LIMA, Luiz Cesar de. Classe, Cultura e Experiência - E. P. Thompson e o culturalismo nas ciências sociais

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    LUIZ CESAR DE LIMA

    CLASSE, CULTURA E EXPERINCIA: E. P. Thompson eo culturalismo nas Cincias Sociais.

    Dissertao apresentada Programa dePs-graduao em Sociologia Poltica,Universidade Federal de Santa Catarina,como requisito parcial obteno dottulo de Mestre em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo GasparMller.

    FLORIANPOLIS

    2008

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    A Isabelle,

    pelo amor e estmulo constante

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    AGRADECIMENTOS

    Ricardo Gaspar Muller, pela orientao, pela amizade e confiana.

    Maria Clia Marcondes de Moraes, pela colaborao decisiva de seus comentrios, pelaamizade, pelo estmulo intelectual e pela leitura cuidadosa e crtica da dissertao em suafase de qualificao.

    Mario Duayer, pelas fundamentais contribuies tericas que vo alm das funes dabanca, pelo incentivo e pelas crticas e sugestes.

    Minha famlia, pelo apoio, compreenso, amor e carinho.

    Colegas do curso de ps-graduao, pela amizade e mtuo incentivo.

    Maria Soledad Etcheverry Orchard e Mrcia Grisotti, pela discusso das primeiras arestasdo projeto em sala de aula.

    Fernando Ponte de Sousa e Janice Tirelli Ponte de Sousa, pelas contribuies e comentriosna discusso da dissertao na ocasio dos seminrios de pesquisa.

    Professores do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da UFSC, peloinstigante ambiente de estudo proporcionado.

    Secretaria do PPGSP/UFSC, pela simpatia, pelo suporte e pela orientao administrativa.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES, pelo decisivo

    apoio financeiro, sem o qual no seria possvel a realizao desses estudos.

    Agradeo a todos os que, a seu modo, contriburam para que eu alcanasse este objetivo.

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    RESUMO

    A proposta da pesquisa indicar as conseqncias tericas presentes nas concepes declasse, cultura e experincia em E. P. Thompson por meio de critrios ontolgicos doobjeto de estudo da Sociologia e do instrumental terico do Realismo Crtico. Dessa forma,identificamos as possibilidades de um intercmbio/dilogo entre as categorias de culturaeexperincia no mbito da Antropologia, da Sociologia e da Histria. Destacamos nesse

    processo a categoria cultura em relao quilo que no cultura, i.e., relacionando ascondies materiais de existncia com as perspectivas de transformao social fundadas naluta, conscincia e experincia de classe. Para tanto, analisamoso desenvolvimento tericode algumas proposies do culturalismo e sua insero no debate sobre o ser social, bemcomo o conceito de cultura para Thompson. Abrimos assim a possibilidade do estudocientfico do ser social, relacionando as implicaes tericas de sua obra com o modelotransformacional de sociedade delimitado pelo Realismo Crtico de Roy Bhaskar Paracontextualizar os debates, sistematizamos as crticas de Thompson s tendnciasfuncionalistas das Cincias Sociais e discutimos alguns crticos de sua obra. Comoconcluso, apontamos as contribuies de Thompson ao amplo debate das Cincias Sociaisno campo dos estudos sobre cultura e sociedade, sem perder de vista ou abandonar os

    referenciais marxistas de sua obra no intuito de afast-lo da corrente culturalista ps-moderna a que , por vezes, impropriamente vinculado.

    PALAVRAS-CHAVE: classe, cultura, ontologia, sociedade, marxismo

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    ABSTRACT

    The aim of this research is to indicate the theoretical consequences within the categories ofclass, culture and experience in E. P. Thompson by relating them with the ontologicalcriteria of sociologys subject of study and the achievements of Critical Realism theory.Doing that we hope to help to identify the possibilities of an exchange/dialog between the

    categories of cultureand experiencewithin Anthropology, Sociology and History.

    KEYWORDS: class, culture, ontology, society, marxism

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    En el centro de la pampavive un pimiento.

    Sol y viento pa' su vida,sol y viento.

    Coronado por la piedravive el pimiento.

    Luna y viento lo vigilan,luna y viento.

    Cuando sus ramas florecenes un incendio,

    tanto rojo que derrama,rojo entero.

    Rojo entero.

    Nadie lo ve trabajardebajo del suelo

    cuando busca noche y dasu alimento.

    Pimiento rojo del norte,atacameo,

    siento el canto de tus ramasen el desierto.

    Debes seguir floreciendocomo un incendio

    porque el norte es todo tuyo,todo entero.

    Todo entero.

    Pimiento (1965)

    (Victor Jara)

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    SUMRIO

    1 Introduo......................................................................................................................... 8

    Captulo I - A Histria do Culturalismo enquanto tendncia terica e as mazelas do

    ps-modernismo...................................................................................................................... 15

    Captulo II - Classe, Cultura e Experincia: a inarbitrariedade do ser social.................. 32

    Captulo III - Consideraes Ontolgicas Sobre o Modelo Transformacional de

    Sociedade................................................................................................................................. 54

    Captulo IV - Cultura e os pomares da discrdia: a desmarxizao de Thompson......... 70

    Concluso................................................................................................................................. 83

    Bibliografia.............................................................................................................................. 87

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    INTRODUO

    Em prvio estudo elencamos as propostas de dilogo entre algumas Cincias

    Sociais (Histria, Sociologia e Antropologia, fundamentalmente) estabelecidas por E. P.

    Thompson ao longo de sua produo intelectual focada nas sociedades de classe1. Para isso,

    delimitamos os conceitos de cultura e experincia, como pensados por Thompson em parte

    de sua obra, alm de incorporar crticas de alguns autores em relao a esses conceitos

    thompsonianos, no intuito de contextualizar a discusso em que se desenvolveram.

    Nessa pesquisa anterior levantamos questionamentos que exploramos agora umpouco mais, avanando no tratamento sistemtico de indagaes tais como:

    - Quais as principais linhas de dilogo que Thompson estabelece entre

    a Histria, a Sociologia e a Antropologia? Quais as conseqncias onto-

    metodolgicas dessas propostas?

    - Que correntes tericas, sociolgicas e/ou antropolgicas, podem ser

    mais bem aproximadas s propostas thompsonianas2?

    - Como Thompson entende a relao entre transformao social,

    cultura e agir humano?

    - Quais as questes metodolgicas da produo do conhecimento

    social, propostas por Thompson, mais relevantes para a Sociologia e a

    Antropologia? De que maneira e por que essas questes so relevantes para a

    Sociologia e a Antropologia?

    - Em que termos possvel estabelecer o dilogo entre Sociologia,Antropologia e Histria, sem deixar de delimitar a particularidade de cada

    disciplina? Que premissas devem ser adotadas na efetivao desse dilogo?

    1 Lima, Luiz C. (2005). Costuras em Comum: os conceitos de cultura e experincia em E. P. Thompson.Florianpolis: Curso de Cincias Sociais, CFH/UFSC. Monografia de concluso de bacharelado, soborientao do Prof. Dr. Ricardo G. Muller.2Para isso, delimitamos os fundamentos ontolgicos das propostas de Thompson e tambm suas crticas aofuncionalismo, ao estruturalismo e ao voluntarismo, para ento apontar as congruncias possveis de setrabalhar dentro da Sociologia e Antropologia (cf. cap. II).

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    - Quais os fundamentos do conceito de cultura em Thompson que o

    definem no como um culturalista, mas como um importante colaborador para o

    desenvolvimento do materialismo histrico?

    Utilizamos como hiptese que os conceitos de cultura e experincia propostos por

    Thompson sugerem um ponto de partida para um intercmbio crtico, plural, democrtico e

    de carter humanista e emancipatrio no campo das Cincias Sociais, sobretudo ao

    constiturem condio de crtica s anlises tanto funcionalistas como estruturalistas, sem

    cair em um relativismo estril no estudo do papel da cultura nas transformaes e

    movimentos sociais enquanto processo imbudo de materialidade histrica.

    Para Thompson, o materialismo histrico constitui um modo de anlise em que as

    idias e valores situam-se em circunstncias materiais e as necessidades materiais inserem-

    se em um contexto de normas e expectativas. A anlise que propomos volta-se,

    principalmente, para a dialtica entre essas relaes mtuas, suas mediaes e na

    experincia vivida de conjunturas histricas especficas.

    Fred Inglis (1982, p. 199), ao comentar a obra de Thompson, observou que ele

    recuperou para ns um novo passado para viver, transformando a memria social, de

    tal forma que as pessoas puderam definir novas perspectivas de luta, na medida em que

    passaram a compreender de maneira mais precisa o conjunto de conflitos que formaram o

    presente3.

    Em 1963, com a publicao de The Making of the English Working Class4,

    Thompson contribuiu de forma inovadora para os estudos de formao de classe. Seu

    estudo demonstrou como a classe trabalhadora estava no s presente, mas incisivamente

    ativa na criao de sua prpria organizao e, ao mesmo tempo, no processo de produo

    cultural de sua conscincia. Mantinha, portanto, um olhar firme na dinmica das

    contradies materiais e sociais da ao coletiva na apropriao e metamorfose de sua

    cultura e conscincia5.

    3Cf. Inglis, F. (1982). Radical Earnestness. Oxford: Martin Robertson; apud Moraes, M. C. M. e Mller, R.G. (2003, p. 4).4Editado a primeira vez no Brasil em 1987.5Cf. Steinberg, Marc. W. (1999).Fighting Words. Ithaca: Cornell, p. xiv.

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    Para Thompson, produo cultural de classe a forma pela qual as pessoas

    compartilham entre si, e enfrentam, os problemas que as une; o que no caso ingls

    representava, muitas vezes, uma apaixonada oposio burocratizao e desumanizao

    sistemtica das relaes sociais6impostas pelas transformaes causadas pela expanso do

    capitalismo. Esse sistema sustentado no princpio de satisfao das necessidades da lgica

    de acumulao, no s impunha novas desumanidades, como tambm buscava erradicar

    antigas conquistas, sem deixar de constituir tambm, como diria Marx, as condies de sua

    superao.

    A prtica do materialismo histrico para Thompson foi, como concepo

    ontolgica e metodolgica, fonte renovadora para uma teoria da emancipao humana, para

    a histria escrita a partir de baixo que representava a constante renovao dos valores de

    uma cultura de dissidncia, como lembra Mller (2002, p. 5).

    Ao afirmar que o que costumava ser histria operria pode, de fato, constituir

    excelente terreno de teste para a sociologia histrica, Thompson sublinha o cuidado a ser

    tomado para que isso no signifique a desajeitada retomada de uma terminologia mal

    digerida e de categorias de uma determinada escola sociolgica impondo-as ao

    conhecimento histrico existente. Ele sugere (2001a, p. 191) que seja praticada umainterpretao mtua das disciplinas por meio da qual o historiador, por exemplo, encontre

    novas indagaes para a pesquisa sociolgica, simultaneamente fertilizando sua prpria

    pesquisa com uma concepo prenhe de conceitos caractersticos da sociologia, sem deixar

    de ser arredia diante de categorias sociolgicas, obtendo, enfim, resultados que (espera-se)

    possam, por sua vez, adicionar uma dimenso histrica teoria sociolgica7.

    Em relao tendncia ao dilogo entre as disciplinas das Cincias Sociais,

    encontrada em estudos recentes sobre a classe trabalhadora, por exemplo, Thompson(2001a, p. 199-200) afirma que h uma preocupao crescente em investigar as

    6Cf. Mller, R. G. (2002, p. 5). notvel, por exemplo, a contribuio de Thompson no desenvolvimento doconceito de Economia Moral. Ver Sayer, Andrew (2000) e (2005).7Segundo Thompson, exemplos desse tipo de trabalho podem ser encontrados nos peridicos: ComparativeStudies in Society and History, Le Mouvement Social, Sociologie et Travail e Economic Development andCultural Change.

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    manifestaes polticas e sociais no includas na linha oficial da evoluo do movimento

    operrio.

    De um lado, h toda uma gama de diferentes questionamentos e abordagens que

    sugerem o intercmbio entre Sociologia, Histria e Antropologia. De outro, o estudo

    histrico impe-se para que a idia de processo e transformao/reproduo se torne mais

    evidente nos estudos sociolgicos, sem o que se esvazia a noo de prxis8.

    Segundo Ellen Wood (2002, p. 61), o que interessa a Thompson so as relaes

    do processo em que as relaes de produo relaes de explorao, dominao e

    apropriao do forma a todos os aspectos da vida social em conjunto e o tempo todo, ou

    exercem presso sobre eles. Ao frisar a simultaneidade das expresses culturais e

    econmicas enfatiza a idia do trabalho como a caracterstica fundadora, e ontolgica, do

    ser social9.

    A importncia que Thompson atribui ao estudo da cultura, porm, no o

    transforma em um culturalista10. A noo de cultura figura na teoria thompsoniana como

    uma das condies materiais e de identidade que permeiam o processo de formao da

    conscincia, das necessidades e dos interesses de classe. Thompson no substitui a ortodoxa

    primazia do econmico por uma igualmente vulgar primazia do cultural; pelo contrrio,

    articula de forma dialtica as relaes entre o econmico e o cultural para oferecer uma

    explicao mais crtica sobre a dinmica da luta de classe.

    Pretendemos demonstrar as conseqncias ontolgicas presentes nas concepes

    de E. P. Thompson para ento estabelecer os critrios ontolgicos do objeto de estudos da

    8A idia de filosofia da prxis em Gramsci alm de equivaler a materialismo histrico, como forma de

    burlar a censura na poca de seu perodo em crcere estabelece a ligao teoria/prtica, conferindo aolao dialtico que os une, a materialidade de um movimento de copenetrao de uma na outra, que se realizapela manifestao de um discurso/ao filosfico. Cf. Grisoni, Dominique e Maggiori, Robert (1973).LireGramsci. Paris: Universitaires/Citoyens, p. 242.9No captulo sobre os conceitos de classe, cultura e experincia em Thompson trataremos desse ponto aodiscutir a relao entre o cultural e o econmico, para ento avanar s proposies ontolgicas levantadaspor Roy Bhaskar. Um detalhado resumo do atual debate em torno da centralidade da categoria trabalho podeser encontrado em Antunes, Ricardo (2000).Adeus ao Trabalho?. Campinas: Unicamp, 7 edio.10 Numa resumida definio do Culturalismo, conceitua-lo-amos como a escola filosfica principalmentedesenvolvida por Boas que d nfase determinncia dos fatores culturais no desenvolvimento do indivduo,da sociedade e dos conflitos sociais. No primeiro captulo desta pesquisa demonstraremos como esta linha depensamento teve forte influncia no desenvolvimento do discurso ps-moderno.

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    Sociologia, a partir do Realismo Crtico, identificando as possibilidades de um

    intercmbio/dilogo entre as categorias de cultura e experincia no mbito da

    Antropologia, da Sociologia e da Histria, ao discutir cultura em relao quilo que no

    cultura, i.e., em relao s condies materiais, onde a transformao passa pela luta,

    conscincia e experincia de classe; sistematizamos tambm as crticas de Thompson s

    tendncias funcionalistas das Cincias Sociais como referncia para o dilogo e as

    aproximaes que propunha. Para isso, buscamos apontar as contribuies de Thompson ao

    amplo debate das Cincias Sociais no que se refere ao estudo da cultura e da sociedade,

    sem perder de vista, esvaziar ou abandonar, os referenciais marxianos de sua obra,

    separando-o da corrente culturalista na qual muitos dos crticos superficiais de sua obra ovinculam.

    Estudamos os fundamentos dos conceitos thompsonianos de experincia, cultura e

    classe, e seu percurso, identificando-os em suas diferentes relaes, e especificando de que

    maneira, enquanto categorias de anlise, oferecem alternativas para o entendimento da

    dinmica sociedade/transformao/concreto.

    Sistematizamos os artigos em que Thompson prope algumas aproximaes entre a

    Histria e a Antropologia, como tambm o carter de suas crticas sociologiafuncionalista e s influncias do estruturalismo, a seu ver, algumas vezes perversas, para

    definir um campo de articulao conceitual entre experincia, cultura e classee criar uma

    plataforma de sustentao para um estudo do lugar da cultura nos movimentos sociais que

    contemple a materialidade histrica desse processo.

    O que guiou nosso trabalho no foi a tentativa de uma justaposta reconstruo

    de um esquema conceitual que pudesse ser compartilhado pelas diferentes disciplinas que

    se dedicam ao estudo das vicissitudes das relaes sociais, mas o intuito foi o de sublinharos fundamentos ontolgicos que tornam possvel a efetivao do ser social via

    reproduo/transformao da sociedade.

    Por exemplo, para estudarmos um autor marxiano, preciso trabalhar com

    conceitos desenvolvidos a partir da relao com e o estudo da realidade que dessem conta

    de expressar as relaes e contradies existentes nas manifestaes reais do objeto de

    pesquisa, portanto necessrio de comeo um realismo ontolgico.

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    Thompson procurou ordenar o uso de conceitos de maneira coerente com a prtica

    do materialismo histrico, delimitando-os de forma a estabelecer pontes tericas entre as

    diversas disciplinas das Humanas, muitas vezes na forma de um dilogo aberto entre as

    Cincias Sociais.

    Nesse sentido, quando Thompson (2001b, p. 228-229) se refere controvrsia

    levantada por Hildred Geertz sobre o trabalho de Keith Thomas11, ele afirma:

    Estudos antropolgicos sobre feitiaria (ou sobre outras crenas e rituais) nassociedades primitivas, ou em sociedades africanas contemporneas mais avanadas,no precisam nos prover com todas as categorias explicativas necessrias para ascrenas de bruxaria na Inglaterra elisabetana ou na ndia do sculo XVIII, onde

    podemos encontrar sociedades mais complexas e plurais, com vrios nveis decredulidade, sofisticao e ceticismo. Categorias ou modelos derivados de umcontexto precisam ser testados, refinados e, talvez, redefinidos no curso dainvestigao histrica.

    Por isso a importncia do cuidado de no se combinar, sem a devida

    comparao/delimitao, os diferentes modos como este ou aquele autor emprega esta ou

    aquela categoria. Para que sejam confrontados e a posteriori relacionados12 , pois,

    necessrio realizar um levantamento prvio de como cada autor entende determinada

    categoria e com relao a quais referenciais cada um a concebe.

    Buscamos efetuar uma comparao cuidadosa, desenvolvendo uma pesquisa

    bibliogrfica que contemplasse os conceitos desenvolvidos por Thompson (e em

    comparao com outros autores), esquematizando-os e articulando-os de maneira crtica a

    cada um dos eixos de discusso. Foi definida uma bibliografia especfica para a reviso de

    literatura pertinente ao projeto e para a pesquisa das categorias no conjunto da obra de E. P.

    Thompson, acompanhado de uma panormica introdutria sobre como Thompson foi lido

    erroneamente por correntes tericas relativistas e ps-modernas.

    A articulao conceitual aqui efetuada passa pela tentativa de propor uma

    fundamentao terica que possibilite um dilogo interdisciplinar que no se contradiga

    11Em um debate publicado no Journal of Interdisciplinary History (Summer, 1975, vol. 6, n. 1, p. 71-89),Geertz adverte Keith Thomas por ter lanado mo em Religio e Declnio da Magia(1971) de enfoquesde escolas antropolgicas distintas, ao passo que deveria ter se posicionado mais especificamente, buscando,assim, maior rigor terico.12 Principalmente para que no haja contradies ontolgicas que comprometam a pertinncia de umadeterminada elaborao terica.

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    ontologicamente e que seja vivel dentro da tradio marxiana nas Cincias Sociais. A

    perspectiva metodolgica utilizada para a seleo dos autores foi definida a partir da idia

    da crtica como ponto de partida necessrio para desenvolver um dilogo interdisciplinar;

    os autores foram escolhidos por debaterem questes centrais da argumentao de

    Thompson.

    No captulo I, contextualizamos o desenvolvimento das proposies do

    culturalismo e sua insero nas discusses acerca do ser social a partir das crticas de

    Thompson, Raymond Williams, Terry Eagleton e Ellen Wood em relao ao debate sobre

    cultura e sociedade. No captulo II, efetuamos a discusso pormenorizada dos conceitos-

    chave de classe, cultura, experincia em Thompson, abrindo para o captulo III que trata da

    discusso ontolgica da possibilidade do estudo cientfico da sociedade a partir das

    conseqncias gnosiolgicas das propriedades ontolgicas do ser social delimitadas pelo

    Realismo Crtico. O captulo IV a reviso bibliogrfica das crticas dirigidas parte da

    obra de Thompson que serviu de referncia para o presente estudo.

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    CAPTULO I

    1. CULTURA, CULTURALISMO E AS CONTRADIES DA PS-

    MODERNIDADE.

    A gnese de uma pesquisa que se proponha ao estudo crtico de qualquer

    conceito\categoria deve contemplar de forma satisfatria o histrico no s da definio,

    mas tambm dos usos e aplicaes correntes e passadas que constituram formalmente a

    construo intelectual de sua pertinncia. Em nosso caso, essa necessidade se faz ainda

    mais premente, dada a conturbada histria dos conceitos-chave de que trataremos:sociedade e cultura. A trajetria destes dois termos e suas inter-relaes est na raiz do

    desenvolvimento das cincias sociais e por isso capaz de nos delimitar a prpria

    especificidade de cada uma das disciplinas envolvidas no debate de sua constituio, bem

    como apontar as congruncias necessrias para a efetivao de um dilogo interdisciplinar

    efetivo, ou seja, que no fique na pura e simples relativizao dos objetos de pesquisa.

    Esperamos, portanto, demonstrar o quo de perto esses conceitos se desenvolveram.

    Raymond Williams (1979, p. 17), em seu estudo Marxismo e Literatura, aponta

    que o conceito de cultura figura no centro mesmo de uma importante rea do pensamento

    e da prtica modernos, ao incorporar atravs [de sua] variao e complicao... no s as

    questes, mas tambm as contradies atravs das quais [esse pensamento] se

    desenvolveu. Para o autor, o conceito de cultura particularmente funde e confunde as

    experincias e tendncias radicalmente diferentes de sua formao, o que torna impossvel

    realizar uma anlise cultural sria sem chegarmos a uma conscincia do prprio

    conceito.13 Vale ressaltar que o autor prope no uma conscincia qualquer, mas uma

    conscincia que deve ser histrica. Isso porque, segundo ele, mesmo os conceitos mais

    bsicos, aqueles dos quais partimos, no so conceitos, mas problemas, e no problemas

    analticos, mas movimentos histricos ainda no definidos nem definitivos, mas nexais e

    13Vale lembrar a proposta bhaskariana de que uma ontologia sempre necessria, mesmo que inconsciente desi mesma, visto que o prprio postulado que afirma que ela no necessria j em si uma grande propostaontolgica plena de conseqncias.

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    cheios de possibilidades e estmulos para um contnuo entendimento post festum da

    realidade.14

    Cada uma das reas encerradas pelos conceitos de sociedade, economia e

    cultura tm, segundo Williams (1979, p. 17-18), uma formulao histrica relativamente

    recente e interpenetrada. O termo Sociedade, antes de se tornar a descrio de um

    sistema ou ordem geral significava companheirismo, associao e realizao comum, ao

    passo que Economia, antes de tornar-se a descrio de um determinado sistema de

    produo, distribuio e troca significava a administrao de uma casa e depois a

    administrao de uma comunidade e a palavra Cultura, antes de todo esse processo, era

    o crescimento e cuidado de colheitas e animais, que por extenso foi significando o

    crescimento e cuidado das faculdades humanas. Williams (1979, p. 18) sustenta que no

    desenvolvimento recente, moderno, estes conceitos no se moveram no mesmo ritmo,

    mas cada um deles, num ponto crtico, foi afetado pelo movimento dos outros. Mas isto,

    segundo ele, s pode ser percebido agora, em retrospectiva no necessariamente sincrnica,

    mas histrica, porque no momento em que se concretizavam as verdadeiras transformaes

    o que estava dando contedo s novas idias, e at certo ponto estava sendo fixado nelas,

    era uma experincia sempre complexa e em grande parte sem precedente.O conceito de Sociedade, segundo Williams (1979, p. 18) foi adquirindo o carter

    de alternativa consciente rigidez formal de uma ordem herdada, e posteriormente

    considerada como imposta em um estado por causa de sua nova nfase sobre as

    relaes imediatas. A Economia, calcada na proposta de administrao de recursos

    naturais e humanos, foi uma atitude consciente na busca de compreenso e controle de

    uma seqncia de atividades consideradas no s como necessrias, mas como naturais.

    Com o desenvolvimento do debate, novas descries se fizeram necessrias, taiscomo indivduo que anteriormente significava indivisvel, um membro de um grupo e

    agora precisava ser no s um termo separado, mas oposto, na dicotomia

    indivduo\sociedade muito comum na formulao da experincia que hoje resumimos

    como sociedade burguesa. Em constante paralelo, a racionalidade de economia, como

    meio de compreender e controlar um sistema de produo, distribuio e troca, em relao

    14Apontamos aqui para o debate a ser trabalhado mais adiante no terceiro captulo, via Bhaskar, sobre asconseqncias intrnsecas da possibilidade de conhecimento.

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    direta com a instituio prtica de um novo tipo de sistema econmico, persistiu. Williams

    (1979, p. 18-19) comenta que o prprio produto da instituio e controle racionais foi

    aceito como natural, como uma economia natural, dotada de leis semelhantes s leis do

    (imutvel) mundo fsico.

    Mesmo que muito dessas antigas imbricaes tenha sido descartado, em geral, a

    maior parte do moderno pensamento social15 no contempla o fato de que suas formas

    partem, na prtica, dos problemas no-solucionados dos conceitos modeladores iniciais,

    no raras vezes por carecerem de uma proposta ontolgica coerente e bem definida. Por

    exemplo, uma definio de cultura que no traga bem desenvolvida em sua articulao

    terica uma definio congruente de sociedade no poder ir muito longe em sua anlise,16

    sem esbarrar na mesma problemtica deixada de lado logo atrs. Afinal, indaga Williams

    (1979, p. 19):

    devemos compreender cultura como as artes, como um sistema de significadose valores, ou como todo um modo de vida? E como relacion-los com asociedade e a economia?

    Essas perguntas no s tm de ser feitas, como s podem ser respondidas se

    reconhecermos os problemas inerentes aos conceitos sociedade e economia que

    graas abstrao e limitao destes termos se estenderam a conceitos como cultura.

    Da mesma forma, o conceito de cultura, quando considerado no contexto amplo do

    desenvolvimento histrico, exerce uma forte presso contra os termos limitados de todos os

    outros conceitos. De descrio de um processo objetivo (a cultura de alguma coisa),

    cultura passa a desenhar via influncia de outro termo, civilizao o corpusde boa

    parte de sua atual significao.

    Para Williams (1979, p. 19-20) civilizao expressava dois sentidos que estavam

    historicamente unidos: um Estado realizado, que se podia contrastar com a barbrie e

    um estado realizado de desenvolvimento, que implicava processo histrico e progresso

    15Inclusive as reas mais recentes, como "a psicolgica e a cultural, afirma Williams.16 Motivo este, inclusive, que nos move a estabelecer detalhadamente o entendimento thompsoniano decultura de acordo com a tradio marxista, para que sua contribuio no corra o risco de escorrer ralo baixocomo mais um culturalismo. Nossa principal problemtica situar criticamente o debate proposto porThompson em seus prprios termos, em firme recusa vulgarizao de sua obra proposta por autores comoStedman Jones, Joyce e Scott, ora pelo esvaziamento da ampla influncia que o materialismo histrico teveem sua pesquisa, ora pela imprpria, qui mal-intencionada, atribuio de limitaes (como a da tradicionalmetfora base-superestrutura, por exemplo) que no lhe cabem.

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    que se auto-proclamava a encarnao do refinamento e ordem. Houve tal paralisao

    efetiva da racionalidade insistente que explorou e informou todas as fases e dificuldades

    desse processo que chegou-se ao ponto de se dizer que a civilizao havia sido

    alcanada e que na verdade, tudo o que se podia projetar racionalmente era a extenso e o

    triunfo desses valores realizados.

    Tal posio, que j vinha sofrendo severo ataque dos sistemas religiosos e

    metafsicos mais antigos passou a ser confrontada tambm por duas reaes decisivas da

    modernidade: a idia de cultura, oferecendo um senso diferente de crescimento e

    desenvolvimento humanos, associada idia de socialismo, oferecendo uma crtica social

    e histrica da civilizao e sociedade civil, e uma alternativa a elas. Tanto civilizao

    como cultura padeciam desse sentido duplo de um estado realizado e de um estado de

    desenvolvimento realizado. Foi desse embate, desde Rousseau at o Romantismo, que se

    constituiu a base de um importante sentido alternativo de cultura como um processo de

    desenvolvimento ntimo, distinto do desenvolvimento externo. O efeito mais imediato

    dessa perspectiva foi associar cultura com religio, arte, famlia e vida pessoal, inclusive

    como oposio s idias de civilizao, em seu sentido imperialista, e sociedade em seu

    novo sentido abstrato e geral, incutindo no conceito uma metafsica da subjetividade e doprocesso imaginativo (Williams, 1979, p. 20-21).

    Simultaneamente, o conceito passava por outro desenvolvimento especialmente

    sociolgico e antropolgico que abordava a cultura pelas suas caractersticas sociais.

    Williams (1979, p. 22) afirma que a origem desse segundo sentido fruto da crtica

    ambigidade de civilizao tanto como estado realizado quanto como estado de

    desenvolvimento realizado. Para esta narrativa das Histrias Universais da Civilizao a

    razo como uma compreenso esclarecida de ns mesmos e do mundo que permitiriacriar formas superiores de ordem social e natural, supostamente superando a ignorncia

    e superstio e as formas sociais e polticas correspondentes ao atraso de sua patolgica

    irracionalidade funcional era a propriedade caracterstica central. Por ser permeado pela

    fora da razo iluminista esse novo senso secular de civilizao confundvel com um

    senso igualmente secular de cultura como uma interpretao do desenvolvimento

    humano, por ambos ressaltarem a capacidade humana no s de compreender, mas de

    construir uma ordem social humana. Esta foi a caracterstica fundadora da diferena entre

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    tais idias e a derivao anterior de conceitos sociais e ordens sociais sustentadas a partir

    de estados religiosos ou metafsicos pressupostos, o que no evitou que houvesse

    diferenas radicais de opinio quando diferentes abordagens se engajaram na tentativa de

    identificar as foras constituintes do processo secular do homem que faz a sua prpria

    histria.

    De Vico (1725) em A Nova Cincia a Herder em Idias Sobre a Filosofia da

    Histria da Humanidade (1784-91) foi sendo forjada a origem efetiva do sentido social

    geral de cultura que, como um modo de evoluo que era ao mesmo tempo a formao

    das sociedades e a formao das mentes humanas e a sua interao, era por demais

    complexo para ser reduzido evoluo de um nico princpio to abstrato quando a

    razo, alm de ser demasiado varivel para ser reduzido a um desenvolvimento

    progressivo unilinear que culminasse na civilizao europia. J em tal contexto era

    preciso falar de culturas, e no de cultura, levando-se em conta... a complexidade e

    variabilidade das foras que dariam forma a qualquer cultura. efetivamente na idia

    de um processo social fundamental que modela modos de vida especficos e distintos

    que se origina o sentido social comparativo de cultura e seu plural, j agora necessrio,

    de culturas. Ao frisar a complexidade adquirida pelo conceito, Williams (1979, p. 23)comenta que em tal processo o termo:

    Tornou-se um nome do processo ntimo, especializado em suas supostas agnciasde vida intelectual e nas artes. Tornou-se tambm um nome de processo geral,especializado em suas supostas configuraes de modos de vida totais. Teve umpapel crucial em definies de artes e humanidades, a partir do primeirosentido. Desempenhou papel igualmente importante nas definies das CinciasHumanas e Cincias Sociais, no segundo sentido. Cada tendncia se inclina anegar o uso do conceito outra, apesar de muitas tentativas de reconciliao.

    Sobre essas imbricaes, Terry Eagleton (2000, p. 1-2) comenta que cultura

    tida como uma das duas ou trs mais complexas palavras de sua lngua materna e que o

    termo que algumas vezes considerado como seu oposto natureza comumente

    agraciado com o ttulo de mais complexo de todos. Antes de ser considerada entidade era,

    muito antes, entendida como atividade. Em princpio, cultura referia-se a um processo

    sumamente material que foi em seguida transposto metaforicamente para os assuntos do

    esprito. Palavra esta que traz em seus desdobramentos semnticos a prpria mudana

    histrica da humanidade de uma existncia rural para urbana, da criao de porcos

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    Picasso, da preparao do solo diviso do tomo. uma das idias centrais tanto para

    polticas de esquerda quanto de direita, o que torna sua histria social excepcionalmente e

    emaranhada e ambivalente.

    Ao mesmo tempo em que a retrospectiva do conceito de cultura delimita toda uma

    transio histrica, ela tambm codifica um nmero de assuntos-chave da filosofia. Nesse

    nico termo questes de liberdade e determinismo, agir e resistncia, mudana e

    identidade, o dado e o criado vm tona. Cultura uma noo epistemologicamente

    realista por implicar que existe uma natureza ou matria bruta alm de ns mesmos ao

    mesmo tempo que carrega uma dimenso construtivista, uma vez que essa matria bruta

    deva ser trabalhada em uma forma humanamente significante. Para Eagleton (2000, p. 2-

    4), o problema seria menos o de desconstruir a oposio entre cultura e natureza do que de

    reconhecer que o termo cultura j tal desconstruo, pois se natureza sempre de

    alguma forma cultural, ento culturas so construdas naquele trfego incessante a que

    chamamos trabalho17.

    A dimenso cultural o cambivel onde o cambiante tem sua prpria existncia

    autnoma... na recalcitrncia da natureza, mas tambm uma questo de seguir regras o

    que envolve uma inter-relao entre o regulado e o no-regulado18, isto porque seguiruma regra no simplesmente obedecer a uma lei fsica, j que envolve uma aplicao

    criativa da regra em questo. No s no pode haver regras sobre a aplicao de regras,

    como sem tal abertura, regras no seriam regras, como palavras no seriam palavras.

    Tanto regras quanto culturas, por no serem nem puramente randmicas nem rigidamente

    determinadas envolvem a idia de liberdade. Eagleton (2000, p. 4-5) aponta que

    algum que fosse inteiramente expurgado de convenes sociais no seria mais livre que

    algum que fosse escravo delas. Se cultura um conceito antideterminista, ele igualmente avesso ao voluntarismo, ao conter uma tenso entre fazer e ser feito,

    racionalidade e espontaneidade, que repreende o intelecto desencarnado do Iluminismo

    tanto quanto desafia o reducionismo cultural de muito do pensamento contemporneo.

    Dividimos com a natureza a caracterstica de que somos tambm remodelados,

    mas nos diferenciamos dela ao poder fazer isto com ns mesmos, introduzindo ento ao

    17Cf.Para a Ontologia do Ser Socialde Lukacs, 1981.18E entre normas e expectativas, acrescenta Thompson, cf. cap. II.

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    mundo um grau de auto-reflexividade que o resto da natureza no pode aspirar19.

    Enquanto seres auto-cultivadores, somos barro em nossas prprias mos, simultaneamente

    redentor e degenerado, padre e pecador no mesmo corpo (Eagleton, 2000, p. 6). Em

    complemento retrospectiva etimolgica de cultura, Eagleton (2000, p. 9) analisa mais

    pormenorizadamente os trs principais sentidos modernos da palavra distinguidos por

    Williams: civilizao, auto-cultivo e modos de vida distintos.

    O conceito de civilizao foi construdo como o processo geral de progresso

    intelectual, espiritual e material que rapidamente adquiriu um eco imperialista

    inevitvel, suficiente para desacredit-lo aos olhos de alguns liberais, fato que

    demandava uma nova expresso para denotar como a vida social deveria ser ao invs de

    como ela era. Foi quando os alemes emprestaram a cultura do vocabulrio francs para

    este fim. Esta foi a gnese da crtica romntica e pr-marxista do incio do capitalismo

    industrial (Eagleton, 2000, p. 10). desse sentido de auto-cultivo que se deriva boa parte

    do sentido moderno de cultura como um modo distinto de vida, isto porque a origem da

    idia de cultura como uma forma distinta de vida distintivamente ligada a uma queda anti-

    colonialista por sociedades exticas reprimidas. Mais tarde esse exoticismo vai

    reaparecer em ps-modernos disfarces na romantizao da cultura popular, que agoracumpre o papel expressivo, espontneo e quasi-utpico que as culturas primitivas haviam

    cumprido antes. Para esses exoticistas o tribal mais constitutivo que o cosmopolita,

    em uma realidade vivida aos pulsos em um nvel muito mais profundo do que a mente,

    portanto fechado critica racional (Eagleton, 2000, p 12-13).

    Eagleton (2000, p. 13-14) sustenta que essa fuso entre descritivo e normativo,

    to familiar idia de civilizao como idia de cultura em seu vis universalista, se

    estendeu contemporaneidade, desta vez sob a forma de um relativismo cultural que pormais ps-moderno que se proclame permeado, ironicamente, pelas mesmas

    ambigidades da modernidade que prope solucionar. Por exemplo, para este tipo de

    proposta analtica, tal como para os romnticos, a idia cultura como civilizao

    execrada ao passo que cultura como modo de vida... que brota autenticamente das

    pessoas, sejam elas quem for adquire dimenses cannicas e inviolveis, ao presumir que

    19Como acrescentaria Lukacs, a teleologia no est presente no mundo a no ser no ser social, fator inclusiveessencial de sua ontologia.

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    o simples fato de ser uma cultura de algum tipo um valor em si. Se por um lado

    cultura como civilizao havia emprestado suas distines entre inferior e superior do

    vocabulrio evolucionista do incio da antropologia, foi exatamente o decorrer do debate

    antropolgico que deu ao termo caractersticas mais descritivas que valorativas, ao

    afirmar que eleger a superioridade de determinadas culturas em detrimento a outras no

    faria mais sentido que alegar que a gramtica catal fosse superior rabe. Porm, a

    diferena crucial entre o radicalismo romntico e o ps-moderno que para os ps-

    modernistas modos de vida distintos ho de ser ou celebrados se pertencentes a

    grupos dissidentes ou minoritrios ou castigados se pertencentes a maiorias, ao

    contrrio do pr-humanismo da universalista romntica de kultur, de forma que a polticade identidade ps-moderna capaz de incluir o lesbianismo, mas no o nacionalismo,

    desdobramento terico que soaria ilgico at para seus antecessores mais voluntaristas.

    O cerne da questo que, para Eagleton (2000, p. 14-15) a pluralizao do

    conceito de cultura no facilmente compatvel com a manuteno de sua carga

    positiva. mais fcil sermos entusiastas da idia de cultura como um

    autodesenvolvimento humanstico ou mesmo simpatizantes da cultura de outros pases,

    pois afinidades podem facilmente ser estabelecidas, j que formaes complexas como asculturas exticas s nossas, e as nossas para os outros, tm grande chance de incluir em seu

    emaranhado de relaes atividades que nos inspirem alguma virtude. Tal relativismo se

    complica quando, seguindo um esprito de generoso pluralismo, comea a esmerilhar a

    idia de cultura para incluir atividades como a cultura de cantina de polcia, a cultura

    do psicopata sexual ou a cultura da Mfia, o que acaba tornando menos evidente que

    essas so formas culturais a serem aprovadas apenas porque elas so formas culturais... ou

    simplesmente porque elas so parte de uma rica diversidade de tais formas. Um bom

    exemplo a rica diversidade de culturas de tortura, ainda bem contemporneas,20 de

    nossa recente histria que mesmo euroos mais devotos pluralistas sentir-se-iam pouco

    impelidos a afirmar como mais uma instncia da colorida tapearia da experincia

    humana.

    20Algumas das mais abominveis inclusive logo ali na esquina histrica do sculo XX.

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    por causa dessas discrepncias que Eagleton (2000, p. 15) sustenta que aqueles

    que tm a pluralidade como um valor em si mesmo so puros formalistas e obviamente no

    notaram a surpreendente variedade imaginativa das formas que, por exemplo, o racismo

    pode assumir em um contexto em que o pluralismo estranhamente cruzado com a auto-

    identidade, aonde ao invs de dissolver identidades discretas e pontuais as multiplica

    em uma infindvel gama de possibilidades que as desarticulam. A maior fragilidade do

    pluralismo corrente que ele totalmente dependente da idia de identidade da mesma

    forma em que o conceito de hibridizao cultural depende da idia de pureza cultural,

    j que s poderamos hibridizar uma cultura que fosse pura. Como crtica a esse processo,

    Edward Said21

    afirma que todas as culturas esto envolvidas umas nas outras, nenhuma singular e pura, todas so hbridas, heterogneas, extraordinariamente diferenciadas e no-

    monolticas. Eagleton recomenda que devemos nos lembrar que at a atualidade nenhuma

    cultura foi mais heterognea do que o capitalismo.

    Estabelecido que a primeira importante variante da palavra cultura uma

    crtica anticapitalista e que a segunda uma estreitante pluralizao do termo que o

    torna sinnimo de um modo de vida completo e heterogneo, a terceira estabelece-se

    como a gradual especializao das artes que tambm marca um srio desenvolvimentohistrico ao trazer na bagagem de seu sentido a idia que a arte poderia agora modelar a

    boa vida no a representando, mas simplesmente por ela mesma, pelo que mostrava ao

    invs do que dizia, oferecendo o escndalo de sua prpria existncia sem sentido reificante

    e autojustificadora como uma crtica silenciosa do valor de troca e da racionalidade

    instrumental. Era caracterstica inevitvel dessa arte em servio da humanidade ser

    autocontraditria ao emprestar ao artista romntico um status transcendental em

    discrepncia com a sua significao poltica. Essa autocontradio tambm partilhada

    pela idia de cultura feita crtica do capitalismo industrial pela afirmao da completude,

    simetria e desenvolvimento generalizado das capacidades humanas, fundadora do

    humanismo que se prope contrrio aos efeitos nocivos22de uma diviso social do trabalho

    que anula e cerceia as potencialidades humanas (Eagleton, 2000, p. 16-17).

    21Cf. Said, Edward (1993), Culture and Imperialism, p. xxix, apud Eagleton (2000, p. 15).22 Como bem aponta Michel Lwy (1970, 1990, 1992) em algumas oportunidades, o marxismo tem essatradio humanista-romntica como uma de suas colaboradoras diretas, principalmente porque um dos pontos

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    Se a cultura se torna um antdoto neutro para a poltica exatamente nessa

    recusa de partidarismo que ela se torna mais partidria, mais cruel em sua indiferena

    arbitrria, como se esta no fosse em si uma posio poltica e terica cheia de

    conseqncias que combina muito mais com os maneirismos das classes mdias moderadas

    do que com as massas em fria. Onde o equilbrio se torna palavra de ordem por si s, fica

    difcil estabelecermos porque algum no deveria contrabalanar uma objeo ao racismo

    com seu oposto, isto porque ser inequivocamente oposto ao racismo pareceria

    distintivamente no-pluralista. No reino onde a moderao em si mesma sempre uma

    virtude... um leve desgosto pela prostituio infantil pareceria mais apropriado do uma

    veemente oposio prtica. Pelo fato de que aes concretas implicam inevitavelmenteuma seleo de escolhas razoavelmente definitivas a conseqncia dessa autofagocitose

    antropofgica da cultura a restrio de seu campo de atuao a posturas mais

    contemplativas do que engajadas, tornando-a incapaz... de dizer algo sem correr o risco

    de no dizer nada, vtima aguda tanto da eloqncia quanto da mudez.(Eagleton, 2000, p.

    17-19).

    Eagleton (2000, p. 19-20) nos lembra que a afirmao de Raymond Williams de

    que o complexo de sentidos abarcados por cultura insinua um argumento complexosobre as relaes entre o desenvolvimento humano geral e um modo de vida particular e

    entre ambos e os trabalhos e prticas da arte e da inteligncia delimita de forma clara o

    principal elemento do iderio da verso inglesa da kulturphilosophieeuropia: o casamento

    entre antropolgico e esttico. Foi s a partir de William Morris que a Inglaterra viu esse

    crculo vicioso semntico ser quebrado pela transformao dessa kulturphilosophie em

    uma fora poltica efetiva: o movimento da classe trabalhadora. O autor aponta uma

    questo que se impe ao escrutnio da crtica epistemolgica: o que que conecta cultura

    como crtica utpica, com cultura como um modo de vida, com cultura como criao

    artstica?

    Em face desse problema, a preocupao do ps-modernismo se concentra no fato

    formal da pluralidade das culturas, ignorando da melhor forma que possa seus

    contedos e conseqncias intrnsecas. Qualquer julgamento de valor nesse contexto de

    de partida de Marx foi crtica ao socialismo utpico. Cf. tambm Wood (2000), em seu timo estudo sobre aincompatibilidade ontolgica entre democracia e capitalismo.

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    pluralidade poderia soar indesejavelmente etnocntrico e culturalmente determinado, em

    um movimento onde o conceito de cultura ento ganha em especificidade o que perde em

    capacidade crtica23. Eagleton (2000, p. 21) afirma que para esta concepo de cultura

    podemos repetir a pergunta de Marx feita religiosidade: para que doloroso

    estranhamento tal transcendncia uma pobre compensao?.

    Em suas imbricaes, estes trs distintos sensos de cultura no podem ser

    facilmente separados j que se cultura enquanto crtica serve para algo mais do que pura

    fantasia abstrata, ela deve rumar em direo quelas prticas no presente que prefiguram

    algo da realizao a qual aspira. Alternativas coerentes de transformao social devem

    encontrar a ponte entre o presente e o futuro naquelas foras do presente que so

    potencialmente capazes de transform-lo. por isso que para Marx bem outra fora,

    muito menos pavoneada e exaltada, a da energia criativa da classe trabalhadora24que traz

    em si o potencial para transfigurar a prpria ordem social de que produto. Afirmao

    cujo contedo no tem nada de teleologia histrica, como gostava de insinuar

    equivocadamente Weber25(Eagleton, 2000, p. 22).

    Eagleton (2000, p. 23) defende que cultura vai aparecer com esse sentido no

    momento em que a idia de civilizao comea a parecer autocontraditria. Essascontradies chegam a um ponto em que fica cada vez mais difcil de se ignorar o fato de

    que a civilizao, em seu mesmo ato de realizar alguns potenciais humanos estava tambm

    danosamente suprimindo outros. Segundo o autor o pensamento dialtico foi de

    fundamental importncia para o entendimento de cultura como uma possvel crtica do

    presente fortemente enraizada nele, passando de uma vaga fantasia de realizao para

    um conjunto de potenciais nutridos pela histria, subversivamente operando nela. Foi

    nesse severo contexto de transformao social que a idia de socialismo ganhou fora, aoafirmar que:

    A represso, a explorao e similares no funcionariam a no ser que existisse sereshumanos razoavelmente autnomos, reflexivos e talentosos para se explorar ouserem explorados. No h necessidade de se reprimir capacidades criativas que no

    23 Mais adiante (cap. III) trataremos sobre a necessidade da crtica para a possibilidade de existncia doconhecimento.24Cf. a Tese 11 de Marx em sua inverso da dialtica de Hegel, o Manifesto...e A Questo Judaica. Cf.tambm o doutoramento de Lowy que mais tarde aparece em livro (1970).25Ver Wood (2000) e Lowy (2002).

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    existem. Estas nem sempre so as mais sonoras razes para o regozijo. Pareceestranho nutrir a f nos seres humanos pelo motivo de que eles so capazes de serde ser explorados. Mesmo assim, verdade que aquelas prticas mais benignas que

    buscamos alimentar esto implcitas na prpria existncia da injustia. S algumque foi cuidado como um infante pode ser injusto, j que de outra forma ele nopoderia estar nas redondezas para nos abusar. Todas as culturas devem incluir taisprticas como o cuidado com as crianas, a educao, a assistncia social, acomunicao, o suporte mtuo, de outra forma elas seriam incapazes de reproduzira si mesmas e portanto incapaz entre outras coisas de engajar-se em prticasexpropriativas. Claro que o cuidado com crianas pode ser sdico, a comunicaoadulterada e a educao brutalmente autocrtica. Mas nenhuma cultura pode serinteiramente negativa, uma vez que s para atingir seus fins viciosos ela devefomentar capacidades sempre sujeitas a usos virtuosos. A tortura requer o tipo dejulgamento, iniciativa e inteligncia que tambm pode ser usada para aboli-la.Nesse sentido, todas as culturas so autocontraditrias. Mas isso substrato tanto

    para esperana como para o cinismo, j que significa que elas mesmas criam asforas que podero transform-las. Isso no uma questo de aterrissar tais forasde algum espao sideral metafsico (Eagleton, 2000, p. 23).

    Apesar do vocabulrio ps-moderno se laurear do garbo que faz do uso do

    conceito de cultura, as fontes mais importantes do termo permanecem pr-modernas.

    Eagleton (2000, p. 25-27) aponta que o conceito comeou a ganhar em pertinncia em

    quatro pontos de crise histrica: a partir do momento que se torna a nica alternativa

    aparente a uma sociedade degradada; quanto a prpria idia de arte/criatividade posta em

    cheque, ao se constatar que sem uma mudana social radical ela possa no ser maispossvel; quando ela proporciona os termos nos quais um grupo ou pessoas procuram sua

    emancipao poltica e quando um poder imperialista forado chegar aos termos com

    o modo de vida daqueles que subjuga. Deste elenco, os dois mais influentes que ajudaram

    a colocar a cultura no centro das preocupaes do sculo foram provavelmente os ltimos.

    Muito do legado do termo vem das polticas de nacionalismo e colonialismo que nutria o

    crescimento de uma antropologia a servio do poder imperial, em semelhana ao papel

    que anteriormente a economia poltica (em seu ilustrado aparato apologtico das recentes

    transformaes sociais) e o positivismo (em sua afirmao das leis evolucionrias que

    levavam a sociedade industrial a se tornar inexoravelmente mais corporativa, leis estas

    que um proletariado rebelde deveria reconhecer como no mais violveis que as foras

    que formam as ondas) haviam interpretado to bem.

    Para o pensamento ps-moderno nada mais desagradvel do que a idia de uma

    cultura estvel, pr-moderna e organizadamente unificada, tamanho o valor dado por tal

    corrente pregao do hibridismo e da liquidez intangvel da matria social. Apesar dessa

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    distncia terica muito significativa, pr e ps dividem um alto, algumas vezes

    extravagante respeito cultura como tal, pois o que une as ordens pr-moderna e ps-

    moderna que para ambas, por razes bem diferentes, a cultura um nvel dominante da

    vida social de tal forma que entendida como uma dimenso global dentro da qual

    outros tipos de atividade acontecem a poltica, a sexualidade e a produo econmica

    estariam sempre vinculadas em alguma extenso uma ordem simblica e significado

    (Eagleton, 2000, p. 29-30).

    Ao contrapor a afirmao de Marshall Sahlins de que em culturas tribais a

    economia, a poltica, o ritual e a ideologia no aparecem como sistemas distintos26 com a

    idia de Andrew Miller de que somente nas democracias industriais modernas que

    cultura e sociedade se tornam excludas tanto da poltica como da economia isto

    porque ao ser entendida como incomum e distintivamente a-social a sociedade moderna

    afirma a suposta inevitabilidade de que sua vida econmica e poltica seja sem regras e

    livre de valores, ou seja inculta Eagleton (2000, p. 30-31) busca sustentar que a

    tendncia culturalista ps-moderna se apia em uma alienao peculiarmente moderna do

    social em relao ao econmico, os meios para a vida material. na exacerbao do

    pluralismo das identidades que o individualismo cumpre o importante papel de pretenderfundar na diferena, hoje, o que antigamente se buscava na luta contra um nefasto destino

    irremediavelmente comum27. Para o autor importante entendermos que cultura o

    sintoma da diviso que oferece superar ou a prpria doena a qual prope uma cura.

    O fato de sermos forados a ter que escolher entre noes abrangentemente

    paralizadoras ou descabidamente rgidas de cultura fortalece o eixo ps-moderno de

    afirmao de uma identidade especfica nacional, sexual, tnica, regional em

    detrimento transcendncia dessa particularizao, ocupando um terreno outrorareservado ao consenso, agora tomado pela multiplicao generalizada dos conflitos

    26Cf. Sahlins (1976) Culture and Practical Reason, p. 6, apud Eagleton 2000, p. 30. Outras crticas da noode base/superestrutura elaboradas por Sahlins podem ser encontradas em (1994), como veremos no captuloIV, se no pelo seu rigor filosfico, ao menos pela sua exemplar abordagem do debate no que diz respeito concepo antropolgica da metfora.27Vide o uni-vos do manifesto comunista e a inexistncia do indivduo atomista da tese de doutoramento,de Marx, ambas idias desenvolvidas por ele e sustentadas por boa tarde do marxismo contemporneo, cujosmaiores expoentes so Callinicos, Bhaskar, Wood, Meszaros, Postone, Kurz, Foster, Sawyer, alm dosprprios integrantes da velha guarda da new left, principalmente Thompson, Williams e Hobsbawn e tambmLukacs.

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    pontuais, ao se tornar o prprio lxico do conflito poltico. Em seu protesto contra as

    alienaes da modernidade o isolamento da pluralidade28 ps-moderna acaba as

    reproduzindo em sua prpria fragmentao culturalista (Eagleton, 2000, p. 38 e 43).

    Eagleton (2000, p. 78) acrescenta que se tomarmos as contribuies de Marx

    sobre assuntos correlatos como ponto de partida veremos que j ele era to hostil

    abstraoda universalidade pela diferena como era ao divrcio entre o cidado abstrato e

    o indivduo concreto, ou abstrao do valor-de-troca em relao especificidade sensvel

    do valor-de-uso.

    Muito da incoerncia lgica do caso culturalista fica aparente quando aplicamos

    os postulados dessa tendncia terica para tentar entender as delimitaes ontolgicas entre

    natureza e cultura. Para o culturalismo, afirma Eagleton (2000, p. 92), no h questo

    sobre uma dialtica entre a natureza e a cultura, uma vez que a natureza cultural de

    qualquer forma. Em seu estudo intitulado What is Nature? Kate Soper trabalha as

    conseqncias autocontraditrias do pensamento culturalista ps-moderno que na prpria

    afirmao de seus preceitos forado a endossar as prprias realidades de que nega. Isto

    porque para esse antinaturalismo metafsico natureza, sexo e o corpo so somente

    produtos das convenes, o que torna difcil de sabermos como poderemos esperar quealgum possa julgar que um determinado conjunto de tabus e prticas sexuais mais

    emancipado que outro. Dizer que tudo redutvel cultura como se afirmssemos uma

    verdade momentnea estabelecida pelos meios culturais soa muito parecido com o

    estabelecimento inequvoco da verdade religiosa a qual sabemos porque a lei de Deus nos

    disse. Outro flanco do argumento sua contradio meta-crtica: seria a crena que tudo

    culturalmente relativo apenas mais uma dentre tantas outras? Se a resposta for afirmativa

    no h necessidade de a aceitarmos como a verdade sagrada; se negativa, o argumentomina seus prprios postulados ao aspirar por uma validade universal que ela mesma

    insiste em pragmaticamente negar.

    Esse pragmatismo promovido por muitos relativistas culturais que julga a

    verdade das teorias pelo que podemos aproveitar delas contrai um casamento estranho, j

    que o relativismo tende a no fazer diferena prtica em sua inrcia auto-canceladora que

    28Cf. Eagleton, 2000, p. 48: So aqueles que fetichizam as diferenas sociais que so os reacionrios aqui.

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    deixa tudo como estava. As contradies do culturalismo so to profundas que quando o

    relativismo afirma que todas as culturas so relativas, o etnocentrismo se generaliza29

    (Eagleton, 2000, p. 93).

    A filosofia de Richard Rorty um bom exemplo desse pragmatismo culturalista

    no endosso da contingncia simples e pura de qualquer posio. como afirmar que j que

    tudo poderia ser diferente, mas no que assim seja, ento. Rorty tenta, segundo Eagleton

    (2000, p. 57), elevar a contingncia universalidade sem apagar sua contingncia,

    reconciliando seu historicismo com sua absolutizao da ideologia ocidental. O fato que

    se nenhuma cultura pode ser metafisicamente julgada ento no pode haver bases

    racionais para como escolher entre elas. Mesmo escolher seria irrelevante, pois se no h

    motivo racional para essa escolha ela se torna, como o acte gratuitexistencial, um tipo de

    absoluto em si mesma. Essa elevao da contingncia ao universal, para o autor, no passa

    de uma fuga de um sentido modernista de ideologia, onde algum no est em posse da

    verdade para um sentido ps-modernista, onde algum sabe que o que est fazendo

    falso sem parar de faz-lo. a epistemologia da iluso dando lugar epistemologia do

    cinismo.

    O Culturalismo, para Eagleton (2000, p. 94-95) uma compreensvel reaoexagerada a um naturalismo que tradicionalmente viam a humanidade em termos

    virulentamente anticulturais como um mero agrupamento dos fixos apetites corporais. No

    entanto, ele no s uma crena suspeitamente auto-alimentadora para intelectuais da

    cultura, mas em alguns aspectos uma crena inconsistente, uma vez que tende a depreciar o

    natural enquanto o reproduz ao mesmo tempo em que insiste que todas as culturas so em

    certo sentido arbitrrias30. Supor que ns somos criaturas inteiramente culturais

    absolutiza a cultura ao mesmo tempo em que relativiza o mundo.Depois de tantos ataques sua natureza, o conceito de natural torna-se

    simplesmente o cultural congelado, preso, consagrado, des-historizado, convertido em

    senso comum espontneo de tal forma que o uso pejorativo ps-moderno de natural

    interessantemente dspar do reconhecimento ecolgico ps-moderno da grave fragilidade

    da natureza. Inclusive, acusa Eagleton (2000, p. 94), so os apologistas profissionais da

    29Cf. Eagleton, 2000, p. 57: no devemos ser etnocntricos sobre a etnocentria .30Trataremos pormenorizadamente da inarbitrariedade do ser social no cap. III.

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    cultura, no os exploradores da natureza, que insistem em caricaturar a natureza como

    inerte e imvel.

    Mesmo dentro da antropologia a relao entre natureza e cultura ser

    representada de maneira muito diferente dependendo do pressuposto de subjetividade ou

    objetividade que se adote. Leach (1985, p. 69) sugere que essas posies antropolgicas, a

    subjetivista e a objetivista, so representadas nas suas formulaes mais radicais, por um

    lado, pelo estruturalismo de Lvi-Strauss e, por outro lado, pelo funcionalismo de

    Malinowski e Raymond Firth. Acontece que na prtica, muitos dos antroplogos

    contemporneos adotaram uma posio intermediria entre o radicalismo subjetivista e o

    radicalismo objetivista oscilando entre as barreiras conceituais de ambas, sem se dar conta

    das conseqncias epistemolgicas dessa instabilidade ontolgica. O autor enfatiza a

    necessidade de que no nos esqueamos de que as diferentes peripcias da oposio destas

    correntes de idias se desenrolaram num contexto poltico, e no apenas no quadro da

    histria das idias. O que soa como boa dica para procurarmos entender porque cultura foi

    por muito tempo sinnimo de civilizao31(Leach, 1985, p. 70-71).

    inevitvel que no desenvolver do debate todo o problema da relao entre

    natureza e cultura se apresente como uma questo ligada categorizao doconhecimento32. Isto porque ao passo que a imagem que temos do mundo em que

    vivemos feita pelo ser humano e por isso, prxico-dependente e cultural as

    distines categoriais do mundo humano so em grande medida plasmadas a partir de

    distines de fato existentes no mundo real at porque de outra forma o conhecimento

    seria se no impossvel no mnimo redundante. (Leach, 1985, p. 81 e 87).

    Uma das conseqncias intelectuais dessa deriva ontolgica o caso exemplar da

    agressividade com que muitos antroplogos recebem as contribuies marxianas no campoda cultura, ocasionada com certa razo pelo trauma do exagero da metfora

    base/superestrutura. Geralmente desse ponto que partem as acusaes mais severas. Nessa

    31 A celebre definio de cultura de Tylor, em Primitive Culture deixa ainda mais claro: a cultura oucivilizao, entendida no seu sentido etnogrfico amplo, o conjunto complexo que inclui o conhecimento, ascrenas, a arte, a moral, o direito, o costume e todas as demais capacidades ou hbitos adquiridos pelo homemenquanto membro de uma sociedade.32Cf. Bhaskar (1977) em seus argumentos sobre a maior capacidade analtica de uma ontologia consciente desi mesma, ou seja, explcita ao invs de implcita, como veremos no captulo sobre o modelo transformacionalde sociedade proposto pelo Realismo Crtico.

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    recusa condio da cultura de mero reflexo das condies materiais, a teoria marxista

    taxada inclusive de funcionalista (Leach, 1985, p. 95-96):

    Para um certo nmero de doutrinadores autorizados... o mundo material fora dens, externo em relao ao homem, existe tal como o percebemos. A histriahumana a histria do crescimento da capacidade tecnolgica do homem. Atravsda tecnologia, o homem tornou-se senhor da natureza, quando originalmente eradela escravo. Um sistema tecnolgico deve, porm, ser considerado como umatotalidade social: no constitudo apenas por um sistema de instrumentos e pelautilizao dos instrumentos como meio de reproduo primria, mas tambm porum sistema de distribuio da atividade produtiva entre os membros da populaoque goza dos benefcios da tecnologia e por um mecanismo atravs do qual apopulao se reproduz enquanto organizao produtiva real. At aqui a anlisemarxista da integrao dos elementos sociais e tcnicos que se encontram em

    qualquer sistema de produo e de reproduo socioeconmico em nada diverge daanlise funcionalista. No entanto, os marxistas desenvolvem a seguir a tese,distinguindo entre estrutura e superestrutura. A estrutura refere-se ordem totaldo sistema socioeconmico de reproduo; em princpio, essa ordem determinadapela lgica interna s exigncias do sistema tecnolgico enquanto tal, as forasprodutivas. Pelo termo superestrutura se referem s instituies de tipo religioso,jurdico e poltico, que no se ligam de modo imediato e direto ao sistemaprodutivo, mas constituem uma espcie de florescncia secundria, cuja origemest mais na ideologia do que na necessidade econmica. Tambm aqui nosubsiste partida qualquer divergncia fundamental entre as concepes marxista efuncionalista. Por exemplo, a verso malinowskiana do funcionalismoantropolgico distingue as instituies ligadas a necessidades primrias das que

    refletem necessidades secundrias, mais ou menos do mesmo modo como osmarxistas distinguem a estrutura da superestrutura.

    Na pressa defensiva de validar a pertinncia inequvoca de seu objeto de pesquisa,

    a antropologia acaba elevando a cultura critrio de definio do prprio ser humano,

    correndo assim o risco de tornar o termo redundante, incapaz de dizer absolutamente nada

    nem sobre a cultura nem sobre a humanidade33.

    Como veremos no prximo captulo, Thompsom tinha a preocupao constante de

    tentar reverter essa situao de isolamento dos estudos culturais de esquerda em relao ao

    debate antropolgico. Da mesma forma que em momento algum se limitava ao

    reducionismo, Thompson no abria mo da capacidade analtica dos princpios ontolgicos

    da teoria marxista presente nos conceitos de classe, cultura e experincia.

    33Cf. cap II, p. 36 e 49 onde Thompson afirma que cultura h de ser entendida exatamente atravs de suasrelaes com o que no cultura.

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    CAPTULO II

    2. CLASSE, CULTURA E EXPERINCIA: A INARBITRARIEDADE DO

    SER SOCIAL

    O nico autntico portador do movimento social o homemno processo de produo e reproduo da prpria vida social.

    Karel Kosik

    Neste captulo demonstraremos como os conceitos de cultura, classee experincia,

    e suas relaes, tal como pensados por E. P. Thompson, o inserem de forma inequvoca noncleo ontolgico da teoria marxiana de autores como Gyorgy Lukacs, em seu Para a

    Ontologia do Ser Social, e Roy Bhaskar, em suas discusses acerca do ser social que

    culminam em seu modelo transformacional de sociedade desenvolvido a partir da

    perspectiva do Realismo Crtico.

    O legado thompsoniano, de crtica rigorosa validao muitas vezes precipitada de

    uma determinada teoria ou hiptese34, envolveu-o em diversas polmicas no mundo

    acadmico. no contexto desses debates que identificaremos e articularemos as relaesentre os conceitos de cultura e experincia desenvolvidos em suas investigaes, para de

    uma vez por todas desvincul-lo do rtulo de culturalista que alguns autores

    coincidentemente no simpticos sua obra insistem em lhe impor, na tentativa de

    esvaziar o campo de ao das contribuies metodolgicas de Thompson para o debate

    interdisciplinar dos estudos sobre cultura. Como destacado por Moraes e Mller (2003, p.

    16) o pensamento thompsoniano contraponto ao ceticismo epistemolgico corrente,

    viso relativista que nega a possibilidade do conhecimento objetivo e ao atual anti-

    realismo que impera na prtica cientfica das cincias sociais como um todo, acima de

    tudo com o desenvolvimento e reproduo massiva da falcia ntica do ps-modernismo35.

    34Validao esta que cumpriria a funo especfica da lumpenintelligentsia, apoiando-se principalmente emdiscursos de autocomprovao em seus psicodramas revolucionrios imaginrios. Cf. Thompson (1981, p.11 e 195). Thompson recorre categoria lumpenintelligentsia pensada por Rodney Hilton, semresponsabiliz-lo, porm, por seus usos do termo. Cf. tambm Moraes e Mller (2003, p. 2-3), onde os autorescomentam a tentativa de aviltamento da pesquisa em cincias sociais praticada pela fragmentao ps-moderna.35Cf. Bhaskar (1977).

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    Em crtica ao reducionismo econmico, Thompson (2001c, p. 207) comenta que

    apesar de herdar uma dialtica legtima, a anlise da base material/superestrutura no

    pode perder de vista a autonomia dos acontecimentos polticos ou culturais mesmo que

    estes sejam, em ltima anlise condicionados pelos acontecimentos econmicos.

    Ainda que seja estabelecida uma relao causal entre acontecimentos especficos

    (superestrutura) e os interesses de determinada conjuntura, segundo Thompson (2001c, p.

    208-209), no podemos nos dar por satisfeitos em termos de uma explicao histrica das

    relaes entre esses agentes particulares porque s a relao causal propriamente dita no

    exaure a rede de relaes existente entre eles.

    Em Modos de Dominao e Revolues na Inglaterra,36 Thompson (2001c, p.

    204) critica o modelo cataclsmico de estudo da evoluo histrica por meio de grandes

    crises e rupturas, como tambm uma representao hegemnica da dominao de

    classe e um determinado economicismo (marxista e no marxista) porque estes

    modelos e representaes do real tendem, segundo o autor, a negligenciar a anlise da

    cultura popular, resultando em uma anlise histrica desprovida de uma sociologia das

    classes e das conscincias de classe, reduzindo os atores envolvidos a entidades meramente

    metafricas.A partir de seu estudo sobre os motins da fome do sculo XVIII e fins do sculo

    XIX, Thompson (1998, p. 150) aponta que o fruto de tal economicismo conduz a redues

    e explicaes esquemticas, desconsiderando o papel fundamental de outras motivaes

    scio-culturais.

    No referido estudo, Thompson (1998, p. 150) introduz o problema do emprego vago

    de alguns termos como turba e motim,37 que ilustra o que ele chama de uma viso

    espasmdica da histria popular, na qual dificilmente se pode tomar a gente comumcomo agente histrico antes da Revoluo Francesa. As intromisses da turba na cena

    histrica no passam de reaes ocasionais, compulsivas e repentinas dada a conjuntura dos

    estmulos econmicos propcios revolta. simples meno nos documentos histricos de

    uma m colheita ou de uma baixa no mercado do-se por contemplados os requisitos da

    explicao histrica para esse tipo de anlise.

    36Cf. Thompson (2001c, p. 203-226).37Do ingls mobe riot, respectivamente.

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    Thompson (1998, p. 151) afirma que um grande nmero de historiadores incorre

    nesse tipo de erro impulsionado pelo reducionismo econmico que desconsidera as

    complexidades da motivao, comportamento e funo das manifestaes populares que,

    por via reducionista, ao invs de serem relacionadas tambm com os acontecimentos

    polticos e scio-culturais so tidas como espasmos causados por esta ou aquela tenso

    econmica. Para Thompson (1998, p. 151-152), o motivo de maior surpresa dentro dessa

    lgica do menor esforo relacional:

    o clima intelectual esquizide, que permite a coexistncia (nos mesmos lugares es vezes nas mesmas inteligncias) dessa historiografia quantitativa com umaantropologia social que deriva de Durkheim, Weber ou Malinowski. Sabemos tudo

    a respeito do delicado tecido de normas e reciprocidades sociais que regula a vidados ilhus de Trobiand, e conhecemos as energias psquicas envolvidas nos cultosdas cargas na Melansia; mas, em algum ponto, essa criatura social infinitamentecomplexa, o homem melansio, torna-se (em nossas histrias) o mineiro de carvoda Inglaterra do sculo XVIII, que espasmodicamente bate a mo na barriga e reagea estmulos econmicos elementares.

    O comportamento esquizide a que Thompson se refere o de se utilizar apenas

    questes quantitativas para explicar os motins, sem levar em considerao a noo

    legitimadora da ao popular que encontrava, em sua economia moral, o respaldo da

    crena de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais, muitas vezes

    endossados pelas autoridades que sofriam forte presso do consenso popular, no que diz

    respeito legitimidade ou no de determinadas prticas econmicas.38

    O cunho tradicional desses pressupostos morais preenchia a comunidade com

    normas e obrigaes sociais que regulavam, geralmente pelo hbito, a gama das relaes

    sociais. No era apenas em momentos de crise ou privao que esta lgica operava. A

    economia moral incidia de forma muito geral sobre o governo e o pensamento do sculo

    XVIII (Thompson, 1998, p. 153).

    Thompson (1998a, p. 15) defende a tese de que a conscincia e os usos

    costumeiros eram particularmente fortes no sculo XVIII. Entre os costumes, alguns eram

    de prtica recente e representavam diretamente a luta por direitos. Ele observa que h uma

    tendncia a se acreditar que foi exatamente naquele sculo que esses costumes comearam

    a cair em desuso, juntamente com a magia, a feitiaria e supersties semelhantes. Isso

    38Cf. Thompson (1998, p. 152).

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    porque as presses exercidas pelos estratos superiores da sociedade visavam padronizar e

    reformar os costumes. Era na resistncia a esse tipo de reformulaes que a conscincia

    popular encontrava fora.

    A observao investigativa da suposta Pequena Tradio Plebia39deu origem aos

    primeiros estudos de folclore, os quais encaravam essas prticas como antiguidades,

    resduos do passado ou mesmo sobrevivncias (utilizando um termo mais antropolgico)

    que passavam ao largo da marcha do progresso na nossa agitada existncia humana. 40

    Esse tipo de anlise dava ao costume a condio no de uma conseqncia ou resposta

    determinada situao real, mas categorizava-o como simples resqucio de uma mentalit41

    ultrapassada. Com o desenvolvimento dos estudos folclricos, o termo costume passou a

    significar, em grande parte, o que hoje chamamos de cultura. O costume aparecia como a

    segunda natureza do homem (Thompson, 1998a, p. 14).

    Evidencia-se aqui a mesma crtica de Thompson s interpretaes espasmdicas,

    sustentada na categoria de experincia como resposta mental e emocional de um indivduo

    ou grupo social a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repeties do

    mesmo tipo de acontecimento.

    Fruto dessa concepo de costume, como a conduta inercial, habitual e induzida,

    o argumento ideolgico de Bernard Mandeville sustentava que na ignorncia e na pobreza

    que reside a condio sumamente importante para que a multido fosse mantida em calma

    servil, pois sem instruo e meios o povo habitua mais facilmente seu corpo ao trabalho,

    tanto em seu prprio benefcio como para sustentar o lazer, o conforto, e os prazeres dos

    mais afortunados. Quanto mais distante o acesso educao, porm, mais fortalecida a

    tradio de transmisso oral desses indivduos. Muitos desses costumes transmitidos

    oralmente pelos trabalhadores, camponeses e demais oprimidos eram derivados diretos eracionais das rotinas do trabalho dirio e semanal (Thompson, 1998a, p. 15).

    39Tradio entendida como o conjunto de costumes, hbitos e ritos.40 Brand, John e Ellis, Henry (1813). Observations on popular antiquities, vol. I, p. xxi, apud Thompson(1998a, p. 14).41 Mantivemos aqui o termo mentalit mais para que no fosse perdida a continuidade do argumento, emThompson, do que para entrarmos no mrito de toda a discusso presente no campo das Cincias Sociaissobre o lugar, e a formao, de mentalidades e discursos. Nesse contexto, a noo de mentalidade aparecevinculada s duas facetas do costume: cultura e direito consuetudinrio.

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    Segundo Thompson, o costume retratava no s boa parte do que hoje chamaramos

    de cultura do povo, como tambm representava o direito consuetudinrio, presente na

    tradio, que fazia frente tentativa de ampliao do impulso explorador que buscava

    aproveitar qualquer oportunidade de expropriao. Era baseando-se na lei, os usos e os

    costumes de tempos imemorveis que os trabalhadores se apoiavam na tentativa de frear o

    juggernautideolgico da Revoluo Industrial (1998a, p. 15).

    Nesse contexto, o costume, antes de ser uma sobrevivncia cunhada pela tradio,

    era um campo para a mudana e a disputa, uma arena na qual interesses opostos

    apresentavam reivindicaes conflitantes sempre merc da influncia transformadora das

    experincias vividas ao longo das trajetrias dos agentes sociais (Thompson, 1998a, p. 16-

    17).

    Thompson (1981a, p. 398) afirma que uma teoria de cultura deve contemplar o

    conceito de uma interao dialtica entre cultura e outra coisa que no cultura. Segundo

    ele:

    Devemos supor a matria-prima42 da experincia de vida em uma extremidade etodas as outras disciplinas e sistemas humanos infinitamente complexos,articulados e inarticulados, formalizados em instituies ou dispersos nas maneiras

    menos formais, que lidam, transmitem ou distorcem essa matria-prima na outra.

    Ao enfatizar o processo ativo atravs do qual o ser humano faz sua histria,

    Thompson (1998a, p. 17) aponta o cuidado que devemos tomar ao generalizarmos a cultura

    como um sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas

    simblicas (desempenhos, artefatos) em que se acham incorporados porque43:

    Cultura tambm um conjunto de diferentes recursos, em que h sempre uma trocaentre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrpole; umaarena de elementos conflitivos, que somente sob uma presso imperiosa por

    exemplo, o nacionalismo, a conscincia de classe ou a ortodoxia religiosapredominante assume a forma de um sistema. E na verdade o prprio termocultura, com sua invocao confortvel de um consenso, pode distrair nossaateno das contradies sociais e culturais, das fraturas e oposies existentesdentro do conjunto.

    42Em ingls: raw material.43 Essa afirmao conduz a outro pressuposto do materialismo histrico: a investigao histrica comoprocesso, como sucesso de acontecimentos e por isso acarreta noes de causao, contradio, mediao eda organizao da vida social, poltica, econmica e intelectual. Essas noes, inclusive a de lgica histricaem Thompson (1981, p. 54), pertencem teoria, mas surgem de engajamentos empricos.

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    A cultura popular de uma poca, por exemplo, s pode ser entendida se

    contextualizada nos momentos histricos especficos a que pertencem. Situando a cultura

    no lugar material que lhe corresponde, podemos entend-la como agente formador, ao

    mesmo tempo em que conseqncia, da luta e conscincia de classe.

    nesse tempo/espao material especfico que cultura e experincia se entrecruzam,

    na consolidao e defesa de interesses e direitos, unindo fragmentos de antigas estruturas e

    expectativas em relao luta contra a intruso verticalizada de novas formas de

    desapropriao.

    A dimenso histrica desse cruzamento aparece em cores vvidas quando

    analisamos as queixas de uma larga parcela da populao inglesa do sc. XVIII, indignada

    com as prticas do mercado, prticas que, comenta Thompson (1998, p. 158), tendemos a

    admitir como inevitveis e naturais.

    O argumento dos que se opunham s prticas exercidas pelos fazendeiros e

    produtores de gros daquela poca apoiava-se na idia de que, mesmo que fosse mais ou

    menos bvio ou natural o direito livre manipulao de algo que lhe pertence, este

    exerccio no era cvico. O cunho moral de tais reclamaes reiterava-se no costume e na

    tradio simblica de uma vida em sociedade regrada por um modelo paternalista em

    franca decadncia.

    Partindo da lgica de que uma reao ou prtica especfica de determinada cultura

    no pode ser explicada apenas por seu estmulo primordial (concluso apressada, muitas

    vezes imposta por estudos estatsticos praticados por vertentes mais conservadoras da

    Histria e da Sociologia), Thompson (1998, p. 208) afirma que no h uma nica reao

    simples, animal fome, por exemplo. As evidncias tornam-se inteligveis se articuladas

    s especificidades de cada caso. Utilizando ainda o exemplo da revolta causada pela fome,

    o motim... no uma resposta natural ou bvia, mas antes consiste em um padro

    sofisticado de comportamento coletivo, uma alternativa coletiva a estratgias

    individualistas e familiares de sobrevivncia. Ter fome, comenta, no impe que eles

    devam se rebelar nem determina as formas da revolta. a experincia humana forjada nos

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    laos scio-culturais que determina, em ltima instncia, o resultado, seja do estmulo ou

    do malogro em questo44.

    A pergunta metodolgica levantada por Thompson (1998, p. 151) em relao a esse

    tipo de problema , em gnero e grau, bastante antropolgica: estando com fome (ou

    sendo sensuais45), o que que as pessoas fazem? Pode-se a acrescentar uma pergunta

    complementar: diante da fome, ou da sensualidade eminente, que tipo de relaes podem

    ser estabelecidas entre o estmulo material e os desdobramentos das atitudes levadas a cabo

    em tal situao quando comparados s conseqncias e reverberaes na cultura e nos

    costumes de seus praticantes?

    Thompson (2001, p. 229) reconhece a influncia que herda da inquietao

    antropolgica quando a descreve como um estmulo que

    se traduz primordialmente no na construo do modelo, mas na identificao denovos problemas, na visualizao de velhos problemas em novas formas, na nfaseem normas (ou sistem