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LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE Raquel Neto Alves Queira a transformação [...] através da criação serena, que amiúde com o início termina e com o fim começa (RILKE apud AUGRAS, 1986, p.161). O conceito de crise tem sido trabalhado na Psicologia em todas as suas abordagens. Pode ser definida como um corte, uma ruptura, uma segmentação, uma descontinuidade em um modo de existir. Esta ruptura promove um caos, uma desconfiguração na existência de quem a vivencia. A pessoa na situação de crise é lançada no inesperado, no inusitado, no desconhecido. Toda crise traz consigo a presença de perigos e possibilidades simultaneamente. Já diziam os antigos chineses no Tao Te Ching, através de Lao Tsé, que se trata do casamento entre perigos e

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Page 1: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Raquel Neto Alves

Queira a transformação [...] através da criação serena, que amiúde com o início termina e com o fim começa (RILKE apud AUGRAS, 1986, p.161).

O conceito de crise tem sido trabalhado na Psicologia em todas

as suas abordagens. Pode ser definida como um corte, uma ruptura,

uma segmentação, uma descontinuidade em um modo de existir. Esta

ruptura promove um caos, uma desconfiguração na existência de

quem a vivencia. A pessoa na situação de crise é lançada no

inesperado, no inusitado, no desconhecido. Toda crise traz consigo a

presença de perigos e possibilidades simultaneamente. Já diziam os

antigos chineses no Tao Te Ching, através de Lao Tsé, que se trata do

casamento entre perigos e oportunidades. Há nas crises o perigo da

paralisação em um tempo e em um espaço já vividos e também a

oportunidade de se lançar numa construção nova, no que ainda não é

através do trabalho do luto do que se foi. É uma encruzilhada onde a

pessoa terá que se posicionar e fazer escolhas diante da situação nova.

A possibilidade de se reorganizar de uma forma mais ampla existe ao

lado do perigo de fazer o mesmo de uma forma ainda mais limitada e

estreita. As situações de crise podem ser vividas face às perdas,

mortes concretas e simbólicas, separações, mudanças radicais na

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existência da pessoa tais como: o adoecimento, o envelhecimento, a

aposentadoria, enfim, nas mais variadas experiências limites da

história de vida de cada um.

A existência humana é marcada por várias situações de crise

que constituem momentos delicados que afetam o devir conforme a

pessoa as conduz. A crise pode gerar abertura ou restrição de sentidos.

Daí a importância do tema na clínica da Psicologia. A solução

elaborada por uma pessoa ao enfrentar uma crise pode ampliar ou

restringir suas possibilidades. Uma situação de crise representa, ao

mesmo tempo, limites e possibilidades. Tudo dependerá do modo

como será elaborada.

De acordo com a Fenomenologia Existencial, a situação do

homem é essencialmente ambígua. É tensão e conflito. O conflito não

deve ser entendido como algo indesejável e nocivo. Expressa a luta

necessária entre polaridades e paradoxos que compõe o próprio

processo da vida. A estranheza, sentimento desta situação, deve ser

compreendida como o fenômeno mais original no plano existencial e

ontológico. O homem é necessidade e possibilidade, permanência e

transitoriedade, poder e impotência, vida e morte. A partir daí, é

possível afirmar que a existência humana se faz na elaboração

permanente de crises, tensões, conflitos e paradoxos inerentes à sua

própria condição. Caos e ordem fazem parte do mesmo processo, são

faces da mesma moeda. Torna-se impossível falar em harmonia e

equilíbrio, mas sim em luta, construção e criação.

A epígrafe de Ranier Maria Rilke apud Augras, 1986, p.161 se

refere à morte que traz o nascimento do novo, que principia outro

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modo de ser e da vida gerada a partir do que se foi. Encontra-se aí

uma concepção de morte ligada à transcendência. A finitude como

abertura de novas possibilidades. Há também outra possibilidade, que

é a morte vivida enquanto imanência. Esta vai dizer da paralisação, do

congelamento num tempo, num espaço e em determinada relação.

Trata-se de uma experiência que revela a perda do movimento, da

permanente impermanência própria da existência. Assim, a morte que

gera movimento diz respeito à transcendência e a morte que gera a

paralisação se refere à imanência.

Cabe afirmar que a psicoterapia seria um lugar de construção

da confiança na transcendência. A saúde encontra-se nesse jogo de

interações. Cada estado alcançado destrói o estado anterior. Ordem e

desordem são momentos constantes na criação do homem e do

mundo.

A “Divina Comédia” de Dante como metáfora das situações de

crise

Dados importantes sobre a história de vida de Dante Alighieri

Ao nascer Dante, em maio de 1265, em Florença, seu pai o

serventuário Alighieri atravessava um período adverso. Por questões

políticas é exilado e afastado de sua função pública. O acaso coloca

sob estranho signo a vida do recém-nascido filho de Alighieri. Sobre o

seu berço como que se projetava uma sombra funesta – e esta sombra

era a do exílio, a do ostracismo político. Em 1266 ocorria um fato que

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se destinava a ter influência transcendente na vida e na obra de Dante:

o nascimento de Beatriz, filha de um rico negociante de Florença. Ele

começou os estudos das primeiras letras na escola dos Franciscanos no

Convento de Santa Cruz.

Com o decorrer do tempo e à medida que fazia progressos

rápidos em sua classe, Dante se aproximava naturalmente de alguns

dentre os frades do Convento que, percebendo a força do seu talento,

encarregaram-se espontaneamente de completar sua iniciação, em

esfera mais ampla do que se comportava a estreiteza das lições

ordinárias.

Em maio de 1274, quando Dante completava nove anos,

realizou-se na casa de Folco Portinari, nobre de Florença, uma festa

destinada à comemoração da primavera. Dante acompanhou seu pai e

na bela mansão viveu experiências inesquecíveis. No lugar da casa

onde naturalmente se congregavam os jovens de sua idade, aconteceu

defrontar-se com Beatriz, apenas um ano mais moça do que ele.

Enquanto se operavam as profundas transformações

decorrentes desta experiência, Dante permanecia investido nos seus

estudos.

Em 1277, quando volta do Convento procura rever Beatriz.

Perde os pais na adolescência, volta a viver em Florença com o

irmão mais velho e permanece fiel à sua carreira intelectual.

Em 1283, ano em que Dante completara seu décimo oitavo

aniversário, deparou-se subitamente com Beatriz. O próprio Dante nos

revela que ingressou ali, num estado de quase torpor e alheamento.

Sonha com ela e escreve o soneto Vida Nova sobre este sonho.

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Os usos e costumes da época não podiam deixar qualquer

dúvida ao apaixonado de que aquele era um amor impossível. A um

jovem nas condições de Dante, de família modesta, não poderia estar

aberta a mínima possibilidade de qualquer sucesso futuro junto a ela.

Ele tinha outras jovens da cidade como companhia na tentativa de

esconder seu verdadeiro e proibido amor. Os rumores sobre os seus

idílios chegaram aos ouvidos de Beatriz que, passando algum tempo

depois por ele na rua, recusou-lhe o esperado e desejado cumprimento.

Foi o bastante para suscitar-lhe no coração tremenda crise, que o

impeliu à solidão e total ausência de objetivos.

Fluía o tempo e, em 1287, quando Dante completava vinte e

dois anos, divulgou-se um fato inesperado. Beatriz ficara noiva e logo

desposou um próspero homem de negócios. Logo após, ele vive sua

experiência militar, caminho para os jovens que almejavam um lugar

no mundo social.

No entanto, o acontecimento mais impactante nesta época foi a

morte inesperada de Beatriz aos 24 anos, em 1290. Mergulha nos seus

escritos na busca de superação da dor.

Em 1295, casa-se com Gemma Donati, que jamais será citada

em sua obra. É eleito para o conselho de Estado de Florença em 1300

e viaja a Roma no ano seguinte em missão diplomática. Durante a

viagem de volta, em 1302, disputas políticas determinam seu exílio de

Florença. Todos os seus bens são confiscados e recebe uma sentença

de morte. Semelhante condenação equivalia a um exílio prolongado,

senão definitivo. Ficara ele com a degradação, o exílio, o confisco e a

pena de morte. Seu peito enchia de ira e de ódio contra os que lhe

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moveram a perseguição. É no exílio que escreve “A Divina Comédia”,

a grandiosa epopéia italiana. Entre 1303 e 1305, escreve os tratados

De vulgari eloquentia e Convívio, ambos inacabados. No período de

1305 a 1309, passa sucessivamente por Treviso, Padova, Veneza e

Lucca. Escreve o “Inferno”, primeira parte da Divina Comédia.

Participa de debates públicos na Universidade de Paris no ano de 1309

a 1310. Redige o Tratado Político e o “Purgatório”, segunda parte da

Divina Comédia, no período de 1311 a 1313. Recusa oferta de ser

anistiado mediante pagamento de uma multa, preferindo permanecer

exilado. Depois de seis anos em Verona, em 1318, transfere-se para

Ravena, onde concluirá o “Paraíso”.

Morre em Ravena, a 13 de setembro de 1321, com 56 anos de

idade. Assim se extinguia a vida de Dante, enquanto praticamente se

iniciava a trajetória pela posteridade de sua mensagem poética,

expressa, sobretudo, na Divina Comédia. Sabe-se que sua única filha

entra para o convento e é consagrada freira com o nome de irmã

Beatriz.

Neste pequeno relato não há a intenção de detalhar o contexto

histórico, político e social da época. O destaque é na história do

homem, cujo pensamento é a afirmação da capacidade de superação

do ser humano.

A Comédia, termo que para ele, se referia a uma obra que

começa infeliz e termina em felicidade, pois a narrativa vai das “almas

atormentadas”, no Inferno às “almas abençoadas”, no Paraíso. Ao

longo de todo o poema, a voz que se ouve é a de Dante, o florentino

exilado. Trata-se de uma obra autobiográfica que narra a jornada de

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um homem em busca de si mesmo após ter sido cruelmente tratado em

sua terra natal.

O processo de elaboração da crise na obra “Divina Comédia” -

Metáfora de um processo psicoterápico

O poeta inicia a obra com estes dizeres:

A meio do caminho desta vida achei-me a errar por uma selva escura,longe da boa vida então perdida. (ALIGHIERI, 1991, v.I, p.101).

O poeta se surpreende numa selva escura e dela não consegue

sair. Pede auxílio à memória de Virgílio, seu predileto poeta da

antiguidade Greco-Romana. Virgílio tinha como tema favorito a

questão da transcendência.

Logo no início dos cantos Dante retrata a perda da

continuidade no seu modo de existir. Refere a uma ruptura ocorrida

em sua existência. É lançado em uma situação nova, inusitada,

desconhecida. Depara-se com o caos, onde sabe o que foi perdido e

desconhece o que está por vir.

Portanto, é convidado por Virgílio a fazer uma nova viagem.

“Convém fazeres uma nova viagem”, Disse-me então, ao ver-me soluçando,“e escaparás deste lugar selvagem”. (ALIGHIERI, 1991, v.I, p.107).

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FIGURA 1 - O Inferno de Dante, por Sandro Botticelli (século XV).Fonte: ROCHA, [s.d.].

Podemos compreender a presença de Virgílio, no processo de

Dante, como aquele que acompanha o outro em sua descida ao

inferno, na sua passagem pelo purgatório e entrada no paraíso.

O inferno de Dante é descrito como um cone invertido e a

pessoa em processo passa por nove patamares, onde se reconhece e

toma consciência de sua experiência. O início da trajetória pelo

inferno é descrito como o caos, o horror do desconhecido, da

descontinuidade e o sofrimento pelo que foi perdido. É a finitude de

um dado modo de existir. Ao longo dos seus nove patamares, Dante

vai reconhecendo sua história e narrando o seu percurso. O purgatório

aparece como um momento de maior elaboração e implicação do

viajante nas suas experiências. O paraíso retrata a construção do novo

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e da possibilidade de transcendência. Em toda trajetória estão

presentes simultaneamente o perigo da paralisação e a oportunidade

da transcendência. O apelo a uma nova viagem desperta temores,

fantasias e outros obstáculos à caminhada. Virgílio acompanha Dante

no seu processo e suas intervenções são no sentido de estimular a

caminhada deste que é convidado a se lançar no desconhecido.

Quando enfim, Dante e Virgílio iniciam a trajetória pelo

inferno, a nova viagem, logo no primeiro patamar, ele se depara com a

figura de Beatriz. É importante ressaltar também que é Beatriz, que ao

final da obra o conduz ao Paraíso. Neste encontro, Dante tem a

possibilidade de construir novos sentidos e significados para a sua dor.

Beatriz significa até então, seus lutos não trabalhados, suas mágoas e

ressentimentos. Na apreensão deste encontro ele pôde dizer adeus aos

restos de morte e dor presentes em toda a sua vida. A construção de

novos sentidos e significados para a experiência modifica sua

disposição afetiva, promovendo uma maior abertura para as novas

experiências e desejo de continuar sua jornada. Aqui está presente o

processo criativo através da dor e a esperança no desconhecido, no

que ainda não é. Dante permanece firme no seu projeto de ser, apesar

de...

Cabe dizer que toda a participação de Virgílio é no sentido de

Dante permanecer no processo. Ele já havia atravessado o seu inferno

e os seus abismos em sua própria história. Guimarães Rosa também

escreve sobre a travessia do sertão em Grande Sertão: Veredas. A

travessia é um tema clássico da literatura em qualquer tempo.

Dando prosseguimento à jornada, o viajante se detém na

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experiência da solidão ontológica. Não está solitário, porém é só.

Conscientiza-se da responsabilidade pela sua trajetória. Implica-se na

autoria de sua existência. Percebe que é separado e que o outro é uma

alteridade. Virgílio descerá ao inferno com ele e não para ele.

Importante torna-se trazer novamente Rilke, citado por Augras (1986,

p.52), quando diz: “Todo espaço feliz é filho ou neto de separação.

Com assombro ultrapassado”.

Dante apreende a experiência de ser só-com-o-outro. A

coexistência não se opõe à solidão ontológica, mas se constrói nela.

Ser-com é possível face à consciência de ser separado.

Prosseguindo à nova caminhada, Dante relata que encontrou

uma boa e nova turma num dos cantinhos do inferno. Trata-se dos

grandes escritores clássicos da Antiguidade. São concebidos como

referência e esperança na sua trajetória. Mostra que a existência é

paradoxal e que no ápice do sofrimento, encontra-se também a

confiança no devir. Esse caráter paradoxal da existência fica

exemplificado ao citar Walnice Nogueira Galvão, em “O ponteado de

opostos”:

Baixei, as fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza. Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado (GALVÃO, 1972, p. 75).

Os paradoxos, as polaridades e as ambiguidades próprios da

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existência humana são considerados e fazem uma síntese da totalidade

da experiência.

Outra parte relevante, ainda no inferno, é o encontro de Dante

com sua agitação. Refere-se a esta vivência como “uma borrasca

infernal que nunca assenta”. A agitação e ansiedade que o distancia de

si mesmo, alienando-o de sua experiência mais própria.

Diz o soneto:

A borrasca infernal, que nunca assenta,As almas vai mantendo em correria (ALIGHIERI, 1991, v.I, p.137).

Interessante revelar o quanto é atual esta sua descrição. As

almas em correria, como um rebanho, respondendo a todas as

demandas colocadas pelo modo de existir dominante juntamente com

o esquecimento do que é mais próprio ao ser. Dante vai apropriando-

se do seu modo impróprio de ser, do seu afastamento de si mesmo.

Assume o enfrentamento da tarefa de ser si mesmo. A angústia surge

como o elemento que o desperta para esta tarefa. Há o perigo de se

perder de sua missão como também há a possibilidade de se tornar si

mesmo.

É preciso dizer que a existência, ao se caracterizar como abertura, como possibilidade, guarda sempre o perigo de nos perdermos, justamente porque nosso destino é construído a partir de nossas escolhas cotidianas, não nos é dado a priori (PROTÁSIO, 2008, p. 132).

Andreas Tscherning em “A Melancolia fala em pessoa” citado

por Benjamin (1984) escreve:

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Em nenhum lugar encontro pazEstou sempre em conflito comigoSento-meDeito-meTudo está em meus pensamentos. (BENJAMIN, 1984, p.161).

Ao lado deste reconhecimento, ele percebe que a vivência não

apropriada volta sempre a afetar. Como no mito de Sísifo1, a pedra

sempre retornará e há que levá-la novamente até o topo da montanha,

infinitas vezes até que, neste eterno retorno, possa ser dado outro

sentido à experiência. Parafraseando Fagner, na música Revelação,

“sentimento ilhado, morto, amordaçado, volta a incomodar”.

Walter Benjamin (1984), em sua obra “Origem do Drama

Barroco Alemão”, trabalha a temporalidade no drama barroco alemão

referindo-se ao tempo circular. Acredita-se que a meia noite quando

os ponteiros do relógio se unem, tudo volta ao que sempre foi. Trata-

se da crença em um determinismo, em um destino imutável. Esta

perspectiva é melancólica porque nega a importância da obra na

existência humana. O tempo circular no drama barroco alemão, o

eterno retorno, evidencia a crença na inutilidade e futilidade de toda

luta e esforço humanos. A ausência de confiança na transcendência

torna o homem melancólico, descrente de seu vir-a-ser. A tristeza do

melancólico advém da sua descrença na possibilidade de se tornar

outro, da sua condenação à imutabilidade. Logo, a crença na 1 Sísifo era um herói grego que desafiou os deuses espalhando os seus segredos.

O castigo imposto por estes a Sísifo foi o de carregar uma pedra enorme até ao topo de uma montanha, no entanto, sempre que estava quase a chegar ao seu objetivo a pedra voltava sempre a rolar pela encosta abaixo, o que o obrigava a fazer tudo outra vez, por toda a eternidade.

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inutilidade e futilidade de toda luta e esforços do homem estão

presentes, já que à meia noite, quando os ponteiros do relógio se

unirem, tudo voltará a ser como sempre foi. Como nos ditos populares

“Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto e se queimar, até a

cinza é torta”, “Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré”, são

condições então que afunilam o modo de abertura para a experiência,

pois definem uma disposição afetiva. Engendram o solo propício para

o abandono de toda obra e para a instalação do tédio, o que para o

autor é uma atitude melancólica. No mito de Sísifo a pedra volta,

assim como os ponteiros do relógio se unem à meia noite, apontando

para a condenação do ser humano num único modo de ser próprio de

sua natureza.

Sancho diz a Dom Quixote: “Meu amo, é verdade que a

tristeza não foi feita para os animais, e sim para os homens, mas se os

homens se excedem nela, transformam-se em animais” (BENJAMIN,

1984, p.169). A alegria é própria da transmutação. Os mitos

cosmogônicos levam à conclusão que existir é transformar-se. A

existência, como obra aberta necessita ser participação, transmutação

e exercício da liberdade. Toda criação requer uma destruição.

Segundo Monique Augras (1986),

Os ritos de passagem das sociedades ditas primitivas evidenciam o caráter global, e irremediável da mudança. Após a “iniciação”, o novo membro do grupo dos adultos é considerado como outra pessoa, diferente do jovem que anteriormente fora. Os rituais de despedida do jovem antes da iniciação são frequentemente idênticos aos de luto. Morre um adolescente. A função dos ritos de passagem evidencia, portanto, a ruptura

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entre o estado anterior e o atual. O indivíduo tornou-se outro. O mundo mudou (AUGRAS, 1986, p.90).

O estranhamento próprio desta experiência é vívido por Dante

com horror. Ele se desconhece e teme a loucura. É afetado na sua

corporeidade e o novo corpo que é torna-se também um desconhecido

para si mesmo. Tornar-se outro, uma alteridade. Vive uma experiência

de transmutação. Longe de ser uma vivência psicopatológica de

despersonalização vai evidenciar o surgimento da alteridade. Toda

alteração da consciência altera a experiência da corporeidade. O corpo

que tenho, conjunto de órgãos, músculos, tendões e sistemas, não é o

corpo que sou. O corpo que sou é construído ao longo da história de

vida, na relação com os outros, afetado pelos códigos que regem a

cultura e carregado de significados dados por cada um. A percepção

que a pessoa tem de si mesma, é diferente a cada nova situação. A

autoimagem diz dos sentimentos e percepções que a pessoa

desenvolve sobre si mesma e que se alteram conforme as suas

vivências.

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FIGURA 2 – Ilustração de Gustave Doré (século XIX).Fonte: ALIGHIERI, 1991.

A autoimagem tem uma plasticidade, um movimento e é

construída numa permanente impermanência. Ela se constrói, destrói e

reconstrói ao longo de toda a existência, do nascimento à morte. Os

marcos da vida, ritos de passagem, o olhar do outro, as situações

limites, dentre outros, alteram a imagem que a pessoa faz de si

mesma.

Importante lembrar que imagem nos remete a movimento. Se

compararmos a um filme, a imagem é uma quantidade de retratos em

movimento. Muitas vezes a fita se rompe e o que era imagem, torna-se

figura, um retrato, uma situação congelada. Quando a imagem torna-

se figura a disposição afetiva se fecha. O congelamento em uma única

imagem leva a pessoa a acreditar que ela é e não que ela está. Perde o

fluxo do processo de vir-a-ser. Importante reconhecer, descrever e

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explicitar onde, na sua história de vida, a imagem tornou-se figura.

Como e para que isto se deu e se dá. Recuperar o movimento que foi

estancado por uma paralisação num dado modo de existir faz parte do

processo psicoterápico, pois a autoimagem afeta as escolhas que a

pessoa faz ao longo de sua vida.

Dante precisa ter a coragem de sustentar este estranhamento

para não tornar-se figura, mas sim um fluxo que caminha em direção

para o que ainda não é.

A fala é a luta na tentativa da superação do estranhamento.

Dante escreve para organizar, nomear, dar sentidos e significados ao

caos. Segundo Heidegger, citado por Augras (1986, p.75), “Verbo e

conflito são a mesma coisa”.

Monique Augras (1986) reflete sobre a necessidade da pessoa

se colocar perante o outro, de integrá-lo, de superar a antinomia

identidade-alteridade.

A fala, nas diversas linguagens, sejam elas verbal, corporal,

dos sonhos, do silêncio, das expressões artísticas são canais de

expressão na busca desta integração. Dante escreve no exílio a Divina

Comédia, outros pintam, esculpem ou se expressam nas mais variadas

modalidades, numa busca de superação do estranhamento. Os canais

de expressão geram possibilidades de comunicação, reconhecimento,

construção e reorganização da experiência. A pessoa pode reconhecer

em que ponto de sua existência ela se encontra.

Ainda de acordo com Augras (1986, p.76), a função da

linguagem não é apenas comunicativa. É a pura revelação da situação

de um ente que existe em si e para os outros, como singular e idêntico,

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como um feixe de contrários cuja síntese é constantemente destruída.

Como expressão da situação, a linguagem é criação e organização do

mundo. Pode-se falar, nesse sentido, da função demiúrgica da palavra.

Os mitos da criação do mundo, seja qual for a sua origem, deixam

claro este aspecto. A fala do indivíduo exprime a organização do seu

mundo, constantemente criado, questionado, ameaçado e reconstruído.

A cada destruição advém um estranhamento tanto de si quanto

do mundo. A alteridade não é apenas o outro fora de mim, mas

também os outros que sou e nos quais ainda não me reconheço. A

cada apreensão da própria alteridade amplia-se a consciência de si no

mundo.

Dante pede a Virgílio que o salve. Coloca Virgílio no lugar de

salvador e corre o risco de alienar sua liberdade. No texto de Myriam

Moreira Protásio (2008, p.128), ela cita Kierkegaard e descreve seu

método de comunicação como um método indireto, porque

pretendendo se comunicar com os homens, querendo chegar até eles o

mais proximamente possível, tinha um objetivo, qual seja ajudar a este

homem a ver-se a si mesmo e a julgar-se a si mesmo. Kierkegaard

considerava que cada homem é portador de uma missão inalienável,

qual seja incumbir-se da tarefa de ser si mesmo, de cravar em sua

existência uma marca própria, o que em hipótese alguma, poderia ser

feito por outra pessoa. Considera que a maior parte dos homens vive

sua existência sem querer dar muita atenção a esta tarefa, antes mesmo

ignorando-a o suficiente até crer que esta não lhe pertence, mas a um

outro (os pais, o mundo, o governo, o parceiro, a Deus, etc.)

(PROTÁSIO, 2008, p.129).

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Virgílio, na ética do ajudante experiente, observador e humilde

não faz promessas de salvação nem ameaças de castigo. Estas

posições são próprias das relações de poder sobre o outro. Ele

continua a observar Dante e a si mesmo na caminhada cotidiana.

Dante transforma seu desejo de ser salvo pelo outro numa abertura

para novas experiências e significados. Continua sua trajetória sempre

lançada no tempo, em direção ao momento seguinte e na finitude do

momento anterior. Virgílio deseja ajudar Dante a sair da ilusão de ser

salvo pelo outro e assim, prosseguir no seu caminho. Ele não aceita

ser mitificado pelo ajudado e se coloca numa posição de semelhante

na relação. O convida ao salto para o religioso, considerado como a

coragem de ser, pois desconhece as consequências da decisão tomada

pela impossibilidade de antecipar o futuro.

Prosseguindo, ele se reconhece na ira, na revolta pelas perdas

vividas. Torna-se perplexo no confronto com suas mágoas e

ressentimentos face ao que já foi vivido. Corre o risco de congelar-se

no ódio. Há o perigo de perder-se no jogo de culpas apontando hora

para si e ora para os outros. A culpa pelo que foi renunciado face às

escolhas realizadas pode petrificar a pessoa no pesar e desconsiderar o

que foi vivido. Transformar a culpa paralisante em culpa ontológica

faz parte deste patamar do inferno. O viajante precisa sair da posição

de vítima e construir novos sentidos para o seu devir. Interessante

ressaltar que, logo após este momento, Dante toma consciência da

fraude em outro patamar do inferno. Ela aparece nos cantos de Dante

como uma pessoa com o tronco e a face coloridos e atraentes e uma

calda de serpente escondida.

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E, pois, da fraude a imagem degradante achegou-se, exibindo a fronte e o busto,voltada a cauda para o poço hiante.

Era o seu rosto como o do homem justo,qual, benigno, por fora se apresenta,mas a víbora tendo o corpo angusto. (ALIGHIERI, 1991, v.I, p.243).

A aparição da fraude maravilhava Dante. Virgílio o inquieta,

interrogando-o sobre o que estará escondido no poço. A visão

imediata da beleza e da imagem atraente captura o viajante que se

prende às primeiras impressões guiadas pelo prazer. Ele via o rosto

humano e não percebia o corpo de serpente. Dante necessitou de muita

coragem para perceber a si e ao outro em sua totalidade. Tomou

consciência de si e do outro nas polaridades, paradoxos e contradições

inerentes à situação humana. A fraude tem o significado de passar a

perna no outro e a má fé de enganar a si próprio. O autoengano aliena

o homem de sua ação. A integração dos opostos é condição para a

compreensão do homem. Somos filhos de Deus e do Diabo e não

temos que provar o contrário. A experiência do lado sombrio e do

luminoso faz parte de uma mesma realidade. Aceitar-se no avesso e no

direito amplia a consciência de si e do mundo. Aparece novamente a

experiência da alteridade, dos vários que somos sendo nós mesmos.

Dante ao enfeitiçar-se por um fragmento da realidade perde a noção

do todo. Ele fica capturado pela imagem atraente e pára de se indagar.

Virgílio o convida a tomar consciência da dissimulação, ou seja, a

calda escondida no poço hiante.

Ainda dentro deste contexto ele apropria-se do seu desejo de

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autoflagelação. Quer punir-se, pagar penitência pelos erros cometidos.

Percebe-se na figura de Taís, a prostituta, que brada aos sete cantos

pedindo que lhe batam.

É Taís, a rameira impenitente, que ouvindo: “Isto te agrada?” a seu amante, lhe respondia: “Agrada, imensamente!” (ALIGHIERI, 1991, v.I, p.261).

Esta estrofe diz do desejo de ser espancada e o pedido para que

tal se realize. O penitente pede o castigo e se alivia quando se submete

ao sofrimento.

A culpa paralisante é muito bem descrita nesta passagem. O

erro é vivido como pecado e assim a penitência faz-se necessária. A

experiência do erro é interpretada apenas como vergonha e culpa

moral e não como uma aprendizagem para o amanhã.

Importante relembrar que o Inferno é espacializado como um

cone invertido, um cone de cabeça para baixo, e na medida em que o

viajante vai se adentrando, o espaço se torna mais estreito como se

fosse um funil. Esta representação é pertinente à descrição da

disposição afetiva, do modo de abertura para a experiência. Nas

profundezas do inferno os limites se ampliam e as possibilidades se

restringem. No entanto, é necessário confrontá-lo para emergir.

Alcançam os poetas a última dentre as dez valas do oitavo

círculo. Virgílio relata a Dante que nunca o viu em tal torpor. E que,

em todas as valas anteriores, em todos os sítios visitados não o viu a

demonstrar tamanha comoção. Eles se adentram na vivência dos

mutilados.

Page 21: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Perguntou-me Virgílio: “Não te enfadas?”Por que ficas a olhar, cheio de horror,E tão absorto, as sombras mutiladas? (ALIGHIERI, 1991, v. I, p. 345).

Quase na ponta do funil, há a apreensão “dos necessários” por

Dante, porém, sem a dimensão “dos possíveis”. A falta vira o todo e a

impotência se instala como único modo de existir. Como diz a estrofe,

ele fica absorto às sombras mutiladas.

Kierkegaard citado por Protásio (2008) desenvolve que o eu se

constitui como uma relação de dois termos e dá-se, então, como uma

síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e

de necessidade.

Há a possibilidade de o eu imaginar que não tem forças para

cumprir sua tarefa, que o que lhe é exigido é grande demais, que não

tem as condições necessárias para realizar-se como próprio, ou seja,

que para si nada é possível. Este eu aparece paralisado no finito de

“seus necessários”, incapaz de sequer imaginar para si outras

possibilidades, entendendo sua existência como uma repetição, sem

criatividade onde nada poderá se transformar.

Finalmente, eles chegam ao último patamar do inferno, na

parte mais estreita do cone invertido, a zona de maior afunilamento.

Para nossa grande surpresa, o encontro com Lúcifer não se dá no fogo,

mas nas geleiras.Eis Dite à tua frente, eis o lugar,Que exigirá de ti mais força e alento! (ALIGHIERI, 1991, v.I, p. 403).

Page 22: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Dante relata mais à frente que é no sítio do inferno que

precisará mobilizar todo o valor, coragem e força de ânimo. O âmago

do Inferno, morada de Lúcifer ou Dite, é estreito e asfixiante. E

descreve este momento como a presença de muitos desconfortos

provocados pelos sintomas que o afetam.

Por que o encontro com Dite se dá no gelo? Trata-se do grande

perigo do congelamento da existência, do adoecimento do ser.

Congelado, frio e duro interrompe o vir-a-ser. Fecham-se as

possibilidades. O congelamento transforma a imagem em figura pela

interrupção do movimento. Perguntamos-nos como e para que a

pessoa se paralisa e como ocorre este processo na existência de cada

um. O indivíduo se encontra congelado, pela ausência completa de

esperança na mudança de si mesmo e do mundo.

Kierkegaard chama de angústia do bem àquela angústia que

nos chama de volta quando estamos perdidos no caminho e angústia

do mal àquela que fica nos seduzindo para abandonar o caminho

(PROTÁSIO, 2008, p.131).

Lúcio Cardoso (1979), em a Crônica da Casa Assassinada

descreve o diálogo do padre Justino com Ana. Diz o padre diante da

crise de Ana:

O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa a desordem, mas a certeza e a calma. O que é que você imagina como uma casa dominada pelo poder do mal? É uma construção assim, firme nos seus alicerces, segura de suas tradições, consciente da responsabilidade do seu nome. Não é a tradição que se arraiga nela, mas a tradição transformada no único escudo da verdade. É o que poderíamos chamar de um

Page 23: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

lar solidamente erguido neste mundo. Não há nele, de tão definitivo, nenhuma fenda por onde se desvende o céu. Muitas vezes em dias passados, imaginei o que poderia tornar esta casa, tão fria, tão sem alma. E foi por aí que descobri a terrível imutabilidade de suas paredes, a gelada tranquilidade das pessoas que habitam nela. Ah, minha amiga, pode acreditar em mim, nada existe de mais diabólico do que a certeza. Não há nela nenhum lugar para o amor. Tudo que é firme e positivo é uma negação do amor (CARDOSO, 1979, p. 300).

As situações de crise trazem em seu bojo, verdadeiras

encruzilhadas. As escolhas feitas podem acarretar a saúde ou o

adoecimento do ser. A posição escolhida pelo homem na vida o

congela ou o lança num movimento contínuo do nascimento à morte.

Repetimos que a existência é construída numa permanente

impermanência e que paralisar este movimento pode gerar melancolia,

tédio a tristeza.

Page 24: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

FIGURA 3 – Dürer, na gravura intitulada Melancolia 1. Fonte: CLARK, 1980.

A Melancolia de Dürer é a própria humanidade evoluída, com

asa para voar alto. Sentada na mesma atitude de O Pensador de Rodin,

assegura nas mãos o compasso, símbolo do cálculo, pelo qual a

ciência conquistaria o mundo. À sua volta, encontram-se todos os

emblemas do trabalho de construção: o serrote, a plaina, pinças,

balança, um martelo, um cadinho de fusão e dois elementos de

geometria sólida, o poliedro e a esfera. No entanto, todos esses

auxiliares da construção estão abandonados e ele medita sobre a

futilidade do esforço humano.

Acreditar na inutilidade da obra humana é acreditar no destino

Page 25: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

enquanto determinismo. Esta é uma atitude melancólica perante a

existência. Expressa a tristeza do homem privado da transcendência.

A tristeza do exílio na condição de imanência. Interrompe o fluxo da

história contínua. O homem é exilado num tempo, num espaço e em

determinadas relações.

Benjamin (1984) descreve que, no Drama Barroco Alemão, a

morte é apenas a prova mais extrema da impotência e do desamparo

da criatura. Não exprime nenhum desafio, nem anuncia uma ordem

nova, porque qualquer transcendência é alheia ao Barroco. O destino é

onipotente. Movido pelo destino, o drama barroco está sujeito ao

tempo do eterno retorno. A maldição se perpetua, não significa o fim

como nas tragédias. Como já foi citado, à meia noite, conforme se

acreditava o tempo pára, voltando ao ponto de partida. Por tudo isso, o

drama barroco não tem heróis, mas somente configurações. Pois

heróico é o personagem que desafia o destino morrendo, e não o que

morre submetendo-se ao destino e eternizando a culpa. Traz a

concepção da história como natureza e a visão da vida como

imanência absoluta. O teatro barroco está profundamente inscrito na

ordem da história como natureza. O personagem é conduzido à morte

pelo destino, forma natural da necessidade histórica e não por suas

ações. A morte não significa repouso além do tempo cíclico, mas

recomeço perpétuo dentro do ciclo. Dada essa sujeição à natureza, a

motivação psicológica dos personagens é nula. Eles não são movidos

por fatores éticos e sim por forças naturais. Mostra então, a inutilidade

de motivar os personagens.

O Barroco é habitado pela antecipação da catástrofe, que

Page 26: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

destruirá o homem e o mundo, mas não é uma catástrofe messiânica

que consuma a história, e sim a do destino que o aniquila. Não é a

história humana, e sim história da natureza – destino. Sujeita ao

destino, a vida humana é efêmera, porque é a vida do homem criado,

do homem como criatura, como ser natural. O drama alemão mergulha

inteiramente na desesperança da condição terrena. A sujeição do

homem ao destino priva suas ações de todo valor. Algo novo surgiu:

um mundo vazio. É pertinente que, em torno do personagem de

Albert Dürer, na Melancolia, estejam dispersos no chão os utensílios

da vida ativa, sem qualquer serventia, como objeto de ruminação.

Este estado de humor é descrito na alta Idade Média, no século

XII pela escola de Salermo, através do seu principal representante,

Constantinus Africanus e permaneceu em vigor até a Renascença. O

melancólico é “invejoso, triste, avaro, ganancioso, desleal, medroso e

de cor terrosa”, e o humor melancholicus constitui o “complexo

menos nobre”. A patologia dos humores via a causa dessas

características no excesso do elemento seco e frio, dentro do

organismo. Esse elemento era a bílis negra. O sangue “grosso e seco”

que flui nesse órgão e nele se torna dominante inibe o riso e provoca a

hipocondria. Aparece aí a derivação fisiológica da melancolia

(BENJAMIN, 1984, p.168).

Voltamos ao inferno, ao encontro de Dante com Lúcifer nas

geleiras. Até o presente momento, Dante caminha, tem movimento,

toma consciência de sua ira, dos seus medos, de suas fantasias e faz

escolhas apesar das incertezas que o afligem. Constrói sua obra

explícita, a Divina Comédia e sua obra implícita: a construção de sua

Page 27: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

existência. No entanto, a escolha pela imobilidade ou pelo movimento

está sempre presente como possibilidade. O humor melancólico tem a

cor terrosa. A pessoa presa à força da gravidade, aos necessários, não

dá o salto. Inveja a obra do outro porque crê que como ele, o outro

também já nasce feito. Lúcifer tem inveja de Deus. Deseja para si

todas as possibilidades e nenhum limite, conforme Deus é concebido.

Congela-se no desespero dos possíveis no ideal de ser Deus. Por outro

lado, congela-se também no desespero das necessidades pela crença

em sua natureza decaída. Por natureza, está condenado e é definido

apenas pelos seus limites. Não há para si a possibilidade de tornar-se

outro. Se somos natureza e cada um tem a sua, o projeto de ser torna-

se uma quimera. O sangue grosso e seco que não flui, estancado, inibe

o riso, a alegria.

A perda da fruição da existência é o solo propício para a

produção do humor melancólico. Ao contrário da alegria e do riso que

são construídos na esperança do vir-a-ser. Abandonar os instrumentos

de trabalho, por uma crença no destino enquanto determinismo nos

paralisa no último patamar do inferno.

Dante e Virgílio, ainda no inferno, vislumbram uma fenda por

onde se desvenda uma clareira.

Seguimos pelo trilho penumbroso,à terra a regressar, clara e radiante,sem de uma pausa usufruir o gozo.

Em outra estrofe:Íamos, eu atrás, ele adiante,quando, por uma fresta, as coisas belasnos sorriam. Do espaço deslumbrante:

Page 28: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

E ao brilho caminhamos das estrelas. (ALIGHIERI, 1991, v. I, p. 409).

Após as conturbações do Inferno, chegam os dois ao

Purgatório. Diferente da configuração espacial do Inferno, do cone

invertido, saem em uma ilha. Eles saem da galeria subterrânea para a

superfície da terra numa ilha, na faixa plana entre a praia e o sopé do

Monte Purgatório. Dante vai relatar vivências mais serenas do que as

já vividas no inferno. Marca sua entrada numa outra fase do seu

processo.

A singrar melhor água eis que o batelDo meu engenho segue a vela inflada,Deixando atrás o pélago cruel. (ALIGHIERI, 1991, v. II, p.11).

Já se mostrava os primeiros sinais da madrugada. O poeta, que

emergia da profunda sombra do inferno, via o céu pontilhado de

estrelas, ir se tomando da suave cor azul. Importante enfatizar a

mudança na dimensão da espacialidade neste ponto do processo.

Necessário também é fazer uma comparação entre alguns momentos

do inferno e do purgatório que mostram outro momento do processo

do viajante. Lembremos-nos daquele episódio em que o Poeta subia e

descia a montanha com uma pedra que sempre voltava para ser

novamente carregada. A evitação da experiência trazendo-a sempre de

volta de forma incessante. Os mecanismos de negação e a dificuldade

de apreensão da situação promovem uma repetição estéril do mesmo.

Já no purgatório, uma grande diferença emerge pela experiência de

Page 29: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

caminhar carregando consigo sua pedra, ou seja, sua carga. Ele

percorre o purgatório implicado em suas questões existenciais. Sai da

condição de vítima e apropria-se da sua experiência. Dante vivencia a

situação sem negá-la, mascará-la ou colocá-la fora dele. O exercício

da consciência reflexiva está presente no seu trajeto pelo purgatório.

Caminha, tem movimento, sai do lugar apropriando-se de si mesmo.

Instala-se a liberdade para, substituindo as tentativas malogradas de

ficar livre de. Redefine os seus caminhos para seu projeto de ser,

fazendo o luto dos sentidos que não mais são possíveis. Está no

processo de reconhecimento e apreensão das questões fundamentais

da existência como a morte, a liberdade, a solidão e o projeto

existencial. Retoma o movimento através de, apesar de. Enfim, se

coloca a serviço de sua própria carga. Está em processo de elaboração

onde a “angústia do bem” toma o lugar da “angústia do mal”

(PROTÁSIO, 2008, p.131). Sua aceitação da realidade nova lança-o a

outra história a ser construída.

Em outra etapa, ainda no Purgatório, ele se depara com outros

que vivenciam um momento semelhante ao seu. Várias pessoas

caminhando com as suas questões próprias. Vale a pena voltarmos a

um dos patamares do inferno para estabelecermos algumas

comparações. O poeta experienciou no inferno o mais completo

isolamento. Sentia-se solitário na sua trajetória. Não se reconhecia no

outro e acreditava na impossibilidade de compartilhar suas vivências.

Tornou-se ensimesmado. Confirmava que era diferente do outro e que

não havia nada de si no outro e nada do outro em si. Não era só e com

os outros, porém, solitário. Estabelecia uma relação privilegiada com

Page 30: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Virgílio e pensava ser impossível o encontro na semelhança. Ainda

não reconhecia a possibilidade do encontro, da reunião. Dante, ao

longo de sua trajetória só considerou Virgílio. E este, foi colocado na

posição de guia, apesar de não a encarná-la. Agora, o poeta já

reconhece os outros como semelhantes, compartilha sua história e

transcende a relação dual. Citamos no Purgatório, momentos

importantes tais como o aprendizado da solidariedade e da compaixão

pela experiência da relação de semelhança com o outro, a apropriação

de sua história, a ampliação do espaço existenciário e a liberdade para

se haver com a sua nova história. É neste contexto que ele passa a

vivenciar o seu processo na dimensão do Paraíso.

O poeta invoca Apolo, o deus da poesia e guia das Musas, para

que o inspire a cantar sua ascensão ao Paraíso. Para cantar o Inferno e

o Purgatório, Dante se socorrera apenas das Musas, mas agora para

cantar o Paraíso, necessitava do auxílio do próprio Apolo.

A entrada no Paraíso vai marcar uma nova etapa no seu

processo. O que significou para ele a entrada no Paraíso? Ele vai

narrar sobre vários aspectos deste momento, onde a pessoa em

processo emerge do meramente dado e se introduz em um novo

movimento. Primeiramente, Dante se torna perplexo com a presença

da crucificação no paraíso. Esta experiência mostrará novamente, “que

esse mundo é mesmo muito misturado” (GALVÃO, 1972, p.75). A

morte no Paraíso, para o poeta, tem o significado de transcendência. É

a experiência da morte que antecede a vida. É a crucificação para a

ressurreição. A morte que introduzirá o novo, o desconhecido, o

inusitado, ou seja, a finitude como abertura de sentidos. Esta morte o

Page 31: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

lança na construção de uma nova obra. Esgota o trabalho do luto,

construindo um novo sentido ao lado do que se foi. Vivencia o

paradoxo dos necessários e dos possíveis como condição da

existência. Mais uma vez, a experiência da espacialidade e da

temporalidade se altera. O espaço existenciário torna-se amplo,

próprio das experiências que introduzem o desconhecido. O tempo

torna-se linear e diferentemente do tempo circular do drama barroco

alemão, traz uma nova vivência. No tempo linear, próprio das

tragédias gregas, o herói mata e ou morre para introduzir uma nova

ordem. Tempo linear ou de horizonte é vivido na esperança da

transmutação. A esperança ou espera ativa, encarnada, sustenta esta

nova caminhada onde o caos se organiza através da fala, das várias

linguagens. Nasce um outro, emerge a alteridade. Homem e mundo se

reorganizam em outras bases, até o surgimento de uma nova crise, de

um novo caos. A presença de limites e possibilidades inerentes à

condição humana permeia todo o processo.

Kierkegaard aponta a questão da escolha como parte

fundamental do existir humano. Faz referência a quando Deus coloca

para Adão: “porém, os frutos da árvore do bem e do mal não comerás”

(GOMES, 2009, p.258). Ele acredita que a partir desta proposição,

colocadas opções, não se pode mais não escolher. O homem está, a

partir de então, em sua condição de liberdade. A partir desta condição

cabe a escolha. Escolher é arriscar-se e tem como conseqüência a

autoria da própria existência. Dante acolhe os paradoxos com os quais

tem que conviver e se situar.

“O homem é síntese de infinito e finito, de temporal e de

Page 32: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

eterno, de possibilidade e de necessidade”. Kierekgaard personifica o

desespero humano e este deve ser clarificado para auxiliar na

compreensão do cliente em seu processo. O desespero sob a ótica da

dupla categoria do finito e do infinito reafirma a questão do ser como

síntese. Realizar-se como concreto é algo que não acontecerá nem no

finito nem no infinito. O eu só existe em seu poder-ser, não é senão o

que será. No desespero da infinidade ou carência de finito, pela

imaginação, o ser é transportado ao infinito e isso somente o afasta de

si mesmo perdendo-se na irrealidade. No desespero do finito ou

carência de infinito ocorre exatamente o contrário. O ser recolhe seu

eu diante da vida, do seu poder-ser mais próprio. O desespero sob a

ótica da dupla categoria do possível e da necessidade é que se

necessita dialeticamente tanto de um quanto de outro (GOMES, 2009,

p. 258).

Os paradoxos da existência, vida e morte, temporal e eterno,

liberdades e condicionamentos fundam o desespero como condição do

ser. A consciência plena do ser-para-a-morte é a única forma de

cuidado, de cura, ou seja, de ser-si mesmo. Quanto às liberdades, não

existe uma liberdade total. O que há é uma liberdade condicionada às

situações humanas na mundanidade do mundo.

Assim, cada ser tem que lidar com as facticidades que surgem,

com a imprevisibilidade, com as restrições ou limitações da

concretude do existir, com as adversidades ambientais e ou próprias

não se esquecendo de que existir é ex-sistere, ser-para-fora, lançar-se

apesar de todas as incertezas.

Ainda na sua passagem pelo Paraíso, Dante vivencia outro

Page 33: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

movimento, diferente da “borrasca infernal, das almas em correria”.

Fala de um movimento numa espiral ascendente. Ele o vivencia como

um estado de abertura, como uma nova disposição afetiva para a

experiência.

Vale dizer, que estas instâncias não se dão de forma apartada,

ora uma, ora outra. São faces da mesma experiência. É no manejo

delas que a existência se dá. Paraíso e Inferno andam juntos como

possibilidades. São momentos permanentes no modo de existir.

Importante também afirmar que esta descrição é do processo de Dante

e não um modelo universal para todos os processos. Cada caminhada

se dá de forma genuína e peculiar.

Aprendemos a acreditar na certeza, na segurança, no equilíbrio

como bens a serem conquistados e preservados e não consideramos o

desequilíbrio, a dúvida como inerentes ao processo de vir a ser.

Quando nascemos, encontramos a realidade com alguma organização.

E esta organização muitas vezes, não responde às nossas perguntas e

anseios vitais. Torna-se necessário então, para não paralisarmos, para

não nos tornarmos melancólicos, uma redefinição, um desequilíbrio da

ordem que nos é dada, para que nos organizemos em novas bases. A

existência é uma obra aberta, tem movimento e se dá numa

permanente impermanência. É uma construção do nascimento à morte.

Quando o movimento é interrompido pelo apego às certezas

enrijecidas, aos determinismos, privilegiando a calma e a ilusão de

segurança, a pessoa torna-se melancólica, muda e taciturna. É muda

porque é triste. É triste porque nada engendra nada. Se a fala constrói,

destrói, reconstrói, edifica e mata, na ausência da possibilidade de

Page 34: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

mudança a fala perde o seu sentido primordial, a de criar o mundo. A

experiência torna-se esférica, ensimesmada “não há nenhuma fenda

onde se desvenda o céu” (CARDOSO, 1979, p.300). Tentamos

paralisar o fluir do processo com nossas falsas garantias, nos

afastando da realidade, negando-a enquanto aberta, inacabada e,

portanto, problemática. Nada cria nada e todo esforço humano torna-

se inútil e fútil. A descrença na obra traz amargura e tristeza como

disposição afetiva. A passividade constrói a ruminação melancólica e

as crenças supersticiosas aparecem, já que o homem não tem

condições de transformar o mundo. Na atualidade, o horóscopo, o

tarô, os búzios, a leitura de mãos, a numerologia e outras tantas

práticas supersticiosas, vão denunciar a existência de um homem

rendido, porque está desprovido de sua transcendência.

A entrada no Paraíso não traz uma vivência de euforia e

otimismo injustificados. Mudar, mesmo não estando de acordo com o

já conhecido, é uma experiência exigente. Segundo Augras (1986,

p.89), aquele que heroicamente assume a transformação encontra

apenas luta à sua frente. É um processo contínuo de lutas e de

reconstruções. É um processo penoso cheio de perigos e de conflitos.

A criação é um processo tão doloroso que até deuses devem ser

imolados.

Crenças, valores e paradigmas são destruídos neste processo.

Existir é transformar-se. Exige participação, transmutação e exercício

da liberdade. A dor do Paraíso é a dor do parto, do nascimento da

criança, de um começo.

Laura Freixas, nos famosos versos de Santa Tereza de Jesus lê-

Page 35: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

se um grito que percorre toda a sua obra:

Vivo sin vivir em miY tan alta vida esperoque muero porque no muero (FREIXAS, 1996, p. 10).

A exclamação “morro porque não morro”, expressa a

necessidade de morrer para dar prosseguimento à vida.

No Paraíso de Dante, os marcos mais significativos são a

confirmação do outro como semelhante, a apreensão da alteridade, a

abertura para novas experiências, a retomada da fluidez do

movimento, a ampliação do espaço existenciário, a esperança no devir

e o exercício da fala, que se dá através dos poemas. A coragem para

criar, a sustentação da angústia ontológica vão permear estes

momentos do seu processo. No entanto, os obstáculos à mudança

nunca se fizeram tão presentes. Para quem acompanha a pessoa em

processo é importante reconhecer em que ponto da sua existência ela

se encontra, e que mundo de significados ela constrói. Importante

lembrar, que neste momento Virgílio se retira e Dante busca

expressar-se pela poesia. Apolo, o deus da poesia será a partir daí a

sua referência. A linguagem aqui aparece simultaneamente como

criadora do mundo e de si mesmo. É uma luta pela superação da

estranheza.

Na situação do encontro em psicologia clínica, o elemento de

informação é precisamente a fala do cliente, em todas as suas

manifestações. Fala-se e ouve-se. No atendimento, o cliente fala,

silencia, distorce, esquece, dissimula, mascara, fantasia e todas estas

Page 36: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

formas de expressão o revelam.

De acordo com Augras (1986), citando Heidegger, a obra de

arte talvez se situe de modo privilegiado entre os processos

transformadores do homem. No mesmo momento, induz o conflito e

propõe uma solução. O espectador é provocado, adere e se reconhece.

A obra de arte, diz Heidegger, “é a instigadora desta luta [...]. Por isso

a calma da obra descansando em si mesma tem a sua essência na

intimidade dessa luta” (AUGRAS, 1986, p.93).

As linguagens criam espaço, tempo, afetam as pessoas, dão

sentido ao sonho e à realidade, expressam, revelam, manifestam,

dissimulam e antecipam a situação do ser no mundo. Nesse sentido a

obra poética é o ponto culminante da criação humana. Ela se afirma

como a mais alta expressão do ser que nela cria um mundo e se cria a

si próprio.

Na tentativa de realizar uma síntese sobre a questão dos limites

e possibilidades nas situações de crise, citarei outro grande poeta,

Carlos Drummond de Andrade (2006, p.135):

Fim da casa paterna

Vou dobrar-me à regra nova de viver.Ser outro que não eu,até agora musicalmente agasalhadona voz de minha mãe, que cura doenças,escorado no bronze de meu pai, que afasta os raio. Ou vou ser mesmo, talvez isso,apenas eu unicamente eu,a revelar-me na sozinha aventura em terra estranha? Agora me retalha o canivete desta descoberta:eu não quero ser eu, prefiro continuar objeto de família.

Page 37: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Considerações Finais

Ao longo do pensamento ocidental tem-se desenvolvido várias

concepções filosóficas para abordar a questão da morte. Até a

modernidade, a cisão corpo e mente marcam estas concepções. Farei

um breve resumo para depois abordar a morte que aqui nos interessa.

O professor Clóvis de Barros Filho2 nos traz grande

contribuição ao dizer das concepções de alguns filósofos no que se

refere à morte.

No pensamento de Platão que, já no início de sua obra, vai

refletir sobre a morte a partir da morte de Sócrates, ele afirmará que

filosofar é aprender a morrer. A morte aparece como um prêmio para

quem suportou com galhardia as lutas da vida. É a libertação da alma

do peso do corpo. Esta vida tem por finalidade a morte, pois libertar-

se do corpo nos permitirá pensar melhor. Logo, filosofar é aprender a

morrer. Quando o corpo não existir mais, a vida será melhor. O

homem salva a si mesmo através da filosofia. Ela o salva

especialmente do medo da finitude, do fim. Segundo Platão, a morte é

a separação da alma do corpo. Esta é a definição metafísica mais

importante de toda a história. O nascimento aprisiona a alma e a morte

a liberta. Quando filosofamos, vamos treinando a separação da alma

2 Palestra proferida pelo Professor Clóvis de Barros Filho, doutor em Ciência da Comunicação e Artes pela Universidade de São Paulo, mestre em Ciência Política pela Universidade de Paris III, professor de Filosofia da Comunicação, professor de Ciência Política, professor de ética da Universidade de São Paulo e também consultor do Espaço Ética. CICLO DE DEBATES FILOSÓFICOS. Palestras... Belo Horizonte: Unimed BH, 2009.

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do corpo. Logo, filosofar é aprender a morrer. O objetivo é manter a

alma soberana sobre o corpo. Quem não filosofa é regido pelo corpo e

pauta sua existência sobre as necessidades deste corpo feito de

lacunas, necessidades e que sempre estará correndo atrás do que falta.

O filósofo se prepara para morrer porque pauta sua vida por condições

que preexistem à sua existência, ou seja, o mundo das ideias. As

verdades absolutas e verdadeiras, critérios universais submetem os

apetites do corpo. Assim, tanto faz que ele esteja vivo ou morto,

porque a ideia é livrar-se dele para viver melhor. Quem filosofa pauta

a vida pela razão e pela alma. Quando o corpo morre, nem se percebe.

Morte é apenas uma passagem de um tipo de vida para outro. Transito

de uma vida para outra. Então, ela passa a ser a grande finalidade da

vida.

Para Epicuro, filósofo materialista, a morte é o fim. Não no

sentido de finalidade, como no pensamento de Platão, mas de finitude.

Acaba o corpo e com ele tudo acaba. Considera a vida um exercício

para a morte. A vida boa é uma vida de prazeres. Nota-se a grande

diferença da sua proposta para a de Platão. Em Epicuro, a morte é o

não-ser e a boa vida é a vida que respeita o que o corpo reclama. A

morte dá a vida uma dimensão de finitude e escassez. Se vivêssemos

eternamente não haveria sentido filosofar. A vida é um bem escasso e

finito. Pensar sobre a vida finita é deliberar sobre a gestão da escassez,

o que também é aprender a morrer. Para ele, a morte é o fim dos

prazeres e para Platão é a separação da alma do corpo. Ainda em

Epicuro a temporalidade do corpo é tudo que é. Cada instante

existencial é irrecuperável, irresgatável, e logo deverá ser vivido da

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melhor maneira possível. Esta é a única vida que temos.

Já Montaigne vai tratar do instante da morte. Afirma que a

irrecuperabilidade dos instantes existenciais pode dizer da morte a

cada instante. A morte não se dá só no instante final, mas a cada

momento que se passa e que não retornará jamais. No instante da

morte podemos julgar toda uma vida. Podemos avaliar todo discurso

que temos a nosso respeito, a crença que fizemos sobre nós mesmos.

Para ele, a vida vivida é um teatro de simulações. Somos escravizados

pelas crenças que temos de nós mesmos. Escravizados pelas

expectativas que nós e os outros fazemos de nós mesmos. Vamos

construindo os limites existenciais dos quais não podemos fugir. A

vida é vivida como um teatro, uma simulação, uma representação. Nos

últimos suspiros temos condição de nos despirmos das máscaras,

porque não há mais nenhuma esperança e a vida pode ser vivida como

ela é. As máscaras caem e desaparece toda necessidade de cinismo. A

ideia de máscara é central nesta análise. Diz da dualidade máscara e

essência. A morte traz a genuinidade porque não há mais esperança e

assim perdemos a necessidade de representar o que não somos.

Podemos abandonar o cinismo.

Spinoza, filósofo materialista, também faz uma reflexão

maravilhosa sobre a morte. Considera que o homem tem uma essência

e existirá vida enquanto tiver esta essência, que ele denomina de

potência. A vida é a potência de agir. Analisar a vida de alguém é

analisar a sua potência de agir ao longo da vida. Somos parte do

universo. Somos parte do todo relacionando-nos com as outras partes.

Não somos filhos de Deus, mas partes de Deus, do universo. Spinoza

Page 40: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

é o primeiro a trazer o conceito de relação. Continua marcando esta

diferença quando afirma que afetamos e somos afetados pelas partes.

Somos partes que tem que se relacionar com partes em nome do

universo. Prossegue com as afirmações seguintes: morremos porque

existimos, existir é relacionar-se, relacionar-se é afetar e ser afetado

pelas partes com que se relaciona. Morro porque sou de fora para

dentro, porque sou relação, por causa dos efeitos dos encontros com o

mundo sobre mim. Então, o que determina o nosso fim? Responde que

as relações determinam ganho ou perda de potência e que, a alegria é

decorrente da harmonia entre as partes que estão em relação, condição

esta que leva a um ganho de potência. A tristeza é decorrente das

relações que nos apequena e que nos rouba potência. Logo, a morte

não ocorre nos últimos suspiros, ela ocorre a cada instante, a cada

relação que nos entristece. Morremos de fora para dentro, nos nossos

encontros com as partes com as quais nos relacionamos. Alguns

encontros são no sentido da vida, outros no sentido da morte. Não

importa o último suspiro, importa a perda de potência ao longo da

vida. Só estudamos a morte porque ela se dá em vida, na vida.

Adoecemos porque estamos pouco potentes. Pouco potentes porque

perdemos energia. Ganhar ou perder energia depende dos nossos

encontros com as outras partes do mundo. O apequenamento de

potência é porta aberta para a enfermidade, porta aberta para o fim.

Porém, a morte que nos interessa neste texto, não é a morte

funerária e sim a finitude no processo de existir. A morte como

fenômeno da vida. Também está fora da dualidade corpo e mente, pois

a existência é afetada na sua totalidade.

Page 41: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Segundo Feijoo (2000, p.88), a totalidade da pre-sença inclui o

seu ser-para-a-morte. A pre-sença só se totaliza com a morte, com a

qual se perde do pre, se constituindo, portanto, como inacabada.

A morte sendo um fenômeno da vida, um fundamento da pre-

sença se constitui enquanto pendência, a falta do que ainda será; como

findar, ser e não-ser; como não-totalidade, uma vez que só se totaliza

com a morte, deixando de viver não testemunha essa totalidade; como

totalidade, uma vez que se totaliza com a morte, é na antecipação que

se certifica de sua totalidade jamais alcançada; pre-sença enquanto

devir, no que ainda não é; como ser-para-o-fim, um modo de ser da

pre-sença ou ainda, como antecipação da possibilidade da morte, ou

seja, manter-se na certeza com relação a sua própria morte, como algo

inevitável, assumindo assim, sua singularidade (FEIJOO, 2000, p.88-

89).

A reflexão sobre a morte só terá sentido se for em nome da

vida. A possibilidade do vazio ontológico, do vazio de ser e na

angústia frente à consciência de ser-para-a-morte, o ser poderá surgir

de modo mais próprio assumindo suas possibilidades. A consciência

da finitude como abertura de sentidos é o que mais importa para a

pessoa em processo.

Retomar a questão da crise, colocada no início deste trabalho, é

para dizer o quanto ela é necessária neste processo de vir-a-ser. O ser

humano é o único, que além de ter que se colocar perante as crises,

também as provoca. Logo, as concepções que valorizam o alívio das

tensões e tem como pressuposto o equilíbrio homeostático não cabem

nesta reflexão.

Page 42: LIMITES E POSSIBILIDADES NAS SITUAÇÕES DE CRISE

Para finalizar, trago a continuação da fala de Lúcio Cardoso

que retrata de forma magistral o que tento descrever. Continuo no

diálogo do padre Justino com Ana:

Quero reinstalar o pecado na sua consciência, pois há muito que você o baniu do seu espírito, que o trocou definitivamente pela certeza – que aos seus olhos é a única representação do bem. Não há caos, nem luta e nem temor no fundo do seu ser. Quero reinstalar nele a consciência do pecado, torno a dizer, não pelo terror dele, mas pelo terror do céu. Minha filha, o abismo dos santos não é um abismo de harmonia, mas uma caverna de paixões em luta (CARDOSO, 1979, p.301).

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