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LITERATURA AFRO-BRASILEIRA COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NEGRAS Jean Carlos Barbosa dos Santos 1 - [email protected] Jones Cesar da Paixão 2 - [email protected] Palavras-Chave: Literatura afro-brasileira; Identidades; Questão étnico-racial. Resumo:O objetivo deste trabalho é refletir sobre a literatura afro-brasileira como elemento de construção de identidades negras, a partir da aplicação de oficinas de leituras em uma turma de Educação de Jovens e Adultos, com a faixa etária de 15 a 24 anos. Essas oficinas foram aplicadas em uma escola municipal camponesa, localizada no município de Feira de Santana - BA, e teve como intento identificar e problematizar as questões étnico-raciais, assim, desmistificando imagens e discursos estereotípicos que foram pedagogicamente construídas e introjetadas no imaginário coletivo. Para tanto, elegemos as obras de duas intelectuais negras, por entender que o lugar de fala é importante e interfere no discurso e representatividade do sujeito, como: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus e a narrativa Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Para socializar os debates, realizamos uma roda de diálogos e os registros destas experiências foram analisadas a luz de intelectuais que problematizam sobre essas questões como, Frantz Fanon (2008), Cortazzo (2011), Conceição Evaristo (2008), Stuart Hall (2003), dentre outros. Após aplicação desta proposta, constatamos que há uma carência dessas discussões na sala de aula, e a literatura afro-brasileira pode ser uma ferramenta eficaz para promover este debate. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A problematização sobre as relações étnico-raciais no Brasil é apresentada por uma diversidade de termos e conceitos, por exemplo: raça, racismo, escravização, identidades, movimentos negros, etnia, preconceito racial, democracia racial, discriminação racial, ação afirmativa, dentre outros. As discussões desses termos podem ser observadas no cotidiano escolar, tanto pelos docentes quanto pelos discentes. Mas, há momentos que geram inúmeras dúvidas, perpassando pelas diversas modalidades de ensino. Entretanto, quando nos referimos a Educação de Jovens e Adultos EJA, essa situação é ainda mais acentuada. Diante disso, propomos, neste trabalho, apresentar uma ação pedagógica aplicada em uma turma da EJA, do ensino Fundamental II, com a faixa etária entre 15 24 anos. O intuito foi desmistificar visões 1 Pedagogo (UFFS). Especializando em Estudos Étnico-Raciais (IFBA), Mestrando em Educação de Jovens e Adultos (UNEB). Professor da Rede Municipal de Feira de Santana-Ba. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE/BAHIA), E-mail: [email protected] 2 Pedagogo (UNEB). Especialista em Estudos Étnico-Raciais (IFBA), Mestrando em Educação de Jovens e Adultos (MPEJA) da Universidade do Estado da Bahia UNEB. Professor da Rede Municipal de Presidente Tancredo Neves. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE/BAHIA), E-mail: [email protected]

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LITERATURA AFRO-BRASILEIRA COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NEGRAS

Jean Carlos Barbosa dos Santos1 - [email protected] Jones Cesar da Paixão2 - [email protected]

Palavras-Chave: Literatura afro-brasileira; Identidades; Questão étnico-racial. Resumo:O objetivo deste trabalho é refletir sobre a literatura afro-brasileira como elemento de construção de identidades negras, a partir da aplicação de oficinas de leituras em uma turma de Educação de Jovens e Adultos, com a faixa etária de 15 a 24 anos. Essas oficinas foram aplicadas em uma escola municipal camponesa, localizada no município de Feira de Santana - BA, e teve como intento identificar e problematizar as questões étnico-raciais, assim, desmistificando imagens e discursos estereotípicos que foram pedagogicamente construídas e introjetadas no imaginário coletivo. Para tanto, elegemos as obras de duas intelectuais negras, por entender que o lugar de fala é importante e interfere no discurso e representatividade do sujeito, como: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus e a narrativa Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Para socializar os debates, realizamos uma roda de diálogos e os registros destas experiências foram analisadas a luz de intelectuais que problematizam sobre essas questões como, Frantz Fanon (2008), Cortazzo (2011), Conceição Evaristo (2008), Stuart Hall (2003), dentre outros. Após aplicação desta proposta, constatamos que há uma carência dessas discussões na sala de aula, e a literatura afro-brasileira pode ser uma ferramenta eficaz para promover este debate.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A problematização sobre as relações étnico-raciais no Brasil é apresentada por uma diversidade de termos e conceitos, por exemplo: raça, racismo, escravização, identidades, movimentos negros, etnia, preconceito racial, democracia racial, discriminação racial, ação afirmativa, dentre outros. As discussões desses termos podem ser observadas no cotidiano escolar, tanto pelos docentes quanto pelos discentes. Mas, há momentos que geram inúmeras dúvidas, perpassando pelas diversas modalidades de ensino. Entretanto, quando nos referimos a Educação de Jovens e Adultos – EJA, essa situação é ainda mais acentuada. Diante disso, propomos, neste trabalho, apresentar uma ação pedagógica aplicada em uma turma da EJA, do ensino Fundamental II, com a faixa etária entre 15 – 24 anos. O intuito foi desmistificar visões

1 Pedagogo (UFFS). Especializando em Estudos Étnico-Raciais (IFBA), Mestrando em Educação de Jovens e Adultos (UNEB). Professor da Rede Municipal de Feira de Santana-Ba. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE/BAHIA), E-mail: [email protected] 2 Pedagogo (UNEB). Especialista em Estudos Étnico-Raciais (IFBA), Mestrando em Educação de Jovens e Adultos (MPEJA) da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor da Rede Municipal de Presidente Tancredo Neves. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE/BAHIA), E-mail: [email protected]

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historicamente construídas a respeito da população negra, em uma perceptiva de valorização das identidades étnico-raciais, a partir das suas experiências vivenciadas e socializadas durante a aplicação da sequência didática.

Para tanto, foram realizadas onze oficinas e uma roda de diálogos, totalizando doze encontros. Todas as oficinas tiveram a mesma estrutura, a saber: atividade disparadora; diálogo aberto para socialização; leitura de textos, seguindo de socialização e discussão. Na roda de diálogos, tivemos a seguinte estrutura: atividade disparadora com um vídeo; leitura de um texto; e por fim a aplicação de um questionário para coleta de informações e percepções. Todo o trabalho, aqui desenvolvido, foi baseado na sequência didática intitulada Pretinha, eu? E daí?, apresentada nos anexos da dissertação: Literatura afrobrasileira e identidade: proposta de Sequência Didática para o Ensino Fundamental II, desenvolvida na USP – Universidade de São Paulo, por Anailda de Fátima Piva dos Santos. (SANTOS, 2014. p. 151)

Como chave para o desenvolvimento das oficinas foi necessário elucidar conceitos e categorias teóricas de autores que deram embasamento para o encaminhamento deste trabalho. No que concerne a Sequência didática, recorreremos aos construtos teóricos de Nery (2009) e Zabala (1998), que prioriza a realidade, o cotidiano do aluno como ponto de partida para construção de novos conhecimentos e valorização das identidades. Sobre literatura afro-brasileira nos pautamos nos estudos de Evaristo (2011), Santiago (2012), Cortazzo (2011) e Fanon (2008) autores que se propõe ao estudo da linguagem, do texto literário de suas implicações sociais no âmbito das discussões étnico-raciais.

Ao se propor enveredar pelos caminhos da pesquisa, faz-se necessário evidenciar os fios metodológicos, que orientaram o nosso olhar, bem como os caminhos epistemológicos que sustentaram nosso percurso. Quanto aos procedimentos metodológicos é preciso ter muito bem definido, o que é o processo de fazer pesquisa e o porquê de se fazer pesquisa. Levando em consideração que o nosso foco de estudo são os processos vivenciados pelos sujeitos e, seus modos de produção de conhecimento a partir do fenômeno educativo.

Sugerimos ler esta pesquisa como de natureza aplicada, conforme aponta Silveira & Córdova (2009. p.31). Para estes autores, a natureza desta pesquisa objetiva gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à possíveis soluções de problemas específicos. E enquanto as abordagens de investigação optamos pela pesquisa qualitativa por se pautar na busca da interpretação e compreensão da realidade, ao estudar os fenômenos humanos como ponto de partida (SARMENTO 2009. p. 142). Para tanto, utilizamos como instrumentos metodológicos de coleta de informações a observação durante as oficinas, à aplicação dos questionários e a roda de diálogo.

Dessa maneira, este texto está organizado da seguinte maneira: na primeira parte, apresentamos a introdução, que expõe os caminhos metodológicos e teóricos da proposta. Logo em seguida, refletimos sobre a noção de Literatura afro-brasileira e

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termos que permeiam os debates das discussões raciais, e como estes se entrelaçam dentro de um planejamento pedagógico, de uma classe de Educação de Jovens e Adultos. O terceiro momento, relatamos as experiências vivenciadas pelos alunos da EJA, do Ensino Fundamental II, durante a aplicação das oficinas. E, por fim os resultados.

RAÇA E ETNIA: DEBATENDO CONCEITOS

Historicamente, o termo raça está imbricado com as relações sociais e de poder.

Assim, a noção de raça se constitui em uma perspectiva de classificação, como raça inferior ou superior. Tomando por base os estudos biológicos, onde cientistas, como é o caso do baiano Nina Rodrigues buscava evidencias para justificar a inferioridade dos negros, defendendo teses científicas que anos mais tarde foi constatado que não se sustentava. Os estudos científicos nesse período estavam a serviço de uma elite que buscava dominar os negros para que ficassem subserviente aos seus caprichos.

Etimologicamente o conceito de raça, na perspectiva de Munanga (2006), veio do italiano razza, que origina-se do latim ratio e significa sorte, categoria, espécie. O termo foi utilizado, primeiramente nas ciências naturais, na Idade Média, onde passou a designar ascendência comum e linhagem. Para o autor, diante de leituras e interpretações sobre raça e racismo, é possível concluir que mais do que um conceito, o racismo é uma ideologia, que divide e separa os seres humanos.

Assim, Ianni (2004), dialoga com as ideias de Munanga (2006), ao reiterar que a maneira de classificação e hierarquização dos sujeitos, a partir do conceito de raça, demonstra uma técnica política, objetivando assegurar a estrutura sistêmica na qual se fundam as estruturas de poder. Este pensamento está em consonância com as proposta por Schwarcz (1983, p. 23-24), que evidencia: “[...] interessa compreender como argumento racial foi política e historicamente construído [...], o conceito raça, que além de sua definição biológica acabou recebendo uma interpretação, sobretudo social”.

Problematizando também sobre essa questão Guimarães (1999, p.11) evidencia, que “Raça é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário de um conceito que denota tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais”.

A fundamentação biológica acerca do conceito de raça, defendida entre os cientistas no século XIX, dentre eles, Nina Rodrigues, do ponto de vista biológico não se sustenta para pensar as diferenças. Todavia, existe uma classificação entre os seres humanos pertencentes às raças, o que se torna profícua para entendermos como o conceito de raça e de racismo funcionam no seio social.

O termo raça, como categoria social, é decorrente de um signo distintivo. Assim, um negro, um japonês, um indígena ou qualquer outro grupo diferencia dos demais, por apresentarem determinadas características físicas distintas. Logo, esses indivíduos são

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classificados, hierarquizados e, assim, priorizados ou subalternizados. Portanto, o conceito de raça é uma construção social, concebida de uma lógica classificatória.

Já o conceito de Etnia, na visão de Munanga (2004, p. 28), “é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum, têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. Assim, Etnia origina-se do grego ethnos, e como pontua Munanga, reúne um grupo de pessoas com características comuns. Neste contexto, não há uma exigência do laço sanguíneo, o que possibilita um campo de ressignificação das mentalidades dos povos, e por conta do processo de colonização esses povos foram forçados a mudar os padrões culturais a partir do processo de aculturação. Sobre esse processo Ramos (1942, p. 219-220), pontua:

Contatos diretos ocorrem pelas migrações de povos de uma área a outra, pela difusão de traços culturais trazidos diretamente pelos seus transmissores humanos. Nos contatos sociais e culturais, conhece-se um grupo de processos similares que sociólogos e antropólogos têm classificado em conceitos de adaptação, acomodação, ajustamento, aculturação, etc. As diferenças repousam no ponto de vista considerado pelo estudante. Assim, adaptação é um processo biológico; acomodação, um processo social; ajustamento, um processo psicossocial; e aculturação, um processo cultural. Os conceitos são por vezes modificados e confundidos, dependendo dos pontos de vista das várias escolas, mas em antropologia cultural o termo aculturação vem sendo ultimamente empregado com frequência. [...] aculturação compreende aqueles fenômenos que resultam quando grupos de indivíduos de diferentes culturas chegam a um contato contínuo e de primeira mão, com mudanças consequentes nos padrões originários de cultura de um ou de ambos os grupos.

Ao analisarmos a citação acima é possivel perceber que os estudos da antropologia contribuiram para a discussão sobre a noção de etnia, possibilitando refletir sobre o contexto dos povos que sofreram no processo de colonização. Assim, a etnia não se restringe as características fenótipas, mais aos elementos culturais que uni um determinado grupo.

Diante do que foi exposto, é pertinente mencionar que a perspectiva étnica busca transcender a problemática do combate ao racismo, busca uma inserção nas questões das contribuições desses povos, sejam elas materiais ou imateriais. Logo, essa problemática perpassa pela questão da base africana na cultura brasileira e sua relação com a visão histórica sócio-político dessa população com base na ancestralidade africana.

É preciso que pensemos a partir do enfoque étnico para distanciarmos das concepções biológicas que nortearam as discussões sobre raças no passado, que ainda está presente na contemporaneidade. Assim, o enfoque étnico deve ampliar as políticas públicas para além do combate ao racismo, pois devemos pensar na compreensão do

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campo das relações étnicas a partir de uma igualdade entre as etnias, não somente pelas ausências e negações produzidas por este racismo. LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: FERRAMENTA PARA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NEGRAS

Diante das percepções construídas historicamente sobre raça e etnia e outros conceitos que povoam o debate racial no Brasil, buscamos analisá-los em uma turma de Educação de Jovens e Adultos, com alunos com a faixa etária entre 15 – 24 anos, concluintes do ensino Fundamental II. Neste texto, fitaremos as impressões dos educandos sobre o debate racial no Brasil a partir das provocações lançadas pelo contato com o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo.

Durante toda a escrita defendemos a construção de corpus literário negro dentro da literatura universal, conforme requisita os autores que embasam está escrita, como por exemplo Cortazzo (2011, p. 8-9) quando aponta que a formação do corpus literário negro busca questionar, desafiar o discurso de literatura universal conclamada pelo projeto branco ocidental colonizador e universalista, pois estes produzem a desarticulação entre as políticas étnico-raciais e escrita e reduzem o conflito racial num conceito de opressão, tornando a literatura afro-brasileira em um projeto de libertação.

Na concepção de Conceição Evaristo (2011, p. 01) isso se dar ao reconhecer um corpus que se constitui e é marcada por uma subjetividade construída, experimentada, vivenciada a partir da condição de homens negros e de mulheres negras na sociedade. Este que para Evaristo torna-se o mérito da Literatura afro-brasileira, para aqueles que como a mesma define, “apegam-se a defesa da arte universal”, para os cânones literários torna-se demérito, pois, “não se consideram a experiência das pessoas negras ou afro-descendentes possa instituir um modo próprio de produzir e de conceber um texto literário, com todas as implicações estéticas e ideológicas”. (EVARISTO, 2011, p. 01).

Ainda segundo Evaristo (2011), é nesse “instante profundo” de uma subjetividade própria que a escrita vai se construindo, experiências estas que corpos não-negros jamais experimentará, desta forma e a partir destas vivências, pode-se requisitar um espaço próprio, com um sujeito autoral, tendo suas insinuações, intrometimentos e infiltrações reconhecidas, na voz que se enuncia o texto.

Por sua vez, Santiago (2012), logo a princípio no título do seu texto, Literatura Negra: uma escrita diferenciadora de identidades, dá o tom do seu discurso, a literatura negra é uma escrita diferenciadora de identidades, e diante das opiniões contrarias é mais que oportuno, enfrentar uma discussão sobre este “projeto estético”, dentro de um campo contraditório de embates e ambivalências, pois, não faltam estudiosos que neguem a existência de um campo diferenciado da literatura negra. Contudo, ainda

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parafraseando Evaristo, vale lembrar que no sentido amplo e restrito a arte literária revela visões de mundo e de ideologias. LITERATURA AFRO BRASILEIRA EXPRESSÃO POÉTICA DE IDENTIDADES DE UM POVO.

O trabalho foi desenvolvido a partir da modalidade sequência didática de que se refere Zabala (1998. p. 53), uma vez que ela propicia situar algumas atividades em relação às outras, constituindo-se num ponto de partida. Por sua vez, Nery (2007. p. 114), a define como “uma estrutura que pressupõem um trabalho pedagógico, organizado em uma determinada sequência, durante um determinado período estruturado pelo professor criando-se, assim, uma modalidade de aprendizagem mais orgânica”.

Neste trabalho, a sequência foi dividida em três partes: a primeira composta por seis oficinas de duas horas cada. Logo no início, discutimos o livro de Carolina Maria de Jesus, em seguida o de Conceição Evaristo. Após este momento, buscamos entender, junto aos educandos, como a literatura os ajudou a compreender o debate racial que permeia a vida da maioria dos jovens brasileiros, principalmente os que ocupam os espaços da EJA, que em sua grande maioria são negros. Para isso, levamos em consideração também o fato de a maioria dos alunos se autodeclararem negros (preto e pardos), serem sujeitos do campo, pois sobrevivem das atividades rurais, e carregam a marcas de insucessos ao longo da sua trajetória escolar.

O impulso, o interesse e as inquietações que nos conduziram à necessidade de desenvolvimento das oficinas, que versasse sobre as questões étnico-raciais, numa escola de comunidade rural e negra foram desencadeados pela necessidade de promover uma reinterpretação da história que nos foi transmitida.

Organizamos os materiais, selecionamos os textos previamente, que no decorrer do trabalho foram sendo alterados, por diversos motivos. A própria estrutura e cronograma das oficinas foram alterados, visto a incompatibilidade de algumas datas. Programada para acontecer em 10 oficinas de 90 minutos cada, realizamos apenas 06 de 2 horas cada. Os passos de cada encontro foram muito bem planejados entre momentos de: Leitura individual, em dupla, em grupo. Ademais, teve também leitura pelos professores, discussões, análise fílmica e de letras musicais e por fim roda de conversa.

Em posse de quatro contos escritos por Conceição Evaristo, Olhos d’água, Ana Davenga, Luamanda e O Cooper de Cida e o livro Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, iniciamos os planos. Por sua vez, o livro seguiria a ordem cronológica dos dias do Diário de Carolina, durante todo o planejamento da sequência didática o nosso intento foi provocar os educandos acerca de nossa afro-brasilidade, a partir da expressão literária.

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O terreno que estamos adentrando conforme aponta Evaristo (2009, p.01), trata de um caminho marcado pela subjetividade construída experimentada, vivenciada a partir de sua condição, enquanto jovens negros e negras, campesinos na sociedade brasileira. Caminhos estes que serão conhecidos no decorrer do próprio processo.

Contudo, não se trata de um teste da literatura afro-brasileira, desde o primeiro momento assumimos a posição política de ao usar essa Literatura como demarcadora de experiências de um povo que por séculos tiveram as formas de viver, ver e fazer conhecimentos anulados pela lógica perversa do conhecimento universal, da arte universal. Portanto, desde então nos colocamos enquanto navegantes de um termo contra-hegemônico, no sentido mais grasmiciano da palavra. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Participaram do nosso primeiro encontro, dia 24 de Julho de 2017, dezesseis dos

vinte e seis alunos frequentantes. Apresentamos aos mesmos a capa do livro Quarto de despejo, solicitamos as suas primeiras impressões a respeito da capa, todos se ativeram apenas ao título, atribuído a eles valores pejorativos e/ou negativos, como pode ser evidenciado na fala do estudante da turma:

Deve ser a história de alguém que não pagou o aluguel e foi despejado, morar de aluguel é ruim por isso, você paga, paga e nunca a casa é sua, minha mãe já morou de aluguel (....) risos. Bem feito, parece a mãe d... (insulto a um colega) todo dia troca de casa, por não pagar o aluguel. (João3, estudante da turma).

Em tempo, vale ressaltar a presença na classe da interprete de libras, professora

Silvete, que interviu na provocação, solicitando respeito pelo colega. Outra estudante sugeriu que se tratava de um quarto de guardar coisas velhas, mas em geral as aproximações não davam conta do conteúdo do livro. Essas marcas elencadas a Carolina Maria de Jesus, deságua na obra Ponciá Vicêncio, romance publicado em 2003, pela editora Mazza, que narra a trajetória de uma mulher negra nascida no campo, que busca saída para sua dura experiência de vida. A trajetória se constitui, predominantemente, das lembranças de Ponciá, a protagonista.

O enredo do romance de Conceição Evaristo, ora focalizado, trata sobre a vida de Ponciá Vicêncio, mulher negra e descendente de escravizados, cuja identificação com o avô paterno é forte, denotando a internalização de marcas do processo de escravização cristalizadas na figura parental. Em forma de memória, Ponciá nos lembra o fato:

Ela era menina, de colo ainda, quando ele morreu, mas se lembrava nitidamente de um detalhe: Vô Vicêncio faltava uma das mãos e vivia escondendo o braço

3Para preservar as identidades dos sujeitos que participaram dessa atividade, serão apresentados nomes fictícios no decorrer do trabalho.

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mutilado pra trás. Ele chorava e ria muito. [...] falava sozinho também. O pouco tempo em que conviveu com o avô, bastou para que ela guardasse as marcas dele. (EVARISO, 2003, p.15)

Embora restem poucas lembranças, as características marcantes ficaram

gravadas nas memórias e no próprio corpo da neta: o braço mutilado escondido atrás das costas, o riso choroso e uma herança que será conhecida à medida em que avança a narrativa. Prosseguimos com a leitura do livro Quarto de despejo, a partir do primeiro dia do diário, data-se 15 de julho de 1955. Após leitura do diário retomei a pergunta sobre as impressões da capa do livro e outras respostas surgiram, dentre elas destacam-se: “O livro conta uma história de uma mulher que vive numa favela, sei lá... um barraco... Como Fazenda Grande, Águas Claras.... Onde moram... Já passei as férias lá, é assim mesmo.” (Carol, estudante da turma).

As aproximações da estudante se dão pelo subtítulo do livro – Dário de uma favelada – o que deduz ser o cotidiano de uma pessoa na favela. Fica também, registrado e passível de outras pesquisas a forma de falar desses alunos acerca dos cidadãos que moram nas favelas das regiões urbanas e metropolitanas. A aluna cita alguns exemplos de regiões periféricas que já ouvira, ou frequentara, uma vez que alguns dos seus parentes e familiares migraram para estas regiões, na busca da conclamada felicidade da/na cidade, em detrimento da vida no campo.

Neste momento recorremos a mais uma similitude deixada pelas marcas identitárias de ambas as obras, visto que Ponciá Vicêncio também é entrecortada pelo fluxo das lembranças que vagueiam entre associações ocorridas à narradora. Ponciá, diante do enigma de suas lembranças que se precipitam a todo momento, ao relembrar, ao repetir para si os fatos de sua vida, ao fantasiá-los, ao reelaborá-los, busca retecê-los. A fim de compreender o que se passou, lançando-se em uma travessia da corrente fluida de suas lembranças, para desvendar a origem de seu silêncio, do tédio das tardes, o seu riso choroso, a enigmática herança que receberá do avô.

A obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, oportuniza uma reinterpretação da nossa história, na medida que apresenta a narrativa de maneira que nos leva a questionar essas histórias, ao narrar a vida da personagem da infância à fase adulta, na busca reconstituição de seus elos familiares, memória e identidade. Nesta direção de ruptura e travessias, para Ponciá “o rio” é o espaço que provoca questionamentos sobre sua identidade. Ao ver refletida sua imagem nas águas, a menina é incapaz de associar o nome a sua imagem. Destituída de um nome de família, Ponciá conta que o Vicêncio de seu nome, e que todos de sua família também adotam, representa um fardo sobre as suas costas. E esse sobrenome se mostra no título do livro e é o nome do povoado “Vila Vicêncio” onde ela e a família moravam. Era como “lâmina afiada a torturar-lhe o corpo”. (EVARISTO, 2003, p. 10).

Sobrenome herdado dos proprietários de seus antepassados escravizados, como a marcar a colonialidade e a relembrar vivificando a memória da escravidão. As dores

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instauradas na identidade de Ponciá Vicêncio, pelas marcas do período escravagista, trazem a carga de uma violência simbólica que se reflete no estranhamento de si mesma e consigo mesma.

Assim como nos sugere Carolina Maria de Jesus, a primeira nos abrindo a

reflexão das dificuldades da vida pastoril, enquanto a segunda narra a trajetória de tantas outros que na tentativa de alcançar a tão pregada felicidade urbana é barrada pelo bloqueio simbólico da suburbana.

Não é nosso objetivo aqui discutir êxodo rural, condições de vida do camponês, mas ficam registradas as impressões obtidas a partir destas e de outras falas, do lugar Favela, como parece ser/estar uma ponte simbólica que liga aqueles sujeitos camponês-negros e pobres a este lugar não urbano e também não rural, colocado mesmo como uma barreira entre os dois – o suburbano. Sobre este lugar e seus estereótipos, vejamos o que foi apontado pelo estudante Jemerson: “o livro é muito interessante. A capa demonstra uma favela onde Carolina Maria de Jesus vivia com seus filhos numa comunidade, muito ruim, onde ela tinha que catar latinha para sobreviver e comprar comida para ela e para seus filhos”. (Jemerson estudante da Turma).

A fala de Jemerson, ao depreender a partir da escuta e análise da capa do livro, dialoga como estudos de Cortazzo (2011. p. 01), em que afirma que “o discurso poético negro surge como uma disrupção, uma ruptura dentro de um sistema literário que só reconhecia a voz do branco”. É notada quando maioria dos alunos reconhece na literatura de Carolina, uma narradora-personagem negra que faz esta ruptura, pois ao ingressar na literatura, e sonhar um dia com a publicação de seus escritos, Carolina requisita a legitimidade de sua condição negra e favelada na literatura, tomando visível a sua corporeidade.

Por sua vez, o título e subtítulo do livro de Carolina “Quarto de despejo”, “diário de uma favelada”, assim como o sobrenome Vicêncio se mostra tão doloroso quanto à tradicional tatuagem que os senhores mandavam fazer nos possuídos. Essa marca de subalternidade de uma raça sofrida, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravizados dos mínimos requisitos de cidadania e jamais livre (uma pseudoliberdade). Tal passagem é possível notar na narrativa de Evaristo (2003, p. 19):

Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina tinha o hábito de ir a beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. [...] Uma noite ela passou todo tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia.

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O citação acima dialoga com a perspectiva de Hall (2005, p. 09), quando aponta que as relações sociais e culturais estão relacionadas com o processo de identificação que se apresentam de uma forma consciente ou inconsciente no ser humano, estando estreitamente ligados com o sistema de representação. O individuo se identifica como um membro de uma sociedade, classe, grupo, estado ou nação levando-o, instintivamente, a reconhecer o seu lar. Devido a imagem estereotipada que o sistema de representação, pedagogicamente introjetou no imaginário coletivo, os negros tem uma dificuldade em afirmar sua identidade, visto que não está atrelada a uma identidade com estereótipos positivos. Carecendo, na contemporaneidade, de estratégias que ressignifiquem esta relação negativada, a escola é neste sentido convidada por tantos autores, por exemplo Mendes (2003), a ser um desses lócus na luta antirracista e construção de uma identidade e consciência negra, mas não se trata de qualquer escola, ou de um currículo já estabelecido, fala-se de um compromisso na luta no combate ao racismo, uma educação antirracista, com conteúdos antirracistas.

Caminhando nesta perspectiva, fruto das lutas dos Movimentos Negros que tencionaram as aprovações de políticas públicas concernentes com uma educação antirracista, destacamos a Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Africana e Afro-Brasileira”, no currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, história e literatura. Embora esta lei tenha sido aprovada em 2003, constatamos que não há uma efetivação dessa discussão em sala de aula. E isso foi o que nos levou a esta proposta, a qual consideramos necessária e urgente sua aplicabilidade em sala de aula, e neste trabalho destacamos a importância da literatura afro-brasileira como estratégia para combater o racismo, pois segundo Cortazzo (2011. p.01),

[...] a escrita negra surge, então, como uma subversão: uma voz, não autorizada e resistida, emerge no cenário literário. Como o próprio enunciador comenta no poema “Quem sou eu?”, sua voz é um “repique impertinente” que não pertence ao lugar, voz estranha, inconveniente e irreverente. Voz intrusa que vem a revelar que todos na verdade são animais. Mas a voz negra não é uma voz isolada, individual, intimista, única e privilegiada como propõe a estética ocidental. O eu negro aparece profundamente vinculado à sua comunidade, a um nós. Não é a musa que fala através dele, nem o gênio da sua pessoa: é a voz da sua gente, do seu povo que o leva até a voz dos ancestrais, identificando-se assim com uma história específica e uma situação social de hostilidade e negação. (CORTAZZO, 2011. p.01)

Concordando com Cortazzo, no que concerne a escrita negra como subversão, uma voz não autorizada, pensamos no porquê de sua necessidade, qual a necessidade desses corpos de expressarem a poética de seu cotidiano? A colocação da estudante Cristiane orienta o nosso olhar a este respeito, analisando a respeito das primeiras

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aproximações do livro de Quarto de Despejo: um tipo de prisão. A estudante pontua: “Quarto de despejo representa alguém que quer mais, que quer se libertar de algo, que quer falar, que quer opinar em meio à sociedade política, alguém que quer se libertar de algo, que quer ser algo ou alguém”. (Cristiane, estudante da turma). Na própria fala da aluna, analisamos o lugar de sofrimento, opressão e expressão por ela reconhecida e conhecida já que a mesma, em sua ficha de matrícula não se auto-declara negra, mas é nascida em uma comunidade negra, em processo de reconhecimento de remanescente quilombola. Dados este, colhidos na secretária da escola, com a intenção de se ter a certeza do lugar de fala dessa aluna. Percebe-se no depoimento de Cristiane, a mesma propriedade de fala representada em Ponciá Vicêncio, quando faz referência ao seu nome e as suas marcas. Segundo Gustavo Volaco (2013), o nome é aquilo que representa alguém específico, diz de uma pessoa e tem uma íntima relação com a identidade do sujeito. Jacques Lacan também se ocupa da questão do nome, desde o Seminário 1 (1986), quando afirma:

[...] que um nome, por mais confuso que seja, designe uma pessoa determinada, é exatamente nisso que consiste a passagem ao estado humano. Se definir em que momento o homem se torna humano, digamos que é no momento em que, por menos que seja, entra na relação simbólica (LACAN, 1986, p. 182).

Nomear é mais que dar um nome, faz parte da própria constituição do sujeito.

Mais especificamente, a nomeação permite a identificação ao traço unário. Neste sentido, o traço unário refere-se à primeira marca do sujeito, seu nome, constituindo-se como o acionador da subjetividade. O nome é ainda, segundo Regina Obata (1986), um rótulo de identificação social e uma marca da individualidade que, de alguma forma, transmite um adjetivo abstrato a seu portador.

Parece, entretanto, que no caso da personagem da narrativa em questão, essa constituição não se solidifica e o sujeito mostra-se rarefeito, fluido, incapaz de fixar-se a partir de seu nome. Isso denota uma recusa ao outro que o determina, como se pudesse romper com essa opressão de onde lhe vem o código linguístico. Entretanto, por mais que recuse, Ponciá não consegue se libertar desse julgo que a condena e a faz perambular em busca de uma marca pura, para além do jogo escravocrata.

Sobre este pertencimento da fala, Cortazzo (2011. p.02), revela como a escrita negra tem uma estética própria e ela por si se sustenta, a partir de três elementos - “passado humilhante, presente de discriminação e futuro de libertação” – evidentes no diário de Carolina Maria de Jesus, e também no romance de Conceição Evaristo e as linhas traçadas por Cristiane (estudante da turma) em suas primeiras impressões sobre Carolina. O autor ainda enfatiza que “a voz negra descortina a etnicidade invisível, inconsciente, de branco que deve enfrentar-se com sua própria construção: O negro”. Pois,

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A voz negra, ao aparecer no espaço literário, produz também dois ouvintes diferentes, e esta é outra especificidade da escrita negra. Por um lado, aponta para um leitor branco, procurando que se reconheça como dominador, responsável e conivente com uma história criminal. (CORTAZZO, 2011. p.02)

Desse modo a aproximação de alunos, sumariamente e majoritariamente negros

com a literatura afro-brasileira, é uma pressão de construção da morte do negro de até então, e um espaço para a reconstrução de uma nova negritude, ou seja, uma estratégia de reconfiguração que:

[...] vai além da criação de uma consciência negra poética, política e cultural. Com efeito, a consciência negra revela também a existência de uma consciência branca, sustentada na crença da sua superioridade. A consciência branca é a matriz desde onde se observa a totalidade do mundo, se estuda, se ordena, se classifica e se avalia. Sartre diz de forma magistral: “o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem que o viessem”. (SARTRE, 1968, p. 89 apud CORTAZZO, 2011. p.03).

Com desenvolvimento desta sequencia didática os estudantes foram convidados a analisar o seu passado, a sua ancestralidade, o que possibilitou compreenderem a sua trajetória sobre a sociedade que habitam e como elas impactam até no seu processo de escolarização, pois são submetidos historicamente a conteúdo da classe dominante, subalternizando seu modo de ser e viver no mundo, o romance Ponciá Vicêncio coopera para a significação desta denúncia, de exploração dos personagens. Segundo Fernandes (2008, p. 166):

Enquanto e na medida em que (os escravos) se viam excluídos de tais formas de ‘ganhar a vida’, o negro e o mulato não tinham como participar econômica, social e culturalmente daquela civilização. Ficavam condenados a um isolamento disfarçado, ajustando-se deficientemente ao mundo urbano, através da herança sociocultural transplantada do antigo passado rústico do ‘escravo’ e do ‘liberto’.

Contudo, certa crença em dias melhores é uma questão muito interessante e se faz presente na composição da obra de Conceição Evaristo, no sonhar de Carolina Maria de Jesus e no cotidiano dos educandos da EJA. Assim como Ponciá, que aos dezenove anos de idade já tinha bastante consciência da realidade do meio em que vivia. Estava ciente da tribulação que iria encontrar se continuasse no campo. Diante disso, surge o desejo de partir para a cidade, em busca de uma vida melhor, tentando também romper com o significante que a prendia às sombras da escravidão. Esta realidade de privação e descaso das políticas públicas também faz parte das comunidades do alunado, assim como a ideia de que se quiserem ser felizes terão que no futuro abandonar o campo e partir para a cidade, para isto desde cedo a escola rural, enquanto fiel escudeira das elites dominantes, ocupa-se de desgaste das memórias de

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um passado rico de lutas, resistências e enfrentamentos, anunciando a pseudo-esperança de vencer a barreira simbólica das periferias, tão vítimas das políticas públicas quanto às comunidades rurais. Durante nossas oficinas, guardadas as proporções, acreditamos que a literatura tivesse este poder, esta foi a nossa intenção, incomodar o branco (in)consciente da nossa existência, ou por não “o branco consciente”, porém distante de nosso fenótipo e de nossa realidade, e é sobre este branco “consciente X inconsciente” que analisamos a fala de Douglas (estudante da turma), quando em suas primeiras aproximações com Carolina Maria de Jesus, onde fita o olhar para a descrença das vizinhas em Carolina saber escrever e morar na favela, daí, pois o mesmo fala que, “Ela era uma mulher pobre que vivia na favela, era muito discriminada pelos outros, e sabia ler e escrever, mas ninguém acreditava, ela morava numa casa simples.” (Douglas, estudante da turma).

A interpretação do aluno nos remete as ideias de Fanon (2008. p. 46), especificamente quando ele discute a relação do negro com a linguagem, sendo previsto pelo mundo branco como incapaz de compreender / relacionar-se com a língua, pela sua complexidade, e o uso desta linguagem pelos negros é questionada, duvidada e tencionada pelos não-negros e até pelos negros muitas vezes, assim o autor discorre que sobre o petit-nêgre, a construção de uma imagem, de um estereótipo a ser aceito socialmente. Pois, “nada de mais sensacional do que um negro que se exprime corretamente, pois na verdade, ele assume o mundo branco... Com o negro civilizado a estupefação chega ao cúmulo, pois ele está perfeitamente adaptado... Diante dele, é preciso tirar o chapéu”. (FANON, 2008. p. 48)

É também, o estudante “Marcos” que nos leva a refletir sobre as ideias de Fanon, ao afirmar que “ela era uma pobre mulher que vivia na favela, era muito discriminada pelas outras que viviam nas casas simples como ela”. Para entender esta rejeição e desconfiança das vizinhas de Carolina ao ato dela escrever o cotidiano, Fanon (2008. p.49) nos diz que há “uma relação de sustentação entre a linguagem e a coletividade, pois falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura”. Atribuímos o desconhecimento de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, a insular ausência de autores negros, ou seja, a invisibilidade que estes intelectuais sofrem, ou quando não, acabam sendo estudados como não-negros. Neste sentido, observamos a necessidade de se pontuar as referências e matrizes étnico-raciais de autores negros, quando trabalhados em sala de aula, o que denominamos olhar racializado. Tomando esta experiência somadas a outras que as literaturas denunciam, entendemos que esta reação dos estudantes revela a negação que o negro sofreu e sofre na literatura brasileira (NATÁLIA, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao dialogar acerca dos conceitos sobre as relações étnico-raciais e analisar as obras Quarto de despejo e Ponciá, fica evidente que o negro, por seu passado histórico de exclusões e séculos de escravidão, foi colocado em uma posição marginalizada, fruto da ausência de políticas públicas que assegurassem condições dignas de sobrevivência.

Narrativas sobre uma história que sempre encaixou o negro em estereótipos que fortaleceram o olhar de exclusão nos aspectos social, econômico e político em relação ao branco. Entre as várias denúncias que aparecem no romance como o trabalho em regime de semi-escravidão, o êxodo rural, a exploração, preconceito, a violência à mulher e a sua imagem, a busca por uma identidade e a exclusão do negro no universo intelectualmente ativo, faziam parte da vida de sua família.

Assim, a exclusão social narrada é recorrente do termo raça que evidencia um passado que utilizava-se de uma classificação a partir de fenótipos idealizados pela classe dominante. As autoras abordam esses pontos na obra para mostrar a aflição de um povo que não tem vez, nem espaço. Essa denúncia da literatura em busca de um espaço, de uma identidade étnico-racial, de respeito, diretos e deveres, está presente para acrescentar e fazer com que os leitores reflitam as condições de exclusão social que os negros foram submetidos.

Preliminarmente, por crer que a educação sempre será o instrumento mais poderoso contra a dominação e as injustiças sociais, o meio mais prático e seguro de se fazer a democracia, de se promover a igualdade social, é nestes pilares que este trabalho vem ganhando resultados. Garantir aos estudantes um contato com um campo literário diferenciado, vasto e rico é muni-los para a defesa do próprio corpus literário afro-brasileiro, e a escola neste sentido, torna-se um importante elemento contra este silenciamento. Pois também é o texto literário uma forma/estratégia de resistência à violação e a interdição do negro, imposto pelo regime escravocrata. Não é, e não será o nosso intento esgotar a temática, visto a impossibilidade da mesma, contudo, até o fim deste trabalho, temos como objetivo junto aos professores da área de linguagens da escola lócus de garantir um espaço de discussão e análise dos textos que compõem o corpus literário afro-brasileiro. Uma vez que concordamos em nossos encontros de planejamento que o universal não é universal, o universal não cabe o subalterno. Por fim, se uma das divergências acerca da existência de um corpus literário afro-brasileiro seja a questão da insinuação, da infiltração e do intrometimento do sujeito autoral, como já mencionamos acima, no trato com os textos percebemos que estes por sua vez se aproximam muita mais do estudante, principalmente da realidade do estudante da escola pública, rural como é o nosso caso, pois como também já afirmamos não é possível desvencilhar-se de seu corpo, de suas subjetividades, no momento profundo da escrevivência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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