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Análise das representações sócio-políticas e estéticas na obra Triste fim de Policarpo Quaresma Roberto Nicolato 1 Introdução Este trabalho tem como objetivo propor uma nova leitura da obra Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que foi publicada em formato de Folhetim no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1911, e editada em livro em 1915. O romance, considerado pela crítica com o mais bem realizado pelo escritor carioca, insere-se na lista de textos clássicos de autores que buscaram refletir sobre a pátria, num dos momentos mais importantes da vida nacional A história do funcionário público ufanista, mais conhecido como Major Quaresma, se passa nos primórdios da República, mais exatamente durante o governo de Floriano Peixoto, um período marcado por manifestos populares e militares, tendo como destaque a Revolução Federalista, no sul do país, e a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro. Um período em que a consolidação da República estava estreitamente vinculada à construção de um discurso voltado para a identidade da pátria. Será neste cenário em que a ficção se mistura com a realidade, que Lima Barreto colocará em cena um personagem de feições idealistas, romântico e dotado de um patriotismo até certo ponto ingênuo. Um intelectual de uma moral ilibada em contraponto a funcionários carreiristas, de retórica vazia, e aos positivistas que sob a aquiescência do marechal Floriano faziam do governo uma extensão da Escola Militar, da Praia Vermelha. A intenção neste estudo é mostrar que a obra de Lima Barreto trata-se, na verdade, de um romance argumentativo, cuja construção difere completamente das obras realizadas neste gênero, no Brasil, até então. O romance se desenrola sob duas perspectivas de 1 Roberto Nicolato é professor de Jornalismo no Uninter, em Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

Lima barreto

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Análise das representações sócio-políticas e estéticas

na obra Triste fim de Policarpo Quaresma

Roberto Nicolato1

Introdução

Este trabalho tem como objetivo propor uma nova leitura da obra Triste Fim de

Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que foi publicada em formato de Folhetim no

Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1911, e editada em livro em 1915. O romance,

considerado pela crítica com o mais bem realizado pelo escritor carioca, insere-se na lista

de textos clássicos de autores que buscaram refletir sobre a pátria, num dos momentos mais

importantes da vida nacional

A história do funcionário público ufanista, mais conhecido como Major Quaresma,

se passa nos primórdios da República, mais exatamente durante o governo de Floriano

Peixoto, um período marcado por manifestos populares e militares, tendo como destaque a

Revolução Federalista, no sul do país, e a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro. Um

período em que a consolidação da República estava estreitamente vinculada à construção de

um discurso voltado para a identidade da pátria.

Será neste cenário em que a ficção se mistura com a realidade, que Lima Barreto

colocará em cena um personagem de feições idealistas, romântico e dotado de um

patriotismo até certo ponto ingênuo. Um intelectual de uma moral ilibada em contraponto a

funcionários carreiristas, de retórica vazia, e aos positivistas que sob a aquiescência do

marechal Floriano faziam do governo uma extensão da Escola Militar, da Praia Vermelha.

A intenção neste estudo é mostrar que a obra de Lima Barreto trata-se, na verdade,

de um romance argumentativo, cuja construção difere completamente das obras realizadas

neste gênero, no Brasil, até então. O romance se desenrola sob duas perspectivas de 1 Roberto Nicolato é professor de Jornalismo no Uninter, em Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

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argumentação: a do personagem Policarpo Quaresma, de cunho idealista, que é marcada

por uma série de decepções, no seu projeto de solucionar os males da pátria, e a do

narrador/autor, de tonalidade realista, e que busca interpretar as ações dos personagens e do

governo.

Na verdade, o discurso do narrador/autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma,

converge no decorrer da narrativa para o da personagem Olga, numa visada mais crítica em

relação à triste realidade nacional e às ações do governo. Uma linha de argumentação que,

se não confronta, acaba se sobrepondo e passa a prevalecer sobre a do protagonista, de

coloração utópica. Ou seja, deixa para o leitor, de forma subjacente, a idéia de que na nova

realidade republicana não há mais lugar para o intelectual do perfil de Policarpo Quaresma.

Para a construção deste romance, em que no centro das discussões está o pensar a

pátria, o autor utilizará estratégicas argumentativas, como as comparações, definições,

exemplificações e repetições. O emprego de metáforas contribui para o efeito estético,

assim como a miséria sobre o pano de fundo da pátria gloriosa, reveste-se de um tom

melancólico, dando um caráter singular à obra de Lima Barreto.

Vale ressaltar que a produção literária do escritor carioca permaneceu na vala do

esquecimento até o final da década de 40, época em que começaram as pesquisas do seu

biógrafo, o crítico Francisco de Assis Barbosa. E não foram poucos os críticos que

acusaram-na de inapetência quanto ao estilo e desleixo na fatura da escrita. Será somente a

partir da década de 70, que a produção de Lima Barreto ganhará novas leituras, nas quais,

felizmente, os defeitos aparecem como virtudes incomparáveis.

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1 O fim de um sonho republicano

O título Triste Fim de Policarpo Quaresma anuncia de forma concisa e em tom

melancólico a degradação do herói naquele que é considerado o romance mais bem-

sucedido do escritor Lima Barreto. A partir daí, o leitor já se depara com a supressão do

efeito de suspense, de características básicas no enredo de obras clássicas do gênero2, para

então mobilizar um conjunto de novas indagações: quando, por que e em que circunstâncias

se deu a morte de Policarpo Quaresma.

A tragicidade do herói é apresentada ao leitor, indicada no título do livro, com todos

os aspectos básicos de que compõe uma notícia. O anúncio do fim de Policarpo é marcado

por aquilo que, nos assevera Nilson Lage (A reportagem: teoria e técnica de entrevista e

pesquisa jornalística, 2002), torna um fato relevante: intensidade, proximidade, atualidade

e identificação. Afinal, estamos no raiar da Primeira República e as contradições desse

novo sistema serão colocadas à mostra na narrativa, possibilitando uma reflexão, ainda no

calor dos acontecimentos, sobre a realidade nacional e o idealismo do personagem.

Na contemporaneidade, a morte do personagem de Lima Barreto poderia

perfeitamente ser retratada nos jornais, seguindo o formato do lead, como na linguagem

jornalística3, implantado nas redações do Brasil a partir da década de 50: “O major e ex-

funcionário público, Policarpo Quaresma, foi executado ontem [um dia qualquer do final no

século 19] por ordem do presidente da República do Brasil, Marechal Floriano Peixoto. Ele

2 Nos textos ficcionais clássicos, o suspense é usado como uma estratégia para manter a atenção do leitor e garantir o prosseguimento a leitura dos próximos capítulos, com o narrador muitas vezes lançando-se de recursos como a descrição para deter o tempo, flash-back, entre outros.3 Mário L. Erbolato, em Técnicas de Codificação em Jornalismo, define o lead como “o parágrafo sintético, vivo, leve com que se inicia a notícia, na tentativa de prender a atenção do leitor”.

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foi morto depois de enviar carta ao mandatário da nação protestando contra o assassinato de

prisioneiros que se rebelaram contra o regime”.

A saga desse herói pungente e utópico, comparado a um Dom Quixote4,coloca em

cena os fatos que marcaram os primórdios da República, com um intervalo de tempo de

pouco mais de uma década do momento em que eles se sucederam. A obra foi lançada no

formato de folhetim no Jornal do Comércio, em 1911, e publicada em livro 1915.

Essa proximidade espacial e temporal em relação aos acontecimentos confere

atualidade ao relato e, por mais contraditório que pareça, é o que garante maior sobrevida à

obra Triste Fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto não temeu os riscos de registrar em

literatura uma fração da história brasileira sem que ela estivesse efetivamente consolidada.

Poucos escritores até então haviam trabalhado com matéria tão controversa e, antes de tudo,

recente na memória da nova sociedade que vingava.

O escritor adotou uma estrutura narrativa capaz de oferecer maior longevidade ao

romance, sob a hipótese de vê-lo desatualizado, corrompido pelo tempo e de ser taxado pela

crítica com o emblema de obra datada. O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma soube

avaliar o momento e com um estilo muito próprio não temer que a literatura retratasse uma

realidade mais imediata e, porque não, mais propícia à pena dos jornalistas.

Um risco possível não fosse a maestria na construção do romance, cujo personagem

é antes de tudo uma metáfora do ideal da pátria grande, ufanista.

A publicação de Triste Fim de Policarpo Quaresma no sistema de folhetim traduz a

tentativa do autor de levar as discussões sobre o novo país a um público mais amplo, tanto

que a própria linguagem tem como intuito, nos moldes da natureza da imprensa, a

comunicabilidade, o encontro com leitor.

A notícia e certos comportamentos da imprensa, de forma geral, se não entram na

economia da obra como elementos desencadeadores da trama, pelo menos servem para

ilustrar a interferência da imprensa nas injunções sociais e políticas daquela época. A

loucura de Quaresma é apresentada como notícia em primeira mão pelo escriturário

Genelício, funcionário público subserviente e noivo de Dona Quinota, a filha do general

Albenaz.

4 A comparação foi cunhada por Oliveira Lima, que apresenta o prefácio da edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, em 1916. Segundo ele, “ambos são tipos de optimistas incuráveis, porque acreditam que os males sociais e sofrimentos humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram paladinos”.

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Estaria o protagonista realmente louco? Não demorou muito para o requerimento,

apresentado por Policarpo Quaresma à Câmara, instituindo o tupi como língua oficial,

servir de chacota na imprensa carioca: “Os pequenos jornais alegres, esses seminários de

espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. Com uma

abundância que marcava a felicidade dos redatores em terem encontrado um assunto

fácil(...)” (BARRETO, 198-, p. 71).

Por outro lado, o narrador define a imprensa como cúmplice e desaguadouro natural

do conjunto de idéias que passaram a vigorar a partir da nova ordem institucional. Era o

canal apropriado para a divulgação das idéias dos intelectuais positivistas e de funcionários

públicos que buscavam alçar grandes vôos no terreno movediço da Primeira República,

tendo como exemplo mais típico Genelício e o doutor Armando Borges, marido de Olga, a

afilhada de Quaresma.

A história de Policarpo, de fato, contém todos os ingredientes necessários para

servir de tema a uma grande reportagem, não fosse a obra de Lima Barreto ser constituída

de elementos ficcionais, tratando-se, na verdade, do que poderíamos chamar de romance

argumentativo, em cujo processo de interpretação do narrador tem prevalência o

patriotismo ufanista do herói em contraponto a uma nova realidade sócio-econômica e

política que se delineava no país com o advento da República.

Conforme Aristóteles, na Arte Retórica e Poética, “três são as questões relativas ao

discurso, que precisam de ser versadas a fundo: a primeira, donde se tirarão as provas; a

segunda, o estilo que se deve empregar; a terceira a maneira de dispor as diferentes partes

do discurso”(ARISTÓTELES, 19--, p.205). Othon Garcia, no livro Comunicação em prosa

moderna (GARCIA, 1983, p. 371) ensina que a consistência de raciocínio e a evidência das

provas são os principais elementos de sustentação do argumento; como provas são

necessários, em primeiro lugar, os fatos, seguidos dos exemplos, as ilustrações, os dados

estatísticos e o testemunho. Outros recursos importantes da argumentação são a

comparação e a metáfora, esta relacionada diretamente ao estilo.

A história de Policarpo Quaresma se passa durante o governo do presidente Floriano

Peixoto, cuja duração se deu entre 1891 e 1894. A consolidação da República havia sido

marcada por manifestos populares e da classe militar, como ocorreu com Revolução

Federalista, no sul do país, e a Revolta da Armada, com sublevação da Marinha. O próprio

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Euclides da Cunha participou deste movimento de insurreição, no Rio de Janeiro,

levantando barricadas e escrevendo artigos no jornal Gazeta de Notícias contra a proposta

de execução dos rebelados.

Além de alguns dos episódios que envolveram a Revolta da Armada, Triste Fim de

Policarpo Quaresma apresenta um caleidoscópio de reflexões sobre algumas questões

importantes que o marchar da história, do progresso, vai colocar em primeiro plano, como a

perda das tradições populares, a concentração das terras nas mãos do latifúndio, as benesses

oferecidas nos cargos públicos, o intelectual a serviço do poder e a repressão aos

dissidentes do regime.

“No terreno econômico observamos a eclosão de um espírito que se não era novo, se

mantivera no entanto na sombra e em plano secundário: a ânsia do enriquecimento, da

prosperidade material. Isto, na monarquia, nunca se tivera como um ideal legítimo e

plenamente reconhecido”, observa Caio Prado Júnior, em História Econômica do Brasil

(JÚNIOR, 1987, p. 208), ao avaliar o “progresso estupendo” do país, tendo como figura

principal e legitimada o homem de negócio.

O advento da República irá abrir caminho para que o capital estrangeiro tenha uma

participação ainda mais ativa no país que, segundo explica Caio Prado Júnior, atingira uma

presença expressiva no final do século 19 e início do 20 com o estabelecimento de grandes

bancos que se somaram a outras atividades expressivas como a exploração das estradas de

ferro, empresas de mineração e linhas de navegação, entre outras.

O romance de Lima Barreto se desenrola sob duas perspectivas argumentativas: a de

Policarpo Quaresma, que pretende, através do discurso fundado em sua brasiliana5 e em

ações concretas, dar um caráter nacional e desenvolvimentista à pátria brasileira, assumindo

neste caso uma visada idealista, e a do narrador/autor que se converge para a da

personagem Olga, ao refletir, de forma realista, sobre as ações do herói e os problemas

nacionais no decorrer da narrativa.

O protagonista tem nítida inspiração nas causas defendidas pelo historiador

Affonso Celso, cuja superioridade do Brasil, desde a sua grandeza territorial, passando

pelas belezas e riquezas naturais, até a formação do tipo nacional, é enumerada no pequeno

livro Porque me ufano do meu país, lançado em 1900 e dedicado às gerações futuras (mais

5 Os livros que fazem parte da brasiliana de Policarpo incluem escritores, como Gregório de Matos e José de Alencar, historiadores e cronistas europeus que descreveram a paisagem brasileira.

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propriamente seus filhos). O conde, escritor e professor de Direito era uma figura de idéias

liberais e cristãs, defensor da República que, depois de instalada, provocou-lhe frustrações

por não corresponder às suas expectativas.

“Queria, como pai, mas, sobretudo como patriota, que seus filhos e seus netos

amassem o Brasil, como ele e seus antepassados amaram, dando-se-lhe, mesmo, em

sacrifício, para o testemunhar”, (CELSO, 2001, p.18), atesta João de Scantimburgo, da

Academia Brasileira de Letras, no prefácio de Porque me ufano do meu país. Scantimburgo

é um dos defensores desse singelo compêndio de boas maneiras, de como amar a pátria,

escrito pelo conde Affonso Celso, em dissonância como o coro de historiadores e críticos

literários (Silvio Romero e José Veríssimo) que, na época de seu lançamento, pouquíssima

importância atribuíram ao livro.

Assim como em Policarpo, as idéias de Affonso Celso inspiraram reações

caricaturais no círculo jornalístico e nas conversas informais na rua do Ouvidor,

considerada na época caixa de ressonância dos acontecimentos da vida cultural do Rio de

Janeiro. “Policarpo Quaresma lê muito; prefere autores brasileiros. É um nacionalista

fanático, e mais que isso, um ufanista, como o conde Afonso Celso. Quaresma é daqueles

para quem tudo, no Brasil, é maior, é melhor”, compara Moacir Scliar, em Saturno nos

Trópicos: A melancolia européia chega ao Brasil (SCLIAR, 2003, p.221).

Na visão romanceada do conde, o Brasil era uma espécie de imenso Eldorado,

constituído da mais bela natureza, das maiores riquezas minerais e com uma importante

miscigenação de raça; um país sem guerras, sendo que seus argumentos eram embasados

em descrições e citações de viajantes estrangeiros e historiadores. Uma pátria onde “(...)

com trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições. Encontra-se a mais larga

acessibilidade a tudo, no meio de condições sociais únicas, sem distinção e divergência de

classes, em perfeita comunicação e homogeneidade da população” (CELSO, 2001, p.83).

A construção do ideário da pátria, da nação, surgia em conformidade com a

concepção capitalista de que a todos eram oferecidos os mesmos meios necessários para

lutar e conseguir ascender econômico e socialmente. Para isso, era necessário fundar o

“mito” de que não havia preconceito de classe e de raça e contradições sociais no país,

malgrado o exército republicano ter reprimido a balas de canhões milhares de sertanejos, na

vila de Canudos, e a história registrar o extermínio no processo de colonização de boa parte

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das nações indígenas, embora sendo os índios seres humanos “bondosos”, “sociáveis” e

“confiantes” e oferecerem respeitosa contribuição na formação do povo brasileiro,

conforme proclamava Affonso Celso.

A experiência de Canudos seria retratada dois anos depois do lançamento do livro

Porque me ufano do meu país, pelo escritor Euclides da Cunha que, apesar da formação

positivista da Escola Militar, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, expôs como nenhum

outro intelectual, naquele momento, as mazelas da República e a linha divisória que separa

a civilização e a barbárie. Em Os Sertões (lançado em 1902, pela Editora Laermmert), o

autor revela-nos que o Brasil era muito mais que o litoral e que nos recantos da pátria se

fortificara uma raça, mistura de portugueses e índios (denominada de mamelucos ou

curibocas) e que para esses sertanejos a salvação de todos os males e sofrimentos na terra

fundava-se no mito português do sebastianismo.

Para Euclides, a figura de Antonio Conselheiro era um misto de Jesus e Dom

Sebastião, o rei português que desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, na África. Os

sertanejos acreditavam na volta de Dom Sebastião como aquele que os conduziriam à terra

prometida e este era representado pelo líder religioso. Se a questão era mais de fundo

religioso que político, o fato é que o governo federal acreditava que Canudos estava sendo

patrocinado pelos monarquistas, um argumento equivocado na visão do escritor, apesar do

posicionamento de Antônio Conselheiro declaradamente contrário à República.

Mas o que interessa ressaltar neste estudo é que a consolidação da República, assim

como ocorreu após a independência do Brasil (1922), concebia um ideal de pátria, também

voltado para a construção da identidade nacional unificada, alterando apenas a tonalidade: o

espírito romântico, com o novo regime, cede espaço à visão tecnicista, normatizadora, cuja

explicação dos fenômenos sociais se dá à luz das leis científicas, a exemplo das teses

positivistas.

Ao explicar a invenção do Brasil moderno, o pesquisador e historiador Micael H.

Herschmnan atesta que o espírito romântico (dos escritores e bacharéis) que grassava

durante o período do Império, evocava a natureza como pedra fundamental e como mito de

origem da nação (1994, p. 54). Exemplo disso são os romances indigenistas e de descrição

das paisagens brasileiras que contribuíram para configurar no imaginário popular a noção

de pátria bela, pujante e promissora.

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O mito fundador da natureza, de acordo com Herschmnan, no entanto, vai ganhar

outra dimensão com o advento da República, desta vez deixando de ser um referencial para

explicar a própria existência. Ou seja, os bacharéis passaram a dividir espaço no âmbito da

elite intelectual e cultural do país com uma nova classe insurgente, segundo o autor,

composta de médicos, engenheiros e educadores para os quais o positivismo proporcionou

um “método”, e “fez desses cientistas ‘missionários do progresso’, ‘sacerdote do

conhecimento’, transformou a ciência no único caminho para se atingir a saúde plena do

‘corpo social’, ‘a civilização’” (p.56).

Será no calor das polêmicas de cunho nacional que Lima Barreto irá compor a

narrativa de Triste Fim de Policarpo Quaresma. Assim como o conde Affonso Celso, o

herói do romance do escritor carioca também está contaminado pela ideologia da criação no

imaginário popular de uma identidade nacional e pelo culto à pátria. As semelhanças, no

entanto, se prendem apenas ao começo do romance na medida em que Policarpo Quaresma

também é defensor da tese de que o Brasil “tinha todos os climas, todos os frutos, todos os

minerais e animais úteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais

hospitaleira, mais inteligente e mais doce do mundo(...) (BARRETO, 198-, p. 35).

Ou seja, Policarpo também é um estudioso da pátria, tem em sua biblioteca autores

em comum com Affonso Celso (havia lido História da América Portuguesa de Rocha Pita,

Gonçalves Dias e Darwin), mas difere-se do conde na medida em que busca colocar em

prática o seu projeto, de uma forma ingênua e singular. Além disso, sua trajetória é marcada

por uma série de decepções até atingir a consciência de que por inocência havia lutado por

uma causa perdida, de trágicas conseqüências.

A título biográfico, vale ressaltar que pai de Lima Barreto havia batizado o filho

com o nome de Afonso Henriques de Lima Barreto em homenagem ao Conde com quem

trabalhou no jornal A Reforma, do Partido Liberal. Na verdade, o perfil intelectual de

Quaresma é definido já no primeiro capítulo do romance:

Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos 20 anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois

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então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa. (p. 22)

Era patriota desde os 18 anos de idade e acreditava no sonho republicano. O clima

de mudanças lhe parecia propício à adoção de medidas de valorização das tradições,

definindo a modinha, como “expressão poético-musical característica da alma nacional”

(p.28), assim como os costumes e línguas indígenas. A trajetória e o ideal do herói serão

marcados, no entanto, por sucessivas frustrações, sendo que a primeira se configura,

quando juntamente com o general Albenaz, vai atrás da preta velha tia Maria Rita, para

resgatar as danças e festas populares do Brasil.

A personagem não se lembrava de tradições como o “Bumba-meu-Boi” e “Boi

Espácio”. “Os dous saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não

guardava as tradições de trinta anos passados?” (p.41). Diante de tal frustração, procuram

um literato cultivador de contos e canções populares, que lhes ensina a brincadeira do

“Tangolomango”, a qual Quaresma coloca em cena juntamente com as crianças numa das

festas na casa de Albenaz. Mas não demorou muito para ele descobrir que as tradições

repassadas pelo literato, inclusive, o “tangolomango”, eram estrangeiras.

Na verdade, o projeto patriótico de Policarpo Quaresma buscava alcançar dimensão

mais ampla e a primeira medida de peso para colocá-lo em prática estava amparada numa

estratégia de argumentação que, se num primeiro momento causou surpresa, posteriormente

foi motivo de chacota nos meios militares, nos círculos intelectuais e na imprensa. O

requerimento enviado por ele ao Congresso Nacional propunha a substituição da língua

portuguesa pelo tupi-guarani, sob a alegação de que a emancipação política do país estaria

estreitamente ligada a sua emancipação idiomática:

Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma – usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o

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Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro.(...) (p.70)

Se a estratégia de substituir a língua nacional aparece como o principal fio condutor

da narrativa na primeira parte de Triste Fim de Policarpo Quaresma, composta de cinco

capítulos, não se pode desprezar outros elementos capazes de dar maior complexidade e

unidade à obra. Temos aí o narrador como uma analista das ações e, como se não bastasse,

comprometido com o projeto e o “sonho generoso” e “desinteressado” do personagem. “É

raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um

grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mas orgulho de ser homem

e mais esperança na felicidade da raça” (p. 73).

Conforme o crítico literário, Silviano Santiago, em “Uma ferroada no peito do pé”,

na composição do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, ao invés de “ganchos”6,

Lima Barreto recorre “a pequenos ‘núcleos repetitivos’, cujo maior interesse é o de

apresentar um personagem explicando para outro o que foi mostrado de forma dramática

alguns dias antes. Ou seja: o personagem, ao explicar a cena anterior, está lendo-a,

decifrando-a, decodificando-a para outro personagem, e este, em última instância, faz as

vezes do leitor comum.” (SANTIAGO, 1982, p. 164)

A redundância, na sua maneira de ver, atua como uma força-limite para atar os fios

dispersos de uma intriga original, para dar-lhe sentido, intriga esta que se desloca do

subúrbio carioca para uma repartição pública, desta para o campo, e do campo para o

Ministério da Guerra. (p.166). Mas vale ressaltar que a repetição, assim como a

comparação e as metáforas, também assumem caráter argumentativo no sentido de revelar

ao leitor o sentido da nova pátria que acaba de surgir em decorrência das transformações do

regime.

Assim, na primeira parte de Triste Fim de Policarpo Quaresma é apresentado um

comparativo entre os perfis de dois tipos de funcionários públicos vigentes na época.

Enquanto Policarpo tem como principal objetivo conhecer para solucionar os males da

pátria, Genelício articula como meta um projeto individual e carreirista. “Empregado do

6 Silviano explica que o conceito de “gancho” é retirado da retórica jornalística para aplicá-lo ao estudo das narrativas seriadas e populares, conservando, no entanto, o seu sentido original. Cita a definição do termo, conforme o Dicionário da Comunicação ( Rio, Codecri, 1978): Início de uma matéria jornalística, escrito de maneira a prender a atenção do leitor e interessá-lo pelo restante do texto”.

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Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de 30 anos, ameaçava ter um grande

futuro. Não havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele”. (BARRETO, 198-, p.

65).

Como se não bastasse, Genelício integra uma casta de intelectuais republicanos, nos

quais a retórica vazia e o discurso ornamental encontravam nos jornais e na vida pública

um campo fértil para as suas ações. “Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como

intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de nascimento, era um

soneto que começava sempre por -- “Salve” – e acabava também por – “Salve! Três vezes

Salve!” (p. 65).

Da mesma natureza, era o médico casado com Olga, afilhada de Quaresma, e para

quem o que interessava era obter altos cargos no governo que se instaurava, nem que para

isso fosse necessário se colocar acima das condutas morais. Luis Costa Lima define bem o

perfil do intelectual brasileiro que se desenvolveu durante a formação cultural do país. Ele

desenvolve a tese de que por aqui germinou uma tradição da cultura auditiva, uma amor

pelo discurso que teve origem nas pregações jesuíticas e nas escolas de Direito em prejuízo

da familiaridade com a escrita. (LIMA, 1981, p. 15).

Numa sociedade em que a aspiração social e o compadrio vigoram, o requerimento

de Quaresma solicitando a substituição da língua portuguesa pelo tupi-guarani vai soar

como ousadia na repartição onde trabalha. A situação complicará ainda mais depois que

ele, ao substituir um funcionário, acaba passando a limpo um ofício em tupi, o qual

assinado, sem perceber pelo diretor, e vai dar ao ministério.

A implicações posteriores a este fato servem para reforçar o perfil do intelectual

que predominava nos tempos da República. Ao tentar esclarecer a autoria do ofício, o

diretor questiona Quaresma, que assume o erro. O diálogo ocorre nos seguintes termos:

-- Então confessa?-- Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...-- Não sabe! O que diz?O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a

mão levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de ensino que freqüentava, a escola da Praia Vermelha, o primeiro estabelecimento científico do país. (BARRETO, 198-, p.82).

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A referência à escola da Praia Vermelha é uma das muitas demonstrações críticas do

autor ao positivismo7, no qual se baseava o ideário e as ações do governo republicano. Esta

visão é respaldada, na seqüência, na alusão a grandes personagens do positivismo e aos

bacharéis, na linha de um tipo de discurso arraigado na cultura brasileira, “Afinal, o senhor

sabe com quem está falando?” e que é explicitado na continuação da conversa entre o

diretor e Quaresma: “– Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor

porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor Matemática, Astronomia, Física,

Química, Sociologia e Moral?”. (p.83).

A tese defendida por Herschmann, sobre a perfil do intelectual no começo da

República, encontra ressonância nas reflexões do narrador sobre o posicionamento de

imigrante Coleoni a respeito da escolha matrimonial da filha Olga: “Ele havia se havia

habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem

a sua nobreza; lá é visconde; aqui é doutor, bacharel ou dentista(...)”. (p. 76).

Ainda na primeira parte do romance, é importante observar o tom comparativo entre

as personagens Olga e Ismênia. Agindo de forma independente e respaldada por uma boa

situação financeira, a primeira via o casamento como apenas um hábito da sociedade e

procurava no marido o heróico e o fora do comum para alargar seus horizontes e a

sensibilidade. Já para Ismênia, filha do general Albenaz, contrair matrimônio representava

“uma idéia fixa, uma pura idéia”, (p. 52), ou seja, este era o caminho natural de qualquer

mulher no contexto de uma sociedade de características patriarcais.

O capítulo intitulado “Bibelot” vai encerrar com maestria a primeira parte do

romance. Nele, o autor lança mão de uma narrativa melancólica para atestar a loucura de

Policarpo Quaresma e, principalmente, anunciar uma futura degradação física e psíquica da

personagem Ismênia. A quebra de um biscuit é utilizada como a metáfora do pouco valor

social e existencial da personagem: “Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço

num dunkerque, veio atirar ao chão uma figurinha de biscuit, que se esfacelou em inúmeros

fragmentos, quase sem ruído”. (p.101). Aqui, vale lembrar Aristóteles, para quem as

metáforas são enigmas velados(...) (ARISTÓTELES, 19--, p. 211).

7 O próprio Lima Barreto chegou a ter contato com esta filosofia nas prédicas dominicais de Teixeira Mendes, na Igreja Positivista do Brasil. Mas por pouco tempo, uma vez que com o tempo passou a adotar um juízo crítico sobre a doutrina, mostrando-se mais tarde simpatizante da Revolução de 17.

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Já a segunda estratégia argumentativa de Policarpo Quaresma tem como meta

mostrar as excelências do Brasil e provar que o desenvolvimento do país carece de uma

sólida base agrícola. E será neste projeto que o personagem vai lançar apostas após sua

saída do hospício, com a aquisição do sítio do “Sossego” por sugestão de Olga. Em

Quaresma, permanecerá de maneira muito arraigada a ideologia de que na pátria grandiosa,

“em se plantando, tudo dá”.

Uma das marcas do projeto utópico de Quaresma será, inclusive, o total

distanciamento das injunções político-ideológicas e partidárias, tanto que permanecerá

avesso às articulações locais na pequena comunidade onde estava localizado o seu sítio.

“Era tolo estar a pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à terra

e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...”(BARRETO, 198-, p. 117) Neste sentido, a

postura do personagem, mediante as articulações que ocorriam durante a República, faz-lhe

adotar um tom bastante conservador: “O sufrágio universal pareceu lhe um flagelo”.

(p.117).

A segunda parte de Triste Fim de Policarpo Quaresma colocará novamente em

relevo o projeto do protagonista, numa confrontação com a trajetória de Genélicio, agora

casado com Dona Quinota, filha do General Albenaz, ocupando um bom cargo no governo

e acumulando elogios da imprensa por ter escrito uma volumosa obra nos moldes

positivista (Síntese da Contabilidade Pública Científica), na qual dois terços são ocupados

com documentação de decretos e portarias.

O recurso da repetição, elemento importante na arte da argumentação, será

colocado novamente em prática para reforçar o gosto pelas fórmulas prontas e a cultura

ornamental dos intelectuais da Primeira República. Será exposta pelo narrador na descrição

irônica a respeito dos estudos realizados pelo doutor Armando Borges, marido de Olga. “O

sono não tardava a vir ao fim da quinta página... Isso era o diabo! Deu em procurar os

livros da mulher. Eram romances franceses, Goncourt, Anatole France, Daudet,

Maupassant, que o faziam dormir da mesma maneira que os tratados.” (p.185).

E com o avançar da narrativa, o tom melancólico (já anunciado no título da obra) irá

estabelecer uma co-relação entre o estado de alma dos personagens com a paisagem triste e

miserável da pátria grande, num contraponto ao discurso ufanista do herói. O capítulo

“Espinhos e Flores”, por exemplo, traz a descrição do subúrbio e a frustração do cantor e

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compositor de modinhas, Ricardo Coração de Leão pelo seu não reconhecimento, apesar de

valorizar um gênero tipicamente nacional. “E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos

afora. Olhou um pouco as montanhas, farejou o mar lá longe... Era bela a terra, era linda,

era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito omnipresente que se fazia negro

e mau quando não era amaciado pela verdura das árvores”. (p. 123).

Na verdade, não será menos melancólica a descrição de outro espaço, o meio rural,

conforme fica demonstrado num passeio de Olga à cachoeira, em visita que faz juntamente

com o marido ao sítio do “Sossego”. “O que mais a impressionou no passeio foi a miséria

geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar abatido da gente pobre. (...)Ela vira até

fazendas fechadas, com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses latifúndios

inúteis e improdutivos?” (p.152). A resposta lhe havia chegado através da voz de

Felizardo, empregado no sítio de Quaresma: --Terra não é nossa... E “frumiga”... Nós não

tem ferramenta... Isso é bom para italiano ou ‘alamão’, que o governo dá tudo... Governo

não gosta de nós...” (p.151). A consciência de Olga sobre o atraso e o subdesenvolvimento

do país não tardará a se manifestar em Policarpo Quaresma:

“Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d’olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terra abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insectos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos (...) ( p. 170).

A análise deste sentimento, que perpassa toda a obra de Lima Barreto e que a

sintoniza com as condições de miséria e o estado de pestilência da população, é realizada

pelo escritor Paulo Prado em tratado sobre a tristeza brasileira e que abre caminho para

outros textos clássicos que tematizam a construção da identidade nacional, a partir da

década de 30, como Casa grande & senzala, de Gilberto Freire e Raízes do Brasil, de

Sérgio Buarque de Holanda:

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“Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar”.(PRADO, 1929, p.9)

Além dessa tonalidade, diria pessimista, a argumentação na segunda parte do livro

Triste Fim de Policarpo Quaresma é reforçada novamente por uma figura de estilo, numa

das passagens mais reveladoras do romance de Lima Barreto. “O major levantou-se,

agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde partia o ruído, assim mesmo como

estava, em camisa de dormir. Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu

uma ferroada no peito do pé” (BARRETO, 198-, p.154). Ou seja, “pouca saúde, e muita

saúva os males do Brasil são”, como diria posteriormente Macunaína, personagem que dá

título a uma das obras de Mário de Andrade.

Assim como a do biscuit, a imagem da ferroada no pé de Policarpo e o ataque das

formigas dão conta novamente de outra frustração do personagem na tentativa de levar a

cabo a sua brasiliana. Ao tomar consciência dos problemas decorrentes de suas tentativas

agrícolas (colheitas sem lucros e altos impostos), Quaresma passa a acreditar que a única

forma de tornar a pátria feliz e justa será refazer a administração do país. Assim decide

contribuir com o governo, no momento em que irrompe, no Rio de Janeiro, a Revolta da

Armada. E manda um telegrama ao presidente: ‘“Marechal Floriano, Rio. Peço energia.

Sigo já – Quaresma’”. (p.172). Quaresma acredita no sonho republicano, comparando o

marechal a Sully e Henrique IV.

Mas num contraponto ao sonho do protagonista, o narrador/autor fará uma crítica

contundente à repressão (perda de emprego e liberdade) adotada pelo governo contra os

inimigos do regime, não medindo esforços para ironizar e atacar os simpatizantes do

positivismo. “(...) em outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade.

Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e

estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, em nome da manutenção

da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso(...)” ( p.180).

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Nota-se que com o avançar da narrativa, as opiniões de Olga e do narrador/autor

ganham maior convergência, numa visível oposição ao governo de Floriano Peixoto, seja

por se posicionarem declaradamente a favor dos rebeldes ou por tecerem considerações a

respeito da falta de simpatia do governo junto ao povo, incapaz de cumprir as promessas e

realizar as reformas necessárias. (p.188).

Neste sentido, há um descolamento maior, no sentido da crítica político-social, em

relação ao pensamento do protagonista que, como última estratégia, irá expor num

memorial, a ser entregue pessoalmente ao marechal Floriano Peixoto, “as medidas

necessárias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos

da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados

e das violências políticas”. (p.192).

O palácio do governo será apresentado como uma extensão da casa, do ambiente

privado, um lugar onde os cadetes da Escola Militar, ou seja, todos os positivistas, eram

recebidos com privilégios. O narrador/autor fará um retrato caricatural da figura do

marechal Floriano, apresentando-o ao leitor como fraco de caráter e inteligência: “Era

vulgar e desoladora. O bigode caído; o lado inferior pendente e mole a que se agarrava uma

grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou

olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo,

pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e

todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos”. (p.194)

A definição utilizada para dar conta do modo de governar de Floriano revela que

ainda, conforme Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, não era fácil para os

detentores das posições públicas compreender a distinção pública entre os domínios do

público e do privado. “Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o

funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o

funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu

interesse particular”. (HOLANDA, 1995, p.145)

A forma de administrar a nação, conforme descrição do autor/narrador, confirma a

tese do historiador: “A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,

nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se.

Levada a cousa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às

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suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte”.(BARRETO, 198-,

p.197).

Se as posições do narrador/autor e Olga quanto ao sonho republicano são bastante

realistas e não dão margem a qualquer possibilidade de esperança quanto às transformações

sociais, Quaresma, pelo contrário, ainda continuará acreditando no marechal, mesmo depois

de ver parte de seu manuscrito, contendo as propostas para a salvação da pátria, rasgada por

Floriano para servir de bilhete, numa de suas “ordens domésticas”.

Depois do encontro no Palácio, o protagonista, escalado para servir ao governo no

Batalhão Cruzeiro do Sul visando conter os revoltosos, verá novamente o marechal que, às

vezes, costumava percorrer durante a noite os postos militares8. Quaresma aproveita a

ocasião para interpelar Floriano Peixoto sobre o seu memorial. Este mostra sinais de

aborrecimento, para logo dizer: “-- Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr enxada

na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...” . E para fechar a

conversar irá definir Policarpo como “um visionário”. (p.227)

A revolta da Marinha termina após sete meses de lutas e marcará também a morte

do personagem, que é mandado para a masmorra, por ter escrito uma carta ao presidente

protestando contra a execução de prisioneiros. O balanço feito pelo herói retratará a

consciência do fim de um ideal, de um sonho republicano, marcado por sucessivas

frustrações: “Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma! O tupi

encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma

decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam

os livros. Outra decepção. E quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara?

Decepções”. (p.269).

O ideal de pátria de Quaresma é confrontado pelo autor/narrador com a realidade

política vivenciada no país, uma realidade marcada pela violência, pelo compadrio e pelas

ambições pessoais. “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele

8 Esta parte da narrativa de Triste Fim de Policarpo Quaresma dialoga, por assim dizer, com o texto “A Esfinge (De um Diário da Revolta)”, reunido no livro Contrastes e Confrontos, de Euclides da Cunha. “Aproximavam-se dois vultos. Nada tinham de alarmantes, porque a guarda, velando a entrada da rua, lhes permitira a passagem. Vinham à paisana. Chegaram até à borda da plataforma, onde uma lanterna clareava o estrado num raio de dois metros; e pararam. Aproximei-me, saudando-os.(...) Reconheci-o e emudeci, respeitando-lhe o incógnito. Vi-o logo depois abeirar-se da trincheira; e debruçar-se sobre o plano de fogo, e ali ficar meio minuto, pensativo, a vista cravada entre a afumadura das brumas, na outra banda da baía. – Estão tranqüilos... murmurou.

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no silêncio de seu gabinete (...) A que existia de fato, era a do Tenente Antonino, a do

doutor Campos, a do homem do Itamarati”. (pág. 269).

Vale ressaltar que não há por parte do autor/narrador qualquer julgamento político a

respeito das idéias e ações de Policarpo Quaresma, e sim, a exemplo de Olga, uma

aderência ao discurso mais crítico e avançado no que se refere à questão ideológica e à

maneira de pensar a pátria nos primeiros momentos da República. Policarpo Quaresma,

por sua vez, mesmo tendo consciência da triste realidade da pátria permanecerá fiel ao seu

sonho (já não mais republicano), até o final do romance.

Se o protagonista por força de um ideal quer convencer de que a saída para os males

do Brasil está nas próprias ações do governo instituído, as argumentações do narrador/autor

e a personagem Olga seguem noutra direção numa demonstração de simpatia aos revoltosos

diante da violência, da política de concentração das terras e do estado de miséria da

população. Isto fica claro numa das conversas que Olga tem com o marido e o pai Coleoni

quando o assunto são os revoltosos:

-- Mas vocês só falam patriotismo? E os outros? É monopólio de vocês o patriotismo? fez Olga.

-- Decerto. Se eles fossem patriotas não estariam a despejar balas para a cidade, a entorpecer, a desmoralizar a ação da autoridade constituída.

- Deveriam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui e no Sul? (p.188).

Para Silviano Santiago, a ficção de Lima Barreto será o elemento que vai provocar

um curto-circuito crítico inapelável na cadeia discursiva nacional-ufanista. “É o primeiro e

histórico curto-circuito operado na cadeia. Este acidente chamaria a atenção para o fato

concreto de que todo discurso sobre o Brasil foi irremediavelmente idealista, comprometido

que estava com um discurso religioso e paralelo e que, finalmente, foi o dominador. (...)”.

(SANTIAGO, p.175). Em suas reflexões, apresenta como exemplo Pero Vaz de Caminha,

para o qual o mediador óbvio foi o texto bíblico.

Já Antonio Cândido, citando Mário Vieira de Mello, observa que a noção de país

novo e de grandeza ainda não realizada predominou no país até 1930. “A idéia de pátria se

vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa”.

(CANDIDO, 2000, p.141). Na sua opinião a consciência de subdesenvolvimento só se fará

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presente na literatura brasileira, a partir de 1950, embora a partir de 30 “já tinha havido

mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista. (...) Não é falso dizer que, sob este

aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de

consciência dos economistas e políticos”. (p. 142).

Se a consciência do desenvolvimento tem início ou não no sistema literário nacional

a partir da década de 30, o fato é que a obra de Lima Barreto será a primeira a trazer

reflexões, numa narrativa mais colada ao real, sobre as contradições da nova pátria. Mais

ainda: irá colocar em xeque dois tipos de intelectuais: o patriota, ingênuo e romântico,

representado por Policarpo Quaresma, que acredita que numa perspectiva individual poderá

solucionar os males do país e do outro lado os positivistas, para quem a ciência, a

normatização do comportamento e a medicina por si só bastam para retirar a nação do

atraso.

Na categorias formuladas por Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-

modernidade, Policarpo Quaresma se enquadraria no sujeito centrado do iluminismo, mas

dotado de coloração romântica na concepção de seu projeto, uma vez as condições sociais e

políticas de seu tempo ainda não ofereciam as bases para o desenvolvimento do sujeito

sociológico9. Do mesmo modo, também não se encaixa no perfil do nacionalista de

esquerda ou direita observado por Roberto Schwartz, em “Nacional por Subtração”, do

livro Que horas são?: ensaios.

Quaresma é, sim, personagem de uma sinfonia melancólica e exasperadora de uma

fase de grandes transformações do país, onde não há mais espaço para o intelectual

romântico, ingênuo e solitário, ainda fruto do período monárquico. A identidade nacional

começava a ser construída sobre a égide de outro discurso, ligado ao positivismo e às

medidas de caráter saneador. Um novo discurso que passaria ao largo da atonia vivenciada

pela população, conforme descrita pelo narrador, ou seja, uma espécie de desânimo doentio,

de indiferença nirvanesca por tudo que cercam de uma calagem de tristeza desesperada a

nossa raça e tira-lhe o encanto, a poesia, o viço sedutor de plena natureza. (p.252).

O fato é que sob o pano de fundo da paisagem grandiosa, as saúvas não eram os

únicos males do Brasil. E assim proliferaram as teorias de raça, do enfraquecimento e

9 Hall distingue três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O primeiro trata-se de indivíduo totalmente centrado; o segundo preenchendo o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público e terceiro como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.

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neurastenia provocados pela mestiçagem; a tese da degenerescência de Nina Rodrigues,

para explicar este sentimento apático e melancólico do homem comum brasileiro. Os

remédios começaram a surgir. “Mas era o trópico que gerava as doenças, ou as condições

de vida no trópico?” Para Moacyr Scliar, “esta pergunta, em geral, ficava sem resposta,

mesmo porque era mais fácil lidar com o micróbio do que com a miséria”10. (SCLIAR,

2003, p. 199).

10 No livro Em Saturno nos Trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, Moacyr Scliar vai elaborar um

vasto painel histórico sobre a melancolia na Antiguidade Clássica, na Renascença e no Brasil, tendo como ponto de

partida a obra clássica de Robert Burt, A anatomia da melancolia, publicada na Inglaterra em 1621. Scliar dedica boa

parte do livro a analisar as repercussões da melancolia na cultura brasileira.

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REFERÊNCIAS

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Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco,

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