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2.ª edição 2009 Linguagem e Pensamento Claudia Rosa Riolfi

Linguagem e Pensamento

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Page 1: Linguagem e Pensamento

2.ª edição2009

Linguagem e Pensamento

Claudia Rosa Riolfi

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© 2006-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

R585L Riolfi, Claudia Rosa. / Linguagem e Pensamento. / Claudia Rosa Riolfi. 2. ed — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.

168 p.

ISBN: 978-85-387-0225-2

1. Linguagem escrita. 2. Alfabetização. 3. Formação de professores. 4. Escrita - Ensino. I. Título.

CDD 372.634

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

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Psicanalista. Doutora em Linguística pela Unicamp. Mestre em Linguística Aplicada pela Unicamp. Professora das Metodologias de Ensino de Língua Portu-guesa, Linguística e Alfabetização da Faculdade de Educação da USP.

Claudia Rosa Riolfi

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Sumário

A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento ................................... 11

Pensar não é tão simples como parece ............................................................................. 12

O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos ............. 16

O imprevisível animal humano ........................................... 25

Os animais não se organizam do mesmo modo ............................................................ 25

É conversando que a gente não se entende... ................................................................ 27

Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é .............................. 29

O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor ......................................... 31

Concepção do homem como ser de linguagem .......... 39

A linguagem é o que dá o nosso contorno ...................................................................... 40

Alguns traços da linguagem humana ................................................................................ 42

A linguagem antes dos trabalhos de Benveniste .......................................................... 43

Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano .............................................. 53

A capacidade para a reflexão linguística se ganha na cultura .................................. 55

A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer ....................................... 57

Page 5: Linguagem e Pensamento

A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano .........................................................67

Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais ............................... 67

Introduzindo o pensamento de Vygotsky ........................................................................ 69

A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano .............................. 71

Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem ........ 79

No início, era o corpo... ............................................................................................................ 79

O conceito de pensamento verbal em Vygotsky ............................................................. 81

A dupla função organizadora da palavra.......................................................................... 83

O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança .................................................... 93

A linguagem torna o homem mais complexo ................................................................ 94

O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo ........ 96

A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação ...................................................... 98

A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança ........................................109

O papel da escola no desenvolvimento intelectual ...................................................110

Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano ................................................................112

Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos .................................................................116

Page 6: Linguagem e Pensamento

O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje ..123

A invenção da escrita .............................................................................................................123

A mutação das funções sociais da escrita ......................................................................124

O papel do professor no processo de aprender a escrever......................................127

Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo ............................................................128

Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos ...................139

O pensamento sobre a alfabetização no Brasil ............................................................139

A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa ................................................141

A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno ............................................................................144

Gabarito .....................................................................................153

Referências ................................................................................161

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Apresentação

Prezado alunoO material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase

20 anos de meu trabalho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho ten-tado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena: por que em nossos dias não surge um pensador revolucionário que formule uma ideia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo?

Onde estão hoje os gênios de outrora, aqueles intrépidos pensadores que, ao longo da história da humanidade, “suaram sua camisa”, muitas vezes prejudi-caram sua saúde, foram perseguidos por aqueles que questionavam suas “ideias exóticas” e, no final, ofereceram o inestimável presente de um novo modo de pensar sobre o mundo?

Onde estão, agora, os novos pensadores que se tornarão conhecidos mun-dialmente, terão seus nomes registrados nas enciclopédias – enfim, alterarão o estado atual do conhecimento humano? Eu quero muito saber isso e, por esse motivo, aceitei o convite para preparar este curso para você. Quem sabe você não se encanta com essa linha de reflexão e, assim, eu terei uma companhia agradável para continuar o meu trabalho investigativo?

Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se um dia desejei estudar esse assunto foi porque conclui que conhecê-lo me ajudaria a refletir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez mais rara: o momento em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever e se autoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicos os resultados de sua reflexão.

Ao pensar sobre essa dificuldade, muito se fala que o jovem de hoje não tem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento foi causado por ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colega professor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que – muitas vezes tendo perdido a esperança de construir para si um futuro melhor – se inter-rogam sobre o sentido de ler e escrever na escola.

Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive que trabalhar muito. Espero que, honrando o meu esforço, você se engaje no percurso que ora se inicia e que goste do trabalho.

Claudia Rosa Riolfi

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

O objetivo deste capítulo é convidar o leitor a se interessar por um tema que, hoje em dia, tem mais relevância social do que nunca: as conse-quências éticas da compreensão da necessidade de nós, professores, in-sistirmos vigorosamente em nos mantermos no exercício do pensamento criativo e no desafio que é a mediação da linguagem nas trocas com nossos semelhantes.

É claro para todos que um ser humano não so-brevive muito tempo se for privado de água e de alimento. Recentemente, tem se tornado evidente que, para além dessas necessidades classicamente reconhecidas como sendo as básicas, dificilmente qualquer um de nós teria sobrevivido aos primei-ros anos da infância sem receber ao menos um pouquinho de amor da-queles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você pode imaginar quanto tempo aguentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de seus familiares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém em quem confia – em suma, sem falar e sem ouvir palavras?

A observação de pessoas que passaram por longo período de isolamento, como por exemplo doentes graves ou prisioneiros, não deixa dúvidas: o pobre infeliz que está privado de trocas verbais com outros humanos logo perde o interesse em manter os cuidados de higiene e de aparência pessoal, “esque-ce” de comer nas horas costumeiras, desenvolve distúrbios do sono, perde a noção do tempo. Resumindo, tem toda sua vida mental desorganizada.

Por que isso acontece? Porque não poder falar é uma das maiores agres-sões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agir contra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem tem sobre nós, é de suma importância para refletir sobre a construção e a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem toda relevância para refletir sobre os sucessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados.

Você já imaginou como seria sua vida se fosse impedido de verbalizar seus gostos e opiniões?

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No que se segue, consequentemente, optamos por trazer alguns elementos que permitem introduzir a reflexão sobre o pensamento humano desde uma óptica que dá prioridade à linguagem, compreendida como sistema de articula-ção de signos verbais exclusivo do homem. Antes de começarmos, é importan-te esclarecer, entretanto, que as relações entre pensamento e linguagem vêm sendo, há muito tempo, alvo de polêmica entre os mais diversos estudiosos. São várias as áreas que se dedicam a elucidar essa questão, em especial, mas não exclusivamente, a medicina, a biologia, a psicologia e a linguística, sem que, en-tretanto, tenha sido possível alcançar um consenso total na forma de conceber como linguagem e pensamento se articulam para o humano. Por esse motivo, como em tudo na vida, senhor leitor, não existe apenas um lugar onde o sol brilha, sendo necessário “escolher a nossa praia!”. Vamos conhecer uma delas.

Pensar não é tão simples como pareceDesde que o mundo é mundo, os homens têm se interessado por esclare-

cer as obscuras origens de seus pensamentos. Sempre houve alguém interes-sado em dizer de onde tinha se originado uma ideia qualquer ocorrida a outro alguém, nem que fosse para lhe imputar uma origem mística, mais comumente demonológica. Embora há muito tempo tenhamos superado a chamada “época das trevas”, com certeza o leitor já teve oportunidade de testemunhar, frente a um pensamento mais estranho, a acusação de outro menos esclarecido que, piamente declara: “Isso deve ser coisa do capeta!”.

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Deixando de lado as crenças religiosas, essa modalidade de olhar o mundo é interessante porque exemplifica um tipo de raciocínio que acredita na corres-pondência direta e imediata entre uma causa e sua consequência – no caso, a

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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sugestão feita pelo diabinho como causa e o surgimento do “pensamento” na cabeça de um sujeito como consequência.

Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como se fossem nossas, as ideias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação de uma reflexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tão idiotas? Com certeza não!

Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas quali-dades e potencialidades, tem consequências nefastas para a nossa vida em socie-dade. Se for legítimo crer que para todo efeito manifesto no mundo será possível encontrar uma causa lógica, acabaremos por funcionar na crença que foi aquela dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos, do que uma bofetada... Não seria muito difícil imaginar até que ponto de destrui-ção a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres.

Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reflexão sobre as relações entre pensamento e linguagem, é importante fazer a crítica de todos os resquícios desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em nossa cultura, disfarçado de ciência.

A ciência que ignorou a importância da linguagemVisando, portanto, construir uma noção de pensamento mais adequada para

ser mobilizada no interior da escola, vamos recuperar alguns dos traços de uma das escolas da psicologia que se inscreveu dentre aquelas que não davam a devida relevância ao papel da linguagem na manutenção da nossa organização social: o behaviorismo e as linhas que dele se originaram.

Quando nos referimos a essa corrente do pensamento, provavelmente o primeiro nome de autor que nos ocorre é o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990).1 De fato, esse psi-cólogo americano se tornou o mais famoso representante do

1 Dentre inúmeros sites que contêm dados sobre a bibliografia de Skinner, pela concisão e objetividade, destaca-se o seguinte endereço, do qual retiramos alguns dados a respeito da vida do autor: <www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html>.

Você conhece as principais

ideias do behaviorismo?

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behaviorismo, uma vez que, ao longo de sua vida, empenhou-se grandemente em fazer publicidade de suas próprias ideias, na sua maioria oriundas de suas pesquisas com os animais, realizadas, por sua vez, nos moldes daquelas desen-volvidas pelo fisiólogo russo que, em 1906, publicou achados experimentais sobre o reflexo condicionado: Ivan Petrovisch Pavlov (1849-1936).

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A principal descoberta do russo ficou conhecida como condicionamento pa-vloviano, modalidade de manifestação comportamental que ele percebeu por meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experi-mentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães, que associavam o som com o gosto da carne.

Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pes-soal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias mais “subjetivas”, tais como a moral, a força da vontade e assim por diante. Conse-quentemente, Skinner costumava afirmar que o homem bom só faz o bem porque o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria, ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo.

A elaboração de Skinner, no que se refere à linguagem, é bastante coerente com os demais aspectos de sua teoria (SKINNER, 1957), ou seja, ele reduz a lingua-gem a mais um dos comportamentos que podem ser controlados. Ao longo de sua realização, o autor elaborou o conceito de condicionamento operante, ligeira-mente diferente da noção de condicionamento (uma junção simples de estímulo e resposta) que vinha sendo desenvolvida nas formas anteriores de behaviorismo.

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Nessa nova elaboração, acrescenta-se a consideração da possibilidade de o orga-nismo emitir respostas, em vez de só obtê-las a partir de um estímulo externo.

Ressalte-se, portanto, que o autor tentou explicar o aprendizado e a lingua-gem verbais dentro do paradigma do condicionamento operante, isto é, de novo sem mobilizar a categoria do pensamento como uma instância elaborada que pode mediar, por meio da linguagem, as relações entre o homem e o mundo.

Como o behaviorismo é traduzido na educação?Na educação, o behaviorismo deu origem a uma abordagem aplicada com o

intuito de se obter um determinado comportamento previamente escolhido. Para tal fim, costuma-se dar muita ênfase à utilização de condicionantes e reforçadores arbitrários, como elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos colegas etc. Para quem acredita nessa orientação teórica, que parte do princípio de uma aprendizagem mecânica, com repetições sistemáticas do tipo estímulo--resposta automáticas, o ensino consiste em um arranjo e um planejamento de condições externas que levam os estudantes a aprender, sendo de responsabili-dade do professor unicamente assegurar a aquisição do comportamento.

Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se fosse total-mente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica – criada e de-senvolvida de acordo com os princípios behavioristas – em que, se assim pode-mos dizer, o homem estaria livre do desconforto de ser possuidor da faculdade do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros. Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descri-to na obra de ficção Walden II (SKINNER, 1977).

Nesses seus devaneios, Skinner imaginou uma cultura que poderia ser inteiramente controlada por meio de um dispositivo extremamente simples: a re-compensa automática dos bons e a eliminação au-tomática dos maus. Uma olhada mais ingênua naquela sociedade poderia até nos levar a concluir que a eliminação dos maus poderia ser uma boa ideia, mas, dada a complexidade do ser humano, em face dessa idealização tentadora, resta saber como o governante do local faria para evitar os riscos inerentes à tentativa de tornar o mundo à sua imagem e semelhança. Ou seja, o que o protegeria de decretar, talvez mesmo sem o saber, que todos aqueles que são diferentes de si

É possível pensar numa sociedade totalitária e

controladora?

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são “maus”? Como ele faria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção para formar os parâmetros adotados para diferenciar o bem do mal?

Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário foi implementado: para uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamen-to. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui de nosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto que se segue só nos interessa à medida que nos oferece uma interessante abertu-ra para refletir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento.

O pesadelo dos pesadelos: uma sociedade humana sem pensamentos

É visando encontrar um caminho alternativo para introduzir as complexas e estreitas relações entre linguagem e pensamento que vamos recorrer a uma bri-lhante obra de ficção, escrita por Eric Arthur Blair, publicada pela primeira vez em 1949, sob o pseudônimo de George Orwell (2004): o livro 1984.

Sabe-se que essa novela foi inspirada na opressão dos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáfora atualíssima que nos alerta contra os perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça para servir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento.

Narrado em terceira pessoa, a obra-prima conta a história de Winston Smith, um tipo de jornalista ou historiador que, funcionário do Ministério da Verdade, exerce a função de reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Por sua vez, esse órgão onipotente e onipresente exercia feroz vigilância sobre os modos de pensar de cada cidadão, já que seu controle total se dava, justamente, pelas di-versas técnicas utilizadas para abolir o livre pensar, nomeado como crimideia.

Antes de prosseguir com a recuperação de alguns fragmentos do texto de Orwell, é importante frisar que não é a narrativa em si aquilo que nos interessa, mas a possibilidade de, a partir dessa impressionante metáfora, compreender que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das contingências histórico-culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida, determinam-no.

O pensamento de um homem é independente do

tempo no qual ele vive?

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém, como seria possível controlar o pensamento humano?

Com relação a essa questão, a obra de Orwell nos oferece um importante subsídio para reflexão. No fictício ano de 1984, para além da vigia concreta da população por meio das câmeras de vídeo e dos microfones ocultos, do desen-corajamento às atividades solitárias, da tortura física e da pura e simples elimi-nação dos membros dissonantes, o ficcionista nos mostra que, na sociedade de controle que ele vinha denunciando, o principal instrumento de controle e de manipulação do homem era a alteração artificial de sua linguagem.

Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma espécie de linguista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamen-te com outros colegas, inventar uma língua artificial para substituir a natural: a novilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma fictício desenvolvido não pela criação de novas palavras, como aparenta ser o caso dos tempos con-temporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela condensação e a remoção delas. A ideia que guiava os “intelectuais” do partido era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se referir a algo, já que é bastante difícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos, aquele algo passaria a não existir.

Antes de prosseguir, saboreemos ao menos um fragmento entrecortado da fala do linguista, criado por Orwell, em um diálogo com o personagem principal, que se interessou por conhecer maiores detalhes sobre o seu trabalho:

Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050. [...] É lindo destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificativa existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário da outra? Cada palavra contém em si o contrário. [...] Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano? [...] Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já na Décima Primeira Edição, não estaremos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciência sempre uma pausa menor. [...] Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se for abolido o conceito de liberdade? Todo mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência. (ORWELL, 2004, p. 54-55, grifos do autor)

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Lendo o extrato, podemos claramente perceber que a tese de Orwell é a de que, por meio do controle sobre a linguagem, um governo totalitário seria capaz de impedir que ideias indesejáveis viessem a ocorrer

aos cidadãos, uma vez que, completamente anestesiados pela ordem dominan-te, restaria aos cidadãos apenas uma imitação de “pensamento”.

Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do extrato que você acabou de ler, pois elas contêm uma ideia que nos é bastante cara: a de que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é fruto dos efei-tos da linguagem sobre um sujeito, efeitos esses que o criam. Por esse motivo, se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo diferente do horror retrata-do por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar.

Na atualidade, as teses behavioristas ganharam nova releitura: as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) que, nos últimos 15 anos, disseminaram-se e consolidaram-se, tanto na medicina quanto na educação. As TCC consistem em técnicas que, sob a luz da psicologia cognitivista, revisitam os estudos compor-tamentalistas emprestando-lhes uma roupagem atual e dando-lhes um caráter de prática “cientificamente comprovada”.2

As TCC visam incidir sobre o modo como o homem se comporta alterando--lhe os aspectos cognitivos. Os praticantes das diversas modalidades dessa te-rapia tomam um determinado homem e, em primeiro lugar, identificam o que julgam ser as formas distorcidas e não realistas de pensar para, depois, ajudar o indivíduo a interromper comportamentos qualificados como alterados e a subs-tituí-los por comportamentos que o terapeuta julga serem mais saudáveis.

Funcionando com a premissa da existência de um parâmetro “adequado” para nortear o comportamento humano, as TCC se propõem a livrar os cidadãos das dificuldades inerentes ao ato de decidir de acordo com o seu próprio desejo. Para tal fim, ensinam àqueles que tratam “o modo correto” de pensar e de agir, isto é, “livram” a população do livre-arbítrio.

Por acaso, esse modo de agir faz você lembrar do Partido do livro de Orwell? Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que quere-mos nos afastar completamente.

2 Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem, o cognitivo e o comportamental se inscreviam, quanto a sua fundamentação, em concepções teóricas opostas, tendo origens, tradições, precursores e problemáticas totalmente diferentes. Se para um comportamentalista “histórico” o que interessa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse esse que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivista “histórico” o que interessa são os processamentos, o modo de funcionar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicologia cognitiva, um empobrecimento teórico brutal.

Estamos longe da ficção na sociedade

contemporânea?

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Por esse motivo, é importante frisar que, atualmente, a conduta profissional ins-pirada nas TCC consiste em um fenômeno mundial que se expressa, de maneira maciça e extravagante, na formação médica e psicológica, nas revistas científicas, nos hospitais, na terapia oferecida na rede pública e nos consultórios privados e, o que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3

Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presente nessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que se refere ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos assistindo passivamente aos acontecimentos.

Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que essa conduta ganha-va hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro francês Blazy e, posteriormente, disseminando-se entre os clínicos franceses) que, recentemente, recebeu adesão de muitos intelectuais brasileiros.

Trata-se de um grupo de pessoas que, embora adotando diversas perspectivas para refletir sobre as relações entre linguagem e pensamento, não concordam com a existência de quaisquer técnicas ou abor-dagens que levem alguém a uma coerção mental. Esses pensadores têm em comum a ideia de que, na tentativa de dominar o pensamento, há em jogo um sério problema ético cujos resultados são dramáticos: a exclusão do sujeito da sua cultura.

Não é de se estranhar que, quanto mais se tenta domesticar o real, padronizar as condutas e cientificizar a avaliação dos resultados, não levando em conta as intrincadas relações entre linguagem e pensamento, mais se acaba por causar o aumento de fenômenos “bizarros” na cultura, como a violência gratuita, os crimes sem motivo, o fracasso escolar generalizado etc.

Concluindo, queremos frisar agora que, antes de tudo, somos contrários a qualquer abordagem que pregue a redução do homem a um autômato privado daquilo que, por definição, é próprio do humano: sua singularidade, seu jeito próprio de pensar e de relacionar-se com a linguagem. Por esse motivo, é impor-tante ressaltar que nossa reflexão sobre pensamento e linguagem se inscreve, portanto, nesse movimento de resistência contra o ressurgimento desse fantas-ma que, há algum tempo, julgávamos esquecido: a sociedade de controle.

3 Seguindo o padrão mundial, no Brasil, a presença das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma ferramenta de busca na internet – no caso, o Google, cujo acesso se faz no endereço <www.google.com.br> – mostra que havia, no fim de abril de 2005, 650 páginas que as veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem ser eficazes e comprovadamente superados por meio das TCC.

Estamos nos deixando controlar passivamente?

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Na contramão dessa tendência, queremos convidar você a somar esforços para a construção de um modo de refletir sobre a linguagem e o pensamento humano que, respeitando profunda e amorosamente os modos de pensar e de aprender de cada um de nossos alunos, possa ajudá-los não só a se inserirem na nossa cultura mas também a ousarem pensar criativamente e, ao inovarem, responsabilizarem-se solidariamente pelos rumos da humanidade.

Texto complementar

A novilíngua(GUERRANTE, 1999)

Há um novo linguajar na praça, talvez filho da globalização, que me obriga a refletir cada vez que ouço como se estivessem falando comigo numa língua estrangeira qualquer. Cada vez entendo menos telefonistas, re-cepcionistas, economistas, aeromoças, jornalistas, enfim, estou me isolando no meio de um palavreado confuso, muitas vezes mal traduzido, um dialeto incompreensível. É bem parecido com o português que aprendi, porque soa como português, os fonemas são da boa língua portuguesa, mas, não tenho dúvida, um português que pede tradução a cada palavra.

Dia desses liguei para um amigo meu. A secretária me disse o seguinte: “Ele não se encontra.” Entendi o que ela falou. Ele estava se procurando, e não conseguia se achar. Não era bem isso. Que seria? Ele não estava sendo encontrado no seu posto de trabalho? Quem inventou essa fórmula confusa para substituir outra muito mais simples (“Ele não está”)?

Não faz muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um ci-dadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?” Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qual-quer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela ficou muda. Não entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço, o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente andasse à procura desse prazer em falar comigo, não voltou a ligar.

Onde é que estão padronizando esse linguajar? Por que substituíram o “quem quer falar”, ou “da parte de quem devo anunciar”? Já fomos mais bem

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educados e bem mais simples. Ultimamente, estamos nos transformando em autômatos repetidores de chavões decorados.

Os economistas pegaram a palavra apoio e a substituíram por suporte, que eu tenho lá em casa para não deixar a estante cair. Trouxeram direta-mente do inglês, sem a menor preocupação com a existência de uma palavra apropriada na língua-mãe.

Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me envia-ram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá venho notando uma substituição eufemística de algumas palavras por outras supostamente mais sofisticadas. Morrer tornou-se falecer, ter virou possuir, pa-rentes foi substituída por familiares, aliás foi trocada por inclusive, vender foi vencida por comercializar, definir ocupou o lugar de decidir, pôr virou colocar (exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, felizmente). Todas foram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia.

Já havia me acostumado ao verbo deletar, palavra de boa origem latina, mas importada pelos informatas, quando ouvi um avião de traficante dizer numa entrevista que seu chefe mandara “deletar o cara”. Até bem pouco tempo, o verbo deles era apagar.

Esses informatas são de matar. Mexo no computador cheio de dedos – melhor dizer “pisando em ovos”, já que o uso dos dedos é muito óbvio no caso do computador – e ainda assim dia desses surgiu na tela uma enorme advertência: “Você executou uma operação ilegal e o programa será desli-gado.” Tremi nas bases. Logo eu, que nunca fui parar sequer no cadastro ne-gativo do Clube de Diretores Lojistas. Operação ilegal? Me senti o próprio traficante, mandando deletar pessoas. Ah, essa novilíngua, um arremedo do admirável mundo novo, parece que veio para ficar.

Atividades1. Quais as vantagens de compreender a extensão do poder que a linguagem

tem sobre os seres humanos?

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Linguagem e Pensamento

2. Quando se trata de compreender o padrão do comportamento humano, é necessário desistir de encontrar uma causa para todas as consequências. Aponte o principal motivo para isso.

3. No processo educativo, é importante que o educador dedique boa parte do seu tempo para organizar o ambiente no qual a aprendizagem se dá. Qual o motivo para isso?

Dicas de estudoHUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.

Romance inglês, publicado em 1932. Antes da obra 1984, já denunciava alguns dos efeitos da utilização de técnicas de inspiração behaviorista na educação das novas gerações, em especial, quando utilizadas como coadjuvantes da manuten-ção do poder dos governos totalitários. De forma instigante e extremamente ca-tivante, Huxley conta uma história na qual, seguindo as aventuras e desventuras do pobre Bernard Marx, tomamos conhecimento dos estragos do totalitarismo sobre a cultura e, consequentemente, sobre os modos de pensar dos cidadãos.

BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo: novela pecuária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento

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Por meio de uma alegoria, a criação de uma novela na qual os personagens principais são bovinos falantes e pensantes, Chico Buarque busca nos levar a uma séria reflexão sobre a realidade brasileira, em especial no que tange ao tra-tamento desumano que, ordinariamente, é reservado para as classes populares e aos meios que, de vez em quando, tendem a ser usados para que estes sequer tenham condições de perceber a seriedade de sua situação.

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O imprevisível animal humano

Se você é pai ou mãe de vários filhos, é proveniente de família com vários irmãos ou teve a oportunidade de conviver de perto com diferen-tes crianças por um tempo prolongado, com certeza concordará com a seguinte afirmação: não é possível prever como um ser humano vai se de-senvolver. A experiência nos mostra todos os dias que, mesmo se tratando de filhos de um casal que, supostamente, ofereceu a mesma criação para todas as crianças, ao crescer, um irmão se torna diferente do outro com re-lação aos hábitos, crenças, modos de levar a vida e assim por diante. Você já parou para pensar por que isso acontece?

Ao longo do tempo, essa questão tem despertado o interesse de vários estudiosos. Ao definir o padrão do desenvolvimento humano, deu-se para essa questão diferentes tipos de resposta, ou, dizendo de outro modo, conceberam-se modelos teóricos para explicar como nos tornamos adul-tos. Neste capítulo, vamos conhecer resumidamente alguns desses mode-los para que, em outro momento, a questão das relações entre pensamen-to e linguagem possam ser mais bem colocadas.

Assim sendo, os objetivos do presente capítulo são fazer uma compa-ração inicial entre os modos de organização social dos homens e dos ani-mais; problematizar as pretensas relações “transparentes” entre linguagem e pensamento; e expor alguns modelos diferentes que explicam como o ser humano chega a tornar-se aquilo que ele é. Mãos à obra!

Os animais não se organizam do mesmo modoSe você tem um animal de estimação que passa muito tempo em com-

panhia dos humanos, deve estar, no mínimo, desconfiado do fato de que, talvez, as diferenças entre nós e eles não sejam assim tão grandes como pensamos que sejam. Particularmente quando os criamos, temos essa im-pressão de que a coisa funciona quase como se pudéssemos entender o que eles “pensam” e “desejam”.

Essa aparente “compreensão” dos modos de pensar de nossos animais se dá porque sua gama de necessidades é bastante limitada se comparada às

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nossas. Qualquer um sabe dizer quando um cachorrinho precisa de água, por exemplo; mas, venhamos e convenhamos, seria impossível descobrir se ele pre-fere mineral, importada, com ou sem gás etc. Somos, portanto, obrigados a es-perar sua reação frente ao que lhe oferecemos para, a posteriori, poder afirmar se era aquilo que ele “queria” ou não.

Quem tem contato com filhos ou sobrinhos sabe que, com as crianças, a coisa é muito diferente. Quando uma delas decide nos pedir um presente, não se trata de um presente qualquer, mas, pelo contrário, de uma demanda que vem repleta de especificações. Não nos dizem simplesmente “Eu quero um brin-quedo!”, mas “Eu quero uma boneca Polly, com o cabelo loiro, que venha com cinco roupas para trocar e não pode ser igual àquela que você me deu no ano passado!”. E ai de você se não achar o modelo exato!

Em suma, por meio desses exemplos iniciais, estamos tentando mostrar que, enquanto um animal é bastante previsível, uma vez que se acha mergulhado no “mundo real” e premido por suas necessidades instintuais, nós, humanos, somos imprevisíveis. Como somos seres de linguagem, aquilo que compreendemos serem as nossas necessidades básicas não é plenamente dominado pelo bom senso da sobrevivência da espécie, mas grandemente determinado pela discur-sividade de nosso tempo.

Quadro 1 – Modos de organização social dos humanos e dos demais ani-mais que conseguem viver em grupo

Os animais Os seres humanos

São regidos por seus instintos. Sofrem fortíssima influência da cultura na qual estão inseridos.

Têm uma organização grupal bastante rígida e limitada, não conseguindo inovar em sua “vida social”.

Podem encontrar seu “lugar social” dentro da organização grupal na qual estão inseridos e, se assim o desejarem, alterá-lo.

Não conseguem transmitir a experiência por meio das gerações: o que um animal “apren-de” morre consigo.

Acolhem e educam os novatos, introduzindo--os na cultura e no saber acumulado pelos seus antepassados.

Não podem planejar o futuro. Utilizam, muito frequentemente, a linguagem como um campo no qual é possível planejar e projetar o futuro.

Não podem “comunicar-se” para além do re-gistro limitado de suas necessidades básicas.

Podem utilizar a linguagem não apenas para comunicar suas necessidades imediatas mas também para criar, emocionar, alterar a pró-pria realidade etc.

São muitíssimo previsíveis no que se refere aos seus padrões de evolução.

Têm seus modos de evolução grandemente variáveis.

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O imprevisível animal humano

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Estudando o quadro 1, é importante compreender que refletir sobre o pen-samento humano, sem levar em conta sua inserção cultural e sua relação com a linguagem, é pensar que não passamos de animais que sabem se vestir de modo um pouco mais enfeitado.

Nós que nos preocupamos com a educação e com a formação das novas ge-rações precisamos ir um pouco além disso. Precisamos, para poder nos apro-ximar do padrão de pensamento de nossos alunos, compreender que, como consequência do fato de falarmos, as relações entre nós não são nem tão homo-gêneas nem tão estáveis como parecem. Onde quer que olhemos mais de perto, há equívoco, e ele tem consequências. Passemos então a esse tópico.

É conversando que a gente não se entende...Um longo tempo se passa até que possamos declarar que o filhote do humano

está de posse de um sistema linguístico constituído à moda dos adultos. Embora ele “fale” aproximadamente desde os 13 meses, essa fala, para ser analisada conve-nientemente, tem de ser lida como sendo uma produção que está sendo efetuada por um sujeito para quem o sistema linguístico ainda está em constituição.

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Felizmente para os bebês, suas mães ignoram esse fato e tratam suas produções rudimentares, frágeis e imperfeitas como se fossem análogas àquelas que saem de nossas bocas. Isso significa que, na sua imensa sabedoria, essas mamães podem en-trever no jovem humano uma inteligência igual à sua, embora ele ainda não tenha tido tempo de vida para se traduzir por meio de palavras articuladas.

Supomos quais sejam essas palavras e nos dirigimos aos nossos filhos muito jovens como se eles pudessem entender o que estamos falando. A informação

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que se segue fica entre nós para que não corramos o risco de levar uma mamãe a parar de fazer o que é tão importante que elas façam: eles não entendem nada! Somos nós, os adultos, que, por meio de alguns indícios (pequenos ruídos, gestos e olhares), interpretamos o que os nossos filhos “dizem” como se fosse linguagem.

Mas não há qualquer problema nisso, como já adiantamos. O problema se coloca quando nós, os educadores, esquecemo-nos desse processo inicial e sequer leva-mos em consideração que, em sua juventude, muitos de nossos alunos também não entendem o que estamos falando, embora pareça o contrário, pois, assim como o faz o bebê pequeno, também reagem à nossa fala. A seguir, vamos narrar uma pequena história verídica, ocorrida com uma amiga, que é fonoaudióloga, e seu filho único, na ocasião, prestes a comemorar o seu quinto aniversário.

Trabalhando nos preparativos para a festa de aniversário de seu filho, essa amiga estava ao telefone, falando com fornecedores responsáveis pelo aluguel do salão, pelos convites etc. Seu filho, muito feliz e animado com os cuidadosos preparativos, permanecia sentado muito quieto, atento e silencioso ao seu lado, dando mostras de estar adorando a homenagem que estava recebendo.

De repente, o menino se levantou e disse: “Mãe, estou muito decepcionado com você. Não sou mais seu amigo, eu não poderia imaginar que logo você ia fazer uma maldade dessa comigo!” Muito surpresa, a mãe permaneceu perplexa por alguns momentos, sem saber o que dizer. Ela se interrogava: o que teria ofen-dido tanto o seu filho? Sua única hipótese era a de que, em seu último telefone-ma, dirigido a sua própria mãe, ela tivesse se alongado um pouco demais, desse modo entediando seu filho. Mas, mesmo assim, isso não seria uma maldade.

Mais calma, foi conversar com o filho, perguntando que maldade ela havia feito para perder sua amizade. Muito sério, ele respondeu: “Mãe, nós combinamos que

só convidaríamos gente legal para a minha festa e você me trai e convida a Má Licuia.” Não tendo qualquer pessoa na sua lista de convidados que se chamas-se Licuia, a mamãe estava cada vez mais confusa, até que, conversa vai, con-versa vem, pudesse perceber, até pelo seu treinamento como fonoaudióloga, que esse exótico personagem havia nascido durante a conversa com a avó do garoto. Combinando os detalhes da vinda de sua mãe para a festa, ela, que de-sejava tê-la em casa durante todo o final de semana, havia dito “Mamãe, venha na sexta, já de mala e cuia.”

Como nossas palavras são escorregadias, nosso jovem amigo, ao ouvir uma ex-pressão idiomática que ignorava – no caso, “trazer a mala e cuia” – interpretou-a

Você já imaginou quantas “Licuias” moram na cabeça de

nossos jovens alunos?

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como pôde, entendendo que sua mãe havia pedido a sua avó que, ao vir para a sua festa, trouxesse também a Má Licuia! Prosseguindo com nossa reflexão, en-tretanto, você talvez não ache tão engraçado passar a imaginar que, dado que a homofonia é um fato concreto, todos os dias centenas de Licuias nasçam em nossas salas de aula sem que sequer sejamos comunicadas ou comunicados de seu aparecimento no mundo. Nós as desconhecemos, mas elas estão por aí, im-pondo sua presença no curso dos pensamentos de nossos alunos e fazendo com que, ao contrário do que costumeiramente esperamos, eles pensem de modos que sequer podemos imaginar.

Modos diferentes para explicar como a gente se torna o que é

É chegada a hora de esclarecer que a discussão que estamos desenvolvendo ao longo deste capítulo só tem sentido a partir da óptica de um referencial teóri-co que leve em conta a imprevisibilidade do animal humano. É compreendendo que não é possível fazer uma correspondência imediata entre o homem e mode-los preestabelecidos de desenvolvimento que podemos nos responsabilizar pelo ato educativo e nos posicionar de modo mais eficaz em nossas salas de aula.

No quadro 2, o leitor encontrará, de modo muito sucinto, uma sinopse de três grandes vertentes da análise do desenvolvimento humano.

Quadro 2 – Três possibilidades de modos de análise do desenvolvimento humano

Grande modelo Comportamenta-lista

Teleológico Rizomático

Crença predomi-nante

Existe influência onipotente dos estí-mulos do meio sobre o humano.

Existe um padrão de desenvolvimento biológico que segue seu próprio curso, em alguma medida, inde-pendente do meio.

Não existe unicida-de, nem nos padrões de comportamento nem na história de vida de cada um de nossos alunos.

Papel do adulto que deseja exercer uma influência do

tipo educativo

Controlar rigida-mente os estímulos fornecidos pelo meio para a criança, de modo a proporcio-nar um aprendizado feito de “modo correto”.

Ficar atento às mani-festações da criança, de modo a perceber se ela está se desen-volvendo de “modo correto”.

Respeitar a singulari-dade de cada sujeito e, consequente-mente, fornecer-lhe um amplo leque de experiências culturais para que ele possa fazer seu próprio percurso.

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Embora de forma muito esquemática, e correndo o risco de algum reducio-nismo simplificador, o quadro 2 nos mostra que, na contemporaneidade, cami-nhamos cada vez mais para a compreensão de que um ser humano, ao con-trário de outros animais, não tem o curso de seu pensamento completamente determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie. Não podemos ser reduzidos a esse nível da existência de um contato pleno, não mediado, entre o corpo e o mundo. Pelo contrário, temos nosso encontro com a realidade de maneira parcelar e fragmentada e, a partir disso, construímos nosso padrão de pensamento.

Gilles Deleuze e Félix Guattari são os precursores de um modo de pensar que, por levar em conta as diversas ramificações de uma dada realidade, ficou conhecido como “modelo rizomático”. Sua obra mais conhecida denomina-se Mil Platôs, cuja edição brasileira iniciou-se em 1995, tendo sido concluída dois anos depois. Trata-se de uma obra muito importante para o aprofundamento do assunto que estamos aqui tratando, uma vez que questiona a crença na exis-tência, no pensamento humano, de uma tendência natural para uma verdade única. Em particular, interessa-nos de perto a introdução do primeiro volume (Introdução: rizoma), em que se postula um sujeito capaz de conectar-se com as multiplicidades, de maneira não-linear. Do ponto de vista dos autores, a escrita rizomática realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui para a abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência.

Para concluir esta parte de nosso estudo, convido o leitor para refletir sobre um fragmento do importantíssimo trabalho em que Milton Santos versa sobre a precariedade da percepção que podemos ter sobre as coisas.

As abordagens fundamentadas na percepção individual têm seu ponto de partida no processo do conhecimento. Este é o resultado da apreensão da realidade contida em um objeto. Devido ao fato de que o principal interessado neste mecanismo, ou seja, o sujeito, é ao mesmo tempo um ser objetivo e um microcosmo, o encontro entre objetividade da coisa (ou a coisa objetificada) e a subjetividade de seu decifrador permite uma variedade de percepções. A coisa permanece una, total, intacta, mas as modalidades de sua percepção são diversas, parcelares, frequentemente deformantes. (SANTOS, 2002, p. 92-93)

É com essa lição de humildade sobre o quanto podemos compreender de nossa realidade nos bolsos, se assim podemos dizer, que vamos concluir este capítulo, tematizando o papel central que a pesquisa sobre os padrões de pen-samento de cada um de nossos alunos tem para nossa prática docente.

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O professor-detetive ou, simplesmente, o bom professor

Se entendermos que o pensamento humano está longe de se desenvolver de forma linear, compreendemos que, para sermos eficazes em nosso ato peda-gógico, não devemos pensar que nossos alunos são completamente previsíveis. Pelo contrário, será bastante saudável ter em mente a necessidade de “realizar um trabalho de detetive” para elucidar o modo pelo qual cada um aprende.

Para ilustrar que tipo de trabalho estamos nomeando por meio da metáfora do detetive, vamos, desta vez, trazer como exemplo a literatura de mistério, cujo precursor básico é Edgar Allan Poe.

Edgar Allan Poe (1809-1849), foi um genial escritor americano que se tornou conhecido em todo o mundo, sobretudo por seus contos de mistério e terror, que constituíram uma fonte de inspiração direta para a renovação literária europeia no final do século XIX. Tendo escrito várias histórias que têm como personagem principal o francês Auguste Dupin, inteligentíssimo nobre decaído que se dedica a desvendar crimes insolúveis como fonte de diversão e de estímulo intelectual, acabou por fundar a moderna novela de detetive.

Poe escreveu uma obra tão extensa quanto famosa, sem dúvida, digna de comentários. Nesse momento, interessa-nos, em especial, relembrar um de seus personagens mais célebres: Auguste Dupin.

Mestre do raciocínio lógico, Dupin enfatizava todos os pormenores relativos ao caso de seu interesse, anali-sando, com precaução, todas as estranhas possibilidades de comportamento do gênero humano, do qual era exímio conhecedor. Materia-lista congruente, não acreditava no misticismo e, por este motivo, direcionava as investigações de maneira bastante objetiva, de acordo com métodos investigató-rios, tarefa que era facilitada por seu caráter extremamente observador.

Dupin não ficava trancado em sua mansão fantasiando como os crimes teriam ocorrido: ele trabalhava em uma dupla vertente: levava em conta o caráter particu-lar de cada um dos suspeitos, buscando sistematizar qual modo de agir era ou não condizente com a linha de conduta em geral; e examinava atentamente os indícios

Você conhece o famoso Dupin?

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materiais que cercavam a cena do crime. No entrecruzamento dessas duas verten-tes, o magnífico francês conseguia descobrir os padrões de pensamento daqueles a quem se dedicava, podendo compreender melhor o curso de suas ações.

Alertando o leitor para não se esquecer do modus operandi do detetive, vamos terminar este texto convidando-o a encarnar um pouco o Dupin quando entra em sala de aula. Se é verdade que os alunos, como todo ser humano, são imprevisíveis, não é menos verdade que investigar seus padrões de pensamento pode se tornar um aliado importantíssimo na tarefa pedagógica.

Texto complementar

Os crimes da rua Morgue(POE, 1974, p. 133-136)

Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós ocupados com os pró-prios pensamentos, havia já uns 15 minutos que nenhum de nós dizia uma só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras:

— A verdade é que ele é mesmo um sujeito muito pequeno e daria mais para o teatro de variedades.

— Não pode haver dúvida alguma a respeito – respondi, inconsciente-mente, e sem reparar a princípio (tão absorto que estivera em minha medi-tação) a maneira extraordinária pela qual as palavras de meu companheiro coincidiam com o objeto de minhas reflexões. Um instante depois dei-me conta do fato e meu espanto não teve limites.

— Dupin – disse eu com gravidade –, isto passa as raias da minha compre-ensão. Não hesito em dizer que estou maravilhado e mal posso dar crédito a meus sentidos. Como é possível que soubesse você que eu estava pensando em...? – Aqui detive-me para certificar-me, sem sombra de dúvida, se ele re-almente sabia em quem pensava eu.

— ...em Chantilly? – disse ele. – Por que parou? Não estava você, justa-mente, a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à represen-tação de tragédias?

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Era esse precisamente o assunto de minhas reflexões. Chantilly era um antigo sapateiro-remendão da rua de S. Dinis que, fanático pelo teatro, se atrevera a desempenhar o papel de Xerxes, na tragédia de Crébillon, do mesmo nome, tendo por isso merecido críticas violentas.

— Diga-me, pelo amor de Deus – exclamei –, qual foi o processo – se é que há algum – que o capacitou a sondar o íntimo da minha alma.

Eu estava, na verdade, mais surpreso do que desejava parecer.

— Foi o fruteiro – respondeu meu amigo – quem levou você à conclusão de que o remendador de solas não tinha bastante altura para o papel de Xerxes et id genus omne.

— O fruteiro?! Você me assombra... Não conheço fruteiro de espécie alguma.

— O homem que lhe deu um encontrão, quando entramos nesta rua há talvez 15 minutos.

Lembrei-me então de que, de fato, um fruteiro, carregando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase me derrubara acidentalmente, quando haví-amos passado na rua C... para a avenida em que nos achávamos. Mas o que tivesse ido que ver com Chantilly é que eu não podia compreender.

Não havia em Dupin uma partícula sequer de charlatanice.

— Vou explicar – disse ele – e, para que você possa primeiro compreen-der tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo o curso de suas meditações, desde o momento em que lhe falei, até o do encontrão com o tal fruteiro. Os elos mais importantes de cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro.

Há bem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de sua vida, procurado divertir-se remontando os degraus pelos quais atingiram certas conclusões particulares de suas ideias. Esta ocupação é, não poucas vezes, cheia de interesse e o que a experimenta pela primeira vez fica admi-rado diante da aparente distância ilimitada e da incoerência que há entre o ponto de partida e a chegada. Qual não foi pois o meu espanto quando ouvi o francês falar daquela maneira, e não pude deixar de reconhecer que ele havia falado a verdade. Continuou:

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— Estávamos conversando a respeito de cavalos, se bem me lembro, justamente antes de deixar a rua C... Foi o último assunto que discutimos. Ao cruzarmos na direção da avenida, um fruteiro, com grande cesto sobre a cabeça, passando a toda pressa à nossa frente, lançou você de encontro a um monte de pedras soltas, escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu aborrecido ou contrariado, resmungou umas palavras, voltou-se para olhar o monte de pedras e depois continuou a caminhar em silêncio. Não estava particularmente atento ao que você fazia, mas é que a observação se tornou para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. Você manteve os olhos fixos no chão, olhando, com expressão mal-humorada, os buracos e sulcos do pavimento (de modo que vi que você continuava pensando ainda nas pedras), até que alcançamos a pequena travessa Lamartine, que foi calçada, a título de experiência, com tacos de madeira, solidamente reajustados e fixos. Ali, sua fisionomia se iluminou e percebendo que seus lábios se moviam, não tive dúvida que você murmurava a palavra esterotomia, sem vir a pensar em átomos e portanto nas teorias de Epicuro. Como não faz muito tempo que discutimos este assunto, lembro-me de lhe haver mencionado quão singu-larmente, embora muito pouco notado, as vagas conjecturas daquele nobre grego tinham tido confirmação, com a recente cosmogonia nebular, e vi que você não se conteve e erguesse os olhos para a grande nebulosa de Órion, coisa que eu esperava que você não deixaria de fazer. Você olhou, pois, para cima e tinha então a certeza de haver acompanhado estritamente o fio de suas ideias. Naquela crítica ferina que apareceu a respeito de Chantilly, ontem, no Museu, o satirista, fazendo algumas maldosas alusões à mudança de nome do remendão ao calçar coturnos, citou um verso latino, a respeito do qual temos tantas vezes conversado. Refiro-me ao verso Perditit antiquum litera prima sonum, que, segundo expliquei a você aludia a Órion, que antigamente se escrevia Urion, e, por causa de certa mordacidade, ligada a esta explicação, estava eu certo de que você não poderia tê-la esquecido. Era, portanto, bem claro que você não deixaria de combinar as duas ideias de Órion e Chantilly. Que você as havia combinado vi pela espécie de sorriso que lhe pairou nos lábios. Pensou na imolação do pobre remendão. Até então estivera você a caminhar meio curvado, mas naquele momento você se endireitou, ficando bem espigado, a toda altura. Certifiquei-me então que você estivera pensan-do na pequena estatura de Chantilly. Neste ponto interrompi suas medita-ções para observar que, como, de fato, era ele um sujeito muito baixo, o tal Chantilly daria melhor para representar no teatro de variedades.

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Atividades1. Qual o principal motivo para que o professor precise estar constantemente

atento para o quanto os seus alunos estão compreendendo de suas palavras?

2. Por que diversificar as ofertas de conteúdos e de tipos de atividades em uma sala de aula é importante?

3. Por que não é lícito que um professor se sinta o dono da verdade?

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Dicas de estudoRIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233.

Analisando exemplos concretos de diálogos entre adultos e uma mesma criança em dois diferentes momentos de sua vida (aos dois e aos sete anos), nesse trabalho procuramos mostrar como a propriedade de a linguagem causar o equívoco nas trocas verbais não é, ao contrário do que parece, uma coisa ne-gativa. Se bem utilizada, pode, inclusive, acabar sendo solidária com o exercício da expressão verbal criativa e espirituosa, podendo prestar-se como importante auxiliar na construção de uma relação menos autoritária entre adulto e criança.

POSSENTI, Sírio. Os Humores da Língua: análises linguísticas de piadas. Campi-nas: Mercado de Letras, 1998.

Aprender muito sobre a linguagem e seu funcionamento e, ainda por cima, dar boas gargalhadas é o que o leitor conseguirá como lucro ao estudar o livro de Possenti. Com um estilo claro e bastante didático, o autor parte de exemplos de peças linguísticas concretas – no caso, textos de piadas – para mostrar os dispositivos linguísticos utilizados comumente para fazer rir. Aqui vai uma das piadas analisadas por Sírio para animá-lo para a leitura:

— Sabe o que o passarinho disse pra passarinha?

— Não.

— Qué danoninho?

Gostou? Então leia o livro para entender por que a fonologia é um importan-te recurso na concepção dessa piada, bem como no desvelamento dos modos pelos quais ela nos faz rir.

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Você já parou para pensar em quantas pequenas mentiras inocentes estamos prontos a contar ao longo do dia em nome da manutenção de nossa boa convivência social? Estamos tão acostumados com esse tipo de procedimento que sequer chamamos essas pequenas omissões de menti-ra. Por exemplo, se o seu superior hierárquico chega bravo, perguntando “Por que você não começou a tarefa que eu lhe pedi ainda?”, parece-nos perfeitamente normal responder algo como “Hoje o dia foi muito corrido!” quando a resposta verdadeira seria: “Estou morta de preguiça!”.

Não pense você que nascemos sabendo nos utilizar desses dispositivos retóricos em nome da diplomacia. Quando somos muito pequenos, ainda inocentes, costumamos responder tudo o que nos vem à cabeça, mesmo quando uma pergunta em-baraçosa é feita. Todo mundo já deve ter presencia-do uma resposta do tipo “Porque não fui com sua cara!” quando um adulto imprudente perguntou a um molequinho “Por que você não me deu um beijo?”.

Ou seja: quando somos crianças, utilizamos a linguagem primordial-mente para nos comunicar, para dizer, com clareza, a parcela de nossos pensamentos que conseguimos atingir. Isso porque, na nossa inocência, confiamos em todo mundo e não calculamos que, às vezes, um prejuízo a nossa imagem pode ter resultados catastróficos para o andamento da nossa vida.

Como éramos ingênuos! Desconhecíamos a ironia, a denegação, a ocultação deliberada de nossas ideias, as convenções sociais – enfim, tudo aquilo que faz com que, em grande parte da vida da sociedade, usemos uma língua justamente para ocultar o que estamos pensando. Quem tem dúvida sobre isso se lembre do que respondeu a última vez que sua chefe, com quem você tem mantido relações delicadas, acabou de cometer um desastre total no cabelo e perguntou entusiasmada: “Não ficou lindo?”. Numa situação dessas, pensar rápido nos leva, justamente, a encontrar

Que efeito tem sobre você um

adulto que fala tudo o que pensa, doa a quem doer?

Concepção do homem como ser de linguagem

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uma forma polida de não contrariar a dama, se formos escrupulosos, sem exata-mente mentir, dizendo algo como “De fato, você mudou bastante!”.

Ou seja, mais tarde, aprendemos que a vida social tem muito mais detalhes do que podíamos alcançar em nossa inexperiência. Quando adultos, usamos as palavras para lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situação a nosso favor, acalmar-nos e muitas outras funções que, legitimamente, não podem ser chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as pa-lavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse manter as informações que possuímos no mais absoluto sigilo.

Por um motivo ou por outro, que uma coisa fique clara: é o exercício da lin-guagem, ou na argumentação ou na tentativa de manter nossa privacidade in-tocada, que nos ajuda a perceber nossa identidade, nosso direito a um espaço próprio, cuja conquista deve se renovar todos os dias, na luta intransigente contra os fofoqueiros, os intrometidos, as pessoas que gostam de se aproveitar dos outros e assim por diante.

Por esse motivo, o objetivo deste capítulo é convidá-lo para se aproximar do con-ceito de linguagem tal como é visto no interior dos estudos linguísticos. Trata-se da ideia de que a linguagem é um sistema articulado que, consistindo em uma faculda-de específica do ser humano, fornece-lhe sua essência de ser de linguagem.

A linguagem é o que dá o nosso contornoDa perspectiva que ora adotamos, a linguagem é aquilo que transforma cada

ser humano que vem ao mundo em humano. Trata-se de uma atividade exclusi-va do homem, que, ao constituí-la, organiza seu mundo e suas relações sociais e, a partir dessa organização, dá um estilo peculiar aos seus modos de expressão em diversas instâncias. Se não tivéssemos a linguagem, dificilmente formaría-mos famílias que se mantêm por um longo tempo ou realizaríamos sonhos de infância ou enterraríamos nossos mortos.

De onde partiu esse modo de ver as coisas? A formalização de um modo de ver a linguagem como sendo parte da natureza específica do homem encontra--se nas ideias que o linguista francês Émile Benveniste (1902-1976) pôde criar e registrar na passagem da década de 1960 para a de 1970. Na impossibilidade de expor aqui toda a extensa obra desse autor, vamos nos limitar a dois de seus tra-balhos, que tematizam o fato de que o uso de uma linguagem é uma capacidade meramente humana e foram publicados originalmente em 1952 e em 1958.

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É, portanto, “na linguagem e pela lingua-gem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1988, p. 286). Lendo esse frag-mento que acabamos de citar, esperamos que o leitor perceba que, para esse autor, homem e linguagem formam uma unidade indecomponível, uma vez que, tirando-se a linguagem de um sujeito, pouco mais lhe resta de diferente dos animais. Consequentemente, não é aqui o caso de pensar o homem como alguém que tem a linguagem, mas, ao contrário, de concebê-lo como alguém que é feito por ela.

Admitir a ideia de que somos “seres de linguagem” exige abandonar a con-cepção de que a linguagem verbal é um instrumento de comunicação como outro qualquer, como, por exemplo, a utilização dos sinais de fumaça entre os indígenas. Benveniste trabalhou duramente para convencer seus pares de que esse modo de ver as coisas consistia em um erro. Para ele, humano e linguagem são feitos da mesma matéria, não podendo ser separados um do outro.

O corajoso francês se afastou, portanto, da concepção de linguagem que estava em alta naquela época afirmando que, ao se refletir sobre a linguagem, não se pode criar uma ilusão segundo a qual ela estaria fora da natureza humana. Assim discorre o estudioso:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (BENVENISTE, 1988, p. 285)

De acordo com Benveniste, ao inserirmos um jovem humano no sistema lin-guístico e na produção linguageira, que nossa cultura vem acumulando ao longo do tempo, estamos fazendo com que esse pequeno animal se torne um homem. A linguagem tem nessa missão a dupla tarefa de fazer de um humano aquilo que ele é e, para além disso, de fornecer-lhe os dispositivos para se reconhecer como um eu, para ter uma identidade.

Compreendendo que uma pessoa só pode se anun-ciar como sujeito quando se refere a si próprio por meio da utilização da primeira pessoa do singular (eu), o autor faz uma importante afirmação sobre o fundamento da subjetividade:

“É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Se quisermos refletir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele sobre si mesmo.” (BENVENISTE, 1988, p. 288)

A linguagem humana é muito mais do que um instrumento

de comunicação.

Se bicho não fala, o que é que ele faz?

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Ou seja: poder referir-se a si próprio, compreendendo-se como diferente de todos os demais de sua espécie, é prerrogativa do homem, uma vez que, sendo efeito de linguagem, não é compartilhada com nenhum outro ser vivo.

Neste ponto da reflexão, é comum que ocorra ao leitor a seguinte dúvida: se não podemos chamar de linguagem aquilo que um animal faz, como podemos compreender os fenômenos de comunicação que, com certeza, estão lá presen-tes? Neste momento, as ideias de Benveniste (1952) também são importantes o suficiente para que nela nos detenhamos com mais detalhes.

Alguns traços da linguagem humanaBenveniste sempre foi muito claro ao afirmar que, aplicada ao mundo animal,

a noção de linguagem só tem crédito por um abuso de termos. Mesmo quando emitem ruídos, como é o caso do papagaio, eles não configuram um modo de expressão que tenha os caracteres e as funções da linguagem humana. Ao entrar em contato com alguns estudos que biólogos vinham fazendo para elucidar o comportamento das abelhas, viu aquela sua certeza vacilar e teve necessidade de se aprofundar mais nessa comparação.

Por um momento, teve sua certeza abalada ao considerar que, como tudo parecia indicar, as abelhas tinham um modo muito eficaz de se comunicarem entre si, a saber:

Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o voo uma solução açucarada por meio da qual cai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto se alimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelha volta depois à sua colmeia. Alguns instantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre as quais não se encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colmeia. Esta deve haver prevenido as companheiras. É realmente necessário que estas hajam sido informadas com precisão, pois chegam sem guia ao local que se encontra, frequentemente, a grande distância da colmeia e sempre fora de sua vista. Não há erro nem excitação na localização: se a primeira escolheu uma flor entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após a sua volta se atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou às companheiras o lugar de onde veio. (BENVENISTE, 1988, p. 61)

Retomando os estudos de Karl von Frisch, o autor descobriu, então, que as abelhas conseguem ser muito precisas no repasse de dados, tais como distância da flor encontrada, sua posição exata e a natureza do achado por meio da dança. Ou seja: as abelhas conseguem comunicar-se com seus pares transmitindo infor-mações úteis para a sobrevivência da espécie, mas não o fazem com o auxílio de qualquer tipo de interação verbal.

Descobrir isso sanou a dúvida de Benveniste. Conclusivamente, para ele, a comunicação animal e a linguagem humana são bastante diversas em relação

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a sua essência. O caráter específico da primeira é “o de propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que é típico do nosso simbolismo e o fundamento da tradição linguís-tica” (BENVENISTE, 1988, p. 56). Verifique, no quadro 1, uma sinopse da compa-ração feita pelo autor.

Quadro 1– Comunicação das abelhas versus linguagem humana

Comunicação da abelha Linguagem humana

Comunicação gestual: a mensagem é restrita à dança, sem intervenção de um aparelho vocal.

Comunicação vocal: a mensagem restrita tem a voz como seu principal suporte.

Só ocorre em condições que permitem a per-cepção visual.

Não sofre os limites da percepção visual.

Sua mensagem não provoca qualquer tipo de resposta no ambiente, não há diálogo.

Falamos com aqueles que nos falam, ou seja, sempre provocamos algum tipo de resposta no ambiente.

Não há possibilidade de reprodução da men-sagem desvinculada do testemunho empíri-co, da experiência objetiva.

No diálogo, a referência à experiência objetiva e a reação à manifestação linguística se mistu-ram ao infinito, livremente.

Não é possível analisar a mensagem das abe-lhas: podemos ver apenas seu conteúdo global.

Caracteriza-se pela capacidade de ser poten-cialmente infinita, uma vez que, cada enun-ciado permite análise e rearranjo de suas par-tes com as de outros enunciados.

Trata-se de um código de sinais. Vai muito além de um código de sinais, uma vez que é fonte de criatividade.

A linguagem antes dos trabalhos de BenvenisteAté o século XIX, antes que os estudos de gramática comparada estivessem

se solidificado, pensava-se que uma língua é uma coletânea de palavras que, ao darem nome aos objetos do mundo, serviam para a expressão do pensamento.

Essa visão da linguagem, como uma espécie de coleção de palavras, foi su-perada quando, de 1907 a 1911, Ferdinand de Saussure ofereceu na Universida-de de Genebra três cursos nos quais transmitiu oralmente os fundamentos da linguística moderna. Combatendo a visão do leigo, ele substituiu o conceito de palavra pelo de signo linguístico, ou seja, a menor unidade completa que tem um significado.

No quadro 2, o leitor encontrará de forma esquemática o modo pelo qual Saussure concebeu o signo linguístico.

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Quadro 2 – Composição do signo linguístico

Signo Linguístico:Significante

Significado

Analisando a composição do signo linguístico registrada no quadro 2, pode-mos perceber que Saussure, pela primeira vez, pôde perceber que a palavra não é monolítica. Ao contrário, trata-se de uma unidade de duas faces, conforme segue:

O significante � – trata-se da “imagem acústica” de uma palavra, isto é, aqui-lo que nossos ouvidos captam e o cérebro registra, mesmo que não en-tendamos a língua em questão. Apenas por amor à clareza, propomos a seguinte situação para exemplificar: se você, leitor, não fala nem entende nenhuma palavra de japonês e acaba de chegar em Tóquio, você vai ou-vir muitas “palavras”, mas não vai entender nenhuma, ou seja, não vai ter acesso ao signo como um todo. Os sons articulados que saem da boca dos japoneses e chegam aos seus ouvidos são os seus significantes.

O significado � – trata-se do conceito ao qual a palavra remete. Quando temos conhecimento de mundo, podemos muito bem discutir o conceito veicula-do por um dado significante, mesmo que não conheçamos a língua na qual ele foi originariamente cunhado, uma vez que os significados relacionam-se ao campo das ideias, e não de uma ou outra língua em particular. Desse modo, voltando para nosso exemplo de sua chegada em Tóquio, você pode muito bem, digamos, discutir o significado do haraquiri na cultura tradicio-nal japonesa com o primeiro japonês que fale português que você encon-trar, mesmo que não aprenda a pronunciar a palavra corretamente.

Por meio dessa dissociação, Saussure pôde dar um segundo passo bastante importante para a linguística moderna: postular que não há correspondência exata entre significantes e

significados. Esse deslocamento é muito importante para que reflitamos sobre as complexas relações entre pensamento e linguagem, uma vez que, a partir dele, Saussure nos mostra que não há qualquer possibilidade de recobrimento dos ob-jetos do mundo e de nossos pensamentos utilizando nossas palavras. Vale dizer: a partir das elaborações da linguística, sabemos que nossos pensamentos são sempre fugidios e apenas parcialmente compartilháveis como nossos pares.

A esta altura, o leitor deve estar se perguntando como os humanos chegam a se entender. Trata-se de uma excelente questão, uma vez que ela nos remete a

Se a relação significante e significado é frágil, como

chegamos a nos entender?

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uma ordem maior que organiza as palavras e faz com que, mesmo não falando a mesma língua, possamos fazer algum tipo de troca de ideias: a linguagem como um sistema.

Saussure nos mostrou que os significados podem ser compartilhados entre nós não por remeterem a objetos do mundo, mas por funcionarem dentro de uma lógica de ordenamento de significantes. Para o autor, ao se oporem uns aos outros em uma rede de relações, os significantes acabam por adquirir um valor linguístico, isto é, acabam por fazer sentido para nós.

Saussure explica essa noção por meio de uma bela metáfora: a do jogo de xadrez. Comparando uma palavra a uma peça do jogo (no caso, o cavalo), o autor nos explica que, para que o jogo funcione, pouco importa a peça em si, mas o fato de que os dois jogadores tenham pactuado de que se trata de uma peça legítima. Em benefício da clareza, transcrevemos um trecho do autor:

Tomemos um cavalo; será por si só um elemento do jogo? Certamente que não, pois, na sua materialidade pura, fora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada para o jogador e não se toma elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor e fazendo corpo com ele. Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a ser destruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? Decerto: não somente um cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, como a língua, nos quais os elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo com regras determinadas, a noção de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente. Eis porque, em definitivo, a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade. (SAUSSURE, 1962, p. 128)

Lendo o extrato acima, é importante o leitor perceber que o principal deslo-camento causado pela ciência linguística foi mostrar que as palavras em si não significam absolutamente nada: se podemos usá-las para suporte de nosso pen-samento, é justamente na medida em que elas se encontram organizadas em um sistema (a linguagem, a cultura) que lhes dá consistência.

Concluindo, por meio de um percurso de mais de 100 anos dessa ciência, fomos paulatinamente compreendendo que a linguagem é, ao mesmo tempo, o que nos une e o que nos separa das coisas e das pessoas. Liga-nos ao mundo porque fornece um aparelho por meio do qual podemos manter o contato com a realidade: a possibilidade de nomear os objetos. Por outro lado, a linguagem nos separa dos objetos justamente porque nos torna dependentes de um con-ceito para apreendê-lo. Traduzindo: se é verdade que “o que os olhos não veem o coração não sente”, não é menos verdade que “o que a linguagem não nomeia a percepção não registra”.

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IESD

E Br

asil

S. A

.

Texto complementar

Teoria do medalhão(ASSIS, 1994)

— Estás com sono?

— Não, senhor.

— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

— Onze.

— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peral-ta, chegaste aos teus 21 anos. [...] Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importan-tes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. [...]. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que

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te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida [...].

— Sim, senhor.

— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a ve-lhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipó-tese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. [...]

— Entendo.

— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginan-do, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violên-cia, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

— Mas quem lhe diz que eu...

— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fideli-dade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice--versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipa-tias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de

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algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrom-pem e precipitam-se. [...]

— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler com-pêndios de retórica, ouvir certos discursos etc. [...] O bilhar é excelente. [...] Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escru-pulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

— Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmos-fera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa. [...] Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois anos –, reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apou-cado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas. [...] Senten-ças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. [...] Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória

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individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. [...]

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de pro-cessos modernos.

— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ci-ências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. [...]

— Upa! que a profissão é difícil!

— E ainda não chegamos ao cabo.

— Vamos a ele.

— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que Dom Quixote solicite os favores dela mediante, ações heroicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inven-tar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. [...] Percebeste?

— Percebi. [...] Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.

— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! [...]

— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

— Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

— Nenhuma filosofia?

— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Fi-losofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam

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as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originali-dade etc. etc.

— Também ao riso?

— Como ao riso?

— Ficar sério, muito sério...

— Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer me-lancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente – e este ponto é melindroso...

— Diga...

— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraí-do por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e de-sabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?

— Meia-noite.

— Meia-noite? Entras nos teus 22 anos, meu peralta; estás definitivamen-te maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O príncipe de Maquia-vel. Vamos dormir.

Atividades1. Por que, quando se trata do humano, a linguagem não pode ser reduzida ao

seu aspecto comunicativo?

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2. Por que motivo é equivocada a perspectiva segundo a qual um professor precisa sempre se apoiar no concreto e trabalhar apenas com as coisas co-nhecidas por seus alunos?

3. Por que é necessário transcender o nível da experimentação prática – por exemplo, quando propomos exercícios de completar lacunas com os tem-pos de verbo corretos – e levar os nossos alunos a, a partir dela, a construir conceitos?

Dicas de estudoDUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.

Obra fundamental para o leitor iniciante que se interessou por aprofundar seu estudo sobre a linguagem, esse dicionário discorre sobre as principais esco-las, expõe os domínios da pesquisa sobre a linguagem e, finalmente, explica de modo claro e compreensível os principais conceitos metodológicos e descritivos com os quais a linguística trabalha.

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Geralmente, se uma pessoa fala sem pensar, logo aparece algum conhe-cido pronto para diagnosticá-la: “Fulano parece uma criança!”. Maldade à parte, essa pessoa que fez a crítica tem certa razão naquilo que diz, uma vez que demora muito para conquistarmos a capacidade de nos distanciar de nossa própria fala e analisar nossos modos de expressão e de pensamento.

Mesmo respeitando as variações indivi-duais de ritmo do desenvolvimento humano, a capacidade de tomar a linguagem como objeto específico de análise é uma conquis-ta que raramente ocorre antes do término da chamada “primeira infância”, uma vez que depende de um longo processo de inserção do jovem na cultura em que vive.

Quando muito pequeno, o ser humano pode falar, mas não pode escu-tar de forma crítica e distanciada o que ele mesmo diz. É justamente por essa razão que, em toda parte, circulam piadinhas sobre o caráter extrava-gante do raciocínio das crianças. Essas piadas podem ser muito divertidas, mas em si não nos ajudam muito a transcender a denúncia da ingenuida-de dos pequenos em nossas conversas em diversos âmbitos.

Entretanto, é preciso fazê-lo. Se quisermos entender melhor como a mente humana funciona, nós, profissionais da educação, necessitamos nos interrogar sobre as causas dessa dificuldade.

Como o objetivo aqui é elucidar algumas das diferenças entre o pen-samento dos pequenos e dos adultos, vamos iniciar o trabalho ao qual nos propomos neste capítulo nos deleitando com alguns exemplos que mostram o modo diferente da criança pensar sobre a língua.

Eles foram recortados da comunidade virtual Criança Diz cada Uma, que consiste em um ponto de encontro virtual baseado “na coluna que o faleci-do jornalista e dramaturgo Pedro Bloch escrevia na extinta revista Manche-te, contando histórias engraçadas e inusitadas acontecidas com crianças”. A página de abertura convida os seus participantes a darem depoimento

Por que, frequentemente, o que a criança pequena diz

nos parece exótico?

Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano

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sobre o que merece ser registrado do que seus filhos andam falando. Está hospe-dada no site de relacionamentos pessoais Orkut.1

Para ilustrar nosso trabalho, selecionamos alguns fragmentos de textos que podem ser encontrados em um dos tópicos do fórum da comunidade virtual, ini-ciado em 18 de setembro de 2005. Trata-se do seguinte: uma das participantes instigou os participantes a completarem a seguinte frase “Quando eu era criança eu pensava que...” Esse fórum destacou-se porque, ao ler seu conteúdo, torna-se evidente que aqueles que aceitaram o convite da proponente foram forçados a se lembrar do período de sua vida no qual ele teve predominantemente pensa-mentos exóticos e inconsistentes.

Vejamos alguns fragmentos desses depoimentos, transcritos no quadro 1, do modo como foram escritos pelos participantes da comunidade.

Quadro 1 – Fragmentos de depoimentos dos participantes da comunidade virtual “Criança Diz cada Uma”

Andréa Cara, quando eu era criança eu pensava que cheque sem fundo era algum tipo de cheque sem nada no fundo, com um buraco...

Ana SeleneUma amiga da minha mãe disse braba, enquanto esperávamos para atra-vessar a rua: “tem que morrer um para eles colocarem uma sinaleira”. Toda vez que eu via um sinal de trânsito, eu ficava com pena da pessoa que tinha morrido naquele lugar.

CamilaEu achava que “Grande Elenco” era um ator muito famoso, como o Grande Otelo. Só que eu nunca o tinha visto ainda porque ele era um ator de teatro, sempre citado junto com os melhores atores: Fernanda Montenegro, Paulo Autran, e Grande Elenco!

Zé RobertoMirocecê, eu achava que isso era o lugar de origem da dona Francisca!“atirei o pau no gato-to/ mas o gato-to/ nao morreu-rreu-rreu/ dona Chica-ca/ dimiro-se-se/ do berro/ do berro/ que o gato deu... miau!”

Esperamos que os exemplos acima, muito saborosos, tenham lhe causado riso! Agora, perceba que, em todos eles, nosso riso foi causado por um mesmo motivo: trata-se de um equívoco por parte da criança, que toma algumas expressões, se assim podemos dizer, ao pé da letra, ou seja, do modo como chegam aos seus ouvidos.

Os significados “errados” atribuídos pela criança às expressões “cheque sem fundo” e “grande elenco” foram, muito provavelmente, causados por uma igno-rância vocabular e cultural. Ou seja: sem conhecer o significado culturalmen-te partilhado dessas expressões, a criança criou, do jeito que pôde, algum jeito para se virar com seu desconfortável desconhecimento.

1 Ressalvando que só podem entrar neste site as pessoas que forem convidadas por um amigo, informamos que os excertos que se seguem estão disponíveis no seguinte endereço: <http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=68850&tid=2970165>. Acesso em: 18 set. 2005.

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Por sua vez, embora semelhante, o nascimento da cidade “Mirocecê” é um pouco mais complexo. Em primeiro lugar, é evidente que a criança des-conhece o significado do verbo “admirar”. Em segundo lugar, não foi capaz de delimitar onde começava e onde terminava uma palavra, fato esse que nos in-dicia que essa criança também não era capaz, naquela ocasião, de reconhecer a função do pronome reflexivo se, o que acabou fazendo com que ela ignorasse o padrão da canção, que é o da repetição da última sílaba das palavras.

O que esses exemplos nos mostram? Esses exemplos nos mostram que, como a linguagem humana é, por assim dizer, escorregadia quando ainda não temos a vivência cultural de um adulto, não conseguimos analisar convenientemente os segmentos que compõem os enunciados e, por esse motivo, não nos é possível nem delimitar convenientemente seus segmentos nem articulá-los de modo adequado com os demais segmentos que compõem o enunciado.

É importante ressaltar que, por esse motivo, enquanto não nos é possível manter um certo distanciamento das palavras que falamos, nosso pensamento tende a ser, ao mesmo tempo, limitado e limitante, uma vez que, para poder criar, é necessário, antes de tudo, interrogar a realidade que nos circunda.

A capacidade para a reflexão linguística se ganha na cultura

A capacidade de interrogar os modos de dizer que são habituais na comuni-dade em que vivemos é uma tarefa bastante complexa. É, mais ou menos, como tentar se lembrar, depois de uns 30 minutos, por qual mecha você começou a desembaraçar seus cabelos no meio do banho. Isto é, quando estamos imersos em uma prática, nós a automatizamos e, consequentemente, ela praticamente se torna invisível para nós.

Para aprofundar um pouco mais essa ideia, vamos agora explorar o trabalho de Blikstein (1990, p. 86), que escreveu um livro visando cutucar um pouco a nossa inércia e levar-nos a uma interrogação sobre nossa “confortável ilusão referencial”.

Para fazê-lo, o autor partiu das seguintes perguntas que vêm sendo repetidas há muitos séculos: “Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade extralinguística: como é possível conhecer a realidade por meio de signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”

O que esses exemplos nos mostram?

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(BLIKSTEIN, 1990, p. 71). Retomar aqui essas questões antigas se justifica porque elas vêm nos mostrando que, no processo da cognição, há uma insuficiência da relação entre signo e coisas.

Essa insuficiência vem sendo insistentemente assinalada na linguística, na psicologia, na antropologia, na teoria do conhecimento etc., tendo gerado inúmeras tentativas de construção de modelos teóricos que possam servir de modos pelos quais possamos nos aproximar da intrincada relação entre a lin-guagem e as coisas.

Um dos modelos mais clássicos para explicar como pensamento e lingua-gem estão entrelaçados é o triângulo de Odgen e Richards, criado em 1956 (ver figura 1). Segundo Blikstein, foi esse triângulo que deu origem a uma tendência dominante na linguística moderna: considerar a língua como “organizadora da estrutura conceitual do universo, e já se tornou lugar comum afirmar que ela é o ‘molde do pensamento’ ou ‘o instrumento de análise ou recorte da realidade’” (BLIKSTEIN, 1990, p. 40).

Referência ou pensamento

Símbolo (significante)

Referente (coisa ou objeto extralinguístico)

Figura 1 – O triângulo de Odgen e Richards.

Quando surgiu, esse modelo despertou bastante interesse, uma vez que mos-trava claramente a existência de uma separação entre três instâncias:

o mundo real; �

as palavras que usamos para nomear os objetos que lá se encontram; e �

os pensamentos/percepções que podemos ter tanto de uma coisa quanto de �outra.

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Mesmo reconhecendo a pertinência dessa tripartição, Blikstein ficou incomo-dado com a ausência de uma reflexão sobre a influência da prática cultural em nosso modo de ver as coisas. Por esse motivo, defendeu a necessidade de recupe-rar o trabalho de Schaff (1974), articulando-o ao modelo já descrito, uma vez que ele poderia nos ajudar a reformular a lição clássica a respeito das relações entre linguagem, percepção e pensamento, tornando claro que tanto a percepção quanto a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social. Nas palavras de Blikstein, a língua amarra a percepção, a cognição, e impede o indivíduo de ver qualquer realidade que já não esteja previamente marcada em sua língua.

Você já ouviu falar do trabalho de Schaff? Trata-se de um pensador que ficou bastante famoso por suas tentativas de ligar a linguagem à práxis social. Em especial, é bastante conhecido o seu exemplo que trata a percepção que os esquimós têm da cor branca. Segundo o autor, essa população não vê a neve em geral, do mesmo modo como faríamos nós que habitamos regiões temperadas. Como, para eles, conhecer a neve muitíssimo bem consiste em uma questão de vida ou de morte, os esquimós têm palavras para nomear 30 tipos de neve, pois distinguem-na de acordo com as diversas tonalidades de branco que seus olhos conseguem distinguir. Bem diferente de nós, que, basicamente, trabalhamos com as categorias “branco bem lavado” e “branco encardido”, não é mesmo?

Mesmo concordando parcialmente com a conclusão do autor, não podemos deixar de ressaltar que, com algum treino, muito trabalho e dedicação, somos capazes de atravessar, em certa medida, os efeitos homogeneizadores da cul-tura e tornar nossa vida mais refletida e nossos modos de pensar, mais criativos. Mas isso não é coisa fácil! É preciso “suar a camisa” e investir na direção de tomar a própria língua como objeto de análise.

A língua como objeto de análise pode gerar muito prazer

Quando cresce, o homem torna-se o único animal que tem o privilégio de contar com esta grande fonte de prazer: tomar sua língua materna como objeto de reflexão e nela efetuar transformações para criar “efeitos especiais”. Por exem-plo, os humoristas que fazem o chamado “humor inteligente” costumeiramente utilizam-se desse recurso para nos fazer rir. Leia, por exemplo, um fragmento de uma das colunas do famosíssimo José Simão (2005).

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1 Brasil Urgente! Habeas corpus pra macaca. Um promotor baiano pediu habeas corpus para uma macaca não ficar enjaulada no zoológico de Salvador. HABEAS MACACUS! E quer devolver a macaca para seu habitat em Sorocaba. O quê? Ela é de Sorocaba? E o que ela foi fazer na Bahia? Foi passar o Carnaval na Bahia e ficou! Essa macaca vai acabar entrando para o É o Tchan! e substituir a Scheila Carvalho!

E depois do habeas corpus pra macaca, o Maluf vai se sentir injusti-çado! Depois do habeas macacus, o Maluf vai pedir um HABEAS BRIMUS! Rarará! E olha a notícia: “Maluf chora e ameaça deixar a política”. Então não é ameaça. Ameaça: “Maluf chora e ameaça continuar na política”.

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Para pontuar apenas uma das muitas brinca-deiras feitas por Simão nesse extrato, observe as seguintes transformações feitas pelo humorista a partir da expressão latina, que de fato existe e é usada na linguagem jurídica: habeas corpus (linha 1). Ao ironizar sobre um advogado que tomou uma macaca como cliente, Simão inventou a expressão “habeas macacus” (linha 3) para final-mente, aludindo à etnia de Paulo Maluf, que, na ocasião da escrita de sua coluna havia sido recentemente preso, inventou ainda o habeas brimus (linha 8).

Brincar com a linguagem pressupõe a construção prévia de uma capacidade que, como já vínhamos apontando, é exclusiva do humano: a possibilidade de refletir também sobre a forma de expressão e não meramente sobre o conteúdo. Para ficar mais clara qual a diferença entre uma ação e outra, propomos, neste momento, a comparação entre os seguintes enunciados fictícios:

Locutor 1: Eu só bebo água mineral.

Locutor 2: A composição química da água é H2O, porém, quando ela recebe esgotos, encontram-se também coliformes fecais, como é o caso desta amos-tra que acabo de examinar.

Se, no primeiro dos casos, o locutor tem como tema específico de sua enun-ciação o seu gosto particular no que tange à água, no segundo, ao contrário, nada sabemos sobre suas preferências. No segundo caso, sabemos que, após ter realizado exames apropriados em uma amostra de água qualquer, um investiga-dor pôde referir-se à sua composição estrutural.

Trazer esse exemplo para o contexto específico de nossa discussão deve aju-dar-nos a sermos mais claros. Comparem, agora, os próximos enunciados.

Como alguém consegue fazer isso?

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Locutor 1: Eu só namoro homem bonito.

Locutor 2: Bonito é um adjetivo vago, uma vez que a determinação de seu sentido depende do gosto pessoal do falante.

Do mesmo modo como aconteceu no primeiro par de exemplos, enquanto o locutor 1 fala uma frase que tem como objeto principal os seus gostos pessoais, nada sabemos da pessoalidade do locutor 2. Mas, por outro lado, sabemos que ele é maduro o suficiente para conseguir refletir sobre a linguagem.

Ao se concretizar em uma língua que pode ser falada ou escrita, a linguagem se torna passível de ser observada, analisada e descrita com relação a sua es-trutura e seus modos de funcionamento em diferentes tempos e espaços, mas isso não é nada fácil. Exige uma experiência de vida na cultura que proporcione ao sujeito um repertório que lhe permita analisar devidamente os enunciados que nela circulam.

Feitas todas as considerações precedentes, optamos por concluir esta refle-xão sobre a capacidade de refletir sobre a língua de um modo um pouco dife-rente. Em vez de explicitar aqui a “moral da história”, que, esperamos, já ficou transparente para o leitor ao longo de sua leitura, deixaremos registrado um exemplo que nos parece mostrar, de modo especialmente claro, a potência de deslocamento que tem a reflexão sobre a linguagem.

Terminamos, então, com uma pequena história verídica, vivenciada por uma garota de quase oito anos e alguns de seus familiares. Ao lê-la, esperamos que o leitor se sinta convocado a, em seu dia-a-dia, fazer o mesmo tipo de trabalho linguístico que foi feito pela menina e, desse modo, criar novas realidades.

É fácil refletir sobre a linguagem?

Um pequeno apólogo familiar2

Aos sete anos e seis meses, já pronta para um passeio familiar, L. brinca en-tusiasmadamente com seu irmão menor. Pouco antes de sair, sua maria-chiqui-nha despenca declaradamente. Afeita a pentear o cabelo em inversa proporção a que é à pilhéria espirituosa, L. não chama sua mãe para refazer o penteado.

Ao notar o desastre, impaciente e já com pressa, seu pai lhe dirige abrupta-mente a palavra:

2 Confira trabalho anterior deste autor (Riolfi, 2005) para uma exploração mais aprofundada desta historieta.

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— L., você vai sair com este cabelo mexido? Desmanchou tudo!

Impassível, a garota dirige-se para a porta com os cabelos no mesmo estado e responde, sorridente:

— Ó, pai, “cabelo mexido”?!! “Cabelo mexido” deve ser o prato predileto de canibal pobre...

Texto complementar

O enigma de Kaspar Hauser (1812[?]-1833): uma abordagem psicossocial

(SABOYA, 2001)

Trabalhando com a perspectiva histórico-cultural em psicologia, que en-fatiza que cada ser humano se constitui como uma pessoa totalmente única (por suas experiências e sua história de vida) e que ressalta a importância das práticas culturais na definição do desenvolvimento psicológico do sujeito, buscou-se selecionar um personagem humano (Kaspar Hauser) que não cor-respondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões de comportamento tidos ou esperados como “normais” dentro da cultura da época. Pretende-se analisar neste trabalho o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, buscando a compreensão de fatores que concorreram para a construção de seu psiquismo. [...]

Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam; sabia falar apenas uma frase: “quero ser cavaleiro” e não sabia andar direito. Parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comporta-mento, estranho para os padrões socioculturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como um “garoto selvagem”, apesar de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía algumas habilidades pe-culiares interessantes, descritas tanto no filme de Herzog quanto na obra de Masson: conseguia enxergar muito longe, no escuro, e sabia tratar os ani-mais, principalmente os pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas e fugia delas aterrorizado. Numa das cenas, atraído pela chama de uma vela, colocava seu dedo no fogo e, ao sentir dor, aprende que a chama queima.

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Graças à sua curiosidade infantil e memória notável, aprendeu várias coisas muito depressa. [...]

Criado no isolamento e privado de educação, condicionamento e repres-são, é este processo de integração que Kaspar Hauser sofrerá em Nuremberg, e seu instrumento principal será a linguagem, pela qual a sociedade tentará fazê-lo conceber aquilo que sua natureza não concebe: a representação. O século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao protótipo do homem “civilizado” eram classifica-dos como primitivos, atrasados e deveriam ser “ajudados” a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado. [...]

Com o tempo aprende a falar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. [...] A paisagem em que Kaspar Hauser foi colocado, apesar de explicada pela linguagem, pelas palavras, por signos linguísticos, permanece, para ele, indecifrável. Muitas vezes, pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia ver-balizar o conteúdo pensado. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos linguísticos, parece não ser suficiente para Kaspar Hauser [...]. Nesse senti-do, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originam independentemente, fundindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna que constitui a maior parte do pensamento maduro.

Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas impõem todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o insólito ambiente que o cerca. Como Kaspar Hauser poderia compreender o significado das palavras e que elas representam coisas se não passou por um processo de aprendizado e socialização necessários para que compreendes-se a representatividade dos signos? Blikstein diz que a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade; ou seja, a educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É justamen-te esse processo que Kaspar Hauser não vivenciou. [...]

Os objetos não eram percebidos por Kaspar Hauser da forma como a prá-tica social definia previamente, ou seja, Kaspar Hauser estava despido dos “fil-tros” e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento.

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Tais “filtros” ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por uma contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem.

A forma como Kaspar Hauser compreende o mundo e se relaciona com ele indica que a percepção depende sobretudo da prática social. Sabemos que, do nascimento à adolescência, Kaspar Hauser esteve isolado de qual-quer contexto ou prática social. O que podemos verificar no seu percurso de desenvolvimento psicológico é que, a despeito da ação da linguagem (ad-quirida na fase adulta) ou de um eventual “potencial” inato, Kaspar Hauser não consegue captar o mundo como o faz a sociedade que o cerca, ou seja, decodifica à sua maneira, com uma lógica diferente da estabelecida, a signi-ficação do mundo. Fica evidente, então, que o seu sistema perceptual está desaparelhado de uma prática social necessária para gestar o referencial cul-tural de interpretação da realidade.

Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um proces-so de socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social, não consegue atribuir significado às coisas, mesmo tendo adquirido a lin-guagem. Assim, analisando o caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais “mo-delam” a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.

Em virtude de não ter sido exposto a essa “modelagem” cultural, Kaspar Hauser era visto como um ser “incompleto”, como se estivesse sempre em dé-ficit em relação aos outros; teria Kaspar instrumental de reflexão internalizado para construir a compreensão da diferença? Aqui parece ser possível detectar uma inverossimilhança no filme de Werner Herzog: numa das cenas, Kaspar Hauser diz a uma das pessoas que o acolheu: “Ninguém aceita Kaspar.”

Segundo o filme, ele tem consciência de sua situação. Porém, na realida-de, parece não ser possível esse grau de consciência em alguém que não tem instrumental de reflexão internalizado. Kaspar Hauser se sente perturbado pelo mundo: “o mundo é todo mau”, comenta com seu tutor após perceber que alguém pisou as flores que plantara no jardim. [...]

Vygotsky, citado por Oliveira, diz que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os siste-mas simbólicos são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo;

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porém, tendo vivido no isolamento, Kaspar Hauser não aprendeu nem in-ternalizou este sistema simbólico que, para ele, não fazia sentido. Somen-te depois de muito tempo convivendo com a comunidade de Nuremberg é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica e a relação de representatividade entre os signos e as coisas concretas. [...]

Kaspar Hauser não é reconhecido como parte da sociedade e ele próprio não se reconhece como parte dela. Em uma reunião para a qual fora convida-do a participar, em que estavam vários membros da alta sociedade, foi apre-sentado à esposa do prefeito de Nuremberg, que lhe perguntou como era sua prisão e ele respondeu: “melhor do que aqui fora”. Vai sofrendo, assim, um processo de estigmatização que o marca, não apenas como “diferente” ou “anormal,” mas também como alguém que não possui identidade. [...]

O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organi-zação social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra--nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas consequência de um longo pro-cesso de aprendizado com o grupo social.

Através desse processo, o indivíduo se integra ao grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e costumes, o indivíduo está se socializando, reprimindo suas características instintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, fazendo, assim, a “passagem da natureza para a cultura,” aprendendo a ver com os “óculos sociais,” tornando-se, como nos disse Charles Dickens, “um animal de cos-tumes”. Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época.

Atividades1. Por que motivo é necessário levar o jovem humano a refletir a respeito da

linguagem para incidir sobre o seu desenvolvimento intelectual?

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2. Por que motivo pessoas de comunidades linguísticas diferentes tendem a interpretar fatos análogos de modos diferentes?

3. Por que é difícil para as crianças aprender a analisar os modos de funciona-mento da linguagem?

Dicas de estudoVocê gosta de cinema? Se você respondeu afirmativamente, está com sorte,

pois, dessa vez, sugerimos que você assista ao filme que está pressuposto ao longo deste capítulo!

O ENIGMA de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle). Direção de Werner Herzog. Alemanha, 1974. 1 filme (109 min).

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Para animar você, já adiantamos que esse belíssimo filme se baseia na história verídica e obscura de Kaspar Hauser, um homem doce, generoso e, ao mesmo tempo, melancólico. Ele foi encontrado numa praça de Nuremberg, em 1829, com, presumivelmente, 18 anos. Ao que tudo indica, cresceu num calabouço, acorrentado até o dia em que foi levado por um guarda a uma praça e aí aban-donado. Um cidadão o encontrou e o levou para a casa do capitão de cavalaria que o entregou às autoridades. Kaspar passou, então, um tempo de pesadelo, durante o qual foi exposto em uma feira de curiosidades.

Um dia, ele conseguiu fugir com alguns companheiros, tendo sido acolhido por um protetor mais humano. Dois anos depois, Kaspar tinha aprendido a falar e a escrever, mas, surpreendentemente, até o dia em que foi enigmaticamente assassinado, o pobre rapaz ainda pensava de modo completamente diferente do modo como faziam os outros seres humanos de sua época.

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Neste capítulo, temos como objetivo primordial tematizar o surgimen-to do pensamento na espécie humana. Convém ressaltar que, como nin-guém entre nós tem máquina do tempo, trata-se de um empreendimento bastante ousado e exploratório, demandando a utilização de nossa capa-cidade de abstração.

Por esse motivo, vamos utilizar o que costumamos chamar de muletas para o pensamento, ou seja, aqueles recursos por meio dos quais torna-se mais fácil imaginar como é algo que não podemos ver para que nosso caminho se torne menos árduo. Então, para começarmos nossa reflexão sobre como o antepassado do homem teria vivido quando ainda era um animal sem pensamento e sem linguagem, vamos recuperar aqui o filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud.

Você já assistiu a ele? Se não o fez, não perca esta oportunidade de fazê-lo por nada neste mundo! Trata-se de um primoroso trabalho que, tendo como centro a descoberta do processo para acender o fogo, consis-te em uma representação ficcional do momento em que o Homo erectus tornou-se Homo sapiens, o “homem cultural” como o conhecemos.

Os sustos que a gente leva quando encontra quem sabe mais

Na hipótese que o filme trabalha, o contato ou, se assim podemos dizer, a fricção entre culturas em diferentes estágios de evolução tem papel cen-tral na gênese da linguagem e do pensamento humano.

Sendo assim, para seu realizador, a passagem do homem animal para o homem cultural coincidiu com o momento no qual, motivado pela ne-cessidade de sobrevivência, nosso antepassado remoto procurou estreitar laços com seus semelhantes mais evoluídos para aprender como utilizar instrumentos imprescindíveis para a sobrevivência da tribo.

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Que tal conhecer um pouco o enredo de A Guerra do Fogo?

Annaud partiu da hipótese de que, em um determinado estágio de sua evo-lução biológica, o ancestral do homem sentiu necessidade de preservação de um importante conhecimento que tinha acabado de adquirir: a manipulação de instrumentos. Por sua vez, esse desejo de não deixar perecer uma conquista tão importante o levou a sofisticar a sua organização social e, consequentemente, aproveitar-se dos recursos sonoros que seu corpo oferecia para criar um rudi-mento de linguagem.

Para nos mostrar esse “ancestral da linguagem”, que estava a meio caminho entre a comunicação animal e a linguagem humana tal qual a conhecemos hoje, o realizador da obra, em vez de fazer somente uma sonoplastia sem sentido sair da boca dos personagens, contou com o trabalho especializado de Anthony Bur-gess1, que assinou o roteiro e – a partir de um detalhadíssimo estudo das línguas antigas – escreveu as “falas” dos personagens (na verdade, gritos, gemidos, gru-nhidos, rudimentos de palavras articuladas).

Por meio de imagens muito impressionantes, Annaud retrata as venturas e as desventuras de dois grupos pré-históricos que teriam vivido há 80 mil anos e mostra os efeitos que um encontro entre eles gerou. Para falar desses efeitos, é importante marcar que um dos grupos estava bem mais próximo dos primatas e o segundo já era um pouco mais evoluído: já dominava a tecnologia de fazer o fogo e havia construído alguns elementos culturais, como habitações fixas.

O drama narrado no filme é iniciado pelo apagamento acidental do fogo da tribo menos evoluída, que não têm a mínima ideia do que fazer para acendê-lo novamente. Como todo mundo naquela época gelada dependia do fogo para proteção e aquecimento, eles passaram a correr seríssimo perigo de vida e, por conseguinte, decidiram enviar três membros da tribo numa perigosa aventura para procurar uma nova chama.

Evidentemente, os três heróis passaram pelos mais variados problemas em seu caminho e, neste ponto, chegamos à parte que mais nos interessa.

Annaud é muito cuidadoso para mostrar que, como os primitivos foram força-dos a encontrar soluções muito rapidamente para não morrerem, acabaram por

1 Anthony Burgess (1916-1993), foneticista e escritor britânico, célebre por seu romance A Laranja Mecânica (1962), levado ao cinema por Stanley Kubrick em 1971. Burgess também escreveu O Homem de Nazaré (1979) e Poderes Terrenos (1980).

Que lição podemos tirar dessa história de ficção?

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desenvolver uma habilidade reflexiva que sequer podiam imaginar que tinham. Na visão do filme, a cada novo esforço conjunto para superar um obstáculo, eles acabam ganhando ao menos um rudimento de linguagem e de pensamento.

Esse processo torna-se ainda mais acentuado quando os “três mosqueteiros” encontram a tribo mais evoluída e, evidentemente, muito se surpreendem com seu modo de organização cultural. Para eles, é particularmente surpreendente o fato de saberem acender o fogo, possibilidade sequer entrevista anteriormente. Ou seja: por meio dos contatos com os mais evoluídos, sofrem grande influência e desenvolvem um germe de ideia.

Embora possamos desconfiar que, por se tratar de um filme, as coisas não se passaram bem assim, podemos tirar desse trabalho uma importante lição: a gênese do pensamento na espécie humana não ocorreu quando um primeiro homem se trancou solitariamente em sua caverna e colocou do lado de fora uma placa com o aviso “gênio pensando”! Apesar de muito divertida, essa hipótese é completamente inverossímil, pois, como já sabemos, a gênese do pensamento humano ocorreu em situação de franco conflito entre homem-animal-natureza e, em especial, entre os diferentes modos de fazer dos membros dos grupos huma-noides. Ao encontrar quem “fizesse diferente”, o menos evoluído “descobriu”, como diria Shakespeare, que talvez houvesse mais coisas entre o céu e terra do que so-nhava sua vã filosofia...

Assim, teve vontade de que sua grama fosse tão verde como a de seu vizinho, para continuar nossa linha de metáforas... Hipótese curiosa esta: o pensamen-to adveio da inveja saudável dos seus semelhantes! Curiosa, sem dúvida, mas será tão inverossímil assim? Não sabemos. Mas sabemos que, ao descobrir usos cada vez mais sofisticados para os instrumentos, os homens logo trataram de compartilhá-los com seus semelhantes e preservá-los para seus descendentes. Pronto: estava fundada a família e a vida em sociedade.

Introduzindo o pensamento de VygotskyNão foram apenas os cineastas os interessados em refletir sobre os modos

pelos quais o advento do pensamento ocorreu na humanidade. Essa questão interessou profundamente toda uma linhagem de pesquisadores, em especial o russo Lev Semenovich Vygotsky.

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Você sabe quem foi Lev Semenovich Vygotsky? Ex-estudante da Universida-de de Moscou, esse brilhante pesquisador viveu apenas 38 anos. Nasceu, traba-lhou e morreu na passagem do século XIX para o XX (1896-1934), tendo enfren-tado as restrições que o isolamento de um sistema político fechado coloca para todo aquele que tem vocação para a vida intelectual. Especificamente, referi-mo-nos às dificuldades de circulação de ideias que, naquele contexto, fazia com que tanto fosse difícil expor sua produção para além de Moscou quanto tomar contato com trabalhos de colegas de outros países. Apesar da vida curta e do isolamento, Vygotsky teve tempo suficiente para formalizar algumas ideias que, embora passíveis de alguma crítica, causaram profundas impressões entre os educadores e demais interessados na formação do ser humano.

Por causa de sua pertinência e clareza, optaremos, aqui, por iniciar esta intro-dução à obra de Vygotsky utilizando-nos de um parágrafo escrito pelo professor James V. Wertsch para apresentar um de seus livros.

A perspectiva teórica delineada por Lev Semenovich Vygosky pode ser compreendida em termos de três temas gerais que estão presentes em todas as suas obras: a) o uso de um método genético, ou de desenvolvimento; b) a afirmação de que o funcionamento mental superior no indivíduo provém de processos sociais; e c) a afirmação de que os processos sociais e psicológicos humanos são moldados fundamentalmente por ferramentas sociais, ou formas de mediação. (WERTSCH apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 9)

Perseguindo os temas citados acima ao longo do seu trabalho, o psicólogo russo tentou superar a crise que grassava no campo da psicologia praticada em sua época, apresentando uma proposta teórica inovadora: a ideia segundo a qual a consciência humana é determinada historicamente. Dizendo de outro modo, segundo Jerome S. Bruner – que assina a introdução do livro Pensamento e Linguagem (VYGOTSKY, 1998) –, um dos principais avanços do psicólogo russo foi o conceito de atividade mediada, ou seja, compreender que as ferramentas sociais moldam nossos modos de lidar com o mundo.

Ao fazer essa afirmação, Vygostky se opôs às concepções clássicas das an-tigas escolas de psicologia que ainda não haviam percebido a conexão entre pensamento e linguagem como sendo originária do desenvolvimento humano e, inovando ao longo de seu trabalho, procurou construir uma teoria geral das raízes genéticas dessa conexão. Por esse motivo, para Oliveira (1992), por sua vez, referir-se a Vygotsky é algo análogo a referir-se à dimensão social do desen-volvimento humano, uma vez que um dos pressupostos básicos do autor é o de que o “ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro social” (OLIVEIRA, 1992, p. 24). Nessa visão, a cultura torna-se parte da natureza humana em um processo histórico.

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Deixemos, neste momento, o próprio psicólogo russo nos apresentar qual conclusão, alcançada por ele após a realização de suas pesquisas, ele julga ser a mais importante.

O fato mais importante revelado pelo estudo genético do pensamento e da fala é que a relação entre ambos passa por várias mudanças. O progresso da fala não é paralelo ao progresso do pensamento. As curvas de crescimento de ambos cruzam-se muitas vezes, podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até mesmo fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente. (VYGOTSKY, 1998, p. 41)

Ainda voltaremos a tirar maiores consequên-cias do parágrafo acima, mas agora cumpre res-saltar que, por meio dele, o autor nos dá uma im-portante pista para refletir sobre a nossa prática de sala de aula: pressupor que o aluno vai ser capaz de falar sobre um determinado assunto tão logo o tenha aprendido é, no mínimo, falacioso, uma vez que tanto po-demos falar muito sobre algo de que não entendemos nada (talvez até em uma ten-tativa de entender), como podemos precisar do silêncio por algum tempo mesmo depois de a explicação estar bastante clara.

Portanto, senhores professores, ao pedir que o aluno reproduza uma explica-ção que você acabou de dar, lembre: muita calma nessa hora!

A perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano

Para entender as relações entre a história e a cultura no desenvolvimento humano, vamos recorrer a um outro exemplo, o trabalho de um dos maiores his-toriadores contemporâneos: Carlo Ginzburg. Em especial, interessa-nos seu tra-balho que reconstituiu, a partir de um exame minucioso de documentos da Igreja Católica, os modos de pensar dos praticantes de um culto da fertilidade que vive-ram entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII, na Itália.

Para nós, o mais importante do trabalho de Ginzburg é que, por meio do exame rigoroso de fatos da história (e não mais da ficção, como no caso do filme que estudamos), o italiano nos mostra que, na história da humanidade, os modos de pensar estiveram sempre em fricção, ou dizendo de outro modo, eram fruto de pertencer a um determinado grupo histórico-social.

Sem compreender muita coisa das crenças bizarras dos camponeses (que sim-plesmente buscavam, com meios “mágicos” – muito parecidos com as simpatias

Você já percebeu que a gente não consegue falar

sobre tudo que sabe?

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Linguagem e Pensamento

que ainda hoje persistem entre nós – fazer com que suas colheitas fossem bem sucedidas), a Igreja da época tomou-os como sendo participantes de um culto demoníaco, coisa que estavam bem longe de ser. Por meio da tortura, essa mesma

Igreja buscou fazer com que confessassem seu “pacto com o diabo”, confissão essa que os pobres coitados faziam sem sequer entender as consequências.

O exame dos documentos, na maioria transcrição dos depoimentos dos pobres camponeses torturados, mostrou que os inquisidores se viam constante-mente em maus lençóis, pois, embora neles aparecessem palavras como inferno e diabo, não apareciam do modo como era esperado pelos torturadores.

Para maior clareza, tomemos aqui, dentre os muitos depoimentos analisados pelo pesquisador, um exemplo qualquer no qual dá para ver uma grande “con-fusão” em andamento:

O acusado, Thiess, um velho com mais de 80 anos, confessa abertamente aos juízes que o interrogam ser um lobisomem. [...] O velho diz que o seu nariz fora quebrado, no passado, por um camponês de Lemburg, Skeistan, morto já há bastante tempo. Skeistan era um feiticeiro; juntamente com os seus companheiros, tinha levado as sementes de trigo ao inferno para que as messes não crescessem. Acompanhado por outros lobisomens, Thiess fora ao inferno e lutara contra Skeistan. Este, armado de um cabo de vassoura (o atributo tradicional das bruxas) enrolado num rabo de cavalo, havia golpeado o nariz do velho naquela ocasião. Não se tratava de um confronto ocasional. Três vezes por ano, nas noites de Santa Lúcia, antes do Natal, de Pentecostes e de São João, os lobisomens vão a pé, como uma alcateia, até um lugar situado “onde termina o mar”: o inferno. (GINSBURG, 1988, p. 50)

Você já imaginou em que embrulhada ficaram os pobres que escutaram esse depoimento? “Thiess confessa ser um lobisomem, logo ele é do mal”, pensam os inquisidores, porém sua conclusão não pode se manter intacta por muito tempo, pois, se ele confessa que vai ao inferno, justifica que o faz para combater o feiticeiro do mal que estava prejudicando as colheitas (Skeistan) – logo, ele é um tipo de “herói do bem”.

Todo mundo que conhece a história da Idade Média sabe que, na prática, esse conflito terminou muito mal. Incapazes de compreender uma lógica outra, que, por ser tão diferente, escapava-lhes completamente, os inquisidores não duvidavam: fogueira para eles! Por sua vez, incapazes de entender a lógica dos inquisidores, esses pobres camponeses (em especial as mulheres, mais frequen-temente acusadas de serem bruxas) eram completamente incapazes de defesa própria, pois não conheciam o que poderia ser utilizado como um argumento plausível do raciocínio do outro grupo. Tudo o que diziam, para se defender, era logo transformado em mais um argumento de acusação.

Você já parou para pensar por que os padres da Idade Média localizavam tantas

bruxas no mundo?

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O que foi que eles aprenderam, então? Aprenderam que, para se manterem vivos, havia um “discurso certo” a fazer, que poderia ser proferido aberta e publi-camente, e algumas práticas nas quais acreditavam para esconder, para serem feitas na calada da noite e negadas a todo e qualquer preço. O que começou a ser praticado de forma “inocente” passou então a ser feito de forma “maliciosa” e “pecaminosa”, pois, devido ao contato com os inquisidores, os camponeses agre-garam às suas práticas uma carga “maléfica” que anteriormente não estava lá.

Pensando mais detidamente sobre os dois exemplos contidos neste capítulo e concluindo nossa reflexão, podemos compreender melhor a tese de Vygotsky se-gundo a qual o ser humano constitui-se na sua relação com o outro social. É a so-ciedade que lhe ensina o que pode e deve ser dito e, nas últimas consequências, dita-lhe os modos de pensar. Nessa visão, então, a cultura não é algo separado do humano, mas uma instância que, a partir de um processo histórico, torna-se parte da natureza humana.

Texto complementar

Erótica e hermenêutica, ou a arte de amar o corpo das palavras1

(LARROSA2, 2000)

Nietzsche sabia que ensinar a falar, a escrever e a ler é ensinar a falar, a escrever e a ler como está ordenado, quer dizer, a experimentar a realidade, a do mundo e a de si próprio, como está ordenado ou, o que é o mesmo, a portar-se como está ordenado. Para perverter a ordem e o conformismo, para aprender a falar, a escrever e a ler de outro modo, para interpretar o mundo e a nós mesmos de outro modo, para ser de outro modo, Nietzsche nos convidava a sermos filólogos rigorosos. É com o nome de Nietzsche que eu também apelo aqui, leitor amigo, para a tua cumplicidade de filólogo [...] no amor às palavras. [...]

Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonados das pala-vras com uma forma de amizade e de amor que não passe pelo conhecimento,

1 Fragmento da tradução realizada por Claudia Rosa Riolfi para o texto “Erótica y hermenéutica, o el arte de amar el cuerpo de las palabras”.

2 Docente da Universidade de Barcelona, Espanha.

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nem pelo uso, nem pela vontade de apropriação. Também, talvez essencial-mente, Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonado do corpo das palavras. [...] O corpo das palavras opera como simples portador de seu sentido, como representante ou vicário, ou lugar-tenente de seu sentido, como o lugar que tem e contém o sentido. Desse ponto de vista, a compreen-são consiste em obter esse sentido arrancando-o do corpo e abandonando depois o cadáver como letra morta, inanimada. Uma palavra sem sentido é só um corpo, uma palavra que não expressa nada, que não diz nada. [...]

Se as palavras não são outra coisa além do lugar da materialização, da encarnação ou da transmissão de algo que é, por sua essência incorpórea, colocar o acento na compreensão ou na interpretação é conceber a rela-ção com as palavras como acesso ao espírito que está encarnado na letra ou como apropriação do sentido que está materializado e transportado no signo. Compreender é aceder à profundidade espiritual e invisível encarnada na linguagem ultrapassando nela a superfície material de sua corporeidade visível. Para a hermenêutica tradicional e, especialmente, para os modelos de interpretação simbólica, o objeto da compreensão é o espírito do texto: por isso a interpretação apenas pode realizar-se por meio da marginalização de sua dimensão corporal. Mas, como poderia ser possível amar sem corpo?

[...]

Escutemos a confissão de um amante-apaixonado do corpo das palavras, de um homem (ou de um nome) que, na esteira de Nietzsche, está nos en-sinando a ler e a escrever de outro modo e que, como Garcia Calvo, está nos convidando para amar aquilo que nas palavras pode funcionar para destecer o funcionamento servil do sentido, sua relação constitutiva com a ordem e com a esperança:

É verdade que só as palavras me interessam... amo as palavras... Para mim, a palavra incorpora o desejo e o corpo... eu só gosto das palavras.... O que eu faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não-verbal não apareça no verbal. Quer dizer, faço funcionar as palavras de tal maneira que, em um dado momento, deixam de pertencer ao discurso... E, se amo as palavras, é também por sua capacidade de escapar de sua própria forma, ou ainda, por interessar-me como coisas visíveis, como letras representando a visibilidade espacial da palavra ou como algo musical ou audível. Quer dizer, também me interessam as palavras, ainda que paradoxalmente, pelo que tem de não discursivas, naquilo que podem ser usadas para explodir o discurso... na maioria de meus textos existe um ponto no qual a palavra funciona de maneira não-discursiva. De repente, desorganiza a ordem e as regras, mas, não graças a mim. Presto atenção ao poder que as palavras, e às vezes, as possibilidades sintáticas também, têm para transformar o uso normal do discurso, o léxico e a sintaxe.... me explico a mim mesmo através do corpo das palavras – e creio que apenas se pode falar verdadeiramente do “corpo da palavra” levando em conta as reservas

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oriundas do fato de que falamos de um corpo que não está presente em si mesmo – e é o corpo de uma palavra o que me interessa no sentido de que não pertence ao discurso. Assim que estou realmente apaixonado pelas palavras, as trato sempre como corpos que contêm sua própria perversidade – sua própria desordem regulada. Enquanto isto ocorre, a linguagem se abre às artes não-verbais... Quando as palavras começam a enlouquecer desta maneira e deixam de comportar-se com respeito ao discurso é quando têm mais relação com as demais artes.3

[...]

Amar o corpo das palavras não é, então, nem conhecê-las nem usá-las, mas senti-las: senti-las no que têm de perverso, em seu poder para subver-ter a normalidade própria do discursivo, e senti-las também no que têm de inapreensíveis, de incompreensíveis, de ilegíveis, de ininteligíveis. Assim, o corpo das palavras, como o corpo da amante, se nos oferece plenamente e sem reservas e, ao mesmo tempo, retira-se de nós escapando de qualquer apropriação, de qualquer captura apropriadora. O que o corpo das palavras revela é, justamente, a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância e sua ausência de respeito para consigo própria. Por isso, no corpo das pala-vras, o que amamos é, precisamente, aquilo de que nós não podemos nos apropriar, aquilo que nós nunca poderemos tornar nosso, aquilo que, inevi-tavelmente, escorre e se extravia de nós.

O corpo das palavras é a revelação do que nelas não pertence ao discurso, a irrupção da não-linguagem no âmago da linguagem. Mas de uma não- -linguagem que subverte a linguagem, de um não-discurso que, contudo, é capaz de fazer explodir o discurso, de desestabilizá-lo, de subverter sua normalidade e de transtornar suas regras. O corpo das palavras é sua insigni-ficância, porém não uma insignificância neutra, mas uma insignificância que faz a significação enlouquecer. O corpo das palavras não fica absorvido na significação, não fica dissolvido na pura função da representação, mas tam-pouco se mantém exterior a ela. Não há nem correspondência, nem harmo-nia, nem integração entre a letra e o espírito, mas tampouco há ausência de relação, pura exterioridade. [...] Por isso, amar o corpo das palavras é fazê-las explodir, fazê-las funcionar pervertendo ou enlouquecendo qualquer ten-tativa de mediação encaminhada para a fabricação de sentido. O corpo das palavras é o lugar do desfalecimento da compreensão, o lugar do colapso do sentido, a ameaça permanente da interrupção da positividade ordenada de nossos discursos produtores de sentido.

3 BRUNETTE, Peter; WILLS, David. Las artes espaciales. Una entrevista con Jacques Derrida. Disponível em: <http ://aleph-arts.org/accpar/numero1/derrida1/htm>.

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Como se o corpo das palavras fosse lugar de sua liberdade, dado que revela que as palavras são sempre outra coisa além de servidoras do desejo de sentido que determina o bom funcionamento da ordem do discursivo. Amar o corpo das palavras, portanto, significa nem iludir nem recalcar, mas sim assumir e pre-servar o perigo de não haver sentido, porque o corpo das palavras é o que, em todo discurso, pode abrir-se à perda do sentido, ao não-sentido.

Atividades1. Levando-se em conta os estudos de Vygotsky, por que motivo não é correto

pensar que quem fala mal pensa mal?

2. Por que motivo não é correto pensar que quem fala sempre transmite seus pensamentos?

3. Levando-se em conta os estudos de Vygotsky, por que motivo a convivência com os pares um pouco mais experientes é fundamental para haver apren-dizado?

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Dicas de estudoCHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

Com escolha criteriosa de verbetes e apresentação cuidadosa das diversas acepções nas quais pode ser tomado, esse dicionário constitui-se em um instru-mento de trabalho imprescindível para todos aqueles que desejam vir a cons-truir um trabalho com as produções verbais de uma perspectiva da análise do discurso, área que, afastando-se de uma concepção de linguagem como expres-são do pensamento, ajuda-nos a decifrar o não-dito presente nos enunciados e nos silêncios de um dado sujeito.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas: Editora da Unicamp; Londrina: Eduel, 2003.

Esse grande livro, de 683 páginas, é um atual e completo panorama de um dos ramos da linguística que mais se relaciona com a especificidade do ser humano: a semântica, área de estudo que pretende responder ao que faz com que as palavras e as sentenças signifiquem. Sem perda de qualidade ou de conteúdo, Chierchia aborda a matéria de modo informal e simples, recorrendo, além disso, a outros expedientes para nos ajudar a adentrar nessa área tão complexa: exercícios, exem-plos, indicações bibliográficas para leituras suplementares, entre outros.

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Para introduzir este capítulo, que tem como tema específico os modos de enganchamento entre pensamento e linguagem, vamos propor a você um exercício pequeno, mas nada simples. Ele vai exigir muita imagina-ção e capacidade de desprendimento, pois seu objetivo é levá-lo para um tempo anterior ao advento de seu pensamento e de sua inscrição na linguagem. Tempo de susto e de perplexidade, quando todas as palavras estavam do lado do outro.

No início, era o corpo...Trata-se do seguinte: transporte-se agora para os minutos que prece-

deram seu nascimento. Provavelmente, sua mãe está nervosa. Por esse motivo, buscou ajuda profissional para ajudá-la a cumprir essa missão que todas as outras mamíferas fazem sozinhas: dar à luz um bebê. Acompa-nhe-a durante o trabalho de parto, tentando projetar como esse processo se deu para você. Vamos lá?

Até há pouco tempo, era você quem deci-dia como e quando mexia seu corpo. Virava, torcia, encaixava-se. De repente, não mais que de repente, está sofrendo fortes empurrões para todos os lados e sente que, inevitavelmente, querendo ou não, vai escorregar. Lá vai você rumo ao desconhecido. Agora, seu corpo deixou o meio líquido e o ar faz fricção em sua pele. Como está frio! Os ruídos tornaram-se muito altos e invadem seus ouvidos. Há luz. Alguém lhe pendurou e começou a esfregar um pano no seu corpo. Aposto que você está com medo.

Com sorte, alguém mais apostou nessa hipótese e lhe colocou sobre um ventre macio – do lado de fora, evidentemente. Há um cheiro lá. Seu instinto falou mais forte e você achou um mamilo que, curiosamente, encaixava-se perfeitamente em sua boca. Sua língua se mexeu e você sugou e, então, eis que, pela primeira vez, o gosto do leite inundou o céu de sua boca. Como é bom, Santo Deus, até que valeu a pena todo aquele empurra-empurra.

Como o cérebro do bebê reagiu a tanta

excitação?

Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem

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Se você conseguiu fazer o exercício proposto, pôde perceber que, ainda na pri-meira hora de vida de uma criança nascida em condições normais, os órgãos dos sentidos entram em ação: audição, visão, olfato, tato e paladar são convocados e, de algum modo, começam a ligar o bebê ao mundo, dando-lhe motivos para viver.

No início, portanto, há o predomínio da pura percepção, seguida da sensação que essa percepção provoca no corpo. O mundo é mudo, não nos diz seu nome. O bebê passou por uma experiência riquíssima, mas nem sabe quem é e nem conseguiria explicar o que de fato viveu. Ele se reduz a seu corpo e às sensações agradáveis ou desagradáveis que este possa lhe proporcionar. A palavra existe, mas, como ele ainda não transita por ela, está sujeito a um funcionamento muito parecido aos demais mamíferos, a alternância entre prazer e desprazer.

É interessante notar que, em 1895, ao descrever a experiência de satisfação do bebê humano no texto “Projeto para uma psicologia científica”, o psicanalista austríaco Sigmund Freud aproximava-se muito da perspectiva aqui descrita. A título de curiosidade, leia agora um fragmento desse trabalho que fala sobre o que acontece quando o bebê precisa lidar com sua sensação de fome.

Uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo [...], que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas manei-ras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação es-pecífica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres huma-nos é a fonte primordial de todos os motivos morais. [...] Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as consequências mais radicais no de-senvolvimento das funções do indivíduo. Isso porque três coisas ocorrem no sistema: (1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a ur-gência que causou desprazer em; (2) produz-se no pallium a catexização de um (ou de vários) neurônio(s) que corresponde(m) à percepção do objeto; e (3) em outros pontos do pallium chegam as informações sobre a descarga do movimento reflexo liberado que se segue à ação específica. Estabelece-se então uma facilitação entre as catexias e os neurônios nucleares.

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Você já se deu conta de quanto tempo demora para que a educação (familiar ou institucional) tire o bebê desse funcionamento mínimo e o faça interagir com o mundo de maneira refletida? No melhor dos casos, não menos de um ano, pois é apenas quando pode dispor de rudimentos de palavras que o humano começa a organizar um pensamento elaborado que o difere daquilo que um chimpanzé, animal bastante inteligente, também consegue construir.

Ou seja, estamos aqui afirmando mais uma vez que a linguagem tem uma função primordial na organização de nossas complexas formas de pensar e, dada a reiteração dessa tese principal, é chegada a hora de, com Vygotsky, inter-rogarmos mais aprofundadamente as relações entre pensamento e linguagem.

O conceito de pensamento verbal em VygotskySe você tem mais de 15 anos, com certeza absoluta já ouviu a seguinte inter-

rogação: “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?” Também deve saber que nos lembramos de reproduzir essa frase toda vez que nos parece muito difícil determinar onde alguma coisa começou, não é mesmo?

Quando nos interrogamos sobre as relações entre pensamento e linguagem, logo aparecem acaloradas discussões de igual teor: para alguns, o pensamen-to aparece primeiro e nos dá condições de aprender as palavras, e para outros ocorre o contrário. Vygotsky encontra-se dentre os partidários do último grupo. De fato, pode-se afirmar que, para o autor, a palavra é o material do pensamento ou, melhor dizendo, ela é o meio pelo qual o pensamento se estrutura. Para ele, “o pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir” (VYGOTSKY, 1998, p. 156-157).

Nesse momento, é importante ressaltar dois aspectos cruciais na teoria do significado da palavra adotada por Vygotsky.

O autor não comete o mesmo erro comum entre os não-especialistas �em linguagem, que é o de pensar que uma palavra refere-se a um obje-to isolado do mundo. Afastando-se desse ponto de vista inadequado, ele concebe cada palavra como uma generalização que consiste em “um ato verbal do pensamento e reflete a realidade de modo bem diverso daquele da sensação e da percepção” (VYGOTSKY, 1998, p. 6).

Embora foque na análise dos significados das palavras, o autor não ignora �que elas só funcionam na presença de um sistema de signos que lhes dá

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consistência. Somente dentro do sistema, utilizando os termos do autor, pode haver entendimento entre as mentes por meio da linguagem como expressão mediadora.

É importante ressaltar que o psicólogo russo não explica o papel de ligação entre pen-samento e linguagem exercido pela palavra

considerando sua materialidade sonora (significante). Muito pelo contrário. Para Vygostsky, a parte da palavra que interessa é o significado.

Vejamos, nas palavras do próprio autor, essa centralidade do significado: “Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da ‘palavra’, seu componente indispensável. [...] do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito.” (VYGOTSKY, 1998, p. 151). Lendo essa citação, podemos concluir, portanto, que, para o autor, são os significados que associam o pensamento à representação da realidade feita pelos sujeitos.

Não temos contato direto com o mundo, mas incidimos parcialmente sobre ele na forma de nossos juízos (Ex.: “Que mulher feia!”), de nossos conceitos (Ex.: “Uma mulher feia é aquela em que as partes do corpo não combinam entre si”), ou de nossas deduções (Ex.: “Fulana, que dá muita importância à aparência física, está muito reticente sobre a nova namorada do filho: ela deve ser feia”).

É importante notar que, embora os três exemplos do parágrafo preceden-te sejam perfeitamente compreensíveis para todos nós, eles não nos fornecem qualquer descrição mais concreta de como seria uma mulher considerada feia pelo seu locutor. Inclusive, pode ser que, ao nos encontrarmos com a pessoa, a julguemos bastante apresentável.

O que isso significa? Que ninguém tem acesso direto aos objetos que são alvo do pensamento do outro. No máximo, temos acesso às palavras escolhidas por ele para descrevê-los para nós. Dada essa compreensão, é importante notar que, para construir sua teoria sobre as relações entre pensamento e linguagem, Vygotsky (1998) afastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em sua época, quais sejam:

a identificação – perspectiva que consiste na fusão entre o pensamento e a �fala, isto é, na compreensão de que se tratava de fenômenos indissociáveis; e

Como a palavra poderia dar origem ao pensamento?

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a disjunção – perspectiva que consiste na segregação entre o pensamento �e a fala, isto é, na compreensão de que são fenômenos que nada têm em comum.

Ao fazê-lo, construiu uma terceira vertente aproximativa, a intersecção (termo a ser entendido do modo como é feito na teoria dos conjuntos, ou seja, referin-do-se àquele subgrupo de elementos que é comum a dois conjuntos maiores). Observe a figura 1, para uma melhor visualização da teoria de Vygotsky sobre a relação entre pensamento e linguagem.

Linguagem PensamentoSignificado da palavra

Figura 1 – O pensamento verbal como locus da união entre pensamento e linguagem.

Observando a figura 1 mais atentamente, o leitor notará que, para o psicó-logo russo, no cérebro humano, pensamento e linguagem estão ligados numa zona que consiste no pensamento já recortado e formatado por meio da pala-vra. Vygotsky chama essa entidade híbrida de pensamento verbal.

A dupla função organizadora da palavraPara Vygotsky, a palavra tem importantes funções de organização interna e ex-

terna do ser humano. Ao recortar uma massa indistinguível de pensamento em pensamento verbal, permite que um sujeito compreenda as coisas que vê e vive e, também, que possa partilhar essa compreensão com seus pares e descendentes. Confira a figura 2, para uma primeira tomada de conhecimento dessa dupla função.

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Linguagem e Pensamento

Ser uma unidade interna do pensamento generalizante.

Ser uma unidade do intercâmbio social.

IESD

E Br

asil

S. A

.

Figura 2 – A dupla face da palavra.

De acordo com a figura 2, podemos pensar que, funcionando tanto em uma vertente interna quanto em uma externa, o significado da palavra dá aos homens uma coerência em sua reflexão e mantém aos olhos de seus pares uma consis-tência de seu lugar no mundo. Retomando um pouco mais esquematicamente:

Função interna da palavra – organizar o pensamento do homem, por meio �de operações como, por exemplo, a classificação e a seriação.

Função externa da palavra – permitir aos homens que possam a) compar- �tilhar as conclusões a que chegaram a partir da organização prévia de suas idéias; b) inserir-se nas relações sócio-históricas por meio de um lento pro-cesso de apropriação dos conceitos; c) transmitir esses conceitos aos des-cendentes de uma cultura.

Em suma: nessa visada, a palavra tem uma importante função no desenvolvi-mento intelectual do humano. Não se pode esquecer que, em grande parte, esse processo se deve ao fato de que as palavras evoluem, não são estáticas. Isso é verdade tanto se considerarmos a história da humanidade quanto se isolarmos a história de uma criança em particular.

Para ilustrar a riqueza em que consiste o acompanhamento da evolução dos modos de pensar sobre o mundo e expressar os pensamentos de uma criança,

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trago aqui um testemunho escrito por um pai de uma menina brasileira que, na ocasião em que os fatos relatados ocorreram, estava com 18 meses.1

Observe que o narrador, que na ocasião estava fazendo parte de seu doutora-do em linguística em Paris, mostra-se encantado com as inegáveis mostras de refi-namento conceitual de sua pequena filha e, por esse motivo, gasta algum espaço de uma longa carta escrita para seu orientador no Brasil visando partilhar a experi-ência que vivia naquele momento narrando uma parte de sua vida familiar.

Não se trata, entretanto, de uma narrativa vã. Se o leitor prestar bastante atenção, vai perceber que, para além do pai, lá está o linguista. Ele não se limita a narrar acontecimentos, mas o faz estabelecendo as relações existentes entre a ampliação vocabular e a compreensão de mundo testemunhado por sua garoti-nha. Acompanhemos sua saborosa narrativa.

Quem produz conhecimento a todo vapor é mademoiselle Lorrá (Laura para os poucos íntimos que ela tem por aqui). Na área de zoologia, é difícil acompanhá-la. Primeiro, ela descobriu o cachorro e o chamou de vau. Depois, resolveu incluir toda a fauna nessa categoria. Com um pouco mais de obser-vação e de reflexão, ela criou a categoria pato, na qual incluiu todas as aves e as tartarugas. Passou um pouco mais e ela dividiu ainda mais a fauna, in-ventando a categoria pexe, que logo foi aperfeiçoada para peixo, e as tartaru-gas, jacarés e cobras foram reclassificadas, ficando neste último grupo. Veio então o tempo de redefinir o grupo vau: ganharam autonomia dois grupos, o mó (englobando geralmente os vaus que têm chifres) e o cavao (os vaus que pareçam meio grandes). Como grupo isolado, figuram em sua classificação o popote (hipopótamo) e o giiafa. Aproveitando essa fase produtiva, ontem fomos com ela ao Zoológico. Penso que a partir de agora sua análise vai ficar ainda mais refinada. Para mim, ela resolveu de uma vez por todas o proble-ma de classificação das focas: quando está nadando é peixo, quando põe a cabeça fora d’água é vau.

Laura adora museus. Quando a gente entra, ela já sabe onde está e vibra. Ela já desenvolveu até um balanço de corpo específico para fazer quem es-tiver com ela no colo ir para o quadro seguinte. Depois, ela faz voltar várias vezes naquele que ela mais gostou. A cada vez, ela vai descobrindo coisas menores nos quadros. Nas igrejas, é a mesma coisa. Em geral, ela vê primeiro os bida (umbigo), os nalijo (nariz) e os pé dos anjos!

1 Agradeço a Valdir Heitor Barzotto a gentileza de autorizar a divulgação deste encantador parágrafo de uma carta escrita por ele para João Wan-derley Geraldi, em 20 de janeiro de 1997.

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Sua língua é, sem dúvida, o português. No começo, ela ria quando a gente falava francês com ela, achava que era brincadeira. Agora, ela já sabe que muita gente fala francês e até fala alguma coisa como boju (bon jour), ovoá (au revoir), maintnant, vavá (ça va?), tô (manteau). E canta uma musiquinha que tem um longínquo parentesco com a nossa A barquinha virou, é: batô, batô, batô.

Morando na França, descobrindo o mundo em duas línguas, a menininha fala como pode, sempre meio estranho, mas, segundo seu pai, sempre de modo mais pertinente. Ao fazê-lo, ela se inscreve no mundo e, dando testemunho dessa deli-cada operação, contamina os adultos que a cercam com a agudeza de seu olhar.

Ainda bastante necessitada de usar a mímica e os movimentos de corpo, ela já está em uma situação que é bastante diferente daquela do bebê pequeno com a qual iniciamos esta investigação. Suas percepções e sensações já não são mais corpóreas: estão sujeitas aos dispositivos culturais e, na forma de suas pala-vras, neles deixam sua marca.

Se no início da aventura do homem sobre a Terra há o predomínio da pura percepção, seguida da sensação que essa percepção provoca no corpo e, como não estamos sozinhos sobre a face da Terra, nossos semelhantes logo passam a dizer os nomes das “coisas do mundo”, às quais nos apresentam. A palavra tem uma importante função no desenvolvimento inte-lectual do humano. Essa operação não é vã: ela nos leva a construir categorias cada vez mais elaboradas para conduzir nossa reflexão. Esse é um outro modo de dizer que somos seres de linguagem.

Texto complementar

O que podemos concluir dessa leitura de parte do percurso de

construção do pensamento de uma criança?

Dialogismo: a linguagem verbal como exercício do social

(LUKIANCHUKI, 2005)

O pensamento de Bakhtin revelado em suas obras, apesar de plural, tem uma unidade garantida pela centralidade da linguagem, cujo método de aná-lise é a dialética. Dialogismo é o conceito que permeia toda a sua obra. É o

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princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que toda a vida da lin-guagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A con-cepção dialógica contém a ideia de relatividade da autoria individual e conse-quentemente o destaque do caráter coletivo, social da produção de ideias e textos. O próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra com o outro. Pensar em relação dialógica é remeter a um outro princípio – a não-autonomia do discurso. As palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas palavras do outro: o discurso elaborado pelo falante se constitui também do discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em lingua-gem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social. Nos seus escri-tos, Bakhtin aborda os processos de formação do eu através de três categorias: o eu-para-mim, o eu-para-os-outros, o outro-para-mim. Da formulação dessa tríade, pode-se entrever sua inquietude frente a algumas questões: Como o eu estabelece sua relação com o mundo? Existe uma oposição entre o sujeito e o objeto? De acordo com Maria Teresa de Assunção Freitas, “Para ele, não há um mundo dado ao qual o sujeito possa se opor. É o próprio mundo externo que se torna determinado e concreto para o sujeito que com ele se relaciona.”

[...] A consciência individual é, portanto, um fato social e ideológico. Dito de outra maneira, a realidade da consciência é a linguagem e são os fatores so-ciais que determinam o conteúdo da consciência – do conjunto dos discursos que atravessam o indivíduo ao longo de sua vida, é que se forma a consciência. O mundo que se revela ao ser humano se dá pelos discursos que ele assimila, formando seu repertório de vida. Pelo fato de a consciência ser determinada socialmente, não se pode inferir que o ser humano seja meramente reprodu-tivo, o que se ressalta é, portanto, a criatividade do sujeito humano: é influen-ciado pelo meio, mas se volta sobre ele para transformá-lo. Duas vezes nasce o homem: fisicamente (o que não o faz inserir na história) e socialmente deter-minado pelas condições sociais e econômicas. Posto isso, não se pode susten-tar a ideia – tão propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista – de que a ideologia deriva da consciência. Sob a forma de signos é que a atividade mental é expressa exterior e internamente para o próprio indivíduo. Sem os signos a atividade interior não existe. A palavra não é só meio de comunicação, mas também conteúdo da própria atividade psíquica.

[...] Retomando a questão do dialogismo, e, ainda com relação à palavra diálogo, além do seu sentido estrito – o ato de fala entre duas ou mais pes-soas –, pode-se tomá-la também em seu sentido amplo, a saber, qualquer

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tipo de comunicação verbal, oral ou escrita, exterior ou interior, manifestada ou não. O livro, por exemplo, é um ato de fala impresso. Segundo Bakhtin, “O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideoló-gica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.”. Tudo está em constante comunicação. À ideia de diálogo agrega-se um outro elemento que não se refere apenas à fala em voz alta de duas pessoas, mas a um discurso interior, do qual se emanam as várias e inesgotáveis enunciações, que são determinadas pela situação de sua enunciação e pelo seu auditório. Conforme Bakhtin,

A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação.

A toda essa questão está relacionada a formação de repertórios, que, no dizer de Bakhtin, são formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pela circunstância.

Dessa maneira, as formas estereotipadas no discurso da vida cotidiana res-pondem por um discurso social que as consolida, ou seja, possuem um audi-tório organizado que mantém a sua permanência, refletindo, assim, ideologi-camente a composição social do grupo, evidência da afirmação de Bakhtin ao dizer que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” ou “todo signo é ideológico”. Por essa razão é que, mesmo em uma aparente simples anedota que se conta sobre o negro, o judeu, o nordestino, a mulher etc., os preconcei-tos que afloram nada mais são do que exercício constante dos elementos cul-turais desse grupo social. O enunciatário, no entanto, pode oferecer obstáculos à sua realização/manutenção provocando rupturas que vão infiltrando sensí-veis mudanças iniciais, mas que podem ganhar corpo. Daí o entendimento de que todos são sujeitos da enunciação – enunciador e enunciatário – porque o caráter interativo nada mais é do que a possibilidade de transformação, seja pelo enunciador, seja pelo enunciatário, passando a refletir e refratar a reali-dade dada. É a ideia da palavra em movimento, o poder da palavra. Por meio dela, os sujeitos são postos em ação para reproduzir ou mudar o social.

[...] Por todas essas considerações, pode-se perceber por que o dialogismo é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões referen-tes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a importância desse conceito reside, inclusive, no fato de ratificar o conceito

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de comunicação como interação verbal e não-verbal e não apenas como transmissão de informação. A contribuição à complexidade desse conceito também se verifica por implicar outros: interação verbal, intertextualidade e polifonia. Esses termos parecem designar um mesmo fenômeno com peque-nas variações entre si. São estas especificidades que vão estabelecer as dife-renças entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus diferencia-dos. O mais importante é perceber que todos eles, independentemente de suas particularidades, rompem com a arrogância e a onipotência do discurso monológico. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem.

Atividades1. Em que medida falar com o bebê pequeno é importante para a estruturação

do pensamento do humano?

2. Em que medida Vygotsky se interessava por pesquisar o pensamento em si?

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3. Qual a função do significado da palavra na estruturação do pensamento hu-mano de acordo com a teoria de Vygotsky?

Dicas de estudoLURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e Linguagem: as últimas conferên-cias de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

Essa obra trata de diversos temas articulados entre si: a relação entre a lin-guagem e a consciência; a palavra e a estrutura semântica; o desenvolvimento das palavras; campos semânticos; a linguagem interior; a linguagem oral e a or-ganização cerebral. Dentre essas tantas contribuições, destaca-se o conceito de comunicação verbal desdobrada, que, por sua vez, refere-se ao processo psíquico interno (para o autor, projeto de alocução) que precede um determinado ato de fala. Estudar o projeto de alocução é, portanto, uma tentativa de estudar o pen-samento propriamente dito ou, melhor dizendo, a parte deste que é possível conhecer, uma vez que ele não se deixa apreender totalmente pela linguagem.

Ressalte-se que essa é uma publicação de fundamental importância para os professores que trabalham com a expressão oral, leitura e escrita, uma vez que deixa claro que uma enunciação verbal não é um simples ato de materialização de uma ideia previamente formada, mas precedida por um complexo mecanis-mo interior, que tem por finalidade a expressão verbal.

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Você já parou para pensar que, em nossa cultura, não existe consenso sobre as possibilidades e limitações da educação na formação de uma criança?

De um lado, está um grande número de adultos descompromissados que justificam sua falta de habilidade para exercer uma ação formativa por meio de uma posição determinista. Ela pode ser expressa pelo ditado po-pular “Pau que nasce torto, morre torto”. Segundo sua lógica, já há no bebê, em estado latente, tudo aquilo que um homem virá a ser um dia, não exis-tindo, consequentemente, qualquer possibilidade de sucesso para alguém que, em determinado momento de sua vida, tendo se dado conta, por exemplo, de um erro cometido na educação de um filho, deseja corrigi-lo.

Do outro lado, estão os corajosos que assumem o desafio de sustentar o ato educativo desde a mais tenra idade daqueles pelos quais se sentem responsáveis. Segundo sua lógica, embora seja verdadeiro que, desde o nascimento (e talvez até antes) seja possível detectar diferenças de com-portamento, gostos, caráter etc. em nossos bebês, não é menos verdadei-ro que essas tendências – em certa medida, constitucionais – possam ser refreadas ou encorajadas de acordo com as normas da cultura na qual a criança está sendo inserida. Ainda recorrendo ao campo dos ditados po-pulares, sua posição pode ser descrita do seguinte modo: “É de pequenino que se torce o pepino”.

O primeiro grupo, portanto, acredita em uma espécie de petrificação do homem: ao longo de sua vida, cada um permanece do jeito que sempre foi e sempre será. Como uma espécie de múmia viva, ele vem e vai no mundo sem nunca ter deixado sobre ele qualquer tipo de marca. O segundo grupo, ao contrário, é partidário da possibilidade do movimento, da alteração qualitativa da situação de um sujeito. Muito comumente, reconhecem que a possibilidade de alterações não é infinita, uma vez que encontra limites no real do corpo e em todo tipo de contingência social (condições socio--econômicas muito precárias, ausência de adultos comprometidos com a criança, inserção em uma comunidade de criminalidade etc.).

Vamos propor, agora, então, uma brincadeira que, ao mesmo tempo é uma pergunta séria. Se Vygotsky fosse vivo e estivesse fazendo fofoca sobre

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os filhos dos vizinhos aí pertinho da sua casa, em que grupo ele estaria? Você disse que estaria no grupo dos que acreditam na necessidade de “torcer o pepino”? Muito bem! Essa resposta indica que você está pronto para compreender o papel que a linguagem exerce no desenvolvimento intelectual de uma criança.

A linguagem torna o homem mais complexoAs teses que devem sua origem ao pensamento vygotskyano defendem uma

concepção de homem segundo a qual o adulto humano é um ser que nasce portando várias de suas futuras qualidades em estado latente. Entretanto, ele se afasta da visada que defende a existência de uma espécie de “programação de computador genética” responsável por fazê-lo amadurecer e tornar-se adulto por meio da passagem do tempo e da absorção das informações que um orga-nismo poderia conseguir interagindo diretamente com o meio.

Ao contrário, como resultado de suas inú-meras pesquisas, o autor defendia a tese de que toda e qualquer aquisição de conheci-mento por parte de um humano é sempre intermediada (explícita ou implicitamente)

pelas pessoas que rodeiam a criança. Dentro dessa visada, portanto, o adulto tem um papel absolutamente primordial no desenvolvimento intelectual de uma criança. Isto é: ninguém nasce “inteligente”, mas torna-se um ser capaz de construir e usar um complexo sistema de “processamento de dados” que corres-ponde aos complexos mentais superiores.

Neste ponto, é importante ressaltar que Vygotsky não imaginava que o pai e a mãe de um bebê deveriam se portar como uma espécie de professores anteci-pados na educação de seus filhos. Quando ele defendia a importância do papel dos adultos no desenvolvimento dos pequenos, não se tratava de uma posição de douto conferencista, mas simplesmente do fato de poder portar condigna-mente os significados sociais e históricos das coisas e palavras com as quais o bebê toma contato.

Mesmo correndo o risco de tratar a questão de modo um pouco superficial, vamos trazer aqui um exemplo muito simples. Tomemos o caso de uma criança assustada com o barulho de fogos de artifício. Aquela que vamos chamar de mãe 1, diz “Cala a boca, seu tonto, que besta!” Enquanto isso, aquela que vamos chamar de mãe 2 diz “Não se assuste. São fogos de artifício. As pessoas sempre usam para comemorar quando estão contentes.”

Como se porta o adulto que exerce a importante função de introduzir os novatos na

cultura elaborada?

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Analisando os dois enunciados fictícios aqui reproduzidos, veremos que a primeira mãe limita-se a insultar seu próprio filho e opta por mantê-lo na igno-rância no que diz respeito às causas de seu medo. A segunda, por sua vez, realiza as seguintes operações por meio de sua fala: 1) acalma a criança; 2) nomeia o objeto que está produzindo o ruído; 3) esclarece a criança sobre os usos sociais do objeto; 4) usando a palavra sempre, previne a criança de que aquela situa-ção tende a se repetir. Por último, de maneira mais indireta, testemunha de que, também ela, não tem medo de fogos de artifício, uma vez que pode falar tran-quilamente sobre o assunto.

Ou seja, a mãe 2 é capaz de portar os significados sociais e históricos das coisas e transmiti-los ao seu filho. Teorizando um pouco mais esse processo que acabamos de tratar de maneira intuitiva, vamos recorrer ao trabalho de Luria e Yudovich (1985). Após um extenso e rigoroso processo de pesquisa envolven-do crianças de variadas idades, esses seguidores de Vygotsky chegaram a uma conclusão que muito interessa a todos que se responsabilizam pela educação de crianças: a descoberta de que as mudanças qualitativas no uso na linguagem não se fecham em si, mas, ao contrário, introduzem diferenças na formação dos complexos processos mentais superiores do homem. Nas palavras dos autores:

As primeiríssimas palavras da mãe, quando mostra a seu filho objetos e os nomeia, atribuindo--lhes uma palavra determinada, têm uma importante influência, não avaliável, porém decisiva, na formação dos processos mentais da criança. A palavra, relacionada à percepção direta do objeto, isola seus traços essenciais. O fato de nomear o objeto percebido “copo”, acrescentando o seu papel funcional “para beber”, isola as propriedades essenciais do objeto e inibe as menos essenciais (como seu peso ou forma exterior). (LURIA; YUDOVICH, 1985, p. 12)

Concluindo: os autores afirmam que a palavra, ao transmitir a experiência de gerações tal como foi incorporada à linguagem, liga um complexo siste-ma de conexões no córtex cerebral da criança. Por ser portadora do saber acumulado na cultura e na história, a palavra “toma corpo”, inscreve-se num organismo e, ao fazê-lo, alte-ra-o. De posse da palavra contextualizada, a criança ganha uma poderosíssima ferramenta que sofistica a percepção infantil, dotando-a de formas de análise e de síntese que a criança seria incapaz de desenvolver sem o auxílio de um adulto parecido com aquele que chamamos de mãe 2.

Dizendo de outro modo, as abordagens educativas que tiveram sua origem na teoria vygotskyana concebem a aprendizagem como um fenômeno que se realiza somente quando há oportunidade de interação de um sujeito com o outro. Essa posição é coerente com a premissa do psicólogo segundo a qual o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento geral de

O que a criança faz com as informações que lhe

são disponibilizadas pelos adultos?

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nossa espécie, ou seja, fruto de nossa organização social. Até o presente mo-mento, entretanto, estivemos discorrendo sobre o papel do adulto no desen-volvimento intelectual infantil, mas nada falamos sobre o que ocorre do lado do bebê. É chegada a hora, portanto, de discorrer sobre o que ocorre com a criança a partir da disponibilização desse cabedal de informações.

O conceito de internalização e sua relevância para refletir o ato educativo

O bebê humano pressuposto na teoria de Vygotsky não é um ser passivo. Ao contrário, ele só caminha na direção da complexificação de seus padrões de pensamento caso se engaje em um processo de reelaboração daquilo que “aprendeu” para transformar as palavras que escutou em outras que sejam mais adequadas à sua “linguagem interna”.

Compreendendo que a faculdade da linguagem diferencia o homem dos demais animais inteligentes, o autor destaca que, para nós humanos, o uso de signos faz com que se crie um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Consequente-mente, ele classifica os signos como estímulos de segunda ordem, cuja lógica, ao se impor para o bebê, substitui o processo simples de estímulo e resposta por um ato complexo, isto é, mediado pela linguagem (VYGOTSKY, 1988, p. 45).

Pode-se dizer, portanto, que o signo funciona como elo entre nós e o mundo. Ele cumpre a importante função de fazer com que os elementos que nossa per-cepção capta façam sentido para nós. Esse processo tem extrema importância para o processo do desenvolvimento humano, pois dificilmente, ao escutar uma palavra cujo significado nos escapa ou ao encontrar um objeto cujo uso desco-nhecemos, vamos tentar utilizar uma coisa ou outra, o que limita nosso campo de experiência. Isso ocorre porque o homem é um animal que precisa que as coisas “façam sentido” para que ele se autorize a incidir sobre elas.

Ressalte-se, neste ponto, portanto, que os signos têm a importante propriedade de exer-cer uma ação, não só sobre o ambiente externo mas também, em primeiro lugar, sobre o indi-

víduo, oferecendo-lhe não só um campo maior de objetos nos quais ele se autoriza a incidir como igualmente formas de operações psicológicas novas e superiores.

Você já notou que nós temos medo de pegar objetos cuja forma não “entendemos”?

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Por meio de experiências clínicas com crianças de várias idades, o psicólogo e seus seguidores perceberam que a conquista dos processos psicológicos supe-riores demora a ser construída no pequeno humano, dando-se da maneira como sistematizada no quadro 1.

Quadro 1 – A conquista dos processos psicológicos superiores

Idade pré-escolar Idade escolar Adulto

A criança ainda não é capaz de controlar previamente seu comportamento quando de-seja realizar tarefas concretas, estando sujeita às contingên-cias.

A criança já pode controlar seu comportamento com o auxílio de signos externos e, desse modo, é mais eficien-te na realização de tarefas às quais se propõe.

O signo linguístico age como um instrumento da atividade psicológica, organizando-a. Consequentemente, seu com-portamento pode permanecer mediado, ou seja, planejado e refletido com antecedência.

Idade pré-escolar Idade escolar Adulto

Exemplo: não verifica se pe-gou todos os bonecos que vai precisar para montar a en-cenação de uma guerra, ten-do que voltar ao seu armário muitas vezes.

Exemplo: para não esquecer de pegar um livro na bibliote-ca, amarra uma fita em torno do braço.

Exemplo: antes de começar fazer um bolo, a dona-de- -casa experiente verifica se dispõe, em seu armário, de todos os ingredientes de que precisa.

Dada essa sinopse, é necessário nos interrogar como uma fase dá lugar à outra. Para responder a essa interrogação, o autor parte da premissa de que a troca de palavras em meio social possibilita ao sujeito a apropriação de conhecimentos que circulam no lugar onde vive por meio de uma internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas. Nas suas palavras, “a in-ternalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvi-das constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qua-litativo da psicologia animal para a psicologia humana” (VYGOTSKY, 1988, p. 65).

Para ele, todo processo de aprendizagem se inicia por uma atividade externa. Na vida cotidiana, percebemos, por exemplo, que a criança não fica indiferente às atividades dos adultos. Quando vê os outros fazendo algo que ela não conhe-ce, a criança não só costuma observar atentamente como interroga o praticante sobre diversos aspectos de seu interesse. A partir de sua curiosidade, portanto, num primeiro tempo se estabelece um processo que é interpessoal.

Num segundo momento, esse processo torna-se intrapessoal. A criança, por assim dizer, fala consigo como o adulto fez durante o primeiro momento. Observando-a

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mais detidamente, podemos escutar, inclusive, que ela censura: “Você não está fa-zendo isso direito”, dá recomendações para si mesma: “Faça isso com mais calma”, relembra-se do próximo passo a ser seguido: “Agora tem que fechar a perna do o...” Ela incorpora, portanto, a voz do outro que previamente lhe ensinou.

Vygostsky conclui dessa constatação empírica que o processo de internaliza-ção consiste no resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento humano. Curiosamente, todas as funções no desenvolvimento do homem aparecem duas vezes: uma primeira no nível social e, posteriormente, no nível individual.

A zona de desenvolvimento proximal e sua aplicabilidade para refletir sobre a educação

Prosseguindo o raciocínio sobre os processos de internalização que acaba-mos de mencionar, Vygotsky (1988) busca estabelecer dois níveis de desenvol-vimento para compreender como se dão as relações entre o processo de desen-volvimento e a capacidade de aprendizagem.

Nível de desenvolvimento real � : refere-se à capacidade que a criança apresenta para solucionar atividades ou funções sem o auxílio de outra pessoa. Caracteriza-se, portanto, pelo desenvolvimento já consolidado.

Nível de desenvolvimento potencial: � refere-se àquelas ações que a criança tem dificuldade para realizar, necessitando da ajuda de um adulto ou de uma criança mais experiente que ela para ser bem-sucedida. Nível que denota desenvolvimento, uma vez que não somos capazes de fazer determinadas coisas sem auxílio.

Examinando os dois níveis que acabam de ser descritos, o leitor poderá con-cluir que entre um e outro existe uma zona a ser preenchida. Ela é chamada por Vygotsky de zona de desenvolvimento proximal e compreende, portanto, a distância entre o conhecimento real e o potencial, uma vez que comporta as funções psico-lógicas ainda não consolidadas, mas que já estão presentes na criança em estado embrionário. Ela caracteriza prospectivamente o desenvolvimento mental.

O mais importante para a reflexão sobre nossa prática pedagógica é, entretan-to, entender que, nessa linha de raciocínio, o processo de desenvolvimento cog-nitivo depende da possibilidade de o sujeito ser sempre colocado em situações-

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-problema que, a partir de sua zona de desenvolvimento proximal, provoquem a construção de conhecimentos e conceitos.

A possibilidade concreta de construção e consolidação de um conhecimen-to novo não está no eterno repetir daqueles que já foram consolidados, mas em sua desestabilização por novas informações que, ao serem processadas, irão gerar a mobilização de outros conhecimentos e de outros sujeitos.

O que o conceito de zona de desenvolvimento proximal nos ensina sobre o professor? Para estudar esse conceito e sua utilidade para a reflexão sobre a prá-tica do professor, julgamos relevante retomar algumas das considerações desen-volvidas em estudo anterior (RIOLFI, 1999). Concluímos aquele texto defenden-do a necessidade de apresentar aos alunos um conteúdo que, ao contrário da “papinha industrial que costuma ser o conteúdo dos nossos livros didáticos”, consistisse em “um osso duro de roer”.

Evidentemente, tratava-se de uma metá-fora forjada para a compreensão da neces-sidade de apresentar os conteúdos sempre na forma de um enigma e não previamente mastigados pelo professor. Já naquela ocasião, afirmávamos que ninguém ensina a ninguém, cada um aprende por si próprio. Só que isso não quer dizer que alguém aprenda seja lá o que for sozinho. Ninguém aprende nada sozinho e, para que se aprenda, o professor tem um papel absolutamente fundamental. Seu papel é o de transmitir um desejo bastante específico: o desejo de saber, o desejo de sustentar um trabalho que o leve a saber sobre algo que diz respeito ao sujeito que aprende, qualquer que seja a matéria curricular em jogo naquele momento.

Para argumentar a favor dessa tese, recorremos ao exemplo do desenho ani-mado O Rei Leão, da Disney – grande sucesso de venda entre as crianças e os adultos desde o seu lançamento, em 1995. Acho que todo mundo se lembra da história: após uma infância feliz, vivida lado a lado com seu pai, um adulto côns-cio de seu lugar na comunidade e exercendo com sucesso sua função de pai – que é basicamente a de transmitir ao jovem os valores da cultura, preparando-o, por sua vez, para encontrar o seu lugar na linhagem –, o jovem leão é forçado a se separar de sua família.

Exilado, junta-se a uma turma de outros jovens, mais interessados em “curtir a vida” do que em fazer valer sua saída da infância. Nessa turma, entrega-se aos prazeres de uma vida irresponsável, o avesso daquilo que seu pai lhe ensina-ra. Isso somado aos arrotos sonoros, à juba mal penteada, à maneira dançante

O que o conceito de zona de desenvolvimento proximal nos

ensina sobre ser professor?

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de andar, às conversas disparatadas – em suma, a uma exibição de desrespeito pelos conteúdos construídos historicamente por sua comunidade de origem.

Efetivamente, o leão apaixona-se por sua ex-companheira de infância, desde sempre prometida como sua noiva, reencontrada por acidente no meio da selva, mas, já que não estava disposto a arcar com suas responsabilidades, ele não en-tabula qualquer relacionamento de compromisso com ela.

A saída desse período irresponsável se dá por uma ação decidida de um adulto, pela ação incisiva de alguém que encarna o papel do sábio, portador de um saber cons-

truído e transmitido por gerações: o velho macaco, que assume seu papel sem vacilação. Por uma ação decidida (uma pancada com um pedaço de pau para lhe por “algumas ideias na cabeça”), essa “explicação” sobre qual era o seu lugar social faz com que o leão se insira novamente na comunidade, forme família e cumpra seu papel de bom rei, há muito previsto na cadeia das gerações.

O que essa história nos ensina? Antes de tudo, a fábula do desenho animado nos mostra que é por meio da intervenção da geração precedente que a nova geração assume suas responsabilidades sociais. Mostra-nos que, no caso especí-fico do professor, cabe a ele mostrar ao aluno que este vai à escola para aprender os valores acumulados durante séculos pela cultura. Cabe ao professor auxiliar o jovem a encontrar uma direção na vida, que, no mundo moderno, o da crise e o do desemprego, parece tão incerta. É pena quando os professores são levados a abrir mão também da sua função de adultos...

Em um texto muito curto, escrito em 1910 para criticar um diretor de escola que tentava eximir-se da responsabilidade pelo suicídio de alguns de seus alunos, Freud é preciso com relação a esse ponto, afirmando que a escola

[...] deve lhes dar [a seus alunos] o desejo de viver e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior. Esta não é a ocasião oportuna para uma crítica às escolas secundárias em sua forma presente; mas talvez eu possa acentuar um simples ponto. A escola nunca deve esquecer que ela tem de lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis. (FREUD, 1969, p. 243-244 , grifo nosso)

Concluindo aqui nossa reflexão sobre o papel da linguagem no desenvolvi-mento intelectual de uma criança, é necessário frisar que o educador que pro-cura inspiração na teoria de Vygotsky, para conduzir a sua prática, encontra-se convocado a conduzir seu cotidiano educacional de modo a formar um aluno que interaja com seu meio, com seus colegas e com o próprio professor.

O que essa história nos ensina?

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Faz também parte do papel do professor compreender que os erros devem ser vistos como sendo um indício do que a criança não consegue realizar sozinha ainda. Apostando em seu papel para o desenvolvimento intelectual da criança, o educador passa a encarar o erro como aquilo que revela o espaço no qual o pro-fessor deve oferecer auxílio. Não se trata, portanto, de julgar a criança, mas de fazer seu papel de educador, ou seja, transformar a falha em mais uma das conquistas de uma criança em formação. Vejamos o que Esteban afirma a esse respeito:

Nesta perspectiva, o processo ensino-aprendizagem é fortalecido e, ao mesmo tempo, redimensionado. A preocupação não se reduz apenas a alcançar a resposta certa e a aceitar os “erros” que porventura a precedam. Trata-se de priorizar a possibilidade de alunos e professores, num processo interativo, construírem novos conhecimentos que realimentem o processo. O coletivo é recuperado como espaço de construção e apropriação do conhecimento. (ESTEBAN, 1992, p. 83)

Finalmente, cumpre ainda dizer que aqueles que aderem à teoria sócio-histó-rico-cultural de Vygotsky assumem, portanto, um importante desafio: conhecer cada um dos seus alunos ao iniciarem suas atividades em sala, respeitando e compreendendo que o conhecimento adquirido no seu meio e as especificida-des dos modos de pensar de seu grupo cultural interferem na aprendizagem e no desenvolvimento do estudante e são instrumentos importantíssimos para serem utilizados a seu favor.

Texto complementar

Aula particular(NUNES, 1988, p. 51-60)

O canário na gaiola cantou; Maria olhou. A gaiola estava pendurada na janela, batia sol no canário, ele parou de cantar e começou a pular de um lado pra outro, será que ele queria sair? Mas a porta estava fechada, uma gaiola de nada, como é que prendiam ele assim apertado com tanto lugar pra voar? Escutou a voz de Dona Eunice:

— Mas antes você me diz se esses números são divisíveis por três, por dez e por mil.

Antes? Antes por quê? O que é que ela tinha falado primeiro? Será que tinha explicado muita coisa?

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Dona Eunice tirou um fiapo que estava preso na saia e botou ele dentro de um pratinho.

— É pra escrever, dona Eunice?

— É.

Maria fez força pra pensar. Dona Eunice levantou a mão, sacudiu o braço, e tudo quanto é pulseira foi pro cotovelo, uma esbarrando na outra. Quando Dona Eunice sacudia o braço daquele jeito é porque estava meio sem paci-ência, era melhor escrever logo uma coisa, mas o quê?

Uma coisa qualquer, depressa, correndo. Escreveu. Vai ver estava tudo errado. Dona Eunice foi dizendo:

— Certo. Certo. Certo. Este aqui tá errado!

Maria pegou o lápis.

— Não, não, não!

Que tanto não-não era aquele?

— Não risca, Maria! Eu já disse que não se risca caderno. Fica uma coisa feia, suja. E não tem nada pior do que a sujeira. Usa a borracha.

Maria pegou a borracha. Dona Eunice viu um fiapo no tapete e se levan-tou pra pegar. A borracha escapou da mão de Maria, rolou pro chão, caiu tão perto do focinho do cachorro que ele nem precisou se mexer pra começar a cheirar a borracha vendo se era coisa de comer. Maria olhou de rabo de olho e viu Dona Eunice descobrindo outro fiapinho no tapete; aproveitou e pegou disfarçado a borracha de Dona Eunice, que estava dentro de uma caixinha azul; começou a apagar com cuidado, pro papel nem enrugar nem rasgar. Dona Eunice sentou de novo.

— Isso. Agora escreve certo – Puxou tudo quanto é farelinho de borracha pra palma da mão, puxou o pratinho pra botar o farelo dentro, largou tudo de repente, prato, farelo, fiapo, a vontade de espirrar vinha vindo, vinha vindo, [...].

O espirro não veio e Dona Eunice falou:

— E então, Maria?

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Maria olhou pra Dona Eunice mas continuou pensando no cachorro: e se ele cismava de engolir a borracha? Era uma borracha grandona, boa mesmo pra ficar entalada em garganta de cachorro. Imagina se ele ficava todo en-gasgado e...

— Acorda, Maria!

— Hmm?

— Você não fez errado? Não apagou? Então? Faz direito! Mas vamos de uma vez, você tá mole demais.

Maria começou a escrever. [...] O que é mesmo que ela tinha que escrever? Ah! Antes ela tinha feito errado, bom, se antes tava errado, o jeito era fazer ao contrário. Mas será que ele tinha engolido mesmo a borracha? Firmou o olho no caderno e acabou de escrever.

— Tá certo, dona Eunice?

Dona Eunice suspirou “até que enfim” e começou a explicar matéria nova. Maria ficou olhando pra ela. Só quando Dona Eunice olhava pro livro é que Maria olhava pro chão. O cachorro não se mexia [...] vai ver engasgo de borracha não fazia barulho! E se o cachorro tinha se engasgado baixinho? E morrido bem baixinho? Dona Eunice falava, escrevia, a dormência do pé foi subindo, subin-do, Maria já não sentia a perna direito, por que que a Dona Eunice tinha virado o caderno pra ela?

— Você vai efetuar essas adições e subtrações de frações com denomina-dores iguais e desiguais.

Fração? Mas elas não estavam em número divisível?

— Mas, olha, Maria, eu quero que você use o MMC.

— MMC? (Ai, como a perna tava esquisita! Como ia ser bom sacudir ela bem.)

— Menor múltiplo comum. Ou será que você já esqueceu?

— Não esqueci, não. (Mas de que jeito? Se sacudia a perna, batia no cachorro.)

— E o MDC?

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— MDC? (e se a perna batia... e o cachorro, não mexia?)

— É.

— Que que tem? (Bom, se ele não mexia...)

— Você está lembrada do MDC?

— Tô, sim senhora. (...é porque tinha mesmo morrido baixinho.)

— Então, vamos ver: faça aí as operações.

Maria se debruçou no caderno. [...]

Maria começou a somar as frações. Resolvendo que só ia pensar no múl-tiplo e mais nada. [...]

A aula continuou.

Mas Maria não conseguia mais se lembrar do que ela tinha que fazer com o menor múltiplo. Desatou a morder o lápis. A unha de Dona Eunice come-çou a puxar de novo a pelezinha do polegar. Maria olhou pro relógio em cima da cristaleira (era relógio-despertador, tocava na hora da aula acabar).

— Temos tempo, Maria, temos tempo. Endireita as costas. Atenção com a coluna. Não morde o lápis desse jeito, estraga ele todo. E olha só sua boca, o lábio tá preto! Tudo sujo de casca de lápis.

[...] Dona Eunice suspirou. O cachorro voltou para baixo da mesa e o canário cantou. Maria sentou na mesma posição que estava antes. A aula continuou.

— Você sabe o que é um segmento?

— Um o quê?

— Segmento.

— Não.

— Você sabe o que é uma semirreta?

— Só reta.

— Alguma vez você já ouviu falar em paralelismo e perpendicularismo?

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— Bom ... – lembrou-se do circo: às vezes eles falavam em botar os cabos de aço paralelos. O pensamento ficou no circo; só voltou quando a dona Eunice parou de falar pra pegar o lencinho de bolso. [...]

Maria sentou em câmara lenta; endireitou as costas em câmara lenta; enco-lheu as pernas em — hmm! — quanto tempo ia aguentar naquela posição? E foi só o cachorro deitar que a Dona Eunice botou o pé em cima dele e falou:

— Agora vou explicar contorno, figura aberta e figura fechada. — Olhou pra Maria; franziu a testa, mal podendo acreditar: — Mas o que é isso?!

— O quê?...

— Você tá com a boca toda preta outra vez!

Ai: ia começar tudo de novo?

Mas o despertador tocou bem comprido e a aula particular acabou.

Atividades1. Qual a função das palavras da mãe na estruturação do pensamento do bebê

de acordo com a teoria de Vygotsky?

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Linguagem e Pensamento

2. Em que medida a teoria de Vygotsky se afasta da perspectiva comportamen-talista, segundo a qual, para o humano, é possível associar o estímulo e a resposta?

3. Como Vygotsky e seus seguidores descreveram a conquista dos processos psicológicos superiores no ser humano?

Dicas de estudoRODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

Nesse livro, que traz numerosas sugestões práticas de atividades que podem ser reproduzidas ou adaptadas pelos professores das séries iniciais, Gianni Rodari propõe uma série de expedientes para que os educadores consigam manter um contato prazeroso e afetivo com seus alunos; para que, por meio de atividades muito ricas e divertidas, consigam trabalhar o desenvolvimento da linguagem, da lógica, da estética; e que, por meio do exercício pleno da sua fantasia, consigam o fortaleci-mento da imaginação e a construção da criatividade, compreendida não como um dom concedido a poucos, mas como sendo parte da essência do humano.

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O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança

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Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa? Será que essa “hora certa” chega ao mesmo tempo para todos? Ela chega como fruto de um trabalho ou é consequência do desenvolvimento natural de uma crian-ça? Enfim, são muitas as perguntas que um professor se coloca quando o assunto em questão é a introdução, aprofundamento e progressão de conteúdos. Essas interrogações costumam ser desconfortáveis, já que, na maioria das vezes, geram insegurança quanto ao melhor ritmo para o de-senvolvimento de seu trabalho.

Para os professores que se inspiram na perspectiva vygotskyana para or-ganizar o seu modo de trabalhar, talvez a angústia para tentar respondê-las seja um pouco menor, uma vez que, nessa orientação, a educação não fica à espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas, ao contrário, enten-de que sua principal função é dar origem ao desenvolvimento. Não se trata, portanto, de esperar a criança se desenvolver primeiro para fazê-la aprender depois, mas, ao contrário, de fazê-la aprender para que possa se desenvolver.

Para você, essa perspectiva parece muito pouco familiar? Provavel-mente, sim, uma vez que essas ideias demoraram um bom tempo para chegar ao nosso país. Lembremos que, embora Vygotsky tenha sido autor de vasta obra – iniciada quando ele contava apenas 21 anos –, ela perma-neceu censurada na Rússia (seu país de origem) durante muitos anos. Por esse motivo, ela tornou-se pública em diversos países apenas a partir do final dos anos 1950 e início da década de 1960, quando algumas de suas obras chegaram às universidades americanas e europeias e, assim sendo, foram traduzidas para várias línguas.

A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

Quem foi Vygotsky?Vygotsky formou-se em Literatura e Direito pela Universidade de

Moscou. Mais tarde, iniciou estudos de História e Filosofia na Universida-de Popular de Shanyavskii e de Medicina de Kharkov e Moscou. Não

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concluiu estas últimas formações, mas nelas encontrou os subsídios que pre-cisava para desenvolver os estudos na área de psicologia. A partir de 1917, iniciou uma carreira extremamente rica em produções. Ainda na cidade de Gomel, onde esteve até 1923, fundou uma editora, criou uma revista lite-rária, estruturou um laboratório de psicologia, dirigiu a seção de teatro do departamento de educação e ainda proferiu várias palestras cujas temáticas centrais eram a ciência, a literatura e a psicologia. Morreu de tuberculose em 1934, mas sua obra não terminou junto com ele. Teve continuidade a partir do trabalho de dois pesquisadores que colaboravam e participavam de seus projetos: Alexei Leontiev e Alexander Luria.

(Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=431, 2005>.)

Lembremos ainda que, em suas pesquisas para identificar as mudanças qualita-tivas dos fundamentos do pensamento, encontram-se as influências marxistas do materialismo histórico. Essas teses levaram-no a conceber uma teoria que explica o desenvolvimento do comportamento humano em sua relação com o contexto social e, por este motivo, dar muita importância aos lugares em que o aprendizado se faz de modo sistemático e socialmente organizado, como veremos a seguir.

O papel da escola no desenvolvimento intelectual

Desde o início do capítulo, frisamos a importância de ensinar uma criança para que ela possa se desenvolver na plena potencialidade como os demais membros de sua espécie.

Isso significa que, segundo essa perspectiva, a função da escola é a de soterrar as crianças com o maior número de conteúdos possíveis? De forma alguma! Aprender, nessa visada, não é sinônimo de tomar contato com uma

lista de pontos registrada no currículo escolar, mas forçar uma passagem: trans-formar os conceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência social) em conceitos científicos (aqueles que são formalizados de acordo com as regras da cultura elaborada). Vejamos na citação a seguir o argumento utilizado pelos autores para defender a necessidade da intervenção do adulto no desen-volvimento intelectual da criança:

Você já ouviu falar que “uma andorinha

não faz verão”?

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A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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[...] a criança não consegue pensar de maneira suficientemente lógica e consistente para perceber que conceitos associados ao mundo exterior podem ser colocados em vários níveis e que um objeto pode pertencer ao mesmo tempo a uma classe mais estreita e outra mais ampla [...] pode-se dizer que o pensamento da criança é sempre concreto e absoluto. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149)

As crianças, quando são espontâneas, divertem-nos muito, não é verdade? Você, com certeza, já ouviu a seguinte anedota circular entre as mães que são suas conhecidas, nas mais diversas variações.

Criança:

— Me compra aquela boneca?

Mãe:

— Não posso, não tenho dinheiro.

Criança:

— Então compra com cheque, ué!

Por que elas fazem isso? De acordo com a perspectiva aqui exposta, elas o fazem porque têm indiferença pelas contradições e, por esse motivo, não con-seguem, por exemplo, alcançar soluções para problemas lógicos cujas soluções não podem ser inferidas por meio da observação direta do mundo real. Para tal fim, elas precisam ser inseridas na lógica da cultura.

Nesse ponto, uma importante constatação se apresenta: a necessidade da organização coletiva do grupo da escola, capaz de, às vezes, pelo simples teste-munho do modo como se organiza, dar a ver para um pequeno ser humano que certas soluções não são passíveis de serem alcançadas pela observação direta, necessitando de um cálculo. Para o professor, trabalhar no sentido de organizar o grupo é mais importante que imitar um super-herói, um cavaleiro da luz que trabalha sozinho e anônimo para o bem comum, tendo pouco “poder de fogo”.

Para dar um exemplo sobre o tipo de organização ao qual nos referimos, vamos trazer aqui o trabalho de Pacheco (2004), famoso mundialmente pelos bons resultados que vem conseguindo com “crianças difíceis” na Escola da Ponte, em Portugal. Interrogado sobre as razões de seu sucesso, Pacheco afirma que o segredo de seu trabalho é o estabelecimento de uma cultura de escola, compos-ta por normas, todas levadas muito a sério, estabelecidas há cerca de 30 anos. Deixemos Pacheco comentar a primeira de suas regras:

A primeira delas é: “Quem não é solidário não permanece aqui”. Esse valor de solidariedade é um valor que é avaliado permanentemente. Ninguém se disfarça de solidário. Não se pode disfarçar uma coisa dessas para jovens de 10, 11, 12, 14, 16 anos ou mais. Eles percebem a mentira nos gestos das pessoas. Se o professor não é solidário com o outro professor, também não vale a pena pensar que eles vão agir solidariamente. (PACHECO, 2004, p. 199)

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Linguagem e Pensamento

Lendo o trabalho de Pacheco, podemos ganhar em nossa compreensão sobre a tese, defendida por Vygotsky e Luria (1996, p. 148), pela qual os fatores mais importantes para o desenvolvimento psicológico são “[...] o desenvolvimento da tecnologia e, em correspondência a isso, o desenvolvimento de uma estrutu-ra social”. No nosso caso específico, podemos salientar a importância de uma cultura de escola que, como um todo, desafie o aluno e lhe forneça, não só um ambiente seguro para suas explorações intelectuais como, também, a presença inquestionável do saber acumulado pela geração anterior.

Tendo aqui concluído nossa exploração sobre o que Vygotsky e Luria chamam de desenvolvimento de uma estrutura social, é hora de nos interrogarmos sobre o que os autores chamam de tecnologia. Para tal fim, daremos privilégio à formu-lação que foi feita em suas próprias palavras:

A tecnologia avançada resulta na separação entre as leis da natureza e as leis do pensamento [...] paralelamente a um nível superior de controle sobre a natureza, a vida social do homem e sua atividade de trabalho começam a exigir requisitos ainda mais elevados para o controle do próprio comportamento. Desenvolve-se a linguagem, o cálculo, a escrita e outros recursos técnicos da cultura. Com a ajuda desses meios, o comportamento do homem ascende a um nível superior. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149, grifo nosso)

Se você entendeu a citação que acaba de ler, entendeu também um assunto que nos interessa muito de perto: a importância do ensino deliberado e sistemá-tico das funções sociais da escrita, seus modos de apropriação pela comunidade do aluno e as maneiras como ela circula no grupo escolar do qual você e o seu aluno fazem parte.

Que se frise, portanto, neste momento: não se pode esperar o aluno escrever por si só – é preciso instigá-lo e desafiá-lo para que tenha vontade de fazê-lo. Se você nos permite uma expressão muito popular que bem qualifica este ponto da reflexão, devo dizer que “é aí que a porca torce o rabo”!

Construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano

Neste momento de nossa reflexão, aposto que você já deve estar se pergun-tando sobre quais aspectos são os mais importantes se quisermos construir uma educação desafiadora para promover o desenvolvimento humano. Para respon-der a essa pergunta, é necessário dizer que, em primeiro lugar, devemos levar em conta que nossas salas de aula estão longe de serem homogêneas com rela-ção à sua procedência cultural.

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Essa heterogeneidade de nosso público-alvo, por sua vez, leva-nos à neces-sidade de pensar sobre as escolas que adotam o chamado multiculturalismo crítico. Vejamos, no que se segue, o que Cortesão (2004) tem a nos acrescentar sobre os efeitos positivos e potencialmente negativos daquilo que chama de práticas educativas e interculturais.

Nós devemos valorizar as características socioculturais, mas se não estivermos atentos e �não analisarmos as coisas profundas, nós podemos estar somente folclorizando as diferen-ças, não vendo as armadilhas postas ali.

Nós podemos contribuir para maior afirmação social de grupos minoritários, mas ao mes- �mo tempo podemos, quando eles se assumem com uma identidade e têm consciência dela, acentuar o exotismo das diferenças, tornando a questão bizarra.

Podemos ainda contribuir para a melhoria da autoimagem pessoal e grupal, entretanto, �essa melhoria pode ser acompanhada da inculcação da ideologia da incompetência, é a questão do “que coitadinhos”.

Podemos também contribuir com algo que para mim é muito claro, que é o caráter lúdico, �a alegria do processo da aprendizagem. É preciso que as escolas deixem de ser chatas, de ser soturnas, que haja alegria na aprendizagem, mas é preciso que isso não seja pago com o preço de as pessoas aprenderem menos. Pode-se aprender bem e contente, bem e feliz, isso acontece quando as pessoas percebem por que estão aprendendo, qual o significado e para que serve o aprendizado.

Finalmente, podemos produzir um processo de aquisição de poder, de consciência dos di- �reitos de cidadania, mas pode ser uma situação em que, com a folclorização das diferenças e a acentuação do exotismo, haja o isolamento, o enfraquecimento e até mesmo a gue-tização dos grupos, fazendo-os se isolarem da sociedade. Esse ponto eu tenho trabalha-do com os ciganos, o isolamento desse grupo diante da sociedade moderna. (CORTESÃO, 2004, p. 262-263)

A professora Cortesão, que mora e leciona em Portugal, mostra-nos, na lista de oposições encontradas acima, que, embora o discurso sobre o “respeito às diferenças” esteja muito disseminado, muitas vezes, por não ser suficientemente digerido, ele acaba sendo uma armadilha para seus defensores, que, sem per-ceber, acabam criando na escola um ambiente de segregação para as crianças cujos padrões de pensamento não são os da maioria. Para transpor essa discussão para o contexto brasileiro, vamos recorrer a um exemplo e a algumas das consi-derações analíticas desenvolvidas por Barzotto (2005). Como ponto de partida, em uma palestra sobre os discursos que circulam no interior da escola brasileira, o autor utilizou-se de uma gravação em áudio feita por uma de suas alunas, há alguns anos, numa primeira visita a uma escola. Trata-se de um diálogo do qual participam um aluno, de aproximadamente oito anos, e um supervisor escolar.

Tomemos contato com esse diálogo.

Aluno:

— A tia Rose taí?

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Linguagem e Pensamento

Supervisor:

— Que cê qué c’a Rose? Ahn?

Aluno:

— Falá um negócio pr’ela.

Supervisor:

— Que negócio cê qué falá c’a Rose?

Aluno:

— Um negócio.

Supervisor:

— Ué, negócio é negócio, meu fio. Vem cá. Vem cá. Que conteceu?

Aluno:

— (incompreensível) e eu fui lá vê na sala e lá tem outro professor.

Supervisor:

— Quem é a outra professora? Que sala que cê foi?

Aluno:

— Ahn?

Supervisor:

— Qual sala que cê foi. Qual a professora sua?

Aluno:

— Estudo c’a Marta.

Supervisor:

— E tá, qual a professora que tá lá agora?

Aluno acena com a cabeça indicando que não sabe.

Supervisor:

— Uma Leda, uma de óculos?

Aluno:

— É.

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A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança

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Supervisor:

— É naquela sala qué pu cê entrá mesmo, é lá mesmo qué pra entrá...

Na análise desse extrato, Barzotto mostrou que um primeiro nível de abor-dagem ao diálogo que foi transcrito seria o de focalizar o seu conteúdo, atendo, portanto, apenas aos fatos narrados. Nesse caso, a pergunta “De que fala o extrato acima?” nos levaria a uma resposta do seguinte tipo: trata-se do relato envolven-do um aluno, que foi até a sala em que estuda e encontrou outra professora. Sem entender direito o que estava acontecendo, procurou por uma pessoa a quem chamava de “tia Rose” e não a encontrou. Então, um supervisor da escola, um tanto impaciente, esclareceu que era para o aluno entrar na sala assim mesmo.

Afirmando que esse nível de exploração é bastante superficial e não nos leva a compreender de fato o impasse que está em jogo na relação desse adulto com a criança, Barzotto também aponta para a possibilidade de abordar o excerto a partir da pergunta “as falas dos personagens estão em conformidade com as regras da gramática normativa da língua portuguesa?”. No entanto, para ele, essa pergunta teria utilidade apenas na medida em que a variedade de língua utiliza-da pelos dois falantes servisse de indício para se especular sobre a classe social a que podem pertencer os envolvidos no diálogo, dado que, em si, não nos ajuda a aprofundar a reflexão sobre o cotidiano escolar.

Por esse motivo, o autor nos propõe um terceiro nível de exploração: refletir sobre a escolha dos enunciados realizada por cada um dos falantes. Defende que a pergunta proposta por Foucault (1987) como fundamental para a análise do dis-curso – “Por que apareceu o enunciado X e não outro possível?” – tornaria a análise mais produtiva. Para explorar essa vertente da análise, o autor salienta que é inte-ressante notar, por exemplo, que na primeira vez que o supervisor fala, ao invés de responder à pergunta que lhe foi feita, ele interpela o aluno com uma outra per-gunta, quebrando, ao mesmo tempo, as regras do diálogo e da etiqueta social.

Perseguindo a escolha de enunciados feita pelo supervisor, é possível formu-lar uma hipótese segundo a qual ela parece estar menos interessada em auxiliar o aluno e a lhe fornecer um espaço para pensar do que começar uma luta pelo poder. De fato, segundo a análise de Barzotto, a pergunta feita pelo supervisor demonstra que o poder de quem está num determinado lugar de prestígio lhe confere o direito de fazer perguntas que aquele que está em posição despresti-giada não tem. Dentro dessa lógica, a pergunta da criança ameaça o poder do adulto, que, de pronto, recupera-o.

Na continuidade de sua análise, mostra que a criança não ficou indiferente à posição do supervisor: ao contrário, ela entendeu muito bem que uma disputa

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estava instalada. Assim sendo, a criança também se deu o direito de não respon-der, embora tenha feito semblante de quem dá uma resposta. Ela é evasiva, escon-de o jogo, dizendo simplesmente “Falá um negócio pr’ela”, mantendo sua posição de esquiva quando nova pergunta é feita de novo, ela diz apenas “Um negócio”.

Ou seja, Barzotto nos mostra que a criança disputa o poder com o supervisor. Já que este tomou de volta o direito de perguntar (e o poder que tal ato confere), a criança lhe nega o direito de obter resposta e resiste o quanto pode. É como se ela fizesse questão de deixar claro o seguinte: “não é com você que eu quero falar, não é a você que eu confio minhas dificuldades”.

Tendo acompanhado a exposição feita por Barzotto, agora pensemos juntos: o que é possível ensinar para uma criança que, em consequência de nossos atos, está nos dizendo “eu não quero falar com você”? Muito pouco, sem dúvida!

Construindo uma relação pedagógica na qual seja possível explorar os conteúdos

Infere-se do exemplo explorado anteriormente, bem como de todo trabalho de Vygotsky, que não são tanto os conteúdos em si que contam, mas, em primei-ro lugar, o que faz diferença é a instalação de uma relação de confiança na qual a criança, a partir do que pôde concluir por suas investigações solitárias, tenha von-tade de fazer as perguntas corretas aos adultos responsáveis por sua formação.

Na concepção vygotskyana, portanto, o sujeito não é apenas ativo, mas in-terativo, uma vez que se constitui a partir das relações interpessoais. Por esse motivo, é importante compreender que, nessa visada, o aluno é visto como alguém que aprende junto com o seu grupo social. De fato, ele está, antes de tudo, amarrado por tudo o que o seu grupo social produz: os valores, as práticas sociais, os modos de circulação do conhecimento e assim por diante.

Por esse motivo, julgamos imprescindível que a escola recupere a identidade de ser o lugar onde a intervenção pedagógica intencional visa desencadear o processo de aprendizagem. Assim, o professor não deve se omitir. Ao contrário, como mediador entre a criança e a cultura elaborada, ele tem o papel explícito de interferir no processo da criança.

Faz parte do trabalho do professor, portanto, organizar sua prática pedagó-gica levando em conta que a aula não é um ambiente informal no qual a criança aprende por imersão em um ambiente cultural, mas sim um espaço em que, na

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troca com outros sujeitos, os conhecimentos, seus papéis e suas funções sociais sejam internalizados.

Para concluir, gostaríamos agora de retomar a questão com a qual esta nossa discussão foi aberta “Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa e tentar subs-tituí-la por outra que nos parece mais produtiva?”, “Será que nossa relação com nossos alunos e a relação deles entre si está organizada de modo que seja possível aprender alguma coisa?”. Em caso afirmativo, a boa hora chega, com certeza!

Texto complementar

A favor dos videogames(KANITZ, 2005, p. 22)

O cérebro humano é um órgão que absorve quase 25% da glicose que consumimos e 20% do oxigênio que respiramos. Carregar neurônios ou si-napses que interligam os neurônios em demasia é uma desvantagem evolu-tiva e não uma vantagem, como se costuma afirmar.

Todos nós nascemos com muito mais sinapses do que precisamos. Aque-les que crescem em ambientes seguros e tranquilos vão perdendo essas sinapses, que acabam não se conectando entre si, fenômeno chamado de regressão sináptica.

Portanto, toda criança nasce com inteligência, mas aquelas que não a usam vão perdendo-a com o tempo. Por isso, o menino de rua é mais esperto do que filho de classe média que fica tranquilamente assistindo às aulas de um professor. Estimular o cérebro da criança desde cedo é uma das tarefas mais importantes de toda mãe e todo pai modernos.

Sempre fui a favor de videogames, considerados uma praga pela maioria dos educadores e pedagogos. Só que bons videogames impedem a regressão si-náptica, porque enganam o cérebro fazendo-o achar que seus filhos nasceram num ambiente hostil e perigoso, sinal de que vão precisar de todas as sinapses disponíveis. O truque é encontrar bons jogos, mas não é tarefa impossível.

O primeiro videogame que comprei para meus filhos foi o famoso SimCi-ty, um jogo em que você é o prefeito de uma pequena vila e, dependendo de suas decisões, ela pode se tornar uma megalópole ou não. Se você for

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um péssimo prefeito, a população se mudará para a cidade vizinha, e fim de jogo. Em vez de eleger prefeitos, seria muito melhor se empossássemos o vencedor do campeonato de SimCity em cada cidade.

Um dia, eu estava brincando de prefeito quando meus filhos de 11 e 13 anos de idade, analisando meu planejamento urbano inicial, balançaram a cabeça em desaprovação: “Tsk, tsk, tks. Pai, daqui a 50 anos você vai dar com os burros n’água.” Eu, literalmente, caí da cadeira. Quantos de nós, aos 11 anos, tínhamos consciência de que os feitos na época poderiam ter conse-quências nefastas 50 anos depois? Quantos de nós pensaríamos em prever um futuro dali a 50 anos?

A lição que me deram com o famoso videogame Mario Brothers foi ainda melhor. Não tendo a paciência de meus filhos, eu vivia cortando caminho pelos vários atalhos existentes no jogo, quando novamente me deram o seguinte conselho: “Não se podem queimar etapas, senão você não adquire a experiên-cia e a competência necessárias para as situações difíceis que ainda estão por vir.” A frase não foi exatamente essa, mas foi o suficiente para me deixar com os cabelos em pé. Dois garotos estavam me ensinando que cada etapa da sua vida tem seu tempo e aprendizado, e nela não se pode sair apressado.

No jogo Médico, as crianças aprendem a fazer um diagnóstico diferen-cial, a pior das alternativas sendo uma apendicite. Nesses casos, elas têm de operar “virtualmente” o paciente seguindo condutas médicas corretas. Um dos procedimentos é a assepsia da pele, e ai de quem não escovar o peito do paciente, com o mouse nesse caso, por três minutos, o que é uma eternidade num videogame e para uma criança. Quem gasta menos do que isso é su-mariamente expulso do hospital por erro médico. Que matéria ou professor ensinam esse tipo de autodisciplina?

Em A-Train, o jogador é um administrador de empresa ferroviária. A crian-ça tem de investir enormes somas colocando trilhos e locomotivas sem contar com muitos passageiros no início das operações. Aprende-se logo cedo que uma empresa começa com prejuízo social e tem de ter recursos para suportar os vários anos deficitários.

Aos 12 anos, meus filhos já tinham noção de que os primeiros anos de um negócio são os mais difíceis, e controlar o capital de giro é essencial. Avaliar riscos e administrar o capital de giro, nem grandes empresários sabem fazer isso até hoje.

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Como em tudo na vida, é necessário ter moderação nas horas devotadas ao videogame. Mas ele é uma ótima forma de estimular o cérebro da criança e impedir sua regressão sináptica, além de ensinar planejamento, paciência, disciplina e raciocínio, algo que nem sempre se aprende numa sala de aula.

Atividades1. Por que o professor que segue a perspectiva vygotskyana não se preocupa

tanto com aspectos como prontidão ou maturação?

2. Por que os vygotskyanos tendem a dar grande importância à escola e à sua organização?

3. Em que medida ensinar um grande número de conteúdos às crianças é im-portante para os vygotskyanos?

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Dicas de estudoCERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: _____. A Invenção do Coti-diano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 221-246.

Partindo de uma perspectiva teórica conhecida como antropologia cultural, Cer-teau defende a tese de que o termo escritura é o nome que foi dado a uma triunfal conquista da economia que se consolidou nos séculos XVII e XVIII. O autor nos ex-plica que, sob o domínio de uma sociedade na qual a escritura serve como princípio organizacional, o ato de escrever não pode mais ser compreendido como uma ação mecânica. Ao contrário disso, segundo o autor, construir um texto sobre a página em branco pode ter um poder sobre a exterioridade. Ou seja, esse interessante texto de Certeau nos mostra como, a partir de um certo período histórico, a escrita não mais se limita a ser um registro do mundo, mas pode mudar a realidade.

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Você já parou para se perguntar por que o ato de escrever é uma dificul-dade bastante acentuada para tanta gente? Se não o fez ainda, com certe-za pelo menos assistiu a algum filme ou novela que representa a seguinte cena clássica: a pilha de papéis amassados na cesta de lixo ao lado do escri-tor vai crescendo assustadoramente e o pobre infeliz vai ficando cada vez mais entristecido, pois, apesar de tanto trabalho, ele nada produz...

Pensando sobre essa inibição frente ao ato de escrever afirmamos, em (RIOLFI, 2005b), que o trabalho com a escrita é, ao mesmo tempo, fasci-nante e dilacerante. Ressaltamos que a escrita pode ter a magia de perpe-tuar uma ideia, um pensamento, sentimentos e emoções à condição de que seu autor se autorize a sustentar um exercício constante de reflexão, paciência e perseverança. Reflexão sobre a questão mobilizada antes de escrever; paciência para a busca das palavras mais adequadas; perseve-rança para reescrever quantas vezes forem necessárias para alcançar a pa-lavra justa. Naquela ocasião, dizíamos ainda que escrever é um exercício constante de transformação. Se aquele que escreve está disposto a pagar o preço de se perder para se reencontrar em seu próprio texto, a escrita pode transformar tudo, inclusive o ser humano.

Será que sempre foi assim?

A invenção da escritaSabemos que a potência transformadora da escrita demorou a se ins-

talar na humanidade. A escrita surgiu em lugares diferentes, com fun-ções diferentes. Para alguns povos, tinha função predominantemente religiosa. Para outros, de acordo com Manguel (1998), a escrita foi desen-volvida por uma necessidade econômica: a de registrar quantidades de terras e de animais, bem como a de delimitar regiões geográficas. Para tais fins pragmáticos, os sumérios desenvolveram uma tecnologia apro-priada para suas necessidades específicas – a escrita cuneiforme. Manguel mostra que, ao se apropriar dessa escrita rudimentar para fins diferentes

O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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Linguagem e Pensamento

daqueles originariamente imaginados, nossos antepassados remotos foram, paulatinamente, construindo um instrumento ainda mais potente e que causou uma grande revolução da humanidade: o alfabeto fonético.

Por possibilitar infinitas combinações, po-dendo ser utilizado para atingir um grande número de pessoas com uma única emissão (como é o caso, por exemplo, dos outdoors) e oferecendo uma fixidez maior que a da fala, essa tecnologia foi, pouco a pouco, tornan-do-se central na organização e na manuten-ção de nossa cultura. Registrando normas e procedimentos, compartilhando ideias e checando a aprendizagem, a escrita é o ins-

trumento que pode proporcionar uma coerência de princípios filosóficos e ope-racionais nas várias instâncias, pois, para além da fala, que pode ser negada ou omitida, a escrita tem força de lei.

A mutação das funções sociais da escrita1

Nos mais variados lugares de nosso país aonde vou para ministrar cursos de formação de professores, uma mesma pergunta é repetida por aqueles que se dedicam ao ensino da escrita: “É ainda possível transmitir o amor pela escrita às novas gerações?”. De uns tempos para cá, mais do que nunca, penso como res-ponder a isso de forma sincera o dia inteiro. Ao fazê-lo, uma vozinha interna me diz: “Claudia, não esquece que você foi formada em outro tempo, é fruto de outras regras e, portanto, tem que explicar direito seu amor pela escrita.” Para contextu-alizar meu confesso amor pela escrita, devo dizer que nasci em 1965, mas como sou filha de pai velho, cresci em cidade do interior, e fui aluna de professores que, na data de minha graduação, tinham bem mais do que 50 anos, a tradição cultu-ral que em mim deixou sua marca é, sem dúvida, aquela anterior aos anos 1950.

Com certeza há, entre os meus leitores, pessoas que compartilham dessa he-rança cultural, mas isso não é verdade para um grande número de pessoas que estão na ativa como professores hoje, e ainda menos verdade para os alunos que, atualmente, povoam as carteiras das escolas básicas. Hoje em dia, o laço cultural que organiza nossas trocas sociais é outro. Cada um vale mais ou por

1 Nesta parte do texto, em decorrência da natureza bastante singular da argumentação que fiz no texto que lhe serve de base (RIOLFI, 2004), aqui apresentado de maneira adaptada, peço licença ao leitor para usar a primeira pessoa do singular.

Escrita cuneiforme.D

omín

io p

úblic

o.

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O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje

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sua (boa) aparência ou pelo que tem do que pelo que é. Ou seja: nos últimos 40 anos, o discurso capitalista se impôs como uma realidade indiscutível, sendo poucos os redutos nos quais não é ele quem dá as cartas e dita as regras do jogo. Seu centro é o objeto, ou seja, aquilo que pode ser comprado por via do dinheiro, usufruído para um prazer ou resultado imediato e, de preferência, rapidamen-te trocado por um objeto mais novo, mais moderno. Corremos como baratas tontas atrás das novidades, alimentando um mercado que demanda sempre mais dinheiro, enriquece sempre alguém.

A maioria de nossos alunos funciona nessa lógica. Confrontados com os con-teúdos escolares, os alunos querem saber que tipo de prazer imediato os conte-údos podem lhes dar ou a sua serventia direta para ganhar dinheiro. Tive opor-tunidade de escutar diversos relatos de professoras magoadas por alunos que as interpelavam em sala de aula dizendo a seguinte frase ou suas variações: “Não vou fazer nada do que a senhora está propondo, ganho mais em um dia ajudan-do os traficantes do meu bairro do que a senhora em um mês dando aulas aqui.” Eles não estão mentindo, é bom deixar claro. Estão apenas verbalizando em alto e em bom som um processo que, em maior ou menor medida, é comum a todos: a diluição dos valores morais e dos ideais formadores de conduta.

Os psicanalistas têm explicado essa diluição nos seguintes termos: eles dizem que rompemos com a lógica de uma cultura centrada no pai, caracterizada por um certo pensamento monotemático, por uma unidade de pensamento e de orientação. É isso que tenho em mente quando me lembro dos meus quase 40 anos. Quando fui educada, os pais tinham poucas dúvidas sobre a direção na qual deveriam encaminhar seus filhos e filhas. Na cabeça do meu pai, fã dos ditos populares, o que valia no exercício de uma profissão era a seguinte frase: “Você pode até ser um coveiro, mas seja um bom coveiro.”

Resumindo: o que estou querendo mostrar é que, para essas pessoas “anti-gas”, a letra tinha muito peso na tradição cultural, tendo quase um valor de feti-che. Aprendíamos a cultuar o bem escrever e a admirar os bons autores. Na cor-rida matrimonial, ganhava pontos como parceiro quem soubesse escrever uma poesia ou, ao menos, uma bela carta de amor ressaltando nossas qualidades.

Valia até copiar uma poesia do outro, mas que fosse bela, transcrita sem erros! Se, por um lado, tratava-se de um tempo em que havia muitos analfabetos, por outro, a letra estava no centro da cultura, e mesmo os analfabetos não lhe ne-gavam o valor. Se verificarmos a história de nossas famílias, com certeza muitos de nós nos depararemos com grandes sacrifícios feitos por algum antepassado

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analfabeto para educar seus filhos, pois havia um certo consenso no fato de que deveria ser preparado um melhor destino para as crianças e que este se obteria por via da introdução dos descendentes na cultura letrada.

Por milhões de anos, mantivemos o caráter original da escrita: o de objeto sagrado, originariamente inventado para servir de intermediário entre os homens e Deus. Quem conhece a história da Bíblia sabe que em um de seus livros (EXODO 31:8) está claramente indicado o fato de que as tábuas da aliança entre os homens e o reino dos céus eram tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus. Independentemente das crenças religiosas de cada um, estudando a his-tória do advento da escrita, somos obrigados a admitir que a escrita alfabética como a conhecemos hoje surge na cultura ao mesmo tempo que a invenção do monoteísmo, tendo, por longo tempo, funcionado como aliada na manutenção da cultura centrada nos valores de um pai, como apontei logo acima.

O que estou querendo mostrar com esse recuo até a instalação do monote-ísmo é que o estudo da história da escrita nos mostra, antes de tudo, como seu advento e seus usos estão completamente ligados com o laço maior da cultura. Portanto, não é possível estudar os fenômenos ligados ao uso, ao ensino e à conservação da letra como prática social sem nos remetermos ao laço social de forma mais ampla. É diferente considerarmos a letra como um fragmento do sagrado, exigindo cuidado, conservação e transmissão sistemática, e a conside-rarmos como uma tecnologia entre tantas outras possíveis. Manter a letra em seu pleno funcionamento, persistindo no difícil esforço de bem articulá-la no texto, demanda, pelo menos em algum grau, a insistência na manutenção de uma sociedade na qual as regras são claras, e que, antes de tudo, é claro o fato de que há regras a serem cumpridas e ensinadas para as crianças.

Isso que acabo de afirmar no parágrafo precedente equivale a dizer que, para aquelas pessoas que são fruto de uma tradição cultural contemporânea, na qual um pai não vale por sua mera condição de pai, mas pelo que pode ofertar em termos de conforto material para sua mulher e filhos, a letra deixou de ter um valor central. Estamos em face de um estranho paradoxo: no momento em que caminhamos para “o extermínio” do analfabetismo, uma vez que, como nunca, temos pessoas consideradas alfabetizadas, a letra foi esvaziada do seu valor. Perdemos o amor pela escrita como um fator social generalizado, mantendo-o, apenas, como um fenômeno isolado e pontual. O que temos hoje é uma insis-tência no uso da letra como uma tecnologia instrumental.

Escrever para conseguir emprego, redigir para ser secretária e dissertar para passar no concurso público são ações solidárias com a lógica da cultura capitalista,

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ou seja, quanto mais “funcionarmos” dentro de uma lógica utilitarista, mais fare-mos com que a letra perca seu poder, uma vez que a transformamos num objeto como outro qualquer. Nossa cultura contemporânea é caracterizada pelo fato de ser plural. Em seu seio, praticamente não há predomínio de uma opção em detrimento das outras: quase tudo se pode escolher.

O problema principal nessa perda de estatuto sofrida pela letra é o fato de que ninguém ama um objeto. A gente pode comprá-lo, usá-lo, trocá-lo, destruí--lo, mas quase nunca amá-lo. Consequentemente, cada vez mais, escreve-se de qualquer jeito, sem cuidado, sem carinho, sem requintes de ternura para com a mulher amada. Não é de se estranhar que, de norte a sul, uma mesma queixa sobre a má qualidade da escrita dos alunos se imponha e, o que é pior, seja real. Insistir nessa queixa é ajudar a enterrar os restos mortais da letra. Ninguém con-vence a quem quer que seja a voltar ao passado, até porque seria impossível.

Assim sendo, o que resta ao professor fazer?

O papel do professor no processo de aprender a escrever

Dadas as considerações de cunho cultural que acabamos de fazer no item precedente, convidamos o professor para “deixar de chorar o leite derramado” e olhar de frente a crise em que nossa geração se encontra. Para sermos eficazes no ato de ensinar a ler e a escrever, é necessário abdicar completamente das vãs esperanças de fazer com que nossos alunos vejam o mundo com os olhos de 50 anos atrás, porque, muito evidentemente, mesmo o professor mais competente não tem uma máquina do tempo.

Retomando a pergunta que os professores costumam se fazer (“É ainda possível transmitir o amor pela escrita às novas gerações?”), é necessário ressaltar que sua reposta é, ao mesmo tempo, negativa e afirmativa. Ela é negativa para todo aquele que pretende transmitir o seu amor pela escrita ao outro, sem levar em conta o fato de que, na contemporaneidade, as crianças estão regidas por uma outra lógica.

Entretanto, ela é positiva para todo aquele que, não temendo aprender com as lições do passado, olhe de frente para as mazelas do presente e, incluindo--se nelas, reflita sobre sua eventual responsabilidade e participação no estado atual das coisas e ouse criar para si um novo modo de viver e para seus alunos um novo modo de aprender. Tracemos, portanto, outros modos para trabalhar

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com a escrita. É hora de nós, educadores, transformarmo-nos em “operários do amanhã”. De preferência por escrito, dada a natureza de nossa profissão.

Tendo considerado essa decisão a respeito da importância de exercer seu papel de mediador, é hora de trazer algumas informações de natureza mais técnica que podem ajudar o professor a ensinar a escrever. Vamos dividir essa reflexão em duas partes: a primeira versa sobre o que não se deve fazer no momento de auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético; e a segunda, por sua vez, traz algumas indicações para facilitar o trabalho no momento de auxiliá-la a redigir melhor.

Auxiliar a criança a se apropriar do código alfabético exige saber o que estamos fazendo

Para discutir sobre a centralidade do papel de mediador exercido pelo profes-sor para que a criança possa se apropriar do código escrito, vamos analisar um fragmento de aula de alfabetização registrado por Smolka (1989, p. 33).

São 35 crianças na sala de aula de uma 1.ª série. Os “ruins” ocupam duas fileiras à esquerda, mas distante da mesa da professora, que se encontra no canto à direita. A professora começa e escrever na lousa, em linha horizontal e letra cursiva: ma me mi mo mu mão.

Pede para as crianças lerem a última sílaba dizendo:

— Aqui vocês vão ler com ão.

As crianças “leem”.

A professora escreve uma segunda linha e pede para que as crianças leiam: na ne ni no nu não.

As crianças repetem. A professora pede para as crianças copiarem cada linha no caderno de classe e depois no de casa. [...]

De frente para a lousa e de costas para as crianças, a professora pergunta:

— Se eu puser isso (aponta bo) aqui (na frente do né), como é que fica?

Uma criança fala:

— Boneca.

A professora pergunta, virando-se para as crianças:

— Quem falou boneca?

Ninguém responde.

Em sua análise a partir do fragmento acima, Smolka salienta que as crianças não correspondem às expectativas da professora quando planejou sua aula. Elas nem entendem o que era para fazer e nem realizam a tarefa conforme era es-perado. Tendo constatado essa falha no processo educativo, a autora passa a se ater no que a professora diz aos seus alunos no prosseguimento da aula.

Para nossa maior comodidade, em vez de transcrever a sequência da aula toda, recortamos, a seguir, algumas das falas da professora.

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— Quedê, você não fez nada? Nem o cabeçalho?

— Tem que fazer. Você não deixou espaço. Olha lá. Eu deixei espaço lá.

— Esse aqui é o bo. Tá errado, tá errado. Olha bem lá! Já copiou errado.

— Tá feio! Feio, fio. Seu o parece um a. Tem que melhorar a letra.

— Assim eu não gosto. Tem que fazer certinho, senão fica aquela misturança. (SMOLKA, 1989, p. 8)

Todos sabemos como é desagradável criticar nossos colegas, mas, neste mo-mento, convidamos você a fazer uma reflexão sincera: se entendermos que o tra-balho do professor como mediador é, em primeiro lugar, fazer com que as crian-ças entendam a função dos conhecimentos que devem aprender para, apenas em um segundo tempo, introduzi-los, nós poderemos dizer que essa professora sabia o que estava fazendo em sua sala de aula?

Se você entendeu o que estivemos discutindo até aqui, com certeza respon-deu que não. Embora ela tenha se agitado muito, andado por todos os lados na sala de aula, olhado os cadernos etc., somos obrigados a admitir que ela não ajudou em absolutamente nada para que seus alunos pudessem se apropriar do alfabeto fonético como um instrumento e, a partir dessa apropriação, desen-volvessem padrões de pensamento que pudessem proporcionar a instalação do complexo trabalho da escrita propriamente dito.

Deixemos que Smolka conclua a respeito do que acontece quando um adulto age desse modo:

Os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos índices de evasão e repetência, mas nos resultados de uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e alienação. (SMOLKA, 1989, p. 38)

Para concluir esta parte da reflexão, gostaríamos de registrar, ainda, que caso tivéssemos tido a oportunidade de dar apenas um conselho para a professora que serviu de informante para a pesquisa de Smolka, esse conselho seria ao mesmo tempo simples de ser enunciado e bastante complexo de ser cumprido. Ele se resumiria na seguinte frase: não negue conhecimento aos seus alunos.

Auxiliando a criança a redigir melhorPara refletir sobre o trabalho que se faz para

ensinar a redigir após a aquisição do alfabe-to propriamente dita, queremos recuperar as ideias desenvolvidas em um de nossos últimos trabalhos (RIOLFI et al., 2005).

Você já parou para refletir como escrever bem

é extremamente difícil?

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Nossa equipe de pesquisa esteve um tempo muito curiosa para entender por que escrever bem parece ser tão difícil para um grande número de pessoas e, de fato, gastamos bastante tempo para explicar isso. A partir de um cuidadoso trabalho de pesquisa, chegamos à conclusão de que a instalação do “trabalho da escrita” (isto é, das operações que nos levam a escrever direito) depende da relação que o sujeito tem com o seu outro, para quem escreve. Traduzindo em miúdos: se o indivíduo é um leitor sofrível, aí estará um escritor medíocre...

Por que isso acontece? Porque, se for um bom leitor, o professor sabe onde incidir para levar o seu aluno a aprender a ler criticamente o que ele mesmo escreveu. Não é possível produzir um bom texto apenas andando para frente: é preciso aprender olhar para trás, analisar o que está escrito e deixar que o pró-prio texto, por assim dizer, diga-nos como melhorá-lo. Quando o ato de escrever deixa de ser uma tarefa chata e se transforma em um importante ganho cultural, o aluno entra em contato com um tipo bastante específico de trabalho de retro-ação que pode alterar sua relação com sua palavra, sua história, sua vida.

Tomando-se o que uma criança ainda pequena pode produzir como parâmetro, podemos dizer que um texto está bem escrito quando ele não apresenta grandes difi-culdades de compreensão para um grande número de lei-

tores, ou seja, quando se trata de um texto que tenha vocação à universalidade.

O que é necessário para escrever um texto assim? Ora, essa complexa tarefa demanda duas pré-condições no que se refere à relação com o leitor:

que o escritor possa assumir parcialmente o lugar do outro e deixar que �seja esse lugar que lhe dê as diretrizes norteadoras para decidir sobre a manutenção, supressão ou alteração de cada um dos segmentos que compõem o texto escrito;

que o escritor possa esquecer parcialmente esse mesmo lugar, deixando �que a lógica interna do texto vigore, podendo, assim, sustentar e justificar cada uma das operações discursivas realizadas para a construção da ficção textual (RIOLFI et al., 2005).

Concluindo, a qualidade do produto final da escrita é estritamente depen-dente da representação que faço de meu sujeito leitor e dos modos por meio dos quais o incluo (ou não) no texto que estou escrevendo. Se, para os escritores proficientes, é possível já ter incorporado em si o outro que se torna puro cálcu-lo durante o trabalho, para os escritores iniciantes, esse cálculo é realizado de

O que determina a qualidade final

de um texto?

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modo precário a partir dos indícios que pode obter do seu professor, argumento esse que só reforça a importância da função do professor como mediador.

Texto complementar

Prefácio1

(POMMIER, 1993, p. 5-14)

Na maior parte das vezes, minha mão me obedece. Não obstante, a mestria sobre as formas que traço usualmente me escapa quando escre-vo. Relendo minhas notas, e pensando no que queria exprimir, me descu-bro frequentemente em falta, se não de ortografia, pelo menos de estilo ou legibilidade. Teria eu verdadeiramente escrito para ser lido? A quem se en-dereçam os rabiscos feitos na margem de um pedaço de papel, rabiscados quando as ideias se apressam e devem ser anotadas antes de desaparecer? Desse modo, o lugar de onde vem a minha escrita é o que primeiramente me escapa no momento de interrogar sobre a origem da escrita. A aprendi-zagem escolar não caracteriza essa proveniência e, quando me acontece não poder escrever, não é graças a uma técnica ensinada que consigo superar a angústia da folha em branco.

Aquele que acabou de escrever é capaz de dizer de onde procede aquilo que, na forma de suas letras, pertence exclusivamente a ele mesmo? Ele poderá explicar facilmente o conteúdo, os pensamentos, as ficções, as in-formações comunicadas por seu texto, mas não dirá nada sobre a origem de sua escrita, independentemente do que ela significa. Eis o motivo para interrogar a história das grafias, observar as primeiras evoluções formais das letras, examinar as condições e as modalidades desse desenvolvimento. Bus-cando responder a essas questões, aprenderei, quem sabe, que um cuidado idêntico ao dos primeiros inventores me habita quando procuro alinhar pa-lavras sobre o papel.

O problema da origem da escrita pode ser abordado considerando sua evolução ao curso dos últimos milênios. Trata-se de examinar o importante

1 Tradução de Cristine Maria Tedeschi Conforti e Andreza Roberta Rocha.

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material arqueológico hoje disponível, de organizá-lo segundo suas inva-riantes e sua cronologia e, eventualmente, interpretar suas modificações. A gênese da escrita pode também ser estudada examinando-se sua aquisição individual. É conveniente, então, observar como as crianças se põem a escre-ver segundo os procedimentos conhecidos das regras gerais e das exceções. As dificuldades de integração da leitura e da escrita merecem uma atenção particular, porque elas permitem desembaraçar os pontos de sustentação externa e, por consequência, as etapas dessa iniciação. Lá, ainda, o pesquisa-dor poderá tentar interpretar essa evolução.

Uma longa história de escrita precede o momento em que uma criança se apodera dos signos do alfabeto. Que analogias existem entre a aprendiza-gem individual da escrita e as etapas que a humanidade precisou atravessar para descobri-la? Há quem pense que tal semelhança de destino determi-naria que a escrita seja um instrumento de comunicação progressivamente aprimorado por aproximações sucessivas. Uma vez experimentada sua téc-nica, ela teria sido em seguida transmitida às gerações seguintes. Segundo uma tal concepção, bem ocidental, a escrita teria progredido por etapas, e sua forma mais prática, o alfabetismo, teria finalmente superado a pictogra-fia e o silabismo. Esses aprimoramentos sucessivos de procedimentos de transcrição das mensagens seriam, em seguida, aplicados à aprendizagem a ser cumprida por cada criança. Em consequência, o conhecimento da histó-ria da escrita e de seus estágios poderia ainda ser útil para fazer os escolares compreenderem como formalizar suas letras.

Os egípcios, por exemplo, utilizavam a acrofonia para isolar algumas de suas consoantes. Quem não seria tentado a imaginar que a descoberta dessas letras se efetua do mesmo modo como o alfabeto continua a ser en-sinado às crianças? A letra A não é compreendida graças a sua acrofonia com Ana, a letra B graças a balão etc.? Nos esqueceríamos, assim, que se trata de um método mnemônico inventado pelos adultos e que resiste a numero-sos sintomas que têm o valor de uma útil evocação à ordem: um modelo histórico não pode ser comparado a técnicas destinadas a facilitar a apren-dizagem, pois elas não são, indubitavelmente, a própria aprendizagem. Dentro de um louvável cuidado pedagógico, deseja-se ajudar as crianças com procedimentos supostamente análogos aos da invenção do alfabeto, mas transmitir-lhes um instrumento inventado antes delas não será sempre o mesmo que deixá-las descobrir por si mesmas. Quando a hora chega, as crianças não inventam, por si próprias, a chave da escrita e, se elas não fazem

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esse trabalho solitariamente, não se torna impossível transmitir-lhes as for-malizações gráficas próprias de sua cultura?

Possivelmente, a descoberta histórica da escrita e sua aprendizagem in-dividual seguem o mesmo caminho. Mas, para sustentar essa hipótese de uma correspondência entre filogênese e ontogênese, é preciso mostrar que as etapas de certas invenções, elaboradas em alguns milênios, devem ser novamente transpostas em poucos anos por cada criança. Se assim sucede com a escrita, ela brilhará muito pouco por sua originalidade. De outras des-cobertas, conhece-se o mesmo destino: é duvidoso que o homem soubesse caminhar ereto se ele crescesse fora do abrigo cultural. Mesmo a possibilida-de de falar depende de um aprendizado, senão de uma técnica. No entanto, a língua não se aprende no sentido usual do termo, pois, se a linguagem constitui o objeto dessa iniciação, o próprio sujeito faz parte desse objeto. Essa apropriação da língua é um fato cultural, se bem que, por outro lado, cada criança se engaja na palavra segundo seu ato próprio de apreensão.

Existem muitas invenções semelhantes na história da humanidade. Cada um deve refazê-las por si, porque é sujeito delas. A escrita faz parte dessas descobertas. É verdade que existem sociedades ditas “sem escrita”, que não parecem ter se imposto tal obrigação. Não obstante, todas as civilizações, sem exceção, têm uma prática da arte, seja por meio do desenho ou da es-cultura. Suas representações artísticas, o denominador mínimo comum da humanidade, quiseram se fazer portadoras de uma mensagem que ainda se endereça a nós. Entre esta universalidade, um número maior de culturas ela-borou uma escrita ideográfica. Mais raras ainda foram aquelas que utilizaram ideogramas. Por fim, apenas algumas utilizaram o recurso dos alfabetos.

[...] Quando traça um desenho, a criança se representa e apresenta inicial-mente seus sonhos; seus desenhos são traçados segundo as dimensões oníri-cas que ela projeta: a evolução de suas representações segue então o mesmo trajeto que o de seus sonhos, cuja lembrança se perde sempre, mais ou menos, no recalcamento. Sabemos no que nossos sonhos transformam: esquecemo- -los quase todos, pois eles encenam um prazer que ocultamos. Da mesma forma, se os primeiros desenhos possuem um valor idêntico ao dos sonhos, não serão eles, em si, sujeitos a um recalcamento cujo resto será escrita?

Eis, então, o que este livro deseja explorar: os primeiros desenhos apre-sentam os fantasmas que estarão sujeitos ao recalcamento até o ponto em que o retorno do recalcado se escreve na letra. Entre o espaço do desenho

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e o da letra, convém, consequentemente, localizar o evento diacrônico do recalcamento. Se uma criança não consegue escrever antes de certa idade, não é porque ela seria incapaz tecnicamente mais cedo. Com efeito, antes de estar em condições de formar as palavras, ela já conduziu a termo operações mais complexas que a de fazer corresponder um som e um signo. Se ela não pôde fazê-lo até então, é provavelmente porque sua relação com a represen-tação pictórica, seu valor psíquico, impedia-a. Quando completar um certo caminho com relação aos desenhos, a criança se porá a escrever, ainda que, quão inteligente fosse ela, não pudesse tê-lo feito antes.

[...] Se alguém deseja manter a hipótese de uma invenção da escrita comum à história da humanidade e à de cada um de seus membros, será necessário igualmente examinar uma origem da letra pertinente em todas as ocorrências em que está em questão a transmissão de uma mensagem e estabelecer uma definição mais ampla que aquela à qual estamos acostu-mados. É necessário examinar o que pode haver em comum entre o sonho, o desenho, o pictograma e a letra do alfabeto. A instância da letra no incons-ciente, tal como a psicanálise a define, não permite situar essa primeira for-malização da escrita, comum a todos, ainda que cada um deva reinventá-la? Qualquer que seja a maneira pela qual comunique sua mensagem, poder- -se-á mostrar que o grafismo do homem descende do pensamento.

[...] O que há em comum entre o que hoje me permite traçar letras e aquele que, há muito tempo, atribuiu um significado estável a alguns dese-nhos? Diante dessa questão, descobri, talvez, o que me faz irmão do escriba e do mandarim. Do sacerdote do faraó, mestre da escrita, dando seu beijo da manhã à estátua divina, recitando-lhe nos ouvidos seus próprios textos, como se, sem ela (a estátua), não pudesse rememorá-los. Do adivinho chinês lendo os primeiros signos do destino graças aos bastões incandescentes que ele guiava sobre cascos de tartaruga, escrevendo os primeiros caligramas no fundo de vasos onde a ninguém ocorreria lê-los: no início, escrito para os deuses! Irmão da criança rabiscando seus desenhos cuja forma não convém mais a suas obsessões, riscando seu desenho como se explorasse inocente-mente o interdito da representação, rasurando e descobrindo uma letra que não se parece com nada e, portanto, significa.

A cada vez que escrevo uma palavra nova, em que me assemelho ao es-criba, ao mandarim ou à criança? Como os corpos dormindo à noite, dis-solvidos na obscuridade, ligam-se ao fio de suas vidas graças à escrita tenaz

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de seus sonhos? Como aqueles em vigília bem tarde, quase até a manhã, debruçados sobre o papel branco: as letras que eles traçam não guardariam seus semelhantes, os adormecidos, e elas não lhes permitiriam repousar em paz? Espécies de sentinelas, irmãs do hieróglifo onírico, elas tecem sobre a cidade a rede que impede os sonhadores de se perderem em suas canções, elas os acompanham até o despertar e lhes chamam para o dia. Como foram traçados os primeiros signos capazes de falar por nós em nossa ausência? Aprenderemos a traçá-los sempre em nós para além de nossa aparência?

Atividades1. Em que medida a escrita influencia na organização social do ser humano?

2. Em que medida um professor que deseja transmitir o amor pela escrita às novas gerações pode esperar ser bem-sucedido?

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3. É mais importante que o professor faça os alunos compreenderem as fun-ções dos conhecimentos do que ensiná-los de maneira isolada? Justifique.

Dicas de estudoALLOUCH, Jean. Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.

Esse livro não é um daqueles que se destaca por sua clareza e, muito menos, pelo fato de se tratar de um texto fácil para se ler. Entretanto, todos aqueles que se dispuserem a pagar o preço de gastar algumas (muitas) horas de estudo perse-guindo o raciocínio deste francês incansável para compreender os três registros distintos do ato de escrever que são dissecados pelo psicanalista (transcrever, tra-duzir e transliterar) com certeza ganhará em profundidade e em consistência na reflexão sobre o ato de escrever. Embora não se trate de um livro sobre o ensino da escrita, ao tomar a letra como seu objeto de estudo ele nos dá alguns elemen-tos muito significativos para refletir sobre a história da escrita na humanidade, sua apropriação pelos sujeitos e, consequentemente, sobre seu ensino.

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Você já parou para refletir como são diversificados os modos de rela-ção dos professores com as teorias que circulam no meio universitário? Se já o fez, com certeza pode perceber o seguinte: alguns professores estão engessados por suas opções teóricas, as quais elevaram ao estatuto de dogma. Outros, que não tiveram a oportunidade de aprofundar seus estudos e compreenderem-nas profundamente, carregam-nas como se fossem profissões de fé. Os mais aguerridos agitam-nas ao público como se tratasse de causas a serem defendidas a qualquer preço. Por último, os discretos consideram-nas como opções particulares necessárias para dar coerência e consistência a sua prática investigativa e pedagógica.

Tão diversos entre si, tão parecidos no seguinte traço: todos acham desagradável quando alguém questiona as suas opções, uma vez que é necessária muita coragem para colocar anos de experiência na balança e refletir sinceramente se o que você aprendeu com eles continua valen-do no presente. Por esse motivo, iniciamos este capítulo visando refletir sobre a aula de Língua Portuguesa e analisar os textos nela produzidos sob uma perspectiva histórico-social. Para tanto, convidamos o leitor para se afastar o máximo possível de “sua opinião formada sobre tudo” e, como recomendava nosso saudoso Raul Seixas, estar permeável para tornar-se uma “metamorfose ambulante”. Feito esse primeiro alerta, façamos nossa primeira parada no Brasil.

O pensamento sobre a alfabetização no BrasilPara melhor contextualizar as diversas tendências de discurso sobre a al-

fabetização em nosso país, é importante recuperar uma denúncia que serve como ponto de partida para o trabalho de Magnani (1997): o fato de que, contaminados pelo que se pode chamar de furor novidadeiro, os brasileiros estão sempre tentando se desvencilhar das tradições para que se produzam “novas metodologias”, supostamente mais adequadas para superar os desa-fios concretos que os professores encontram em sala de aula.

Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos

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Visando superar essa prejudicial tendência que apaga nosso passado e, con-sequentemente, condena-nos a um eterno patinar no mesmo lugar, a autora faz uma rigorosa pesquisa de fundo histórico para mostrar como a crescente impor-tância dada à alfabetização pelos governos esteve sempre atrelada a um projeto político de modernização social. No quadro 1, a seguir, o leitor encontrará os principais momentos de um século de discussão sobre a alfabetização, confor-me Magnani.

Quadro 1 – Tensão entre os “modernos” e os “antigos” em cem anos de alfa-betização no Brasil

Antes de 1880 Predomínio dos métodos que ensinam a escrever a partir da insistência na soletração e na silabação.

1880 Silva Jardim divulga o “revolucionário método” João de Deus, baseado na palavração, para o ensino da leitura (método sintético).

Início da República Miss Márcia Browne introduz no Brasil a seguinte diretriz: iniciar o ensino de leitura pelo todo, e decompô-lo (método analítico).

1930

A polêmica criada entre os seguidores de Silva Jardim (partidário do método sintético) e Márcia Browne (partidário do método analítico) co-meça a decrescer a favor da tentativa de construção de uma solução intermediária: o método misto (ou eclético).

1934Lourenço Filho publica os testes ABC – medidas de maturidade para o aprendizado na leitura e na escrita, objetivando a “organização racional e homogênea” das classes de alfabetização.

Década de 1970

A discussão sobre o método mais eficaz cede lugar à investigação sobre as causas da repetência e da evasão. Cresce o número de investigações sobre as “patologias” e, depois, sobre os condicionantes sociais e econô-micos do fracasso escolar.

Década de 1980

O construtivismo, inspirado nos trabalhos de Piaget e seguidores (em especial, Emília Ferreiro), ganha hegemonia em nosso país.Com a “descoberta” do interacionismo, iniciam-se as críticas ao constru-tivismo.

Década de 1990Começam a se configurar as disputas pela hegemonia de projetos para o ensino inicial da leitura e da escrita em estreita relação com os projetos político-sociais.

Magnani justifica o esforço gasto para pesquisar 100 anos de história de nosso país: evitar um efeito nefasto que as discussões levadas a cabo no interior das universidades costuma exercer sobre os professores – cegá-los para o seu cotidiano educacional. Identificados com uma perspectiva que aprendem pri-meiro “no papel”, sem a necessária reflexão sobre ela, os profissionais da educa-ção passam a divulgar sua experiência com a certeza de estarem de posse de uma verdade inquestionável (MAGNANI, 1997, p. 46). Por esse motivo, constrói uma

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sistematização da cronologia aqui previamente exposta, dessa vez destacando qual era a “verdade inquestionável” que predominava em cada um dos períodos. Para conhecê-las, confira o quadro 2.

Quadro 2 – Momentos históricos cruciais para a constituição da alfabetiza-ção como objeto de estudo no Brasil

Época Discussão predominante No que ela consiste?

1876-1890Método João de Deus Xmétodos sintéticos

Os partidários da palavração conde-nam os partidários da soletração e da silabação.

1890-1930 Métodos analíticos X métodos sintéticos

Os partidários dos métodos analíticos condenam os partidários dos métodos sintéticos.

Meados da década de 1920 - final da década de 1970

Métodos ecléticos X métodos analíticos

Os partidários dos métodos ecléticos condenam os partidários dos métodos analíticos.

Final da década de 1970 - final da dé-cada de 1990

Construtivismo X métodos tra-dicionaisInteracionismo X construtivismo

Os partidários do construtivismo con-denam os partidários de tudo o que foi feito antes, atribuindo a todos a mesma importância: a dos métodos tradicionais.Os partidários do interacionismo conde-nam os partidários do construtivismo.

Como você já deve ter percebido, a pesquisa de Magnani conclui-se com o fim do século XX, e é exatamente aqui que nosso trabalho começa. Guardemos essa lição sobre a relevância de não se “perder o pé” da história de nosso país e agreguemos a ela uma perspectiva política que defenda o aprendizado da leitura e da escrita como um direito da participação do sujeito humano na cultura de seu tempo e também uma perspectiva de ser um produtor de sentidos válidos no presente e aptos a construir um futuro. Essa recomendação é feita aqui no sentido de nos fornecer um terreno mais seguro para alargar nossa reflexão e interrogar os padrões de interlocução verbal e seus efeitos na aula de Língua Portuguesa.

A interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa

Para melhor contextualizar nossa reflexão, a interlocução verbal na aula de Língua Portuguesa, vamos recorrer brevemente a um exemplo já explorado por nossa equipe de trabalho (RIOLFI et al., 2005) com maior detalhamento. A seguir, você vai encontrar um registro de uma aula de Língua Portuguesa feito em 2003

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por uma das autoras do livro Ensinar a Língua Portuguesa no Século XXI: desafios e perspectivas para o Ensino Fundamental II, em um momento de sua vida em que ainda não era professora de Língua Portuguesa, mas aluna de Letras, cumprindo suas obrigações de estagiária.

Trata-se do retrato de um acontecimento registrado pela pesquisadora em seu diário de campo com riqueza de detalhes, inclusive com seus comentários de cunho pessoal. É importante perceber preliminarmente o olhar perplexo de quem anotou a aula, olhar esse ainda não gasto/contaminado pela indiferença e o descrédito que grassa na contemporaneidade. Antes de prosseguirmos com nossa reflexão, examinemos as cenas descritas pela “novata”.

Cada qual faz o que quer!Neste dia, no primeiro horário, observei uma “aula” surreal! Com o desen-

rolar dos eventos, fiquei pensando que o acompanhamento individual da es-crita do aluno é importante, mas não do modo como ele estava sendo feito. Percebi dois problemas: 1) a professora estava corrigindo somente a forma das redações (no caso, se o mesmo seguia o padrão de “abaixo-assinado”) e ignorando os aspectos ligados à Língua Portuguesa propriamente dita; e 2) dado que não havia nenhuma outra atividade preparada para o restante da sala, o acompanhamento individual estava sendo prejudicial à classe como um todo. A professora dirigiu uma única frase para o grupo durante os 45 mi-nutos que lá permaneceu: “Pessoal, quem já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto, traz que eu vou dar visto.” Obedientemente, os alunos levavam o texto até a professora, que os verificava protocolarmente.

...enquanto isso...

Dois ou três grupinhos ficaram conversando baixo. �

Um aluno ficou cantando e beijando o rosto de quase todas as meni- �nas da sala.

Um casal permaneceu com os rostos encostados na carteira, beijando- �-se e cochichando ao mesmo tempo.

Um outro aluno fazia ginástica no meio da sala, dançando capoeira, �“plantando bananeira” etc.

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Uma aluna deitou sua cabeça na carteira e dormiu durante a aula toda. �

Algumas alunas olhavam silenciosamente o ambiente de bagunça e �a indiferença da professora. Depois, olhavam para mim, parecendo constrangidas com a situação.

A professora continuava indiferente a tudo isso e, maquinalmente, escre-via o “visto” nos cadernos dos alunos. Tocou o sinal. Acabou a “aula” de Língua Portuguesa.

Refletindo sobre a aula de Língua Portuguesa cuja descrição você acaba de ler, você pode até acreditar na boa-fé da professora, que estaria cumprindo sua obri-gação de “dar visto nos cadernos”, mas, provavelmente, terá mais dificuldade para fazer uma lista sobre os conteúdos relativos à escrita que foram aprendidos durante essa aula.

Não se trata nem do fato de que a professora não apresentou conteúdos novos durante 45 minutos, pois todos sabemos que, muitas vezes, em nome de um maior aprofundamento de um ou outro tópico, é necessário permanecer nele por um período maior. Ao contrário disso, nossa restrição incide sobre o fato de que não houve nenhum esforço, por parte da professora, para organizar um ambiente de trocas verbais entre os alunos que pudesse levá-los a se enga-jarem em um trabalho e, consequentemente, desenvolverem um estágio mais elaborado de seus conhecimentos sobre a escrita. Paralelamente, sua própria “produção verbal” é muito restrita, apresenta baixíssimo nível de informativida-de e não apresenta qualquer desafio intelectual a seus alunos. “Pessoal, quem já tem o ‘abaixo-assinado’ pronto, traz que eu vou dar visto” é o tipo de fala que mantém os sujeitos exatamente no lugar onde estão.

Independentemente da filiação teórica declarada pela professora cuja aula nossa estagiária assistiu, uma coisa é certa: em sua prática concreta, essa pro-fissional não estava levando em conta a importância que tem sua ação para au-xiliar a mediação necessária para a construção dos conhecimentos em aula. Em suma: aquilo que ela fazia parecia vir de nenhum lugar e ir para lugar algum, ou dizendo de outro modo, a interlocução entre professor e aluno existente em sua aula de escrita não estava inscrita na história – limitava-se a um fazer estereoti-pado e sem maiores questionamentos.

Para concluir nossa reflexão sobre a aula de Língua Portuguesa e os textos nela produzidos, vistos sob a óptica da perspectiva histórico-social, vamos recorrer

Você acha que alguém aprendeu

alguma coisa?

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ao trabalho de Klein (1997), um dos principais expoentes brasileiros no que se refere à investigação sobre a alfabetização vista dessa óptica.

É importante frisar, preliminarmente, que, longe de fazer um discurso partí-cipe do narcisismo humano, que coloca as individualidades em primeiro lugar, a autora parte do princípio de que, acima de tudo, e em primeiro lugar, é ne-cessário não negar ao aluno as “condições de civilização”, ou seja, assumir que o processo de humanização se dá “pela radical e inteira socialização do indivíduo” (KLEIN, 1997, p. 86).

Especificamente no que se refere ao ensino da escrita, a autora afirma:

A partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, é possível afirmar que o contato da criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que esses símbolos estejam organizados correta e significativamente como linguagem, não garantem, por si sós, que a criança aprenda a linguagem escrita. Isso porque, nesta circunstância, o aprendiz estará diante de um punhado de “coisas” que não configuram a linguagem escrita. É preciso que haja homens utilizando de forma real a linguagem para que ela se configure enquanto tal. (KLEIN, 1997, p. 99-100)

A citação é bastante rica, mas, em primeiro lugar, parece-nos necessário destacar que, na perspectiva adotada pela autora, não se pode tentar ensinar uma criança a escrever sem levar em conta sua inserção no

“mundo dos homens”. Não se trata de aprender a escrever por escrever: pelo contrário, trata-se de fazer nosso aluno compreender que aprender a escrever consiste em uma importante conquista de um instrumento precioso.

Acompanhando a evolução da humanidade, é possível perceber que a es-crita não serve apenas para registrar a história – aliás, uma de suas importan-tes funções – mas também, em grande medida, ao nos auxiliar a compor textos que possam formatar novos modos de pensar em nossa sociedade, fornece-nos alguns meios para construí-la.

A aula de escrita gerando desenvolvimento subjetivo para o professor e seu aluno

Para concluir de maneira mais concreta nossa reflexão sobre uma prática de ensino de escrita que não atinge nem o professor nem seu aluno da história da qual são partícipes, vamos recorrer a um belo trabalho de ensino de Língua Por-tuguesa já explorado parcialmente em trabalho anterior (RIOLFI, 1999).

Que lições podemos tirar da citação que

acabamos de ler?

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Como será que isso aconteceu? Não vamos recuperá- -lo em sua integralidade, evidentemente. Trata-se aqui apenas de recortar um pequeno fragmento da prática pedagógica da professora S que, ao compreender o caráter histórico do homem, levou-o em conta no planejamento de suas aulas e, com bastante insistência, conseguiu uma preciosa conquista: fazer com que um aluno de 13 anos, que vinha se negando obstinadamente a escrever qualquer coisa que fosse, produ-zisse seu primeiro texto escrito.

É importante ressaltar que esse primeiro sim dito à escrita não se deu de modo isolado: ele foi contemporâneo à suspensão do emudecimento de alguns alunos, que, vindo a se envolver profundamente com um longo projeto de tra-balho de pesquisa sobre as histórias de suas famílias e da construção da sua cidade – Foz do Iguaçu –, acabaram por poder assumir, em primeira pessoa, sua história de vida. Em equipe, os alunos produziram o volume Escrevendo a História de Foz do Iguaçu, cujo sumário segue abaixo para maior conhecimento do leitor.

1. História de Foz do Iguaçu

2. Pontos Turísticos

2.1 Parque Nacional do Iguaçu

2.2 Cataratas do Iguaçu

2.3 Marco das Três Fronteiras

2.4 Salto do Macuco

2.5 Ponte da Amizade

2.6 Ponte da Fraternidade

2.7 Itaipu Binacional

2.8 Ecomuseu

2.9 Aeroporto Internacional

2.10 Cassino Acaray e Cidades Paraguaias

3. História de Nossa Turma

4. Comentário

5. Referências Bibliográficas

Como será que isso aconteceu?

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Assim sendo, após o trabalho quase heroico para organizar uma turma de adolescentes para, de fato, construir um projeto comum, a professora S – que, durante um longo tempo lamentava o fato de que dois de seus alunos nada es-creviam, e mesmo quase nada falavam se não se levasse em conta os momentos de bagunça generalizada – teve o prazer de se surpreender com a boa adesão de um de seus alunos ao trabalho em um dia decretado por ela como sendo o “dia de falar sobre a vida”, atividade de transição entre a pesquisa dos documentos oficiais da cidade e a investigação das histórias oficiosas das famílias.

Nesse dia, seu aluno Pedro, cuja voz mal conhecia, falou ao grande grupo pela primeira vez, ainda que apenas para responder, bastante laconicamente, às perguntas dos colegas sobre sua vida. Embora não parecesse muito à vontade, após quase um ano de trabalho intenso por parte da professora, nosso aluno escreveu um texto pela primeira vez.

Não era um texto qualquer, pois, como o leitor poderá comprovar logo abaixo, inscreve o menino em uma linhagem, dando a ele um lugar na história de Foz do Iguaçu. Convido, então, o leitor a ler generosamente o texto de Pedro.

Tenho 13 anos meu nome e pedro meu pai tem 39 anos seu nome e sebas-tião e minha mãe tem 39 anos seu nome e maria eu naci no paraguai o meu pai na bahia e minha mae nasceu em minas gerais e eles foram morar no paraguai mas meu pai ouviu falar uma conversa que tinha uma obra grande no brasil e ia ficar muita gente e dai o meu pai comprou um lote aqui no brasil isto já faz 10 anos que nos viemo morar aqui para o meu pai trabalhar na obra logo que nos viemo para ca o meu pai ja fichou na obra e trabalhou seis anos depois eles foi despedido ele voutou para o paraguai trabalhou na agricultura mas ele deijou nos no brasil para estudar e ele de todo 15 dias ele vem visistar nos.

Remontando às suas origens, Pedro narra, ao mesmo tempo, seu drama familiar e dá a ver os efeitos da construção da hidrelétrica de Itaipu nas correntes migratórias em seu local de implantação. Seu texto, embora muito pro-blemático do ponto de vista da norma padrão, consiste numa bela denúncia sobre as dificuldades enfrentadas pelas famílias cujos “chefes”, acossados pelo desempre-go, são obrigados a mudar não só de cidade mas até de país.

Concluindo nossa reflexão sobre a aula de Língua Portuguesa, relembremos que levar em conta a necessidade de assumir-se como partícipe no processo de humanização de seus alunos – que se dá pela sua socialização, isto é, sua

O que, de uma perspectiva histórico-social, o trabalho da professora S nos ensina sobre a aula de Língua Portuguesa?

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inserção consequente na civilização em que grande parcela da população está à margem – exige do professor que, ao longo de todas as fases de seu trabalho, ele não esqueça do caráter histórico do homem, incluindo ele próprio.

Ao relembrar o que tem sido a história da humanidade e analisar o papel de cada um dos instrumentos que construímos em suas grandes transformações, aquele que ensina a escrever não corre o risco de tornar-se o títere vivo das ten-dências da moda e, consequentemente, conduzir sua prática de um modo que, até por ele mesmo, é ignorado. Se, por um lado, é verdade que jamais temos in-teira consciência de tudo o que fazemos, por outro, não podemos esquecer que, para além do trabalho mecânico, há o gosto por aquilo que fazemos, o prazer de partilhar as conquistas, a obrigação ética de registrar nossas descobertas, para que outros dela também se beneficiem.

Nessa direção, a discussão sobre qual seria o melhor método perde sua cen-tralidade, uma vez que é substituída por uma reflexão cultural mais ampla na qual a questão dos métodos e técnicas localizados é apenas um detalhe.

Texto complementar

A vida não é torre de Hanói(MITSUMORI, 2005)

Eu, por tantas e tantas vezes, desejei que a vida fosse torre de Hanói. Sabe aquele jogo em que você tem que transportar uma “pirâmide” de discos de uma haste para outra, intercambiando-os de um em um entre essas duas colunas, usando também uma terceira como intermediária?

Pois é, o objetivo desse jogo é fazer um número mínimo de movimentos. Para isto, basta descobrir a lógica da relação entre as ações e estabelecer minimamente a ordem de seu encadeamento. Pronto: tudo se torna passível de previsão e de planejamento. Os movimentos estão todos conectados por uma interdependência. Assim, a consideração da jogada anterior é suficiente para antecipar o deslocamento da seguinte.

Está certo... no começo o jogo nem sempre é assim tão simples: em geral, a gente erra, volta, se atrapalha, faz um monte de movimentos totalmente “inúteis”. Mas quando se percebe que o que se tem ali é um sistema lógico,

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fica fácil inferir as regularidades, as leis que compõem a sua estrutura; o mis-tério é desfeito.

Como eu ia dizendo, muitas vezes desejei que a vida fosse como esse jogo. Pensem como seria legal: eu, professora, frente a um aluno rebelde (desses que adoram desafiar a “autoridade”, ou que se recusam a fazer qualquer coisa que não contraria o outro), só teria que procurar a técnica e os meios ade-quados e planejar o momento certo de sua aplicação. Além disso, um livro de receitas bastaria para que eu me tornasse uma boa cozinheira. Afinal, ele não me mostra todos os passos para se fazer um belo bolo, por exemplo?

Sim, a vida, se fosse torre de Hanói, seria (quase) perfeita: meus alunos seriam todos uns “anjos”, como professora eu não teria problema algum, meu bolo seria comestível... Mas a vida não é assim.

Por mais que se reflita, raciocine e planeje uma ação, nunca é possível saber ao certo o que virá depois. As regras, as leis que regem os aconteci-mentos não estão dadas de antemão e as decisões são quase sempre uma aposta. Uma aposta de que aquele é o melhor caminho, o mais certeiro, o que nos ajudará a chegar aonde queremos. Enfim, a marca da vida é essa imprevisibilidade, essa incerteza que nos deixa sempre a sensação de que as coisas “escapam por entre os dedos”.

Mas então, se tudo na vida é incerto e se os desdobramentos das ações nunca são passíveis de antecipação, por que a pedagogia insiste tanto em falar em planejamento? Planejamento educacional, planejamento pedagó-gico, projeto de escola, plano de aula... Não seria tudo isso uma inutilidade, uma perda de tempo?

Se pensarmos nesse tal planejamento como escudo contra toda e qual-quer falha no processo, como possibilidade de previsão dos resultados, talvez possamos dizer que sim.

Porém, não seria possível pensar nessa questão em outros moldes?

Não podemos esquecer que falamos de um trabalho que é direcionado a uma outra vida humana. Assim, como não esperar que esse alguém a quem nos dirigimos saia do lugar em que estava e passe a ocupar uma outra posi-ção? Não é essa causa que abraçamos?

Sim, e com certeza é isso que nos orienta e que nos leva a querer... plane-jar as ações. Mas esse planejar tem que considerar aquele imprevisível que é

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a marca da vida de todos nós; não pode deixar de levar em conta o desejo do outro sujeito, que pode, em última instância, seguir por rumos totalmente diversos daqueles por nós “planejados”. Caso contrário, esse planejamento vira “camisa-de-força”.

Enfim, a educação nos lança esse enorme desafio de planejar o implane-jável, de prever o imprevisível, numa busca incessante (e sempre frustrada) de uma vida (quase) perfeita, feito torre de Hanói.

Atividades1. Analisando-se a história da constituição da alfabetização como objeto de

estudo no Brasil, o que podemos entender a respeito das transformações sofridas nessa prática pedagógica?

2. O contato do aluno com os símbolos da escrita garante que ele vá aprender a escrever, bastando que estejam organizados correta e significativamente? Justifique.

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3. Por que o professor precisa compreender-se como agente da socialização de seus alunos?

Dicas de estudoCALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever: o desenvolvimento do discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

Tematizando o “ensino de redação”, trata-se de um livro muito abrangente, escrito de um modo simples, bastante agradável para se ler. Está repleto de su-gestões que podem ser colocadas em prática, desde a pré-escola até o Ensino Médio, por todos aqueles que desejam ensinar a escrever. Contém capítulos sobre o ensino de poesia, ficção e escrita de relatórios, consistindo, portanto, em leitura imperdível para todos que estão preocupados com o desenvolvimento do discurso escrito de seus alunos.

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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento1. Em uma visão que dá prioridade à linguagem, compreendida como

sistema de articulação de signos verbais exclusivo do homem, quan-do compreendemos a extensão do poder que a linguagem tem sobre os seres humanos, nós podemos ser mais eficazes como agentes da manutenção da cultura em geral e, também, refletir a respeito dos su-cessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados com maior pertinência.

2. Para os animais, e mesmo para os primeiros humanoides, é possível estabelecer uma relação entre causa e consequência uma vez que eles são regidos pelo instinto, se comportam de modo não mediado pela linguagem e pelo pensamento. Como somos animais de linguagem, isto é, pensamos e falamos, essa correlação se torna fluída. Isso permi-te, por exemplo, que um humano não tenha que pagar uma violência com outra violência; sempre podemos tentar dialogar. Essa tentativa mantém a sociedade humana organizada.

3. O principal motivo para dedicar tempo à organização do ambiente es-colar como um todo reside no fato de que o pensamento humano não é um processo isolado e independente das contingências histórico- -culturais e sim intimamente ligado a elas, que, em certa medida, determinam-no. Assim sendo, se quisermos agir na direção de ajudar uma criança a estruturar o seu pensamento, trata-se de agir, em pri-meiro lugar, no ambiente onde ela está inserida.

O imprevisível animal humano1. A linguagem humana é escorregadia, não existem sentidos fixos. As-

sim sendo, o fato de que alguém diga uma coisa e o interlocutor en-tenda outra é a regra, e não a exceção. A partir dos sons que alguém escuta, é possível que ele crie sentidos perfeitamente verossímeis para

Gabarito

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si, mas em nada relacionados às intenções comunicativas de quem falou. Se isso não for esclarecido, a margem normal de equívoco pode se tornar de-masiadamente grande, com prejuízo para o processo educacional.

2. Diversificar as ofertas de conteúdos e de tipos de atividades em uma sala de aula é importante porque, quando se trata do ser humano, não existe unici-dade, nem nos padrões de comportamento nem na história de vida de cada um de nossos alunos. Assim sendo, o que funciona para uns não funciona para outros e vice-versa.

3. Porque nenhum ser humano tem o curso de seu pensamento completamente determinado pelas leis que nos são impostas pela biologia de nossa espécie. Isso significa que não temos um contato pleno com o mundo como ocorre com os animais. Ao contrário, temos nosso encontro com a realidade de maneira parcelar e fragmentada e construímos nosso padrão de pensamento a partir dos fragmentos. As coisas no mundo são o que são, mas as percepções que temos dela permanecem diversas, parcelares, frequentemente deformantes. Assim, nenhum ser humano é o dono da verdade, apenas, o da sua verdade.

Concepção do homem como ser de linguagem1. Porque vivemos em sociedade. Assim sendo, em nome da possibilidade de

convívio, e, até, da nossa autopreservação, precisamos usar as palavras para outros fins, tais como lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situa-ção a nosso favor, e muitas outras funções que, legitimamente, não podem ser chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as palavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse não quebrar o sigilo a respeito de determinada informação.

2. Porque não somos animais! A nossa linguagem vai muito além do que os códi-gos utilizados pelos animais. Caracteriza-se pela capacidade de ser potencial-mente infinita, uma vez que, cada enunciado permite análise e rearranjo de suas partes com as de outros enunciados. Nossa linguagem não sofre os limi-tes da percepção visual, assim sendo, podemos imaginar, formular hipóteses, projetar as consequências de nossas ações no futuro e assim sucessivamente.

3. Porque apenas podemos utilizar as palavras como suporte de nosso pen-samento na medida em que se encontram organizadas em um sistema (a linguagem, a cultura) que lhes dá consistência. Isoladas, as palavras não sig-nificam absolutamente nada. A linguagem nos liga ao mundo ao fornecer

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Gabarito

um aparelho por meio do qual podemos manter o contato com a realidade: a possibilidade de nomear os objetos e, por meio do nome, construir um conceito para apreendê-lo.

Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano1. É necessário levar o jovem humano a refletir a respeito da linguagem para

incidir sobre o seu desenvolvimento intelectual porque manter certo distan-ciamento das palavras que falamos é condição necessária para interrogar a realidade que nos circunda. Sem isso, nosso pensamento tende a ser, ao mesmo tempo, limitado e limitante.

2. Pessoas de comunidades linguísticas diferentes tendem a interpretar fatos análogos de modos diferentes, tornando claro que tanto a percepção quan-to a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social. Como a lín-gua amarra a percepção, um indivíduo não consegue ver qualquer realidade que já não esteja previamente marcada em sua língua. Assim, pessoas que falam diferentes línguas tendem a ver diferentes realidades.

3. É difícil para as crianças aprender a analisar os modos de funcionamento da linguagem porque tomar um fato da língua como objeto de análise exige uma experiência de vida na cultura que proporcione ao sujeito um repertó-rio que lhe permita se distanciar dos enunciados que nela circulam o bastan-te para poder estudá-los.

A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano1. Em suas pesquisas, Vygotsky mostrou que o progresso da fala não é paralelo

ao progresso do pensamento. Para ele, as curvas de crescimento de ambos cru-zam-se muitas vezes, podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até mesmo fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente.

2. Porque o ser humano precisa viver em sociedade. Assim sendo, logo aprende que, para se manter vivo, há um “discurso certo” a fazer, que pode ser proferido aberta e publicamente, e outros discursos e práticas que é necessário velar.

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3. A convivência com os pares é fundamental para haver aprendizado porque o ser humano constitui-se na sua relação com o outro social. É a sociedade que lhe ensina o que pode e deve ser dito e, nas últimas consequências, dita ao humano seus modos de pensar. Assim sendo, confrontar formulações precárias com as de seus colegas mais experientes ajuda o aluno a ir, paulatinamente, refinando seus modos de pensar.

Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem1. Falar com o bebê pequeno é importante para a estruturação do pensamento

do ser humano porque, no início, o bebê funciona de modo mínimo, ou seja, apenas segundo os imperativos do princípio do prazer (saciar a sede, matar a fome, satisfazer o sono etc.). Nesse nível, não há diferença entre um ser humano e um animal. É por meio da influência de seus semelhantes mais ex-perientes que lhe fornecem rudimentos de palavras em um contexto social que o humano começa a organizar um pensamento elaborado.

2. Vygotsky afastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em sua época. Não concordava nem com uma perspectiva que consiste na fusão en-tre o pensamento e a fala nem com outra que consiste na segregação entre o pensamento e a fala, isto é, na compreensão de que são fenômenos que nada têm em comum. Construiu uma terceira vertente: a da consideração do pen-samento verbal. Para o autor, no cérebro humano pensamento e linguagem estão ligados numa zona que consiste no pensamento através da palavra.

3. A palavra tem uma importante função no desenvolvimento intelectual do hu-mano, tanto internas quanto externas. Internamente, pode organizar o pensa-mento do homem, por meio de operações como, por exemplo, a classificação e a seriação. Externamente, pode auxiliar na organização do homem em so-ciedade, permitindo aos homens que possam a) compartilhar as conclusões a que chegaram a partir da organização prévia de suas ideias; b) inserir-se nas relações sócio-históricas por meio de um lento processo de apropriação dos conceitos; e c) transmitir esses conceitos aos descendentes de uma cultura.

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Gabarito

O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança1. De acordo com a teoria de Vygotsky, as palavras da mãe são fundamentais na

estruturação do pensamento do bebê. Quando ela mostra objetos a seu filho e os nomeia, exerce uma importante influência decisiva na formação dos proces-sos mentais da criança. Como está relacionada à percepção direta do objeto, a palavra isola seus traços e propriedades essenciais, inibindo as secundárias.

2. A teoria de Vygotsky se afasta da perspectiva comportamentalista na medi-da em que entende que, para nós humanos, o uso de signos faz com que se crie um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Vygotsky classifica os signos como estímulos de segunda ordem. Para ele, quando a lógica da linguagem se impõe ao bebê, ela substitui o processo simples de estímulo e resposta por um ato complexo.

3. Para o autor, a criança pequena ainda não é capaz de controlar previamente seu comportamento quando deseja realizar tarefas concretas. Assim sendo, tende a fracassar em todas as tarefas que exigiriam reflexão e planejamento. Após os sete anos, em média, ela já consegue controlar seu comportamento com o auxílio de signos externos, como por exemplo, utilizando-se de um barbante amarrado no dedo para não se esquecer de algo. Desse modo, é mais eficiente na realização de tarefas às quais se propõe. Ao se tornar adulto, o humano tem sua atividade psicológica organizada pelo signo linguístico. Consequentemen-te, mesmo sem o auxílio de instrumentos externos, seu comportamento pode permanecer mediado, ou seja, planejado e refletido com antecedência.

A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança1. O professor que segue a perspectiva vygotstkyana não se preocupa tanto

com aspectos como prontidão ou maturação porque, nessa orientação, a educação não fica à espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas, ao contrário, entende que sua principal função é dar origem ao desenvol-vimento. O professor não fica esperando a criança se desenvolver primei-ro para fazê-la aprender depois, mas, ao contrário, trata de fazê-la aprender para que possa se desenvolver.

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2. Os vygotstkyanos tendem a dar grande importância à escola e à sua orga-nização porque compreendem que o desenvolvimento do comportamento humano dá-se em sua relação com o contexto social. Por esse motivo, eles dão muita importância aos lugares em que o aprendizado se faz de modo sistemático e socialmente organizado, como a escola.

3. Ensinar um grande número de conteúdos às crianças é pouquíssimo impor-tante para os vygotstkyanos. Para eles, aprender não é sinônimo de tomar contato com uma lista de pontos registrada no currículo escolar. O ato edu-cativo bem-sucedido é aquele que força uma passagem: transformar os con-ceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência social) em conceitos científicos (aqueles que são formalizados de acordo com as regras da cultura elaborada).

O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje1. Desde a invenção do alfabeto fonético, pouco a pouco essa tecnologia foi se

tornando central na organização e na manutenção de nossa cultura. A escrita tem força de lei porque registra normas e procedimentos. Pode proporcionar uma coerência de princípios filosóficos e operacionais nas várias instâncias por-que ajuda no compartilhamento das ideias e na checagem da aprendizagem.

2. Se um professor leva em conta o fato de que, na contemporaneidade, as crianças estão regidas por outra lógica, ele pode ter expectativas mais rea-listas. Ele compreenderá que, muito provavelmente, não poderá transmitir um amor igual ao seu, compatível com os tempos onde a vida era outra. Compreenderá que deve se responsabilizar pela transmissão de outro tipo de amor. Assim, ele tentará aprender com as lições do passado para olhar de frente para as mazelas do presente e se responsabilizar pela invenção de soluções sobre os novos problemas.

3. É mais importante que o professor faça os alunos compreenderem as fun-ções dos conhecimentos do que ensiná-los de maneira isolada. Sua função principal é a de ser mediador, isto é, auxiliar os jovens a integrar conheci-mentos isolados em uma rede simbólica cuja internalização gera o processo do desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.

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Gabarito

Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos1. Analisando-se a história da constituição da alfabetização como objeto de

estudo no Brasil, podemos perceber que o momento atual sempre se funda na condenação das práticas que caracterizavam o momento anterior. Aque-les que desejam ver a sua perspectiva adotada por todos afirmam que seus contemporâneos estão errados, independente do fato de estarem obtendo bons resultados.

2. O contato da criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que es-ses símbolos estejam organizados correta e significativamente como lingua-gem, não garantem, por si só, que a criança aprenda a linguagem escrita. A partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, compreende-se que é preciso que haja homens utilizando de forma real a linguagem para que ela se configure enquanto tal.

3. O professor precisa compreender-se como agente da socialização de seus alunos para não perder de vista que ele é corresponsável pelo processo de humanização daqueles que educa. O professor precisa ajudar o aluno no di-fícil processo de sua inserção na civilização, na qual grande parcela da popu-lação está à margem. Para ser bem-sucedido, ele deve considerar o caráter histórico do homem, incluindo ele próprio.

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Referências

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