Lilia Moritz - Questão racial no Brasil

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  • 7/22/2019 Lilia Moritz - Questo racial no Brasil

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    7) O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Questo racial no Brasil. IN: SCHWARCZ, Lilia Moritz;

    REIS, Letcia Vidor de Sousa (org). Negras imagens. Ensaios sobre cultura e

    escravido no Brasil. So Paulo: edusp, 1996. pp. 153-177.

    Introduo: racismo la brasileira

    A questo da raa antiga no Brasil. Ela aparece na afirmao extica dos

    romnticos no incio do sculo XIX, nas teorias realistas e negativas de finais do mesmo

    sculo, na viso idealizada dos anos 1930, e na interpretao mestia e mulata dos dias

    atuais.

    Por outro lado, h um consenso mudo que naturaliza a discusso. Toda a questo

    da raa, no cotidiano, se traduz como um grande silncio, em que se evita o debate e se

    escamoteia a disputa.

    O mito da democracia racial contm distores, mas verdades parciais, ao

    indicar uma singularidade no relacionamento entre as raas. A prpria colonizao

    portuguesa de fato teria recebido incentivo miscigenao como ponto estratgico da

    poltica de povoamento.

    No Brasil, a impresso que se tem a partir de questionrios estudados pela

    autora que o racismo e o preconceito existem, mas so sempre atributos do outro.

    O racismo no Brasil pode ser caracterizado da seguinte maneira: uma espcie de

    racismo cordial, em que no se tematiza a questo, onde todos so muito amveis

    exteriormente, mas que em suas estruturas e prticas reproduz jogos de poder

    historicamente hegemnicos. A discriminao se d na intimidade e no cotidiano,

    embora possa, nos espaos formais, ser reprimida por lei.

    A abolio como presente e ddiva

    A escravido nunca foi um problema apenas de cativeiro. Ela foi uma instituio

    forte que penetrou os poros da sociedade brasileira, marcando-a indelevelmente.

    Quando o conjunto de leis que pretendiam abolir a escravido lentamente foi posto em

    prtica, ele encarou a questo como uma questo apenas de cativeiro. Libertava os

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    escravos, simplesmente. No houve nenhum programa de correo destas sequelas da

    escravido como um problema institucional.

    Ademais, as leis tardaram, no que diz respeito realidade, que j vinha se

    modificando com o passar dos anos. At que a lei da princesa Isabel, tida como presente

    e ddiva aos escravos, aboliu uma realidade que ao menos do ponto de vista do

    cativeiro j no tinha como no ser abolida.

    As teorias raciais do sculo XIX: o mestio e a degenerao

    No incio do sculo XIX, com uma postura romntica o Imprio elegeu o

    indgena como seu smbolo fundamental, e glorificou a mistura das etinias como boa

    imagem para se mirar. Mas as teorias racialistas da transio do sculo para o sculo

    XX comearam a compreender a mestiagem como um problema por si s.

    Uma srie de viajantes, mdicos, juristas, e mesmo o IHGB contriburam para

    uma viso determinista e racialista para a compreenso da nao. Elas desautorizavam a

    ideia da igualdade e atribuam aos negros e aos mestios toda a culpa pelos males da

    nao. Elas tornavam natureza diferenas que eram polticas e sociais.

    Anos 1930: eis que somos o pas da democracia racial

    Em 1930, a miscigenao, de suprema vergonha, se torna a nossa positiva

    singularidade, principalmente com o Gilberto Freyre de Casa-grande & senzala. Freyre

    teria oficializado a ideia de uma boa escravido no passado do Brasil.

    Freyre quebra com as teses racialistas, mas continua a hierarquizar as raas, da

    seguinte maneira: o branco sempre o exemplo civilizatrio, acompanhado do indgena,

    com seus hbitos higinicos e alimentares, e do negro, com sua religiosidade lbrica.Neste nterim, a identidade nacional vira um modelo a ser exportado e a ser

    internamente admirado. O mestio, de degenerado, ressurge como um malando

    simptico.

    A pesquisa da Unesco e a quebra de um mito nacional

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    A partir dos anos 1950, uma srie de autores comea a chamar ateno para o

    fato de que a democracia racial disfarava e dissimulava uma evidente discriminao

    racial, corporizada em uma diviso econmica.

    Para Lilia, o que explicava a sociedade brasileira no era a raa, nem somente

    uma cultura particular, mas uma situao de luta de classes e de total assimetria. Seria

    preciso adotar as explicaes marxistas, sem descartar algumas verdades de Freyre.

    Os movimentos sociais: somos todos gays, lsbicas e negros

    Com o processo de abertura poltica de fins dos anos 1970, ganham espao os

    diversos movimentos sociais: feministas, ecologistas, movimento homossexual, e

    associaes congregadas questo negra. Neste contexto fundado o MNU (Mov.

    Negro Unificado), que pela primeira vez representou a existncia de uma organizao

    negra poltica reivindicatria no pas. O MNU cumpriu com outros grupos o papel de

    trazer tona a fala e os valores das minorias, e a linguagem da diferena.

    Mas a inspirao no modelo reivindicatrio norte-americano deixou um fosso

    entre os valores do MNU e o da populao que pretendia representar. Como se pautou

    no tipo de racismo que acontecia nos EUA e no no Brasil, o MPU fazia avaliaes que

    no condiziam com a realidade brasileira l, a origem que determina o preconceito,

    enquanto aqui a cor marca junto com a condio econmica (nos EUA, vir de famlia

    negra ser negro).

    Falando de ns mesmos. A volta da mestiagem

    Nos dias de hoje, a questo da raa tem voltado com fora, seja na verso mais

    amena e extica (exaltao da morena, do carnaval, do samba), seja na novidade de umamoda afro-baiana (msica, comida temperada, cultos), seja na interpretao mais

    negativa do racismo.

    Segundo Florestan Fernandes, o brasileiro no evita, mas tem vergonha de ter

    preconceito. Segundo aFolha de So Paulo, complementando, h no Brasil um racismo

    cordial, onde com o domnio do privado prevalecendo torna as relaes mais

    hierrquicas uma espcie de cordialidade. As discriminaes no precisam sequer vir a

    tona: elas esto cotidianamente assentadas; e quando se radicaliza, expresses comovoc sabe com quem est falando? assumem o lugar.

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    Alm disso, as polticas pblicas anti-racismo so falhas. Elas possuem um

    abismo entre a teoria e a prtica por no tratarem do racismo especfico que h no

    Brasil. Mesmo as polticas pblicas que simplesmente abordam a questo racial

    parecem encontrar um abismo frente dinmica cotidiana.

    Como se percebe, trinta anos mais tarde, as concluses de Fernandes

    permanecem bastante vivas. Com efeito, ao lado de um preconceito retroativo de um

    preconceito de ter preconceito afirma-se um sistema classificatrio muito particular,

    que fala, por sua vez, da maneira como historicamente se deu o padro de miscigenao

    neste pas. No entanto, impossvel ficar apenas com a imagem da mistura. Essa se fez

    e se faz em situaes de muito desequilbrio e a partir da discriminao de vastos

    setores da populao.

    Concluindo: procurar pelo modelo local

    preciso compreender o racismo na forma como ele se d especificamente no

    Brasil. No para essencializar a experincia nacional e torn-la imune ao tempo, mas

    para no incorrer no erro de comprar receitas prontas do combate ao racismo em outros

    pases. Em um pas como o nosso, em que a origem no um dado fundamental e em

    que se impe uma forma mltipla e no bipolar de classificao, no mnimo

    complicado defender o uso do termo afro-brasileiro. Esse determinaria a existncia de

    uma essncia comum ou, no mnimo, de um estilo de vida partilhado, difcil de ser

    encontrado quando partimos da noo de que a cultura dinmica e que seu significado

    est em constante construo.

    O racismo no Brasil mais vivido que afirmado. O problema no apenas de

    ordem econmica, mas tambm no apenas de ordem cultural. Convivem no pas o

    modelo da democracia racial e a lembrana de um pas de forte experinciaescravocrata.

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    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. Cientistas, instituies e questo

    racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das letras, 1993.

    Introduo. O espetculo da Miscigenao. (pp. 11-22)

    No final do sculo XIX, havia a opinio corrente no pas de uma espcie de

    espetculo brasileiro da miscigenao. Esta opinio por parte de muitos intelectuais

    de dentro do pas tinha um tom de exclusividade nacional.

    A maioria destes intelectuais considerava que o pas era miscigenado, mas que

    tambm estava em transio. Aguardava-se por um bem-vindo branqueamento. Mas

    essa imagem no se restringia ao circuito interno: diversos naturalistas que aqui

    passaram, ao longo do sculo XIX, tiraram concluses semelhantes acerca da

    miscigenao. A mestiagem era por todos tanto descrita como adjetivada, sendo

    colocada como obstculo a ser superado para o desenvolvimento da nao.

    As teorias raciais datam de meados do sculo XVIII na Europa, e chegam

    tardiamente ao Brasil, onde foram acolhidas com entusiasmo principalmente por centros

    e instituies cientficas de ensino e pesquisa, que serviram de modelo para os

    intelectuais a formados. Este momento coincidiu com a dcada de 1970, quando teve

    incio o processo de abolio da escravido (com a Lei do Ventre Livre de 1971), e

    tambm com a chegada de um novo iderio positio-evolucionista em que os modelos

    raciais de anlise cumprem um papel fundamental.

    A pergunta que Schwarcz far com o livro a respeito do paradoxo de se ter um

    modelo liberal de atuao poltica e de concepo do Estado convivendo com o racismo

    das teorias da intelectualidade nacional. Quer compreender a especificidade das teorias

    raciais neste contexto, j que no podem ser compreendidas como mera deformao das

    teorias raciais europeias.O desafio de entender a vigncia e absoro das teorias raciais no Brasil no

    est, portanto, em procurar o uso ingnuo do modelo de fora e enquanto tal

    desconsider-lo. Mais interessante refletir sobre a originalidade do pensamento racial

    brasileiro que, em seu esforo de adaptao, atualizou o que combinava e descartou o

    que de certa forma era problemtico para a construo de um argumento racial no pas.

    Breve histria intelectual (com base nos textos introdutrios de cada cap)

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    Com a vinda da Famlia Real, tem incio uma vida cultural institucional no pas.

    A Imprensa Rgia, a Biblioteca, o Real Horto, e o Museu Real davam o tom cultural das

    mudanas recentes. Antes a vida cultural institucional ficava s a cargo das escolas dos

    jesutas. A fundao do Instituto Histrico e Geogrfico em 1838 responde lgica do

    contexto que segue emancipao poltica do pas. Com sede no Rio de Janeiro, o

    IHGB surgia fortemente ligado oligarquia local, e em suas mos estava a

    responsabilidade de criar uma histria para a nao de um monarca ilustrado e

    centralizador, que deveria separar seus destinos dos da antiga metrpole europeia.

    A partir de 1870 chegam ao Brasil teorias de pensamento como o positivismo, o

    darwinismo e o evolucionismo. Esses modelos foram usados aqui de forma particular,

    guardando-se suas concluses singulares, suas decorrncias tericas distintas. No havia

    na poca uma s interpretao ou uma s viso, mesmo que a noo de evoluo social

    fosse recorrente.

    Entre 1870 e 1930 os museus nacionais (o Museu Paulista, o Museu Nacional e

    o Museu Paranaense de Histria Natural) desempenharam um papel central na

    dedicao pesquisa etnogrfica e com relao ao estudo das cincias naturais. Muitos

    museus floresceram na poca, profundamente vinculados aos parmetros biolgicos de

    investigao e aos modelos evolucionistas de anlise.

    O IHGB, criado logo aps a independncia do Brasil, assim como outros

    institutos histricos regionais, tinha como incumbncia organizar a histria nacional (ou

    regional) em alguma unidade, recriar um passado, solidificar mitos de fundao, ordenar

    fatos buscando homogeneidade, etc. Financiados pelo imperador, ou por seus scios,

    seus membros eram diferentes dos membros de outros tipos de instituio de ensino e

    pesquisa: funcionavam como sociedades da corte, especializados na produo de um

    saber de cunho oficial.

    As Faculdades de Direito, vinculadas lgica e dinmica que marcam aindependncia de 1822, visavam responder s necessidades novas, tentando formar uma

    inteligncia local apta a enfrentar os problemas especficos da nao. Era preciso provar

    para fora e para dentro que o Brasil imperial era de fato independente, no s com novas

    leis, mas tambm com nova conscincia. Antes de tcnicos ou mestres de erudio, o

    que se buscava formar era uma elite independente e desvinculada dos laos culturais

    que nos prendiam a Portugal. Destas fileiras saram ministros, senadores, governadores

    e deputados. A Faculdade de So Paulo seguiu um modelo mais liberal, enquanto a deRecife seguiu mais o modelo racial de explicao da nao.

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    Sobre as Faculdades de Medicina: Assim, se a discusso sobre a higiene

    pblica (que implicava uma grande atuao mdica no dia-a-dia das populaes

    contaminadas por molstias infecto-contagiosas) mobiliza boa parte das atenes at os

    anos 1880, nos anos 1890 ser a vez da medicina legal, com a nova figura do perito

    que ao lado da polcia explica a criminalidade e determina a loucura , para nos anos

    1930 ceder lugar ao eugenista, que passa a separar a populao enferma da s.

    Enquanto os mdicos da faculdade do Rio de Janeiro buscavam sua originalidade e

    identidade na descoberta de doenas tropicais, como a febre amarela e o mal de Chagas,

    os mdicos baianos faro o mesmo ao entender o cruzamento racial como o nosso

    grande mal, mas, ao mesmo tempo, nossa suprema diferena. Era a partir da

    miscigenao que se previa a loucura, se entendia a criminalidade, ou, nos anos 1920, se

    promoviam programas eugnicos de depurao.

    Entre o veneno e o antdoto. Algumas consideraes finais

    (Espcie de resumo pela prpria autora:)

    O fin-de-sicle brasileiro era vivenciado dessa forma, nesses meios, com uma

    grande dose de desiluso. Com efeito, esses homens de sciencia, cticos com as

    promessas de igualdade, com a abolio e a Repblica, perguntavam-se, cada vez mais,

    sobre as causas das diferenas entre os homens.

    Nos museus etnogrficos, por exemplo, a ampla utilizao de argumentos

    evolucionistas permitiu explicar cientificamente as diferenas, classificar as espcies,

    localizar os pontos de atraso. Dialogando com o exterior, coletavam no local exemplares

    preciosos que atestavam as especificidades desse extico pas, mas tambm ajudavam

    a comprovar a origem do problema racial.Nos institutos histricos, por sua vez, a entrada tardia de modelos deterministas

    levou acomodao de explicaes variadas: de um lado, uma viso otimista, catlica e

    patritica, modelo j tradicional desses estabelecimentos; de outro, uma concepo

    determinista e evolutiva da nao. O resultado foi uma interpretao que, apesar de

    monogenista, recorreu a concluses darwinistas sociais quando se tratava de justificar,

    pro meio da raa, hierarquias sociais consolidadas,

    Misto de descobridores e missionrios, esses cientistas ora encontravam umanova nao para admirar, ora se debruavam com temor sobre o pas, propondo

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    reformas e sadas que dependiam da atuao deles. Visto por esse prisma, talvez o

    debate tenha mesmo se concentrado entre as escolas de direito e medicina. Instaurada

    uma espcie de disputa pela hegemonia e predomnio cientfico, percebem-se dois

    contendores destacados: de um lado o remdio, de outro a lei; o veneno previsto por

    uns, o antdoto na mo dos outros. Se para os homens de direito a responsabilidade de

    conduzir a nao estava vinculada elaborao de um cdigo unificado, para os

    profissionais mdicos somente de suas mos sairiam os diagnsticos e a cura dos males

    que assolavam a nao. Enquanto os pesquisadores mdicos previam a degenerao,

    constatavam as doenas e propunham projetos higienistas e saneadores, bacharis

    acreditavam encontrar no direito uma prtica acima das diferenas sociais e raciais.