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1 Juventude e periferia em cena: dramas e dramatizações da vida urbana nos saraus literários da zona sul de São Paulo 1 . José Carlos Gomes da Silva (UNIFESP Campus Guarulhos) Apresento nesse momento reflexões sobre dados iniciais do projeto de pesquisa O Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens: lutas políticas, produções culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo (1978-2012), desenvolvido com apoio da FAPESP. Analiso especialmente situações dramáticas como violência e racismo enfrentadas pelos jovens do bairro Capão Redondo em décadas recentes. A partir da etnografia desenvolvida nos saraus literários, Cooperifa, Binho e Vila Fundão, busco compreender os dramas da vida urbana na perspectiva dos jovens. Nesses espaços do lazer elaboram-se reflexões e reações nativas sobre diferentes modalidades de segregação experimentadas na vida diária. A nossa hipótese é que os saraus mantêm filiações com o movimento hip hop, mas se diferenciam na diversidade de propostas artísticas. A reunião de diferentes práticas culturais, teatro, música, poesia, cinema, vídeo, nos saraus, mantêm, contudo, a continuidade de um elemento caro ao hip hop, isto é, a produção de uma arte engajada, que se manifesta nas esferas do discurso (valorização da poesia) da expressão corporal e denúncia. Palavras-Chave: segregação, ficção urbana, poesia, juventude. Os saraus literários apresentam-se como uma prática cultural juvenil em franca expansão nos bairros periféricos 2 paulistanos. A Cooperifa Cooperativa Cultural da Periferia, principal sarau da Zona Sul, iniciou suas atividades em 2002. As referências recentes de Sérgio Vaz, poeta, fundador e coordenador do sarau, aos 11 anos de existência do evento confirmam que os organizadores se orgulham da “longevidade” e legitimidade conquistadas por um experimento que tem atraído aficionados, artistas, estudantes, professores, mídia, acadêmicos. Atividades literárias esporádicas, produzidas por jovens na região, remontam à década anterior. Os depoimentos que 1 Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, Brasil. 2 Durante o período de pesquisa identificamos diferentes novas iniciativas de formação de novos saraus, na Zona Sul, o Sarau da Ademar, O Sarau Paraisópolis, Nosso Sarau.

literários da zona sul de São Paulo1 José Carlos Gomes da ... · a Fernandinho um jovem do próprio bairro que se inspirou nos poetas Binho, ... esta cifra a mais alta do ano e

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Juventude e periferia em cena: dramas e dramatizações da vida urbana nos saraus

literários da zona sul de São Paulo1.

José Carlos Gomes da Silva (UNIFESP – Campus Guarulhos)

Apresento nesse momento reflexões sobre dados iniciais do projeto de pesquisa O

Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens: lutas políticas, produções culturais e

segregação urbana na cidade de São Paulo (1978-2012), desenvolvido com apoio da

FAPESP. Analiso especialmente situações dramáticas como violência e racismo

enfrentadas pelos jovens do bairro Capão Redondo em décadas recentes. A partir da

etnografia desenvolvida nos saraus literários, Cooperifa, Binho e Vila Fundão, busco

compreender os dramas da vida urbana na perspectiva dos jovens. Nesses espaços do

lazer elaboram-se reflexões e reações nativas sobre diferentes modalidades de

segregação experimentadas na vida diária. A nossa hipótese é que os saraus mantêm

filiações com o movimento hip hop, mas se diferenciam na diversidade de propostas

artísticas. A reunião de diferentes práticas culturais, teatro, música, poesia, cinema,

vídeo, nos saraus, mantêm, contudo, a continuidade de um elemento caro ao hip hop,

isto é, a produção de uma arte engajada, que se manifesta nas esferas do discurso

(valorização da poesia) da expressão corporal e denúncia.

Palavras-Chave: segregação, ficção urbana, poesia, juventude.

Os saraus literários apresentam-se como uma prática cultural juvenil em franca

expansão nos bairros periféricos2 paulistanos. A Cooperifa – Cooperativa Cultural da

Periferia, principal sarau da Zona Sul, iniciou suas atividades em 2002. As referências

recentes de Sérgio Vaz, poeta, fundador e coordenador do sarau, aos 11 anos de

existência do evento confirmam que os organizadores se orgulham da “longevidade” e

legitimidade conquistadas por um experimento que tem atraído aficionados, artistas,

estudantes, professores, mídia, acadêmicos. Atividades literárias esporádicas,

produzidas por jovens na região, remontam à década anterior. Os depoimentos que

1 Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho

de 2012, em São Paulo, Brasil.

2 Durante o período de pesquisa identificamos diferentes novas iniciativas de formação de novos saraus,

na Zona Sul, o Sarau da Ademar, O Sarau Paraisópolis, Nosso Sarau.

2

obtivemos junto ao Binho, organizador de outro importante sarau, conhecido como

Sarau do Binho, indicam que por volta de 1995 grupos de jovens já se reuniam na

região limítrofe entre os bairros do Campo Limpo e Taboão da Serra para a realização

de encontros que tinham como objetivos ouvir música e declamar poesias. O primeiro

resultado concreto dessas reuniões foi o Postesia, poesia no poste3, movimento literário

que consistia em divulgar os poemas por meio da afixação em postes de luz. O Sarau da

Vila Fundão surgiu mais recentemente, mais precisamente em 2009. A iniciativa coube

a Fernandinho um jovem do próprio bairro que se inspirou nos poetas Binho, Sérgio

Vaz e Serginho Poeta, referências importantes quando se tratam de precursores.

A pesquisa que desenvolvemos visa compreender, por meio do método

etnográfico o significado dos saraus, apreender a organização interna, analisar o corpus

textual/oral e as performances, concentrando-se mais precisamente no estudo dos

poemas no contexto em que são recitados. Dirigimos a nossa atenção na pesquisa de

campo para a enunciação do discurso literário, para o desempenho não propriamente

para a estrutura do texto ou a decodificação das mensagens. A abordagem antropológica

que nos orienta tem como pressuposto uma concepção de cultura como essencialmente

pública. Acreditamos que somente compartilhando com os atores sociais de situações

públicas podemos apreender o sentido de uma prática cultural (GEERTZ, 1978).

Os poemas recitados, não necessariamente publicados, constituem a matéria

prima. O recorte se faz necessário, pois vigora nos saraus uma diversidade de práticas

culturais que incluem apresentações de músicos, danças, peças teatrais, vídeos, debates.

O segundo aspecto que nos parece central para a compreensão desses eventos é o

contexto urbano em que estes emergem. Admitimos como hipótese que as práticas

culturais que têm lugar nesses locais, não podem ser interpretadas de maneira isolada do

espaço mais imediato em que se inscrevem, ou mesmo da cidade. As transformações

urbanas verificadas recentemente em São Paulo não apenas estruturam práticas de

exclusão e segregação nos bairros da periferia, mas também são também motivo de

interpretação, reflexão e questionamentos.

3 Tive acesso ao exemplar de um livro que reunia parte desses poemas, pude, porém, apenas fotografa-lo

com o próprio Binho, pois se trata de raridade.

3

As produções culturais acolhidas nos saraus interpretam por meio da linguagem

simbólica, peculiar às artes, uma realidade social que se tornou dramática nas últimas

décadas nas localidades desassistidas pelos poderes públicos. A reconstrução, ainda que

sintética, desse novo contexto urbano nos parece fundamental para a compreensão do

fenômeno sarau e da nova modalidade de literatura juvenil. Sem a explicitação da nova

condição da vida urbana o evento-sarau4, o corpus literário e as performances poéticas

poderiam ser reduzidos a uma simples resposta de natureza sociológica relacionada com

a falta de lazer, uma das muitas carências identificadas desde longa data pelos

pesquisadores na periferia.

Segundo a nossa perspectiva, os saraus não se reduzem apenas a um ato de lazer.

Trata-se de um experimento literário em uma situação de lazer, mas que busca

promover a reflexão sobre as consequências da segregação urbana, e em determinados

momentos, transcender essa instância reflexiva, inspirando intervenções no sentido de

transformar a realidade. Como nos situamos em uma tradição de Antropologia Urbana

que nas décadas de 1970/80 se debruçou sobre os movimentos sociais reivindicativos,

promovidos por adultos nos bairros periféricos, fomos tentados inicialmente a

interpretar os novos fenômenos como expressão de realidade semelhante. A análise do

contexto urbano permitiu-nos, porém, repensar o tema, pois não estamos mais diante de

um fenômeno que exprime apenas uma carência cultural, mas que se estrutura enquanto

instância de questionamento mais amplo sobre o modo de construção da vida urbana.

Mais que isto, procura auto-representar-se, valorizando as construções nativas e

rejeitando as formas de representação dominantes que estigmatizam.

Os locais onde os saraus se encontram são de fato herdeiros de uma tradição de

movimentos sociais que, em um momento específico, procurou responder a um

conjunto de carências sociais produzidas por um modelo histórico de ordenação do

urbano que separou o centro e a periferia. Que foi capaz de dotar os bairros centrais de

importantes equipamentos de lazer, segurança, infraestrutura e recursos sociais,

enquanto reduziu os bairros populares ao estado de abandono. Carências importantes

ainda são identificadas em larga escala na periferia, mas, especialmente após a

4 Utilizo o termo sarau para me referir à instituição, no caso, o Sarau da Cooperifa, Sarau Vila Fundão e

Sarau do Binho. Emprego o termo evento-sarau de maneira mais restrita, para me referir apenas às

práticas culturais internas, ao conjunto de ações, discursos, práticas e performances em um tempo e

espaço limitados que têm lugar nessas instituições.

4

redemocratização do país uma realidade ainda mais traumática se impôs. A nova

modalidade de segregação socioespacial que passou a vigorar na cidade produziu uma

nova forma de exclusão. A violência do Estado que parecia atingir de forma seletiva, à

época do regime ditatorial, os militantes dos partidos de esquerda, passou a incluir de

forma indiscriminada as classes populares em décadas recentes. O imaginário difundido

sobre a escalada do crime violento foi tomado como justificativa para o

desenvolvimento de uma série de intervenções arbitrárias de controle sobre os cidadãos,

entre elas a conivência com as ações dos grupos de extermínio, prática de tortura em

presídios, execuções sumárias (CALDEIRA, 1991, 2000). É a esse caráter contraditório

entre democratização da sociedade e o desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão

que a autora classificou como disjuntivo.

Essas investigações mostram o caráter disjuntivo da democratização brasileira (...) e

mostram como os direitos civis são não apenas o aspecto mais deslegitimado da cidadania

brasileira, mas também a arena na qual a democracia é publicamente confrontada e

desacreditada (CALDEIRA, 2000, p. 157).

O resultado imediato desse amplo processo de deslegitimação da democracia foi a

transformação dos bairros populares em autênticas zonas de guerra. O ápice desse

fenômeno na Zona Sul de São Paulo se deu em meados dos anos 1990, quando então,

regiões como o Jardim Ângela e Capão Redondo, Jardim São Luis foram consideradas

pela ONU as mais violentas do mundo. De fato os indicadores eram alarmantes,

atingindo-se no Jardim Ângela. Mas a situação se tornava ainda mais preocupante

quando o fenômeno era desagregado por faixa etária, percebia-se nesse caso que os

jovens eram os alvos principais da morte violenta. Quando o recorte etnicorracial era

requerido, constatava-se que os negros eram as vítimas preferenciais (WEISENFIELD,

2004). Contribuíram nesse sentido não apenas a ação da polícia, mas especialmente dos

grupos paramilitares, conhecidos como “pés-de-pato” e os traficantes de drogas.

Os bairros do Jardim Ângela, Capão Redondo e Parque Santo Antonio receberam

à época a triste alcunha de “Triângulo da Morte”. Em 1999 a região apresentava uma

taxa de homicídio de 116,23 por 100 mil habitantes. A Fundação Seade considerou ser

esta cifra a mais alta do ano e uma das mais elevadas do mundo (SEADE, 2000). Após

uma série de denúncias e iniciativas da comunidade os índices da violência regrediram,

porém, ainda se situam em patamares elevados. O estudo de Fátima Lico (2009, p. 200)

realizado recentemente em duas regiões extremas da Zona Sul, respectivamente, Grajaú

5

e Jardim Ângela focalizando o grupo etário entre 10 e 19 anos constatou que o número

de mortes decorrentes de agressões e homicídios teve redução significativa, mas ainda é

elevado especialmente na região do Jardim Ângela, isto é, 44,6 por 100 mil habitantes

(LICO, 2009, p. 200).

Os jovens que fundaram os saraus literários viveram pessoalmente algumas dessas

experiências traumáticas, seja por tê-las sofrido diretamente no âmbito da família, seja

por testemunharem a morte de muitos amigos. Fernandinho, coordenador do Sarau Vila

Fundão, nos legou um registro impressionante desses momentos difíceis e os menciona

como motivação especial para a criação do sarau.

A minha vontade maior no sarau, foi que, como eu morei aqui uns 23 anos,

de 1977 a 1996, e a realidade aqui era muito dura, eu perdi mais ou menos uns

23 amigos, todos assassinados brutalmente. Perdi irmãos, perdi primos, e isso

meio que me intrigava. Aí me entregaram alguns livros para ler. E minha mente

começou a se abrir. Eu lia um livro e de repente eu estava em Cuba, eu lia um

livro e já estava na Venezuela, lia um livro e estava no Paquistão. Comecei então

a me interessar pela leitura, pela literatura e eu creio que a literatura de alguma

forma me salvou, me diferenciei dos amigos que entraram em outra vida... Acho

que é um pouco disso. (Fernandino – Sarau Vila Fundão)

Jovens que viveram essas experiências tornaram-se como eles mesmos dizem

“sobreviventes”. A maioria partiu para a elaboração experimentos que reforçaram a

pertença ao grupo de idade e que os afastava da violência. O movimento hip hop,

sustentado nas posses, gangues de break, grupos de rap, surgiu como a primeira forma

de ação juvenil contra o estado de violência que preferencialmente os atingia. Durante a

pesquisa desenvolvida no doutorado tivemos a oportunidade de aprofundar esse aspecto

(SILVA, 1998, 2011).

A principal liderança juvenil local, a traduzir o protesto dos jovens em forma de

arte, foi o rapper Mano Brown. Constatamos que o músico se mantém vinculado ao

Sarau Vila Fundão, embora não mais resida na COHAB Adventista. A identificação

com a periferia da Zona Sul e as diferentes situações em que jovens conhecidos e

amigos faleceram foram por ele expressas em forma de música. As palavras e os sons

do rap ainda ferem e cortam a realidade violenta, mas não matam. Isto faz muita

diferença para os jovens. Reencontramos Mano Brown durante uma Festa de Rua, em

18 de Março de 2012, organizada pela ONG Capão Cidadão. Nessa oportunidade

exprimiu o seu ponto de vista. A própria ONG Capão Cidadão que organizou a festa é

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produto da iniciativa de Paulo Magrão, outro jovem, que assumiu o combate à violência

em uma das regiões mais críticas da periferia da Zona Sul investindo em práticas

culturais.

Os saraus surgiram, portanto, enquanto expressão dos jovens que se encontravam

imersos em um contexto urbano violento. As ligações com o movimento hip hop não

podem, porém, ser mecanicamente estabelecidas, pois entre os poetas que atuam nos

saraus localizamos indivíduos que se situam em diferentes faixas etárias, crianças,

jovens, adultos e idosos, que desconhecem o hip hop, mas que compartilham das

apresentações de poemas nos eventos-sarau ao lado de muitos rappers.

A presença de grupos de rap, especialmente na Vila Fundão e na Cooperifa, é

constante. Os mais frequentes são o Versão Popular, NSN, Negredo, Cientistas MC’s, U

Clã. A principal característica do hip hop encontra-se também firmemente estabelecida

nos saraus, isto é, a valorização da localidade. Embora os poetas que frequentam o

evento-sarau apresentem grande mobilidade espacial, a maioria reside na Zona Sul.

Nesse universo localizamos um grupo diferenciado formado por pessoas da

“Comunidade da Fundão” e “Família Cooperifa”. Sempre que os poetas da localidade

são chamados para uma apresentação essa pertença à “comunidade” é destacada.

O bar: espaço físico-simbólico dos saraus

Os saraus do Binho, Cooperifa e Vila Fundão desenvolvem-se em dias específicos

da semana, respectivamente, na segunda, quarta e quinta-feira, nos espaços de bares. O

evento-sarau opera nesses locais uma importante reversão simbólica. Historicamente os

populares botecos encontravam-se associados a práticas de lazer, mas também

incorporavam sentidos negativos relacionados com a violência, brigas, repressão

policial. Estigmas que os definem como lugares frequentados por marginais,

desocupados e alcoólatras ainda são reproduzidos. Nos anos 1970 os trabalhadores que

frequentavam esses espaços faziam questão de portar a carteira de trabalho enquanto

estratégia para escapar das “batidas policiais” e prisões arbitrárias (MACHADO

7

SILVA, 1969). A pesquisa que realizamos durante o doutorado apontou para a

percepção aguda dos rappers sobre essa realidade. A música Mano na porta do bar

(Racionais MC’s) narra um conjunto de situações dramáticas experimentadas nos bares,

confirmando que estas ainda são relevantes na contemporaneidade. Os dados sobre

violência no Jardim Ângela no final dos anos 1990 indicaram, por exemplo, que 11%

dos homicídios na Zona Sul se verificavam nos bares (SILVA, 1998).

Os bares onde acontecem os saraus se transformam no dia do evento em um

território no operam-se importantes reversões simbólicas. De espaço estigmatizado, o

local se metamorfoseia em instância de lazer e cultura. Os bares onde os saraus da Vila

Fundão e Cooperifa acorrem acolhem outras atividades culturais ao longo da semana.

Apresentações de grupos de samba, acompanhadas de cerveja, caipirinha e feijoada,

reunião de jogadores de times de futebol locais. O conceito de território conforme o

sentido atribuído por Rolnik (1988), e Perlongher (1991) nos pareceu pertinente no

sentido de interpretar essa realidade. A forma como Magnani (1999) utiliza as

categorias mancha e pedaço também se inscreve nessa tradição do pensar o urbano a

partir de um lócus bem delimitado. Nesses casos, estamos sempre nos referindo às

fronteiras simbólicas instituídas pela cultura e não à dimensão física. As reflexões de

Guattari (1987) sobre território e reterritorialização se somam a esse debate, pois

permitem pensar a cultura enquanto instância de resignificação simbólica, porém, não

situada exclusivamente na mente das pessoas, mas em sua inscrição em um espaço que

é público, como também entendeu Geertz (1978) a partir de outro referencial teórico. A

noção de território assim concebida nos permite falar dimensão pública da cultura, de

sua territorialização e reterritorialização enquanto práxis, enquanto desempenho ou

performance.

Os estudiosos chamam, portanto, a atenção justamente para a dimensão simbólica

na redefinição dos espaços empíricos, para a transitividade e perenidade dos usos desses

pequenos territórios, manchas e pedaços do urbano, cuja vitalidade cultural é

circunstancial, embora se verifique em tempos e lugares precisos5. A presença dos

5 A nossa perspectiva é tributária dessa concepção de análise forjada nos estudos sobre a cidade e dos

recursos possibilitados pela etnografia. O estudo detalhado de grupos sociais em espaços bem delimitados

confere identidade à disciplina Antropologia Urbana. As estratégias metodológicas inaugurais foram

estabelecidas pelos pesquisadores reunidos em torno da Escola de Chicago (HANNERZ, 1980) e a Escola

de Manchester (FELDMAN-BIANCO, 2009).

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saraus inscreve no imaginário urbano usos e sentidos próprios, confere uma nova

significação ao espaço dos bares, legitima o seu uso de forma especial, momentânea e

fluida. O espaço urbano pode assim recortado enquanto lugar importante do fazer

antropológico. Porém estamos cientes que essa agregação de significados não é

produzida endogenamente, mas que se constitui de forma contrastiva e conflitiva,

referida aos processos macroestruturais à percepção da segregação urbana e ao

sentimento de pertença. A resignificação do bar, conforme identificamos na fala de

Fernandinho, sintetiza as nossas argumentações.

Eu sempre tive muita vontade de desenvolver um trabalho cultural na

quebra, do lado de cá da ponte, mesmo que fosse em outro lugar. Mas esse

lugar é muito peculiar porque eu construí grandes amizades aqui, como pessoal

que morreu ou tá preso, ou que continua aqui ainda morando e que também

interfere na realidade do sarau. Mas uma ideia que me despertou foi quando eu

li um livro do Binho e do Serginho e a sede não estava pronta ainda e nem tinha

o projeto da sede que agente tem aqui hoje. Funcionava num bar aqui embaixo,

que era uma portinha, um bar bem simples pequeno e uma vez eu deixei o livro

do Serginho e do Binho lá, junto com as 51 e as Velho Barreiro e aí, às vezes

quando eu chegava aqui tinha alguém lendo os livros deles aí eu falei (....), da

pra fazer alguma coisa aqui na comunidade. Se e existe interesse pela leitura dá

pra fazer alguma coisa. (Fernandinho, Coordenador do Sarau Vila Fundão).

A resignificação dos bares pelos saraus é um aspecto dos mais significativos,

porém, a pesquisa revela que a escolha destes locais não se efetiva de maneira aleatória,

pois coincide com a ocupação de espaços que dispõem de sentidos positivos

previamente atribuídos pela própria “comunidade” ou que fazem sentido para os jovens.

Especialmente nos territórios em que ocorrem os saraus da Cooperifa e Vila Fundão

identificamos uma forte associação com os times de futebol de várzea6, uma importante

tradição local que instaura sentimentos de pertencimento distintos daqueles que vigoram

nos outros “botecos”. Bandeiras, flâmulas e troféus estão permanentemente alocados

em posição de destaque, embora não sejam referências importantes para no evento-

6 A tríade futebol, samba e feijoada são relevantes, embora nem sempre esteja completa. Situação

semelhante foi por nós constatada durante o trabalho de campo no momento em que realizávamos o

registro do 6º Encontro Rap, em 25/03/2012. O evento aconteceu em um domingo, na Sedinha do Gato

Real, também espaço de reunião de um time de futebol. A Sedinha como é conhecida popularmente

abriga às sextas-feiras encontros de samba, classificados pelos jovens como “samba de raiz”, contando,

inclusive, com apresentações de músicos importantes como Almir Guineto. A presença do samba

tradicional nesses locais é um aspecto relevante, embora, não seja objeto da atual pesquisa.

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sarau. O bar do Zé Batidão onde se realiza o Sarau da Cooperifa abriga, por exemplo, o

time dos Leões da Piraporinha. Constatamos que o próprio Sérgio Vaz, organizador do

Sarau, atuou quando jovem, como jogador de futebol de várzea, tendo convivido,

inclusive com “boleiros” famosos. A experiência com as práticas culturais juvenis na

localidade, o conhecimento pessoal do estado de violência que vitimou inclusive alguns

desses colegas de futebol, confirmam que o experimento concreto nessas instâncias da

periferia integra o conjunto de saberes do poeta e orientam os seus posicionamentos

estéticos e políticos.

A identificação do espaço do bar com a localidade se coloca de forma

praticamente idêntica na “comunidade” Vila Fundão. O cenário do sarau é também

adornado por flâmulas e troféus, cores e bandeiras do time de futebol. O próprio Kanu,

parceiro do Fernandinho na organização do sarau é jogador do Vila Fundão. As cores

amarelo e preto estão presentes como símbolos importantes no recinto. Registramos

recentemente um encontro marcado por forte emoção entre Fernandinho e Rogério em

que ambos rememoraram criticamente as experiências de membros da torcida jovem do

time Santos F. C. O próprio Mano Brown que mantém vínculos importantes com a Vila

Fundão apresentou-se recentemente em 18 de março de 2012 na festa da ONG Capão

Cidadão vestido com a camisa do time de futebol da Vila Fundão. Acreditamos que os

referidos saraus se situam em territórios significativos para a “comunidade”.

Entendemos que tais iniciativas se nutrem, agregam e ampliam sentidos culturais

construíduos em espaços do urbano valorizados pela “comunidade”. Certamente

simbolizam esse novo momento em que viver na periferia deixou de ser identificado

com negatividade e se transformou em símbolo de pertencimento.

Os saraus da Cooperifa e Vila Fundão situam-se, portanto, em espaços que os

frequentadores classificam como “comunidade”. A Cooperifa realiza o sarau no bar do

Zé Batidão, localizado no Morro da Piraporinha, no Jardim Guarujá, bairro construído

nos anos 1970/80 por uma parcela significativa de migrantes. A construção das

moradias seguiu o padrão histórico analisado por Caldeira (2000), isto é, por meio de

financiamentos obtidos em casas de materiais de construção os proprietários edificaram

lentamente as residências, inicialmente construíram unidades pequenas que

posteriormente foram ampliadas, introduzindo-se melhorias. Constatamos situação

semelhante na Vila Funda, uma área de ocupação, classificada sociologicamente como

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favela. As ruas seguem o traçado sinuoso e, subitamente nos deparamos com locais sem

saída, becos e escadarias que acessam abruptamente regiões inacessíveis aos

automóveis.

O termo favela é utilizado de maneira polissemântica. Os frequentadores do sarau

rejeitam o termo quando se referem afetivamente à Vila Fundão. Nesse caso, a categoria

apropriada é “comunidade”. Apenas emprega-se o termo favela, ou assume-se a

identidade de favelado, quando se deseja politizar a exclusão social e a segregação

urbana, ou seja, a categoria é resgatada quando se pretende demarcar a identidade

política e explicitar a segregação urbana. A condição liminar em que se situa os dois

saraus fortalece os vínculos com a “comunidade”. Representantes dos movimentos

sociais locais por vezes participam dos eventos e a presença de poetas, grupos de break,

artistas locais, é sempre saudada afetivamente com o adágio “pessoas da comunidade”,

recebendo dos organizadores uma deferência especial, que os distingue dos demais.

As análises que desenvolvemos a partir da categoria território nos parecem

válidas para a Cooperifa e Vila Fundão. No caso do Sarau do Binho a interpretação não

se aplica totalmente. Provavelmente as mudanças verificadas ao longo da história, a

localização atual desse sarau, tenham quebrado o vínculo mais imediato com a

“comunidade”. O Sarau do Binho situa-se em um espaço limítrofe entre o Campo

Limpo e o município de Taboão da Serra e, embora, encontre-se nas proximidades de

um bairro autoconstruído, também se aproxima de uma universidade, a UNIBAN. Parte

do público que o frequenta é composta de estudantes dessa instituição. Os poetas mais

fiéis ao movimento cultural se fazem presentes nas sessões semanais, o que mantém o

Binho como uma referência importante, reconhecido como pai fundador, ocupando

status idêntico ao de Sérgio Vaz, Marcos Pezão e Serginho Poeta.

Abordaremos a partir desse momento o espaço interno dos saraus. Entendemos

que este é o lócus definidor de sua identidade. Nessa instância podemos compreender o

evento como uma produção cultural singular na periferia. A resignificação do lugar é

marcada por um ato simbólico de ruptura com um conjunto de práticas comuns a

qualquer bar, que se caracteriza pela reunião de pessoas em busca de lazer e

sociabilidade. Os momentos que antecedem o evento-sarau não apresentam situações

muito distintas, esta é a impressão geral quando se chega. Há, porém, um momento em

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que a passagem da condição de bar a evento-sarau se efetiva. A descrição desse instante

na Cooperifa nos parece esclarecedora, porque, mais que em qualquer outro sarau a

ruptura é enfatizada. Um conjunto de atos simbólicos, performáticos, frases, discursos

breves e a inevitável expressão o “silêncio é uma prece”, seguido do tradicional grito de

guerra “Uh! Cooperifa, Uh! Coopeifa, Uh! Cooperifa” e “povo lindo, povo inteligente”

indicam que adentramos à esfera do evento-sarau.

A partir desse momento instaura-se um estado de limiaridade em que a plateia,

organizador, poetas e músicos passam a compartilhar experiências incomuns. O

microespaço do bar experimenta então mudanças significativas. Há uma clara distinção

entre o “palco” em que os poetas se apresentam e a plateia que o ouve atentamente e

aplaude. A exigência do silêncio estabelece um contraste importante, mas

complementar, com os aplausos que se seguem. A paisagem sonora7 que se estabelece

será, a partir desse momento, garantida ao longo da sessão. Os esforços de Sérgio Vaz

têm sido enorme no sentido de ordenar esse ambiente sonoro. Quando a Cooperifa

outrora abrigava um número pequeno de pessoas na plateia e havia uma reduzida

presença de poetas, esse equilíbrio parecia mais tranquilo. Atualmente a quantidade de

apresentações se ampliou significativamente e o público interno e externo cresceu na

mesma proporção, introduzindo burburinhos e ruídos que precisam ser controlados.

A ação de Sérgio Vaz é também nas outras dinâmicas do sarau, na administração

do fluxo interno de pessoas e mensagens, acomodação dos frequentadores, apresentação

de poetas, concessão de entrevistas e até mesmo no controle do burburinho externo. O

espaço externo, situado na rua e praça é normalmente ocupado por jovens poetas,

músicos e frequentadores que estabelecem outros níveis de interação. Conversam

animadamente, paqueram, consomem substancias lícitas e ilícitas. O local, embora,

complementar ao sarau, distingue-se dos espaços mais específico em que o estado de

7 Empregamos o conceito de paisagem sonora conforme as definições de Schafer (2001). O autor nos

permite situar o estudo da música em um universo mais amplo que o definido pela tradição ocidental.

Com o conceito de paisagem sonora o autor introduz um instrumento conceitual que possibilita recortar

descontinuidades sonoras em ambientes (soundscape) específicos, não estritamente musicais. As

metrópoles contemporâneas nos colocam, por exemplo, em face de províncias sonoras como o rush

cotidiano, fábricas, escolas, universidades, hospitais, shoppings centers. Todos esses ambientes nos

introduzem a cada todo momento em experimentos auditivos específicos.

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liminaridade8 e as performances se instalam. Eventualmente Sérgio Vaz indica a rua e

a praça para aqueles que desejam manter uma conversa animada com os pares, pois no

espaço interno “o silêncio é uma prece”, é sagrado.

A situação interna se coloca de forma especial na Vila Fundão. Fernandinho lida

com uma situação menos heterogênea e uma menor presença de público. Enquanto a

Cooperifa recebe um número expressivo de adultos, os jovens formam o grupo quase

exclusivo na Vila Fundão. As atividades de Mestre de Cerimônia, contudo, não diferem.

A recepção aos frequentes por Fernandinho é sempre calorosa. A preocupação em

aproximar-se com os movimentos sociais e a comunidade externa é sensível nos seus

discursos e atitudes. A intervenção política é a marca distintiva do sarau. A acolhida ao

movimento Mães de Maio e ao MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a

realização de eventos-sarau nos locais em que à luta pela moradia está em pauta,

confirmam a opção. O “Sarau da Fundão” difere nesse quesito das ações empreendidas

pela Cooperifa e Binho, cujas incursões envolvem prioritariamente escolas públicas da

região.

A relação com a arte no evento-sarau é de natureza envolvente, corpórea, gestual,

afetiva. Trata-se da mesma característica que Shusterman (1998) obsevou em relação ao

hip hop. De fato não se fica indiferente. As pessoas são provocadas a refletir, a sonhar,

aplaudir, interagir, emocionar, indignar-se. O momento em que um poema é recitado é

de atenção na plateia, que logo explode em palmas quando finda a apresentação. As

temáticas invariavelmente referem-se a temas conhecidos, familiares à vida cotidiana. A

questão posta inicialmente pela pesquisa dizia respeito exatamente ao sentido em se

ouvir narrativas sobre temas tão próximos, elaborados por pessoas igualmente

próximas.

Os argumentos apresentados por Terry Eagleton (2006) foram esclarecedores.

Segundo o autor a literatura opera por meio de uma linguagem radicalmente distinta do

falar cotidiano. A narrativa literária caracteriza-se pela ruptura que estabelece com

8 A categoria liminaridade é empregada no sentido proposto por Victor Turner (1974, 2008) na

compreensão do processo ritual. O termo integra a concepção tripartite de ritual, agregação -

liminaridade – reagregação. A liminaridade corresponde ao estado ritualístico em que se vivencia uma

experiência radical, normalmente de caráter religioso, mas sempre de natureza extraordinária em que as

regras da vida cotidiana são momentaneamente suspensas. A nossa intenção ao recorrer a essa categoria é

destacar o momento extraordinário e transitório propiciado pelo sarau.

13

linguagem ordinária e, mediante tal recurso, promove-se igualmente a ruptura com o

mundo ordinário e uma ordem distanciada de sentido se instaura. A poesia, interpretada

nessa mesma perspectiva, contribui decisivamente para a instauração do estado de

liminaridade que caracteriza o evento-sarau. O distanciamento propiciado pelo ato

literário assegura a reflexão, provoca o estranhamento, rompe com a rotinização e

estabelece um espaço de alteridade que permite a crítica e compreensão da realidade

social. Esse experimento é propiciado pelo recitar dos poemas. Em média, na Cooperifa,

registramos em média 30 poemas por sessão.

O poema tem nessa instância o poder de produzir estranhamentos e sentidos

instantâneos. O fato de a poesia operar, de acordo com Louis Dumont no campo da

multidimensionalidade proporciona o estado de sinergia. O sentido que o poema

imprime ao real, que é de natureza afetiva, difere daquele produzido pelo saber

científico, marcado pelo concatenar racional do discurso, mas, assim como o mito a

poesia não pode ser menosprezada9. O sentido do poema é estabelecido no instante em

que é dito. Por isso o contexto em que é recitado é fundamental. A poesia aproxima-se

nesse quesito da execução musical, cuja análise no ato do desempenho, exprime

sentidos que não podem ser apreendidos pelo exame da partitura, do texto (SEEGER,

1977; OLIVEIRA PINTO, 2001). De qualquer forma uma ordenação do corpus poético

se mostrou necessária ao entendimento de temas fundamentais.

O corpus poético

A poesia desenvolvida nas instâncias dos saraus talvez possa ser mais bem

definida pelas expressões acadêmicas ghetto fiction, contraliteratura, literatura

marginalizada. Os aficionados, poetas, escritores, músicos, empregam a categoria

“literatura marginal” (NASCIMENTO, 2009). O termo difundido pelo escritor Férrez

pretende incorporar o sentido político desejado, isto é, a ambiguidade do ato

9 É reconhecida a hostilidade de Goethe, em nome do sentido humano da vida e das totalidades vivas,

contra a ciência mecanicista e atomizante de seu tempo. Lévi-Strauss secundou-o, em suma, na defesa

das qualidades sensíveis e esse fato sublinha a continuidade com as culturas não-modernas dessa corrente

protestatória, submersa, sem dúvida, mas muito longe de menosprezável (Dumont, 1985, p.223).

14

contradiscursivo, a postura beligerante, o enfrentamento do poder destrutivo das armas

por meio do poder das palavras, o ato infracional em relação à norma culta como a

contestação à ordem, a elaboração de um discurso que não se submete à normatização, a

valorização de um léxico peculiar às ruas em oposição aos saberes escolares.

O estudo etnográfico permitiu-nos identificar e classificar um conjunto

heterogêneo de poemas apresentados semanalmente nos saraus. A categorização desse

corpus foi produto de um período de um ano de gravação e observação realizado no

sarau da Cooperifa e Vila Fundão, e em menor proporção no Sarau do Binho. As

categorias éticas e êmicas que durante certo período desfrutaram de prestígio na

Antropologia foram por nós acionadas (GEERTZ, 1978). Ao categorizar o corpus

poético nos situamos no campo das categorias éticas, ou seja, aquelas construídas

estrategicamente pelo pesquisador. Embora o antropólogo normalmente relute em

utilizá-las, do ponto de vista da pesquisa, essa alternativa se revelou importante para a

elaboração de um recorte de fato arbitrário, mas necessário à análise. As categorias

êmicas, nativas, permitiram a análise “desde dentro” desenvolvida ao longo do texto.

A categorização do corpus poético se impôs porque o estudo etnográfico se

revelou de grande complexidade, especialmente, quanto à definição precisa dos objetos

de investigação. Há nesses espaços dos saraus uma profusão de manifestações artísticas

enriqueceras do evento, mas, esse caráter multifolheado dificulta a análise. Em um

mesmo evento podemos nos deparar com atos dramatúrgicos, danças, apresentação de

grupos de rap, breakers e naturalmente muitos poetas, escritores, militantes dos

movimentos sociais. O presente estudo se fixa nos poemas, estratégia fundamental para

identificação de um nível seguro para a pesquisa. Após um ano de registros e

observações semanais optamos pela classificação dos poemas o que permitiu-nos uma

organização interna dos textos orais, em sua maioria, e escritos. A gravação do evento

na íntegra permitiu-nos a construção de um arquivo expressivo de poemas

textualizados. Porém nesse momento apresentamos apenas a taxonomia preliminar dos

textos, pois, o objetivo principal nesse momento não é a análise do conteúdo, mas

compreender o significado da poesia no contexto. A análise do conjunto dos poemas

conduziria o estudo para muito além dos limites do artigo.

Taxonomia dos poemas.

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1- Afetivos

2- Pertencimento e Localidade

3- Existenciais

4- Humorístico/Satíricos

5- Antissegregacionistas

6- Antirracistas

7- Absurdo

Os poemas classificados como afetivos focalizam experimentos de natureza

pessoal, subjetiva. Os prazeres e as dores, alegrias e tristezas, presentes nos

relacionamentos amorosos geralmente dominam a narrativa, mas podem ser também

dedicados a um jovem importante para a “comunidade” que morreu precocemente.

Nesses casos, os poetas prestam-lhe um tributo, uma homenagem, como, por exemplo,

ao rapper Sabotage.

Pertencimento e Localidade. Inserimos nessa categoria poemas que exaltam o

sentimento de pertença à periferia, à “comunidade”, à localidade, à turma de amigos.

Podemos também classificá-los como socioafetivos. As composições em geral

valorizam os espaços e pessoas situados “do lado de cá” das pontes do Socorro, João

Dias, Transamérica. Incluímos nesse campo a maioria dos poetas “cooperiféricos”

liderados, obviamente, por Sérgio Vaz.

Existenciais. Classificamos nesse universo poesias que versam sobre um conjunto

amplo de indagações menos palpáveis, mas que põem em questão o sentido da vida e

que não raro aludem ao sagrado. A Dona Edith da Cooperifa é certamente a principal

expoente dessa temática.

Os poemas humorístico/satíricos recuperam uma dimensão da vida cotidiana que

se situa entre os atos de transgressão, crítica e riso. Situações embora sérias que podem

sugerir embaraços. A música É Gato do Chapinha, sambista, poeta e compositor da

região é um exemplo dessa postura. Os poetas de cordel, que por vezes se apresentam

nos saraus, também exploram esse aspecto por meio do duplo sentido das palavras. A

música Brasil com P (GOG) que na voz do autor possui caráter dramático é

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reinterpretada por Luan de maneira satírica e irreverente. A performance alternativa

alcança, porém, o mesmo objetivo que é a crítica social.

Antissegregacionistas. Caracterizam-se por uma intenção de fixar o protesto.

Incluímos nessa categoria um conjunto bastante amplo de poemas que apontam para as

carências sociais enfrentadas na periferia. A denúncia sobre a violência policial, os

efeitos devastadores das drogas, as perdas de amigos, exprimem a indignação contra a

nova modalidade de segregação socioespacial que transformou a periferia em um

“campo minado” ou “zona de guerra”.

Antirracistas. Os poemas antirracistas têm presença constante nos saraus.

Também têm como característica o protesto. Constatamos que especialmente os jovens

filiados ao movimento hip hop ou que nele tiveram origem desenvolvem essa temática.

A forma do poema e as performances são inspiradas no rap, muitos dos expoentes são

rappers que no evento-sarau declamam músicas sem o suporte das bases sonoras. O

grupo de poetas que incluímos nesse campo é significativo, por exemplo, Akins-Kinté,

Elisandra, Luan, Kênia. São poetas negros que possuem afinidades políticas que

inclusive transcendem os saraus. O recurso à telescopia histórica conforme observou

Béthune (2003) é frequentemente utilizada. As referências às lutas e resistências dos

negros no passado são recuperadas e atualizadas no sentido de questionar o racismo na

contemporaneidade.

Absurdo. Os poemas que inserimos nessa categoria abordam temas que são, em

geral, considerados tabus. Focalizam situações muito diversas, que contrariam a conduta

normativa, a etiqueta, o bom comportamento, os atos cerimoniais. Localizamos um

conjunto reduzido de poetas filiados a essa tendência.

Performance poética e significados políticos

O evento-sarau é dominado pelo ato de recitar poemas. Especialmente na

Cooperifa essa atividade é preponderante. O sarau da Vila Fundão diferencia-se da

Cooperifa nesse quesito, pois embora os poetas tenham participação efetiva, abrem-se

possibilidades para outras modalidades de práticas artísticas. As atividades peculiares ao

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movimento hip hop, envolvendo o rap, grafite e break, além de atuações dos DJs,

apresentação de grupos teatrais, participação de militantes ligados aos diferentes

movimentos sociais, como Mães de Maio, MTST, ações pontuais em situações de

conflito, paralisação da Estrada M’Boi Mirim, por melhoria dos transportes coletivos,

integram a agenda da Fundão. Porém, mesmo com esse conjunto de atividades, em

nenhuma sessão os poetas se ausentaram, ao menos cinco apresentações aconteceram,

confirmando, assim a centralidade da poesia.

A prática poética, embora diretamente associada ao texto oral ou escrito requer

análise especial, pois trata-se de um experimento marcado não apenas pela verbalização,

há um conjunto de elementos outros que acompanham o recitar de um poema, nos

referimos aos gestos, entonações, expressões faciais, interações com o público. A

Antropologia fez o registro desses aspectos não verbais em diferentes momentos, em

especial ao ocupar-se dos estudos do mito, ritual, cerimoniais e música (GEERTZ,

1991; GLUCKMAN, 2009; MITCHELL, 2009; TURNER,1974, 2008; MAUSS, 1974).

Contemporaneamente esse conjunto de fenômenos dramatúrgicos, verbais, não verbais,

performáticos, vem sendo estudado por diferentes subáreas do conhecimento,

Etnomusicologia, Etnocenologia, Antropologia da Performance. Emprestamos desse

campo de discussões a definição de performance pois o conceito se revelou importante

para a compreensão do evento-sarau, embora, o estudo em tela não se filie estritamente

às áreas do saber mencionadas.

A performance é um modo de comunicação e de ação, distinto da ação “normal” ou

“cotidiana”, caracterizando-se por certos tipos de comportamentos e diversos registros de

engenhosidade. Ela ocorre com mais frequência, mas não exclusivamente nos acontecimentos

programados e limitados em tempo ou espaço. Esses acontecimentos podem ser estruturados,

ordenados, programados e são reconhecidos por um ajuntamento organizado de espectadores e

atores em uma ocasião extraordinária que distingue a vida cotidiana e induz às modificações de

comportamento em cada participante (PEARSON, 1998, p. 157).

As noções do espetacular, do ato corpóreo e gestual como uma dimensão central

da performance e a concepção de que esse conjunto instaura uma ruptura com a vida

ordinária, são importantes para a compreensão da eficácia poética no contexto dos

saraus. Porém existe mais um elemento fundamental a ser destacado, que nos parece

decisivo, trata-se da compreensão da performance enquanto um “conjunto de contratos

entre dois gêneros de participantes – aqueles que vêm (os espectadores) e aqueles que

são vistos (os atores)”. Três ordens de relações decorrem dessa situação básica, “a

interação ator e ator, ator e espectador, espectador e espectador” (PEARSON, 1998, p.

18

158). No caso específico dos saraus a relação principal verifica-se entre o poeta e os

espectadores. Certamente alguns poemas somente são recitados mediante a participação

do público.

A complementaridade é exigida muitas vezes pelo próprio poeta, seja mediante o

acompanhamento através de palmas, seja por meio da repetição de um trecho ou refrão.

A expressão poética encontra-se nesse nível muito próxima da oralidade. Somos

inevitavelmente conduzidos a refletir sobre os nexos entre essa modalidade do fazer

artístico e a matriz cultural africana, pois a oralidade se apresenta neste âmbito como

um aspecto central, tanto no processo da construção literária quanto musical. O acesso

limitado das classes populares à escola também reforçam a continuidade de práticas

literárias peculiares à oralidade.

O etnomusicólogo Kazadi wa Mukuna (1985) chamou-nos a atenção para o

aspecto da complementaridade como base do canto na música africana, referindo-se à

estrutura solista/coro. Verificamos que especialmente os jovens que se filiam ao hip hop

recorrem frequentemente aos recursos da complementaridade. Nesse caso, as palmas e

repetições de partes do poema pelos espectadores são requisitadas. A oralidade no

evento-sarau tem precedência sobre o texto escrito, pois o poema é apresentado muito

raramente por meio da leitura, a regra básica é a expressão verbal.

A relação contratual entre os poetas e os espectadores é ainda chave para a

compreensão do evento-sarau como um todo. O poema somente pode ser recitado em

um ambiente especial. Necessário se faz construir uma paisagem sonora, isto é, um

momento em que silêncio e som possam se alternar. Os organizadores dos saraus têm

investido, inclusive, na amplificação do som mediante o uso de microfones e caixas

amplificadas, mas mesmo assim, as dificuldades se colocam. A conhecida frase de

Sérgio Vaz, “o silêncio é uma prece”, tem por finalidade fazer valer o contrato

fundamental que estrutura o evento.

A produção do ambiente sonoro é fundamental para que a performance poética se

efetive e ao fazê-lo instaure o estado de liminaridade que permite a passagem do mundo

ordinário, cotidiano, para o extraordinário, o mundo das palavras, gestos, sons,

entonações, reflexões propiciados pelos poetas. A quebra da rotina envolve a construção

de uma ordem simbólica diferenciada, mas referida à periferia. As imagens conhecidas

19

pela maioria são apresentadas em linguagem artística. Os rappers falam muito

apropriadamente do “poder da rima”. De fato, esse aspecto sensível, que é o emprego

eficaz do falar cotidiano e do léxico conhecido em uma situação estruturada e especial,

instaura o estranhamento e a reflexão crítica sobre a realidade em que se encontram

imersos.

A prática poética inscreve, portanto, uma experiência de natureza dramatúrgica.

Nesse caso, textos orais e performances se somam no sentido de traduzir a realidade. As

situações dramáticas da vida cotidiana, violência, racismo, segregação socioespacial,

são representadas por meio de uma linguagem simbólica que combina recursos próprios

da narrativa oral, expressão corporal, gestualidade, silêncios e sons. A experiência

dramatúrgica proposta pelos saraus reedita o efeito catarse associado frequentemente

com o teatro. Conforme obsevou Thomas Gregor (1982) no estudo sobre os Mehinaku,

o risco que corremos, porém, ao empregarmos a metáfora dramatúrgica como recurso

para a compreensão do social é perder de vista o fato de que a realidade que ordenamos

metaforicamente como drama é de fato “prá valer”.

O evento-sarau possui de fato muitos nexos com os atos dramatúrgicos, mas a

realidade que os poetas desejam exprimir não se reduz à dimensão estética, artística,

porque se realiza enquanto experimento de natureza política. Os parâmetros do fazer

literário não estão em consonância com a norma cultura, nem precisam, trata-se de

“literatura marginal”, gênero semelhante ao que os críticos norte-americanos estão

classificando como ghetto fiction, urban fiction, hip hop fiction, gangsta fiction, isto é,

autopublicações de escritores jovens que versam sobre temas peculiares aos espaços

segregados, drogas, violência, prostituição, racismo, experiências de encarceramento.

Apesar da heterogeneidade vigente nos saraus, dos diferentes estilos e grupos de

idade, o corpus literário juvenil dedicado à ficção urbana é destacado. Nesse grupo um

segundo recorte ainda é possível, trata-se dos escritores negros. A “literatura marginal”

se constitui como uma modalidade de literatura urbana juvenil produzida em áreas

segregadas, mas também guarda semelhanças com os gêneros que Zilá Bernd (1987)

classificou como contraliteratura e literatura negra, porque contraria pactos e

protocolos oficiais, conforme intuiu (LAJOLO, 1996) sobre Carolina Maria de Jesus,

pois o sentido genérico dessas produções é inscrever as falas dos excluídos.

20

Os saraus se apresentam como locais em que se encontra em franco

desenvolvimento uma nova modalidade de ficção urbana. Os conteúdos versam sobre os

efeitos devastadores da segregação socioespacial, violência policial, racismo, exclusão

social. A presença marcante do segmento juvenil nesses espaços, a aproximação com o

movimento do hip hop na perspectiva literária (SILVA, 2011.) têm possibilitado o

surgimento de um conjunto de poetas que desfruta de legitimidade no segmento

autoclassificado como “literatura marginal”. A maneira como essa produção vem se

constituindo, isto é, de maneira autônoma em face ao poder público, ao mercado de

livros dominante, permite, de fato, inscrevê-la no conjunto mais amplo das vozes

marginalizadas (LIENHARDT, 1989), porém, existe algo que a tipifica, em que se

revela a singularidade, isto é, o fato de ser expressão da juventude da periferia. Não sem

motivo, o grupo mais diretamente atingido pelos efeitos devastadores da nova

segregação urbana vigente na cidade de São Paulo.

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