Lima Barreto - O Javanes e Outros Contos

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Lima Barreto - O Javanes e Outros Contos

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O Homem que sabia Javans e outros contos

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O homem que sabia Javans e outros contos, de Lima Barreto

Fonte:

BARRETO, Lima. O homem que sabia javans e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paran, 1997.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Rodrigo Souza, Curitiba - PR

Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para .

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O Homem que sabia Javans e outros contos

1.O homem que sabia javans

2.Trs gnios de secretaria

3.O nico assassinato de Cazuza

4.O nmero da sepultura

5.Manuel Capineiro

6.Milagre do Natal

7.Quase ela deu o sim; mas...

8.Foi buscar l...

9.O falso Dom Henrique V

10.Eficincia militar

11.O pecado

12.Um que vendeu sua alma

13.Carta de um defunto rico

14.Um especialista

15.O filho da Gabriela

16.A mulher do Anacleto

17.O caador domstico

Lima Barreto

O Homem Que Sabia Javans

EM UMA confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado s convices e s respeitabilidades, para poder viver.

Houve mesmo, uma dada ocasio, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiana obter dos clientes, que afluam ao meu escritrio de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.

O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, at que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

- Tens levado uma vida bem engraada, Castelo !

- S assim se pode viver... Isto de uma ocupao nica: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, no achas? No sei como me tenho agentado l, no consulado !

- Cansa-se; mas, no disso que me admiro. O que me admira, que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrtico.

- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas pginas de vida. Imagina tu que eu j fui professor de javans!

- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?

- No; antes. E, por sinal, fui nomeado cnsul por isso.

- Conta l como foi. Bebes mais cerveja?

- Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na misria. Vivia fugido de casa de penso em casa de penso, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comrcio o anuncio seguinte:

"Precisa-se de um professor de lngua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse c comigo, est ali uma colocao que no ter muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Sa do caf e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javans, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradveis com os "cadveres". Insensivelmente dirigi-me Biblioteca Nacional. No sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopdie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a lngua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquiplago de Sonda, colnia holandesa, e o javans, lngua aglutinante do grupo maleo-polinsico, possua uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Encyclopdie dava-me indicao de trabalhos sobre a tal lngua malaia e no tive dvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciao figurada e sa. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabea danavam hierglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guard-los bem na memria e habituar a mo a escrev-los.

noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propsito que, de manh, o sabia perfeitamente.

Convenci-me que aquela era a lngua mais fcil do mundo e sa; mas no to cedo que no me encontrasse com o encarregado dos aluguis dos cmodos:

- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi-lhe ento eu, com a mais encantadora esperana:

- Breve... Espere um pouco... Tenha pacincia... Vou ser nomeado professor de javans, e...

Por a o homem interrompeu-me:

- Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?

Gostei da diverso e ataquei o patriotismo do homem:

- uma lngua que se fala l pelas bandas do Timor. Sabe onde ?

Oh! alma ingnua! O homem esqueceu-se da minha dvida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:

- Eu c por mim, no sei bem; mas ouvi dizer que so umas terras que temos l para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?

Animado com esta sada feliz que me deu o javans, voltei a procurar o anncio. L estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma ocenico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e l deixei a carta. Em seguida, voltei biblioteca e continuei os meus estudos de javans. No fiz grandes progressos nesse dia, no sei se por julgar o alfabeto javans o nico saber necessrio a um professor de lngua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e histria literria do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Baro de Jacuecanga, Rua Conde de Bonfim, no me recordo bem que numero. E preciso no te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto , o tal javans. Alm do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, tambm perguntar e responder "como est o senhor?" - e duas ou trs regras de gramtica, lastrado todo esse saber com vinte palavras do lxico.

No imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos ris da viagem! mais fcil - podes ficar certo - aprender o javans... Fui a p. Cheguei suadssimo; e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o nico momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas no sei porque me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansao de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que no era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujana vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhores e as begnias. Os crtons continuavam, porm, a viver com a sua folhagem de cores mortias. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodo davam sua fisionomia uma aguda impresso de velhice, doura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bands, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos balo; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarro de porcelana da China ou da ndia, como se diz. Aquela pureza da loua, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mos de criana, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trpego, com o leno de alcobaa na mo, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se no fosse ele o discpulo, era sempre um crime mistificar aquele ancio, cuja velhice trazia tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

- Eu sou, avancei, o professor de javans, que o senhor disse precisar.

- Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor daqui, do Rio?

- No, sou de Canavieiras.

- Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo, - Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. - Onde fez os seus estudos?

- Em So Salvador.

- Em onde aprendeu o javans? indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.

No contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javans. Tripulante de um navio mercante, viera ter Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javans.

- E ele acreditou? E o fsico? perguntou meu amigo, que at ento me ouvira calado.

- No sou, objetei, l muito diferente de um javans. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basan podem dar-me muito bem o aspecto de um mestio de malaio...Tu sabes bem que, entre ns, h de tudo: ndios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, at godos. uma comparsaria de raas e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

- Bem, fez o meu amigo, continua.

- O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu fsico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doura:

- Ento est disposto a ensinar-me javans?

- A resposta saiu-me sem querer: - Pois no.

- O senhor h de ficar admirado, aduziu o Baro de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

- No tenho que admirar. Tm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... ? .

- O que eu quero, meu caro senhor....

- Castelo, adiantei eu.

- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, cumprir um juramento de famlia. No sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em lngua esquisita, a que tinha grande estimao. Fora um hindu ou siams que lho dera, em Londres, em agradecimento a no sei que servio prestado por meu av. Ao morrer meu av, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javans. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraas e traz felicidades para quem o tem. Eu no sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sbio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raa seja feliz." Meu pai, continuou o velho baro, no acreditou muito na histria; contudo, guardou o livro. s portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em comeo, pouco caso fiz da histria do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei at a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraas tm cado sobre a minha velhice que me 1embrei do talism da famlia. Tenho que o ler, que o compreender, se no quero que os meus ltimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entend-lo, claro, que preciso entender o javans. Eis a.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instrues e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, s lhe restando uma filha casada, cuja prole, porm, estava reduzida a um filho, dbil de corpo e de sade frgil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamao, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso no se podia ler a data da impresso. Tinha ainda umas pginas de prefcio, escritas em ingls, onde li que se tratava das histrias do prncipe Kulanga, escritor javans de muito mrito.

Logo informei disso o velho baro que, no percebendo que eu tinha chegado a pelo ingls, ficou tendo em alta considerao o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapcio, laia de quem sabe magistralmente aquela espcie de vascono, at que afinal contratamos as condies de preo e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrbio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lio, mas o velho no foi to diligente quanto eu. No conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um ms e o Senhor Baro de Jacuecanga no ficou l muito senhor da matria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que at a nada sabiam da histria do livro) vieram a ter notcias do estudo do velho; no se incomodaram. Acharam graa e julgaram a coisa boa para distra-lo.

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, com a admirao que o genro ficou tendo pelo professor de javans. Que coisa nica! Ele no se cansava de repetir: um assombro! To moo! Se eu soubesse isso, ah! onde estava !

O marido de Dona Maria da Glria (assim se chamava a filha do baro), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas no se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admirao pelo meu javans. Por outro lado, o baro estava contentssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro no, um trecho do livro encantado. Bastava entend-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que at hoje nada sei de javans, mas compus umas histrias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crnicon. Como ele ouvia aquelas bobagens !...

Ficava exttico, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos !

Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herana de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javans; e eu estive quase a cr-lo tambm.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente algum que soubesse o tal patu malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce baro me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objees: a minha fealdade, a falta de elegncia, o meu aspecto tagalo. - "Qual! retrucava ele. V, menino; voc sabe javans!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendaes. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de seco: "Vejam s, um homem que sabe javans - que portento!"

Os chefes de seco levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com dio do que com inveja ou admirao. E todos diziam: "Ento sabe javans? difcil? No h quem o saiba aqui!"

O tal amanuense, que me olhou com dio, acudiu ento: " verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que no e fui presena do ministro.

A alta autoridade levantou-se, ps as mos s cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: "Ento, sabe javans?" Respondi-lhe que sim; e, sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a histria do tal pai javans. "Bem, disse-me o ministro, o senhor no deve ir para a diplomacia; o seu fsico no se presta... O bom seria um consulado na sia ou Oceania. Por ora, no h vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrar. De hoje em diante, porm, fica adido ao meu ministrio e quero que, para o ano, parta para Ble, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingstica. Estude, leia o Hovelacque, o Max Mller, e outros!"

Imagina tu que eu at a nada sabia de javans, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sbios.

O velho baro veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.

Pus-me com af no estudo das lnguas maleo-polinsicas; mas no havia meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, no tinha energia necessria para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "L vai o sujeito que sabe javans." Nas livrarias, os gramticos consultavam-me sobre a colocao dos pronomes no tal jargo das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javans. A convite da redao, escrevi, no Jornal do Comrcio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

- Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.

- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxlio de dicionrios e umas poucas de geografias, e depois citei a mais no poder.

- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.

- Nunca. Isto , uma vez quase fico perdido. A polcia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que s falava uma lngua esquisita. Chamaram diversos intrpretes, ningum o entendia. Fui tambm chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem j estava solto, graas interveno do cnsul holands, a quem ele se fez compreender com meia dzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javans - uf!

Chegou, enfim, a poca do congresso, e l fui para a Europa. Que delcia! Assisti inaugurao e s sesses preparatrias. Inscreveram-me na seco do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porm, fiz publicar no Mensageiro de Ble o meu retrato, notas biogrficas e bibliogrficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seco; no conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a seco do tupi- guarani. Aceitei as explicaes e at hoje ainda no pude escrever as minhas obras sobre o javans, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Ble, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herana do crdulo e bom Baro de Jacuecanga.

No perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glria nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovao de todas as classes sociais e o presidente da repblica, dias depois, convidava-me para almoar em sua companhia.

Dentro de seis meses fui despachado cnsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeioar os meus estudos das lnguas da Malaia, Melansia e Polinsia.

- fantstico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

- Olha: se no fosse estar contente, sabes que ia ser ?

- Que?

- Bacteriologista eminente. V amos?

- Vamos.

Gazeta da Tarde, Rio.28-4-1911.

Lima Barreto

Trs Gnios de Secretaria

O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de S - mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pr de meu, eu as dou aqui, para a meditao dos leitores:

"ESTAS MINHAS memrias que h dias tento comear, so deveras difceis de executar, pois se imaginarem que a minha secretaria de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notvel, bem avaliaro em que apuros me encontro para dar volume s minhas recordaes de velho funcionrio. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das cousas e fatos, narrando o que me acudir de importante, proporo de escrev-las. Ponho-me obra.

Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos ns nascemos para empregado pblico. Foi a reflexo que fiz, ao me Julgar to em mim, quando, aps a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mnimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de h muito j o fizesse. To depressa foi a minha adaptao que me julguei nascido para ofcio de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramtica e o meu pssimo cursivo, na sua misso de regular a marcha e a atividade da nao.

Com familiaridade e convico, manuseava os livros - grandes montes de papel espesso e capas de couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carcia das minhas mos e a doce violncia da minha escrita.

Puseram-me tambm a copiar ofcios e a minha letra to m e o meu desleixo to meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbao no desenrolar das cousas governamentais.

Mas, como dizia, todos ns nascemos para funcionrio publico. Aquela placidez do ofcio, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posio e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medocre - tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada tm de imprevisto, no pedem qualquer espcie de esforo a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colises, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, inveno das melhores da nossa Repblica.

De resto, tudo nele sossego e quietude. O corpo fica em cmodo jeito; o esprito aquieta-se, no tem efervescncia nem angstias; as praxes esto fixas e as frmulas j sabidas. Pensei at em casar, no s para ter uns bate-bocas com a mulher mas, tambm, para ficar mais burro, ter preocupaes de "pistoles", para ser promovido. No o fiz; e agora, j que no digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar porque. Casar-me no meu nvel social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instruo e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figures, para darem-me cargos, propinas, gratificaes, que satisfizessem s exigncias da esposa. No queria uma nem outra cousa. Houve uma ocasio em que tentei solver a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha situao. a tal histria da criada... A foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram.

No podia, nem devia ocultar a ningum e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era me dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de faz-lo para continuar a minha narrao...

Quando, de manh, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, no h novidade de espcie alguma e, j da pena, escreve devagarinho: "Tenho a honra", etc., etc.; ou, republicanamente, "Declaro-vos. para os fins convenientes", etc.. etc. Se h mudana, pequena e o comeo j bem sabido: "Tenho em vistas"... - ou "Na forma do disposto"...

s vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de frmulas e chapas; e so os mais difceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualvel.

O doutor Xisto j conhecido dos senhores, mas no dos outros gnios da Secretaria dos Cultos. Xisto estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua limitao intelectual, merece respeito pela honestidade que pe em todos os atos de sua vida, mesmo como funcionrio. Sai hora regulamentar e entra hora regulamentar. no bajula. nem recebe gratificaes.

Os dous outros, porm, so mais modernizados. Um "charadista", o homem que o diretor. consulta, que d as informaes confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este ningum sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiana de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu trs passos na hierarquia e arranjou quatro gratificaes mensais ou extraordinrias. No m pessoa, ningum se pode aborrecer com ele: uma criao do ofcio que s amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoes. H casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferncia burocrtica, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos ps-lhe sempre na alma uma caligem de mistrio e uma necessidade de impor aos outros adivinhao sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. sempre doutor em qualquer cousa; pode ser mesmo engenheiro hidrulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer cousa; mas no veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra. donde deveria ter sado em planta, em animal e, se fosse possvel, em mineral qualquer. intil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernstico.

Instalado no Rio, com fumaas de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, no para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer cousa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida, to-somente caminho para o cemitrio, no quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. H os que vem mais alto e se servem do mesmo meio; mas so a quintessncia da espcie.

Na Secretaria dos Cultos, o seu tpico e clebre " auxiliar de gabinete", arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminrio, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristes, irms de caridade, doutores em cnones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesistico.

O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminrio uma fsica muito prpria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

Tinha ele uma filha a casar e o "auxiliar de gabinete", logo viu no seu casamento com ela, o mais fcil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com casto de ouro.

Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o "sogro", sem escrpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele "o noivo".

Que se havia de fazer? O rapaz precisava.

O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (j o era de fato) arranjou-lhe o lugar de "auxiliar de gabinete" do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro for .. mula se despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e gritou:

- Quem a o doutor Mata-Borro?

O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperana nos olhos:

- Sou eu, excelncia.

- O senhor fica. O seu "sogro" j me disse que o senhor precisa muito.

ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, de uma prospia de Napoleo, de quem se no conhecesse a Josefina.

A todos em que ele v um concorrente, traioeiramente desacredita: bbedo, joga, abandona a mulher, no sabe escrever "comisso", etc. Adquiriu ttulos literrios, publicando a Relao dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, no se esquece de dizer: " Como Rui Barbosa, o Chico..." ou "Como Machado de Assis, meu marido s bebe gua."

Gnio domstico e burocrtico, Mata-Borro, no chegar, apesar da sua maledicncia interesseira, a entrar nem no inferno. A vida no unicamente um caminho para o cemitrio; mais alguma cousa e quem a enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu imprio; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela das criaes sociais aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligncia, e os influxos naturais e fsicos ao indivduo. um expressivo documento de seleo inversa que caracteriza toda a nossa sociedade burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulao dos melhores da inteligncia, de saber, de carter e criao, o triunfo inexplicvel de um Mata-Borro por a".

Pela cpia, conforme.

Brs Cubas, Rio, 10-4-1919.

Lima Barreto

O nico Assassinato de Cazuza

HILDEGARDO BRANDO, conhecido familiarmente por Cazuza. tinha chegado aos seus cinqenta anos e poucos, desesperanado; mas no desesperado. Depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustias, que tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.

Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado; tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, no falhou, foi devido audcia de que se revestiu, audcia de quem " queimou os seus navios". Assim mesmo, todas as picuinhas lhe eram feitas. As vezes, julgavam-no inferior a certo outro, porque no tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior a determinado " antologista" , porque semelhante autor havia, quando " encostado" ao Consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente do Sio, uma bengala de legtimo junco da ndia. Por essas do rei e outras ele se aborreceu e resolveu retirar-se da lia. Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num subrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nunca mais ver o mundo, como o heri de Jules Verne, no seu "Nutilus". Comprou os seus ltimos livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. No se arrependeu nunca de sua independncia e da sua honestidade intelectual.

Ao cinqenta e trs anos, no tinha mais um parente prximo junto de si. Vivia, por assim dizer, s, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.

A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manh, tomava caf e ia at a venda, que supria a sua casa, ler os jornais sem deixar de servir-se, com moderao. de alguns clices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a casa, almoava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo, passeava a esmo pelos arredores, to alheio e soturno que no perturbava nem um namoro que viesse a topar.

Aos domingos, porm, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma nica e sempre a mesma. Era tambm a um desalentado amigo seu. Mdico, de real capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia "propositalmente" e no "propositadamente", "de sbito" e no - "s sbitas", etc., etc.

Tinham sido colegas de preparatrios e, muito ntimos, dispensavam-se de usar confidncias mtuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.

Pelos domingos, como j foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela manh, aps o caf, casa do amigo, que ficava prximo, ler l os jornais e tomar parte no " ajantarado", da famlia.

Naquele domingo, o Cazuza, para os ntimos, foi fazer a visita habitual a seu amigo doutor Ponciano.

Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O mdico sentava-se a uma cadeira de balano; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou; de lona. De permeio, ficava-lhes a secretria. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros anatmicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo.

Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:

- No sei como se pode viver no interior do Brasil .

- Porque ?

- Mata-se toa por d c aquela palha. As paixes, mesquinhas paixes polticas, exaltam os nimos de tal modo, que uma faco no teme eliminar o adversrio por meio do assassinato, s vezes o revestindo da forma mais cruel. O predomnio, a chefia da poltica local o nico fim visado nesses homicdios, quando no so questes de famlia, de herana, de terras e, s vezes, causas menores. No leio os jornais que no me apavore com tais notcias. No aqui, nem ali; em todo o Brasil, mesmo s portas do Rio de Janeiro. um horror! Alm desses assassinatos, praticados por capangas - que nome horrvel! - h os praticados pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversrios dos governos locais, adversrios ou tidos como adversrios. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar plantaes, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho, devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notcias, que a fortuna dessa gente que est na cmara, no senado, nos ministrios, at na presidncia da repblica se alicera no crime, no assassinato. Que acha voc ?

- Aqui, a diferena no to grande para o interior nesse ponto. J houve quem dissesse que, quem no mandou um mortal deste para o outro mundo, no faz carreira na poltica do Rio de Janeiro.

- verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster de poltica; mas, no interior, no. Vm as relaes, os

pedidos e voc se alista. A estreiteza do meio impe isso, esse obsquio a um camarada, favor que parece insignificante. As coisas vo bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Voc, por lealdade, o segue; e eis voc arriscado a levar uma estocada em urna das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um co danado. E eu quis ir viver no interior !. De que me livrei, santo Deus .

- Eu j tinha dito a voc que esse negcio de paz na vida da roa histria. Quando cliniquei, no interior, j havia observado esse prurido, essa ostentao de valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, causa de assassinatos estpidos. Poderia contar a voc muitos casos dessa ostentao de assassinato, que parte da gente da roa, mas no vale a pena. coisa sem valia e s pode interessar a especialistas em estudos de criminologia.

- Penso - observou Hildegardo - que esse xodo da populao dos campos para as cidades, pode ser em parte atribudo falta de segurana que existe na roa. Um qualquer cabo de destacamento um Csar naquelas paragens - que far ento um delegado ou subdelegado um horror!

Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar remdio para um to deplorvel estado de coisas. Mal acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:

- E no h remdio.

Hildegardo secundou-o.

- No acho nenhum.

Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:

- Deus no me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. No posso compreender como esses polticos, que andam por a, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascenso marcada por cruzes. Se porventura matasse creia que eu, a que no tem deixado passar pela cabea sonhos de Rasklnikoff, sentiria como ele: as minhas relaes com a humanidade seriam de todo outras, da em diante. No haveria castigo que me tirasse semelhante remorso da conscincia, fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que acha voc?

- Eu tambm; mas voc sabe o que dizem esses polticos que sobem s alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

- No.

- Que todos ns matamos.

Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:

- Estou de acordo. J matei tambm.

O mdico espantou-se e exclamou:

- Voc, Cazuza!

- Sim, eu! - confirmou Cazuza.

- Como? Se voc ainda agora mesmo...

- Eu conto a coisa a voc. Tinha eu sete anos e minha me ainda vivia. Voc sabe que, a bem dizer, no conheci minha me .

- Sei.

- S me lembro dela no caixo quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir gua benta sobre o seu cadver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infncia, bem cedo firmou-se o meu carter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mgoas sem comunic-las a ningum - o que um alvio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tdio, o cansao da vida e uma certa misantropia.

Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoo muito forte e os olhos midos, cortou-lhe a confisso dolorosa com um apelo alegre:

- Vamos, Carleto; conta o assassinato que voc perpetrou.

Hildegardo ou Cazuza conteve-se e comeou a narrar.

- Eu tinha sete anos e minha me ainda vivia. Morvamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha me...

- Conte a histria, homem ! - fez impaciente o doutor Ponciano.

- A casa, na frente, no se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido diferena de nvel, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo a escada, distrado, no momento em que punha o p no cho do quintal, o meu p descalo apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando, soluando e gritando: "Mame, mame! Matei, matei..." Os soluos me tomavam a fala e eu no podia acabar a frase. Minha me acudiu, perguntando: "O que , meu filho !. Quem que voc matou?" Afinal, pude dizer: "Matei um pinto, com o p."

E contei como o caso se havia passado. Minha me riu-se, deu-me um pouco de gua de flor e mandou-me sentar a um canto: "Cazuza, senta-te ali, espera da polcia." E eu fiquei muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor rudo que vinha da rua, pois esperava de fato a polcia. Foi esse o nico assassinato que cometi. Penso que no da natureza daqueles que nos erguem s altas posies polticas, porque, at hoje, eu...

Dona Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o "ajantarado" estava na mesa.

Revista Sousa Cruz. Rio, fevereiro, 1922.

Lima Barreto

O Nmero da Sepultura

QUE PODIA ela dizer, aps trs meses de casada, sobre o casamento?

Era bom? Era mau?

No se animava a afirmar nem uma cousa, nem outra. Em essncia, "aquilo" lhe parecia resumir-se em uma simples mudana de casa.

A que deixara no tinha mais nem menos cmodos do que a que viera habitar; no tinha mais "largueza"; mas a " nova" possua um jardinzito minsculo e uma pia na sala de jantar.

Era, no fim de contas, a diminuta diferena que existia entre ambas.

Passando da obedincia dos pais, para a do marido, o que ela sentia, era o que se sente quando se muda de habitao.

No comeo, h nos que se mudam, agitao, atividade; puxa-se pela idia, a fim de adaptar os mveis casa "nova" e, por conseguinte, eles, os seus recentes habitantes tambm; isso, porm, dura poucos dias.

No fim de um ms, os mveis j esto definitivamente " ancorados", nos seus lugares, e os moradores se esquecem de que residem ali desde poucos dias.

Demais, para que ela no sentisse, profunda modificao, no seu viver, advinda com o casamento, havia a quase igualdade de gnios e hbitos de seu pai e seu marido.

Tanto um como outro, eram corteses com ela; brandos no tratar, serenos, sem improprios, e ambos, tambm, meticulosos, exatos e metdicos. No houve, assim, abalo algum, na sua transplantao de um lar para outro.

Contudo, esperava, no casamento alguma cousa de indito at ali, na sua existncia de mulher: uma exuberante e contnua satisfao de viver.

No sentiu, porm, nada disso.

O que houve de particular na sua mudana de estado, foi insuficiente para Lhe dar uma sensao nunca sentida da vida e do mundo. No percebeu nenhuma novidade essencial...

Os cus cambiantes, com o rosado e dourado de arrebis, que o casamento promete a todos, moos e moas; no os vira ela. O sentimento de inteira liberdade, com passeios, festas, teatros, visitas - tudo que se contm para as mulheres, na idia de casamento, durou somente a primeira semana de matrimnio.

Durante ela, ao lado do marido, passeara, visitara, fora a festas, e a teatros; mas assistira todas essas cousas, sem muito se interessar por elas, sem receber grandes ou profundas emoes de surpresa, e ter sonhos fora do trivial da nossa mesquinha vida terrestre. Cansavam-na at!

No comeo, sentia alguma alegria e certo contentamento; por fim, porm, veio o tdio por elas todas, a nostalgia da quietude de sua casa suburbana, onde vivia nglig e podia sonhar, sem desconfiar que os outros Lhe pudessem descobrir os devaneios crepusculares de sua pequenina alma de burguesia, saudosa e enfumaada.

No era raro que tambm ocorresse saudades da casa paterna, provocadas por aquelas chinfrinadas de teatros ou cinematogrficas. Acudia-lhe, com indefinvel sentimento, a 1embrana de velhos mveis e outros pertences familiares da sua casa paterna, que a tinham visto desde menina. Era uma velha cadeira de balano de jacarand; era uma leiteira de loua, pintada de azul, muito antiga; era o relgio sem pndula. octogonal. velho tambm; e outras bugigangas domsticas que, muito mais fortemente do que os mveis e utenslios adquiridos recentemente, se haviam gravado na sua memria.

Seu marido era um rapaz de excelentes qualidades matrimoniais, e no havia, no nebuloso estado d'alma de Zilda, nenhum desgosto dele ou decepo que ele lhe tivesse causado.

Morigerado, cumpridor exato dos seus deveres, na seco de que era chefe seu pai, tinha todas as qualidades mdias, para ser um bom chefe de famlia, cumprir o dever de continuar a espcie e ser um bom diretor de secretaria ou repartio outra, de banco ou de escritrio comercial.

Em compensao, no possua nenhuma proeminncia de inteligncia ou de ao. Era e seria sempre uma boa pea de mquina, bem ajustada, bem polida e que, lubrificada convenientemente, no diminuiria o rendimento daquela, mas que precisava sempre do motor da iniciativa estranha, para se pr em movimento.

Os pais de Zilda tinham aproximado os dois; a av, a quem a moa estimava deveras, fizera as insinuaes de praxe; e, vendo ela que a coisa era do gosto de todos, por curiosidade mais do que por amor ou outra cousa parecida, resolveu-se a casar com o escriturrio de seu pai. Casaram-se, viviam muito bem. Entre ambos, no havia a menor rusga, a menor desinteligncia que lhes toldasse a vida matrimonial; mas no existia tambm como era de esperar, uma profunda e constante penetrao, de um para o outro e vice-versa, de desejos, de sentimentos, de dores e alegrias.

Viviam placidamente numa tranqilidade de lagoa, cercada de altas montanhas, por entre as quais os ventos fortes no conseguiam penetrar, para encrespar-lhe as guas imotas.

A beleza do viver daquele novel casal, no era ter conseguido de duas fazer uma nica vontade; estava em que os dous continuassem a ser cada um uma personalidade, sem que, entanto, encontrassem nunca motivo de conflito, o mais ligeiro que fosse. Uma vez, porm.. Deixemos isso para mais tarde... O gnio e a educao de ambos muito contribuam para tal.

O marido, exato burocrata, era cordato, de temperamento calmo, ponderado e seco que nem uma crise ministerial. A mulher era quase passiva e tendo sido educada na disciplina ultra-regrada e esmerilhadora de seu pai, velho funcionrio, obediente aos chefes, aos ministros, aos secretrios destes e mais bajuladores, s leis e regulamentos, no tinha assomos nem caprichos, nem fortes vontades. Refugiava-se no sonho e, desde que no fosse multado, estava por tudo.

Os hbitos do marido eram os mais regulares e executados, sem a mnima discrepncia. Erguia-se do leito muito cedo, quase ao alvorecer, antes mesmo da criada, a Genoveva, levantar-se da cama. Pondo-se de p, ele mesmo coava o caf e, logo que estava pronto, tomava uma grande xcara.

Esperando o jornal (s comprava um), ia para o pequeno jardim, varria-o, amarrava as roseiras e craveiros, nos espeques, em seguida, dava milho s galinhas e pintos e tratava dos passarinhos.

Chegando o jornal, lia-o meticulosamente, organizando, para uso do dia, as suas opinies literrias, cientficas, artsticas, sociais e, tambm, sobre a poltica internacional e as guerras que havia pelo mundo.

Quanto poltica interna, construa algumas, mas no as manifestava a ningum, porque quase sempre eram contra o governo e ele precisava ser promovido.

s nove e meia, j almoado e vestido, despedia-se da mulher, com o clssico beijo, e l ia tomar o trem. Assinava o ponto, de acordo como regulamento, isto , nunca depois das dez e meia.

Na repartio, cumpria religiosamente os seus sacratssimos deveres de funcionrio.

Sempre foi assim; mas, aps o casamento, aumentou de zelo, a fim de pr a seco do sogro que nem um brinco, em questo de rapidez e presteza no andamento e informaes de papis.

Andava pelas bancas dos colegas, pelos protocolos, quando o servio lhe faltava e se, nessa correio, topava com expediente em atraso, no hesitava: punha-se a "desunhar".

Acontecendo-lhe isto, ao sentar-se mesa, para jantar, j em trajes caseiros, apressava-se em dizer a mulher

- Arre ! Trabalhei hoje, Zilda, que nem o diabo !

- Porque ?

- Ora, porque? Aqueles meus colegas so uma pinia...

- Que houve ?

- Pois o Pantaleo no est com o protocolo dele, o da Marinha, atrasado de uma semana? Tive que o pr em dia...

- Papai foi quem te mandou?

- No; mas era meu dever, como genro dele, evitar que a seco que ele dirige, fosse tachada de relaxada. Demais no posso ver expediente atrasado...

- Ento, esse Pantaleo falta muito?

- Um horror ! Desculpa-se com estar estudando direito. Eu tambm estudei, quase sem faltas.

Com semelhantes notcias e outras de mexericos sobre a vida ntima, defeitos morais e vcios dos colegas, que ele relatava mulher, Zilda ficou enfronhada no viver da diretoria em que funcionava seu marido, tanto no aspecto puramente burocrtico, como nos da vida particular e famlias dos respectivos empregados.

Ela sabia que o Caloene bebia cachaa; que o Z Fagundes vivia amancebado com uma crioula, tendo filhos com ela, um. dos quais com concurso e ia ser em breve colega do marido; que o Feliciano Brites das Novas jogava nos dados todo o dinheiro que conseguia arranjar que a mulher do Nepomuceno era amante do General T., com auxlio do qual ele preteria todos nas promoes, etc., etc.

O marido no conversava com Zilda seno essas coisas da repartio; no tinha outro assunto para palestrar com a mulher.Com as visitas e raros colegas com quem discutia, a matria da conversao eram coisas patriticas: as foras de terra e mar, as nossas riquezas naturais, etc.

Para tais argumentos tinha predileo especial e um especial orgulho em desenvolv-los com entusiasmo. Tudo o que era brasileiro era primeiro do mundo ou, no mnimo, da Amrica do Sul. E - ai! - de quem o contestasse; levava uma sarabanda que resumia nesta frase clssica:

- por isso que o Brasil no vai para adiante. O brasileiro o maior inimigo de sua ptria.

Zilda, pequena burguesa, de reduzida instruo e, como todas as mulheres, de fraca curiosidade intelectual quando o ouvia discutir assim com os amigos, enchia-se de enfado e sono; entretanto, gostava das suas alcovitices sobre os lares dos colegas...

Assim ela ia repassando a sua vida de casada, que j tinha mais de trs meses feitos, na qual, para quebrar-lhe a monotonia e a igualdade, s houvera um acontecimento que a agitara, a torturara, mas, em compensao, espantara por algumas horas o tdio daquele morno e plcido viver. preciso cont-lo.

Augusto - Augusto Serpa de Castro - tal era o nome de seu marido - tinha um ar mofino e enfezado; alguma cousa de ndio nos cabelos muito negros, corredios e brilhantes, e na tez acobreada. Seus olhos eram negros e grandes, com muito pouca luz, mortios e pobres de expresso, sobretudo de alegria.

A mulher, mais moa do que ele uns cinco ou seis anos, ainda no havia completado os vinte. Era de uma grande vivacidade de fisionomia, muito mbil e vria, embora o seu olhar castanho claro tivesse, em geral, uma forte expresso de melancolia e sonho interior. Mida de feies, franzina, de boa estatura e formas harmoniosas, tudo nela era a graa do canio, a sua esbelteza, que no teme os ventos, mas que se curva fora deles com mais elegncia ainda, para ciciar os queixumes contra o triste fado de sua fragilidade, esquecendo-se, porm, que esta que o faz vitorioso.

Aps o casamento, vieram residir na Travessa das Saudades, na estao de * * *

uma pitoresca rua, afastada alguma cousa das linhas da Central, cheia de altos e baixos, dotada de uma caprichosa desigualdade de nvel, tanto no sentido longitudinal como no transversal.

Povoada de rvores e bambus, de um lado e outro, correndo quase exatamente de norte para sul, as habitaes do lado do nascente, em grande nmero, somem-se na grota que ela forma, com o seu desnivelamento; e mais se ocultam debaixo dos arvoredos em que os Cips se tecem.

Do lado do poente, porm, as casas se alteiam e, por cima das de defronte, olham em primeira mo a Aurora, com os seus inexprimveis cambiantes de cores e matizes.

Como no fim do ms anterior, naquele outro, o segundo trmino de ms depois do seu casamento, o bacharel Augusto, logo que recebeu os vencimentos e conferiu as contas dos fornecedores, entregou o dinheiro necessrio mulher, para pag-los, e tambm a importncia do aluguel da casa.

Zilda apressou-se em faz-lo ao carniceiro, ao padeiro e ao vendeiro; mas, o procurador do proprietrio da casa em que moravam, demorou-se um pouco. Disso, avisou o marido, em certa manh, quando ele lhe dava uma pequena quantia para as despesas com o quitandeiro e outras miudezas caseiras. Ele deixou o importe do aluguel com ela.

Havia j quatro dias que ele se havia vencido; entretanto, o preposto do proprietrio no aparecia.

Na manh desse quarto dia, ela amanheceu alegre e, ao mesmo tempo apreensiva.

Tinha sonhado; e que sonho !

Sonhou com a av, a quem amava profundamente e que desejara muito o seu casamento com Augusto. Morrera ela poucos meses antes de realizar-se o seu enlace com ele; mas ambos j eram noivos.

Sonhara a moa com o nmero da sepultura da av - 1724; e ouvira a voz dela, da sua vov, que lhe dizia: "Filha, joga neste nmero ! "

O sonho impressionou-a muito; nada, porm, disse ao marido. Sado que ele foi para a repartio, determinou criada o que tinha a fazer e procurou afastar da memria to estranho sonho.

No havia, entretanto, meios para conseguir isso. A recordao dele estava sempre presente ao seu pensamento, apesar de todos os seus esforos em contrrio.

A presso que lhe fazia no crebro a 1embrana do sonho, pedia uma sada, uma vlvula de descarga, pois j excedia a sua fora de conteno. Tinha que falar, que contar, que comunic-lo a algum...

Fez confidncia do sucedido Genoveva. A cozinheira pensou um pouco e disse:

- Nhanh: eu se fosse a senhora arriscava alguma cousa no "bicho".

- Que "bicho" ?

- 24 cabra; mas no deve jogar s por um lado. Deve cercar por todos e fazer f na dezena, na centena, at no milhar. Um sonho destes no por a cousa toa.

- Voc sabe fazer a lista?

- No, senhora. Quando jogo o Seu Manuel do botequim quem faz " ela". mas a vizinha, Dona Iracema, sabe bem e pode ajudar a senhora.

- Chame " ela" e diga que quero lhe falar.

Em breve chegava a vizinha e Zilda contou-lhe o acontecido.

Dona Iracema refletiu um pouco e aconselhou:

- Um sonho desses, menina, no se deve desprezar. Eu, se fosse a vizinha, jogava forte.

- Mas, Dona Iracema, eu s tenho os oitenta mil-ris para pagar a casa. Como h de ser?

A vizinha cautelosamente respondeu:

- No lhe dou a tal respeito nenhum conselho. Faa o que disser o seu corao; mas um sonho desses...

Zilda que era muito mais moa que Iracema, teve respeito pela sua experincia e sagacidade. Percebeu logo que ela era favorvel a que ela jogasse. Isto estava a quarentona da vizinha, a tal Dona Iracema, a dizer-lhe pelos olhos.

Refletiu ainda alguns minutos e, por fim, disse de um s hausto:

- Jogo tudo.

E acrescentou:

- Vamos fazer a lista - no Dona Iracema?

- Como que a senhora quer?

- No sei bem. A Genoveva quem sabe.

E gritou, para o interior da casa:

- O Genoveva! Genoveva! Venha c, depressa!

No tardou que a cozinheira viesse. Logo que a patroa lhe comunicou o embarao, a humilde preta apressou-se em explicar:

- Eu disse a nhanh que cercasse por todos os lados o grupo, jogasse na dezena, na centena e no milhar.

Zilda perguntou Dona Iracema:

- A senhora entende dessas cousas?

- Ora! Sei muito bem. Quanto quer jogar?

- Tudo ! Oitenta mil-ris !

- muito, minha filha. Por aqui no h quem aceite. S se for no Engenho de Dentro, na casa do Halavanca, que forte. Mas quem h de levar o jogo? A senhora tem algum?

- A Genoveva.

A cozinheira, que ainda estava na sala, de p, assistindo os preparativos de to grande ousadia domstica, acudiu com pressa:

- No posso ir, nhanh. Eles me embrulham e, se a senhora ganhar, a mim eles no pagam. preciso pessoa de mais respeito.

Dona Iracema, por a, 1embrou :

- possvel que o Carlito tenha vindo j de Cascadura, onde foi ver a av... Vai ver, Genoveva!

A rapariga foi e voltou em companhia do Carlito, filho de Dona Iracema. Era um rapago dos seus dezoito anos, espadado e saudvel.

A lista foi feita convenientemente; e o rapaz levou-a ao "banqueiro".

Passava de uma hora da tarde, mas ainda faltava muito para as duas. Zilda 1embrou-se ento do cobrador da casa. No havia perigo. Se no tinha vindo at ali, no viria mais.

Dona Iracema foi para a sua casa; Genoveva foi para a cozinha e Zilda foi repousar daqueles embates morais e alternativas cruciantes, provocados pelo passo arriscado que dera. Deitou-se j arrependida do que fizera.

Se perdesse, como havia de ser? O marido... sua clera... as repreenses... Era uma tonta, uma doida... Quis cochilar um pouco; mas logo que cerrou os olhos, l viu o nmero - 1724. Tomava-se ento de esperana e sossegava um pouco da sua nsia angustiosa.

Passando, assim, da esperana ao desnimo, prelibando a satisfao de ganhar e antevendo os desgostos que sofreria, caso perdesse - Zilda, chegou at hora do resultado, suportando os mais desencontrados estados de esprito e os mais hostis ao seu sossego. Chegando o tempo de saber "o que dera" , foi at janela. De onde em onde, naquela rua esquecida e morta, passava uma pessoa qualquer. Ela tinha desejo de perguntar ao transeunte o "resultado"., mas ficava possuda de vergonha e continha-se.

Nesse nterim, surge o Carlito a gritar:

- Dona Zilda! Dona Zilda! A senhora ganhou, menos no milhar e na centena.

No deu um "ai" e ficou desmaiada no sof da sua modesta sala de visitas.

Voltou em breve a si, graas s esfregaes de vinagre de Dona Iracema e de Genoveva. Carlito foi buscar o dinheiro que subia a mais de dous contos de ris. Recebeu-o e gratificou generosamente o rapaz, a me dele e a sua cozinheira, a Genoveva. Quando Augusto chegou, j estava inteiramente calma. Esperou que ele mudasse de roupa e viesse sala de jantar, a fim de dizer-lhe:

- Augusto: se eu tivesse jogado o aluguel da casa no "bicho".

voc ficava zangado?

- Por certo! Ficaria muito e havia de censurar voc com muita veemncia, pois que uma dona de casa no...

- Pois, joguei.

- Voc fez isto, Zilda?

- Fiz.

- Mas quem virou a cabea de voc para fazer semelhante tolice? Voc no sabe que ainda estamos pagando despesas do nosso casamento?

- Acabaremos de pagar agora mesmo.

- Como? Voc ganhou?

- Ganhei. Est aqui o dinheiro.

Tirou do seio o pacote de notas e deu-o ao marido, que se tornara mudo de surpresa. Contou as pelejas muito bem, levantou-se e disse com muita sinceridade. abraando e beijando a mulher..

- Voc tem muita sorte. o meu anjo bom.

E todo o resto da tarde, naquela casa, tudo foi alegria.

Vieram Dona Iracema, o marido, o Carlito, as filhas e outros vizinhos.

Houve doces e cervejas. Todos estavam sorridentes, palradores; e o contentamento geral s no desandou em baile, porque os recm-casados no tinham piano. Augusto deitou patriotismo com o marido de Iracema.

Entretanto, por causa das dvidas, no ms seguinte, quem fez os pagamentos domsticos foi ele prprio, Augusto em pessoa.

Revista Sousa Cruz, Rio, maio 1921.

Lima Barreto

Manel Capineiro

QUEM CONHECE a Estrada Real de Santa Cruz? Pouca gente do Rio de Janeiro. Ns todos vivemos to presos avenida, to adstritos Rua do Ouvidor, que pouco ou nada sabemos desse nosso vasto Rio, a no ser as coisas clssicas da Tijuca, da Gvea e do Corcovado.

Um nome to sincero, to altissonante, batiza, entretanto, uma pobre azinhaga, aqui mais larga, ali mais estreita, povoada, a espaos, de pobres casas de gente pobre, s vezes, uma chcara mais assim ali. mas tendo ela em todo o seu trajeto at Cascadura e mesmo alm, um forte aspecto de tristeza, de pobreza e mesmo de misria. Falta-lhe um debrum de verdura, de rvores, de jardins. O carvoeiro e o lenhador de h muito tiraram os restos de matas que deviam bord-la; e, hoje, com alegria que se v, de onde em onde, algumas mangueiras majestosas a quebrar a monotonia, a esterilidade decorativa de imensos capinzais sem limites.

Essa estrada real, estrada de rei, atualmente uma estrada de pobres; e as velhas casas de fazenda, ao alto das meias-laranjas, no escaparam ao retalho para casas de cmodos.

Eu a vejo todo dia de manh, ao sair de casa e minha admirao apreciar a intensidade de sua vida, a prestana do carvoeiro, em servir a minha vasta cidade.

So carvoeiros com as suas carroas pejadas que passam; so os carros de bois cheios de capim que vo vencendo os atoleiros e os "caldeires", as tropas e essa espcie de vagabundos rurais que fogem rua urbana com horror.

Vejo-a no Capo do Bispo, na sua desolao e no seu trabalho; mas vejo tambm dali os rgos azuis, dos quais toda a hora se espera que ergam aos cus um longo e acendrado hino de louvor e de glria.

Como se fosse mesmo uma estrada de lugares afastados, ela tem tambm seus "pousos". O trajeto dos capineiros, dos carvoeiros, dos tropeiros longo e pede descanso e boas "pingas" pelo caminho.

Ali no "Capo", h o armazm "Duas Amricas" em que os transeuntes param, conversam e bebem.

Pra ali o "Tutu", um carvoeiro das bandas de Iraj, mulato quase preto, ativo, que aceita e endossa letras sem saber ler nem escrever. um espcime do que podemos dar de trabalho, de iniciativa e de vigor. No h dia em que ele no desa com a sua carroa carregada de carvo e no h dia em que ele no volte com ela, carregada de alfafa, de farelo, de milho, para os seus muares.

Tambm vem ter ao armazm o Senhor Antnio do Aougue, um ilhu falador, bondoso, cuja maior parte da vida se ocupou em ser carniceiro. L se encontra tambm o "Parafuso", um preto, domador de cavalos e alveitar estimado. Todos eles discutem, todos eles comentam a crise, quando no tratam estreitamente dos seus negcios.

Passa pelas portas da venda uma singular rapariga. branca e de boas feies. Notei-lhe o cuidado em ter sempre um vestido por dia, observando ao mesmo tempo que eles eram feitos de velhas roupas. Todas as manhs, ela vai no sei onde e traz habitualmente na mo direita um bouquet feito de miserveis flores silvestres. Perguntei ao dono quem era. Uma vagabunda, disse-me ele.

"Tutu" est sempre ocupado com a molstia dos seus muares.

O "Garoto" est mancando de uma perna e a "Jupira" puxa de um dos quartos. O "Seu" Antnio do Aougue, assim chamado porque j possuiu um muito tempo, conta a sua vida, as suas perdas de dinheiro, e o desgosto de no ter mais aougue. No se conforma absolutamente com esse neg6cio de vender leite; o seu destino talhar carne.

Outro que l vai o Manel Capineiro. Mora na redondeza e a sua vida se faz no capinzal, em cujo seio vive, a vigi-lo dia e noite dos ladres, pois os h, mesmo de feixes de capim. O "Capineiro" colhe o capim tarde, enche as carroas; e, pela madrugada, sai com estas a entreg-lo freguesia. Um companheiro fica na choupana no meio do vasto capinzal a vigi-lo, e ele vai carreando uma das carroas, tocando com o guio de leve os seus dois bois - "Estrela" e "Moreno".

Manel os ama tenazmente e evita o mais possvel feri-los com a farpa que lhes d a direo requerida.

Manel Capineiro portugus e no esconde as saudades que tem do seu Portugal, do seu caldo de unto, das suas festanas aldes, das suas lutas a varapau; mas se conforma com a vida atual e mesmo no se queixa das cobras que abundam no capinzal.

- Ai! As cobras!... Ontem dei com uma, mas matei-a .

Est a um estrangeiro que no implica com os nossos ofdios o que deve agradar aos nossos compatriotas, que se indignam com essa implicncia.

Ele e os bois vivem em verdadeira comunho. Os bois so negros, de grandes chifres, tendo o "Estrela" uma mancha branca na testa, que lhe deu o nome.

Nas horas do cio, Manel vem venda conversar, mas logo que olha o relgio e v que hora da rao, abandona tudo e vai ao encontro daquelas suas duas criaturas, que to abnegadamente lhe ajudam a viver.

Os seus carrapatos lhe do cuidado; as suas "manqueiras" tambm. No sei bem a que propsito me disse um dia:

- Senhor fulano, se no fosse eles, eu no saberia como iria viver. Eles so o meu po.

Imaginem que desastre no foi na sua vida, a perda dos seus dois animais de tiro. Ela se verificou em condies bem lamentveis. Manel Capineiro saiu de madrugada, como de hbito, com o seu carro de capim. Tomou a estrada pra riba, dobrou a Rua Jos dos Reis e tratou de atravessar a linha da estrada de ferro, na cancela dessa rua.

Fosse a mquina, fosse um descuido do guarda, uma imprudncia de Manel, um comboio, um expresso, implacvel como a fatalidade, inflexvel, inexorvel, veio-lhe em cima do carro e lhe trucidou os bois. O capineiro, diante dos despojos sangrentos do "Estrela" e do "Moreno", diante daquela quase runa de sua vida, chorou como se chorasse um filho uma me e exclamou cheio de pesar, de saudade, de desespero:

- Ai m gado! Antes fora eu !...

Era Nova, Rio, 21-8-1915.

Lima Barreto

Milagre do Natal

O BAIRRO DO ANDARA muito triste e muito mido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, a tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetao que as devia adornar com mais fora em tempos idos. O tom p1mbeo das rvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.

Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando do para o mar, este quebra a monotonia d quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as cousas humanas, minsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que no esto nelas, mas que s percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombsticas "vilas" de Copacabana, tambm; mas, no Andara, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetao.

Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de seco do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era prpria e tinha na cimalha este dstico pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as propores da casa no precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centmetros a um metro, alm da fachada. Era o vo que correspondia varanda lateral, quase a correr todo o prdio. Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mos polpudas e dedos curtos. No largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papis da repartio com o fito de no l-los; e tambm o guarda-chuva de casto de ouro e forro de seda. Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dous degraus dos "Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de " ouro". Usava chapu de coco e cavanhaque.

Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e nica, a Mariazinha.

A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e no tinha nenhum relevo de fisionomia, seno um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrs da orelha, com trancelim de seda. No nascera com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais algum havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar algum ou alguma cousa com jeito e perfeio, erguia bem a cabea e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.

Era baiana, como o marido, e a nica queixa que tinha do Rio cifrava-se em no haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeio, auxiliada pela preta Incia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para So Sebastio. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia-se de tudo, at que estar muito longe da sua querida cidade de Tom de Sousa.

Sua filha, a Mariazinha, no era assim e at se esquecera que por l nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moa de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai, entestando com a me, bonita e vulgar. O seu trao de beleza eram os seus olhos de topzio com estilhas negras. Nela, no havia nem invento, nem novidade como - as outras.

Eram estes os habitantes da "Vila Sebastiana" , alm de um molecote que nunca era o mesmo. De dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substitudo por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.

Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoar ou jantar com eles. No era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e no podia pr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda.

Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturrios Fortunato Guaicuru e Simplcio Fontes, os seus braos direitos na seco. Aquele era bacharel em Direito e espcie de seu secretrio e consultor em assuntos difceis; e o ltimo chefe do protocolo da sua seco, cargo de extrema responsabilidade, para que no houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efuses familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...

Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os mdicos com outros mdicos e assim por diante. No de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionrio pblico que fosse da sua repartio e at da sua prpria seco.

Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente ndio. Malares salientes, face curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfndega de Corumb, transferira-se para a delegacia fiscal de Gois. A, passou trs ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque no h cidade do Brasil, capital ou no, em que no haja uma. Obtido o ttulo, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartio, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrrio de Simplcio que era franzino, peito pouco saliente, plido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.

Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolo e sem nenhuma intromisso de polticos na sua nomeao.

Mais ilustrado, no direi; mas muito mais instrudo que Guaicuru, a audcia deste o superava, no no corao de Mariazinha, mas no interesse que tinha a me desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenes tinha Dona Sebastiana pelo hipottico bacharel:

- Porque no advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu qudruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.

- Minha senhora, no tenho tempo...

- Como no tem tempo? O Felicianinho consentiria - no Felicianinho?

Campossolo fazia solenemente :

- Como no, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.

Simplcio, esquerda de Dona Sebastiana, olhava distrado para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que no queria dizer que a verdadeira . razo estava em no ser a tal faculdade "reconhecida", negaceava:

- Os colegas podiam reclamar.

Dona Sebastiana acudia com vivacidade :

- Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplcio?

Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:

- O que, Dona Sebastiana ?

- O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru sasse, para ir advogar?

- No.

E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topzio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:

- Eu, se fosse o senhor ia advogar.

- No posso. No s a repartio que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes propores.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabea com pince-nez e tudo; Simplcio que, agora, contemplava esse quadro clebre nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor - Simplcio, dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:

- Sobre o que trata?

- Direito administrativo brasileiro.

Campossolo observou:

- Deve ser uma obra de peso.

- Espero.

Simplcio continuava espantado, quase estpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o mato-grossense apressou-se:

- Voc vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?

Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo s:

- Quero.

O bacharel de Gois endireitou o busto curto na cadeira e comeou:

- Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo portugus. H muita gente que pensa que no antigo regmen no havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa poca, no que toca a Portugal. V ou ver as funes dos ministros e dos seus subordinados, por intermdio de letra-morta dos alvars, portarias, cartas rgias e mostrarei ento como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito pblico se transformou, ao influxo de concepes liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom Joo VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das idias da Revoluo.

Simplcio, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botes: "Quem teria ensinado isto a ele?"

Guaicuru, porm, continuava:

- No ser uma seca enumerao de datas e de transcrio de alvars, portarias, etc. Ser uma cousa indita. Ser cousa viva.

Por a, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:

- V ai ser uma obra de peso.

- J tenho editor!

- Quem ? perguntou o Simplcio.

- o Jacinto. Voc sabe que vou l todo o dia, procurar livros a respeito.

- Sei; a livraria dos advogados, disse Simplcio sem querer sorrir.

- Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.

- Queria publicar antes do Natal. porque as promoes sero feitas antes do Natal, mas...

- Ento h mesmo promoes antes do Natal, Felicianinho ?

O marido respondeu:

- Creio que sim. O gabinete j pediu as propostas e eu j dei as minhas ao diretor.

- Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.

- Essas cousas no se dizem s nossas mulheres; so segredos de Estado, sentenciou Campossolo.

O jantar foi. acabando triste, com essa histria de promoes para o Natal.

Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:

- No queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O "Seu" Simplcio, e eu estaria prevenida para a uma "festinha".

Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram caf.

Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda conversa. Na sala de visitas, Simplcio ainda pde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega Fortunato ficou, mas tudo estava to morno e triste que, em breve, se foi tambm Guaicuru.

No bonde, Simplcio pensava unicamente em duas cousas: no Natal prximo e no "Direito" de Guaicuru. Quando pensava nesta .' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo? Guaicuru absolutamente ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse..."

Vieram afinal as promoes. Simplcio foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro no atendera a pistoles nem a ttulos de Gois.

Ningum foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestao a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.

Dona Sebastiana deu uma consoada moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de hbito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabea, tudo muito bem erguido, chamou-o:

- Sente-se aqui a meu lado, doutor, a vai sentar-se o "Seu" Simplcio.

Casaram-se dentro de um ano; e, at hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.

Ele diz:

- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.

Ela obtempera:

- Foi a promoo.

Fosse uma cousa ou outra, ou ambas, o certo que se casaram. um fato. A obra de Guaicuru, porm, que at hoje no saiu...

Careta, Rio, 24-12-1921.

Lima Barreto

Quase ela deu o "sim"; mas...

JOO CAZU era um moo suburbano, forte e saudvel, mas pouco ativo e amigo do trabalho.

Vivia em casa dos tios, numa estao de subrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.

Ele, porm, no os comprava; "filava-os" dos outros. "Refundia" os nqueis que lhe dava a tia, para flores a dar s namoradas e comprar bilhetes de tmbolas, nos vrios "mafus", mais ou menos eclesisticos, que h por aquelas redondezas.

O conhecimento do seu hbito de "filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava to espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saud-lo, dizia:

-Toma l o cigarro, Cazu.

Vivia assim muito bem, sem ambies nem tenes. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontaps, numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanas da residncia dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.

Contudo, ainda no estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupao de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calas e outras peas do vesturio, cerzisse as meias, etc., etc.

Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptvel ao seu jeito descansado.

Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moas ricas e no precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritria profisso de "maridos da professora"; ele, porm, no aspirava a tanto.

Apesar disso, no desanimou de descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente.

Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurana e abundncia com os seus tios e padrinhos.

Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:

- "Seu" Cazu, o senhor vai at estao?

- Vou, Dona Ermelinda.

- Podia me fazer um favor?

- Pois no.

- ver se o "Seu" Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de seiscentos ris. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgncia, precisava muito.

- No h dvida, minha senhora.

Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: ,' um bom partido. Tem montepio, viva; o diabo so os filhos!" Dona Ermelinda, vista da resposta dele, disse:

- Est aqui o dinheiro.

Conquanto dissesse vrias vezes que no precisava daquilo - o dinheiro - o impenitente jogador de football e feliz hspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dvidas.

Fez o que tinha a fazer na estao, adquiriu as estampilhas e voltou para entreg-las viva.

De fato, Dona Ermelinda era viva de um contnuo ou cousa parecida de uma repartio pblica. Viva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputao.

Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifcio.

Era proprietria do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras rvores frutferas.

Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrives, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados "mambembes", devia-o precauo do marido que comprara a casa, em nome dela.

Assim mesmo, tinha sido preciso a interveno do seu compadre, o Capito Hermenegildo, a fim de remover os obstculos que certos " guias" comeavam a pr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalzito humilde.

De volta, Cazu bateu porta da viva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o mdico, seno irrisrio montepio, de modo a conseguir fazer face s despesas mensais com ela e os filhos.

Percebendo a pobre viva que era o Cazu, sem se levantar da mquina, gritou:

- Entre, "Seu" Cazu.

Estava s, os filhos ainda no tinham vindo do colgio. Cazu entrou.

Aps entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:

- Espere um pouco, "Seu" Cazu. Vamos tomar caf.

Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infuso da "preciosa rubicea" , como se diz no estilo "valorizao".

A viva, tomando caf, acompanhado com po e manteiga, ps-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amvel e galante, demorando em esvaziar a xcara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botes: "Est a um bom partido: casa prpria, montepio, renda das costuras; e alm de tudo, h de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia..."

Essa vaga teno ganhou mais corpo, quando a viva, olhando-lhe a camisa, perguntou:

- "Seu " Cazu, se eu lhe disser uma cousa, o senhor fica zangado?

- Ora, qual, Dona Ermelinda?

- Bem. A sua camisa est rasgada no peito. O senhor traz " ela" amanh, que eu conserto "ela".

Cazu respondeu que era preciso lav-la primeiro; mas a viva prontificou-se em fazer isso tambm. O player dos pontaps, fingindo relutncia no comeo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma " entrada" , para obter uma lavadeira em condies favorveis.

Dito e feito: da em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.

Cazu, aps tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e no dava um passo, para obter emprego. Que que ele queria mais? Tinha tudo...

Na redondeza, passavam como noivos; mas no eram, nem mesmo namorados declarados.

Havia entre ambos, unicamente um " namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigncia monetria e cultivava-o carinhosamente.

Um belo dia, aps ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, vista da cerimnia e da festa, pensou: "Porque tambm eu no me caso? Porque eu no peo Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu..."

Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sbado; refletiu segunda e, na tera, cheio de coragem, chegou-se Ermelinda e pediu-a em casamento.

- grave isto, Cazu. Olhe que sou viva e com dois filhos!

- Tratava " eles" bem; eu juro!

- Est bem. Sexta-feira, voc vem cedo, para almoar comigo e eu dou a resposta.

Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dous estiveram a conversar. ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e, apreensivo.

Num dado momento, Ermelinda foi at gaveta de um mvel e tirou de l um papel.

- Cazu - disse ela, tendo o papel na mo - voc vai venda e quitanda e compra o que est aqui nesta "nota". para o almoo.

Cazu agarrou trmulo o papelucho e ps-se a ler o seguinte:

1 quilo de feijo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 600 rs.

1/2 de farinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.

1/2 de bacalhau . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 1.200 rs.

1/2 de batatas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360 rs.

Cebolas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .200 rs.

Alhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.

Azeite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 rs.

Sal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.

Vinagre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.260 rs.

Quitanda:

Carvo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 280 rs.

Couve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.

Salsa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.

Cebolinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.

tudo: . . . . . . . . . . . 3.860 rs.

Acabada a leitura, Cazu no se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mo, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.

- Anda Cazu, fez a viva. Assim, demorando, o almoo fica tarde...

- que...

- Que h ?

- No tenho dinheiro.

Mas voc no quer casar comigo? mostrar atividade meu filho! D os seus passos... V! Um chefe de famlia no se atrapalha... agir !

Joo Cazu, tendo a lista de gneros na mo, ergueu-se da cadeira, saiu e no mais voltou...

Careta, Rio, 29-1-1921.

Lima Barreto

Foi Buscar L...

A SUA APARIO nos lugares do Rio onde se faz reputao, boa ou m, foi sbita.

Veio do Norte, logo com a carta de bacharel, com solene pasta de couro da Rssia, fecho e monograma de prata, chapu-de-sol e bengala de casto de ouro, enfim, com todos os apetrechos de um grande advogado e de um sbio jurisconsulto. No se podia dizer que fosse mulato; mas tambm no se podia dizer que fosse branco. Era indeciso. O que havia nele de notvel era o seu olhar vulpino, que pedia escurido para brilhar com fora; mas que, luz, era esquivo e de mirada erradia.

Aparecia sempre em roda de advogados, mais ou menos clebres, cheio de morgue tomando refrescos, chopes, mas pouco se demorando nos botequins e confeitarias. Parecia escolher com grande escrpulo as suas relaes. Nunca se o viu com qualquer tipo aboemiado ou mal vestido. Todos os seus companheiros eram sempre gente limpa e de vesturio tratado. Alm do convvio das notabilidades do bureau carioca, o doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva apreciava tambm a companhia de reprteres e redatores de jornais, mas desses srios, que no se metem em farras, nem em pndegas baratas.

Aos poucos, comeou a surgir seu nome, subscrevendo artigos nos jornais dirios; at, no Jornal do Comrcio, foi publicado um, com quatro colunas, tratando das "Indenizaes por prejuzos resultantes de acidentes na navegao area"

As citaes de textos de leis, de praxistas, de. comentadores de toda a espcie, eram mltiplas, ocupavam, em suma, dois teros do artigo; mas o artigo era assinado por ele: doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva.

Quando passava solene, danando a cabea como cavalo de coup de casamento rico, sobraando a rica pasta rabulesca, atirando a bengala para adiante muito para adiante, sem olhar para os lados, havia quem o invejasse, na Rua do Ouvidor ou na avenida, e dissesse:

- Este Praxedes um " guia" ! Chegou noutro dia do Norte e j est ganhando rios de dinheiro na advocacia! Esses nortistas...

No havia nenhuma verdade nisso. Apesar de ter carta de bacharel pela Bahia ou por Pernambuco; apesar do ouro da bengala e da prata da pasta; apesar de ter escritrio na Rua do Rosrio, a sua advocacia ainda era muito "mambembe". Pouco fazia e todo aquele espetculo de fraques, hotis caros, txis, cock-tails, etc., era custeado por algum dinheiro que trouxera do Norte e pelo que obtivera aqui, por certos meios de que ele tinha o segredo. Semeava, para colher mais tarde.

Chegara com o firme propsito de conquistar o Rio de Janeiro, fosse como fosse. Praxedes era teimoso e, at, tinha a cabea quadrada e a testa curta dos teimosos; mas no havia na sua fisionomia mobilidade, variedade de expresses, uma certa irradiao, enfim, tudo o que denuncia inteligncia.

Muito pouco se sabia dos seus antecedentes. Vagamente se dizia que Praxedes fora sargento de um regimento policial de um Estado do Norte; e cursara como sargento a faculdade de Direito respectiva, formando-se afinal. Acabado o curso, deu um desfalque na caixa do batalho com a cumplicidade de alguns oficiais, entre os quais, alguns eram esteios do situacionismo local. Por nico castigo, tivera baixa do servio, enquanto os oficiais l continuaram. Escusado dizer que os " dinheirosa" com que se lanava no Rio, vinham em grande parte das " economias lcitas do batalho tal da fora policial do Estado *** ".

Eloqente a seu modo, com voz cantante, embora um tanto nasalada, senhor de imagens suas e, sobretudo, de alheias, tendo armazenado uma poro de pensamentos e opinies de sbios e filsofos de todas as classes, Praxedes conseguia mascarar a misria de sua inteligncia e a sua falta de verdadeira cultura, conversando como se discursasse, encadeando aforismas e foguetes de retrica.

S o fazia, porm, entre os colegas e reprteres bem comportados. Nada de bomios, poetas e noctvagos, na sua roda!

Advogava unicamente no cvel e no comercial. Isto de "crime", dizia ele com asco, "s para rbulas".

Pronunciava - "rbulas" - quase cuspindo, porque devem ter reparado que os mais vaidosos com os ttulos escolares so os burros e os de baixa extrao que os possuem.

Para estes, ter um pergaminho, como eles pretensiosamente chamam o diploma, ficar acima e diferente dos que o no tm, ganhar uma natureza especial e superior aos demais, transformar-se at de alma.

Quando fui empregado da Secretaria da Guerra, havia numa repartio militar, que me ficava perto, um sargento amanuense com um defeito numa vista, que no cessava de aborrecer-me com as suas sabenas e literatices. Formou-se numa faculdade de Direito por a e, sem que nem porque, deixou de me cumprimentar.

So sempre assim...

Praxedes Itapiru da Silva, ex-praa de pr de uma polcia provinciana, tinha em grande conta, como coisa inacessvel, aquele banalssimo trambolho de uma vulgar carta de bacharel; e, por isso, dava-se importncia de sumidade em qualquer departamento do pensamento humano e desprezava soberbamente os rbulas e, em geral, os no formados.

Mas, contava eu, o impvido bacharel nortista tinha um grande desdm pela advocacia criminal; vista disso, certo dia, todos os seus ntimos se surpreenderam quando ele lhes comunicou que ia defender um dado criminoso, no jri.

Era um ru de crime hediondo, cujo crime deve estar ainda na 1embrana de todos. L, pelas bandas de Inhama, num lugar chamado Timb, vivia num "stio" isolado, quase s, um velho professor jubilado da Escola Militar, muito conhecido pelo seu gnio estranhamente concentrado e sombrio. No se lhe conheciam parentes; e isto, h mais de quarenta anos. Jubilara-se e metera-se naquele ermo recanto do nosso municpio, deixando mesmo de freqentar o seu divertimento predileto, por deficincia de conduo. Consistia este no caf-concerto, onde houvesse anafadas mulheres estrangeiras e saracoteios de raparigas no palco. Era um esquisito, o doutor Campos Bandeira, como se chamava ele. Vestia-se como ningum se vestiu e se vestir: calas brancas, em geral; colete e sobrecasaca curta, ambos de alpaca; chapu mole, partido ao centro; botins inteirios de pelica; e sempre com chapu-de-chuva de cabo de volta. Era amulatado, com traos inditicos e tinha um lbio inferior muito fora do plano do superior. Pintava e, por sinal, muito mal, os cabelos e a barba; e um pequeno pince-nez, sem aros, de vidros azulados, acabava-lhe a fisionomia original.

Todos o sabiam homem de preparo e de espri