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Lições da Carne ®

Lições da carne

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Lições da carne

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Page 1: Lições da carne

Lições da Carne ®

Anderson Ramos

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Prefácio

Mesmo com a evolução do homem, o que realmente mudou foi a tecnologia não os conceitos. O preconceito é um sentimento que não somente marca a história da humanidade, como também, ainda permanece nos dias atuais. Um pouco mais tolerante talvez.

Com os seus 18 anos, Rodrigo prefere estar longe de casa a conviver com o preconceito de seus pais, por causa da sua opção sexual.

Numa sala de bate-papo qualquer Rodrigo conhece por acaso Carlos. Um rapaz mais velho, que juntos brincam em se encontrarem um dia.

Mas esta brincadeira se torna numa sobrevivência, quando Rodrigo quer construir uma nova vida longe da família e Carlos se apaixona loucamente.

Então Rodrigo vai em busca de seu futuro e do seu amado.

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Lições da Carne

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2005

Capítulo Um – Entre a realidade e um sonho parte 1

Rodrigo acordou assustado, um sobressalto no avião

fora a causa. Sonolento, Rodrigo observou o enorme

aeroporto de São Paulo se aproximar. O avião estava

dando seus últimos passos, com seus motores aspirando e

os freios rangendo.

O interfone soou para todos:

“Senhores passageiros sejam bem-vindos a São Paulo”.

Num breve momento o barulho de aplausos ressonou por

todo o compartimento, até as aeromoças que ajudavam

crianças e demais passageiros a retirarem os cintos,

postaram-se eretas e também aplaudiram.

Rodrigo se deslocou pelo estreito corredor e seguiu

por outro, interligado com o compartimento do avião. O

zunido de varias pessoas falando, rapidamente chegou aos

seus ouvidos. Não precisaria parar na parte da bagagem,

pois não trouxera nada então, bastava apenas seguir até o

telefone público mais próximo.

- Sr. Rodrigo? – chamou-lhe um jovem rapaz vestindo um

impecável smoking preto.

- Pois não?

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- Sr. Carlos me fez garantir que isto chegaria a suas mãos

– finalizou o rapaz mostrando um envelope.

Rodrigo pegou-o e agradeceu. Logo a frente sentou

numa das cadeiras da praça de alimentação e mirou o

envelope. Era branco e não havia nada escrito, exceto em

uma das laterais seu nome.

Abrindo o envelope, seu conteúdo se resumia em

notas de dinheiro e um recorte de papel, contendo um

endereço residencial com o aviso “Problemas, me ligue”

seguido de uma seta, apontando um número de celular no

verso. Rodrigo guardou o envelope e executou um

silencioso sorriso sarcástico, Carlos tinha essa mania de

aprontar surpresas. Pensara tantas coisas quando o rapaz

o chamou.

Voltando o olhar para a praça, uma garçonete se

aproximou e fez a tradicional pergunta:

- Deseja algo senhor?

Rodrigo levantou rapidamente e respondeu:

- Não obrigado. Recordo que devo pegar um táxi urgente –

e se retirou do local.

Do lado de fora do aeroporto, à quantidade de

pessoas aguardando um táxi era absurda, por sorte um

logo parou na sua frente e Rodrigo de imediato entrou.

- Onde deseja ir? – perguntou o taxista rispidamente.

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Rodrigo retirou o endereço do envelope e o repassou.

Após alguns segundos, o taxista contornou o veículo para a

saída do aeroporto.

O táxi era bastante confortável, o que possibilitou

Rodrigo a se sentar de forma que pudesse deitar a cabeça

e fechar os olhos. Seu estomago rangia, ele estava meio

enjoado.

Ao abrir os olhos, Rodrigo percebeu que o taxista o

observava.

- É a primeira vez que vem a São Paulo?

- Sim – respondeu Rodrigo desviando o olhar.

- Aconselho que se sente próximo a janela, vai gostar da

paisagem.

- Obrigado – agradeceu Rodrigo fazendo uma careta de

enjôo.

O táxi parou aguardando a liberação do sinal. Rodrigo

observou as ruas sempre movimentadas, prédios quase

sem fim; o céu num clima turvo sinalizando a chegada do

inverno, com o vento frio percorrendo a cidade.

O taxista fez uma curva falando:

- A viajem irá durar uma hora e meia aproximadamente,

agradeça por o transito não estar horrível hoje – mirou seu

passageiro e acrescentou – se quiser vomitar me avise,

sabe, é menos prejuízo sujar o chão do que o táxi.

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Rodrigo riu baixinho e confirmou silenciosa com a

cabeça, mesmo não sendo a intenção do taxista, este seu

ultimo comentário poderia se considerar uma bela critica,

afinal de contas as pessoas jogavam lixo fora do carro,

como se as ruas fossem os lixeiros.

O tempo transcorreu e mais prédios e pessoas

surgiam e sumiam. A infra-estrutura de alguns prédios e

monumentos era incrível. O taxista fez outra curva e falou:

- Esta vendo este campo ao seu lado? Joguei nele quando

tinha sua idade.

Olhando para o passageiro, o próprio condutor do

veículo um senhor na casa dos sessenta se surpreendeu,

após perceber que o garoto havia adormecido e nem

mesmo Rodrigo percebeu, quando o sono o venceu.

Primeiro tudo ficou escuro, logo após imagens

começaram a passar rapidamente, mas não pertenciam a

São Paulo eram da cidade onde o passageiro nasceu no

interior de Pernambuco. Tudo novamente escureceu e num

rápido flash um forte tapa foi transferido na face de alguém.

O barulho ecoou por sua mente e Rodrigo acordou meio

dolorido.

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Ainda estava no táxi. Nas ruas, os prédios só podiam

ser vistos ao longe, pois em seu lugar, havia prédios bem

menores e diversas casas.

O sonho lhe veio à cabeça e Rodrigo tentou afastá-lo,

não queria recordar...

(a tapa)

...os momentos desagradáveis que teve em sua cidade

natal. Prometeu a si mesmo que não dormiria novamente e

voltou a observar as ruas.

A promessa não foi tão difícil de cumprir, uma vez que

só faltavam alguns quarteirões. E assim o táxi logo parou,

frente a um conjunto de casas, como Rodrigo preferiu

chamar os pequenos prédios.

O taxista permaneceu calado e Rodrigo deu-lhe todo o

dinheiro do envelope.

- O troco – bradou o taxista devolvendo quase metade do

dinheiro, junto do endereço.

Já fora do táxi, Rodrigo agradeceu e virou-se para

entrar no conjunto de casas. O barulho do motor sumiu e

antes que subisse as escadas, observou o recorte. O

numero da porta que estava procurando era 83.

Subindo para o primeiro andar, nenhuma porta

continha o numero descrito. O mesmo ocorreu no segundo,

somente após percorrer metade do terceiro andar que

encontrou a porta com o numero.

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Como haviam combinado pela internet, a chave ficaria

debaixo do tapete de boas-vindas e Rodrigo se encontrava

sob ele neste momento.

Abrindo a porta, mil mundos se enraizaram na mente

de Rodrigo. Vontades de rir, chorar e gritar surgiu de uma

só vez. Rodrigo não acreditava que estava ali, que sua vida

recomeçaria. Entrou e sentiu como tudo estava calado,

tranqüilo e organizado algo difícil de encontrar, quando

apenas um homem reside numa casa.

Era um local pequeno, mas de ótima estrutura. No

lado oposto da entrada havia uma janela e em seu trajeto,

uma espaçosa sala-de-estar. Do lado esquerdo ficava a

cozinha. Rodrigo seguiu até a janela e se apoiou nela.

Deixou que o vento o acariciasse um pouco, queria sentir

toda esta nova liberdade.

A direita havia apenas um pequeno corredor, dando

acesso ao quarto, tão bem espaçoso quanto à sala, duas

janelas e uma porta que acabava numa suíte.

Rodrigo se jogou na cama e fechou os olhos, teve

receio que o mesmo sonho se repetisse, mas a vontade de

recarregar as pilhas do corpo prevaleceu.

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Capítulo Dois – O Passado.

Eram cinco e vinte da manhã quando os primeiros

raios numa pálida quarta, decepavam a neblina nas ruas de

Vitória de Santo Antão. Rodrigo acordou com o alarme

ressonando por todo o quarto, às seis horas iria até a praça

da cidade, pois o mesmo tinha um compromisso com os

idosos.

Faria três meses hoje da criação do seu curso ainda

sem nome. Rodrigo levantou ainda demente, esticando os

braços nas alturas. O celular emitiu um bip e Rodrigo o

pegou de imediato. Era uma mensagem de sua namorada,

Pamela. Começaram um namoro confuso no colégio, fazia

duas semanas que não se viam. Pamela era uma garota

atraente e dona de um defeito, que na opinião de Rodrigo

era inaceitável: nunca tomar a iniciativa. O namoro era

praticamente robótico e isto já estava lhe afetando nos

nervos.

Mirou o horário da mensagem, sendo de cinco

minutos anteriores. Decidiu responder da seguinte forma:

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“Pamela quero acabar o namoro, caso queira conversar

depois aceito. Não reataremos. Beijos.”.

A mensagem foi enviada e após pouco segundos

Rodrigo pensou ter sido muito grosso, mas o relógio logo

mudara seus pensamentos. Passara quinze minutos

pensando sobre o namoro, então preparou uma rápida

vitamina e saiu, não gostava de se atrasar.

Nas ruas caminhou tranqüilo até a praça. Desde que

completou dezessete anos, Rodrigo criou o hábito de correr

pelas manhãs. Vários idosos o observavam, mais da parte

das idosas. Diversas vezes Rodrigo os ajudava nos

exercícios e assim surgiu o curso. Todos se reuniram e

após muita conversa, ficou decidido que Rodrigo seria o

“Personal Boy”. Rodrigo por sua vez, aceitou surpreso e

dias depois a pacata cidade soube da sua existência,

ganhando olhares de gratidão e inveja.

Momentos antes de chegar à praça, Rodrigo refletiu

sobre o fim do seu namoro e se sentiu mais leve, livre.

Aprofundou-se tanto nos sentimentos que quando se deu

conta, uma das senhoras chamava sua atenção:

- Esta tudo bem querido?

Rodrigo se viu rodeado de idosas o paparicando,

então decidiu contar sobre o fim do namoro.

- Estas jovens não sabem mais amar – comentou uma

das senhoras e começaram os exercícios.

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Chegou a escola a tarde descansado e logo avistou

Pamela no corredor, ela o viu e apenas riu.

- Quer conversar agora? – perguntou Rodrigo.

- Não – respondeu Pamela e dobrou o corredor.

As duas últimas aulas se resumiram numa rápida

prova de Português. Rodrigo foi um dos primeiros a

entregá-la e saiu satisfeito. Era mês de Outubro, o mês das

folhas. Percorreu alguns corredores e decidiu beber água,

se aproximando do bebedouro coletivo Rodrigo observou

Pamela conversar com um garoto e ao vê-lo se aproximar,

Pamela começou a conversar no ouvido do garoto.

“Idiota”, xingou Rodrigo. “É assim que descobrimos as

verdadeiras aparências”. Fingiu não vê-la e tomou água.

De volta aos corredores relembrou dos momentos e se

perguntou se Pamela dizia gostar dele de verdade ou era

apenas para manter o status nos corredores.

Tratou de afastá-la da cabeça e mirou o céu. A tarde

estava deslumbrante, folhas caiam aqui e ali. Sentiu-se

espiritualizado, não entendia porque as pessoas eram tão

cegas. Porque elas não conseguiam sentir todas estas

boas energias que as rodeavam.

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Dentro de casa, foi direto para o banho. Não havia

ninguém. Simplesmente agradeceu por poder contemplar o

próprio silêncio, mas não durou muito. Logo sua mãe

chegou, falando num tom alterado com sua irmã:

- Rafaela, não comprarei mais nada. Por mim você fica

sem roupas.

- Mas mãe, eu iria comprar uma blusa que não gostei?

- A blusa ficou ótima, você que é cheia de frescuras...

Rodrigo encostou a cabeça na parede e respirou

fundo. Poderia parecer falta de respeito, mas às vezes até

a família o cansava e os pais se mostravam cegos diante

deste fato.

- Rodrigo vá a padaria comprar pão – bradou sua mãe.

...Comprou o pão, jantou sozinho e se recolheu no

quarto logo após. A casa era para ser um lar de paz, mas

em seu lugar reinava o estresse.

Na penumbra do quarto se viu retraído, seus

sentimentos brotaram e o levaram a horas de solidão.

Sentiu a necessidade de ter alguém, mas quem? Quem

realmente o servia? Tinha corpo para atrair quem quisesse

e isto às vezes o colocava numa situação desconfortável.

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Era impossível chegar num local e não chamar

atenção. Seus cabelos lisos, olhos tão claros quanto

cristais perdidos no fundo-do-mar.

(Aff...)

Seu pensamento cansou de tédio. Estava sempre

rodeado de garotas, mas nenhuma delas o atraía a ponto

de elevar seus sentidos. Deixou-se afundar na cama e

lembrou de algo bem pior, além das garotas interesseiras,

os comentários. Garotos de sua sala e de outras que nem

conhecia chamando-o de gay.

Começou a pensar nos garotos quando a porta do

quarto abriu bruscamente, fazendo-o virar assustado. A luz

foi acesa e a voz áspera do seu pai percorreu todo o

quarto, até então silencioso:

- Você acabou o namoro?

- Sim.

- Gostava dela?

- Sim.

- Então porque acabou?

Fitou seu pai. Por mais que o respeitasse, tinha

vontade de lhe dizer poucas e boas. Mais isto não saia da

vontade, por fim respirou fundo e respondeu:

- Porque não tava dando certo.

- Não estou entendendo nada.

- Pai, deixa a minha vida!

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O silêncio reinou. Já não bastasse a chatice do

colégio, as discussões familiares; tinha que suportar um

pai, que só vinha no seu quarto para discutir os fatos, fatos

de uma vida que ele não se preocupava em acompanhar.

Sua vida se resumia em trabalho e a cada novo ano, se

tornava mais estressado por isso. Seu coração disparou

após a exclamação, mas não se arrependeu.

- Só quero saber o que você quer da vida – falou seu

pai.

- O que eu quero ou o que vocês querem pra mim? –

rebateu Rodrigo e antes que seu pai respondesse,

aumentou o tom: - É sempre assim não é?

- Assim como?

- Toda vez discutimos e depois de algum tempo

voltamos pro mesmo canto.

- Eu só quero o seu bem.

- Não parece.

- Ah! É né? Eu não quero o seu bem, é isso que você

quer dizer?

- Não pai. Apenas estou cansado disto tudo.

- Cansado do quê? Não é você quem trabalha!

- Pai, eu estudo, tiro boas notas. Estou sempre

respeitando suas opiniões e decisões, mas porra me dá um

pouco de espaço para viver. Não existe um porque, acabei

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o namoro e pronto, não vou voltar somente porque vocês

querem.

- Eu não disse que queria – retrucou seu pai num tom

firme.

- Pois não parece!

- Ela ligou hoje de manhã para sua mãe, falando que

você não a valorizava...

- Aquela rapariga fez o quê? – interrompeu Rodrigo

incrédulo.

- Rapariga? Pensei que fosse sua namorada.

- Não é mais!

- E isto lhe dá o direito de chamá-la assim?

- Também não, mas relacionando os fatos ela

realmente se torna uma rapariga.

- Pois eu e sua mãe...

- Não me importa o que você ou mãe fizeram...

- Você esta muito rebelde.

- Não é rebeldia. É ter saco para suportar tudo isto.

- Saco de que, hã? Vamos diga. Eu vou escutar você

agora. Você é o certo e eu o errado.

- Porque vocês sempre distorcem as coisas? É preciso

disto tudo só por causa de um fim de namoro?

- Eu estou fazendo como você quer.

- Não pai. Eu não quero assim.

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- Então o que você quer filho? É isto que quero saber.

Você não gosta de mulher?

- O que tem isso?

- Responda minha pergunta!

- Sim, gosto.

- Mas não parece!

- Quem é você para dizer isto de mim? – berrou

Rodrigo com o coração saltando.

- Quem eu sou? Sou seu pai rapaz – berrou seu pai em

resposta.

Era isto que sempre acontecia. Mais pareciam dois

animais do que pai e filho.

- Não! Você não é meu pai. Só vive para o trabalho...

- Então você quer que eu pare de trabalhar?

- Não pai, apenas quero que o senhor me entenda.

- Então me diga como. Eu quero te entender!

- Você esta sempre distante, só me procura nestes

momentos para brigar. Nunca tenho espaço para falar

nesta casa. As pessoas lá fora me compreendem melhor

do que vocês, eu fui criado pelo mundo não por meus pais,

esta é a verdade.

- Como é?! Quer dizer que não nos preocupamos com

você? As pessoas lá fora vinham falar mal, dizendo que

você era gay, que fazia isso, aquilo. Eu pensava “Meu

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Deus, não acredito que meu filho seja isto. Só quero que

ele seja feliz”.

- Pai, entenda de uma vez por todas. Eu não sou gay. E

não fico com outro homem porque não quero. Não será

papai ou mamãe que irá me proibir, lugares e

oportunidades não faltam! Se eu quisesse ficar, faria de um

jeito que vocês jamais saberiam. Além do mais, tenho

corpo para atrair quem eu quiser, mas prefiro ficar só.

Simplesmente não venha falar do que não entende.

(Sim!)

Exclamou sua mente em meio a um turbilhão de

emoções. Cada palavra saiu como um tiro esperou

dezessete anos para dizê-las, mas agora que as disse

mesmo nervoso, se sentiu mais encorajado por dentro.

- Agora você passou dos limites – bradou seu pai

avançando.

Num rápido salto, Rodrigo foi da cama para chão e

gritou o mais alto que pôde, chegando até a fechar os

olhos:

- PAI NÃO SE APROXIME, SE VOCÊ ME BATER EU

REVIDO. JURO POR DEUS!

Seu pai parou de imediato, ficaram se fitando. As

pernas de Rodrigo tremiam, mas ele não estava nem aí.

Aos poucos, a face do pai de Rodrigo se contorceu, o nariz

ganhou uma coloração avermelhada e as lágrimas caíram.

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- O que?! – exclamou Rodrigo boquiaberto.

(Meu pai... chorando?!)

Sua mãe surgiu e em poucos segundos o retirou do

quarto. Sua irmã ainda passou tentando ver algo, mas

Rodrigo esmurrou a porta bem a tempo na sua cara. O

choro do seu pai pode tê-lo desarmado, mas a raiva que

sentiu deste momento e de tantos outros ainda explodiam

do seu consciente.

Esta era a verdadeira face da sua família. Bases

desequilibradas, desentendimentos. Bastava o novo dia

chegar para que tudo magicamente voltasse ao normal,

ninguém dizia um “A” sobre o que aconteceu, às vezes

Rodrigo se perguntava se havia mesmo acontecido tal

briga. Procurou respostas para tudo aquilo amparado na

janela do quarto, mas acabou por dormir em companhia da

própria agonia.

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Capítulo Três – Primeiro Contato.

Rodrigo despertou com uma mão balançando seus

cabelos. Levantou e primeiro reparou num notebook que

antes não viu ao desabar na cama, então quando se virou

deparou com Carlos sentado.

- Como foi à viagem?

- Dormi na maioria do percurso – respondeu Rodrigo

sonolento.

Carlos riu e se calou.

- Então... Aqui estamos – falou Rodrigo de pés mirando

a cama.

- É – se limitou Carlos a responder.

O silêncio reinou. Cada um avaliava suas

expectativas, era como se toda a intimidade conquistada

pela internet houvesse sumido. O clima ficou tenso, a

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pouca luminosidade do quarto ajudou a esconder a

tremedeira na perna de Rodrigo. Carlos levantou e abriu

uma janela, suas mãos estavam suando frio.

- Então... – começou Rodrigo e se calou ao ver Carlos

fitá-lo.

- Vamos tirar esta noite para conversar. Mas antes preciso

de um banho. Pode ficar a vontade enquanto isso. Volto

num instante – anunciou Carlos e seguiu para a suíte.

Rodrigo mirou o quarto agora vazio e respirou fundo.

Queria se acalmar, mas sua mente não permitia. Uma

adrenalina incontrolável domou seu corpo. Mirou a rua pela

última vez e foi sentar-se na beirada da cama. Tirou o tênis

e aguardou apreensivo.

Teria que reviver as mágoas do passado mais uma

vez. Sendo que nesta, seria apenas algo contado, mas

ainda assim se perguntava se estava pronto o suficiente

para falar tudo o que viveu lá.

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Page 22: Lições da carne

Capítulo Quatro – Natal.

Era dezembro. Em poucos dias Papai Noel entraria

escondido na sua casa e deixaria os presentes. Rodrigo

deu uma gostosa risada quando recordou da lenda, que ele

acreditava, ou melhor, fingia acreditar. Pois com sete anos

flagrou seus pais entrarem no seu quarto com os

presentes, mas por sorte conseguiu fingir o sono.

Agora aos dezessete Rodrigo analisava o Papai Noel.

Mesmo que muitos da sua idade considerassem o Papai

Noel um babaca, Rodrigo nunca cultivou tais sentimentos

mesmo após o tal flagra. Pois, se existiam coisas boas no

natal, estas eram em sua opinião a harmonia e os

presentes.

Ajeitou-se na cadeira enquanto esperava o site

carregar, faltava seis dias para o natal e Rodrigo se

perguntava qual seria seu presente este ano.

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Page 23: Lições da carne

- Vamos lá Papai Noel, me surpreenda – sussurrou

para si mesmo.

“Digite o apelido”, anunciou a janela. Amante da

música; digitou tudo junto e aguardou novamente a

carregar. Hoje a sala de bate-papo estava lotada, foi o

último permitido a entrar. A página carregou por completo.

Uma barra de rolagem exibia uma lista com cinqüenta

apelidos, textos de outros internautas conversando surgiam

constantemente. Rodrigo selecionou uma figura com cara

de solidão e digitou: “Alguém quer teclar com um novo

amigo?”.

E enviou. Mirou o teto e alisou os cabelos, a pergunta

sobre o presente de natal voltou a sua mente. Rodrigo se

surpreendeu, aos dezessete anos não sabia o que queria

ganhar de presente de natal. Suspirou fundo e retornou o

olhar para o monitor, sua mensagem já havia sumido barra

de rolagem acima. Talvez alguém o tivesse respondido.

Subiu ansioso e nada, encontrando apenas sua pergunta.

Repetiu a pergunta e aguardou. Outra vez ninguém

respondeu. Sentiu-se impaciente: “Onde esta a bondade do

natal?”, digitou e enviou. Mais uma vez nada. Este era o

seu presente de natal? Ser rejeitado? Observou a janela do

quarto e foi até ela, deixou o vento acariciar sua face. Não

deveria se estressar por causa de uma mera sala de bate-

papo, existiam muitas outras.

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Page 24: Lições da carne

Retornou para a cadeira e numa última tentativa, subiu

a barra de rolagem. Nenhuma mensagem. Decidiu por fim

sair da sala, mas num último instante antes do clique, uma

mensagem surgiu na tela: “Quer teclar?”.

Rodrigo observou incrédulo, o dedo suspenso no ar.

Como isto poderia acontecer? Procurou o apelido na lista,

respondeu “Sim” e aguardou.

Sorriso: Fala de onde?

Amantedamusica: PE e você?

Sorriso: SP. Qual tua idade?

Amantedamusica: 17 e a sua?

Sorriso: 32.

Amantedamusica: Você faz o que da vida?

Sorriso: Trabalho e você?

Amantedamusica: Apenas estudo. Você é H ou M?

Sorriso: Você tem MSN?

As duas últimas perguntas foram feitas ao mesmo

tempo. Rodrigo aguardou ansioso, mas decidiu responder

primeiro. Enviou seu endereço eletrônico e a resposta

surgiu.

Sorriso: Isto importa para você?

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Page 25: Lições da carne

Rodrigo riu e respondeu: “Não”.

Segundos depois outra janela surgiu, sendo esta do

MSN.

- Você que é sorriso? – perguntou Rodrigo.

- Sim.

Rodrigo saiu do bate-papo e retornou para o MSN,

então sorriso era homem. Não entendeu o porquê, mas

sentiu um rápido frio no estomago.

- Pode ligar a cam? – perguntou Carlos.

- Claro, sem problemas.

Ambos ligaram, mas a de Carlos apareceu primeiro.

Ele sorria de alguma coisa, era um belo sorriso, aliás, era

lindo considerou Rodrigo. Olhou para baixo surpreso e

percebeu que estava excitado.

- O que foi? – perguntou Carlos.

- Hã?

- Você estava olhando para baixo, meio assustado...

Rodrigo recordou que havia ligado a cam e riu.

- Pensei que meu celular tivesse caído no chão –

desculpou rápido.

- Ah! Isto não seria um bom presente de natal

concorda?

- Concordo.

Ambos riram. A conversa fluiu mais um pouco e

Rodrigo escutou sua mãe berrar da cozinha:

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- Rodrigo vá à padaria.

Não queria sair agora, Carlos era muito legal, olhou

perdido para o monitor.

- Seus olhos – comentou Carlos.

- Que têm eles?

- Lente? – perguntou Carlos rindo.

- Não. São naturais.

- Lindos.

- Seu sorriso também.

Riram por um bom tempo.

- Tenho que ir à padaria – informou Rodrigo.

- E eu, tenho que trabalhar.

- Agora à noite?

- Sim, estou no horário da janta. Trabalho até as dez.

- Rapaz trabalhador hein? Até mais então!

- Tranqüilo. Tchau.

- Tchau.

Fechou o MSN e foi à padaria. Estava flutuante, sorria

por nada. Nunca sentiu atração do tipo. Pensou em mil

loucuras e por isso, quase errou na compra do pão.

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Page 27: Lições da carne

Capítulo Cinco – A infância de sonhos perdidos.

Carlos retornou ao quarto e sentou-se na outra

extremidade da cama fitando Rodrigo.

- O que foi? – perguntou Rodrigo procurando entender

aquele olhar.

- Momento engraçado este – comentou Carlos seguindo

até a janela e lá ficou apoiado – meus amigos definiram

tudo isso como algo extremamente desnecessário. Eles

falavam “Você é louco? Já tem sua vida formada aqui.

Procure alguém mais próximo e ele é muito jovem, nunca

se sabe o que pode acontecer de verdade.”.

Rodrigo riu e comentou:

- Compreendo. O que será que eles diriam disto agora?

- Não consigo imaginar – respondeu Carlos rindo. – Estou

bem mais tranqüilo. Tive medo de sair do banheiro e

encontrar meu quarto vazio. Eu também deveria ter tirado o

dia de folga, mas me chamaram para trabalhar de última

hora.

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Page 28: Lições da carne

- Tudo bem.

- O André te entregou o bilhete?

- O rapaz de smoking preto? Sim. Tomei um susto.

- Imagino. Pensei que você iria me ligar.

- Eu já tinha tudo decorado. Endereço, telefone. A

propósito, o troco. – terminou Rodrigo colocando a mão no

bolso.

- Deixa isso pra depois. – Carlos seguiu até o guarda-roupa

e tirou algo - Tenho uma bermuda que deve caber em

você. Esta calça já deve estar desconfortável. Toma – e a

jogou na cama.

Rodrigo mirou Carlos sem graça e não conseguiu

entender porque sentira uma vergonha de despir-se em

sua frente tão de repente. Carlos entendeu o recado e

tornou a apoiar-se na janela, observando o céu rindo.

- Desculpa por isso.

- Tudo bem. Posso sentar aí com você?

- Claro que pergunta! – respondeu Rodrigo sem jeito.

Os dois se acomodaram na cama e ficaram em

silêncio.

- Começou quando eu tinha sete anos... – suspirou

Rodrigo.

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A imagem mudou, agora era de outra sala, mas

diferente do apartamento era um único vão. Ao fundo se

localizava a cozinha e na parede do lado direito da sala,

havia entradas sem portas que davam acesso para os

quartos.

Esta fora à casa de Rodrigo em 1995, já era tarde

próximo do relógio tocar suas doze badaladas noturnas.

Sua avó estava em casa junto de sua mãe, enquanto o

tempo passava Rodrigo tentava imaginar o que aconteceria

desta vez.

Desde os sete anos, Rodrigo aprendeu a lidar com o

fato de que seu pai era um bêbado e que por vezes,

chegava a bater na esposa. Mas agora melhor entendendo

as coisas tomou uma decisão, caso seu pai chegasse

embriagado e fosse bater na sua mãe, Rodrigo faria isto

parar.

A porta abriu violentamente e os gritos ecoaram pela

casa, junto com o homem bêbado vinham os tios e primos

de Rodrigo, provavelmente o encontraram no bar.

Rodrigo ficou um pouco feliz, como estavam todos ali

talvez não houvesse brigas. Mas, bastou seu pai mirar sua

mãe para começar com os xingamentos, Rodrigo podia

sentir seu mau hálito de cerveja de longe.

Sua irmã de apenas seis anos começou a chorar,

então juntas tia e avó levaram Rodrigo, seus primos e sua

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Page 30: Lições da carne

irmã para o quarto. E pediram ao seu primo mais velho

para que não deixasse ninguém sair.

Os gritos ecoavam pela casa. Ora de seu pai

ameaçando quebrar os moveis, ora dos parentes pedindo

em vão para que ele parasse. No quarto Rodrigo observou

sua irmã cair em lágrimas, que logo também escorreram

por sua face. Estava cansado disto, tentou sair mais foi

impedido por seu primo, que segurou seu braço.

Rodrigo nada falou, apenas deu um puxão e correu

parando entre seu pai e sua mãe. Todos se calaram,

Rodrigo observou sua mãe sentada encolhida com o joelho

machucado e mais abaixo estava caída uma bicicleta.

Voltou o olhar para seu pai que caiu num choro sem

fim.

- Eu e sua mãe... estamos conversan... – soluçou seu

pai incapaz de terminar a frase.

Rodrigo apenas o fitava com os punhos cerrados.

- Vem cá dar um abraço no seu pai – soluçou

novamente estendendo os braços.

Rodrigo continuou neutro, as lágrimas que vinham do

seu pai não o atingiam em nada, era pouco para ele sentir

o sofrimento da família, por causa de um vício idiota de

cerveja. Rodrigo olhou para sua mãe e deu um passo para

trás.

- Vem meu filho, seu pai não vai te machucar.

30

Page 31: Lições da carne

- Vá Rodrigo, abraça ele – mandou sua avó indo

amparar sua filha.

Rodrigo desejou que seu pai sumisse, acabaria com

todo este sofrimento, mas em seu lugar caminhou para dar

o abraço e parou surpreendido quando sua irmã surgiu e o

fez primeiro. Rodrigo fechou os olhos e sentiu uma enorme

dor de cabeça, nunca sentiu tanto nojo de seu pai como

naquele momento.

Carlos segurou as mãos trêmulas de Rodrigo e falou:

- Pare agora, relaxe. Você parece fraco.

Rodrigo se endireitou na cama e respirou fundo.

- Eu não consigo entender Carlos como as pessoas

perdem o controle sob si mesmo. Sei lá, às vezes penso no

meu pai e me pergunto o que ele espera da existência

dele? Esses tipos de pessoas só parecem compreender a

vida quando estão próximas a morte e enquanto isto não

ocorre, caminham em companhia da própria ignorância.

31

Page 32: Lições da carne

Capítulo Seis – Presente de natal.

Rodrigo acordou na sua rotina de sempre. Mesmo

sendo hoje o natal, iria se exercitar com os idosos, afinal

eles eram muito compreensivos e às vezes, mais dispostos

que muitos jovens. Cinco e vinte o alarme ressonava como

de costume, levantou-se feliz por dois motivos: o natal e

Carlos.

Tinham conversado sobre muitas coisas, Carlos falou

de seu vida. Relatou que morava sozinho e trabalhava

numa grande empresa, e mesmo que ambos se excitassem

ao se verem pela webcam, a conversa nunca tomou um

rumo obsceno.

Carlos brincou dizendo que queria casar-se e Rodrigo

aceitou a brincadeira. Logo após, começaram a trocar

beijos e outras palavras de carinho, a cada dia a conversa

se tornava mais prazerosa.

Rodrigo achava Carlos o máximo. Era ótimo ter um

homem atencioso como amigo e poder trocar beijos sem

toda essa frescura de ser chamado de gay. Rodrigo

imaginava o que aconteceria caso seus pais descobrissem

32

Page 33: Lições da carne

sobre esta amizade, mas logo descartava tal pensamento,

não estava fazendo nada de ruim.

Chegou à praça quinze minutos adiantado e sentiu a

prazerosa brisa da manhã. Era natal, tudo estava tão lindo.

As primeiras pessoas chegaram e ao vê-lo abriram um

sorriso, seguido da frase “Feliz Natal”. Rodrigo retribuiu o

sorriso e a frase, e ficou os observando se exercitar. Vinte

minutos depois todos já estavam presentes, algumas

senhoras apresentavam um misterioso sorriso.

- Como todos já sabem – começou Rodrigo – hoje é

natal. Apenas agradeço estes cinco meses que estamos

juntos e por esta enorme alegria que sinto. Desejo a todos

felicidades, mas peço que não fiquem felizes apenas no

natal, multipliquem esta felicidade todos os dias. Feliz

Natal.

Mãos aplaudindo um Rodrigo meio tímido ecoaram

por toda a praça. Rodrigo sorriu satisfeito e começaram

com os costumeiros exercícios.

Passado algum tempo seu celular tocou no bolso.

Rodrigo o pegou e o celular tocou outra vez, recebera duas

mensagens, ambas de Carlos. A primeira tinha escrito feliz

natal e os desejos de felicidade; Rodrigo começou a ler a

segunda mensagem e paralisou qualquer movimento.

“Tenho umas coisas pra te dizer... vergonha, mas...

toda vez que penso em você, enlouqueço. Beijos”. Rodrigo

33

Page 34: Lições da carne

sorriu radiante, então Carlos também sentia o mesmo por

ele. Levantou os braços e os jogou para o alto, exclamando

baixinho “Obrigado!”.

- Ta tudo bem? – perguntou uma senhora passando ao

seu lado.

Rodrigo a mirou com cara de menino nas nuvens e

respondeu:

- Sim. É o fogo do natal.

- Bom pessoal, o treino hoje foi ótimo mais agora

daremos uma breve despedida. Dia três de Janeiro

estaremos de volta, enquanto isso, cuidado na alimentação

e alongar sempre. Até lá, quero ver todos sadios e que

tenham ido a muitas festas – finalizou Rodrigo.

Cada um deu um abraço e os desejos de felicidade,

paz e prosperidade. As senhoras que chegaram rindo

sarcasticamente mostraram o motivo, estavam com

presentes escondidos nas sacolas. Uma delas comentou:

- Percebi o seu entusiasmo quando leu a mensagem.

- Foi o alarme – mentiu Rodrigo.

- Sei, ou será que foi de uma futura namorada?

Rodrigo riu e pensou “Quase isso”. Esperou que todos

fossem e pulou diversas vezes. Releu a mensagem e

34

Page 35: Lições da carne

sentiu seu coração explodir de felicidade. Não sabia o que

dizer. O que Carlos estaria pensando agora?

Papai Noel realmente o surpreendera, a mensagem foi

o seu melhor presente de natal.

35

Page 36: Lições da carne

Capítulo Sete – A família morta.

Carlos mirou aquele garoto sentado em sua cama.

Tão jovem e ao mesmo tempo magoado por causa de

maus momentos com a família. Ele sabia que apesar da

felicidade que sentia, precisaria agir com calma. Afinal,

Rodrigo era um jovem diferente, vivendo tudo a frente de

seu tempo. Para afastar o silêncio começou a contar um

pouco da sua história.

- Eu não passei pelos mesmos problemas que você.

Perdi meus pais relativamente cedo. Minha mãe morreu

assim que nasci nunca soube direito o que ocorreu na noite

do parto. E a partir disto meu pai me criou como algo mais

valioso de sua vida. Eu não sou natural daqui, apenas fui

criado. Quando minha mãe morreu, ele falou para si

mesmo que a vida naquele local não fazia mais sentido e

decidiu vir para São Paulo. Na minha infância e parte da

adolescência moramos em Sorocaba. Diferente do seu,

meu pai procurava estar sempre conversando comigo, ele

me dizia que não havia sentido ter uma vida sem alguém

36

Page 37: Lições da carne

para conversar, nem que fosse uma única pessoa, mas

deveríamos ter alguém.

- Então aos vinte e três anos quando já estudava numa

faculdade aqui em São Paulo, consegui um estágio e a

partir disto me fixei aqui. Meu pai ficou doente e voltou para

a família em Lituânia. Faleceu dois anos depois e após este

tempo eu passei a viver sozinho. Claro que tenho amigos e

às vezes vou visitar meus familiares lá, mas na maior parte

do tempo estou sozinho.

Rodrigo escutou tudo aquilo mudo e deitou-se na

cama. O silêncio reinava outra vez.

- Passaram-se três anos...

Carlos afastou seus pensamentos e prestou atenção

nos desabafos de Rodrigo.

Seis e vinte da noite, Rodrigo havia acabado de tomar

seu banho. Ao chegar ao quarto, percebeu que um par de

roupas já estava separado.

Trocou-se calado e não perguntou para onde iriam,

porque já sabia. Sua mãe queria verificar se o seu pai

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Page 38: Lições da carne

estava bebendo, era quarta-feira dia de movimento no

trabalho dele.

Rodrigo, mãe e irmã saíram às ruas numa noite de lua

nova. Não havia estrelas e o clima estava um pouco

quente.

Dobraram algumas ruas com a sua mãe pedindo para

andarem mais rápido a todo instante. Finalmente chegaram

ao estabelecimento e como sua mãe esperava seu pai não

estava no trabalho.

- Eu sabia – sussurrou sua mãe.

Andaram mais um pouco e não foi difícil avistar seu

pai no bar, graças aos seus cabelos loiros. Ele próprio

percebeu e tentou se esconder, correndo para detrás do

bar.

Sua mãe disparou na frente e Rodrigo arrastou sua

irmã, não queria deixar os dois a sós. Se aproximando do

esconderijo, Rodrigo ouviu os gritos de sua mãe e não

chegou mais perto para evitar o choro de sua irmã.

- ...pare de beber, você quer destruir nossa família?

- Eu só estava conversando – argumentou seu pai.

- Se você chegar bêbado outra vez em casa, não

espere que eu esteja lá – ameaçou sua mãe.

- Fátima! Fátimaaa – gritou seu pai, mas ela já estava

decidida.

38

Page 39: Lições da carne

Em casa, o silêncio foi total. Sua mãe os colocou para

dormir e se trancou no quarto. Aos poucos, Rodrigo

escutou as lamentações e as suplicas nas rezas feitas por

sua mãe.

- Eu acordei e soube que meu pai não havia dormido

em casa – falou Rodrigo e se calou, queria reunir fôlego

para continuar.

Carlos apenas o observava, absorvendo cada palavra.

- Eu podia sentir que a minha família estava morrendo,

não sentia mais amor por eles, apenas piedade... –

recomeçou Rodrigo.

A manhã passou rápida e Rodrigo foi para o colégio

sem saber onde seu pai havia dormido. Na escola não

assistiu uma única aula, muito menos falou com os

colegas.

Pediu a professora para ir ao banheiro e no seu lugar,

passou toda a tarde perambulando. Sempre que algum

funcionário surgia, ele se escondia por detrás das moitas.

Tudo o que ele queria era encontrar um porque, sua família

39

Page 40: Lições da carne

estava em crise e mesmo assim seu pai continuava

bebendo.

Ele observava outros adultos e chegava a sentir inveja

de como eles tratavam um ao outro. Como era possível seu

pai agir daquela forma? Ele não queria voltar para casa.

Como de costume, sua mãe o esperava sair com sua

irmã, que largava mais cedo do primário. No caminho de

volta, ninguém trocou uma palavra, sua mãe estava

impassível. Rodrigo apenas caminhou observando seus

outros colegas conversarem alegremente com seus pais.

De volta ao quarto, Rodrigo ainda se encontrava na

cama enxugando algumas lágrimas:

- Havia uma cadeira nos fundos que eu passava todo o

fim de tarde sentado nela e mirando o céu.

Rodrigo chegou em casa e logo correu para o quintal,

largou a bolsa e sentou-se na cadeira. Estava um fim de

tarde lindo. Bem ao longe as nuvens se mostravam laranjas

e foi nesta paisagem que Rodrigo se perdeu nos

pensamentos.

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Page 41: Lições da carne

Tentou encontrar um porque da sua mãe aceitar tanto

sofrimento. Rodrigo a amava e também sentia raiva por vê-

la sofrer tanto.

- Em que esta pensando mocinho? – perguntou sua

mãe se aproximando.

Rodrigo piscou os olhos rapidamente para voltar à

realidade.

- Nada! – exclamou num pulo e abraçou sua mãe.

41

Page 42: Lições da carne

Capítulo Oito – Feliz Aniversário.

O fim de ano passou e embora estivessem distantes,

Rodrigo conseguiu se divertir. Na família não houve brigas,

apenas comemorações.

O curso voltou a todo vapor, todos se mostravam

ansiosos a espera do professor para contar-lhe sobre as

festividades do fim de ano.

Um mês passou e o tempo estacionou em Fevereiro,

Carlos e Rodrigo já se conheciam intimamente. Não existia

mais vergonha para dizer o que sentiam. Os dois

simplesmente se amavam e como dia 23 seria o

aniversário de Rodrigo, Carlos mandou uma carta uma

semana antes.

E o dia chegou exceto o que Rodrigo mais queria a

carta de Carlos. O tempo voou. Saiu com os amigos,

observou os preparativos da cidade para o carnaval.

Zoaram muito e só retornaram a noite, com a cozinha farta

de doces e um suculento bolo no centro.

Um de seus amigos retirou uma câmera digital do

bolso e em poucos segundos muitos flashs clarearam a

cozinha. “Discurso!”, pediram seus colegas. Rodrigo os

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Page 43: Lições da carne

fitou e mesmo contra sua vontade, um curto começou

discurso:

- Eu só tenho a agradecer a Deus e a todos vocês pela

amizade.

Todos riram e comemoraram. A festança durou até as

dez, seu pai chegou e foi direto para o quarto, nem se

preocupou em dar os parabéns, parecia estar num

daqueles dias de estresse supremo.

Quando todos se foram, Rodrigo correu para o quarto

e ligou o computador. Talvez Carlos já tivesse chegado do

trabalho, queria vê-lo dizer que o amava. Mas não havia

nenhum sinal dele.

Decepcionado, Rodrigo se jogou na cama e sentiu

algo ser amassado por suas costas, olhou e parou

estupefato. Era a carta de Carlos. Pegou-a e o presente

caiu na cama, um livro. Mas não foi isso que o deixou

boquiaberto, a carta já havia sido aberta. Procurou dentro

do livro e não encontrou o que Carlos disse também ter

enviado.

A porta do quarto bateu. Com um olhar acusador,

respiração ofegante e a mão esquerda amassando

um ,bilhete, o pai de Rodrigo o fitava.

43

Page 44: Lições da carne

Capítulo Nove - A espera de uma nova vida.

- Quanto a minha sexualidade – comentou Carlos – vim

descobrir o que realmente queria após os vintes. Eu não

tive muito tempo de conversar sobre isso com meu pai.

Nestes últimos anos estive tentando encontrar aquilo que

chamam de alma gêmea. Até tentei viver com alguns, mas

não deu certo. Então surge você, um jovem que causa uma

reviravolta incrível em minha vida. Nunca imaginei que

passaria por algo do tipo. Naquele primeiro dia que nos

falamos pelo bate-papo, entrei por coincidência. Nunca fui

muito fã disto. Queria apenas encontrar algo diferente e

acredito que consegui.

- Teve uma vez que beijei meu primo e minha mãe

flagrou. Fugi de casa e pensei em me matar, mas não

consegui. Meu pai me encontrou e deixei ele me bater, não

sabia se o que tinha feito era certo ou errado. Lá na cidade

tinham uns gays que se vestiam como mulheres, mas

nunca tive contato, não gostava do modo como eles viviam.

- Aos dezessete anos, bem antes de te conhecer pela

internet, comecei a me rotular como bissexual. Era

engraçado porque, mesmo estando sozinho nunca me

bateu aquela louca vontade de ter um homem. Sempre

44

Page 45: Lições da carne

controlei meus instintos e nas baladas que ia com os

colegas raramente ficava com alguém, porque eu detesto

ficar e ser apenas mais um – terminou Rodrigo.

- Continue... – pediu Carlos.

- Nos conhecemos e tudo foi muito novo. Naquele

mesmo tempo, comecei o namoro com uma vizinha louca e

aos poucos fui perdendo o desejo por ela.

- Entendo – falou Carlos num suspiro indo até a janela.

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Page 46: Lições da carne

Capítulo Dez – Troca de sentimentos.

Rodrigo se jogou na cama e suspirou longamente,

conhecera uma garota que nem ele mesmo sabia ser sua

vizinha. Após o flagra do pai com a carta, Rodrigo passou a

viver numa espécie de prisão. Não podia mais acessar a

internet, pois seu pai havia retirado o computador do seu

quarto. Ele também queria confiscar o celular, mas Rodrigo

conseguiu impedi-lo. O clima em casa estava horrível, o

inferno parecia ter se transportado para lá.

A tal vizinha se chamava Patrícia. Sua ex Pámela

surgiu na sua mente e Rodrigo deu outro longo suspiro.

“Porque sempre P?”, se perguntou. Começou o namoro

com patrícia sem saber o porquê e agora não sabia como

terminá-lo.

Ele apenas a beijou por carência, queria mesmo era

estar com Carlos. Fora apenas um beijo e mais nada, mas

Patrícia enlouqueceu e disse querer namorá-lo de qualquer

jeito.

Rodrigo não entendeu todo este escândalo emocional

dela, ele a beijava por beijar. E nesta tarde combinaram de

ir ao cinema.

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Page 47: Lições da carne

Às duas da tarde patrícia o puxava pelo braço, não

queria perder a primeira sessão. Avistaram Pámela na fila

com outro garoto. Rodrigo observou Patrícia estufar o peito

ao passar por ela.

O filme começou e Rodrigo não conseguiu prestar

atenção, pois Patrícia não calava a boca. Ao saírem da

sala, Patrícia o deixou no corredor esperando enquanto ela

iria retocar a maquiagem. Para sua surpresa Pámela saiu

do banheiro e baixou a cabeça ao vê-lo.

Momentos depois Patrícia saiu do banheiro triunfante.

Caminharam pelo shopping e ela fazia de tudo para chamar

atenção. Soltava gritinhos, pulava e dava-lhe beijos

agarrada no seu pescoço. Ela queria se mostrar com quem

estava andando.

Foi no estacionamento que Rodrigo soltou sua mão e

perguntou:

- Você fez algo a Pámela no banheiro?

Patrícia o mirou surpresa e respondeu:

- Não fiz nada.

- Não minta!

- Que importância tem isto? – perguntou Patrícia se

aproximando para beijá-lo.

Rodrigo a afastou com as mãos e insistiu:

- Vamos, me diga.

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Page 48: Lições da carne

- Pára de agir como um viado garoto – soltou Pámela e

levou as mãos à boca – desculpa, não tive a intenção...

- Você é muito oferecida – bradou Rodrigo.

Patrícia levantou a mão e Rodrigo a segurou bem a

tempo falando:

- Jamais volte a me tocar, você me dá nojo.

E jogou sua mão com força para o longe. Patrícia se

viu chocada, nunca imaginou Rodrigo assim. Logo ele que

estava sempre rindo, fazendo todos os seus gostos. Tinha

que recuperá-lo. Correu atrás dele e o puxou.

- Rodrigo...

- ME SOLTAAA! – berrou Rodrigo tão alto que sentiu

todo o ar sair dos seus pulmões.

Patrícia viu seu mundo desabar e ficou paralisada

chorando. Rodrigo entrou no carro e seguiu para casa. No

caminho, estacionou em uma rua e ficou por um bom

tempo mirando o aeroporto. Pensara em Carlos como

nunca havia pensado antes.

Rodrigo se perguntava o porquê de ser tão

diferente do lugar e da família que vivia. Durante um bom

tempo pensou que aceitaria e viveria em paz, que

aprenderia algo importante com tudo aquilo, mas quanto

mais o tempo passava mais lhe mostrava que ele estava

apenas sendo sufocado pela ignorância da própria família.

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Page 49: Lições da carne

Por ter de viver com pais que embora tentassem,

jamais aceitariam com normalidade sua sexualidade. Então

porque de nascer ali, com essas pessoas? Enquanto os

outros pensavam coisas a seu respeito, Rodrigo apenas

sonhava com a verdadeira vida que o chamava por dentro.

Não se sentia parte de nada ali. O próprio sentia que não

nascera para seguir o mesmo ritmo de vida deles. Porque

nasceu tão distante de sua realidade?

Rodrigo encostou a cabeça no volante e chorou.

Descarregou para si mesmo as dores que noite e dia

ardiam em seu peito. E ali mesmo sentiu o vento preencher

o carro. Sua alma revigorou-se com aquele toque invisível.

A natureza sempre o mostrava para não se desesperar

totalmente, mas em dias como este era impossível não

explodir com as tantas indiferenças que enfrentava.

- O que aconteceu meu filho? – perguntou sua mãe

assim que entrou em casa.

- Acabei o namoro – contou Rodrigo antes que alguém

o fizesse.

- Ainda bem – desabafou sua mãe.

- Hã?

- Ninguém nunca falava bem dela – falou sua mãe.

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Page 50: Lições da carne

Rodrigo riu sem jeito e pensou em contar a sua mãe

sobre como ocorrera, mas estava louco para tomar um

banho e relaxar. O aeroporto não saia da sua cabeça.

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Page 51: Lições da carne

Capítulo Onze – Voando para o futuro.

- Me diga – pediu Carlos - Teve algum bom momento em

sua adolescência?

- Sim... Nos meus quinze anos, meu pai parou de

beber...

Em outra casa, agora Rodrigo tinha seu próprio

quarto. Ainda era cedo, mas Rodrigo estava muito

cansado.

Iria fechar a porta de seu quarto quando escutou seu

pai chegar chorando.

- Parei Fátima! Parei!

Sua mãe não se conteve e também caiu em lágrimas.

Rodrigo deduziu que sua irmã estivesse dormindo, pois não

abrira a porta do quarto, que ficava de frente para o seu.

Rodrigo escutou o relato de seu pai colado na parede:

- Eu estava no bar, iria tomar o segundo copo de

cerveja quando escutei uma voz “Pare de beber”. Olhei

para os lados e percebi que ninguém falou comigo.

Sua mãe continuava a chorar.

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Page 52: Lições da carne

- Ignorei e pensei que era impossível já estar bêbado.

Mas bastou pegar o copo que a voz ressurgiu mais forte

“Pare de beber!”. E naquele momento senti algo ruim por

dentro, minha consciência e meu corpo tiveram nojo

daquela cerveja que eu tanto bebia. Paguei ao rapaz do

bar e vim correndo para te contar. Eu sinto Fátima, estou

curado! – exclamou.

- Oh! Fernando, graças a Deus – falou Fátima lhe

retribuindo o abraço.

- Ele bebeu novamente? – perguntou Carlos.

- Não. A família ganhou outra vida, ele não parava de

repetir o que aconteceu, achou que Deus lhe enviou um

anjo para salvá-lo – respondeu Rodrigo sentando-se na

cama.

- Então você perdeu a raiva que sentia por ele?

- Não. – respondeu Rodrigo.

A resposta surpreendeu Carlos que parou de mirar as

ruas para fitá-lo.

- Sabe... Eu cresci vivenciando meus pais brigarem, isto

ainda hoje me doe. São marcas que me traumatizaram

quando criança e a felicidade não podem substituí-las. – E

antes que Carlos falasse algo, ele prosseguiu – Mas as

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Page 53: Lições da carne

coisas pioraram, passei muito tempo perdido nos meus

conflitos. Não sabia direito quem eu era, queria parecer um

adolescente maduro. Namorei com mulheres e fiquei com

homens. Nunca namorei homens porque não acreditava no

amor homossexual.

Carlos se manteve em silêncio, esperando que

Rodrigo concluísse sua história.

- Completei dezoito anos e você me enviou um

presente. Meu pai abriu a carta primeiro e explodiu, disse

que me expulsaria de casa caso eu continuasse a me

comunicar com você.

- Isto você não me contou – falou Carlos surpreso.

- Meus pais perderam a confiança em mim, a casa virou

um inferno. Minha mãe tentava esconder, mas eu a via me

olhando desconfiada. Para ela ser gay é sofrer na vida e

nenhuma mãe quer ver seu filho sofrer. Mas ela não

entende, não sou igual a muitos gays que existem por aí,

não sou movido pelo prazer do sexo fácil.

- E o que você sente por um homem?

- Acho que... atração.

- Eu sou uma atração para você?

- Não sei dizer – respondeu Rodrigo sem jeito.

- Continue a história – pediu Carlos.

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Page 54: Lições da carne

- Eu queria sair de casa, morar em outra cidade. Então

você me disse que me acolheria, mas achei que fosse

brincadeira. Eu estava perdido, quebrado por dentro. Parte

de mim ainda esta.

Carlos se agitou na janela, sabia que hora com que

tanto sonhara estava chegando:

- Agora me diga, foi apenas por isso que você quis vir?

Rodrigo percorreu o quarto com o olhar antes de

responder:

- A principio sim... Ainda pensei em desistir de tudo,

continuar com aquela vida, mas como pode alguém nascer

em um lugar e não se sentir partir de nada dali? Cada dia

para mim era uma tortura indescritível, eu amo minha

família, amo de verdade mesmo. Mas o modo que eles

queriam aplicar a minha vida, nunca daria certo.

- Você é a primeira pessoa que eu conheço tão a frente

de seu tempo. Eu cheguei a pensar que tudo o que você

me enviava era apenas a seleção das melhores palavras.

Quando estamos apaixonados, sempre dizemos que a

idade não importa. Mas a realidade é tão diferente Rodrigo,

muito diferente mesmo. Você compreende o quanto é

único? Eu não saberia dizer o que você deve estar

pensando ou sentindo neste momento, mas eu estou feliz.

Jamais imaginei em meu destino, surgir algo do tipo. –

desabafou Carlos.

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Page 55: Lições da carne

- Carlos?

- Hum?

- Obrigado por tudo!

- Ah! Não começa.

- Serio, se não fosse você... Não sei como ainda estaria

vivendo lá – falou Rodrigo baixinho.

- Tem mais alguma coisa para me contar?

Rodrigo não respondeu, o mesmo flash da tapa surgiu

na sua mente. Seguiu até a outra janela e respirou fundo,

virou-se, parando a poucos passos de Carlos e narrou sua

última lembrança...

Rodrigo estava no aeroporto do Recife, comprando

sua passagem.

- Uma passagem apenas de ida para São Paulo, por

favor.

Em seguida deu todos os dados necessários e

agendou a viajem para a próxima quinta-feira. Apesar de

tudo não se sentia totalmente seguro para esta viagem,

repassaram todo o trajeto várias vezes. Como faria assim

que chegasse a São Paulo e todos os outros detalhes.

Carlos lhe perguntou sobre a bagagem e Rodrigo

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Page 56: Lições da carne

respondeu que não levaria nada que pertencesse a sua

antiga família, tudo ficaria para trás.

Seus pensamentos se confundiam constantemente.

Em casa, foi direto para o banho e depois se trancou no

quarto. Queria dormir esquecer um pouco toda esta

situação, mas não conseguiu. Tudo voltou a se confundir,

não sabia como diria aos seus pais. Lágrimas caíram

complementando o silêncio que o rondava. Por fim,

adormeceu. Bastante incerto sobre os próximos dias da

sua vida.

Numa quarta-feira a noite toda a sua família estava

reunida na sala, pois Rodrigo havia decidido contar tudo.

Sobre a passagem que havia comprado e Carlos, onde iria

morar com ele.

Uma grande discussão varou a noite, queriam prendê-

lo, soltavam ameaças, alertavam e argumentavam que

conhecer alguém pela internet era perigoso, a vida dele

estava em risco. Mas Rodrigo já estava cegamente

decidido.

Passaram-se oito horas de gritos, lágrimas e silêncio

até que um táxi buzinou no lado de fora.

- Minha hora chegou – suspirou Rodrigo.

- Meu filho não vá, por favor – suplicou sua mãe.

Sua irmã estava em choque, não disse uma só

palavra. Rodrigo queria abraçar sua mãe, atender ao seu

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Page 57: Lições da carne

pedido, mas ele não se sentia completo ali. Apesar de

serem uma família, não queria passar mais um minuto ao

lado deles.

No seu lugar mirou seu pai. Fernando que estava

encolhido na parede, caminhou até seu filho e ficaram cara-

a-cara. Rodrigo pensou que ganharia um abraço, que eles

o aceitariam, mas sentiu sua face ferver com uma tapa e

cambaleou para trás.

Lembrou de todos os bons e maus momentos que

teve com aquela família. Aquele tapa o fez querer esquecê-

los de vez. Sua mãe gritou e correu para segurar o marido.

Rodrigo se apoiou na porta, abriu-a e assim a deixou,

saindo de casa.

- Podemos ir? – perguntou o taxista.

- Sim, vamos – respondeu Rodrigo tentando conter as

lágrimas.

Mas chorou. Estava cansado, frustrado. Sua cabeça

doía e o coração estava envolvido num aperto enorme, que

quase não o deixava respirar.

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Page 58: Lições da carne

Capítulo Doze – Entre a realidade e o sonho parte 2.

- O que você pretende fazer agora? - perguntou Carlos.

Rodrigo não soube o que responder e no próximo

instante estavam colados, num abraço. Lágrimas caíram

sem controle. Carlos nada disse, apenas apertou o abraço.

Em meio a soluços e gaguejos Rodrigo começou:

- Já so-sou maior de idade...

- Calma, calma – sussurrou Carlos.

- Pó-po-posso trabalhar.

O choro se intensificou. Carlos o afastou e levantou a

face chorosa de Rodrigo, pela primeira vez mirou um lindo

par de olhos azuis, com o nariz vermelho de tanto chorar.

- O que você pretende fazer agora? - repetiu Carlos

docemente.

Rodrigo engoliu em seco e após um breve silêncio

respondeu:

- Quero esquecer o passado... – e mirou o chão.

- Hum – murmurou Carlos.

- ...e todas as loucuras que fiz...

- Continue – pediu Carlos.

Rodrigo levantou a cabeça e fitou aquele homem

parado a sua frente.

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Page 59: Lições da carne

- Quero construir meu futuro com você! – exclamou

Rodrigo sem chorar.

Carlos puxou a cabeça de Rodrigo e encostou-a no

seu peito falando:

- Isto era tudo que eu queria ouvir...

A frase ficou suspensa no ar. Rodrigo apenas se

apertou no corpo de Carlos e escutou batidas monótonas,

porém felizes de um coração apaixonado.

Rodrigo sentiu as mãos de Carlos acariciar suas

costas. Então levantou a face e o beijou.

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Page 60: Lições da carne

Capítulo Treze - Entregues sob o luar.

Os lábios se separaram e ambos tentaram enxergar a

própria alma naquela troca de olhares.

- Lembra daquele poema que você me enviou?

Rodrigo respondeu com um curto “Hum-hrum”.

- Você me disse que estaríamos abraçados perante o

luar... Quer tentar? – perguntou Carlos mirando a janela.

Rodrigo mirou tudo a sua volta. Seria mesmo verdade

o que estava acontecendo ali? Seu coração ainda batia

rapidamente, o beijo era a única coisa que se passava em

sua mente, queria novamente sentir aqueles lábios, mas

sentiu vergonha de pedir outro beijo. Em seu lugar, segurou

firme a mão de Carlos e a trouxe vagarosamente para

alisar seu rosto. Seguiram até a janela e ali permaneceram

abraçados. Tantas coisas boas e ruins ocorrendo lá fora e

ali estavam dando vida a um novo romance. Aos poucos,

Carlos entoou o poema:

“Morro de desejo

Por teu corpo

Tua boca

Incendeia-me

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Page 61: Lições da carne

E o teu olhar

Me dilacera...

Minha única decepção

É à distância

Pois caso estivéssemos juntos

Estas tristes e monótonas horas

Tornar-se-iam em infinitas noites felizes

E nas madrugadas

Com um enorme luar

O tempo seria paralisado...”

Ao ouvir suas palavras, Rodrigo sentiu seu coração

explodir. Lembrou-se da noite que o escrevera, estava

triste e sozinho. Seus olhos lacrimejaram, mas fez o

possível para impedir a queda das lágrimas.

“Pois na janela estaríamos

Coladinhos

Observando tudo

Sem a preocupação das horas

Deixando o corpo ser banhado

Por uma leve brisa fria

Com tua boca aquecendo meu corpo

Através dos beijos

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Page 62: Lições da carne

E pequenas baforadas de ar

Em meu pescoço...”

Rodrigo se arrepiou totalmente quando Carlos deu-lhe

um beijo no pescoço, não estava mais nervoso, apenas

queria ficar ali ouvindo estas palavras.

“Cada palavra dita por ti

Percorreria minha mente

E toda a noite

Estaríamos ali, parados na janela.

Vestindo apenas trazes íntimos...”

Rodrigo chorou.

“O tempo jamais ousaria passar

Porque o dia

Apenas nasceria novamente

Assim que acabássemos

De contar

As inacabáveis estrelas do céu.”

O poema acabou. Carlos abraçou forte o corpo de

Rodrigo e declarou:

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Page 63: Lições da carne

- Eu sempre duvidei que este momento realmente viesse a

acontecer. E de tudo o que conversávamos pela internet,

eu sempre duvidei que um jovem como você pudesse ser

tão diferente. Mas não me compreenda mal, estávamos

distantes e a distância como você mesmo me disse uma

vez mata e fortalece aos poucos. Mas agora que posso te

sentir, sei que estava errado. O que eu imaginava ser uma

loucura é na realidade o mais belo capítulo de nossas

vidas, o dia do nosso encontro.

- Eu não sei o dizer – sussurrou Rodrigo – apenas estou

aliviado por estar aqui. Sempre que eu chorava, apenas me

sentia mais magoado. E agora por incrível que pareça,

estas lágrimas estão me fazendo bem.

- Carlos?

- Fala querido.

- Me beija.

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Page 64: Lições da carne

Epílogo

Rodrigo contemplava o quarto que há meses

atrás havia chorado, narrando todo o seu passado.

Estava deitado na cama, com Carlos do seu lado

adormecido. Ambos estavam nus e cobertos pelos

lençóis.

Conseguira um emprego e faziam planos para

as férias de fim de ano. Pretendiam passá-la em

algum lugar onde ninguém os conhecesse.

A família de Rodrigo nunca entrou em contato.

E Rodrigo tão pouco sabia o que estavam

comentando dele naquela cidade. Sentiu saudade

do antigo curso que tinha, dos poucos colegas de

colégio e principalmente da sua mãe.

E assim Rodrigo também dormiu e sonhou com

o diálogo que teve, logo após ter beijado Carlos.

- Quando eu entrei na sua vida, nem sabia direito

o que queria. O principal objetivo era esquecer o

preconceito da minha família e também tive medo

de que nada disto desse certo – sussurrou Rodrigo

com a cabeça encostada do ombro do parceiro.

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Page 65: Lições da carne

Carlos suspirou se perguntando se em algum

dia viveriam sem o preconceito.

- De uma certa forma, tudo é inevitável.

Traçamos as curvas do nosso destino meio que

cegos e quando vemos, somos obrigados a seguir

em frente. Eu tive muito medo de que você

desistisse de tudo – falou Carlos no mesmo

sussurro.

- Eu... – sibilou Rodrigo.

- Não fale mais nada – interrompeu Carlos. – Eu

te amo.

Rodrigo mirou Carlos silencioso. Queria dizer

tantas coisas que não conseguia expressar.

Juntaram as mãos.

Colaram os corpos.

Uniram os suspiros e fundiram a alma.

Naquele momento estariam juntos, para

sempre, ainda era muito cedo para afirmar, mas

fosse eterno ou não, naquele momento eles

estavam se amando.

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