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II Jornada Nacional da Produção Científica em Educação Profissional e Tecnológica São Luís/MA - 2007 * [email protected] Linguagem e Non-sense: Aplicação no Design de Brinquedos para Crianças Anna Paula STOLF*(1); Lurdete Cadorin BIAVA(1); Rodrigo Gonçalves dos SANTOS(1) Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Design – SESu); Colaboradora do PET Design; Tutor do PET Design (1) Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – CEFET/SC RESUMO O presente artigo aborda parte da fundamentação teórica para o projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo PET Design CEFET/SC sobre design de brinquedo. Esse projeto almeja acompanhar a criança em seus pensamentos mais criativos, muitas vezes bloqueados pelos adultos que a cercam. Sustentado na linguagem infantil, o estudo aborda a questão do non-sense, das palavras e das falas da criança. A ferramenta da linguagem infantil - o “não-sentido” - não significa a ausência de sentido, mas sim uma negação desse; e, como uma negação remete a uma afirmação, o non-sense, paradoxalmente, prova a existência do sentido. O principal objetivo da fundamentação no conceito non-sense é explorar os jogos de linguagem e os paradoxos semânticos, por meio de referências da literatura e da filosofia, vinculando-os ao pensamento infantil, na tentativa de buscar uma aproximação mais clara do “inocente sem-sentido”. Para entendimento do non-sense, foi preciso abordar o próprio “sentido”, que diz respeito ao que está entre as palavras e as coisas. O non- sense foi estudado juntamente com os temas referentes ao instinto da linguagem e à educação infantil, bem como com o estudo do processo de desenvolvimento da mente da criança com seus brinquedos e brincadeiras. Palavras-chave: Brinquedos. Criança. Linguagem. Non-sense. 1. INTRODUÇÃO Quando se percebe a criança do ponto de vista de uma criança, é difícil enxergar o quão non-sense ela pensa. No entanto, ao aproximar-se dela, sem entrar em seu mundo (como se costuma fazer - como, por exemplo: adultos que falam com “linguagem infantil” com crianças), torna-se muito claro que a linguagem que ela utiliza é carregada de non-sense. É o sentido do non-sense que se pretende explorar neste texto, a fim de fundamentar um design de brinquedo. Este artigo apresenta, assim, parte da fundamentação teórica para o desenvolvimento do projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo PET Design CEFET/SC sobre design de brinquedo para crianças. Os pontos de partida selecionados para o projeto foram a questão do non-sense, abordada na linguagem infantil, e o desenvolvimento da criança na utilização de jogos e brinquedos, tendo sempre em vista seu pensamento criativo e inventivo. Os conceitos e as situações explorados com a questão do non-sense compreendem, no âmbito deste estudo preliminar, os elementos aleatórios na brincadeira/jogo - explorados por Leite (1995) -; ultrapassar limites e transgredi-los - abordados por Lecercle (apud BASTOS, 2001); o desequilíbrio de pares variáveis, ou insistir ou subsistir à proposição - apresentados por Deleuze (1998); a diferença entre absurdo e non-sense - explicada por Holquist (apud CARROLL, 1980); a questão de estranhamento - explicada por Bastos (2001); o conceito da importância do processo do jogo, a relação entre o que uma coisa é e como ela é chamada - vistos com Wittgenstein (apud BASTOS, 2001) e, por fim, o non-sense como colocam Lear e Carroll, “uma espécie de dialeto da inocência, uma linguagem associada à infância, mas, de algum modo, livre de carga do sentido”. A discussão que aqui se apresenta contempla parte de uma pesquisa que precede o projeto de um brinquedo cujo objetivo contempla o tema da sustentabilidade. Mesmo sem aprofundar esse tema, reconhece-se a sua pertinência, sublinhando desenvolvimento crescente na área de design. Por tais razões, objetiva-se utilizar na estruturação do brinquedo as sobras de MDF (Medium Density Fiberboard) – uma madeira reconstituída – de empresas locais. Segundo pesquisa (BIAVA, 2007) - vale considerar no contexto deste estudo - um metro cúbico de MDF corresponde a quatro árvores de mais ou menos quinze anos; portanto, se uma empresa de produção seriada rejeita quatro metros cúbicos de MDF por mês, ela joga fora dezesseis árvores mensalmente. O aproveitamento desse material no desenvolvimento do brinquedo vem,

Linguagem e non-sense - aplicacao no design de brinquedos para criancas

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II Jornada Nacional da Produção Científica em Educação Profissional e Tecnológica São Luís/MA - 2007 Anna Paula STOLF*(1); Lurdete Cadorin BIAVA(1); Rodrigo Gonçalves dos SANTOS(1) Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Design – SESu); Colaboradora do PET Design; Tutor do PET Design (1) Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – CEFET/SC * [email protected]

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II Jornada Nacional da Produção Científica em Educação Profissional e Tecnológica São Luís/MA - 2007

* [email protected]

Linguagem e Non-sense: Aplicação no Design de Brinquedos para Crianças

Anna Paula STOLF*(1); Lurdete Cadorin BIAVA(1); Rodrigo Gonçalves dos SANTOS(1)

Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Design – SESu); Colaboradora do PET Design; Tutor do PET Design

(1) Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina – CEFET/SC

RESUMO

O presente artigo aborda parte da fundamentação teórica para o projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo PET Design CEFET/SC sobre design de brinquedo. Esse projeto almeja acompanhar a criança em seus pensamentos mais criativos, muitas vezes bloqueados pelos adultos que a cercam. Sustentado na linguagem infantil, o estudo aborda a questão do non-sense, das palavras e das falas da criança. A ferramenta da linguagem infantil - o “não-sentido” - não significa a ausência de sentido, mas sim uma negação desse; e, como uma negação remete a uma afirmação, o non-sense, paradoxalmente, prova a existência do sentido. O principal objetivo da fundamentação no conceito non-sense é explorar os jogos de linguagem e os paradoxos semânticos, por meio de referências da literatura e da filosofia, vinculando-os ao pensamento infantil, na tentativa de buscar uma aproximação mais clara do “inocente sem-sentido”. Para entendimento do non-sense, foi preciso abordar o próprio “sentido”, que diz respeito ao que está entre as palavras e as coisas. O non-sense foi estudado juntamente com os temas referentes ao instinto da linguagem e à educação infantil, bem como com o estudo do processo de desenvolvimento da mente da criança com seus brinquedos e brincadeiras.

Palavras-chave: Brinquedos. Criança. Linguagem. Non-sense.

1. INTRODUÇÃO Quando se percebe a criança do ponto de vista de uma criança, é difícil enxergar o quão non-sense ela pensa. No entanto, ao aproximar-se dela, sem entrar em seu mundo (como se costuma fazer - como, por exemplo: adultos que falam com “linguagem infantil” com crianças), torna-se muito claro que a linguagem que ela utiliza é carregada de non-sense. É o sentido do non-sense que se pretende explorar neste texto, a fim de fundamentar um design de brinquedo.

Este artigo apresenta, assim, parte da fundamentação teórica para o desenvolvimento do projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo PET Design CEFET/SC sobre design de brinquedo para crianças. Os pontos de partida selecionados para o projeto foram a questão do non-sense, abordada na linguagem infantil, e o desenvolvimento da criança na utilização de jogos e brinquedos, tendo sempre em vista seu pensamento criativo e inventivo.

Os conceitos e as situações explorados com a questão do non-sense compreendem, no âmbito deste estudo preliminar, os elementos aleatórios na brincadeira/jogo - explorados por Leite (1995) -; ultrapassar limites e transgredi-los - abordados por Lecercle (apud BASTOS, 2001); o desequilíbrio de pares variáveis, ou insistir ou

subsistir à proposição - apresentados por Deleuze (1998); a diferença entre absurdo e non-sense - explicada por Holquist (apud CARROLL, 1980); a questão de estranhamento - explicada por Bastos (2001); o conceito da importância do processo do jogo, a relação entre o que uma coisa é e como ela é chamada - vistos com Wittgenstein (apud BASTOS, 2001) e, por fim, o non-sense como colocam Lear e Carroll, “uma espécie de dialeto da inocência, uma linguagem associada à infância, mas, de algum modo, livre de carga do sentido”.

A discussão que aqui se apresenta contempla parte de uma pesquisa que precede o projeto de um brinquedo cujo objetivo contempla o tema da sustentabilidade. Mesmo sem aprofundar esse tema, reconhece-se a sua pertinência, sublinhando desenvolvimento crescente na área de design. Por tais razões, objetiva-se utilizar na estruturação do brinquedo as sobras de MDF (Medium Density Fiberboard) – uma madeira reconstituída – de empresas locais.

Segundo pesquisa (BIAVA, 2007) - vale considerar no contexto deste estudo - um metro cúbico de MDF corresponde a quatro árvores de mais ou menos quinze anos; portanto, se uma empresa de produção seriada rejeita quatro metros cúbicos de MDF por mês, ela joga fora dezesseis árvores mensalmente. O aproveitamento desse material no desenvolvimento do brinquedo vem,

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então, não só a acrescentar mais um conceito ao produto, mas também a contribuir com um bem comum.

O projeto, contudo, encontra-se na sua fase inicial; não serão aqui, portanto, abordadas questões físicas do material nem questões práticas de seu processo. O artigo limita-se a abordagens teóricas referentes ao non-sense e à linguagem da criança, numa discussão entre os autores pesquisados e deles com os próprios autores deste texto.

2. NON-SENSE Lúcia Kopschitz Xavier Bastos (2001) explora nas “Anotações sobre leitura e Non-sense” conceitos de Guimarães Rosa, em sua obra “Tutaméia”, os quais se referem ao non-sense como algo que reflete “por um triz a coerência do mistério geral” (ROSA, apud BASTOS, 2001, pág. 1). Explica a autora que “por um triz” entende-se que estabelecer o non-sense é ir contra o sentido rigoroso que pudesse talvez aí existir. É fazer desaparecer a coerência. Entretanto,

é, ao mesmo tempo, instituir uma outra ordem, uma outra coerência: a da brincadeira. Ou a da transgressão. Mas essa outra ordem imita a primeira, reflete-a por um triz, desde sempre. (BASTOS, 2001, p. 1)

Ela explica que o non-sense não se resume a uma falta ou ausência de sentido, mas trata-se de uma negação, de um “não-sentido”. E como uma negação remete a uma afirmação, o non-sense prova a existência do sentido paradoxalmente. Pode ser tanto um substantivo quanto um adjetivo.

Negar, ou pelo menos colocar em dúvida o impossível, é do que trata o non-sense. Cita Hugh Haughton, na sua antologia de non-sense:

Se você for pelos lugares óbvios e pelas antologias existentes, talvez seja mais fácil achar do que procurar. E quando você encontra, pode ser que o non-sense de uma pessoa seja o próprio senso para uma outra [...] (HAUGHTON, apud BASTOS, 2001, p. 4).

É de se considerar esse pensamento de Haughton bastante consistente para auxliar um projeto de brinquedos conceituado em non-sense. Como se sabe o que é non-sense para uns e não se entende o mesmo non-sense, como senso, para outros? Talvez seja aí que esteja o mais difícil do desdobramento deste projeto: desenvolver um conceito de non-sense, aplicando-o ao projeto de brinquedo que tenha senso para a criança, ou em contraponto, entender o porquê dessa atração ou tendência infantil ao uso cotidiano do non-sense e

transmiti-la ao sumo do produto com o primordial objetivo do conceito: não ter sentido nenhum.

Para a autora, Edward Lear e Lewis Carroll são os maiores expoentes do non-sense na literatura. Parafraseando os escritores, Haughton diz que o non-sense é declaradamente “uma espécie de dialeto da inocência, uma linguagem associada com a infância, mas, de algum modo, livre de carga do sentido” (HAUGHTON, apud BASTOS, 2001, p. 20).

Edward Lear (2003) declara que o objetivo de seus Limericks (versos com rimas emparelhadas - AABBA) era o non-sense, “puro e absoluto”, livre de qualquer “significado simbólico”. E Lewis Carroll, a respeito de suas intenções, ao escrever The Hunting of the Snark, declarou: “Sinto, mas não quis dizer nada, além do non-sense!”, embora tenha admitido que “as palavras dizem mais do que pretendemos quando as usamos”. (CARROLL, apud BASTOS, 2001, p. 20)

Seguem exemplos desse “não quis dizer nada” na literatura, por Manoel de Barros, rápidos jogos de non-sense com as palavras, os quais o autor escreveu em seu “Livro Sobre Nada”: “Meu irmão veio correndo mostrar um brinquedo que inventara com palavras. Era assim: Besouros não trepam no abstrato.”(BARROS, 1997, pág. 23); “Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim: De noite o silêncio estica os lírios.” (BARROS, 1997, p. 33)

Acrescenta-se um Limerick de Edward Lear, um dos maiores expoentes na literatura non-sense, na tradução de José Paulo Paes e Marcos Maffei. Maffei (2003, pág. 105) aponta Lear por ter um “peculiar senso de humor, no qual cabia uma aguda percepção do ridículo, uma mania de brincar com as palavras [...]”:

Havia uma moça cujo olho tinha o tamanho de um repolho... Quando ela o arregalava, todo mundo se espantava. E dizia: “Nossa, que trombolho!” (LEAR, 2003, p.)

Na conclusão dos poemas sem sentido de Edward Lear, ele mesmo esclarece: “Cada novo absurdo que aparecia era sempre bem-vindo, com ruidosa alegria” (LEAR b, 2003, p. 107). Eles transmitem o conceito já apresentado de “puro e absoluto”, sem preocupação com qualquer sentido que possa gerar.

Em “Lógica do Sentido”, Gilles Deleuze (1998) parte de uma análise da obra “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, entre outras referências, em que pelo caminho do não-

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sentido ou non-sense (construído principalmente por meio de jogos de linguagem e de paradoxos semânticos), pode-se chegar a uma lógica do sentido. Explica, com parte de Alice:

- Em que sentido, em que sentido? pergunta Alice. A pergunta não tem resposta, porque é próprio do sentido não ter direção, não ter “bom sentido”, mas sempre as duas ao mesmo tempo, em um passado-futuro infinitamente subdividido e alongado. (DELEUZE, 1998, p. 79)

O “infinitamente subdividido e alongado” ilustra uma característica do sentido: o paradoxo da regressão. Segundo Deleuze (1998, p. 31),

[...] ao mesmo tempo em que nunca digo o sentido daquilo que digo, paradoxalmente, posso sempre tomar o sentido do que digo como objeto de uma outra proposição, da qual, por sua vez, não digo o sentido. Entro então em uma regressão infinita do pressuposto. Esta regressão dá testemunho, ao mesmo tempo, da maior impotência daquele que fala e da mais alta potência da linguagem: minha impotência em dizer o sentido que digo, em dizer ao mesmo tempo alguma coisa e seu sentido, mas também o poder infinito da linguagem de falar sobre as palavras.

Reforça o autor que o sentido das coisas não está nas coisas propriamente ditas, mas sim em outras coisas. O sentido não é o significado de alguma coisa, mas sim o quanto essa faz sentido diante de outra. A criança não sabe de significados e sim do sentido que as coisas fazem para ela, que é expresso somente por ela, excesso de sentido “absurdo”: non-sense.

Entre inúmeros fatores que aguçam a criatividade da criança, em um livro escrito para adultos e adaptado na literatura infantil, encontra-se a oposição de sentidos, como explica Sebastião Uchoa Leite, em alguns exemplos:

Alice e a Rainha Vermelha correm o máximo para ficar no mesmo lugar; a Rainha oferece biscoitos secos para matar a sede de Alice; a Rainha Branca grita de dor antes de ser picada no dedo; o mensageiro Hatta cumpre a sentença antes do julgamento; o mensageiro Haitha grita no ouvido do rei Branco para contar um segredo; um relógio que reverte o correr do tempo, etc. (LEITE, apud CARROLL, 1980, p. 13)

Sobre Alice, Bastos afirma ser “um ser ameaçado e atacado pela linguagem” (BASTOS, 2001, p. 20-21). Uma vez, que o que se percebe nos textos de Lewis Carroll não é a morte do sentido, mas, sim, uma reativação do processo do sentido em um nível intuitivo, imaginário e aleatório. No

entanto, o non-sense não é um “caos textual”, ele abandona formalmente a regra, o gramatical, mas ainda está na língua.

O non-sense instala-se nas fronteiras da língua, nas quais o gramatical e o agramatical se encontram, nas quais a ordem (sempre parcial) da língua encontra a desordem (nunca total) do que está além dela. Objeto curioso e paradoxal, uma fronteira ou um limite. [...] Há sempre alguma coisa além do ponto último, barreira ou espaço. [...] (LECERCLE, apud BASTOS, 2001, p. 21)

Bastos coloca que essas considerações de Jean-Jacques Lecercle, a respeito de ultrapassar limites e de transgredir, são fundamentais e esclarecedoras para uma definição do texto non-sense, para uma possível diferenciação entre o que é non-sense e o que é apenas errado, desordenado, caótico. Segundo a autora, o non-sense não apenas ultrapassa um limite, mas também atravessa-o, incorpora-o.

[...] o non-sense é um uso criativo da linguagem, muito embora inesperado, que, como vimos, ao mesmo tempo em que rompe com o limite da regra lingüística, desafiando-a, a incorpora. Rompe-se com a expectativa, palavras novas e mesmo outros mundos são criados. [...] Se, por um lado, o non-sense se dá exatamente porque buscamos sempre interpretações plausíveis para tudo, porque esperamos sempre encontrar, na linguagem, um sentido, por outro ir contra o sentido é uma tentação vertiginosa. Assim como o sentido o é, o non-sense também é constitutivo da linguagem. (BASTOS, 2001, p. 31-32)

Deleuze, em seu estudo, propõe uma concepção diferenciada com relação ao sentido e ao non-sense. Para o autor, o non-sense não se opõe ao sentido, mas à ausência de sentido: o non-sense não possui nenhum sentido particular, ele se opõe à ausência de sentido e não ao sentido que ele produz em excesso. O non-sense é ao mesmo tempo o que não tem sentido, mas como se opõe à ausência de sentido, causa uma doação de sentido.

Para entender uma negação de sentido é indispensável o entendimento da definição de “sentido”. Então, o que é sentido, afinal? Deleuze (1998, p. 23) afirma que “o sentido é o exprimível ou o expresso da proposição e o atributo do estado das coisas”. Explica:

É, exatamente, a fronteira entre as proposições e as coisas. [...] É nesse sentido que é um “acontecimento”: com a condição de não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas. Não perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio

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sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem. (DELEUZE, 1998, p. 23)

Apesar de o non-sense ser uma negação de sentido, o conceito diferencia-se de ser “absurdo”. Michael Holquist (apud CARROLL, 1980, p. 21) esclarece essa diferença: “esse” - o absurdo - “lida com valores humanos, enquanto o non-sense lida com valores puramente lógicos. O non-sense é um processo em si mesmo, sem qualquer outra finalidade”. Vale destacar que o valor do non-sense nas obras de Carroll é o de chamar atenção para a linguagem, para o fato de que ela não é só algo que se conhece, mas algo vivo, em processo, “algo a ser descoberto”.

As obras de Lewis Carroll percorrem o sentido do non-sense, baseando-se em inúmeras referências. Possuem também técnicas como duplo-sentido, uso de portmanteaux (“palavras-valise”, em que duas formam uma terceira, como snark, formada de snake – serpente – e shark – tubarão), alusões, paródias, etc. São algumas referências para com os personagens, segundo Leite (apud CARROLL, 1980, p. 15):

[...] os personagens carrollianos são, em grande parte, referenciados, seja a poemas infantis e contos de tradição popular, seja a expressões e costumes locais. Por exemplo: o Gato de Cheshire refere-se à expressão “Grin like a Cheshire cat” (“Arreganhar os dentes como um gato de Cheshire”), e provavelmente ao fato de que os queijos do condado de Cheshire (onde Carroll nasceu) tinham a forma de um gato sorridente; o Chapeleiro é louco por causa do mercúrio, uma substância alucinógena que se usa na fabricação dos chapéus; o Leão e o Unicórnio correspondem aos símbolos dos brasões da Inglaterra e da Escócia, em luta pela coroa da unificação do reino, e assim por diante.

A questão é que o non-sense não implica apenas palavras ou rabiscos ao léu, defende a autora; ele é formalizado e tem mais padrões do que os outros tipos de linguagem. Segundo Bastos, o que se vê na poesia non-sense é o rompimento com a ordem lógica, o rompimento com a expectativa e sublinha, citando F. Fortuna (apud BASTOS, 2001, p. 17):

a invenção de palavras abstrusas e de personagens grotescos. [...] é a inconseqüência e um sentimento de absurdo que não possui qualquer pretensão metafísica. [...] é remotíssima a possibilidade de se encontrar finalidade ou intenção naquilo que traduz a poesia non-sense. [...] é o mais irresponsável ludismo.

Pode-se recuperar intenção no non-sense: a da construção de um contexto que produza um

estranhamento através da negação do próprio sentido, de caráter marcante. Tal intenção, expõe Bastos (2001, p. 18-19),

recupera nosso prazer antigo em brincar com as palavras e a lógica, de uma maneira alegre, nos diz algo de nossa infelicidade diante da ordem costumeira. [...] Em outras palavras, o non-sense é contra a ordem ao erigir o impossível através do lúdico.

Outro parêntese sobre o brinquedo, o qual ajuda a sair da “ordem costumeira” da vida, vinculado ao non-sense, pode servir de estímulo para a criança pensar mais sobre as coisas e qual o sentido delas, provocando um estranhamento inicial, pois tais coisas não têm sentido, mas também não são a sua ausência; são impossíveis, mas possíveis para as palavras.

As histórias de Alice, além do grande estímulo da criatividade, possuem também um caráter educativo-prático, na utilização da abstração da lógica e da escrita, como observa Jean Gattegno (apud CARROLL, 1980, p. 27):

[...] um dos jogos nas Alices é o de mostrar a armadilha dos raciocínios lógicos. Assim, por exemplo, se a pomba (cap. 5 de País das Maravilhas) toma Alice por uma serpente é porque raciocina a partir da premissa de que comer ovos é atributo particular das serpentes: ora, se as meninas comem ovos, então elas são “umas espécies de serpentes.

Para os problemas lógicos (de raciocínio) e para os problemas semânticos (de significados), Carroll propõe paradoxos, afirmando dois sentidos ao mesmo tempo nas inversões/reversões das histórias; Leite ressalta alguns exemplos: reversões de tamanho, reversões na ordem do tempo, reversões de proposições, reversões de causa e efeito, etc., estimulando poeticamente o leitor. A seguir, um exemplo, de Alice, sobre reversões de causa e efeito:

[...] isso de pouco adiantaria sem meus ombros. Ah, como gostaria de poder me fechar como um telescópio! [...] Que sensação estranha! disse Alice; devo estar encolhendo como um telescópio! [...] Agora estou espichando como o maior telescópio que já existiu! Adeus, pés! (pois quando olhou para eles, pareciam quase fora do alcance de sua vista, de tão distantes). Oh, meus pobres pezinhos, quem será que vai calçar meias e sapatos em vocês agora, queridos? Com certeza eu é que não vou conseguir! [...] Mas preciso ser gentil com eles, pensou Alice, ou quem sabe não vão andar no rumo que quero! Deixe-me ver. Vou dar um par de botinas novas pra eles todo Natal. Vão ter de ir pelo correio, pensou, e como o endereço vai parecer estranho! ‘Exmo. Sr. Pé Direito da Alice,

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Tapete junto à lareira. Perto do guarda-fogo. (Com amor da Alice)’.” (CARROLL, 2002, p. 15-17)

Carroll mostra, nas Alices, um processo de desmontagem da lógica e da linguagem; acrescenta Leite (apud CARROLL, 1980, p. 25), então, sobre o sentido do jogo do non-sense e seus paradoxos:

Carroll foi quase obsessivo no jogo com as palavras ou com o sentido. E no campo do pensamento para o qual revelou maior aptidão, o dos raciocínios lógicos, sua melhor contribuição (ou única) foi na construção de paradoxos, isto é, jogos lógico-semânticos (ou, na verdade, jogos poéticos, mais analógicos do que lógicos).

E exemplifica o jogo com as palavras, propondo o pensamento semântico sobre nome e coisas:

Em Alice, as palavras até adquirem individualidade, como Ninguém, no diálogo entre Alice e o Rei Branco: para Alice ninguém está vindo pela estrada; para o Rei, Ninguém (isto é, alguém) está vindo pela estrada. (LEITE, apud CARROLL, 1980, p. 25)

Alguns exemplos, segundo Deleuze, de paradoxos que exprimem sentido para as coisas: o paradoxo do desdobramento estéril ou da reiteração, o paradoxo da neutralidade, o paradoxo do absurdo ou dos objetos impossíveis e o paradoxo da regressão ou da proliferação indefinida.

[...] o paradoxo da regressão ou da proliferação indefinida, supõe que para cada um de seus nomes, a linguagem deve conter um nome para o sentido deste nome, o que desencadeia uma proliferação infinita das entidades verbais.” (DELEUZE, 1998, p. 31)

O autor cita parte de Alice, de Lewis Carroll, como exemplo disso:

“O cavaleiro anuncia o título da canção que vai cantar. - O nome da canção é chamado Olhos esbugalhados. - Oh, é o nome da canção? - diz Alice. - Não, você não compreendeu, diz o cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro nome é: o Velho, o velho homem. - Então eu deveria ter dito: é assim que a canção é chamada? - corrigiu Alice. - Não, não deveria: trata-se de coisa bem diferente. A canção é chamada Vias e meios; mas isso é somente como ela é chamada, compreendeu? - Mas então, o que é que ela é? - Já chego aí, - diz o cavaleiro, - a canção é na realidade Sentado sobre uma barreira.” (CARROLL, apud DELEUZE, 1998, p. 32)

Para Deleuze, o sentido, na medida em que se combina com o non-sense, relaciona-se com uma proliferação infinita das entidades verbais – para cada sentido, existe um outro, o que desencadeia uma regressão indefinida: o excesso que remete à própria falta.

Wittgenstein (apud BASTOS, 2001, p. 25) diz que “a relação entre o que uma coisa (qualidade, processo, etc.) é e a maneira como é chamada” está bastante presente na literatura non-sense, assim como em Alice:

- Pois bem, - explicou o Gato - um cachorro rosna quando está com raiva e balança a cauda quando está contente, compreende? Enquanto eu rosno quando estou satisfeito e balanço a cauda quando estou com raiva, está entendendo? Portanto, eu sou louco. - Não chamo isso rosnar, mas ronronar. - Chame como quiser. - disse o Gato [...]”

Nota-se a relação de “rosnar” e “ronronar”, a qual suscita uma brincadeira com as palavras; lida com o non-sense, provocando um estranhamento de sentidos, onde a ação é praticamente a mesma, mas com distinção de seus nomes, houve forte doação de sentido.

O paradoxo do absurdo e dos objetos impossíveis, segundo Deleuze, assinala que as proposições que designam objetos contraditórios têm um sentido. Essas proposições são sem significação, são absurdas. Porém, não deixam de ter sentido, logo, noções de absurdo e non-sense não devem confundir-se. O princípio de contradição se aplica ao real e ao possível, mas não ao impossível. Explica o filósofo:

É que os objetos impossíveis - quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile, montanha sem vale etc. - são objetos “sem pátria”, no exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta no exterior: eles são “extra-ser”, puros acontecimentos ideais inefetuáveis em um estado de coisas. [...] os impossíveis são extra-existentes, reduzidos a este mínimo e, enquanto tais, insistem na proposição. (DELEUZE, 1998, p. 38)

Deleuze expõe o non-sense como este elemento impossível. O autor resume-o em caracteres: “ele tem por função percorrer as séries heterogêneas e, de um lado, coordená-las, fazê-las ressoar e convergir e, de outro ramificá-las, introduzir em cada uma delas disjunções múltiplas” (DELEUZE, 1998, p. 69). São séries que estão sempre em desequilíbrio, pois são opostas. O autor exemplifica o non-sense com pares variáveis:

[...] ele é ao mesmo tempo excesso e falta, casa vazia e objeto supranumerário, lugar sem

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ocupante e ocupante sem lugar, “significante flutuante” e significado flutuando, palavra esotérica e coisa esotérica, palavra branca e objeto negro. (DELEUZE, 1998, p. 69)

Da mesma maneira, segundo Raquel Stolf, em muitas passagens de Aventuras de Alice no País das Maravilhas, “durante um jantar oferecido a Alice, os alimentos conversam com a menina, que desiste de comê-los (pois é impossível comer alguém que acabara de falar...)” (STOLF, 2002, p. 182-183).

E complementa que esse jogo de duplos sentidos, em que a boca é espaço tanto de fala como de alimentação, é evidenciado por Carroll “tanto a infinita mobilidade da linguagem, como seu encontro com as coisas e os corpos” (STOLF, 2002, p. 182-183). Deleuze explica parte desse jantar de Alice:

No jantar de cerimônia de Alice, comer o que se vos apresenta ‘ou’ ser apresentado ao que se come. Comer, ser comido, é o modelo da operação dos corpos, o tipo de sua mistura em profundidade, sua ação e paixão, seu modo de coexistência um no outro. Mas falar é o movimento da superfície, dos atributos ideais ou dos acontecimentos incorporais. Pergunta-se o que é mais grave: falar de comida ou comer as palavras? [...] E se falarmos de alimento, como evitar fazê-lo diante daquele que deve servir de alimento? [...] Como evitar comer o pudim ao qual se foi ‘apresentado’? (DELEUZE, 1998, p. 25)

Afirma Stolf que, para Deleuze, falar ou comer é exemplo da relação entre “as proposições/a linguagem e as coisas/o corpo, as duas dimensões da proposição: a designação e a expressão, a designação de coisas e a expressão de sentido” (STOLF, 2002, p. 182-183). O filósofo faz analogia dessa relação com os lados de um espelho:

É como se fossem dois lados de um espelho: mas o que se acha de um lado não se parece com o que se acha do outro [...]. Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão – sem se deter nos intermediários, manifestação, significação. (DELEUZE, 1998, p. 27-28)

As histórias de Alice são facilmente transportadas, na maioria de suas traduções, para o público infantil por possuir esse caráter repleto de humor, jogando com a linguagem, com as palavras e com o sentido delas. Expõe Leite: “o material manipulado pelo non-sense são as palavras. Um jogo de equilíbrio entre significados diversos. No mundo de Alice as emoções são rapidamente podadas e se transformam em humor” (LEITE, apud CARROLL, 1980, p. 21).

Conclui Deleuze, sobre o “sentido do non-sense”, que seria um mau jogo de palavras supor que ele dissesse seu próprio sentido. O que é jogo de palavras, dizer que o non-sense tem um sentido, que é o de não ter sentido? Então, o próprio explica:

Quando supomos que o não-senso diz seu próprio sentido, queremos dizer, ao contrário, que o sentido e o sem-sentido têm uma relação especifica que não pode ser decalcada da relação entre o verdadeiro e o falso, isto é, não pode ser concebida simplesmente como uma relação de exclusão. É exatamente este o problema mais geral da lógica do sentido: de que serviria elevarmos-nos da esfera do verdadeiro à do sentido, se fosse para encontrar entre o sentido e não-senso uma relação análoga do verdadeiro e do falso? (DELEUZE, 1998, p. 71)

Como já foi mencionado, o que se deve entender por non-sense é o oposto da ausência de sentido ao mesmo tempo em que não agrega nenhum sentido particular. Diz Deleuze (1998, p. 76): “fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidades pré-individuais e não pessoais, em suma, produzir o sentido, é a tarefa de hoje”.

3. A LINGUAGEM DA CRIANÇA Não só do non-sense um projeto da natureza do que aqui se propõe – projeto de design de brinquedo para crianças – sustenta-se, mas também da compreensão da linguagem da criança. Considerou-se, assim, fundamental neste estudo a abordagem aprofundada sobre o tema, de Steven Pinker (2002), em “O Instinto da Linguagem”, em cuja obra discute a linguagem de maneira a contemplar vários pontos interessantes que contribuem com o projeto de brinquedo. Inúmeras situações carregadas de non-sense explicam a diferença da linguagem para os adultos e para as crianças, as quais se baseiam na identificação com as pessoas que as cercam.

Acreditamos que as crianças aprendem a língua materna imitando a mãe, mas quando uma criança diz Eu se sentei! ou Eu não cabo aí dentro certamente não é uma imitação. Quero transmitir-lhe conhecimentos que pervertam sua mente ao ponto de esses dons naturais parecerem estranhos, para que você se pergunte os “porquês” e “comos” dessas capacidades aparentemente familiares. (PINKER, 2002, p. 14)

Desconstruir a fala infantil, desfragmentando-a, é uma maneira de compreender esse mundo mais especificadamente, carregado de sentidos, os quais não fazem, em seu todo, sentido para os

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adultos, com exceção de conhecimento mais aprofundado de suas pequenas partes.

A criança começa a perceber o mundo por meio dos brinquedos e das brincadeiras. É brincando que ela desenvolve seus primeiros raciocínios, suas primeiras conceituações dos vários aspectos da vida, sejam eles sociais, psicológicos, artísticos ou filosóficos, entre outros.

Cada período da infância é marcado por sensações diferentes de percepção do mundo, sensações que deixam o brinquedo mais atrativo na manipulação da criança e enquanto adulto. É esse brinquedo que propiciará momentos de nostalgia ou, até, é esse que será guardado como melhor lembrança. (Basta analisar a própria vida: quais os brinquedos e as brincadeiras que não foram esquecidos?) Notam-se, então, valores muito mais substanciais do que em brinquedos sobreviventes somente pela publicidade e pelo estímulo de compra.

Buscou-se, dessa forma, compreender a criança e, para melhor fazê-lo, realizou-se, inicialmente, um estudo sobre a teoria de Vygotsky, apresentada no livro de Teresa Cristina Rego (1995), no qual ela aponta que as relações entre pensamento e linguagem foram o assunto com o qual ele se dedicou a maior parte de sua vida. Coloca a autora, também, que “ele e seus colaboradores trouxeram importantes contribuições sobre o tema, principalmente no que se refere à questão da compreensão das raízes genéticas da relação entre o pensamento e a linguagem” (REGO, 1995, p. 63).

Rego introduz explicando que quando a criança começa a sua vida em um meio social, o pensamento e a linguagem se encontram e originam seu modo psicológico de perceber as coisas, ou seja, a conquista da linguagem marca o início de seu desenvolvimento:

a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento. (VYGOTSKY, apud REGO, 1995, p. 63)

É pelas palavras, significados, designações e sentidos que a criança começa a criar o vínculo com o meio ao qual está inserida. Quanto mais esse vínculo for explorado nas suas atividades diárias, mais facilmente ela conseguirá desenvolver uma percepção aguçada e ampla sobre assuntos diversos.

Segundo a autora, a maneira como a criança começa seus contatos sociais dá-se pela fala; logo,

o desenvolvimento da linguagem é impulsionado pela necessidade de comunicação. Lev S. Vygotsky (apud REGO, 1995, p. 64) chama essa fase de “primeiras palavras”, bem como, nos primeiros meses de vida, com o riso, o choro e as expressões faciais da criança, a fase é chamada de “estágio pré-intelectual” para o desenvolvimento da fala.

Contudo, explica Rego, antes de a criança aprender a falar, ela “demonstra uma ‘inteligência prática’ que consiste na sua capacidade de agir no ambiente e resolver problemas práticos” (REGO, 1995, p. 64), com o auxílio de objetos como, por exemplo, subir em um banquinho para pegar alguma coisa ou encher um baldinho de areia, sem o intermédio da linguagem. Segundo Vygotsky: “é o estágio pré-lingüístico do desenvolvimento do pensamento” (VYGOTSKY, apud REGO, 1995, p. 64). Nesse estágio, todavia, não há oportunidade de brincar com o sentido e o non-sense, no caso deste projeto de brinquedos, pois seria demasiado complexo para a criança que está começando a entender a linguagem, iniciada com essa “inteligência prática”, compreender algo que está entre a palavra e as coisas, sendo que ela não tem conhecimento, ainda, das palavras.

Todavia, pode-se tentar explorar uma maneira de intervir na interpretação dos adultos sobre a criança. Sendo que, segundo a autora,

Através de inúmeras oportunidades de diálogo, os adultos, que já dominam a linguagem, não só interpretam e atribuem significados aos gestos, posturas, expressões e sons da criança, como também a inserem no mundo simbólico de sua cultura. (REGO, 1995, p. 65)

É no “mundo simbólico” e na cultura em que a criança é inserida que começam as restrições e os bloqueios da sua criatividade. Porém, não há maneira de excluir essa etapa da vida da criança, porque ela ainda não conhece o “mundo real”. Mas pode-se sugerir aos pais e aos adultos que convivem com ela para deixá-la expressar seus pensamentos inventivos sem tantas restrições.

Na medida em que a criança interage e dialoga com os membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem como instrumento do pensamento e como meio de comunicação. Nesse momento, o pensamento e a linguagem se associam. Conseqüentemente, o pensamento torna-se verbal e a fala racional.(REGO, 1995, p. 65)

Portanto, somente depois de algum tempo inserida em uma cultura, em um meio de linguagem, é que a criança aprende a expressar seus pensamentos de forma verbal e a pensar no significado do que está falando, bem como saber escolher as palavras

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que irá usar para expressar o que pensa. Talvez, um foco a ser explorado pelo projeto seja essa escolha, de que maneira ela se comporta e porque ela é feita com tal preferência.

Em contrapartida, em “O Instinto da Linguagem”, Steven Pinker defende a idéia de que não são os pais que ensinam a língua aos filhos. As “aulas”, segundo Pinker, que algumas pessoas acham que os pais dão para os filhos, são denominadas Motherese em inglês (ou, em francês: Mamanaise), o que é traduzido como “Mamanhês”. Pinker (2002) explica o que são essas aulas da seguinte maneira: “Sessões intensivas de intercâmbios verbais, com exercícios repetitivos e uma gramática simplificada. (“Olhe o cachorrinho! Está vendo o cachorrinho? Aquilo é um cachorrinho!”) Na cultura contemporânea da classe média americana, criar filhos é visto como uma enorme responsabilidade, uma vigilância implacável para evitar que a criancinha indefesa fique para trás na grande corrida da vida. A crença de que o mamanhês é essencial para o desenvolvimento da linguagem faz parte da mesma mentalidade que manda os yuppies comprarem luvinhas com alvo em “lojas de material educativo” para que seus bebês encontrem as mãos mais rápido.” (PINKER, p. 39, 2002)

Steven Pinker levanta essa questão baseado em fatos de outras culturas, as quais têm o costume de ensinar coisas distintas às suas crianças e nem por isso as crianças deixam de aprender o que outra cultura ensina. Por exemplo, cita o autor:

Os Kung San do Deserto de Kalahari no sul da áfrica acreditam que as crianças têm que ser treinadas para sentar, ficar de pé e andar. Erguem cuidadosamente montes de areia em torno dos filhos para sustentá-los de pé, e, com toda certeza, cada uma dessas crianças logo se levanta por conta própria. [...] Mas outros grupos têm a mesma atitude condescendente em relação a nós. (PINKER, p. 39 - 40, 2002)

O autor sublinha ainda que, em muitas comunidades do mundo, os pais não “educam” seus filhos com mamanhês. Nem mesmo, continua Pinker, falam com as crianças antes que elas tenham domínio lingüístico [...]. Ele defende a proposição de que ninguém é certo ou errado na forma como educa suas crianças. Entretanto, critica o mamanhês nas seguintes colocações: “[...] é óbvio que as crianças pequenas não entendem uma palavra do que você diz. Portanto para que gastar saliva com solilóquios?” (PINKER, 2002, p. 40). Ele sublinha essa colocação no sentido de dar o crédito às próprias crianças sobre o que aprendem, afirmando

saberem elas coisas que não poderiam ter sido ensinadas.

O que vale pensar sobre esse futuro brinquedo caminha na direção de acrescentar aquilo que os adultos costumam bloquear na criança: sua capacidade de invenção e de criação puras, sem equivalência com nenhuma responsabilidade social ou política ou qualquer outra que pode censurar a expressão na linguagem.

Pinker cita Alice no País das Maravilhas, na suspeita de as crianças pensarem em “modo tão literal” como a história.

De maneira mais tangível, Vygotsky, segundo Rego, explica os estágios do processo do uso da linguagem como instrumento de pensamento de acordo com uma trajetória dinâmica e não-linear. Inicialmente, a criança utiliza a fala como necessidade de comunicação para resolver um problema:

Para a resolução de um problema, por exemplo, alcançar um brigadeiro que está em cima de uma geladeira, a criança faz apelos verbais a um adulto. Nesse estágio a fala é global, tem múltiplas funções, mas não serve ainda como um planejamento de seqüências a serem realizadas; assim não é utilizada como instrumento do pensamento. Vygotsky chamou essa fala de discurso socializada. (REGO, 1995, p. 66)

Aos poucos, cita a autora, a fala socializada é internalizada, ou seja, a criança tenta resolver a questão sozinha; é o chamado “discurso interior”. Define Rego que é como se a criança falasse para si mesma (sem vocalização), como no exemplo: “Preciso arrumar um jeito de alcançar esse doce. Preciso de uma escada ou um banco” (REGO, 1995, p. 66). Portanto, a fala vem antes da ação.

No aprendizado da linguagem, a criança passa a “planejar uma ação futura, a criança consegue ir além das experiências imediatas. [...] passa a poder prever, comparar, deduzir etc.” (REGO, 1995, p. 66). Vygotsky, expõe Rego, defende que há um tipo de fala intermediária que funciona de transição dos dois discursos: o socializado e o interior. Nesse estágio a criança fala alto, mas não se dirige a ninguém, como, por exemplo, “Como eu posso pegar aquele brigadeiro que está tão longe? Ah... já sei! Vou subir na mesa!” (REGO, 1995, p. 67) A autora sublinha a grande discordância desse estágio de transição entre Piaget e Vygotsky, parafraseando M. K. de Oliveira:

Piaget chamou este tipo de fala de discurso ou fala egocêntrica. [...] Como esclarece Oliveira: “Para Piaget a função da fala egocêntrica é

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exatamente oposta àquela proposta por Vygotsky: ela seria uma transição verbal de estados mentais não verbais, de um lado, e o discurso socializado e o pensamento lógico, de outro. Piaget postula uma trajetória de dentro para fora, enquanto Vygotsky considera que o discurso é de fora para dentro do indivíduo”. (REGO, p.67, 1995)

Analisando a “função planejadora da fala”, Vygotsky, apontado por Rego, parte de uma analogia da fala das crianças enquanto desenham:

As crianças menores tendem a nomear seus desenhos somente após realizá-los e vê-los. A decisão do que serão é, assim, posterior à atividade. Uma criança um pouco mais velha nomeia o seu desenho enquanto esse já está quase pronto e, mais tarde, geralmente decidem previamente o que desenharão. Nesse caso, a fala é anterior à atividade e, portanto, dirige a ação. Quando a fala se desloca para o início da atividade, uma nova relação entre fala e ação se estabelece. [...] na perspectiva esboçada, o domínio da linguagem promove mudanças radicais na criança, principalmente no seu modo de se relacionar com o seu meio, pois possibilita novas formas de comunicação com os indivíduos e de organização de seu modo de agir e pensar. (REGO, 1995, p. 67-68)

Transportando esse modo de pensar para brinquedos e brincadeiras, torna-se mais segura a escolha da faixa-etária para público-alvo do projeto, contando que crianças menores se importam relativamente menos com significados pré-estabelecidos, e crianças maiores possuem maior preocupação com o processo começo/meio/fim de uma atividade, sendo que a planeja antes de iniciá-la, logo: crianças menores são mais facilmente estimuladas inventivamente.

Sobre a questão da faixa etária da criança, Luise Weiss exemplifica períodos da infância:

Na fase de três meses a um ano é o corpo e as brincadeiras com ele, seu calor, a relação afetiva em que se fundamentam as primeiras noções de equilíbrio e segurança. Apenas com o decorrer do tempo é que a criança começa a utilizar símbolos e regras em seus jogos. Em uma constante metamorfose, aprende a denominar os objetos, redefinindo suas funções. É o momento em que se segura um pedaço de madeira e o transforma em espada, cruz, vara de pesca etc. (WEISS, 1989, p. 20)

Fazendo um paralelo com artistas, Nancy Smith (1989) expõe que as crianças estão iniciando a construção da realidade, o que constroem é o mundo do cotidiano, o mundo que vêem. Os artistas, por outro lado, criam modelos experimentais os quais ajudam a construir novas

realidades. Então, conclui: “A criança constrói para si mesma a realidade da sociedade: o artista constrói novas realidades para a sociedade” (SMITH, apud WEISS, 1989, p. 20).

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES Na educação da criança, torna-se imprescindível o uso de jogos e brincadeiras que incluam palavras; contudo, não com expressões “certas”, mas com ações em que seja explorada a maneira de pensar da criança, apontando sentido ao não-sentido, estimulando a criatividade, a escrita e a poesia.

O pensamento criativo é fator essencial no exercício para a construção de um futuro melhor; na tentativa de estimular a criança, futuro adulto, a fazer alguma diferença diante da vida e dos problemas que ela irá vivenciar. Referências como as de “Alice no País das Maravilhas” são modelos para fixar fatos no pensamento da criança, fixar de maneira a trazê-la para o mundo de uma forma paralela à “considerada correta” - porque aquela não é uma forma "errada" de aprender o mundo, mas uma forma que acontece paralelamente à educação e ao crescimento/amadurecimento da criança. Ultrapassando limites e discordando da linguagem e da designação das coisas, estas permitem excesso de sentidos (non-sense) que devem ser explorados no projeto de brinquedo.

5 CONCLUSÕES Diante do diálogo entre os autores que fundamentaram esta parte inicial do projeto, consegue-se perceber a forte influência que brincadeiras e brinquedos podem ter sobre o crescimento da criança. São os primeiros contatos, as “primeiras liberdades” com o mundo. É nisso que devemos prestar muita atenção, mas não somente, com o projeto de um brinquedo para os pequenos, explorar o lado criativo e perceptivo da criança, também relevar fatores psicológicos e sociais, os quais podem ajudar na sua educação.

Vinculando o non-sense e o “sentido” ao projeto de brinquedo - bem como jogo e brincadeira -, conclui-se que o que é realmente importante a ser explorado para essa finalidade não implica somente o uso da proposição - ou sentença - do jogo/brincadeira, mas principalmente o uso do que insiste na proposição, o expresso por ela, o que acontece, o sentido dela para a criança. É explorar, em uma simples ferramenta de ocupação infantil, muito mais do que se costuma ver, é propor à criança percepções de sentidos em vez de significados já estabelecidos, sugerir pensamentos mais amplos e um desenvolvimento menos clichê

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- em confronto à alienação provocada pela publicidade e pela televisão.

São noções básicas de como a criança pensa que precisam ser compreendidas para conseguir desconstruir a sua linguagem, para, então, poder aplicar seu sentido no brinquedo, a fim de melhor estimular seus pensamentos.

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BIAVA, Lurdete Cadorin. A metodologia da pesquisa no design como alternativa para a minimização do impacto ambiental. In CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM DESIGN, 4, 2007, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPED, 2007. 1 CDROM.

CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas: através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 7. ed. São Paulo: Summus, 1980.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. 4. ed. São Paulo: Perspectiva S.A., 1998.

LEAR, Edward. Sem Cabeça Nem Pé. Tradução de José Paulo Paes. 5. ed. São Paulo: Afiliada, 2003.

LEAR, Edward. Adeus, ponta do meu nariz. Tradução de Marcos Maffei. São Paulo: Hedra, 2003b.

LEITE, Sebastião Uchoa. Jogos e Enganos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

PINKER, Steven. O Instinto da Linguagem: como a mente cria a linguagem. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural na educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

STOLF, Maria Raquel da Silva. Espaços em branco – entre vazios de sentido, sentidos de vazio e outros brancos. Dissertação de Mestrado

em Artes Visuais no Instituto de Artes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

WEISS, Luise. Brinquedos e engenhocas: atividades lúdicas com sucata. São Paulo: Scipione, 1989.