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KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34. Linguagem, sociedade e cognição Capítulo 1 Eduardo Kenedy Universidade Federal Fluminense A linguagem humana Caro aluno, a linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se faz presente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa, desde o seu nascimento, quando recebe um nome e é inserido numa comunidade de fala, até a maturidade, quando transita diariamente pelos complexos sistemas de comunicação e interação social modernos. Concretizada numa das milhares de línguas hoje existentes no mundo, a linguagem humana nos impressiona porque ela é capaz de fazer muito a partir de pouco. É com base em apenas três ou quatro dúzias de sons que nós, falantes de uma língua natural qualquer, como, por exemplo, o português, conseguimos dominar dezenas de milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira ordenada, nos permitem a produção e a compreensão de um número potencialmente infinito de frases e textos. A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta aos humanos a organização e a veiculação de pensamentos, ideias, conceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivíduo que domina (pelo menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo comunicativo das sociedades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da linguagem oral podem ser substituídos por algumas letras num sistema de escrita ou por centenas de sinais numa língua de surdos sem que, com isso, o poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja na fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e ilimitada com a linguagem e pela linguagem. Para que você tome consciência da complexidade social e cognitiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no seguinte exemplo. Imagine um homem que caminha distraído pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe sobram de seu horário de almoço. Subitamente, ele se dá conta de que pode estar atrasado para o retorno ao

Linguagem, sociedade e cognição Capítulo 1 Eduardo Kenedy … · 2017-04-26 · “linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “linguagem corporal”, “linguagem da

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KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

Linguagem, sociedade e cognição

Capítulo 1

Eduardo Kenedy Universidade Federal Fluminense

A linguagem humana

Caro aluno, a linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se

faz presente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa, desde o seu

nascimento, quando recebe um nome e é inserido numa comunidade de fala,

até a maturidade, quando transita diariamente pelos complexos sistemas de

comunicação e interação social modernos. Concretizada numa das milhares de

línguas hoje existentes no mundo, a linguagem humana nos impressiona

porque ela é capaz de fazer muito a partir de pouco. É com base em apenas

três ou quatro dúzias de sons que nós, falantes de uma língua natural

qualquer, como, por exemplo, o português, conseguimos dominar dezenas de

milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira

ordenada, nos permitem a produção e a compreensão de um número

potencialmente infinito de frases e textos. A posse da linguagem, com seu

ilimitado poder expressivo, faculta aos humanos a organização e a veiculação

de pensamentos, ideias, conceitos, valores e, dessa forma, insere cada

indivíduo que domina (pelo menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo

comunicativo das sociedades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da

linguagem oral podem ser substituídos por algumas letras num sistema de

escrita ou por centenas de sinais numa língua de surdos sem que, com isso, o

poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja na

fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e ilimitada

com a linguagem e pela linguagem.

Para que você tome consciência da complexidade social e cognitiva

subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no seguinte

exemplo. Imagine um homem que caminha distraído pela cidade,

aproveitando os momentos que ainda lhe sobram de seu horário de almoço.

Subitamente, ele se dá conta de que pode estar atrasado para o retorno ao

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e silenciosa que muitas

vezes ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”. Com essa

impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta: “Com licença. O

senhor pode me informar as horas?”. O transeunte, por sua vez, compreende o

estado mental de seu interlocutor – sua intenção de ser informado a respeito

do horário – e busca o comportamento adequado para a situação: olha para o

relógio de pulso e dele retira a informação necessária, que é codificada na

frase-resposta “São doze e trinta”. A aparente banalidade de um evento como

esse esconde sob si um fenômeno extraordinário: a interação entre a mente

humana e a realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender

estruturas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas, na

comunicação humana, o indivíduo que fala executa um trabalho

sociocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamentos e

ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combinadas entre si em

frases, as quais, por fim, são pronunciadas para um interlocutor num dado

contexto discursivo. Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende

é também engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são

dirigidos no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para,

assim, conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor. Ora,

podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa

sequência de codificação e decodificação de formas e significados linguísticos

ocorre?

Pense bem, pois as respostas para essas perguntas não são nada fáceis

ou simples. Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas línguas

naturais são geralmente muito complexas. Mesmo se analisássemos uma frase

simples como “O senhor pode me informar as horas?”, encontraríamos nela

regras de ordenação de palavras, concordância, regência, seleção de

pronomes... enfim, verificaríamos a existência de uma suntuosa maquinaria

gramatical a serviço da comunicação e da interação social. Entretanto, a

despeito de toda essa complexidade, nós humanos somos capazes de produzir

e compreender frases e textos com extrema facilidade. Numa conversa

qualquer, produzimos e compreendemos dezenas, centenas, milhares de

enunciados, um após o outro, numa velocidade incrivelmente rápida, muitas

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

vezes medida em milésimos de segundo. Em circunstâncias normais, fazemos

isso de maneira inconsciente e sem esforço cognitivo aparente. Ora, como

somos capazes disso? De que maneira nossas mentes se tornam aptas a

estruturar nossos pensamentos em frases e textos codificados em sons

socialmente compartilhados?

Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em você a

consciência do complexo mundo sociocognitivo que se esconde sob cada uso

cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, esperamos ter também aguçado

o seu interesse pelos estudos linguísticos. Você deve saber que encontrar

respostas para tais perguntas é tarefa das ciências da linguagem. Essas

ciências vêm alcançando um extraordinário desenvolvimento ao longo das

últimas décadas e, assim, muitos segredos a respeito da estrutura e do

funcionamento das línguas naturais estão sendo rapidamente revelados.

Algumas dessas descobertas serão apresentadas a você neste livro. Nas

próximas páginas, gostaríamos de ter você como nosso convidado durante uma

breve incursão pelo fantástico universo sociocognitivo que pertence a mim e a

você: a linguagem humana.

Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos fundamentais e

indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos pelas noções de

linguagem e língua. Os termos parecem se referir a conceitos aproximados,

mas teremos uma seção inteira para entendermos que se trata, na verdade,

de duas realidades diferentes. Com base no que estudaremos sobre a noção

de língua, seguiremos para a seção em que diferenciaremos a dimensão

cognitiva da dimensão sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma

língua sempre existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no

seio da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por isso,

um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial). Logo em seguida,

trataremos do fantástico fenômeno da aquisição da linguagem. Vamos analisar

alguns aspectos da árdua tarefa das crianças, que, de maneira inconsciente e

compulsória, devem criar em suas mentes uma versão do sistema linguístico

que a elas se revela indiretamente na fala das pessoas que a circundam.

Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças entre as

formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a linguagem

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios. Por fim, apresentaremos

os principais fatos imbricados no uso da linguagem pelos indivíduos adultos,

que em tempo real precisam produzir e compreender frases e textos,

codificando e decodificando mentalmente informações nas diversas formas de

comunicação e expressão que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que

você tenha apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da

linguagem está apenas começando!

Linguagem e língua

Ferdinand de Saussure (1857/1913) foi um importante linguista franco-

suíço que ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem.

Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza, uma

importante distinção entre aquilo que compreendemos por linguagem e por

língua. Vamos entender do que se trata.

De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem,

pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p. 17). O que

o mestre genebrino nos ensina nesta passagem é que a linguagem é um

fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma língua. Comparada com

a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua possui um caráter muito mais

específico. Para entender melhor isso, pensemos no seguinte. Você acha que

animais não humanos, como cachorros, gatos, macacos, pássaros etc.,

possuem algum tipo de linguagem? A resposta é um tanto óbvia: é claro que

sim. A maior parte dos animais possui algum sistema de comunicação que

permite a expressão de seus estados internos e a interação com o seu

ambiente. Por exemplo, se você possui um cão ou gatinho, certamente é

capaz de perceber o tipo de latido (ou miado) que ele produz quando está

com fome, com dor, quando se sente em perigo ou alegre. Embora as

mensagens que cães e gatos possam transmitir com seus ruídos

característicos, com a posição do corpo, do rabo e com a emissão de certos

odores sejam um tanto limitadas, não há dúvidas de que se trata de um tipo

de linguagem que permite a comunicação tanto entre os membros daquelas

espécies animais, quanto entre eles e os seres humanos. Na verdade, alguns

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animais chegam a possuir sistemas de linguagem impressionantemente

complexos, como é o caso das abelhas. As abelhas possuem um complicado

sistema de dança em ziguezagueado que permite a indicação da direção e da

distância em que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta

por alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a

abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoalhando o seu

corpo de maneira frenética, são capazes de “entender” a informação que está

sendo transmita e, logo ao fim da dança, rumam para a fonte do néctar com

bastante precisão. Ora, esse exemplo ilustra claramente a existência de uma

“linguagem dos animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de

cada espécie animal em particular.

Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bastante

abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comunicação e

expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem dos animais”,

“linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “linguagem corporal”,

“linguagem da arte” incluindo a “linguagem da dança”, “linguagem da moda”

etc. Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e expressão,

então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo específico de

linguagem, como o próprio Saussure já havida dito. Afinal, uma língua

também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é uma forma de

linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular de linguagem, com

características próprias que a distinguem de todas as demais linguagens

animais ou humanas não-verbais. Que características são essas, você deve

estar se perguntando? Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito

importantes. Vejamos cada um deles a seguir.

O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer, como o

português, o inglês ou o xavante, dos demais sistemas de linguagem é a

existência de um léxico. O léxico pode ser compreendido como o conjunto de

palavras e expressões que são socialmente compartilhadas pelos falantes de

uma dada língua. No léxico, encontramos uma coleção de formas

(significantes) que são associadas sistematicamente a certos conteúdos

(significados). Assim, por exemplo, em português possuímos o significante

[kaza] (representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associado

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa palavra.

Também temos no léxico de nossa língua o significante [a], sufixo presente ao

fim da forma [menina], ao qual está associado o significado [pessoa do sexo

feminino]. Da mesma maneira, temos o significante da expressão [dar uma

mãozinha] que se associa, em língua portuguesa, ao significado [oferecer

ajuda]. O número total de palavras e expressões existentes num léxico é

bastante variável de língua para língua. A título de ilustração, saiba que um

falante escolarizado do português do Brasil domina pelo menos 50.000 itens,

sem contar as formas flexionadas das palavras (como as diversas expressões

do verbo “estudar”: estudo, estuda, estudamos, estudava, estudarei,

estudaria etc.), mas os dicionários da língua portuguesa chegam a registrar de

200.000 a 400.000 palavras. Trata-se de números bem impressionantes, não?

Pois bem, nos sistemas gerais de linguagem não existe nada parecido com o

léxico das línguas humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou cantar

podem ser discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas

“palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a linguagem

dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalogar um grande número

delas, não encontraríamos algo tão organizado, sistemático e vasto como o

léxico de uma língua.

O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de

linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um sistema

combinatório, que chamamos de gramática. Esse sistema é capaz de combinar

entre si, de maneira ordenada e controlada por regras, as unidades do léxico,

de modo a construir expressões compostas como as frases e os textos. Por

exemplo, o léxico do português possui unidades como “casa”, “bonita”,

“comprar”, “você”, “mais”, porém é a gramática dessa língua que permitirá a

criação de expressões complexas como “que casa mais bonita você

comprou!”. O interessante é que, se o número de itens existentes num léxico

qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando

pensamos no número de expressões que o sistema combinatório de uma língua

pode gerar utilizando suas regras computacionais. De fato, o número de frases

e textos que podemos construir numa língua ao combinarmos léxico e

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

gramática é ilimitado. Quando falamos uma língua, somos capazes de produzir

e compreender um número infinito de frases e textos.

Se compararmos as línguas humanas com os sistemas mais gerais de

linguagem (humanos ou animais), poderemos deduzir que a principal

diferença entre eles é a recursividade – também denominada infinitude,

criatividade ou produtividade –, que existe somente nas línguas. A

recursividade é justamente a capacidade de criar um número infinito de

frases e textos com base no número finito de palavras existentes no léxico. A

recursividade emerge, portanto, da combinação entre os dois componentes

fundamentais de uma língua: o léxico e o sistema combinatório (gramática).

Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe algum tipo

animal não humano que possua língua (e não apenas linguagem). Muito bem,

os cientistas ainda não conseguiram registrar nenhuma espécie de vida, além

dos humanos, que use algum sistema de comunicação remotamente parecido

com uma língua natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós

humanos conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade. É por

isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade,

algo que nos distingue claramente de todas as formas de vida conhecidas pela

ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das

características mais distintivas e mais importantes do homo sapiens. Não

obstante, existem muitos cientistas que vêm tentando ensinar uma língua

humana a animais inteligentes, como os chimpanzés e algumas espécies de

papagaios e de golfinhos. Nos links a seguir, você poderá encontrar alguns

documentários que registram essas tentativas de ensino de línguas entre

espécies.

Washoe - chimpanzé fêmea que aprendeu a dominar diversas formas da língua norte-americana de sinais.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=UAJAV0PJmsw

Alex – papagaio cinza africano que conseguia comunicar-se usando várias palavras do inglês.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=VZ2j1jOwAYU

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Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas

desses animais raríssimos e geniais. Mas acreditamos que não ficará

convencido de que eles de fato “aprenderam” a usar uma língua e

demonstram domínio de um léxico e de um sistema combinatório. O máximo

que podemos dizer é que esses adoráveis bichinhos são capazes de aprender,

após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem bastante

complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo

fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico. No entanto,

usar essas pesquisas para alegar que macacos ou papagaios são realmente

capazes de aprender e usar uma língua humana é um flagrante e descomunal

exagero, o qual se motiva muito mais por questões ideológicas (por exemplo,

conferir maior importância ao aprendizado sociocultural em oposição à

natureza biológica humana na aquisição de conhecimento) do que linguísticas.

Até o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema

combinatório que opera recursivamente sobre um léxico, é um fenômeno

identificado somente na espécie humana e ainda irreproduzível nos sistemas

de inteligência artificial desta segunda década do século XXI.

Muito bem, agora que você já sabe distinguir linguagem e língua, fique

atento às expressões “linguagem” ou “linguagem humana”. Muitas vezes,

essas expressões querem dizer “língua” (léxico e gramática) e não apenas

“linguagem” (qualquer sistema de comunicação). É bem verdade que podemos

usar esses termos de maneira um tanto livre e mais ou menos metafórica, no

dia a dia ou mesmo ao longo de um livro mais especializado – como, de fato,

já o fizemos e tornaremos a fazer aqui -, mas, sempre que necessário,

devemos distinguir tais conceitos.

Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural

As línguas humanas são uma autêntica maravilha do mundo natural e

sociocultural. Talvez você já se tenha dado conta de que, desde que estejam

inseridos num ambiente de interação social, todos os indivíduos saudáveis, de

todos os tempos da história e de todas as culturas humanas, desenvolvem, de

maneira natural e espontânea, a habilidade de produzir e compreender

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oralmente palavras, frases e textos na língua de seu ambiente. Por exemplo,

uma criança que nasça no Brasil desenvolverá, já nos primeiros anos de vida,

a capacidade linguística de produção e compreensão de enunciados em

português, numa de suas modalidades socioculturais – se não o português,

então uma das línguas minoritárias do país (por exemplo, uma língua

indígena), que será assim a língua ambiente dessa criança. Essa capacidade

permanecerá na mente da criança no curso de sua vida saudável e será

modificada, na adolescência e na vida adulta, de acordo com suas

experiências particulares. Como maravilha do mundo natural e sociocultural,

o fenômeno das línguas humanas comporta necessariamente duas dimensões:

uma dimensão individual e mental e uma dimensão coletiva e sociocultural.

Sempre que temos o fenômeno linguagem humana, temos, de um lado, o

indivíduo particular que possui a capacidade mental de produzir e

compreender expressões linguísticas e, do outro lado, temos a sociedade em

que esse indivíduo se insere, a qual lhe forneceu não só os contextos de uso

da linguagem em interação com outros humanos, mas também os sons e as

palavras necessários à expressão verbal.

O influente linguista norte-americano Noam Chomsky (nascido em 1928

e ativo até o presente) formulou dois importantes conceitos para dar conta da

diferença entre a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua

dimensão social e cultural. Chomsky, em seu clássico livro de 1986, propôs

que a dimensão mental e cognitiva do fenômeno da linguagem seja

sintetizada pelo conceito de Língua-i, em que “i” significa interna, individual.

Já a dimensão sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como

Língua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor esses

conceitos.

A noção de Língua-e corresponde grosso modo ao que comumente se

interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por exemplo, o português

é uma Língua-e no sentido de que é esse fenômeno sociocultural, histórico e

político que compreende um conjunto sons, palavras, regras gramaticais e um

sistema de escrita que, em conjunto, permitem a comunicação e a interação

entre os seus falantes. Trata-se de um fenômeno supra-individual, na verdade

exterior ao indivíduo. Quando dizemos que o russo é a língua da Rússia ou que

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o chinês é a língua da China, entendemos língua como esse fenômeno

desincorporado dos falantes, a Língua-e. Da mesma forma, quando dizemos

que uma criança nascida no Paraguai provavelmente aprenderá a falar

espanhol e guarani, mais uma vez nos referimos a um fenômeno cuja

existência é externa às pessoas e, nesse caso, do qual elas devem se

apropriar: as línguas do ambiente, as Línguas-e.

A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto de

habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção e a compreensão

de um número potencialmente infinito de expressões na sua língua ambiente.

Uma Língua-i diz respeito, portanto, àquilo existente no interior da mente das

pessoas, que lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural.

Nesse sentido, se entende que uma língua seja parte do sistema cognitivo

humano. Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um

órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicológicas

graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos gramaticais e

textuais que veiculam significados do indivíduo para o mundo exterior e desse

para a consciência do indivíduo. Essa competência cognitiva para a

manipulação das estruturas e dos significados da linguagem é individual e

inconsciente. É a ela que nos referimos com o conceito de Língua-i.

É muito importante que você compreenda que uma língua é ao mesmo

tempo um fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno

coletivo e sociocultural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os

termos chomskianos, essa dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes

em que falamos sobre as línguas. Às vezes, quando pensamos sobre a

linguagem humana, precisamos ter clareza se estamos discutindo aspectos

cognitivos ou aspectos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos

considerando ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre

atento a esse particular.

Aquisição da linguagem

Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em que

se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos liberar a

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imaginação com a seguinte história fantástica. Suponha que você seja

abduzido por alienígenas. Você acordaria numa galáxia distante, cercado de

criaturas diferentes, cujos comportamentos você não compreende. Apesar de

toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais criaturas possuem

uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo como uma boca),

de onde certos sons são regularmente emitidos. Com um pouco de

observação, você consegue perceber que esses estranhos seres parecem se

comportar de alguma maneira relacionada aos sons que trocam entre si. Por

exemplo, você vê um ser alto emitindo sequências de sons enquanto um

baixinho o observa. Ao final da produção de sons, o baixinho se desloca no

espaço, toma um objeto para si e o leva até o altão, como se tivesse

cumprido um pedido ou uma ordem. Para você, parecerá coerente concluir

que os sons compartilhados entre esses alienígenas sejam uma espécie de

sistema de comunicação e você, para conseguir descobrir o que aconteceu

consigo, onde você está, quem são essas criaturas etc., terá de aprender a

usar esse sistema. Tal tarefa não será nada fácil, pois você não contará com

nenhum professor de “alienígena para terráqueos”, nenhum livro ou curso

preparatório e, além disso, o aparente sistema de comunicação usado por

aquelas criaturas não é semelhante a nenhum outro que você já tenha visto

antes...

Se você conseguiu compreender o quão dramática seria essa situação,

está apto a entender que a aquisição da linguagem pelos bebês e pelas

crianças é um autêntico milagre do mundo biocultural. Note bem, os bebês

chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados que foram do

aconchegante útero materno. Esse mundo é povoado por seres estranhos ao

bebê (os seres humanos) cujo comportamento parece estar estreitamente

relacionado aos sons que todos trocam entre si. Tais sons mais parecem ao

bebê uma grande confusão, um continuum de ruídos quase indecifráveis.

Afinal, como um bebê poderia identificar, no fluxo da fala humana, onde um

som termina e o outro começa? No entanto, já ao nascer, os bebês parecem

ser muito espertos e, para eles, não é difícil deduzir que os sons emitidos

pelas criaturas que o circundam constituem, na verdade, um sistema de

comunicação. Talvez em razão do que famoso psicólogo de Harvard, o

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canadense Steven Pinker, denominou de instinto para a linguagem, um bebê

humano rapidamente “compreende” que precisa dominar esse sistema para

descobrir o que os seres ao seu redor dizem e também para que ele próprio

possa dizer alguma coisa e comunicar-se com as outras pessoas. Mas bebês e

crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no interior de suas mentes

durante a odisseia pela descoberta e pelo domínio da língua do seu ambiente.

Eles não possuem um professor particular de “língua humana para bebês

recém-nascidos” e, o que é mais grave, o seu cérebro é ainda um

protocérebro, ou seja, apenas um rascunho do potente processador de

informações que é o cérebro de um indivíduo maduro. Suas capacidades

cognitivas são, portanto, enormemente inferiores às do adulto abduzido para

outra galáxia de nosso exemplo.

Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da linguagem

pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificuldades que

descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar a língua de seu

ambiente, para a compreensão e a produção da linguagem, com extrema

eficiência e num intervalo de tempo incrivelmente pequeno, que não

ultrapassa três ou quatros anos. As crianças pequenas sequer parecem fazer

esforço cognitivo para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da

linguagem é muito mais algo que simplesmente acontece com os bebês e com

as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o seu pequeno

cérebro em formação.

A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da

língua do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades

bilíngues ou multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um

ser humano. Esse fenômeno é ao mesmo tempo a porta de entrada para as

relações sociais humanas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a

janela para o aperfeiçoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte

da cognição humana se utiliza da linguagem como instrumento de

desenvolvimento e de complexificação. Na verdade, o que chamamos de

aquisição da linguagem é um fenômeno duplo, que envolve a aquisição de dois

diferentes tipos de habilidades sociocognitivas. Vejamos isso em mais

detalhes.

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Um tipo particular de aquisição da linguagem é aquele que

denominamos de aquisição em sentido amplo, ou aquisição da linguagem lato

sensu. Em seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das

habilidades de comunicação, expressão e interação social. Esse tipo de

aquisição demanda dos bebês e das crianças a absorção dos aspectos mais

gerais da linguagem, tais como a interação sociocomunicativa, a organização

de conceitos e de pensamentos e envolve, também, o desenvolvimento das

noções de autoconsciência e de individualidade nas relações humanas. Na

aquisição da linguagem lato sensu, a criança adquire, na verdade, os

fundamentos da interação entre os humanos: os valores e as ações imbricados

nos usos da linguagem, a própria noção de si, a percepção do(s) outro(s), os

modos de interagir socialmente e assim por diante.

O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e, por

isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição da

linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem significa

apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na língua do

ambiente. Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a

habilidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de toda a

maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da língua. Na aquisição

stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato linguístico formal que

estará a serviço das interações sociais e da organização cognitiva do indivíduo

em desenvolvimento.

Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem lato

sensu e stricto senso, podemos agora falar um pouco mais sobre a aquisição

em sentido restrito. Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de

aquisição do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que

ele parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crianças

durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas as culturas

do mundo, seja qual for a língua do ambiente e seja qual for o nível de

inteligência geral da criança. O que isso quer dizer é que todas as crianças

parecem atravessar as mesmas etapas, nos mesmos estágios de

desenvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio completo da

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob qualquer tipo

de cultura. Vejamos alguns exemplos.

Já ao nascer, todas as crianças normais balbuciam no ritmo da sua

língua ambiente. Na verdade, algumas pesquisas recentes descobriram que o

choro de bebês recém-nascidos transcorre conforme o ritmo e a melodia da

língua que a circunda (Wermke e al., 2011). Esses fatos parecem indicar que a

aquisição da linguagem tem início ainda no útero materno, quando aspectos

sonoros da língua do ambiente (como o ritmo, a entoação e o acento) já

parecem ser discriminados pelo feto. Você pode conferir um interessante

vídeo sobre a precocidade na aquisição de sons e ritmos de uma língua no link

abaixo.

Robert Lent (UFRJ) – Os bebês choram em que língua? http://www.youtube.com/watch?v=e1vqLu_qFv4

Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística dos

bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produzir suas

primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na verdade, mais do

que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o valor de uma frase

completa inserida num contexto discursivo. Independente da língua do

ambiente, as primeiras palavras produzidas por uma criança são sempre

monossilábicas e seguem a estrutura [consoante + vogal]. Em pouco tempo,

essa estrutura vai tornando-se cada vez mais complexa e caminha em direção

à complexidade existente na fala adulta circundante. Por exemplo, uma

criança brasileira, pode dizer algo como “bó”, parar significar uma frase

inteira, como “olhe, a bola”, ou “onde está a bola?”, ou “ele furou a bola”,

conforme o contexto permita compreender. Pouco meses depois, “bó”

ganhará complexidade fonológica e tomará a forma convencional de “bola”. O

mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas de outras palavras que

as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas nomeiam fase

holofrástica.

Com pouco menos de 24 meses, as crianças já atingem a fase de duas

palavras (também chamada de fase sintagmática). Nessa etapa de seu

desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujeito e predicado

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semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas pelos bebês. São frases

como “qué papá”, “mais colinho”, “meia papai” e “banho não”. O

interessante é que os enunciados produzidos pelos bebês durante a fase

sintagmática não são apenas uma combinação entre duas palavras soltas. Pelo

contrário, tal como ocorre na fase holofrástica, essas palavras também

assumem o valor de um ato comunicativo completo, cuja interpretação é

dependente do contexto interacional e comunicativo.

Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar frases

com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis, nove, dez

palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, chamada de fase

telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pronomes estão ainda ausentes

na fala infantil. Com efeito, até o terceiro ano de vida, as palavras que as

crianças inserem em frases e textos são sempre itens de conteúdo referencial,

como substantivos, adjetivos e verbos. As partículas gramaticais, que possuem

conteúdo puramente formal, só emergem na fala das crianças de modo

consistente a partir dos 36 meses de vida – embora haja intensas variações

individuais sem causa aparente registradas pelos cientistas. É possível dizer

que, ao mais tardar, aos quatro anos de vida, a língua que uma criança

domina para a produção e para a compreensão da linguagem é indistinguível

da de um adulto. As únicas diferenças, é claro, dizem respeito aos aspectos

linguísticos que envolvem letramento, escolarização e certas regras de

comportamento social que se desenvolvem posteriormente, na adolescência e

na vida adulta.

Infelizmente, parece existir um fim para o período da aquisição da

linguagem. Isto é, os humanos não podem adquirir a língua do ambiente tão

rapidamente e sem esforço em qualquer momento de sua vida, da infância à

velhice. O neurocientista alemão Erick Lenneber (1921-1975) denominou de

período crítico (ou idade crítica) a fase de desenvolvimento físico e cognitivo

humano no limite da qual a aquisição da linguagem deve acontecer. Há muitas

discussões sobre qual seria o fim dessa fase, mas, como existem muitas

variações individuais no desenvolvimento humano, não é possível defini-lo

com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puberdade, por volta dos 12

ou 13 anos, como o momento em que “a janela automática” para a aquisição

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da linguagem se fecha. A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais

possível e tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é

aprendê-la por meio de estudos formais, em escolas ou cursos de idioma. O

conceito de aquisição opõe-se ao de aprendizado porque a aquisição da

linguagem ocorre na infância de maneira espontânea, natural e mesmo

involuntária, enquanto o aprendizado de línguas estrangeiras demanda do

adolescente e do adulto esforço consciente e instrução mais ou menos formal.

A linha divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica.

Formas e funções linguísticas

Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreendemos

as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e temos noção

da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em tenra infância, ao

longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e se perguntassem a

você para que serve uma língua (como o português), qual seria a sua resposta?

Muito provavelmente, você diria algo como para permitir a comunicação

entre as pessoas. Em essência, tal resposta está correta. Contudo, a pergunta

é mais complexa do que parece, de tal modo que é preciso esmiuçá-la um

pouco mais. Façamos isso.

A questão para que serve uma língua pressupõe dois conceitos

fundamentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada uma

dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguística possui

uma dada função ou um conjunto de funções. As formas existentes numa

língua podem ser também denominadas como estrutura. Trata-se da

superfície ou o meio concreto pelo qual uma língua se realiza nos atos de fala

humanos. Por exemplo, uma palavra e uma estrutura sintática são ilustrações

de formas que usamos quando produzimos e compreendemos enunciados

numa língua. Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de

uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato estrutural

que precisamos utilizar para que a língua tome vida num ato linguístico

qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de uma língua não existem

por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de cada forma linguística é

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desempenhar uma determinada função. O escritor Graciliano Ramos

compreendeu isso perfeitamente ao afirmar que “A palavra não foi feita para

enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. No caso, “o

dizer da palavra” é justamente a sua função. Dizendo de outra maneira, uma

forma linguística não existe senão para provocar algum efeito de significado

ou de sentido, isto é, uma forma não existe senão pela sua função.

Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função, pense

nos seguintes exemplos. Em português, usamos um determinado som (e não

outro) em razão de sua função distintiva, e assim conseguimos dizer, por

exemplo, [sorte] e não [forte] pela oposição entra as formas [s] e [f].

Podemos usar uma forma de entonação ascendente para caracterizar a função

de uma pergunta (ex. “João saiu?”) e uma forma descendente para a função

assertiva (ex. “João saiu.”). Podemos usar a forma de um sufixo diminutivo,

como em [casinha], para conferir uma função afetiva ou depreciativa à

palavra “casa”. Podemos usar uma frase na forma da voz ativa com a função

de destacar o agente de um determinado processo (ex. “João cometeu

erros”), ou podemos usar a forma da voz passiva para esconder o agente da

ação e destacar o objeto do verbo (ex. “Erros foram cometidos”). Em suma, o

que queremos dizer é que uma forma linguística (um som, uma entonação, um

sufixo, uma voz verbal etc.) é a maneira pela qual uma dada função se realiza

materialmente na língua.

Se você compreendeu o que são formas e funções linguísticas, talvez

possa agora repensar a sua resposta à questão para que serve uma língua

(como o português)?. Na verdade, as formas existentes numa língua se

prestam a inúmeras funções. Não é possível descrever todas elas neste

capítulo, mas podemos dizer a você que, em sua grande maioria, as funções a

que se destinam as formas linguísticas são eminentemente comunicativas. É

por isso que importantes estudiosos, como o já citado Steven Pinker,

acreditam que as línguas “servem” para a comunicação humana. Não

obstante, cientistas não menos ilustres, como o também já mencionado Noam

Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os tempos, destacam

outras funções linguísticas que são tão importantes ou ainda mais vitais do

que a comunicação, tais como a organização do pensamento e a criação do

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conhecimento individual. De fato, muitas vezes nós humanos usamos a língua

internamente, em voz alta ou em silêncio, como se falássemos com o nosso

próprio eu – e isso, é claro, não pode ser considerado literalmente

comunicação. Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a

primeira e mais fundamental função das línguas, não podemos desprezar as

outras funções, tais como a metacognitiva, isto é, a função de organização do

pensamento, e a instrumental, isto é, a função adquirir e organizar outros

tipos de cognição, como o conhecimento matemático, o conhecimento sobre a

História, o conhecimento sobre as relações sociais etc.

Atento à natureza comunicativa das línguas, o psicólogo austríaco Karl

Buhler (1879-1963) foi um dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira

esquemática, as correlações entre linguagem e comunicação. Foi ele quem

destacou que os usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma

mensagem e (3) um destinatário. Esse modelo tripartido de comunicação se

tornou mais complexo na análise do linguista russo Roman Jakobson (1896-

1982), que introduziu as noções de (4) referente, de (5) canal comunicativo e

de (6) código linguístico. É desse modelo de Buhler e Jakobson que se derivam

as famosas funções da linguagem, que são estudadas no ensino médio: (1) a

“função emotiva”, em que o emissor da mensagem se destaca; (2) a “função

poética”, em que a própria mensagem transmitida é destacada; (3) a “função

conativa”, na qual o destinatário da mensagem assume a função central; (4) a

“função referencial”, em que o referente é o foco da comunicação; (5) a

“função fática”, em que o canal comunicativo é meramente testado e (6) a

“função metalinguística”, que se estabelece quando é o próprio código

linguístico (a língua) o fator de destaque na comunicação. Na realidade, as

funções linguísticas, entendidas como as funções que determinadas formas

podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais numerosas do que

essas seis, todavia tal modelo parece ser bom caminho para começarmos a

entender as funções comunicativas e expressivas que as formas da linguagem

humana podem desempenhar.

Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que existe

alguma relação natural entre uma determinada forma e sua respectiva

função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de uma

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maneira um tanto imprevisível, que precisa ser memorizada pelos falantes de

uma determinada comunidade? Boa pergunta. Na verdade, esse é um

questionamento milenar, que remonta à antiga Grécia clássica. Os filósofos

gregos que se dedicavam ao estudo da linguagem dividiam-se, basicamente,

entre os analogistas e os anomalistas. Em termos muito simples, os

analogistas afirmavam que as formas da linguagem eram análogas às suas

funções e era somente em razão da passagem do tempo que, para as novas

gerações de falantes, a analogia entre forma e função deixava de ser

percebida. Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relações entre

forma e função sempre foram totalmente acidentais e improvisadas, um

verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falantes de uma

língua humana. Contemporaneamente, a controvérsia entre analogistas e

anomalistas é reanalisada na oposição iconicidade versus arbitrariedade.

Vejamos o que é isso.

Comecemos pela arbitrariedade. Dizer que uma forma está

arbitrariamente associada a uma função significa assumir que não é possível

deduzir espontaneamente a que função determinada forma se presta. Sendo

assim, torna-se preciso aprender e memorizar, caso a caso, a correspondência

entre cada forma e sua respectiva função numa dada língua, tal como

apregoavam os anomalistas. Um bom exemplo disso é a relação existente

entre o significante (forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das

palavras do léxico do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que

escrevemos “casa”) deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque

aprendemos isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma

e conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou

motivada por algum princípio lógico. Isso tanto é verdade que, noutras

línguas, o mesmo significado (conteúdo) pode ser codificado por outro

significante (forma), tal como o termo “house”, que em inglês é a forma

correspondente do conteúdo [tipo de moradia]. Noutras palavras, ao

afirmarmos que uma forma é arbitrária em relação à sua função, estamos

dizendo que não existem semelhanças entre o feitio de determinada forma e

o seu respectivo conteúdo. Por exemplo, a aparência física de uma “casa” não

se assemelha em nada à forma [kaza], em português, ou à forma [hauz], em

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inglês. Com efeito, a língua portuguesa, no curso de sua história, poderia ter

escolhido arbitrariamente qualquer outra forma para expressar o conceito

[tipo de moradia]. A escolha por [kaza] foi arbitrária.

Vejamos outros exemplos de arbitrariedade entre forma e função. Em

língua portuguesa, a forma de entonação ascendente ao fim da frase

desempenha a função de formular perguntas. Dizemos que a relação entre

essa forma e essa função é arbitrária porque não há nada natural entre uma

subida melódica e a “expressão de perguntas”. Trata-se de uma associação

arbitrária que todos os falantes do português precisam aprender e memorizar.

Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” é uma forma arbitrária de

codificar, numa dada frase, a relação entre um agente, uma ação e um

paciente. Embora a nós, falantes de português, pareça razoável pensar em

codificar os participantes de uma ação na ordem “quem fez o que a quem”,

não existe nada que torne essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se,

novamente, de uma arbitrariedade. De fato, a maioria das línguas do mundo

apresenta a ordenação “sujeito > objeto > verbo” e, assim, codifica na frase

os participantes de uma ação na sequência “quem fez a quem o quê”, noutro

tipo de seleção arbitrária.

Pelo que expusemos acima, você talvez já possa deduzir que a

iconicidade é o justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é

icônica quando reflete com clareza a função a que se destina, conforme

pensavam os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.

Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por um determinado

incômodo. Essa pessoa teria discursado por um longo tempo, mas, ao fim e ao

cabo, não teria dito nada que de fato reparasse o problema. Você poderia

descrever a tediosa conversa com essa pessoa dizendo algo como “Fulano

falou, falou, falou e não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo

“falar” é praticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato

de a pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma (um

verbo repetido) que com clareza reflete a sua função (indicar a repetição de

um ato). Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais, que

podemos usar numa determinada palavra quando queremos enfatizar o

tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma coisa é

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exageradamente grande, pode dizer algo como “Era muito

graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal) reflete

claramente sua função. Também no plano do léxico, na relação entre

significante e significado, existem casos de iconicidade. Trata-se das famosas

onomatopeias, palavras cuja forma se assemelha ao conteúdo representado.

Por exemplo, a forma “tique-taque” possui uma expressão fonética parecida

com o som das batidas de um relógio. Da mesma maneira, “miar” é um verbo

inspirado na forma acústica do miado dos gatos e “tim-tim” é um substantivo

que iconicamente representa o som produzido pelo rápido toque entre taças

quando se faz um brinde.

As relações icônicas entre forma e função são bastante regulares, tanto

que há muitos estudiosos, não por acaso denominados como funcionalistas,

que defendem a ideia segundo a qual as formas existentes nas línguas em

grande medida refletem as funções a que se destinam. A motivação funcional

para a existência de certas formas pode ser, de fato, encontrada em todos os

domínios de uma língua, tal como vemos nos seguintes exemplos do

português:

fonologia - pense na palavra “sussurrar”, que se parece com os sons

emitidos quando alguém su... ssu... rra;

morfologia - pense, por exemplo, nas palavras compostas como “saca-

rolha”, “guarda-roupa”, cujas funções são rapidamente dedutíveis pela

análise de suas formas constituintes;

semântica - lembre-se de expressões como “pé-da-mesa” ou “braço da

cadeira”, que transferem para objetos a estrutura do corpo humano e,

assim, iconicamente permitem a codificação formal de suas funções;

sintaxe – tal como se vê na famosa sequência atribuída ao romano Júlio

César: “Vim, vi e venci”, que reflete de forma icônica a sequência

temporal com que os atos se deram: o general primeiro veio, depois

viu, para enfim vencer.

Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogistas

e anomalistas, saiba que temos aqui um empate técnico. As línguas humanas

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estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos evidentes de

iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as línguas quando

cotejamos formas e funções. Com efeito, a análise mais interessante que os

cientistas da linguagem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é

interpretar a relação entre arbitrariedade e iconicidade numa espécie de

continuum, isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam

um extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade de

outro – mais ou menos como representamos a seguir:

[+ icônico] [+/- icônico] [+/- arbitrário] [+ arbitrário].

Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e função

numa língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada, ou temos

arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser uma boa

chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por exemplo,

que no uso de uma língua como o português podemos deslizar rapidamente da

forma dos substantivos para a forma dos adjetivos, a depender da função de

um item no interior de um contexto sintático. Vemos isso acontecer na

célebre citação de Memórias Póstuma de Brás Cuba, de Machado de Assis: em

[um autor defunto], “autor” é substantivo e “defunto” é adjetivo, mas em

[um defunto autor], “defunto” é substantivo e “autor” é adjetivo. Do mesmo

modo, formas como “furado” podem ser analisadas como adjetivos ou como

verbos (na forma de particípio) a depender de sua função na frase, tal como

vemos acontecer em “isso é papo furado” versus “a roupa foi furada pelo

alfinete”, respectivamente. Na verdade, mesmo certas formas verbais, a

depender de sua função na frase, podem ser reanalisadas como substantivos,

tal como acontece na expressão “sala de jantar”.

Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamento

entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada tanto no

léxico quanto na gramática de uma língua.

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A linguagem humana em ação

Para finalizarmos este capítulo, passemos a descrever e analisar alguns

fenômenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes em que colocamos

a língua em ação nas inúmeras tarefas comunicativas e interacionais de nossa

vida cotidiana. Antes de mais nada, devemos explicitar que existem duas

modalidades fundamentais no uso da linguagem humana: a produção e a

compreensão. Além disso, não podemos nos esquecer de que, em sociedades

letradas, como é o caso da maior parte das comunidades brasileiras, a língua

pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito. Sendo assim, as quatro

habilidades sociocognitivas envolvidas no uso de uma língua natural são a

produção oral, a compreensão oral, a produção escrita e compreensão escrita.

Comecemos pela produção linguística. Essa habilidade demanda do

falante (ou do escritor) uma séria de tarefas cognitivas que se articulam

dinamicamente com o contexto social da interação linguística. Por exemplo,

para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve primeiramente selecionar

de sua memória de longo prazo os itens lexicais que expressarão os conceitos

que se deseja veicular no ato de linguagem. Essa seleção de palavras na

mente é o que os psicolinguistas chamam de planejamento de fala ou

planejamento conceitual. Durante tal planejamento, o sujeito que produz o

ato linguístico se vê motivado a dizer certas coisas a seus interlocutores e é

essa intenção de dizer que faz com que certos itens lexicais sejam

selecionados e colocados em estado de ativação em sua memória de trabalho.

Uma vez ativados e disponíveis na mente, tais itens são acessados pelo

sistema combinatório da linguagem humana e, então, são arranjados

sintaticamente entre si, de maneira ordenada e regida por regras. Dessa

combinação regrada, resultam as frases que fazem emergir o texto do falante,

o qual se realiza concretamente por meio da articulação fonética (pronúncia)

que projeta as ondas sonoras que chegarão ao sistema auditivo dos

interlocutores. Esquematicamente, podemos representar a produção

linguística oral pela sequência ilustrada a seguir.

Plano Conceitual Seleção Lexical Combinação Sintática Expressão Fonética

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Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala

fazendo com que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que

sugerimos, a diferença entre essas duas modalidades residiria no simples fato

de que, na escrita, usaríamos grafemas para representar a expressão fonética

do texto. No entanto, essa descrição é, na verdade, uma supersimplificação.

De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma

maneira bem resumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem,

estão muito mais conscientes do uso que fazem da linguagem, sendo, por isso

mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em relação ao que dizem, como

em relação a como dizem. Ora, essa tomada de consciência e essa vigilância

comuns na produção escrita estão em flagrante contraste com a caráter mais

espontâneo e automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita

fluente, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, demanda

muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até o letramento

profundo na vida adulta. Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já

em crianças bem pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre

humanos, independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos

falantes. Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos

básicos envolvidos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e

escrever são fenômenos sociocognitivos dramaticamente diferentes.

No eixo da compreensão linguística, o ouvinte (ou leitor) deve perceber

as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu interlocutor

para então acessar, em sua memória de longo prazo, os conteúdos por elas

evocados. Podemos dizer que a compreensão é o espelho invertido da

produção. Vejamos por quê. Na produção linguística, começamos com um

plano conceitual. Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas

palavras, as quais são inseridas nas frases que conduzem os textos. Já na

compreensão da linguagem, tudo começa pela detecção, nos textos, dos

elementos do ato linguístico, tais como frases e palavras. É com base na

identificação desses elementos que se torna possível compreender o plano

conceitual e os valores comunicativos que moveram a produção do

interlocutor. Vemos a sequência das etapas da compreensão linguística

representada no esquema seguinte.

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Percepção Fonética Análise Sintática Identificação Lexical Representação Conceitual

Mais uma vez, as semelhanças entre oralidade e escrita estão aqui

exageradas. No caso, a especificidade da compreensão da escrita diria

respeito, de maneira muito simplificada, apenas à decodificação ortográfica

(leitura) que faria as vezes da percepção fonética. Na realidade, porém, a

compreensão linguística pela leitura é muito mais complexa do que o esquema

acima sugere. Infelizmente, não podemos tratar de tantos detalhes no espaço

limitado deste capítulo, mas, se você estiver interessado em compreender as

minúcias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitura do

excelente livro “Os neurônios da leitura” (2012), do neurocientista francês

Stanislas Dehaene.1

Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produção e a

compreensão linguística, a figura a seguir parece ser um bom recurso

didático. Nela, vemos representado o que se conhece como circuito da fala.

Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano

conceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística

veiculada para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e

rapidamente consegue interpretar os conceitos ali representados. A figura é

interessante também porque nela podemos perceber que a produção e a

compreensão da linguagem são automaticamente intercambiáveis no fluxo da

fala normal. Pelas setas que correm da direita para a esquerda, notamos que

agora é B quem produz a informação linguística que será veiculada para A.

Figura 1: o circuito da fala (adaptado de Saussure, 1916: p. 19)

1 No presente capítulo e também ao longo do livro de Dehaene, são deliberadamente deixadas de lado

todas as questões socioafetivas, sociointeracionais e político-ideológicas que entram em ação sempre que usamos a linguagem, tanto para a produção, quanto para a compreensão linguística. Você terá a oportunidade de estudar as questões sociológicas imbricadas nos usos da linguagem noutros capítulos deste livro.

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

Na dinâmica da produção e da compreensão da linguagem, o

intercâmbio de posições entre aquele que fala e aquele ouve dá origem ao

fenômeno conhecido como enunciação. A enunciação deve ser compreendida

como o ato de criação de um enunciado linguístico. Na enunciação, a pessoa

que produz a fala (ou a escrita) é o enunciador – a primeira pessoa do

discurso. Já a pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a

segunda pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina.

Chamamos de terceira pessoa, ou de não-pessoa - num termo interessante

formulado pelo linguista francês Émile Benveniste (1902-1976) -, os objetos e

as pessoas sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação.

Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que a

enunciação explicita, na produção da linguagem, as chamadas pessoas do

discurso. Os pronomes pessoais, que você certamente conhece das aulas de

português na escola básica, são, justamente, categorias linguísticas que

indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda pessoa (você, vocês)

e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as expressões referenciais,

como os substantivos). É com base na existência do enunciador, do

enunciatário e dos referentes do discurso, que diversas expressões linguísticas

são colocadas sob perspectiva durante a enunciação. Por exemplo, pronomes

como [meu/minha/nosso/nossa] indicam a posse de algo em relação à

primeira pessoa do discurso, enquanto pronomes como [seu/seus/sua/suas]

indicam a posse relativa à segunda pessoa e expressões como

[dele/deles/dela/delas] denotam a posse da terceira pessoa. Na verdade,

mesmo o espaço ocupado pelas pessoas do discurso é posto em perspectiva

durante a enunciação. Assim, termos como [aqui/este] indicam o espaço da

primeira pessoa, enquanto [aí/esse] denotam o espaço da segunda pessoa e

[lá/aquele] apontam o espaço do referente, o lugar da terceira pessoa.

De maneira muito interessante, o próprio tempo que utilizamos quando

produzimos e compreendemos a linguagem só assume alguma interpretação

coerente quando é colocado sob perspectiva durante a enunciação. Desse

modo, sabemos que [ontem] é um termo que denota um momento anterior ao

tempo da enunciação, ao passo que [hoje] indica o momento que coincide

com a criação do enunciado, enquanto [amanhã] marca um tempo futuro, que

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

acontecerá depois de a enunciação ter sido concluída. Se você se lembrou da

piada do bar “Fiado só amanhã”, já poderá agora explicar por que esse dizer,

na prática, torna a venda a crédito impossível: sempre que a pessoa lê o

aviso, a enunciação desloca para o dia seguinte a possível venda. Mas, no dia

seguinte, uma nova leitura do aviso cria uma nova a enunciação e isso faz com

que o “amanhã” seja novamente deslocado para o dia posterior – e assim por

diante, ad infinitum.

Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo

são categorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem

crucialmente da enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de

sua cidade quando, de repente, encontra um bilhete que flutua em sua

direção. Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte

mensagem: “Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o

significado básico dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete

que “alguém esteve em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível

identificar o sentido do enunciado, justamente porque você não participou da

enunciação – e, portanto, não conseguirá encontrar o referente da primeira

pessoa (eu), nem poderá deduzir o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o

bilhete, tampouco descobrirá qual foi o tempo presente (hoje) naquela

enunciação. Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse

uma frase como “A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro

em 04 de maio”. Nesse caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço

e do tempo do enunciado não é totalmente dependente do contexto

estabelecido na enunciação. Sabemos apenas que a produção dessa frase

ocorreu depois da visita da Presidente à Prefeitura – e deduzimos isso em

função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.

Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a

linguagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa em termos

científicos é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade, a

não-pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Trata-se do

referente ou dos referentes discursivos de um dado uso da língua. O já citado

linguista Roman Jackobson havia destacado a existência da não-pessoa ao

batizar com o termo “referencial” a função da linguagem que privilegia a

KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.

terceira pessoa como o referente do discurso. A função referencial é muitas

vezes considerada a mais proeminente dentre as funções da linguagem, já que

os humanos tipicamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos,

ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial” pode nos

passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando colocada em ação,

seja essencialmente referencial. É bem verdade que muitos usos linguísticos

são objetivos, isto é, focam-se no objeto (terceira pessoa) de maneira

puramente referencial, entretanto, uma grande parte da experiência

linguística humana é metafórica. Vejamos o que isso quer dizer.

Nossa tradição escolar se esforça para nos fazer crer que o uso

cotidiano e comum da linguagem seja referencial, isto é, somos ensinados

que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita, fazemos

referências a coisas e pessoas de maneira mais ou menos objetiva. A

linguagem metafórica, nos ensinam, seria característica dos usos linguísticos

mais elaborados e artísticos, como a poesia e os romances. Essa ideia é

reforçada quando, na escola, estudamos as “figuras de linguagem” e ficamos

com a impressão de que elas só acontecem nos textos literários. A bem da

verdade, o uso metafórico da linguagem não é exclusividade da arte. Com

efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, também utilizam

metáforas ao produzir enunciados linguísticos. Por exemplo, quando dizemos

alguma coisa como “Decidirei se vou casar ou não só mais à frente ao longo da

minha vida” estamos fazendo referência a uma realidade temporal (a

passagem da vida) por meio de uma categoria espacial (a localização no

espaço, “à frente”). Quando produzimos frases assim, estamos na verdade

cruzando domínios de sentidos para fazer referência às coisas que queremos

dizer. No caso do exemplo, estamos transferindo propriedades do espaço para

fazer referência à noção de tempo. Ora, é precisamente esse o princípio de

toda a linguagem metafórica: a transferência de domínios de significados.

A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos

linguísticos. Podemos dizer que ela é a regra, e não a exceção, quando

produzimos e compreendemos a linguagem humana. Um uso de linguagem

estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontramos em abundância

no discurso científico das áreas da natureza, como a física, a química e a

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biologia. Mesmo noutras áreas da ciência, como a economia, encontramos

fartos exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está

aquecido”, “Os preços estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na

taxa de juros” etc. Para os cidadãos comuns, em seu cotidiano linguístico, a

metáfora é muito mais do que uma mera figura de estilo: ela é um produtivo

recurso natural de pensamento e de linguagem.

Para concluir

Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo

fantástico e complexo mundo da linguagem humana. Aprendemos aqui

diversos conceitos importantes, como a diferença entre linguagem e língua, a

distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da aquisição da

linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos

da linguagem em ação. Nosso objetivo ao longo do capítulo foi apresentar a

você uma visão panorâmica dos principais temas e figuras do estudo científico

da linguagem que tem em conta a interação dinâmica entre sociedade e

cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus conhecimentos sobre

o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos ao longo das seções.

Nos próximos capítulos deste livro, você entrará em contato com

muitas outras facetas da linguagem humana. Com efeito, as línguas naturais

são um dos fenômenos mais complexos do mundo biocultural. Não é por outra

razão que seus fundamentos serão apresentados a você em diversos capítulos,

os quais selecionam, para o debate, diferentes dimensões do universo

linguístico humano. Desejamos a você boas leituras e bons estudos!

Referências bibliográficas

CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986. DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. PA: Pense, 2012. PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. SP: Martins Fontes, 2003.

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SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. SP: Cultrix, 1916 (ed. 2004). WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2‐Month‐Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal: Vol. 48, No. 3, 2011. pp. 321-330.