, sua causa, suas conquistas e sua

    repblica, contudo, no significava que os mesmos fossem ao extremo de querer

    meramente copi-los. A adeso Amrica, ao que parece, prendia-se aquilo que parecia

    ser mais essencial e elemento comum a todas as inscries latinas descartadas: a

    liberdade. O contedo poltico dessa, enfim, no era clara e definitivamente

    republicano, confundindo-se com uma expectativa seno propriamente de romper os

    grilhes que atrelavam Minas a Portugal, pela via de uma Repblica Independente, ao

    18 O cnego Lus Vieira da Silva afirmou que, se no tempo da aclamao do Senhor Rei Dom Joo IV, viesse esse Prncipe para o Brasil, que a esta hora se acharia a Amrica constituindo um formidvel Imprio; e que ainda seria felicssimo este continente se viesse para ele algum dos prncipes portugueses; mais, que a suceder assim, sempre corria risco de o quererem c aclamar; e que o melhor de tudo seria mudar a Rainha a sua corte para a Amrica (ADIM, vol. 1, p. 158).19 VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808 O Imprio Luso-Brasileiro e os Brasis, op. cit., p. 59.20 ADIM, vol. 5, p. 122.21 Ibidem, loc. cit.22 Ibidem, loc. cit.23 Ibidem, loc. cit.

    9

  • menos de afroux-los, pelo rearranjo no poder local ou pela instituio de um Imprio

    Luso-Brasileiro com sede na Amrica. Um denominador comum, enfim, subsiste a

    essas propostas: ou a conquista de autonomia poltica plena para a Capitania de Minas

    Gerais, ou, ao menos, o cerceamento do que se compreendia como desmandos do

    governo local. Algo, ademais, era-lhes subjacente: a compreenso de que a falta de

    liberdade poltica, a subordinao das Minas a Lisboa, tinha conseqncias econmicas

    prejudiciais. Para os Inconfidentes, por conseguinte, a liberdade poltica, correlata e

    necessariamente, remetia possibilidade de enriquecer-se enquanto indivduos e, ao

    mesmo tempo, enquanto ptria, respondendo assim aos interesses mais imediatos dos

    que a anunciavam e, ao mesmo tempo, queles que se imaginava, de um modo um tanto

    abstrato, enraizarem-se em uma demarcao territorial que no era seno o espao da

    prpria capitania de Minas Gerais.

    Utopias no Rio de Janeiro em 1794:

    a liberdade como o avesso do Antigo Regime

    A denominada Inconfidncia do Rio de Janeiro de 1794 resumiu-se a conversas,

    discusses, algumas ocorridas em espaos pblicos, outras em locais privados. No

    comportando nenhuma ao quer contra o governo local, quer contra a Coroa

    portuguesa, quer contra o domnio colonial, a Inconfidncia do Rio de Janeiro, contudo,

    encerrou utopias. Utopias que possuam a peculiaridade de levantar a bandeira da

    liberdade como o avesso do Antigo Regime24.

    Quem foram os acusados de Inconfidncia? Como j se afirmou no incio deste

    artigo, tratava-se de gentes cujas origens encontravam-se num espectro social mais

    amplo. Dos onze acusados, naturais da Amrica e do Reino, predominantemente

    homens maduros e solteiros, dois pertenciam camada de proprietrios de bens de raiz,

    ambos brasileiros de nascimento: Francisco Coelho Solano da Silva e o bacharel

    Mariano Jos Pereira da Fonseca, ento com cerca de 20 anos, conhecido como Biscoito

    e que, na maturidade, seria figura proeminente da nobreza imperial. Havia, alm disso,

    quatro artesos, todos eles portugueses: o marceneiro Joo da Silva Antunes, o sapateiro

    Joo S da Conceio, o ourives Antnio Gonalves do Santos e o entalhador Francisco

    Antnio Lisboa. Reinol tambm era o mdico Dr. Jacinto Jos da Silva. Ao lado deles,

    figuravam o estudante Jos Antnio de Almeida, o mais jovem de todos, e dois

    24 VILLALTA, Luiz Carlos, op. cit., p. 69-70.

    10

  • professores rgios: o poeta Manuel Incio da Silva Alvarenga e Joo Marques, professor

    de grego25.

    A concepo de liberdade que os movia encontra-se sintetizada na Orao feita

    por Jos Antnio de Almeida e recitada na aula de Retrica no ms de outubro do ano

    de 1794, de que era mestre o poeta Manuel Incio da Silva Alvarenga. Essa orao, de

    acordo com o parecer do juiz da devassa aberta contra os acusados, inspirava-se em

    Mably26, trazendo uma concepo de liberdade do homem, em ltima instncia, como

    originada na natureza e em seu autor, o Ente infinito e perfeitissimamente sbio.

    Segundo a Orao, este ltimo criara o homem, para que seu eterno poder fosse de

    alguma sorte conhecido por uma criatura que, dotada de uma alma racional,

    soubesse admirar a sua grandeza e gratificar os seus benefcios27. Providenciara,

    ademais, tudo o que deveria servir de recrear o esprito do homem, sustentando seu

    corpo e recreando seu esprito. De todas as maravilhas criadas pelo Onipotente,

    entretanto, nenhuma era mais valorizada pelo homem do que sua prpria vida28. Uma

    coisa, porm, animaria o homem a tirar a vida a si prprio, este bem que estimaria

    mais do que tudo: ele arriscaria a vida excitado por um valor29, o princpio de que a

    ningum devia estar sujeita a sua vida seno vontade daquele que lhe deu o ser, e que

    em nenhum tempo deveria sujeitar a sua liberdade aos rigores do seu semelhante, a

    quem no deve, nem cooperou a sua essncia30. A Orao conclu-se com um pesar:

    qual no deve ser a fraqueza e vileza dos espritos daquele que chega a submeter-se

    totalmente s disposies de outrem, na considerao de ser ele uma criatura a quem

    ainda seu Supremo Senhor concedeu a livre disposio da sua vontade! e que esse

    mesmo que o pretende oprimir e abater no recebeu da mo do seu criador outra alma

    mais perfeita que lhe possa infundir uma natural superioridade!31. A liberdade, assim,

    era sinnimo de recusa opresso, implicando a compreenso de que haveria uma

    igualdade inata a todos os homens, intrnseca prpria criao, considerando-se

    aviltante sujeio a outrem.

    A partir dessa concepo de liberdade, os Inconfidentes do Rio de Janeiro

    puseram em xeque um ou mais elementos do Antigo Regime. Conforme a avaliao do

    25 Ibidem, p. 77-78.26 AUTOS de devassa: priso dos letrados do Rio de Janeiro (1794). Niteri: Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: UERJ, 1994, p. 147-148.27 Ibidem, p. 212.28 Ibidem, p. 212-213.29 Ibidem, p. 213.30 Ibidem, p. 213.31 Ibidem, p. 213.

    11

  • Conde Resende, Vice-Rei do Brasil, os acusados haviam se esquecido de si e da honra

    do nome portugus, que at o presente consistia principalmente no amor e fidelidade

    aos nossos clementssimos soberanos, do que se subentende que rejeitavam a

    monarquia absolutista portuguesa32. Os acusados, alm disso, em casas particulares e

    nos lugares pblicos da cidade do Rio de Janeiro, teriam debatido, naquele contexto

    de guerra das potncias europias contra a Frana, questes sobre o governo pblico

    dos estados, proferindo algumas pessoas afirmaes como as de que os reis no so

    necessrios; que os homens so livres e podem, em todo o tempo, reclamar sua

    liberdade; que as leis por que se governava a nao francesa seriam justas e que o

    mesmo que aquela nao praticou se devia praticar neste continente, ou seja, alm de

    se oporem ao absolutismo, os implicados refutavam a monarquia, advogavam a

    liberdade do homem, defendiam as leis francesas e sua implantao na Amrica33.

    Completava, ainda, o Vice-Rei, informando que os Inconfidentes achavam que os

    franceses deviam vir e conquistar o Rio de Janeiro e que a Sagrada Escritura, assim

    como d poder aos reis para castigar os vassalos, o d aos vassalos para castigar os

    reis: os direitos dos reis e dos vassalos eram colocados, portanto, em condies de

    igualdade, derivados ambos que eram da Bblia34.

    De fato, o entalhador Francisco Antnio defendeu que o rei era como qualquer

    de ns; que matar o rei no era pecado, sendo bem feito o que sucedera a Lus XVI

    com o que, alis, concordava o no-acusado Jac Munier35. O sapateiro Joo da

    Conceio afirmou que a lei dos franceses era justa e santa porque fora tirada da

    Sagrada Escritura, a partir do que conclua que era legtimo o rei matar os homens e

    tambm o inverso, sacralizando-se, assim, o direito dos governados36. Outros, ainda,

    prognosticavam o fim da monarquia,37 ou ento, passavam da oposio ao absolutismo

    na Frana para a crtica da monarquia no mundo luso-brasileiro e, ainda, resvalando da

    Coroa para a religio, mais precisamente para pronunciamentos contra o fanatismo

    religioso. Assim, Manoel Incio da Silva Alvarenga e outros acusados, falando sobre a

    liberdade, depois de haverem lido alguns discursos na lngua francesa contra a

    Soberania dos Monarcas, disseram que o nosso reino estava entregue a frades,

    censuravam alguns procedimentos do prncipe regente Dom Joo, avaliando-os como

    32 Ibidem, p. 37.33 Ibidem, loc. cit.34 Ibidem, loc. cit.35 Ibidem, p. 44, 53 e 69.36 Ibidem, p. 41-42.37 Ibibem, p. 41 e 63.

    12

  • nascidos fanatismo38. Atingiam tambm, em cheio, a prpria monarquia portuguesa e,

    ainda, aliavam a isso um outro importante elemento, a repulsa influncia dos fidalgos:

    Manoel da Costa Santos considerava que os reis, aconselhados pelos fidalgos,

    procuravam-se apoderar dos bens do seus vassalos, motivo pelo qual simpatizava com a

    eliminao dos mesmos na Espanha e Frana39. Francisco Antnio ia alm, pois

    classificava os reis portugueses como corruptos, em razo da ascenso que tinham sobre

    eles os fidalgos, e defendia que essa situao fosse superada, no Brasil, com a vinda das

    leis francesas40. Joo Marques, depois de considerar injusta uma ao de Dom Joo,

    sentenciou que o rei deveria ser enforcado quando cometesse injustia, do que se deduz

    que defendia o regicdio tambm em relao ao soberano portugus41.

    Tudo isso, enfim, vem corroborar as afirmaes do Vice-Rei. Escapou aos seus

    olhos, porm, um importante aspecto: houve quem associasse entre o acusados e entre

    os que no estavam includos entre eles liberdade e igualdade. Por instaurarem a

    igualdade, as leis francesas mereciam a admirao do entalhador Francisco Antnio; o

    no acusado Joo Veloso, homem pardo, disse que gostaria de estar na Frana para

    gozar da minha liberdade, do que se pode inferir que tomava esta ltima no sentido de

    igualdade, visto que ele vivia numa sociedade em que havia discriminao dos homens

    de cor42. Liberdade e igualdade levaram alguns dos supostos Inconfidentes a

    defenderem a Repblica. Nada veemente, essa defesa parece ter seduzido mais aqueles

    que ocupavam uma posio inferior na hierarquia social: Joo Antunes, marceneiro,

    para quem as repblicas pagavam tudo o que tiravam aos vassalos e o governo de

    muitos era melhor porque sabiam mais vrias cabeas do que uma s; Antnio

    Gonalves dos Santos, o Passageiro Bonito, ourives, considerava a repblica melhor

    que o governo monrquico43.

    O Conde de Resende, saliente-se, temia profundamente as conseqncias

    muitos perigosas que tais mximas poderiam produzir e que seria conveniente

    atalhar44. Aqui haveria algum exagero? O prprio Vice-Rei e o juiz da devassa

    admitiam que jamais se deixara o terreno das palavras para a ao, que no se concebera

    nenhum projeto de rebelio. De fato, no se cogitou fazer um levante. Limitando a

    38 Ibidem, p. 38.39 Ibidem, p. 43.40 Ibibem, p. 53 e 82.41 Ibibem, p. 46-47.42 Ibidem, p. 81.43 Ibidem, p. 59, 67 e 69. 44 Ibidem, loc. cit.

    13

  • anlise, alm disso, unicamente s idias, poderemos concluir que nem mesmo o perigo

    compreendido como numa rejeio ao domnio metropolitano, aos vnculos entre

    Portugal e Amrica, deveria ser objeto de muita preocupao do Vice-Rei. Este, na

    verdade, poderia ficar quase totalmente tranqilo pois os acusados raramente esboaram

    uma percepo sobre as especificidades do viver numa Colnia, do ser portugus na

    Amrica e, por conseguinte, muitos menos se opuseram ao domnio metropolitano.

    Embora raras, as percepes dessas especificidades existiram. Mariano Jos Pereira da

    Fonseca, defendendo-se do seu acusador, o frei Raimundo Penaforte, disse que o

    mesmo era inimigo dos brasileiros, denunciando a discriminao dos nascidos no

    Brasil e, de algum modo, deixando entrever a possibilidade de os brasileiros

    contestarem-na45. Numa correspondncia recebida pelo Dr. Jacinto, encaminhada por

    seu amigo e colega de ofcio lisboeta, o Dr. Manuel Jos de Novais de Almeida, em

    1791, este ltimo discordava das reclamaes apresentadas pelo primeiro no sentido de

    que, na Amrica, haveria mais injustias que no Reino, afirmando que isso tambm se

    verificava no centro da Corte, isto , em Lisboa46 o Dr. Jacinto, portanto,

    demonstrava perceber que ser portugus na Amrica era pior do que na Corte.

    Sem terem cogitado nenhuma rebelio, mas feito pronunciamentos e esboado

    sonhos de liberdade que representavam a morte de elementos caractersticos do Antigo

    Regime absolutismo monrquico, fanatismo religioso, preeminncia dos fidalgos e

    discriminao dos homens de cor , os acusados, em suma, mostravam-se atentos ao

    que sucedia na Europa, animados com os sucessos da revoluo francesa, partidrios do

    regicdio. Alguns levaram suas divagaes a um terreno mais abstrato, situando a

    liberdade fora da sociedade humana. Os letrados Silva Alvarenga, Joo Marques,

    Mariano Pereira da Fonseca e o Dr. Jacinto, capitaneados pelo primeiro, sonharam com

    uma repblica de animais nas cabeceiras ou serto do rio Tagea. Repblica

    imaginria, expressava a necessidade de Silva Alvarenga, nas horas de melancolia, de

    evadir-se da sociedade em que vivia, negando, com isso, os fundamentos em que se

    assentava; seria uma repblica de animais, porque era melhor viver entre os bichos do

    que entre os homens maus47. A Repblica do Tagea, na realidade, evocava s

    45 Ibidem, p. 156-157.46 Na carta escrita por Almeida em 24 de fevereiro de 1791, o missivista apresenta sua Utopia, localizada no longnquo ano de 2440, momento em que os direitos do homem seriam respeitados, inexistiriam privilgios sociais e polticos para alguns grupos, os filsofos seriam reis, haveria tolerncia religiosa e estariam constitudas duas repblicas na Amrica, uma ao norte e outra, ao meio dia. Em 2440, pode-se supor, portanto, a Amrica Portuguesa constituiria uma Repblica, separada de Portugal, segundo o Dr. Novais de Almeida (Ibidem, p. 119-120)47 Ibidem, p. 145 e 167-168.

    14

  • crticas de Rousseau sociedade: para o grande filsofo das Luzes, o homem, ao

    abandonar o estado de natureza, ingressar na cultura e sujeitar-se a uma forma coercitiva

    de sociedade, entregara-se aos vcios, corrompendo sua natureza, valorizando o amor

    prprio e a vaidade e empenhando-se em dominar os seus semelhantes48. Essa Repblica

    imaginria, assim, apontava para uma liberdade existente fora das fronteiras da

    existncia humana, segredando simpatias por uma modificao radical e, ao mesmo

    tempo, por mais paradoxal que possa aparecer, abstrata da sociedade.

    Revoluo na Bahia: Liberdade e Igualdade

    Trinta e trs homens presos, fugidos ou mortos foram acusados de

    Inconfidncia na Bahia, sendo que 22 deles eram reconhecidamente pardos, dois negros;

    dez eram simples artesos; dezesseis no tinham bens, encontrando-se oito

    provavelmente nas mesmas condies; 9 deles eram escravos. Dentre esses homens de

    condio social bastante precria, destacavam-se Luiz Gonzaga das Virgens, pardo,

    liberto, soldado granadeiro do 1 regimento de linha; Lucas Dantas dAmorim Torres,

    pardo livre, soldado do regimento de artilharia; Joo de Deus do Nascimento, pardo

    livre, alfaiate cabo da esquadra do segundo regimento de milcias e Manoel Faustino

    dos Santos Lira, pardo forro, alfaiate. Ao lado deles, figuravam pessoas de origem

    social mais abastada: Cipriano Jos Barata dAlmeida, cirurgio, bacharel em filosofia

    pela Universidade de Coimbra e seu irmo Jos Raimundo Barata DAlmeida;

    Francisco Moniz Barreto dArago, professor de Gramtica Latina na Vila de Rio das

    Contas; e Hermgenes Francisco de Aguilar Pantoja, tenente do 2 regimento da linha49.

    Esse perfil d uma idia da abrangncia social do movimento, ainda que oculte o

    envolvimento de algumas pessoas oriundas dos estratos superiores da sociedade baiana,

    como o padre Francisco Agostinho Gomes, rico comerciante; o cnego Salvador Pires

    de Carvalho e Albuquerque; Luiz Gercente e Jos Porfrio, dentre outros. Essas

    ausncias devem-se ao fato de o governador da Bahia Dom Fernando Jos de Portugal

    ter conduzido a devassa, aberta para investigar a conjura, de modo a demonstrar que

    para ela no concorreram pessoas de considerao50.

    48 CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustracin. Trad. Eugenio maz. 2 ed. Madrid: Fondo de Cultura Econmica, 1993, p. 177-181.49 A INCONFIDNCIA da Bahia: devassas e seqestros [IBDS]. Separata de Anais da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1931,vol. 1, p. 90-91.50 IBDS, op. cit., vol. 1, p. 57-61.

    15

  • As origens e o teor da idia de liberdade cultivada pelos conjurados baianos,

    homens de maior e menor distino, encontram-se traduzidos com bastante clareza em

    um poema cuja autoria atribuda ao professor Francisco Muniz Barreto, poema este

    decorado por alguns outros, dentre eles Lucas Dantas. Segundo o poema, Igualdade e

    Liberdade encontravam-se no sacrrio da razo, preenchendo, ao lado da Justia, o

    meu corao:

    Igualdade e liberdadeNo sacrrio da razoAo lado da s JustiaPreenchem o meu corao51

    Liberdade e igualdade, ademais, seriam leis infalveis e imprescritveis de Deus, na

    medida em que os entes marcar-se-iam pela eqidade, tendo em comum uma mesma

    causa motriz, iguais sensaes, rgos e precises:

    Se a causa motriz dos entesTem as mesmas sensaesMesmos rgos e precisesDados a todos os viventesSe a qualquer suficientesMeios da necessidadeRemir deu com eqidadeLogo so imprescritveisE de Deus Leis infalveisIgualdade e liberdade.52

    Tal dogma, sendo seguido por todos, tornaria bem aventurado o povo rude e

    polido; florescera nos Estados Unidos da Amrica, fora imitado pelos franceses, que,

    afoitos, entraram no sacrrio da razo:

    Se este dogma for seguido,E de todos respeitado,Far bem aventuradoAo povo rude e polido.E assim que florescidoTem da Amrica a Nao!Assim flutue o PendoDos franceses, que a imitaramDepois que afoitos entraramNo Sacrrio da razo.53

    51 Francisco Muniz Tavares apud. TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798: a conspirao dos alfaiates. So Paulo: Pioneira, 1975, p. 89-91.52 Ibidem, loc. cit.53 Ibidem, loc. cit.

    16

  • O poema anunciava a doce comoo que nasceria das futuras venturas dos baianos

    quando viessem a se levantar contra os mil despticos tiranos, ficando, ento, felizes

    e soberanos:

    Quando os olhos dos BaianosEstes quadros divisarem,E longe de si lanaremMil despticos tiranosQuo felizes e soberanos,Nas suas Terras sero!Oh, doce comooExperimentam estas venturasSe elas me que futurasPreenchem o meu corao54

    Em suma, o poema, atrelando-se s Luzes, Revoluo Americana e

    Revoluo Francesa, exprimia uma crtica tirania e associava liberdade e igualdade em

    termos muito prximos aos defendidos pelos acusados de Inconfidncia no Rio de

    Janeiro. No entanto, o poema sinalizava que, ao contrrio do que sucedera na capital do

    Vice-Reino do Brasil, os baianos estavam dispostos a apearem os tiranos do poder,

    ensaiando um projeto de revoluo. Na verdade, movidos por esse propsito, os baianos

    tentaram at mesmo uma aliana com a Frana Revolucionria, de que testemunho o

    projeto de invaso da Bahia apresentado ao governo do Diretrio, aos 24 de agosto de

    1797, pelo comandante Antoine Ren Archer, que estivera meses antes em Salvador55.

    Representantes das elites baianas e pessoas oriundas das camadas populares

    tentaram articular uma revoluo contra o domnio portugus e a Coroa, situados numa

    conjuntura revolucionria em que despontavam os sucessos dos franceses, imersos num

    sistema colonial que restringia as possibilidades de acumulao por parte da camada

    senhorial, marcados pelas barreiras legais que limitavam o desenvolvimento de

    atividades produtivas de tipo urbano pelo povo mecnico e por um recrutamento militar

    que atingia a setores mais amplos da populao, envolvendo pardos e negros, sem

    contudo permitir aos no-brancos ter maiores expectativas de progresso na carreira

    militar e, ainda, colocados diante da contradio entre a prosperidade econmica, dada

    pela alta de preos dos produtos de exportao, e seu efeito inflacionrio na Colnia,

    perverso para aqueles que no se ligavam ao setor exportador, obrigados a lidar com o

    aumento dos preos dos gneros alimentcios sem uma compensao em seus prprios

    54 Ibidem, loc. cit.55 TAVARES, Lus Henrique Dias, op. cit, p. 81-82 e JANCS, Istvn. Bahia, 1798: a hiptese de auxlio francs ou a cor dos gatos. In: FURTADO, Jnia (org.). Dilogos ocenicos. Belo Horizonte: UFMG, 2000 (no prelo), p. 1.

    17

  • ganhos56. Os contornos desse projeto so difceis de precisar, porm sabe-se que o

    mesmo gorou duplamente: por um lado, houve o afastamento das elites, temerosas em

    relao perda de controle das camadas populares e, sobretudo, prisioneiras de

    preconceitos sobre a capacidade de pessoas de baixa-ral promover um levante e, por

    outro, o governo local reprimiu com rigor a tentativa de sedio.

    A formulao, o abandono e a destruio desse projeto de revoluo tm uma

    cronologia. De fins de 1793 at agosto-setembro de 1797, alguns homens de

    considerao manifestaram seu repdio explorao colonial e sua simpatia pela

    Frana e pelos ideais de sua revoluo, formando um pensamento contrrio ao

    absolutismo monrquico, localizando nele os males que afligiam os povos. Essas

    conversas desenvolveram-se dentro de um crculo restrito de familiares e amigos. A

    presena de Antoine Ren Larcher na Bahia, entre fins de 1796 e incios de 1797, fez

    recrudescer a contestao poltica57. Essas reunies, de cunho poltico explcito, deram-

    se inicialmente em residncias particulares, mas avanaram depois para o espao

    pblico, ganhando as ruas, tanto na esfera urbana quanto nas cercanias do

    Recncavo58.

    Algumas pessoas pertencentes s elites, como o padre Francisco Agostinho

    Gomes, o tenente Hermgenes Pantoja, o professor Muniz Barreto e o cirurgio

    Cipriano Barata de Almeida envolveram-se nessas discusses e pronunciamentos, ao

    mesmo tempo em que artesos pobres e escravos miserveis conseguiram ter acesso s

    idias revolucionrias, eivadas de influncias das Luzes e das mximas e notcias dos

    acontecimentos revolucionrios franceses59. Certamente foi nesse momento que o

    soldado pardo Lucas Dantas, por exemplo, conseguiu gravar na memria aqueles versos

    supracitados, de autoria do professor Muniz Barreto60. Nos idos de agosto-setembro de

    1797, D. Fernando Jos de Portugal e Castro, governador da Bahia, informado pelo

    coronel Jos de Mattos Ferreira e Lucena sobre essas conversas, advertiu os

    56 Sobre a situao econmica da Bahia e as tenses existentes em seu territrio, veja sobretudo: JANCS, Istvn. Na Bahia, contra o imprio: histria do ensaio de sedio de 1798. So Paulo: Hucitec: Salvador: UFBA, 1996, p. 57-67 e 90-97 e MATTOSO, Katia de Queirs. Bahia 1798: os panfletos revolucionrios: proposta de uma nova leitura, op. cit., p. 342.57 JANCS, Istvn. Bahia, 1798: a hiptese de auxlio francs ou a cor dos gatos, op. cit., p. 9-10.58 Ibidem, p. 1059 NEVES, Guilherme Pereira das. Bahia, 1798: uma leitura colonial da Revoluo Francesa: a propsito da traduo portuguesa de um texto de Jean-Louis Carra. Acervo, Rio de Janeiro (4-1):121-125, jan. jun. 1989, p. 122.60 TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798, op. cit., p. 89-91

    18

  • participantes sobre os perigos que corriam, com o que alguns deles saram de

    circulao61.

    A segunda fase estendeu-se do final de 1797 at o incio das prises em 1798.

    Nessa fase, as conversas ganharam um desenvolvimento relativamente autnomo em

    relao s elites, cativando alguns soldados e artesos de suas relaes profissionais e

    domsticas62. Nessa ultrapassagem, homens livres socialmente discriminados,

    mulatos, soldados, artesos, ex-escravos e descendentes de escravos conceberam a

    idia de instalar uma repblica que garantisse igualdade63; no incio de agosto de 1798,

    foram afixados em locais diferentes da cidade dez boletins-pasquins sediciosos64. No dia

    12 de agosto de 1798, o governador, tomando conhecimento dos boletins, ordenou a

    abertura de uma devassa para descobrir os autores dos pasquins, tendo-se seguido a isso

    as prises do pardo Domingos da Silva Lisboa e, depois da afixao de dois novos

    boletins, em 22 de agosto, de Lus Gonzaga das Virgens, tambm pardo65.

    Com as prises, comeou a terceira fase do movimento. Nessa fase, as pessoas

    de condio, porventura ainda envolvidas nas conversas de sedio no obstante as

    advertncias anteriores do governador, por medo da represso ou dos rumos que a

    gente ordinria dava iniciativa66, afastaram-se do projeto. A exceo, ao que parece

    nica, foi Jos Raimundo Barata de Almeida, irmo de Cipriano Barata, negociante que

    mascateava pelos sertes67. Nos dias imediatamente posteriores s prises, sucederam-se

    conversas daqueles que provinham dos estratos inferiores da hierarquia social, ficando

    acertado entre eles uma reunio para a noite do dia 25 de agosto, no campo do dique do

    Desterro, durante a qual os conjurados avaliariam se havia nmero suficiente de

    partidrios para realizar o levante ou se, pelo contrrio, esses eram poucos, sendo mais

    conveniente calarem-se68. Essa reunio, no entanto, foi denunciada por Joaquim Jos da

    Veiga e Joaquim Jos de Santa Ana69, tendo os presentes percebido o malogro.

    61 Ibidem, p. 37, 59 e 94-95.62 Ibidem, p. 94-95.63 Ibidem, p. 96.64 Ibidem, p. 19-35.65 Ibidem, p. 36. A priso de Lus Gonzaga parece ter acelerado o movimento. Aps sua realizao, Romo Pinheiro afirmou: nos preciso adiantar este particular, antes que o dito Gonzaga declare as pessoas que nele estavam metida (IBDS, vol. 1, p. 35).66 Sobre o afastamento das elites, veja: NEVES, Guilherme Pereira das. Bahia, 1798: uma leitura colonial da Revoluo Francesa: a propsito da traduo portuguesa de um texto de Jean-Louis Carra, op. cit., p. 124. Segundo esse autor, at s vsperas de 1822, a elite brasileira no planejava uma ruptura com Portugal. Ela recusava apenas os excessos de um sistema colonial agonizante (Ibidem, loc. cit).67 TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798, op. cit., p. 52.68 Ibidem, p. 51.69 Ibidem, p. 57.

    19

  • Que liberdades postulavam esses homens? Nos pasquins-boletins afixados em

    agosto de 1798, vem-se mximas contra a monarquia absolutista portuguesa,

    qualificada como pssimo jugo reinvel da Europa: por ordem da Rainha de Lisboa

    se fariam latrocnios nos ttulos, imposturas, tributos e direitos70. Essas mximas

    traziam implcitos o reconhecimento do princpio segundo o qual todos os homens

    livres seriam cidados e tambm a idia de nao enquanto sinnimo de Estado,

    instaurado pela soberania popular. No continham, entretanto, uma rejeio nao

    portuguesa: o alvo era o trono, o despotismo, o rei tirano, subordinao a

    Lisboa71. Nos pasquins, no entanto, preciso dizer, havia idias contra o jugo colonial e

    defendia-se o livre-comrcio, a elevao dos soldos e o apoio externo para o extermnio

    do pssimo jugo reinvel da Europa. As liberdades, portanto, atingiam dois pilares

    bsicos do Antigo Regime: o absolutismo e o sistema colonial, visto que este tinha no

    monoplio comercial um de seus alicerces. Os conjurados sonhavam, alm disso, com

    uma repblica democrtica, onde os acessos e lugares representativos seriam

    comuns, sem diferena de cor, nem de condio, onde eles ocupariam os primeiros

    ministrios, vivendo debaixo duma geral abundncia e contentamento72. Na revoluo

    preconizada pelos pasquins e pelo discurso preponderante entre os conjurados, frise-se,

    no se colocava a abolio. Segundo Lucas Dantas, a revoluo seria envolveria uma

    guerra no interior da sociedade baiana e instituiria uma sociedade fundada na igualdade

    jurdica entre os indivduos de cores diferentes, um governo democrtico estabelecido

    nos limites da capitania da Bahia e exercido por homens capazes e de maior juzo, no

    importando de que nao. A democracia, assim, fundava-se na crena de que havia

    pessoas mais e menos preparadas para o governo, devendo apenas os mais capazes

    governar; a nao do governante no seria critrio de incluso ou excluso para sua

    escolha73. A igualdade pressuposta na idia de liberdade abraada pelos conjurados da

    Bahia repercutia tambm no mbito militar: o soldado pardo Lucas Dantas, andava

    falando, em revolues, e sistemas de liberdade, tentando persuadir a Jos Joaquim de

    Sirqueira, homem branco, soldado, a segui-lo, representando-lhe a escravido, que

    70IBDS, op. cit., vol. 1, p. 7 e Aviso ao Clero e ao Povo Bahiense indouto. Apud TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798, op. cit., p. 30.71 JANCS, Istvn & PIMENTA, Joo Paulo G. Peas de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergncia da identidade nacional brasileira). In: MOTTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo: SENAC, 2000, p. 145-149 e Aviso ao povo bahiense. Apud TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798, op. cit., p. 24.72 IBDS,vol. 2, p. 170.73 IBDS, vol. 1, p. 262.

    20

  • viviam sujeitos aos seus Coronis, e seus Superiores, e a severidade dos seus castigos74

    .

    Alguns conspiradores radicais estenderam a um universo mais amplo de relaes

    a associao entre as idias de liberdade e igualdade, pronunciando-se contra a

    desigualdade de riqueza e a escravido. O pardo Joo de Deus, conversando com

    Antnio Joaquim de Oliveira que se locomovia sentado em uma cadeira, segurada por

    escravos, acusou-o de no ter medo ao tempo porque seria rico, no quer[endo]

    molhar os ps, ouvindo de Oliveira, em resposta, que seriam mercs do Cu. Joo de

    Deus, ento, retrucou: Est feito, e o tempo vir em que possa ser que eu ande de

    cadeira e vossa merc, de p75. Ao ver passando um homem carregado em uma

    cadeira, Joo de Deus fez outro pronunciamento contra a desigualdade dada pela

    riqueza, dizendo: Grande cousa ter dinheiro; como vai aquele repimpando na sua

    cadeira, e eu que no tenho dinheiro ando a p; e acaso haver tempo que andem a p

    todos, sem serem carregados por criaturas?76. A rejeio desigualdade de riqueza,

    portanto, aos olhos de Joo de Deus, somava-se crtica velada ao escravismo e

    defesa da superao dessa ordem das coisas. Joo de Deus, ademais, defendia a

    liberdade para presos e frades e sonhava com uma igualdade fugidia de riqueza: dizia

    que os revoltosos iriam saquear a cidade, constranger o governador a apoi-los e, caso

    houvesse resistncia dele, iriam mat-lo, destruir ao mesmo tempo todas as Pessoas

    Pblicas, atacar os Mosteiros, franquear aos que quisessem sair, saque-los de todo o

    preciso, arrombar as cadeias, pr os presos e os forados em liberdade, reduzindo tudo a

    uma inteira revoluo, que todos ficariam ricos, tirados da misria em que se achavam,

    extinta a diferena de cor branca, preta, e parda: porque uns e outros seriam sem

    diferena chamados e admitidos a todos os Ministrios e Cargos77. Outro conjurado,

    Manoel Faustino, foi mais explcito nos seus ideais abolicionistas, afirmando que o

    levante teria por fim serem libertos todos os pretos, e pardos cativos, e viverem em

    uma igualdade tal, que no houvesse distino de cores, e assim viveriam todos

    contentes78. Em suma, se certo que, na Conjurao Baiana, egressos da escravido

    ingressaram na sociedade poltica alm dos limites do que poderia ser assimilado pelas

    classes dominantes79, se certo tambm que a abolio no fazia parte do projeto

    74 Ibidem, vol. 1, p. 18.75 Ibidem, vol. 1, p. 55.76 Ibidem, vol. 1, p. 66.77 Ibidem, vol. 1, p. 8.78 Ibidem, vol. 2, p. 182.79 JANCS, Istvn & PIMENTA, Joo Paulo G., op. cit., p. 145-148.

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  • poltico dos conspiradores explicitado nos pasquins e no discurso predominante entre os

    conjurados, verdadeiro tambm que, entre os partidrios da sedio, houve quem

    sonhasse com uma igualdade, quase etrea, de riqueza e quem defendesse que todos os

    cativos pardos, e pretos ficariam libertos sem que houvesse mais escravo algum80.

    Concluso

    As Inconfidncias de fins do sculo XVIII imaginaram liberdades distintas.

    Em Minas Gerais, enfatizou-se a liberdade para produzir e apropriar-se das riquezas,

    instituindo-se o livre-comrcio, promovendo-se uma mera reocupao dos postos de

    mando na Capitania ou ento constituindo-se um governo autnomo, monrquico ou

    republicano. No Rio de Janeiro, a liberdade foi concebida em termos de rejeio a um

    poder monrquico absoluto, ao fanatismo e a uma sociedade assentada em privilgios,

    sem postular a ruptura com Portugal ou uma rebelio. J na Bahia, a liberdade foi

    entendida como superao do vnculo colonial, como instalao do livre-comrcio e

    como eliminao da discriminao contra negros e mulatos, agora cidados.

    Ao final do sculo XVIII, as Inconfidncias, conspiraes ou meras

    divagaes poltico-literrias, colocaram em questo o problema da liberdade,

    apreendendo-o sob diversos ngulos e, ainda, segundo, um repertrio intelectual e

    poltico variado e complexo. Liberdades imaginrias, foram, alm disso, liberdades

    derrotadas, exceo verdadeiramente de uma delas: a idia de liberdade presente no

    projeto de edificao de um Imprio, sob o domnio da dinastia de Bragana, centrado

    na Amrica e, no limite, autnomo em relao ptria-me portuguesa. Esse projeto

    sairia vitorioso mais tarde, em 1808 e em 1822.

    80 IBDS, vol. 1, p. 202-203.

    22