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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA UNIR DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO UMA LEITURA NA DIFERENÇA PORTO VELHO 2013

Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

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Page 1: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR

DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS

LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO

UMA LEITURA NA DIFERENÇA

PORTO VELHO

2013

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DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS

LITERATURA E DEVIR EM MURILO RUBIÃO

UMA LEITURA NA DIFERENÇA

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos Literários do Departamento de Línguas Vernáculas da UNIR como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª. Dra. Heloisa Helena Siqueira Correia

PORTO VELHO

2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES

S2373l Santos, Deivis Nascimento dos

Literatura e devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença / Deivis Nascimento dos Santos. Porto Velho, Rondônia, 2013.

80f.

Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Fundação Universidade Federal

de Rondônia / UNIR.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heloisa Helena Siqueira Correia

1. Literatura 2. Contos de Murilo Rubião 3. Devir - diferença I. Correia, Heloisa

Helena Siqueira II. Título.

CDU: 82-34

Bibliotecária Responsável: Ozelina Saldanha CRB11/947

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos da minha família, especificamente: Rosalina e Layne (mãe e irmã); Alzira e Álef Duran (esposa e filho). A

minha orientadora Dra. Heloisa Helena Siqueira

Correia e a todos os professores e amigos do

curso de Mestrado em Estudos Literários - UNIR. Aos NEFELIBATAS (nosso grupo de amigos da graduação em letras). Aos falecidos

Gentil Carvalho dos Santos (pai), Zenir de Morais (padrasto amigo) e Maria do

Nascimento Maia de Oliveira (avó) in memoriam.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço toda a ajuda e compreensão de meus familiares durante o

mestrado. A paciência e atenção dos professores do curso (Wani Sampaio, Ana

Felipini, Cynthia Barra, Heloisa Helena, Rubens Vaz e Milena Magalhães) bem como por sua competência profissional e amigavelmente compartilhada. À turma do

mestrado pelo companheirismo e mútuas ajudas. À professora Marisa Martins Gama Khalil, por participar mais uma vez de uma importante fase da minha vida.

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“Experimentem, nunca interpretem [...] de fragmento em fragmento se constrói uma experimentação viva onde a interpretação começa a fundir, onde já não há percepção

nem saber, segredo nem adivinhações [...] apenas uma luz crua.”

Gilles Deleuze

“Nessa hora os homens compreenderão que mesmo à

margem da vida, ainda vivo, porque minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra

para exclusiva ternura dos meus olhos.”

O Pirotécnico Zacarias (Murilo Rubião)

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RESUMO

Investiga-se uma suposta articulação e produção da Diferença realizada pelo

procedimento literário que tem como produto um Devir, sob a sugestão teórico-

filosófica de Gilles Deleuze, e em grande parte, com este e Felix Guattari; toma-se

por objeto determinados procedimentos literários presentes nos textos de Murilo

Rubião, especificamente nos contos Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem

do Boné Cinzento. Evidenciar o Devir literário exige uma operação de leitura que se

torna incompatível com os procedimentos da representação – entendida, sob tutela

dos teóricos escolhidos, como processo de mediação que submete os eventos

literários à identidade, à oposição, à analogia, à semelhança. O signo literário não

pode ser abordado a partir de reverberações de um núcleo transcendente formal,

que preveem as possíveis cadeias de expressões que serão suas representantes

dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos, metafóricos,

simbólicos e de projeções. Deve-se evidenciar quando a literatura articula um plano

de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido. E neste intuito,

exige-se uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de

tropos, simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração

próprias, estétitico-intensiva direta que escapam, mesmo em sua proximidade, à

dimensão retórica (conotações). Propõe-se uma leitura que acompanha os

procedimentos literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram

os elementos narrativos em sua disposição interna; que acompanhe ainda o que

acontece com discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em pleno

funcionamento no plano de composição dos textos, não como designados pelo texto

– o que se entende aqui como representação. É preciso tomar o texto literário como

uma realidade completa em si, que deve ser visitada, explorada; em que todos os

efeitos são vivências afetivas e perceptivas. Ainda como tarefa desta dissertação,

deve se expôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto

Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstra-se o que se produz em

concordâncias e em divergências. A noção de Devir acionada, enquanto produção

de descontinuidades, Diferença, que resiste aos centros formadores de significados,

sugere, do lugar em que se move, uma predisposição teórica que o enxergue, com

ferramentas próprias, aptas a contribuir com um novo olhar para com a literatura, e

para a abordagem dos textos de Murilo Rubião.

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PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Devir, Contos de Murilo Rubião, Diferença em

Gilles Deleuze e Guattari.

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RESUMEN

Con el fin de investigar una supuesta articulación y producción de la Diferencia

hecha por el procedimiento literario que tiene el producto de un Devenir, bajo la

sugerencia teórico-filosófico de Gilles Deleuze, y en gran medida con este y Félix

Guattari, tomando como objeto procedimientos literarios de Murilo Rubião

específicamente cuentos Teleco El conejito , Los Dragones y El hombre del bonete

gris. La evidencia literaria para convertirse en convocatorias de una operación de

lectura que se hace incompatible con los procedimientos de representación -

entendida , bajo la tutela del teórico elegido , ya que el proceso de mediación que

presenta eventos literarios a la identidad , la oposición , la analogía , la similitud .

Signo literario no puede ser abordado desde un núcleo trascendente

reverberaciones formales , que predicen las posibles cadenas de expresiones que

serán sus niveles representantes denominación más simple para dispositivos

analógicos , proyecciones metafóricas y simbólicas. Debería ser evidente en la

literatura cuando se articula un plan de la composición, de la inmanencia , que se

convierte en dueño de su sentido . Y en este orden , se requiere una predisposición

a la lectura que no cruza las referencias de los tropos , simbolismo o proyecciones

síntesis , porque la Devenir tiene una duración propia realidad y escapar , incluso en

su proximidad, la dimensión retórica. Proponemos una lectura que acompaña a los

procedimientos literarios , tomando nota de las dimensiones que crean los efectos,

que generan los elementos narrativos en su disposición interna . Observe lo que

sucede con el habla (ideas y prácticas) de nuestro mundo externo en pleno

funcionamiento en la composición del plan de los textos, y no como significante

abstracto que designa algo externo - lo que se entiende aquí como una

representación . Tienes que tomarlo como una realidad en sí misma completa, que

debe ser visitado, explorado, donde todos los efectos son experiencias afectivas y

perceptivas . Expone tales lectura a codo con los demás (especialmente Roberto

Schwartz , en La poética del Oroboro ) y se demuestra que se produce

concordancias y divergencias. La idea de Devenir a ser lanzado, mientras se

produce discontinuidades , Diferencia , que se resiste a los centros de formación de

significados estables, sugiere, en el lugar donde se mueve, un sesgo teórico verlo,

con herramientas propias , capaces de aportar una nueva mirada a la literatura, y de

acercarse a los textos de Murilo Rubião .

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PALABRAS CLAVE : Literatura y Devenir, Cuentos de Murilo Rubião , Diferencia de

Gilles Deleuze y Guattari .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................01

1. DEVIR: DIFERENÇA.......................................................................................06

1.1 Pensando em diferença.............................................................................07

1.2 Literatura faz a diferença...........................................................................10

1.3 O impessoal: força personífuga.................................................................12

1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário..................................................15

2. CRÍTICA EM DEVIR: ler a diferença...............................................................18

2.1 Teorias: enlaces e distâncias....................................................................19

2.2 Um modus operandi em Devir...................................................................25

2.2.1 As minorias. Língua menor. Alguns regimes de Signos..................26

2.2.2 Dos planos transcendente e imanente. Plano

escritural..........................................................................................28

2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades,

mapas..............................................................................................31

2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas........33

2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devir-

expressivo........................................................................................35

3. RUBIÃO EM DEVIR.........................................................................................41

3.1 Teleco o coelhinho.....................................................................................44

3.2 Simples Dragões .......................................................................................54

3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O homem do Boné Cinzento).......67

3.4

4. CONCLUSÕES................................................................................................76

5. BIBLIOGRAFIA................................................................................................78

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INTRODUÇÃO

“[...] ser uma coisa é não ser passível de interpretação”

Fernando Pessoa

Reconhecendo que os signos literários podem ser tomados e produzidos em

diversas perspectivas, este trabalho objetiva investigar a articulação e produção de

um Devir atingido pelo procedimento literário que se concretiza como uma Diferença

na sugestão de Gilles Deleuze, em grande parte, e deste com Felix Guattari – em

conexão com outras confirmações argumentativas de outros autores pertinentes aos

pressupostos que nos fundamenta. Compondo ainda o objetivo principal, a

investigação especifica-se um pouco mais, ao sugerir a produção desse Devir, nos

contos do escritor brasileiro Murilo Rubião.

O Devir literário, enquanto realidade própria e articulador de diferença, sugere

uma operação de leitura que se torna incompatível com os procedimentos da

representação – entendida, sob tutela dos teóricos escolhidos, como processo de

mediação que submete os eventos literários à identidade, oposição, analogia e

semelhança; e entre ambas as perspectivas trava-se uma fecunda discussão.

A princípio, surge da indagação de como é possível criar novos conteúdos e

expressões ao pensamento que não estejam presos a reverberações de um núcleo

transcendente formal que preveem (com naturezas, universais, sujeitos, objetos,

propriedades etc.) as possíveis cadeias de expressões que serão suas

representantes dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos,

metafóricos, simbólicos e de projeções. Portanto, inicia-se numa busca filosófica.

Mas esse início é, na realidade, o meio. A saída encontrada foi a conexão, o

encontro inevitável, com a não-filosofia, ou seja, os outros modos de retirar o

pensamento de sua imobilidade e que não estão necessariamente subalternos às

representações clássicas e estruturantes do pensar: atitudes imediatas que forçam

uma reorganização intempestiva de compreensão e ação: os momentos

revolucionários, as guerras, as sociedades secretas, as artes, enfim, a literatura; que

forçam uma fuga e a necessidade de alianças e máquinas a-significantes em relação

às vigências; configurações semióticas que cessam a circulação refratária da

interpretação – entendida como extração de sentidos, os sentidos por trás da

máscara; que vão desde as antigas moral da história e exegese, às metáforas e

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alegorias funcionando como um espelho sempre do universo humanista; às vezes

com invertidos papéis, mas sempre sobre o mesmo arquétipo. (Deleuze costuma

dizer que representação e interpretação formam o casal do déspota e o padre . Ou

seja, são partes complementares de um dispositivo: um produz as propriedades, o

modelo; o outro detém o saber de extração, na produção em massa de enunciados,

deste sentido primeiro; e pode reconhecer e autorizar o que o pode substituir em

manutenção, em sua representação. Tomei a liberdade de chamar esse conjunto de

codec – emprestado da nossa tecnologia de informática, software de codificação e

decodificação1).

Mesmo partindo de uma aventura filosófica, essa perspectiva não deve

submeter o texto literário como suporte de conteúdos para uma visão filosófica. Ao

contrário, aposta na sua singularidade mais radical de expressão por intensidades,

quando produz diferenças irreversíveis, falhas intransponíveis que traem as

remissões, designações, denotações e conotações apoiadas em precedências para

funcionarem; que em seu plano faz nascer o que não existe, ao invés de apenas

representar o que já está dado. É neste ponto que é excesso, relação com o fora.

Mas é justamente aqui que atinge uma dimensão ética por excelência, pois é

abertura de novas possibilidades de vida, opondo-se ao âmbito ético-moral que já

predispõe os condutos. Trava-se então uma guerrilha contra os dualismos no seio

da própria linguagem: contra significados formados e reverberações representantes.

A linguagem literária deve ser projétil e não projeção: é uma realidade própria em

resposta ao real e não apenas o fantasma ou “algo que está por outro”; é a

positividade do simulacro, gerando um duplo não semelhante que passa a ser um

excesso em relação ao modelo; abolição da noção de original e derivado, bem como

a relação de semelhança que ignora o que se passa na diferença, tornando esta

apenas oposição conceitual, legitimando apenas o que se procede por identidade.

1 Este parêntese é um intervalo descontraído. CoDec é o acrônimo de

Codificador/Decodificador. Eles são programas que codificam e decodificam arquivos de

mídia, favorecendo compactação para armazenagem e descompactação para visualização.

Tal alusão a um dispositivo de mídia é devido ao funcionamento da representação como

mediação. Acesso em 20/11/2013: http://www.tecmundo.com.br/gravacao-de-disco/1989-o-

que-sao-codecs-.htm

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Temos consequências, portanto, no modo de considerar a linguagem: deve-

se reconhecer que os agenciamentos coletivos são coextensivos à sua própria

origem e estão coagindo desde a menor articulação fonética à frase, aos discursos

ordenadores; reconhecer que a língua não é essencialmente informativa, nem para

que se acredite nela, mas para ser obedecida. O agenciamento literário deve

desestabilizar essas significâncias através de um uso intensivo, reatraindo o saber

para o sabor, fazendo Apolo abalar-se à sombra de Dionísio; diminuindo a

ofuscação e denunciando com o próprio corpo as arbitrariedades dos “naturais”, dos

próprios e propriedades, sujeitos individuais com pensamentos e interioridades a

expressar e objetos a se conhecer ou classificar. A literatura deve articular um plano

de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido; experiência para

além da prescrição do possível. Resgata-se tudo ao pé da letra, caminhando sobre o

absoluto de um sentido, um devir que se dá como sentido. E nesse sentido exige-se

uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de tropos,

simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração próprias,

diretamente estético-intensiva que escapam, mesmo em sua proximidade, à

dimensão retórica (conotações).

Dessa forma propõe-se uma leitura que acompanha os procedimentos

literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram os elementos

narrativos em sua disposição interna; mas também observa o que acontece com

discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em seu plano de composição

– discursos em pleno funcionamento, não representados. Na perspectiva em que se

espera Devir evocado, as observações não podem encarar o simulacro do texto

como abstração-significado que, no fundo, se “referiria” a algo de exterior. É preciso

tomá-lo como uma realidade completa em si, que deve ser visitada, explorada; em

que todos os efeitos são vivências afetivas e perceptivas: entrar no conto, em seus

cenários, como nós entramos em algum corredor obscuro, ou ambiente ensolarado;

se tal ambiente nos lembra outro em que já passamos, se já vimos essa pessoa em

algum lugar, que seja ao mesmo modo quando, do lado de fora, vemos algo que nos

lembra outro, mas ambos reais e com suas diferenças. Assim não se interpretará,

mas se descreverá (com todos os perigos que isto oferece como testemunho). Se

enquanto leitor despreocupado apenas se experimenta, enquanto compromisso

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acadêmico se deve colar ao experimento nossos critérios expostos e se realizar o

relato.

Teremos que predispor o olhar para as anomalias, as a-significâncias e seus

afectos, projéteis que minam as instituições e corpos constituídos (os sujeitos, as

famílias, os Estados, os objetos, propriedades e classificações circulantes etc.);

principalmente, em nossa atualidade, contra um dos centros significantes que mais

tem emitido despotismos: o Homem: discurso despótico que recobre e se apropria,

conta a “História” das coisas. Mas os devires-minorias, animais, vegetais, minerais,

moleculares, cósmicos, nos testemunharão a sentir nessa “História” tão somente sua

autobiografia.

Predisposto esse olhar para Diferenças autênticas (pensadas em si mesmas),

o direcionaremos aos contos de Murilo Rubião. Deste, foram selecionados três que

dispõem de uma boa variedade possível de devires por atuarem em diferentes

elementos narrativos ao mesmo tempo: Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O

Homem do Boné Cinzento. Vejamos o quanto a escritura de Rubião é rica para além

do representável, em articulação de diferenças, sobre as quais os discursos

interpretantes têm de fazer recortes, exclusões ou recuperações delicadamente

forçadas sobre sua matéria indócil. Encaremos os signos como acontecimentos,

como presença de forças, seres de linguagem que só designam a si mesmos, mas

que, ao contrário de serem intransitivos ao mundo, são passagens a se fazer;

intensidades, no entanto respostas diretas àquilo que as provocam na circularidade

do mundo. É neste Devir que iremos, proposto por Deleuze, por Guattari, por

elementos de outros pensadores de quem se apropria componentes (Nietzsche,

Blanchot, Foucault, Derrida, Lyotard, Schwartz) e principalmente pelos escritores, os

criadores de Devir e dentre os quais, principalmente, Murilo Rubião. Enfim, o que

mais motivou esta dissertação não é a pretensiosa busca por um tema ou um

recorte ainda não tratado, mas o fascínio e inquietude que essa perspectiva de

leitura provoca, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como irrevogáveis

pela constante prática (incluo aqui o autor da dissertação, que se sentiu muito

contrariado nos primeiros contatos com essas ideias). Não se espera, aqui, discutir

até os limites essa revisão que acompanha tal perspectiva; mas sim, contribuir com

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um esclarecimento mínimo que situe a discussão e uma possível operação de

leitura.

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1. Devir: Diferença

[...] olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua [...] Procurei com os melhores argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade de minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços. Também não adiantou. Seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo. Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à murada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria. Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la. (RUBIÃO, 2010, p. 32)

O rosto grave, olhar fixo, uma minúscula estrela cintila seu apelo talvez

menos por seu bri lho do que pela treva que a envolve e a torna quase indiscernível

de si. Minúscula estrela anônima, justamente ao lado de uma tão midiática figura, já

violada por decalques que tomam a frente do olho e nos comunica o que não vemos:

a Lua. Com certeza, se o personagem fosse buscar a lua, nós teríamos

imediatamente muito mais coisas a dizer, comunicadas há tempos por todas as

projeções, simbologias, metáforas e analogias: a demonstração de amor à amada,

ou mesmo projeções de um desejo inominável por recalque, atraindo o lobisomem

como personificação da copulação macho-fêmea etc. No entanto, com um toque

feminino, Bárbara não indica a “pop-star”, mas uma minúscula estrela que, no texto,

não oferece amplas margens para sinônimo ou epíteto, pois é olhada e contemplada

apenas como uma minúscula estrela quase invisível ao lado da lua. A redundância é

necessária, pois, evento repentino sem interpretante, celebra o pequeno

esquecimento e alegria nervosa, pois grave é o rosto, de um olho que atingiu sua

plenitude de simplesmente “ver” uma estrela despida de discurso, e que, por isso,

oferece-se e oferece um instante de puro querer, sonho de bebê, com apenas

palpitações indiscerníveis se de prazer ou agonia; um devir irresistível no qual, os

mais resistentes, ou melhor, reacionários – todos nós ao primeiro impacto – talvez

ainda tentem perguntar: por que a estrelinha minúscula? (pergunta que almeja

resgatar algum discurso que nos salve do caos, da catástrofe). Ficamos instalados

na diferença, suspensos ao tempo-espaço homo faber, e por isso, contemporâneos

a uma vida em plenitude, olhando-nos “ao vivo”. Pelo desfecho desse conto nos

lançamos nesta investigação da expressão/pensamento na diferença através do

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Devir que o agenciamento literário de Murilo Rubião pode sugerir. Vejamos, a

princípio, tendências contemporâneas a que a leitura de certo agenciamento em

Devir (conjunto discursivo) na obra muriliana pode se conectar.

Há estrelas que não vemos nos espaços escuros mas que, de acordo com

astrofísica, estão lá; se não as vemos é porque sua luz, devido à velocíssima

expansão, não chega a nossos olhos. Com este exemplo para chegar a uma

definição de “contemporâneo”, em Giorgio Agamben já vamos encontrando

conexões:

Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo [...] ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar [...] o nosso tempo [...] não pode em nenhum caso nos alcançar [...] o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade. (AGAMBEN, 2009, p. 65)

Urgência e intempestividade: cessar as transcendências, desapropriar

núcleos que prescrevem os sentidos próprios, os sistemas abstratos restritos a

facções da cultura, da língua e do saber; que se impõe como matrizes e agenciam

os demais usos como arquivo, tradição, projeções, conotações, contingências de

uso popular, licença poética etc. “É-nos odioso tudo o que simplesmente nos instrui

sem aumentar ou imediatamente vivificar nossa atividade – diz

Goethe”(NIETZSCHE, 2003, p. 5). É preciso, em nossa época “atuar de maneira

intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em

favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, 2003, p. 7). “Em meio à menor como em

meio à maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: o

poder-esquecer ou, dito de maneira mais erudita, a faculdade de sentir a-

historicamente durante a sua duração”. (NIETZSCHE, 2003, p. 9).

1.1 Pensando em Diferença

O que é o pensamento? Em que medida é possível dar ao pensamento novos

modos de expressão? Em Deleuze se põe de modo incessante essas questões. O

que vemos levantar-se em correspondência é que erudição, acúmulo, arquivo,

memória, paráfrase não pensam. O pensamento não preexiste ao signo, não há

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ideia abstraída das linguagens, esperando uma forma linguística para se exteriorizar.

Pensamento e o assalto do signo são únicos. Tal perspectiva propõe uma nova

imagem do pensamento, ou melhor, um pensamento sem imagem, capaz de

instaurar novos ângulos e percepções sobre a realidade, liberando outras

possibilidades de ver, ouvir, dizer. É aí que se propõe o diálogo com a linguagem

artística como problema fundamental, como linha de fuga em face das armadilhas

impostas por toda representação clássica do pensamento; o proceder da arte deve

atingir uma libertação do pensamento dos modelos cristalizados da representação,

que subordinou a diferença à identidade, favorecendo o processo de recognição, isto

é, de adesão ao pensar comum.

Deleuze discute as bases da imagem dogmática do pensamento em que o

pensamento possui formalmente o verdadeiro – o inatismo da idéia, o a priori dos

conceitos, o bom senso universalmente compartilhado; em que somos desviados do

pensamento por forças estranhas ao pensamento – o corpo, paixões, interesses

sensíveis – que nos levariam ao erro; em que para pensarmos verdadeiramente

precisamos apenas de um método. A reversão dessa imagem deve ser a tarefa da

filosofia; para ele Nietzsche o fez (MACHADO, 2009, p. 34).

A relação entre criação de conceitos e tradição filosófica, como a faz Deleuze,

consiste na apropriação do processo de pensamento de determinados filósofos

como condição de seu modo singular de filosofar que é a tentativa de construir um

espaço diferente do representado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel; fazendo

emergir a arbitrariedade e minando a força de pressupostos em se que acredita

estar fundada a filosofia, uma determinada imagem do pensamento. Projeta a

criação de conceitos que torne possível um novo pensamento, ou que tornem o

pensamento de novo possível, sem imagem, extemporâneo ou intempestivo na

acepção nietzscheana:

[...] conceitos que não são eternos nem históricos, mas extemporâneos e inatuais [...] considerando o extemporâneo mais profundo que o tempo e a eternidade. Mil Platôs identifica o geográfico ao extemporâneo, procurando dar um sentido à oposição

da geografia à história (MACHADO, 2009, p. 25)

Para se tornar possível o pensamento autônomo – não autômato – tem-se

como tarefa subverter o platonismo dualista propagado. E é justamente privilegiando

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uma potência abominável ao platonismo: o duplo sem semelhança, a cópia maléfica.

No entanto, torna-se inútil apenas restituir os direitos da aparência, conferindo-lhe

sentido por proximidade a formas essenciais. É preciso que essa dessemelhança

atinja uma positividade capaz de abolir a necessidade preexistente, sobrecodificada,

potência primeira não mais recalcada pela ideia, tornando-se a própria coisa. Não se

trata somente de virar o simulacro contra o modelo, mas abolir a “noção” de original

e derivado, modelo e cópia, a relação de semelhança que ignora o que se passa na

diferença legitimando como saber apenas o que configura identidade:

[...] subverter a filosofia da representação significa afirmar os direitos

dos simulacros reconhecendo neles uma potência positiva, dionisíaca,

capaz de destruir as categorias de original e de cópia. Há em Platão

uma relação de força entre modelo e simulacro, no sentido que a ideia

é pensada como uma potência capaz de excluir, barrar, rejeitar as

cópias sem fundamento [...] pois, se no platonismo a ideia é a coisa,

na subversão do platonismo cada coisa é elevada ao estado de

simulacro [...] valorizar o simulacro ao interpretar Platão é, para ele,

uma das maneiras de formular o projeto geral de pensar a diferença

nela mesma, sem permanecer no elemento de uma diferença já

mediatizada pela representação, isto é, submetida à identidade, à

oposição, à analogia, à semelhança. (MACHADO, 2009, p. 48-49)

Badiou reconhece em Deleuze essa investida contra os núcleos de irradiação

analógica e nos confirma a real necessidade de se aliar, constituir máquina, com

agenciamentos que deslocam o instituído bem como do seu “direito” à propriedade:

[...] no fundo, a filosofia só pode resistir ao mundo tal como é se souber discernir as experiências que são heterogêneas à lei deste mundo: as experiências políticas radicais, as invenções da ciência, as criações da arte, os encontros do desejo e do amor [...] daquilo que tem a estatura de um evento para o pensamento [...] Há filósofos que trabalham, de maneira muito diversificada, na invenção de tais quadros conceituais. Vou citar como exemplos Gilles Deleuze na França, ou Stanley Cavell, nos Estados Unidos [...] Que a filosofia seja uma filosofia daquilo que eu chamaria de singularidade universal. Quer dizer: daquilo que é, a cada vez, absolutamente singular, como um poema, um teorema, uma paixão, uma revolução; e ontudo, para o pensamento, absolutamente universal (BADIOU, 1994, p. 17-18).

É nessa aliança que surge uma procura na obra de arte e, em nosso caso

particular, na literatura, de uma instância de forças plenamente capazes de construir

verdades intensivas, de no seu finito plano engendrar infinitos, de fazer o

pensamento se empolgar e atuar livremente, discorrendo sobre sua superfície

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10

expressiva que encerra todo conteúdo, ser e gramática, que se encontram

desterritorializados dos solos despóticos.

1.2 Literatura faz a Diferença

Literatura entra com essa cópia imperfeita, porém positiva, com essa potência

de desconfigurar o estabelecido em seu plano de composição. Na filosofia de

Deleuze compõe, como o diz Machado (2009, p. 29), seu procedimento de colagem

em que, ao privilegiar os pensamentos que diferem, uti liza dos procedimentos

literários para produzir seu discurso diferencial. Toma a literatura como intercessora

do pensamento, valorizando-a como processo autônomo e singular capaz de retirar

o pensamento de seu estupor e atuar sobre a(s) realidade(s). Para este pensador a

arte não é um suporte para um discurso filosófico subjacente, mas uma força

pensante capaz de revirar os modelos do pensar sedimentados e impostos por

representações clássicas. Dessa forma, faz interferir no percurso do pensamento

humano não só a linhagem da história da filosofia – em que escolhe principalmente

certos filósofos da diferença não tão classicamente difundidos – mas também o que

chama de não-filosofia ( as artes, a literatura no caso).

Poder-se-ia, neste aspecto de sua fi losofia – se assim ainda se pode chamar

um pensamento que se quer nômade – tentar objetar que a literatura está de modo

servil a determinada filosofia. Entretanto, é o inverso: o que ele quer na linguagem

artística, literária, é sua potência singular que reverte os sentidos e, por isso, o

pensamento; arrastando-o para “fora”, a um ponto original de possibilidades.

Portanto, convoca, invoca a literatura em sua integridade física e espiritual, do jeito

que ela é: abolição do centro gravitacional do “é”: “[...] a experiência própria da

criação. E se pensar é criar, é porque faz nascer o que ainda não existe, em vez de

simplesmente representar o que já está dado” (LEVY, 2011, p. 128). Não viola,

portanto, com seu proveito tirado, a liberdade literária em nome de uma filosofia.

Esta é que faz uma concessão essencial, pensando em termos clássicos, pois se

conecta à não-filosofia e subsiste em seu plano. Deleuze distingue inclusive o modo

próprio de pensamento concernente às artes, à literatura, do modo propriamente

filosófico. Vemos em O que é a Filosofia? (2010) que, enquanto esta atua com

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11

conceitos (concept), aquelas atuam a partir de um composto de sensações:

perceptos e afectos:

Os perceptos não mais são percepções, são independentes do

estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais

sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são

atravessados por eles [...] O artista cria blocos de perceptos e de

afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve manter-se

de pé sozinho [...] O percepto é a paisagem anterior ao homem, na

ausência do homem [...] Os afectos são precisamente esses devires

não humanos do homem, como os perceptos [...] são as paisagens

não humanas da natureza [...] só a vida cria tais zonas em que

turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-la e penetrá-la em sua

empresa de cocriação [...] é preciso que o artista crie os

procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos, necessários a uma

empresa tão grande que recria por toda parte os pântanos primitivos

da vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193-194-199-200-205)

Alain Badiou, em Para uma nova teoria do sujeito (1994), faz uma discussão

sumária, porém precisa, sobre algumas tendências capitais de considerações sobre

a arte, principalmente na relação com a filosofia, que vem nos apoiar aqui. Distingue,

desde Platão, as tendências postas aqui em resumo:

didática: aparência e charme a uma verdade prescrita de fora, didática sensível com

objetivo educativo de uma verdade que a filosofia, ou os centros de saberes como

religião ou política, detêm por “excelência” – vemos aqui a base mais simples da

leitura alegórica, metafórica, simbólica, representativa.

romântica: somente a arte é corpo real do verdadeiro, “encarnação” , livra-nos da

esterilidade do conceito – tal supremacia, glória, a arranca da sua vivência direta

com os mortais, da sua participação.

clássica: Aristóteles esquiva-se da crítica platônica de que arte, mesmo para

utilidade educativa, seria incapaz de verdade pois mimética, aparência; e a articula à

“catarse”, transferência das “paixões” para a aparência artística, função terapêutica,

tratamento das afecções da alma.

Com relação às abordagens, diz Badiou:

O que caracteriza o nosso século neste seu final é, a meu modo de ver, que ele não introduz nenhuma nova tendência. Quais são, no século, os pensamentos mais fortes? [...] em matéria de arte o marxismo é didático, a psicanálise é clássica e a hermenêutica heideggeriana é romântica [...] objetivo de Brecht era criar uma “sociedade de amigos da dialética”, e o teatro era, em muitos aspectos, o meio para atingir tal sociedade [...] Heidegger expõe um entrelaçamento entre o dizer do poeta e o pensar do pensador, a

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12

vantagem fica, no entanto com o poeta. Pois o pensador é apenas o anúncio da virada [...] elucidação retroativa da historicidade do ser. Ao passo que o poeta, no que lhe concerne, efetua na carne da língua, a guarda do ser, daquilo que Heidegger chama de o Aberto. A psicanálise, enfim, é aristotélica, absolutamente clássica [...] ensaios de Freud sobre a pintura [...] Lacan sobre teatro ou poesia [...] A obra de arte faz desvanecer, em sua forma, a cintilação indizível do objeto perdido [...] provoca uma transferência porque exibe um objeto que é causa do desejo. (BADIOU, 1994, p. 23-24).

Indicando a saturação dessas três tendências Badiou indica um quarto laço,

em que, pelo exposto anteriormente, insisto em situar Gilles Deleuze, Guatari, bem

como os outros que retomam em discurso direto ou indireto livre.

A própria arte é um processo de verdade. O que quer dizer que a arte é um pensamento cujas obras (e não o efeito) são o real. E esse pensamento ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, quer sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à filosofia. O problema se encontra então na singularidade da arte. (BADIOU, 1994, p. 25)

1.3 O impessoal: força personífuga

O humanismo administra-“nos”(?) lições. De mil maneiras frequentemente incompatíveis entre si. Bem fundadas (Apel) e não fundadas (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas (Searle), psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas franceses). Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos um valor seguro que não necessita ser interrogado. Que tem inclusivamente autoridade para suspender, interditar a interrogação, a

suspeição, o pensamento que tudo corrói (LYOTARD, 1997, p.9)

Cada nome desses citados entre os humanistas fica de responsabilidade de

Lyotard o motivo de aí estarem. O que me interessa é esse questionamento do

homem enquanto um valor seguro. A entidade “homem”, essa corporeidade

autoinstituída se deu o direito de ser a medida de todas as coisas, como animal

racional, animal comunicante, com sua nomeação é “sujeito” que subjuga os

“objetos” nomeados. No entanto, ele tem se posto em crise enquanto entidade

absoluta; o que primeiro enfraqueceu foi a voz toda poderosa que lhe outorgou

discernimento e o poder de nomear, portanto, dominar. Dominar não só sobre os

outros seres, mas intra-espécie, capaz de fazer predominar nas propagações

discursivas o homem macho, ocidental, branco etc., entidades majoritárias que

também são postos em dissolução pelos Devires.

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Vários acontecimentos vêm minando as transcendências – sistemas ideais,

que preexistem aos fatos. A voz divina enfraqueceu e nos apegamos ao cogito,

“sujeito” por si pensante, mas ainda senhor e nomeador. Mas outros abalos

epistêmicos se fizeram e de algum modo nos assalta os confins do homem e como

veremos mais à frente, com atestado também de Derrida, é na linguagem, na

escritura, que isto tem se configurado. “Ao passar as fronteiras ou os fins do homem,

chego ao animal: o animal em si, o animal em mim e o animal em falta de si -mesmo

[...] Há muito tempo pode se dizer que o animal nos olha? Que animal? O outro”

(Derrida, 2011, p.15). Esta obra de Derrida tem por título O Animal que logo Sou:

como não vermos, já no título, uma referencia crítica ao cogito: “penso logo sou?”.

Sobre a questão específica do animal, trataremos mais adiante nas leituras

envolvendo o Devir-animal. Fiquemos por ora com a presença desse “Outro” que

nos olha nos atrai aos confins. Adiantemos ainda que esses liames, além dos

animais não falantes, são, enfim, moleculares, do biológico ao cósmico, e que de

algum modo se instalam como agenciamentos nos dispositivos de escritura, eventos

incorpóreos que atuam sobre as corporeidades constituídas como conteúdos,

alterando, no âmago dos discursos, as coisas.

A vergonha de ser homem: haverá razão melhor para escrever? [...] A literatura começa com a morte do porco-espinho, Segundo Lawrence, ou com a morte da toupeira, segundo Kafka [...] escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz. A língua tem de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo devir é um desvio mortal.

(DELEUZE, 1997,11-12)

Vejamos então em que se apoiam esses dispositivos de modo mais geral,

principiando pela neutralização do “sujeito” e aparatos discursivos que o acompanha

para, logo mais, nos situarmos nas abordagens singulares nos contos de Murilo

Rubião e especificarmos operacionalidades que configuram uma semiótica do devir.

Deleuze e Guattari concebem o plano de composição literária, os perceptos e

afectos, não mais como percepções e sentimentos de um sujeito individuado;

concebe uma linguagem que faz ruir a comunicação e abole não só os objetos

referenciais, mas o sujeito comunicante. Destitui a linguagem literária de seu poder

de dizer “eu”, neutralizando a soberania do sujeito em prol de um agenciamento que

individualiza por intensidades e afectos não subjetivos; a literatura diz respeito a

uma terceira pessoa ou à potência de um impessoal.

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As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o „neutro‟

de Blanchot). (DELEUZE, 1997, p. 13)

Não é generalidade ou uma individualidade:

[...] é singularidade no nível mais elevado, momento em que os personagens são arrastados para um indefinido considerado como um devir potente demais para eles [...] singularidade individual definida por afetos, potências, intensidades, que, às vezes, utilizando um termo do filósofo medieval Duns Scot, ele chama de

“hecceidade”. (MACHADO, 2009, p. 210)

Essa potência impessoal faz da linguagem literária única passagem, no

entanto passagem, não finalidade em si. Nega a consideração de que a literatura faz

sua linguagem voltar-se intransitivamente sobre si mesma, comentando-se somente

a si própria. Isto é apontado por Foucault como um equívoco em seu texto O

pensamento do Exterior (2006). A linguagem literária é privilegiada por ser o único

caminho, mas o que se almeja enfim é o que se atinge no seu limiar de tensão, o

impensável no pensamento, a experiência do fora, o espaço-tempo da diferença.

O que há de “impossível” na linguagem e que, por conseguinte, lhe pertence tanto mais estreitamente: seu fora. [...] O procedimento impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele devasta as designações, as significações, as traduções, mas para que a linguagem afronte enfim, do outro lado de seu limite, as figuras

de uma vida desconhecida. (DELEUZE, 1997, p. 33)

linguagem sempre em relação com o de-fora, não pode ser separada de um elemento não linguístico, mesmo se não há entre os dois uma relação de representação. Por mais indispensáveis que sejam os procedimentos de linguagem, são apenas condição, e devem se articular com um processo vital capaz de produzir visões e audições [...] criando novas possibilidades vitais, novas formas de existência [...] uma vida constituída por forças informais, intensidade, singularidade, virtualidade. (MACHADO, 2009, p. 210-211)

Desse modo na escritura o escritor entrevê e entremostra os interstícios, os

desvios da linguagem com um objetivo crítico e clínico: tornar sensíveis forças

invisíveis e inaudíveis oferecendo em perceptos e afectos, em seu plano de

composição, linhas de fuga; fazendo fugir as percepções e afeições cristalizadas em

matrizes que as tornam nada mais do que representações. Nas palavras de Deleuze

(1988, p.92)

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15

O fora concerne à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as forças remetem necessariamente a um fora irredutível, que não tem nem mesmo uma forma, feito de distâncias impossíveis de serem decompostas, através das quais uma força age

sobre outra ou é agida por uma outra.

A noção de força está em conexão compositiva com o pensamento de

Nietzsche, forças capazes de “arrebatar” a linguagem tornando-a a-histórica. O que

não pode ser confundido com “recorte estrutural” de neutralizar exterioridades.

Trata-se de suspender no instante da diferença as agências que fundam, difundem e

se autorizam a policiar o que dever ser “necessário”. Afirma-nos PELBART (2009, p.

107-109).

As forças constituem o Fora nas suas diferenças, o Fora é a diferença entre as forças, a diferença é o Fora das forças; longe de ser um jogo de palavras, essas permutações são o próprio Jogo que Nietzsche nos ensinou [...] É nesse sentido que uma nova relação da escrita com o Fora suscita um novo pensamento. Pois pensar para Nietzsche, Blanchot, Foucault, Deleuze e tantos outros não é uma faculdade, mas

abertura em relação com o Fora.

Enfim, é perceptível que se desemboca na questão da alteridade. Esse

“outro” está bem além do outro indivíduo, do próximo. É o outro do mundo, todas as

suas possibilidades virtuais presentes nas intensidades, no estranho; o insensível na

sensação, o impensável no pensamento.

Como palavra do Outro, como ser da linguagem, como plano de imanência, como relação com o fora, a literatura aparece verdadeiramente como uma experiência, pois, como afirma Blanchot, „somente há experiência no sentido estrito onde algo de radicalmente outro está em jogo. E eis a resposta inesperada: a experiência radical não empírica não é de maneira alguma de um Ser transcendente, mas a presença „imediata‟ ou a presença como fora‟. Deleuze, Foucault e Blanchot buscam na arte a possibilidade de outra forma de experiência que não se baseie no domínio da representação, mas no domínio do

sensível (LEVY, 2011, p. 128)

1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário

O pensamento da Diferença tem uma dimensão Crítica e Clínica que está

conectada diretamente com imagem Nietzschiana da medicina cultural. Pensadores

diferencias – dentre os quais os artistas são privilegiados – são médicos da cultura:

“alguém que analisa a doença ou os sintomas do homem e do mundo e avalia suas

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16

possibilidades de cura” (MACHADO, 2009, p. 218). A linguagem desterritorializante,

o momento de crítica, abre, a partir da a-significância, novas possibilidades de vida,

aos “pensamentos fechados uma corrente de ar fresco ” – verso de um poema de

Bob Dylan citado em Diálogos (DELEUZE; PARNET,1998, p. 13). Esta é a dimensão

Clínica, recuperação da saúde mental que só se consegue no limite da palavra

louca, num devir-louco da linguagem. É justamente por isso que a imanência

solicitada à literatura não é intransitiva é, antes, intransigente. Se desinstala a noção

de objetos e sujeitos comunicantes, é para denunciar a arbitrariedade tornada

Natural sob certos despotismos e os centros exógenos de subjetivação e apreensão

do mundo. Atinge-se, enfim, numa linha de fuga criativa, uma abertura ética por

excelência, um espaço-tempo originário de conceber e sentir.

O plano de imanência em Deleuze não é a pseudo-imanência do recorte

estrutural, separação em significante e significado, ou sistema ideal abstraído de

processos culturais em andamento. Pelo contrário, faz guerrilha com esses

dualismos. No plano de imanência expressão e conteúdo estão em defasagens e

tensões apenas para que se construa e se funde um novo plano de pensamento e

liberdade, mas são indissociáveis: o agenciamento coletivo é coextensivo ao ponto

originário de expressão; se esta protesta é para rasurar seu conteúdo territorializado;

para fazer nascer uma coletividade-conteúdo virtual, implicando nesta um povo por

vir. Em tal perspectiva a literatura contorna o âmbito da estética enquanto apenas

processo de formalização que expõe o processo literário apenas como desempenho

habilidoso de significantes ou uma forma parabólica de redizer o mundo; caminho

pelo qual a reputação da literatura para a sociedade em vários momentos é levada

ao dissabor de uma especialidade teórica por determinados estruturalismos.

Por sua trajetória teórica, da experiência estrutural a abordagens discursivas

mais amplas, nada como um Todorov para nos falar:

Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relações com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra em si [...] Permanece o fato de que a tendência que se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo ocupa uma posição dominante

no ambiente universitário (TODOROV, 2009, p. 39-40).

Já percebemos que essa vertente de estruturalismo vem sendo bastante

repensada e vemos reerguer-se um grande número de abordagens das relações da

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literatura com a história, a sociedade etc. No entanto ainda como linguagem

representante, refratável aos fatos, projeções da realidade; e não observada até aos

limites como uma realidade, como uma experiência, articulação de diferença

irrecuperável fora de seu plano.

Literatura aqui não é projeto, menos ainda projeção, é projétil na realidade.

Tanto quanto à ciência, à filosofia, à política, à linguagem artística pode ser

reivindicado seu espaço enquanto atitude com o mundo. No entanto, essa atitude do

pensar literário é a partir de seu modo singular e insubstituível, ou seja, não como

um conjunto de recursos formais a que podem se acomodar ideias filosóficas,

determinada teoria ou ideologia; mas como um ser completo em que seu raciocínio é

seu próprio corpo de sentido. Não se recorre à literatura como uma fonte documental

ou objeto, mas entregando-se a seu processo e potencialidades do saber estético-

intensivo, ou como em Barthes: saber-sabor (2001, p. 21). Contra toda a moralidade

classista, castradora, a literatura deve sugerir um povo que falta, abertura ética em

que “A sintaxe é conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a

vida nas coisas” (DELEUZE, 1997, p. 12).

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2. CRÍTICA EM DEVIR: LENDO A DIFERENÇA

A noção devir atravessa todas as camadas da atividade humana e seus usos

por Deleuze e Guattari não são restritos à literatura. É uma abordagem do mundo e

todas as modalidades de estruturação da diferença, colocando esta última como

positividade. No entanto, ao intervir na literatura, é inevitável que se instale na

discussão teórica das abordagens e contribua com aproximações e certas adesões,

ou com críticas, a leituras já consolidadas ou bem divulgadas, enfim, na construção

de uma perspectiva de leitura. O que mais interessa a esta dissertação é inquietude

que essa perspectiva gera, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como

irrevogáveis pela constante prática: a de que a linguagem e, extensivamente,

literatura, pressupõe dócil e amplamente representação e interpretação.

Este é um momento oportuno para precisarmos teoricamente a noção de

representação a que nossa perspectiva de leitura se opõe. Pelo que nos expõe

Deleuze, os elementos recorrentes da representação se configuram pelo menos em

quatro aspectos principais

identidade na forma do conceito indeterminado, analogia na relação entre conceitos determináveis últimos, a oposição na relação das determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto determinado. [...] os quatro liames da mediação. Diz-se que a diferença é “mediatizada” na medida em se chega submetê-la à quádrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da semelhança. A partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal), propõe-se “salvar” a diferença, representando-a, e para representá-la, relacioná-la às exigência do conceito em geral [...] A diferença deve sair de sua caverna e deixar de ser um monstro (DELEUZE, 2006, 57)

A mediação e suas muitas formas é o que sintetiza a representação. O Devir, a

instauração da diferença, vai sempre se indispor à mediação.

A mediação não implica apenas a alienação dos seus elementos face

ao seu enquadramento; permite modulá-lo. E quanto mais “rico” for o

termo mediato, ou seja, ele próprio mediatizado, mais numerosas são

as modificações possíveis, mais flexível o seu enquadramento, mais

flutuante o nível de trocas entre o seus elementos, mais permissivo o

seu relacionamento. (LYOTARD, 1997, p.14)

É preciso pensar a diferença e a produção a diferença em si, positivada, como

excedente criador. Teremos signos que se recusam ao regime significante, catástrofe na

circularidade, abrindo um processo imediato, sem interpretantes a perambular na

enciclopédia e nas árvores, uma ordem dinâmica

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19

[...] na ordem dinâmica , já não há conceito representativo nem figura

representada num espaço preexistente. Há uma idéia e um puro

dinamismo criador de espaço correspondente. (DELEUZE, 2006, 45)

A diferença só deixa, com efeito, de ser um conceito reflexivo e só

reencontra um conceito efetivamente real na medida em que designa

catástrofes: sejam rupturas de continuidade nas séries das

semelhanças, sejam falhas instransponíveis entre estruturas análogas

(DELEUZE, 2006, 65)

2.1 Teorias: enlaces e distâncias

Em contraposição à imitação, à reprodução, tal Devir encontra-se com a

problemática da mímesis em que, no sentido platônico, a arte – imitação da

imitação, principalmente as de má imitação – deve ser excluída da república. E é

tomando positivamente esse simulacro em dessemelhança que se faz guerrilha

crítica contra dualismos – centros abstratos de sentido próprio e periferias

representantes – na perspectiva do devir literário. É na valorização dessa cópia

defeituosa que surge uma silhueta de linguagem que não aceita mais simplesmente

representar ou comunicar em acontecimentos como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud

em que as palavras “Deixaram de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser

utensílio” (PAZ, 1996, p. 48); uso da palavra fora da necessidade (VALÉRY, 1999, p.

178); e se impulsionaram também muitos aspectos das movimentações

vanguardistas, antropofagias culturais, futurismos etc. Benjamin já nos expos uma

mudança cultural profunda em que as narrativas se empobreceram de experiências

a serem contadas, transmitidas, e se dão apenas à experiência pobre da própria

possibilidade de narrar, dá-se o próprio corpo narrativo como experiência, numa

tentativa de reconstrução de uma nova forma de narratividade sintética. Referindo-

se a Proust:

[...] trabalho de construção empreendido justamente por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privacidade da experiência vivida individual (Erlebnis) (BENJAMIN, 1994, p. 10)

A crise que se passa aí é a do texto que está se tornando corpo e não apenas

fantasma que representa os corpos; a superfície literária passa a ser experiência em

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20

sua materialidade, comportando potências e afectos que agem no mundo:

realidades em plural agindo sobre “a realidade” – refutando, repudiando no mínimo,

esse singular definido que pronuncia despoticamente seu caráter soberano. “Essa

navegação [...] acontece de fato [...] Quando a narrativa se torna romance, longe de

parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração”

(BLANCHOT, 2005, p. 07). O devir, em uma perspectiva de leitura, compõe-se com

esses aspectos da “experiência literária”.

Vimos e veremos por vários momentos que o procedimento literário compõe

uma máquina de guerra, faz conexões anômalas para provocar traumas nas

estruturas fixas e reverberantes, abrindo linhas de fuga. Apesar de expressões

diferenciadas, é perceptível que neste “devir” reconhece-se, participa-se, apropria-se

da preocupação com a estrutura literária transgressiva, intransigente que vemos se

manifestar em muitos textos, teorias e críticas. A potência transgressiva está na

base de alguns termos utilizados por Deleuze e Guattari nas abordagens literárias

como língua menor, intensiva, a-significante (não representativa), tendo como efeito

uma desterritorialização.

Ainda, muitas outras focalizações de teoria e crítica literárias atuam sem

grandes problemas com os tropos linguísticos, linguagem figurada, equilibrada na

dualidade conotação/denotação; arquétipos psicanalistas, alegorias sociológicas etc.

– todos teoricamente bem construídos com suas positividades legítimas de

pesquisa, por vezes com fortes tendências ideológicas. Nesse âmbito, o Devir em

Deleuze é bem mais radical: não admite o sentido metafórico, simbólico, alegórico,

arquetípico como componentes do Devir. Sua potência desapropriante não admite

ser conotação, copiloto de sentidos “próprios”, ser inquilino em um território

preestabelecido. Pretende-se literal. Se tal linguagem faz guerrilha contra

transcendências, revoga sobrecódigos, portanto não pode haver sentido próprio que

preceda o atual do devir literário.

Não se compreende isto partindo da dicotomia langue/parole, em que há um

sistema ideal e uma realização sempre imprecisa deste. É preciso fugir de tal plano:

o sistema linguístico abstraído da fala, do uso pragmático, negligencia algo que lhe é

coextensivo e essencial na sua efetivação real que são os agenciamentos coletivos

de enunciação, a base produtora e propagadora dos “sentidos próprios”, das

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21

denotações. Compreendendo que os significados constituídos não são “naturais”,

mas produzidos por vigências de um território, veremos então que o agenciamento

literário, como desapropriação semiótica, provoca com a sua fala, e imanente a ela,

insurreição e o surgimento, de uma nova língua; um uso “menor” autoprodutor de

seu sistema abstrato, para sabores anômalos, na corda bamba dos limiares, alaridos

e rumores:

[...] É uma mapa de intensidades. É um conjunto de estados, todos diferentes uns dos outros, implantados no homem no momento em que este procura uma saída. É uma linha de fuga criativa que só

significa o que ela é. (DELUZE; GUATTARI, 2002, p. 69)

Mesmo nos seus textos filosóficos, utiliza termos que o senso redundante nos

conduz apressadamente a interceptá-los como metáforas. Ao falar, por exemplo, de

ideias, utiliza termos como buracos negros num muro branco configurando um rosto,

nos esclarece:

Não é óbvio, o rosto da amada, o rosto de chefe, a rostificação do corpo físico e social... Eis uma multiplicidade, com pelo menos três dimensões, astronômica, estética, política. Em nenhum dos casos fazemos uso metafórico, não dizemos: são “como” buraco negros em astronomia, é “como” uma tela branca em pintura. Nós nos servimos de termos desterritorializados, ou seja, arrancados de seu domínio, para reterritorializá-lo em outra noção, “o rosto” a “rostidade” como função social [...] falamos literalmente (DELEUZE; PARNET, 1998, p.

26)

“Suponhamos que ler Deleuze seja ouvir, mesmo que por intermitências, o apelo do

„literal‟”, afirma François Zourabichvili na introdução de seu Vocabulário de Deleuze

(2009, p. 10) e é com palavras quase bruscas que encontramos na obra de Deleuze

em elucidação do inseto de Kafka:

O devir-animal nada tem de metafórico. Nenhum simbolismo, nenhuma alegoria. Também não é o resultado de uma culpa ou de uma maldição, o efeito de culpabilidade. Como dizia Melville a propósito do devir-baleia do capitão Achab, é um „panorama‟ e não

um “evangelho” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 69)

Deleuze é muito rigoroso em suas afirmações concernentes à linguística e

filosofia da linguagem; em toda a sua obra há investigações minuciosas sobre a

linguagem e dos centros de poder que irradia. Um sentido próprio – piloto, principal?

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22

– denotativo; e outros conotativos – copiloto, não principal? – supõe uma máquina

binária, outro dualismo e:

Não é verdade que a máquina binária só existe por razões de comodidade. Dizem que “a base 2” é a mais fácil. Mas, na verdade, a máquina binária é uma peça importante dos aparelhos de poder [...] se a própria linguística procede por dicotomias (cf. as arvores de Chomsky onde uma máquina binária trabalha o interior da linguagem) se a informática procede por sucessão de escolhas duais, não é tão inocente como se poderia crer. Talvez seja porque a informação é um mito e a linguagem não é essencialmente informativa [...] não é feita para que se acredite nela, mas ser

obedecida. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 32)

Tais palavras são de Claire Parnet, neste livro Diálogos que escreve com Deleuze.

Propõem como unidade mínima linguística não os fonemas e vocábulos; mas um

agenciamento coletivo. Portanto que determinado sentido de um vocábulo seja o

“próprio” não é uma necessidade, apenas considera-se a partir de um determinante

solo de forças. Em uma língua menor, tensionada para os limites, o sentido próprio é

a resultante de forças: o devir, o tempo da diferença, sempre sentido flutuante,

nunca significado precedente. Neste sentido o devir é literal, pois as palavras foram

enxertadas e soam uma estranheza como propriedade, deve fazer fugir e perder de

vista a matrix, viver intensamente em seu plano de composição.

Podemos aproximar outros exemplos de perspectivas que se sugerem a

literalidade como problema essencial. Em Introdução à Literatura Fantástica (2010),

Todorov sugere de que modo uma leitura alegórica pode ser um perigo ao

fantástico. É possível aproximarmos esse fato ao que ocorre com o Devir que

também não se dispõe à leitura alegórica. Assim como a literalidade do devir é

desencadeada em seu plano de composição, esse perigo alegórico indicado por

Todorov se oferece em detrimento do nível de consideração: “[...] não sobre a

natureza dos acontecimentos, mas sobre a do próprio texto que os evoca”

(TODOROV, 2010, p. 66).

Todorov nos expõe exemplos em que a evidência ou não, pelos próprios

textos, da presença da alegoria é que define o efeito do fantástico (implicando

portanto, se cabe ou não leitura alegórica). Há alguns declaradamente alegóricos

onde o nível de sentido literal tem pouca importância, as inverossimilhanças não

desconcertam, pois o foco está no sentido alegórico representado – como em uma

Page 35: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

23

catacrese em que nem se percebe que há duas falas. Há outros que dividem a

atenção evidenciando que o sentido deve ser o alegórico, mas que se dê certa

importância à película literal, mesmo que desbotada para deixar ver o sentido

alegorizado; neste caso, o plano literal não pode ser ignorado por completo, mas

não tem soberania; o sentido alegórico é indireto, mas claramente indicado: “[...]

temos aí um exemplo em que o fantástico se acha ausente não por faltar a primeira

condição (hesitação entre o estranho e o maravi lhoso) mas pela falta da terceira: ele

é morto pela alegoria, e uma alegoria que se manifesta indiretamente.” (TODOROV,

2010, p. 75). Em indicações que coagem a um mínimo de alegoria “o fantástico

encontra-se com isso bem enfraquecido” (TODOROV, 2010, p. 76). Já no exemplo

de Willian Wilson de Poe, um homem é perseguido por seu duplo e como desfecho o

mata em um duelo. Há ainda, indicações de alegoria, na fala do duplo à beira da

morte:

Tu venceste, e eu sucumbo. Mas de hoje em diante estás também morto, - morto par o mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias – e vê em minha morte, vê por esta imagem que é a tua, como assassinastes radicalmente a ti próprio.” Essas palavras parecem explicitar plenamente a alegoria; contudo, permanecem significativas e pertinentes ao nível literal. Não se pode dizer que se trate de uma pura alegoria; estamos antes em face de uma hesitação

do leitor. (TODOROV, 2010, p. 79)

Se observarmos a consideração de níveis feitas por Todorov, por ter havido a

fala do próprio duplo, este tem existência literal no plano da obra; se houver

indicação alegórica é sobre a morte de Willian Wilson original. Mas enfim: “É preciso

insistir no fato de que não se pode falar de alegoria a menos que dela se encontre

indicações explícitas no interior do texto” (TODOROV, 2010, p. 81).

Pelo que vemos, é essa permissão ou não no interior do texto, no nível de sua

diegese, que vai autorizar ou não a alegoria, que vai manter ou não o fantástico. Da

mesma forma, onde um texto se deixar ou mesmo agir para manter-se alegórico –

ao menos pelo que nos tem dito os pensadores em quem se baseia esta dissertação

– não produzirá Devir. É possível perceber, nessa hesitação essencial do fantástico

sugerida por Todorov, uma espaço-temporalidade em que os significados ficam

suspensos, e o que hesita é toda a racionalidade precedente capaz de explicar;

instaurando uma catástrofe semiótica em relação ao explicável, porém produtora de

Page 36: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

24

efeitos outros de sentido. Mostrando-nos, isto, mais uma perspectiva que leva em

conta o excesso incontrolável produzido, e que não se deverá dissolvê-lo em

irrealidade a menos que a obra, no seu plano interno, já o faça; caso contrário,

haverá completa violação. Sem confundir a leitura do Devir como o Fantástico em

Todorov, podemos vê-la como uma aliada para este aspecto de levar em

consideração antes de tudo o nível interno do texto para decidirmos se é literal ou

não “[...] o sentido literal não se perde. A prova disso é que a hesitação fantástica se

mantém (e sabe-se que esta se situa ao nível do sentido literal).” (TODOROV, 2010,

p. 75). Este teórico sugere então que nos instantes de fantástico, neste tempo da

hesitação, produz-se um efeito de sentido que só pode ser experimentado nessa

exata condição plasmada pela obra, sem remissão substitutiva na economia das

trocas (semelhanças e equivalências).

Convocamos, ainda sobre essa literalidade essencial, o testemunho de

Blanchot. Em O Livro por Vir (2005), no subtítulo Ao pé da letra, discorrendo sobre o

texto bíblico e questões envolvendo interpretação e, mesmo, tradução, nos

interroga: “Em que medida podemos acolher essa linguagem? ”. É-nos muito

conveniente a sua resposta, pois sintetiza a problemática das transcendências

impostas a leituras contra as quais a noção de devir investe; e, ainda, nos ajuda,

desde já, a problematizar os modos de remissão aos textos bíblicos que veremos na

leitura sugerida por Schwartz de Murilo Rubião.

Se ela é de natureza retórica, é porque sua origem é moral, ligada à obrigação implícita, mesmo para os incréus, de acreditar que a espiritualidade cristã, o idealismo platônico e todo o simbolismo de que nossa literatura poética está impregnada, nos dão direito de posse e de interpretação sobre essa fala, que teria alcançado sua plena realização, não nela mesma, mas no advento de uma boa nova. Se, o que os profetas anunciam é, afinal, a cultura cristã, então é perfeitamente legítimo que os leiamos a partir de nossas delicadezas e de nossas seguranças, sendo a principal, a de que a verdade está doravante sedentária e bem estabelecida.

A leitura simbólica é provavelmente o pior modo de ler um texto literário. Cada vez que somos incomodados por uma palavra mais forte, dizemos: é um símbolo. Esse muro que é a Bíblia se tornou, assim, uma suave transparência em que se colorem de melancolia as pequenas fadigas da alma. [...] Entretanto, se as palavras proféticas chegassem até nós, o que elas nos fariam sentir é que não contêm nem alegoria nem símbolo, mas que, pela força concreta do vocábulo, elas desnudam as coisas. (BLANCHOT, 2005, p. 121-122.)

Page 37: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

25

Essa literalidade essencial sugere a alforria da palavra enquanto um ser, uma

realidade com potências e temporalidades que lhe são próprias e plenamente

capazes de alterar o curso das coisas; um acontecimento por excelência a tudo

aquilo que cruzar o seu caminho. Veremos nisto que toda indicação do texto – e

seus seres de linguagem – como ilustração, representação, realidade segunda, são

vetados para nossa proposta de leitura. Esta deve localizar os agenciamentos de

significação territoriais e tão logo os procedimentos que os arrastam, desfiguram,

propõem algo de radicalmente Outro. Deve interpor a nós os afectos, essas “forças

concretas dos vocábulos”, num arranjo tal que atravessam as coisas travestidas por

outrem e as devolvem nuas, como Derrida perante o gato em O animal que logo Sou

(2011); como a Esfinge cala-se à leitura de Blanchot, “sem segredo, para além da

qual não há nada senão o deserto que ela porta em si mesma e transporta em nós”

(2005, p. 130). Perguntamos, em discurso indireto livre, com a voz de Blanchot: O

que nos diz isto? “Que é necessário tomar tudo ao pé da letra; que estamos sempre

entregues ao absoluto de um sentido, da mesma maneira que estamos entregues ao

absoluto da fome, do sofrimento físico e de nosso corpo de necessidade”

(BLANCHOT, 2005, p. 123).

2.2 Modus Operandi em Devir

“[...] pode o pensamento de Gilles Deleuze fornecer-nos subsídios suficientes

para uma leitura crítica do texto poético?” (MALUF, 2011, p. 21). Não encontrei

muitos trabalhos que especificam ou no mínimo discutem a possibilidade de

aspectos metódicos mínimos a operações como a noção de devir em literatura. Em

verdade esta noção é se afirma repulsiva a um discurso do método, mas não pode

abster-se de critérios. Que pudesse mesmo ajudar um texto científico nos moldes de

dissertação, encontrei apenas as considerações de Ana Costa Maluf. Embora meu

objeto não seja em verso, algumas questões levantadas a partir de sua leitura

poética de Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, não deixam de provocar

ressonâncias sobre o presente trabalho.

Justamente por não ter um modus operandi com precisas definições, seja por

ser um pensamento ainda não assentado comodamente em estudos literários, seja

por que o próprio pensamento não permite fixidez metodológica. Há tão somente

Page 38: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

26

vetores conceituais e os riscos de as leituras reconstituírem “ainda que em nome de

uma suposta „diferença‟ a mesma operação de uma antiga imagem do pensamento

em que a teoria funciona como um modelo transcendente a ser aplicado em uma

cópia” (MALUF, 2011, p. 22). É neste ponto que é preciso não só reconhecer como

afirmar em positividade que este trabalho se propõe a ler sobre o campo da

diferença, indicar potências informais, desconstituição dos sujeitos e objetos

constituídos; no entanto, sob as normas e técnicas acadêmicas, tendo o

compromisso conjetural, investigativo e explicativo; nenhuma pretensão de invalidar

teorias e ideias, mas pôr em discussão os aspectos criticados ou reafirmados ao se

acionar, como operação de leitura, o Devir sugerido.

Como seria uma análise dos contos de Muri lo Rubião sob tal sugestão de

Devir? Pode tal pensamento fornecer subsídios para esse fim? Por isso faz parte, de

modo expansivo, a exposição de pressupostos, bem como utilização do conceito

realizada na literatura.

[...] tentativa de experimentar um certo modo de operar com a filosofia da diferença [...] um certo modus operandi desse pensamento [...] Dou-me conta ao final, enfim, que toda esta leitura só se torna possível a partir do conceito de Devir que atravessa a filosofia de Deleuze. E ainda mais que certas concepções espaço-temporais são imcompatíveis [...] uma espécie de leitura “intempestiva” [...] com vistas a fabular procedimentos de escrita, encontrando ressonâncias poéticas e filosóficas que não se submetem à antiga ideia de filiação, influência, contextos históricos ou regionais [...] Não se trata, assim, de se descartar os fatos históricos, a memória voluntária, os estados de coisas passados, o tempo cronológico, mas antes, de fazer com que eles estejam em função deste outro tempo, que poderíamos chamar de devir, tempo do futuro, acontecimento, ou tempo da diferença [...] e as distâncias mesmas deixam de ser extensivas, empíricas, atuais, para se tornarem intensivas: forças diferenciais atuando virtualmente

sobre os corpos (MALUF, 2011, p. 22-25).

É chegado então momento de falarmos sobre o Devir diretamente como uma

operação, uma vez já bem discutidas as generalidades que o envolvem enquanto

posicionamento no mundo dos discursos. Apresentemos, portanto, um conjunto de

critérios e termos que são indissociáveis e cooperam em sua efetivação.

2.2.1 As minorias. Língua menor.

Teremos como vetor discursivo de Devir a aproximação, atração, por

coletividades bárbaras, não dominantes. O devir é sempre uma resistência de

Page 39: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

27

minoria, uma guerrilha. Minoria aqui não é quantitativa, mas no sentido de uma zona

que não é plenamente constituída ou aceita em geral, que não tem significação

difundida, matricial.

Todo devir é um devir minoritário. É porque homem é maioria qualitativa, modelo de identidade, entidade molar, forma de expressão dominante, que não há devir-homem. Devir é se desterritorializar em relação ao modelo [...] isso significa trair potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida – o que exige ser criador [...] isto significa que escrever é um processo, uma linha de fuga: tornar-se diferente do que se é, como também

pensava Foucault.” (MACHADO, 2009, p. 213)

É neste sentido que se aproxima da feminilidade, da criança, de outros povos

não ocidentais; mais ainda, do animal, dos outros reinos biológicos, minerais,

moleculares. E não é para recuperar as semelhanças com o homem, ou simples

oposições a ele que nos manteriam no mesmo plano de consideração. Mas para

compor com essa “outridade” uma linha expressiva anômala, dispositivo de escritura,

para outras visões e audições que não estejam prescritas pelas forças gramaticais,

oficiais, naturais, universais.

Como modo integral de atuação, o que concorre para desencadear devires

perpassa todos os níveis possíveis da linguagem, e se os separarmos é somente

para compreensão analítica. Assim, há agenciamentos semióticos que podem incidir

sobre todos os níveis da língua – dos fonéticos aos grandes discursos organizadores

– mas, de uns a outros, é de sintaxe que estamos falando. Se cada

microagenciamento na língua, a exemplo, o “Blablabel” no procedimento de Wolfson

(DELEUZE, 1997, p. 18) contribui para desestabilizar até as visões de mundo, tudo

é, imanentemente, sintaxe. O problema de escrever encontra-se em realizar um uso

menor da língua, em atingir uma língua estrangeira dentro da própria língua, levar a

língua a delirar, “como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do

universo” (DELEUZE, 1997, p. 9). E esse delírio age em todos esses níveis e tem

ênfases diversas, dependendo do que está em agenciamento de devir. Portanto, na

língua menor da literatura, encontramos agramaticalidades na pronúncia,

constituição de vocábulos, na conexão lógica, nos fundamentos semânticos, no

discurso e sintaxe narrativa, nos macrodiscursos ideológicos; todos juntos, ou um ou

outro, dependendo da investida do plano de composição, do que se põe como

“problema” literário. E se falaremos de como, por exemplo, Rubião cria outros

Page 40: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

28

tempos, outra sensibilidade, outros enfrentamentos políticos, outra semântica; é de

sua sintaxe, de sua língua menor que estaremos falando também.

Desse modo, quando abordamos os contos é para observar como se

estrutura a linguagem que faz fugir ao extemporâneo, ao inumano, no tempo

suspenso da diferença, irreconhecível à imagem matricial. A língua não é tida como

um sistema homogêneo, composto de invariantes estruturais; há várias línguas

numa mesma língua, com as quais o escritor poderá forjar a sua ao desequilibrar a

língua padrão, dominante, desestabilizar as formações linguísticas canônicas

através de um uso menor que a tensiona para os limites fazendo-a deixar de ser

representativa:

Opor um uso puramente intensivo da língua a qualquer utilização simbólica ou mesmo significativa ou simplesmente significante [...] abandona-se o sentido, será subentendido (DELEUZE; GUATARI, 2002, p. 43-45)

Fundamentalmente o que interessa Deleuze na questão da

linguagem literária é o estilo como uma nova sintaxe que possibilita

que o escritor produza um devir-outro da língua, um “delírio” [...] o

modo como o escritor decompõe, desarticula, desorganiza, sua

língua materna para inventar uma nova língua [...] novas potências

sintáticas, gramaticais – seria melhor ainda dizer assintáticas,

agramaticais – que lhe dê um uso intensivo, oposto ao uso

significativo ou significante [...] uma linha de fuga que revela e põe

em questão os mecanismos de dominação da língua através de uma

língua originária inumana ou sobre-humana que devasta as

referências, mina os pressupostos que permitem à linguagem

designar as coisas a partir de um sistema de convenções lógicas ou

gramaticais, funcionando neste sentido como agramatical [...] uma

língua intensiva, afetiva, vibrátil. (MACHADO, 2009, p. 207-209)

2.2.2 Dos planos: transcendente e imanente. Plano escritural.

Um plano é a base que sustém uma concepção de universo e sua expansão

funcional, significativa, conectiva. Deleuze distingue um plano transcendente e o

plano imante e neste inclui o plano de escritura.

O Plano transcendente organiza-se por um princípio oculto, que apenas se

pode inferir pelo que dá em sincronia ou diacronia; plano de organização (estrutural)

e/ou genético (desenvolvimento evolutivo); desenvolve formas e formação de

Page 41: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

29

sujeitos: “Estrutura oculta necessária às formas, significantes secretos necessário

aos sujeitos [...] Só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele

dá (n+1)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54). O plano de transcendência é

teleológico, analógico:

seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos [...] Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência, analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.). A árvore está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54)

Um Plano de vida, música ou escrita, será igual se estiver em função das

formas que desenvolve e dos sujeitos que forma; ele é para essas formas e esses

sujeitos. Quando comentarmos o plano de leitura representativo de certas sínteses

de leitura de Schwartz a respeito dos contos de Rubião, por exemplo, é deste plano

que estaremos falando.

Em mobilização contra a fixidez do plano de transcendência, há

acontecimentos que extrapolam e saltam de plano, migram para coordenadas

informais, que são estrutura e conteúdo indiscerníveis e que se autoconstroem. É o

plano de imanência, de composição: não há formas ou desenvolvimento destas,

nem sujeitos ou formação destes; nem estrutura nem gênese: apenas movimento e

repouso, elementos não formados, moléculas e partículas de toda a espécie,

hecceidades, afectos, composições de potências, individuações sem sujeito que

constituem agenciamentos coletivos. É um plano de natureza nua, não a Natureza

como palavra de ordem de classificação estatal. Este plano não distingue o natural

do artificial; por mais que cresça em dimensões nada perde em plenitude, não tem

dimensões suplementares àquilo que passa por ele, plano de proliferação, de

povoamento, de contágio por involução-devires.

É com essas potências da imanência que se compõe o plano de escritura,

sempre em direção do informe, projeto e produto indissociáveis, seu devir é sua

lógica.

Nathalie Sarraute propõe, por sua vez, uma clara distinção de dois planos de escritura: um plano transcendente que organiza e desenvolve formas (gêneros, temas, motivos), que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos); e um

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30

plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do “envoltório” das formas e dos sujeitos [...] afectos flutuantes, de tal modo que o próprio plano é percebido ao mesmo tempo que ele nos faz perceber o imperceptível (microplano, plano molecular). (DELEUZE; GUATTARI,

1997, p. 56)

Também separamos estes planos por necessidade explicativa. Mas eles não

cessam de se interporem. Os devires, de modos variáveis, sucumbem às forças

molares e se reterritorializam para novamente afrontarem um devir irresistível. O

plano de composição, de escritura, só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel.

Os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões

daquilo que ele desenvolve a cada vez; não paramos de passar de um ao outro, por

graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois; não paramos de reconstituir

um no outro, ou de deixar extrair do outro. É justamente por isso que as leituras

representativas se dão ao lado, oferecendo riscos; como também são insuficientes

pois negligenciam os devires, os recobrem, os evitam sob vários disfarces e

mecanismos culturais de contenção como licenças poéticas, ou modos simbólicos

de regulação e recuperação.

[...] o plano de organização ou desenvolvimento cobre efetivamente aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os órgãos e as funções são “estratos” ou relações entre estratos. Ao contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou composição, implica uma desestratificação de toda a Natureza, inclusive pelos meios os mais artificiais [...] Mais ainda, o plano de consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. (DELEUZE; GUATTARI,

1997, p. 61)

É uma grande lição prática de uma leitura pronta a perceber os dois planos, o

modo como Deleuze e Guattari (1997, p. 62) demonstram a respeito de Em busca

do Tempo Perdido uma defasagem que ocorre entre o personagem, que tem suas

considerações em um plano transcendente, de organização; e o narrador, que

transpassa as coisas com afectos móveis, devires. O personagem Swann, não para

de pensar em termos de sujeito, formas e correspondências: uma mentira é uma

forma cujo conteúdo deve ser descoberto e vira um policial amador. Enquanto que

para o narrador uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo, é emissão de

Page 43: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

31

partículas dos olhos que valem por si, o ciúme não é o mesmo quando se passa de

Swann ao narrador.

2.2.3 Realidade própria ao Devir: duração, intensidades, hecceidades, mapas.

Nos livros em que Deleuze, ou este e Guattari, explanam sobre o Devir, uma

das afirmações que se repetem é a de que não é a transformação de um ser em

outro que é Devir, mas é uma intersecção de afectos, verdadeira aliança2, contato a

partir de compostos de sensação, seres de sensação (DELEUZE;GUATTARI, 1992,

p. 207). Justamente, por ter a dimensão de um “ser” é que não pode se dá na

imaginação, sonho, fantasia, metáfora, representação, nem imitação; é real. O devir

não produz outra coisa senão ele próprio.

Mas de que realidade se trata se, por exemplo, o devir-animal não consiste

em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que homem não se torna

realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa? “É uma

falsa alternativa o que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o próprio

devir, o bloco de devir e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria.”

(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). Se um homem se tornasse de fato um animal,

um vegetal, uma molécula, seria a passagem de uma entidade molar a outra; de um

ser constituído a outro. Mas o Devir é quando um “eu” fascina-se pelo ser “Outro”,

pelas potências de que o Outro é capaz diante do mundo (o que nos fascina em um

cavalo ao vento, no rugido de um leão, Brás Cubas em um minicapítulo só para

formigas?); entrelaça-se a esses afectos compondo, na duração própria dessa

conexão afectiva, no tempo desse fascínio, uma entidade. Mas esta não se torna

uma entre as coisas individuais, as substâncias; mas uma modulação intensiva,

distensão de afectos de um a outro em latitude, uma terceira individualidade:

hecceidade. Essa zona intermediária é onde percorre o Devir (devir-cavalo, devir-

leão, devir-formiga, devir-fogo, devir-dragões); ela não se dá no tempo cronológico,

psicológico, representativo, nem no espaço físico; por isso uma realidade própria ao

devir: “ideia bergsoniana de uma coexistência de „durações‟ muito diferentes,

2 Do Latim, Alien: o estranho, o outro.

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32

superiores ou inferiores à „nossa‟, e todas comunicantes.” (DELEUZE; GUATTARI,

1997, p. 18).

Dizemos que o Devir é uma singularidade-acontecimento, e se tem forma é

acidental. Distintas das formas essenciais, sujeitos ou objetos, as formas acidentais

são suscetíveis de mais e de menos: gradientes que compõem uma terceira

individualidade que não se confunde com a do sujeito ou objeto; um grau de branco,

um grau de animalidade, graus de extensão em latitude constituída por outras

individuações componíveis. “Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade,

que se compõe com outros graus, outras intensidades para formar um outro

indivíduo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38). O sujeito (o leitor implícito, no

mínimo; personagens, lugares, instituições) participa mais ou menos da forma

acidental, mas esses graus de participação implicam modulações na forma,

vibrações que não se permitem mais propriedades do sujeito, tornando-se um ser

próprio, individuação intensiva por usucapião imediato, propriedades

desterritorializadas em um composto de sensação.

Os “corpos constituídos” (o homem/mulher, o tempo, a família, a sociedade, a

personalidade, o país, a pedra, o animal), entidades molares, correspondem a uma

longitude. Os devires são os desencadeamentos de hecceidades, intensidades em

atravessamentos, em latitudes e transversalidades, borrando as demarcações.

Assim vamos já começando a entender o uso do termo mapa:

[...] latitudes “disformemente disformes”, velocidades, lentidões e graus de toda espécie, correspondendo a um corpo ou a um conjunto de corpos tomados como longitude: uma cartografia. Em suma, entre as formas substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há somente todo um exercício de transportes locais demoníacos3, mas um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos, acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes

daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38)

É assim que esses devires distendem o tempo da narrativa e as

corporeidades constituídas (lugares, personagens, instituições) atraindo-os a zonas

de indiscernibilidade, de abertura, criando agenciamentos intensivos, perceptos e

3 Veremos por que a expressão “demoníaco” no item específico sobre o devir-animal.

Page 45: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

33

afectos, espectro plástico de mundos em alteridade: “É Ahab que tem as percepções

do mar, mas só as tem porque entrou numa relação com Moby Dick que o faz tornar-

se-baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais:

Oceano” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 200).

2.2.4 O molar e o molecular. Multiplicidades. Alianças e máquinas.

Observamos até aqui que o Devir, a partir de gradientes intensivos, implica

uma desterritorialização de entidades constituídas – formas substanciais, sujeitos

determinados. Sempre que se fala de entidades molares é dessas formações

constituídas, sujeitos e objetos, que está se falando. Ao contrário, o molecular

remete às multiplicidades, propriedades fragmentárias, sempre em vias de se

conectar com outras multiplicidades para compor anomalias, diferenças.

Dir-se-ia que, das duas direções da física, a direção molar que se volta para os grandes números e para os fenômenos de multidão, e a direção molecular, que, ao contrário, embrenha-se nas singularidades, nas interações e nas ligações à distância ou de ordens diferentes [...] macrofísica [...] na outra orientação, a da microfísica, a das moléculas que já não obedecem às leis estatísticas; ondas e corpúsculos, fluxos e objetos parciais que já não são tributários dos grandes números, linhas de fuga infinitesimais em vez de perspectivas de grandes

conjuntos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 369).

Deve-se, neste item, apenas esclarecer o uso destes termos molar e

molecular porque são constantemente mencionados nas citações. No entanto, não

se pretende aprofundar suas especificidades pois, na análise que se pretende, já

temos termos suficientes e que podem neste caso permanecerem como sinônimos,

afim de não tornarmos uma leitura inicial, de cunho dissertativo, que estamos

fazendo no âmbito do Devir, com uma complexidade por demais labiríntica. É que

estes termos estão diretamente ligados com a problemática do desejo, e podemos

nos esquivar ao menos, de discussões muito específicas que são travadas com a

psicanálise. Mas, de alguma generalidade devemos participar. Todo devir é

molecular, e nos confirma Machado (2009, p. 213): “Devir mulher é a produção de

uma mulher molecular [...] é o enlace de duas sensações sem semelhança que cria

uma zona de vizinhança, de indistinção, de indeterminação ou de indiscernibilidade

entre elas.” As intensidades que afetam as entidades molares são liberação de

partículas, troca fragmentária de propriedades da qual o único produto é a

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34

defasagem das formas constituídas em devir. Na plenitude do devir não se produz

outra entidade molar.

Na composição de propriedades fragmentárias montam-se as máquinas

desejantes: máquinas de guerra, máquinas de escrita, enfim, agenciamentos

maquínicos. Desejante é a força que impele em direção à diferença. Um maquinário

é quando partes desconstituídas se acoplam em blocos e compõem potencialidades

outras. Um devir-animal é uma máquina que pode ser de guerra, como o inseto de

Kafka que com o seu “piar” foge das significâncias, ou fica imperceptível na

escuridão do quarto, ou repugnante às uti lidades burocráticas, vivendo

molecularmente uma matilha e não a família estatal. Se estamos quase sempre em

referência a dois termos em devir é por facilidade explicativa. No entanto, os

acoplamentos são rizomáticos; conforme as velocidades e lentidões que se deparam

nos meios, promovem-se alianças.

Alianças são o meio de propagação. Não há filiação, mas contágio, simbiose,

pois não dependem de semelhanças, herança de caracteres, árvore genealógica; é

rizosfera: “vasto domínio das simbioses que colocam em jogo seres de escalas e

reinos completamente diferentes, sem qualquer fi liação possível [...] evolução entre

heterogêneos: „involução‟; „o devir é involutivo‟, a involução é criadora [...] bloco que

corre seguindo sua própria linha, „entre‟ os termos postos em jogo, e sob as relações

assinaláveis” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 19). E involução jamais é retrocesso,

são caminhos não assistidos por formas determinantes. Essa informe aliança

desterritorializa as figuras arbóreas, ordenadas por filiações e semelhanças. Aliança

com a qual Cortazar “coloca em questão as dicotomias identitárias e estanques da

humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu como um

devir entre multiplicidades” (CERNICCHIARO, 2011). Enfim, as multiplicidades não

são as multidões molares, estatísticas: população estatal, espécies animais,

vegetais ou minerais como classificação. As multiplicidades vão, nas minorias

humanas, em direção ao anonimato, sem sujeitos constituídos, e a partir daí um

animal nos põe em matilhas, em direção a parasitas, em direção a moléculas,

átomos, o fervi lhar do cosmo, ao imperceptível.

[...] em ambos os casos o investimento é coletivo [...] Mas os dois tipos de investimentos distinguem-se radicalmente, conforme um incida sobre as estruturas molares que subordinam as moléculas a si

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35

[...] o outro, ao contrário incide sobre as multiplicidades moleculares que subordinam a si os fenômenos estruturais de multidão. Um é investimento de grupo sujeitado, tanto na forma de soberania quanto nas formações coloniais de conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é investimento de grupo sujeito nas multiplicidades transversais portadoras do desejo como fenômeno

molecular. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 370)

2.2.5 Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível... Devir-expressivo.

Observemos primeiramente a constituição deste vocábulo composto Devir-

animal. O devir é uma força ativa que atrai e desestabiliza uma entidade molar, um

ser constituído. Portanto o segundo termo que compõe o vocábulo será sempre o

componente responsável por tal desestabilização. Neste caso específico, o animal.

No entanto, não é o animal molar (o objeto referente de um vocábulo) que vinga no

devir, apenas seus afectos são tomados em um devir-expressivo. Ou seja, o afecto

animal torna-se a escritura, escreve-se com esse afecto, é um animal de

intensidades que contagia o poder de designação da língua, fazendo com que tudo

que essa língua toque tenha o gosto do animal. Captura as potências perceptivas do

animal em um percepto escritural que, ao nos fazer ler-viver-animal, desinstala as

subjetividades e objetividades que trazemos – enquanto leitor, enquanto

personagem representante dos quadros políticos humanos, enquanto linguagem de

comunicação.

A meu ver é nesse devir-expressivo das forças minoritárias que deve se situar

a grande importância desse conceito de Devir para os estudos em literatura : é a

linguagem encarcerada compondo saídas com um rato que passa pelas frestas, com

a planta penetrando nas paredes a se nutrir do que parecia o fim da jornada.

Lembremos A Rosa do Povo (2003) de Drummond em que “Uma flor ainda

desbotada ilude a polícia [...] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e

o ódio”. Ou, Claro Enigma (2012), quando “um boi vê os homens”. Ou, ainda, como

veremos logo mais em Murilo Rubião, a angústia que toma conta do personagem

narrador de Teleco o coelhinho quando este pretende transformar-se em homem,

como se isto fosse acabar com a vivacidade fecunda “de um coelhinho cinzento e

meigo, que costumava se transformar em outros animais”. O devir-expressivo é o

devir-outro do animal, das moléculas. Já supracitamos que no circuito de devires

Page 48: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

36

não há devir-homem das forças minoritárias. Se há um devir-mar do humano, ao mar

também se impõe um devir, mas em música, em pintura, em escritura: aonde anda a

onda? Já se/nos perguntava Manoel Bandeira e lemos-sentimos que a onda anda na

silhueta sonora e rítmica desses versos. Enfim, no plano escritural, é quando a

escritura convoca os afectos inumanos em sua composição que nos põe em Devir,

“[...] do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais

como das subjetivações pessoais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 51)

Lembrança de um feiticeiro

“[...]enquanto Freud explica as coisas o diabo fica dando toque”

Raul Seixas.

Podemos distinguir, ante o animal, pelos menos três formas básicas de

agenciamento. O animal molar subtraído pela família, sentimental, de estima: meu

gato, meu cachorro etc.; onde é regressão, contemplação narcísica, visados pela

psicanálise como projeções de papai, mamãe, irmãozinho . O animal molar

interceptado pelo Estado, pelos grandes sistemas de classificação: de caracteres,

atributos, gêneros – tais como os grandes mitos divinos os tratam extraindo séries

ou estruturas, arquétipos ou modelos. E, enfim, os animais demoníacos, de alianças

moleculares: passagem às matilhas e afectos inumanos, multiplicidade, população.

É preciso ainda evidenciar que nenhum animal, a priori, pertence a esses tipos; é o

agenciamento discursivo, o plano de consistência que irá definir, “Haverá sempre a

possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como

um animal familiar [...] noutro extremo [...] tratado ao modo da matilha e da

proliferação, que convém a nós feiticeiros.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 22)

Antes de nos mostrar como o devir-animal percorre a máquina de escrita,

Deleuze e Guattari nos exemplificam os meios que propiciam um agenciamento

animal como aliança entre multiplicidades em que a literatura envolve-se, de algum

modo, pela potência transgressiva de que participa na modernidade. Dizem-nos que

são com os feiticeiros, nas sociedades de caça, de guerra, secretas, de crime, que

se fazem os contos, narrativas, enunciados de devir:

acarretam toda espécie de devires-animais que não se enunciam no mito e ainda menos no totemismo. Dumézil mostrou como tais devires

Page 49: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

37

pertenciam essencialmente ao homem de guerra, mas à medida que era exterior às famílias e aos Estados, à medida que conturbava as

filiações e classificações (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 24)

Resgata-nos rapidamente o problema da feitiçaria na Idade Média, pois os

feiticeiros sempre estiveram em posição anômala, nas fronteiras dos campos ou

bosques, assombrando as fronteiras, nas bordas ou entre vilarejos; “[...] o importante

é sua afinidade com a aliança [...] O feiticeiro está numa relação de aliança com o

demônio como potência do anômalo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 28). Assim

eram vistos sob as considerações teológicas. Estas distinguiam duas maldições

sobre a sexualidade: processo de filiação em que se transmite o pecado original; e

as potências de alianças inspirando uniões ilícitas, amores abomináveis, que

impedem a procriação, “[...] e visto que o demônio, não tendo ele próprio o poder de

procriar, deve passar por meios indiretos (assim, ser o súcubo fêmea de um homem

para tornar-se o íncubo macho de uma mulher à qual ele transmite o sêmen do

primeiro)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Assim a aliança guarda uma

potência contagiosa; patcto-epidemia na feitiçaria Kachin, apontado por Leach

segundo Deleuze e Guattari: “a influência maléfica é supostamente transmitida pelo

alimento que a mulher prepara” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Por isso a

expressão pacto demoníaco junto a devir-animal, ou mesmo às outras alianças.

E o que tem de importante nisso para a literatura é a borda afrontada por essa

aliança à medida que abre uma linha de fuga expressiva para fora das significâncias

de famílias e Estados; à medida que perturba as subjetivações, objetividades, as

filiações e classificações que agenciam a linguagem sob um imposto a priori. E aqui

nos aproximamos à figura do Outsider de Lovecraft “a Coisa, que chega e

transborda, linear e no entanto múltipla, „inquieta, fervilhante, marulhosa,

espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome”

(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 27). Deveremos sempre perceber o Anômalo,

Outsider, que surge como condição de aliança necessária ao Devir, é um encontro

de força irresistível, e pode desencadear muitos devires, mantendo aberta a

passagem, contágio, entre multiplicidades que pode ir cada vez mais longe, por

exemplo, do animal às suas micropercepções do som, da terra, do inimigo etc. A

linha de atração pode até tornar-se linha de abolição levando ao aniquilamento,

distensão molecular completa, como Achab precisava morrer em Moby Dick; ou,

Page 50: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

38

como veremos em Rubião, O homem do Boné Cinzento incendiar-se e o

personagem que o observa, que o tem por anômalo, encolher a ponto de virar uma

minúscula bolinha preta. Em Castañeda “[...] os afectos de um devir-cachorro, por

exemplo, são substituídos por aqueles de um devir-molecular, micropercepções da

água, do ar, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 32)

A lógica é simbiótica, por compatibilidades ou consistências alógicas, síntese

disjuntiva, cósmica, agenciados em um meio e todo esse conjunto tomado em um

devir-expressivo, tornando-se materialidade semiótica da escritura-realidade; não há

uma ordem necessária para essas passagens. No entanto, há certo critério. Parece-

me que em todo Devir, se não na proximidade direta de uma mulher ou criança,

estão implícitas uma feminilidade e uma infância que dão vazão à borda, a deixar os

animais, os vegetais, enfim, todo o marulho molecular, contar-nos, uma outra

história. O Devir-mulher e o Devir-criança têm o particular poder de introdução aos

devires, de desestabilização do discurso vigente, pois historicamente ainda

predominantemente masculino e adulto; onde até a mulher e criança como

entidades molares, em oposição a homem, e com suas funções estatais e familiares,

tem que devir-mulher-criança. Por isso, não é a feiticeira que contém um devir-

mulher, mas a feitiçaria: agenciamento de uma sensibilidade capaz de alianças

despreocupadas ou não pré-ocupadas. Assim vemos as princesas que conversam

com os animais, ou a aliança demoníaca de Eva que arrasta Adão ao desestabilizar

a palavra de Ordem, e as Sherazades; vemos as inúmeras crianças das narrativas e

poemas que nos abrem para universos magníficos em Exupéry, Carrol, Manoel de

Barros, Nietzsche, Guimarães Rosa; há sempre crianças e mulheres em momentos

decisivos dos contos de Rubião.

Voltemo-nos, enfim, para concluir direcionamentos para a operação com o

Devir. A aliança ou pacto são formas de expressão para uma infecção ou epidemia

como forma de conteúdo: em aliança com esse anômalo atinge-se a borda em devir,

contamina-se com o estranho. O devir é essa anomalia singular, significativa e real

como conteúdo. Fato que o afastará de ser uma remissão metafórica ou simbólica

que são integrados a vigências semióticas circulares. O Devir poderia até ser

engendrado devido a uma aliança anômala durante a construção de alguma

metáfora , mas o devir seria uma mais valia de código, um ser à parte da função

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39

associativa, situação em que um deve sobrepujar o outro dependendo do

agenciamento contínuo; pois devir não é aliquid stat pro alíquo, algo que está por

outro, não tem a dimensão de um representante)4. Para o nosso modus operandi

com os devires “[...] mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir

estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em

aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.

25). Assim, é possível divisar na citação a seguir essas formas de tomar o animal;

primeiro volume de Mil Platôs, na sessão “Um só ou vários lobos?”, comentando

uma análise de Freud sobre o Lobo e os Sete cabritinhos, se afirma:

[...] decidiu-se desde o início que os animais podiam servir apenas para representar um coito entre pais, ou, ao contrário, para serem representados por um tal coito. Manifestamente, Freud ignora tudo sobre a fascinação exercida pelos lobos, do que significa o apelo mudo dos lobos, o apelo por devir-lobo. (DELEUZE; GUATTARI1995, p. 54)

Como operação de leitura, essa mesma afirmação a respeito dos animais

também se fará para outros elementos, de tentarmos não decidir seus sentidos

previamente; ao menos tendo em vista que seus decalques subjetivos, estatais,

familiares, sociais estarão em desconstrução e não como síntese de leitura.

Estaremos utilizando esses termos explicitados e discutidos neste item “Modus

Operandi em Devir”. Para isso, seguiremos procedimentos parecidos com o sugerido

por Ana Costa Maluf, ao atuar nessa perspectiva, de uma leitura que surge de fato

no encontro, “[...] no encontro-leitura, o crítico forçado pelo encontro [...] com as

forças presente nele” (MALUF, 2011, p. 26).

Distanciando-se de uma interpretação, que toma o texto como representação;

propomos uma experimentação, tomando a literatura como acontecimento.

Trocaremos a pergunta o que isto quer dizer? por o que se passa aqui?, ou ainda,

como se alteram os corpos na implicância de tal ser? No lugar de encontrar sentidos

4 Umberto Eco em Semiótica e Filosofia da Linguagem (1991): p. 63, fala sobre a expressão

latina citada para a relação remissiva; na p. 191, a par de muitas definições de metáfora,

conclui que ela funciona sobre um tecido cultural, universo de conteúdo já organizados em

redes de interpretantes que decidem (semioticamente) da semelhança e da dessemelhança

das propriedades; e na p. 203, a partir de outros autores, como a ordem do simbólico está

fundada na lei, e ainda está como substituição de algo.

Page 52: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

40

representados, far-se-á cartografia, navegaremos em notação de um mapa intensivo

do texto: como este dispõe os corpos plenamente constituídos – substâncias e

instituições em longitude –; e as intensidades – agenciamentos, alianças,

procedimentos desterritorializantes – que atravessam, modulam em latitude e

transversalidade, a um ser Outro. Enfim, tentar indicar e discutir como o texto realiza

uma crítica performática – ou as faz não existir – de formas essenciais ou

substanciais, de imagens pré-fixadas sobre a sensibilidade e o pensamento em jogo.

Page 53: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

41

3. RUBIÃO EM DEVIR

É preciso manifestar desde o início, devido ao exposto até então, que a leitura

que aqui vai se configurando se põe em um plano distinto dos lugares em que se

assentam as leituras, enquanto representação sobre a obra de Murilo Rubião.

Portanto, de algum modo, não há oposição propriamente dita, mas uma interposição

em que as bases são outras. Pretendo situar a discussão dessa interposição

principalmente junto ao mais icônico trabalho interpretativo de Rubião, a saber, A

Poética do Uroboro (1981) de Jorge Schwartz, utilizando-o como exemplo entre as

leituras com evocações representativas. Considero-o uma brilhante varredura

elucidativa e, realmente, um empreendimento de amplitude e intimidade cuidadosa

que nos proporciona um pleno contato com a obra do escritor mineiro. Longe de

criticá-la em sentido negativo, pretendo expor os diferentes resultados, caminhos e –

na medida possível –, pressupostos, em justaposição. Ao sintetizar considerações,

concluir leituras e sentidos, a análise de Schwartz equilibra-se sobre a figura da

representação através dos arranjos arquetípicos, mitológicos, simbólicos,

metafóricos, subtextos, abrindo uma dualogia e até uma figura teleológica de um

desenvolvimento da obra em geral, o que nos evoca a descrição, por Lyotard, de

uma Metafísica do desenvolvimento que “[...] Assimila os acasos, memoriza o seu

valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento.

(LYOTARD, 1997, p.14), tornando a escritura uma projeção holográfica de sentidos

fundados alhures e representes. Assim, a grande criação de um escritor seria a de

conseguir representar tudo isso muito bem, esse nosso universo humano, com

remissões sutis, intertextos, máscaras. Ainda assim, a cobertura que faz da obra

muriliana é de uma abrangência tão precisa que há considerações de certos

aspectos que, a meu ver, atingem perfeitamente esse outro plano de leitura da não

representação, que não pude deixar de aproximá-lo ao âmbito do devir literário com

leve intuito, apenas colateral, de demonstrar sintomas dessa leitura não

representativa se mostrando em outros lugares – esses elementos de que me

aproprio estarão indicados nos momentos oportunos durante a leitura nos contos.

Concentremo-nos, por hora, nessas sínteses operacionais na representação.

Esta é tão evidenciada que é justamente no outdoor do livro, a quarta capa em que

encontramos enunciado:

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42

Jorge Schwartz desvenda nos contos uma narrativa fundada nas epígrafes que ilustram cada um dos textos. Elas constituem fragmentos bíblicos que condensam, de modo sintético e metafórico, os significados profundos da obra [...] Seja como questionamento ou como denúncia, a linguagem do fantástico não se limita no texto de Murilo Rubião a uma experiência lúdica de leitura. Ela serve, para o autor, de metáfora mascaradora de outros textos – o cristão, o social e o existencialista – sobre os quais repousa a obra.

(SCHWARTZ,1981, quarta capa, grifo meu)

Observemos esses “significados profundos” da obra já erigidos na Bíblia;

observemos ainda a preocupação em ressaltar que essa linguagem do fantástico

não se limita à experiência lúdica de leitura, “Ela serve”, devido à ênfase sugerida

implicitamente, para algo mais importante que é justamente essa potência

representativa que sempre supõe uma verdade anteriormente bem fundada. A

superfície da escritura em si, portadora por excelência da experiência lúdica é

implicitamente dita como limitante, numa quase futilidade talvez, se não se permitir

ter certa transparência em direção a esses sentidos ulteriores “subtextos encobertos

pela linguagem do extraordinário: o subtexto cristão, o subtexto social e o subtexto

existencial” (SCHWARTZ, 1981, p. 2). Ainda nessas proximidades afirma-se que se

está “Analisando o fantástico como sistema metafórico global (SCHWARTZ, 1981, p.

2)”. Diante disto, reconvoquemos o que já expusemos de Todorov anteriormente, no

assunto de uma literalidade essencial, de que o fantástico teria como condição o

nível literal e que intermitências alegóricas o enfraquecem ou mesmo o destroem.

Disto, Schwartz expressa perfeita clareza como vemos no capítulo 3 em que discorre

sobre O universo Fantástico: “Fundamentado num universo empírico, sobrevive

apenas na dimensão da escritura, tornando-se paradoxal pela sua capacidade de

nomear aquilo que é e não é ao mesmo tempo.” (SCHWARTZ, 1981, p. 55).

Nessas imediações nos interpõe uma série de problemáticas da

verossimilhança, pois a avaliação de um fantástico teria como ponto de referência o

repertório normativo do leitor. Para isso explicar recorre-se à distinção de Roland

Barthes de verossimilhança referencial (que tem um referente) e verossimilhança

discursiva (que tem apenas referência) que, se forem analisados do ponto de vista

do efeito de leitura, constituem uma igualdade. Parece que retornamos à distinção

platônica que identificava uma útil e outra maléfica; temos um confronto de um signo

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43

serviente a uma realidade primeira e um signo com referência autoconstruída, sem

transcendência (maléfico, inútil ao mundo de fora), e é aqui que reside o fantástico.

Nesta questão, o que se relaciona com a perspectiva de leitura a que esta

dissertação se propõe não é apenas reconhecer que é nesse nível literal (literatura

como exploração e experiência) que reside um potente efeito de sentido, mas na

positivação dessa literalidade essencial, ou valorização dessa cópia imperfeita,

duplo que tem a potência de ser indócil à semelhança apresentando outra realidade,

sendo articulação de sua Diferença, de um Devir. A superfície, a experiência lúdica

da leitura, é que implode essas estruturas profundas, despóticas e coercivas e que

têm horror a potências que realizam, num mesmo movimento, seu efeito de sentido,

sua estrutura abstrata e sua realidade absoluta - que tem sua espessura na História,

seu efeito positivo e não representativo. Concorda-se que há questionamento e

denúncia, e nem poderia faltar, mas não no fundo, ou sobrecodificado. Os

personagens e procedimentos, os afectos, reagem diretamente sobre esse cristão,

esse social, esse existencial que oferecemos à turba da leitura.

Com certeza esse efeito do “fantástico” se passa com sujeitos plenamente

constituídos (o leitor, por vezes ainda com personagens, arrastando-os de suas

certezas). A meu ver Schwartz brilhantemente detecta em Rubião aspectos que

poderiam muito bem participar deste plano de leitura como, por exemplo, quando

indica momentos em que se chega ao absurdo em forma pura (SCHWARTZ, 1981,

p. 23); o que é um instante de devir próximo ao que Deleuze, em A lógica do Sentido

(DELEUZE, 2011, p. 77), sugere nos paradoxos de Alice, non sens, no tempo do

insensato. Mas para além destes aspectos, o que deverá diferir, portanto, o plano de

leitura a partir da noção de Devir e o representativo – este sob os parâmetros até

então expostos – é não ter os sujeitos ou objetos constituídos – expectativas do

leitor, configurações de mundo exterior, sujeitos, enciclopédia – como medida, ou

partida, da significação; mas como alvo, ou indiferença, das forças informais, que as

porão em devir e à deriva.

Como também já expomos, teremos uma aventura humana diferente; não

como homem animal autobiográfico que afirma contar a história do mundo quando é

tão somente a sua história, como nos diz Derrida (2011) em O Animal que logo sou.

Diante disto os (an?)tropos perdem força, não teremos sistemas metafóricos nem

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personificação como produção de Devir, mas a forças personífuga. Se ainda há

figura, não tem a ver com retórica mas com uma figura imediatamente estética. Isto

não é anulação do humano, mas uma guerrilha contra o Humano tornado instituição,

portanto, centro propagador silencioso de significantes que impõem seu sentido

como modelo abstrato universal, os sentidos próprios, os próprios do homem [...]

denegação. Ela instituiu o próprio do homem, a relação consigo de uma humanidade

antes de mais nada preocupada com seu próprio, ciumenta em relação a ele.

(DERRIDA, 2011, p. 34); deslizaremos sobre linhas de fuga traçando novas

possibilidades, abertura originária para humanos por vir, ou tão somente, por virtual.

3.1 Teleco o Coelhinho

Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade. (Provérbios, XXX, 18

e 19)

Rubião, 2010, p. 52

Em “Provérbios”, na Bíblia, capítulo 30, há uma estrutura expressiva numérica

com o número “dois” e, mais esporadicamente, com o “quatro”. Mas, em

predominância, tal como um quarto ponto extrapola o plano matemático, erigido em

um tripé, há ainda uma estrutura bem destacada, como estribilho, na qual se

estrutura a epígrafe, em que três coisas atingem um ponto culminante e uma quarta

rompe completamente. Em tal expressão, o que nos afronta é uma força excessiva,

misteriosa, que interrompe a circularidade da estrutura, deixando como uma ferida

aberta, um quarto ponto que nos encaminha ao contínuo aberto. Isto ainda é só a

sugestão intensiva no plano de expressão.

Tentemos, para início, distinguir um conteúdo: diz-se da dificuldade de

entender o caminho da águia no ar, o da cobra sobre a pedra, o da nau no meio do

mar e, devido a sugestão expressiva, pior ainda, o caminho do homem na mocidade.

Mas algo na própria formação de conteúdo também sugere o incontido e aberto: o

ar, mar e a pedra não têm raias como guia e se rebelam contra a conceituação de

“caminho”; assim, erige um paradoxo que converge a fo rça expressiva e a de

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conteúdo em um sentido indiscernível, fazendo-nos perceber a mocidade como o

caminho sem caminho, o “aberto” como guia. No texto bíblico, de sapiência e

escolha, é um instante de enorme perigo para a maturidade ou para o governante.

Portanto, é o instante-pré-escolha, mas já em movimento, contendo a futuridade e

todos os passados que ocorrerão em detrimento das escolhas potenciais; de algum

modo, todas as potências estão em ato; ou, o único ato possível nesse instante é

caminhar sobre potências em aberto.

Sob esta leitura, tal é a atuação desta epígrafe: pôr-nos desde o início em

presença e leitura deste aberto, ponto conduzindo para fora do plano e da previsão –

é em continuidade desta atração ao ilimitado que encontraremos o narrador-

personagem ante o mar no início do conto. Quem quer matar, na cozinha, como um

“quadro possível”, escolhe a faca e não a cozinha inteira; ou até a cozinha inteira,

como um serial Killer, mas a recortando da função como parte da casa, e a fazendo

compor um abatedouro. Um recorte torna-se uma totalidade quando é interceptado

como componente para uma nova máquina. Uma epígrafe pode ser utilizada de

várias maneiras: tema, subordinação remissiva de significado etc. depende do

agenciamento que se move. Mas neste caso, recortou-se um elemento inquieto de

texto para compor uma nova máquina expressiva com o que há nessa parte. Não é

mais metonímico – parte pelo todo – mas, a parte como um todo. Se formos ao

próprio texto bíblico, veremos que há um sentido à parte do significado mais geral: é

inevitável um fascínio estético por esse conjunto “ave-ar, serpente-pedra, nau-mar”

que nos faz devir ventos, perspicácia e intempestividades como sentidos; faz com

que “homem-mocidade”, posto no fim, no ponto de desestabilização, reformule-se

em um devir-louco do caminho sem caminho; escolhas e futuros por vir, já

caminhando; pulsão em duas direções ao mesmo tempo; ato feito de potências: “[...]

que não se detêm nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se

ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado [...] na simultaneidade de uma

matéria indócil” (DELEUZE, 2011, p. 1). Tudo isto conectado, mas também rebelde,

ao conteúdo de perigo e negatividade a que se deve tomar cuidado, sugeridos como

significação mais ampla no texto bíblico.

Não é o texto cristão, como significação, que é recuperado; mas as potências

expressivas da águia no ar, da serpente na pedra, da nau no mar que são

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46

interceptadas a fazer atravessar um homem reinscrito, por essas expressividades,

numa intensidade significativa desconhecida que extrapola os planos, excesso

“significante” sobre um vazio significado: defasagem provocada: é aqui que o

espectro plástico da linguagem sugere sentidos virtualmente vivenciados mas não

significados, pois são estranhos à enciclopédia da cultura enquanto conhecido,

sendo a articulação de sua diferença: “[...] sejam quais forem as totalizações

operadas pelo conhecimento, elas permanecem assintóticas à totalidade virtual da

língua ou da linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 51).

A narrativa de Teleco o Coelhinho.

“- Moço me dá um cigarro?” Pede-se, interrompendo o “aberto” intensivo da

epígrafe, recupera-se a dinâmica urbana e faz fracassar o “mar” sob este

aborrecimento; o narrador-personagem encontra-se ante o mar, absorvido com

“ridículas lembranças”. É Já um confronto entre os diferentes planos de escritura:

plano transcendente que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens,

temperamentos, sentimentos) e o plano, por hora do “mar”, que libera as partículas

de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do envoltório

das formas e dos sujeitos; e é interrompendo estes afectos flutuantes que o

incômodo pedido lateja.

- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. - Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar. Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente. (RUBIÃO, 2010, p. 52)

O Estado psicológico do personagem-narrador está abalado e é tomado em impulso

violento. Por algo como o susto-fascínio de Alice quando o coelho vê as horas, ou

quando cai na toca sem fundo, este estado de sujeito é radicalmente interrompido

pela presença do coelhinho cinzento a interpelar delicadamente. O jeito polido de

dizer as coisas o comoveu, deu-lhe cigarro e afastou para dar visão ao oceano, já

conversavam como velhos amigos, o coelhinho lhe contava acontecimentos

extraordinários e aventuras. Enquanto pedido por um cigarro, sem a figura do

coelho, a urbanidade e a mendicância assumem o sujeito do pedido, interrompendo

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47

o “mar” que o consolava; aborrece e o resgata ao estado civil, e para tentar paz,

ameaça com a polícia. Mas, ao deparar-se com o coelhinho cinzento, tudo se torna

meigo e extraordinário, recupera-se e se intensificam os afectos flutuantes: o mar e

um coelhinho delicado, fantástico, de aventuras tamanhas.

Indaga ao coelho onde mora. Este afirma não ter morada certa, habitualmente

a rua. Reparando seus olhos mansos e tristes, convida-o a residir com ele. O coelho,

desconfiado se não gostasse de carne de coelho, transforma-se em girafa e mais à

noite seria cobra ou pombo: “[...] não lhe importará a companhia de alguém tão

instável?” (RUBIÃO, 2010, p. 53). Foram morar juntos.

No começo só alegrias e tensões mínimas, Teleco ajuda idosos e alegra

crianças, é um mundo reaberto para o personagem-narrador. Primeiro atrito grave:

discussão com a cunhada sobre negócios de família; mal humor e agravamento

devido à cena que encontra:

De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário. - O que deseja a senhora com esse horrendo animal? – perguntei aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos. - Eu sou o Teleco – antecipou-se, dando uma risadinha. Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pelos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho. (RUBIÃO, 2010, p. 55)

Os rituais que recuperam as figuras institucionais interrompem a corrente de

afectos flutuantes, de leveza e liberdade. Os animais, nessas instâncias não o

encantam mais. Teleco, sob a forma de canguru, e agora Barbosa, daí em diante,

seria “apenas homem”; o canguru força um humano como função;

independentemente de suas características físicas, será homem: usa roupas,

óculos, tem uma mulher. Todo esse funcionamento faz fracassar o plano de devir

em que o personagem-narrador o encontra: “cretinice de Teleco em afirmar-se

homem” (RUBIÃO, 2010, p. 55). Tinha até a esperança de que fosse mais um

gracejo, mas que não encontra mais teleco, apenas Barbosa. A complicação culmina

na expulsão deste “fi lho de um rato” (RUBIÃO, 2010, p. 56). O animal agora não é

mais prodígio, é recapturado pela linguagem comum de um irracional animal; há um

ceticismo na possibilidade de se empregar, dar um trabalho, a um canguru. O animal

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48

sofre, em grande parte, reterriotorialização personificado sob as instâncias

medíocres, um canguru que o comove pelo choro. Na verdade, o personagem-

narrador ainda se comove com Barbosa por este ter o domínio sobre os sentimentos

de Tereza. É uma comoção extrínseca.

Barbosa segue tomado por personificação, possui hábitos horríveis, cuspir no

chão, vaidade ao espelho, não tomar banho, usa objetos pessoais e íntimos do

anfitrião, maneira ruidosa de comer, anedotas sem graça, lisonjas exageradas,

“homem” repugnante aos olhos do personagem-narrador. Sua figura física também

repugna. Só a repentina atração por Tereza ainda o fazia suportar Barbosa. Tereza

diz-se convicta de que este é um homem. O Canguru aproveita-se do interesse do

anfitrião por Tereza e ainda zomba com firmeza, aproveitar-se de sua hospitalidade.

O personagem-narrador implora para que volte a ser coelho: “Voltar a ser coelho?

Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala. – Falo de um coelhinho cinzento e

meigo, que costumava se transformar em outros animais.” (RUBIÃO, 2010, p.57).

O amor por Tereza, pouca esperança de ser correspondido, pedido de

casamento. Ela responde que “Ele vale muito mais” – Barbosa. As palavras de

recusa de Tereza convenceram-no de que ela tencionava explorar de modo suspeito

as habilidades de Teleco. A partir de então, passa a atitudes agressivas ante os dois

juntos. O Canguru o evitava devido a seu comportamento. Chega ao cúmulo de

revolta ante Tereza e Barbosa dançando tango. Agarra o canguru pela gola, com

violência ao espelho: “É ou não é um animal?” (RUBIÃO, 2010, p. 57).

- Não, sou um homem! – E soluçava esperneando, transido de medo pela fúria que via nos meus olhos. À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia: - Não sou um homem, querida? Fala com ele. - Sim, amor, você é um homem. Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida enxotei-os. Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu: - Farei de Barbosa um home importante, seu porcaria!

(RUBIÃO, 2010, p. 58).

Não mais os vira. Tinha notícia de um mágico de sucesso chamado Barbosa,

acreditou ser mera coincidência. Esvai-se a paixão por Tereza e volta o interesse

por selos em horas disponíveis. Uma noite salta um cachorro à janela.

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49

Sou Teleco, seu amigo – afirmou com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia. - E ela? Perguntei com simulada displicência. - Tereza... – sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão. - Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi horrível... – prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel. Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar: - O uniforme... muito branco... cinco cordas... amanhã serei homem... – as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco

se metamorfoseava em outros animais. (RUBIÃO, 2010, p. 58)

Tosse nervosa. Fraca a princípio, avultava com mutações de bichos maiores.

Tentava exprimir-se em períodos curtos e confusos. Contínuas transformações. O

personagem-narrador suplica por calma e que parasse. “Não posso – tartamudeava,

sob a pele de um lagarto.” Alguns dias e o mesmo caos e metamorfoses.

Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede. Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, trissava. Por fim, já menos intraquilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava. Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO, 2010, p. 58)

Teleco decide ser homem, o que é repugnado pelo personagem-narrador.

Este desenvolve uma paixão por Tereza formando um triângulo amoroso, Teleco,

agora o canguru Barbosa com formalidades de homem, torna-se um inquilino

abusado. Acaba-se, por vez, por suplantar todo o extraordinário teleco, recuperando

as passionalidades, convivências conturbadas, ser um grande homem social (como

Tereza diz que fará de Barbosa). O enredo linear que se presta em partes ou se

recupera mais facilmente por representações sociais se detém aqui. O que ocorrerá

como desfecho é tão somente da outra história. Mas esta, o plano de devir, reluta

em meio a esta reterritorialização que ocorre a partir da volta para casa.

Page 62: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

50

A contrassignificação, o elemento paradoxal e as séries significante e significada.

Teleco é uma desterritorialização absoluta na configuração semiótica do

conto; quem é recapturado é o canguru Barbosa concorrendo à função de homem.

Nos espaços onde Teleco realmente figura, a linguagem está sempre nos limites, no

extraordinário, tendo como sentido irrefratável ou irrefletível, as intensidades que

suscita. Vemos isto na abertura e no desfecho com melhor nitidez. Teleco é excesso

e criador de excessos exprimíveis e não significados. É o elemento apenas de

linguagem, irremissível e com significado apenas virtual sugerido por seu corpo

significante. Todo o triângulo amoroso e sentimentos (ciúme, disputa etc.) se

prestam a representação de quadros vividos com significados já bem circulados

antes mesmo de estarem no conto. Com o advento de Teleco, esses quadros

encontram uma vazão anômala, incapaz de lhes fornecer explicação (predicados

instituídos); este personagem passa a ser a condição única do que se vive e se

sabe. Desse modo, os conflitos do triângulo amoroso não se fixam no motivo

“Tereza”; há um Teleco que foi perdido nos riscos de ser um humano funcional,

bifurcando o que impulsiona o desespero ante o quadro passional-conjugal – o

quadro simplesmente passional-conjugal é rompido. Como se esse instante narrativo

nos dissesse que nem só de pão vive o homem, mas de toda virtualidade capaz de

nos renovar; reiteremos ainda a epígrafe e o quarto ponto que extrapola os planos.

Ademais, o que é Teleco? O que é um coelhinho cinza que se transforma em outros

animais? E por que “é” um coelhinho cinza, se pode ser outros animais de qualquer

cor, de todas as cores juntas, e até espécies que não existem? Se não há predicado

previsto para esse sujeito, se não há uma resposta prontamente significada, é

porque é tão somente um conjunto intensivo de abertura e passagem,

multiplicidades sob um nome, potências em ato, uma esfera do Aleph.

[...] no mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave que as possuía todas e de espécie inteiramente desconhecida ou de raça já extinta. - Não existe pássaro assim! - Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos. (RUBIÃO, 2010, p. 54)

Page 63: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

51

Como vemos nesta citação, Teleco consegue até mesmo desdobrar sua

contrassignificância. Ele próprio, sendo um excesso significante sob a falta de um

significado, designando apenas a si; faz com que suas transformações não sejam

limitadas a cópias de seres existentes, mas ainda a seres sem classificação, figuras

sem designação. Neste ponto as metamorfoses de Teleco atingem o excesso no

plano da expressão, abrindo uma falta no plano do conteúdo: se não é factual tal

pássaro, sua metamorfose não é imitação, mas sim criação, encerrando em si o

sentido. Teleco, como elemento paradoxal, articulador da diferença, circula através

das séries heterogêneas da linguagem:

[...] tem como propriedade o fato de estar sempre deslocado com relação a si mesmo, „fora de seu próprio lugar‟, de sua própria identidade, de sua própria semelhança, de seu próprio equilíbrio. Ele aparece em uma série como um excesso, mas com a condição de aparecer ao mesmo tempo na outra como uma falta [...] ocupante sem casa. Determina como “significante” a série em que aparece como excesso, como “significada” aquela em que aparece em correlação

como falta. (DELEUZE, 2011, p. 54)

Se o elemento paradoxal se impõe como a condição de sentido da narrativa e faz

prevalecer seu sentido irrefratável, é para configurar um regime assignificante de

signos, em pré ou contrassignificância, autoprodutor, não passível docilmente de

interpretação, mas de atividade ou experiência a ser descrita:

[...] pré-significante [...] que conservam formas expressivas próprias ao próprio conteúdo, assim formas de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de dança, de rito, coexistem no heterogêneo com a forma vocal [...] contra-significante [...] procedendo a arranjos mais do que a totais, a distribuições mais do que a coleções, operando por corte, transição, migração e acumulação mais do que por combinação de unidades, um tal tipo de signo parece pertencer à semiótica de uma máquina de guerra nômade, dirigida por sua vez contra o aparelho de estado

(DELEUZE,GUATTARI, 2011, p. 71-73)

A personífuga

Sob estas mesmas condições, criação e excesso, é que se configura a

“criança encardida, sem dentes. Morta.” ao fim do conto. Mas um pouco antes,

vejamos como um conjunto intensivo perturba o repouso e põe tudo em fluxo-refluxo

até a vazão para esse excesso. Durante todo o processo, os animais fizeram sua

Page 64: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

52

parte na guerrilha, carregavam para si as responsabilidades de sentido irrefratável

em devires-animais, imediatamente reconduzindo os próprios do homem,

desapropriando-os, ao devir-cósmico da capacidade mágica de Teleco de conter

potencialmente todas as moléculas animais até mesmo os excessivos, inexistentes

na natureza catalogada.

Os devires sofrem ainda retração ante o canguru-homem em Barbosa,

personificado, reterritorializando tudo em volta e o próprio narrador-personagem na

circularidade das instituições. Mas, quando menos se espera, no salto de um

cachorro, todo um espasmo esquizofrênico pulula, contrai-se e estende-se,

momento em que as dimensões de grandeza ou pequenez perdem suas bases ante

a velocidade das mudanças; são percebidas e medidas intuitivamente pela lágrima,

pelo enfrentamento da boca e o alimento que se tornam incompatíveis com as

frenéticas metamorfoses. Agoniza-se e goniza-se, cria-se: a criança tal como se

apresenta, se é insucesso, é do ponto de vista do plano transcendente, de

formalização estável e circularidade significativa, de compatibilidade entre expressão

e conteúdo. Mas é a conquista difícil, sofrida, elemento vencedor que se fez fora do

plano humano instituído; e, se projeta um humano, é outro completamente por vir,

ilegível, incompatível, irreconhecível, não recuperável integralmente por símbolos,

nem oferecendo propriedades equacionadas na troca das economias metafóricas,

não desceu das árvores, signo desfigurado, encardido, sem dentes.

Quero retomar aqui um esquema de Schwartz, a respeito da epígrafe do

conto, que estende a circularidade significativa e recupera uma estrutura mítica.

(SCHWARTZ, 1976, p. 14-15)

Atribui-se ao homem na sua mocidade a metáfora fogo, completando os

quatro elementos do universo mítico e sugerindo “a procura” como um fazer

universal, na medida em que todos os elementos componentes do universo tornam-

se sujeitos da ação. (SCHWARTZ, 1976, p. 14-15). Problematizando o homem na

geração dos que buscam: homem, insensatos, cavalos, águia, cobra, nau, o põe

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53

justamente na vizinhança estranha do inumano molecular. Mas não é que o homem

catalise em si os outros elementos do universo – como se sugere. Antes, provoca

uma vazão para que o universo o catalise. Além do mais, na zona desses

elementos, o universo é de um caráter pré-significante, anônimo, sem deuses

individuados ou hierarquias, somente elemento e força; o que também não se presta

a representações definidas, mas apenas a atividades, velocidades e lentidões,

aglomerações e retrações, involuções como sentido, caminhos não assistidos por

formas determinantes. Essa informe aliança desterritorializa as figuras “arbóreas”,

ordenadas por filiações e semelhanças. Coloca em questão dicotomias identitárias e

estanques da humanidade e revela nossa incompletude, o ser-com que somos, o eu

como um devir entre multiplicidades. Portanto, a partir deste mesmo “modelo mítico”,

não se concorda aqui com a síntese:

Teleco, na ânsia de achar uma linguagem identificadora com o seu mundo circundante, assume as mais diversas formas: a última delas, a humana (criança morta) – símbolo de seu inútil e derradeiro esforço. As metamorfoses de Teleco se configuram então como uma verdadeira sintaxe espacial rotativa – símbolo da sua procura de identificação com o ser humano. Este processo de contextualização, como desejo de identidade com o espaço exterior [...] (SCHWARTZ,

1997, p. 42)

Não há em Teleco essa impotência de identificação com a forma humana, deveria

ser potente o suficiente para isso, transformava-se no que nem existia. Nem é

incapaz de identidade com o espaço exterior: era mágico, já fazia parte do cosmos.

O que há é a humanidade como problema, aprisionamento dos fluxos libertos.

Portador destes, Teleco não suportou os conter sob uma forma identitária fixa, de

linguagem circular, a casca do homem civilizado. Teleco talvez tenha se perdido,

nos caminhos de suas transformações no labirinto complexo humano, pensando

aqui em uma sugestão de Lyotard, de dois inumanos: o fundo inumano onde tudo é

potencialidade e renovação, onde temos uma dívida com a infância; e o civilizado,

do desenvolvimento, que eu me tentaria a chamar de desumano: [...] que mais resta

de “político” que não seja a resistência a esse inumano? E que mais resta, para opor

resistência, que a dívida que toda alma contraiu com a indeterminação miserável da

sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o outro inumano?

(LYOTARD, 1997, p.15). E, num limite intensivo entre as forças personífuga e

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personípeta, satura-se em um ser que é ato com todas as suas potências

implicadas; é este elemento imediatamente expressivo, casa vazia de significado,

que põe a vibrar, que cria, esse sentido da forma sempre insuficiente ou despótica,

sempre em busca – neste ponto concordando com Schwartz – do disforme,

desfigurado, encardido, sem dentes.

3.2 Simples Dragões

“Fui irmão de Dragões e companheiro de avestruzes. (Jó, xxx, 29)”

(RUBIÃO, 2010, p.47)

Em Os Dragões, onde se localiza e como se constrói o excesso significativo,

contrassignificante, a-significante; instantes em que o simulacro rompe o modelo e

passa a propor uma singularidade imediata como sentido? Neste conto não é tão

simples, pois há tramas muito próximas que se interpõem em jogo de forças: o plano

transcendente – representativo, em que as instituições significantes forçam a sua

circularidade, erigindo interpretantes e interpretados, universo já decidido alhures –;

e o imanente – linha de fuga que cria eventos embaçados de tal forma que não se

deixa refratar, sugerindo-se como única coisa a ser vista, ser do qual não se pode

extrair nada sem multilar, mas apenas participar do fluxo de seus afectos, coexistir

em seu mundo, experimentar. Se nos rendêssemos apressadamente ao primeiro,

poderíamos abrir uma cadeia infinita de associações representativas – assimilação

totalitária da diferença, tornando o texto uma sentinela guardando e portando o

codec – e negligenciaríamos alguma criação singular.

Vamos à narrativa, acompanhando o personagem-narrador. “Os primeiros

dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos

costumes” (RUBIÃO, 2010, p. 47). Poucos os compreenderam, foram alvo de muitas

suposições sobre seu país e raça de origem. O vigário (o velho gramático) afirma

que apesar da docilidade, eram enviados do demônio, por isso não permite ao

personagem-narrador, suposto professor, educá-los; e ordena que sejam encerrados

numa casa velha, exorcismada e isolada; nega-lhes a qualidade de dragões: “coisa

asiática de importação europeia” (RUBIÃO, 2010, p. 47).

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55

Um leitor de jornal falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se,

mencionando mulas sem cabeça e lobisomens. Já as crianças, “Apenas as crianças,

que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos

companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.” A

polêmica cansa e evitavam o assunto. Logo mais voltam ao assunto com o pretexto

de “aproveitamento dos dragões na tração de veículos” (RUBIÃO, 2010, p. 47), mas

houve decepção na parti lha dos animais devido ao número em relação aos

pretendentes.

O padre interfere novamente e “os dragões receberiam nomes na pia batismal

e seriam alfabetizados.” (RUBIÃO, 2010, p. 48) Narrador-personagem irrita-se: “São

dragões! Não precisam de nome nem de batismo!” (RUBIÃO, 2010, p. 48), perplexo,

o reverendo abriu mão do batismo e o personagem-narrador resigna-se à exigência

de nomes. Subtraídos ao abandono são entregues ao personagem-narrador, em seu

exercício de magistério, para serem educados. Contraíram moléstias, diversos

faleceram. “Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos” (RUBIÃO, 2010,

p. 48), os mais bem dotados em astúcia, fugiam e se embriagavam.

O Dono do bar se divertia e até dava bebida grátis, a princípio; logo mais,

enfadado negava-lhes o álcool. Para se satisfazerem os dragões viram-se forçados

a furtos. O personagem-narrador “acreditava na possibilidade de reeducá-los”

(RUBIÃO, 2010, p. 48); com a amizade do delegado sempre os retirava da cadeia

(roubo, embriaguez, desordem). “Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia

a maior parte de tempo indagando pelo passado deles, família e métodos

pedagógicos seguidos em sua terra natal.” (RUBIÃO, 2010, p. 48). Vieram jovens e

tinham lembranças confusas “inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício,

logo após a escalada da primeira montanha.” (RUBIÃO, 2010, p. 48-49).

Ainda havia o mau humor devido às noites mal dormidas e ressacas

alcoólicas. Continua-se o exercício do magistério, e a ausência de fi lhos contribuiu

para que o mestre “lhes dispensasse uma resistência paternal. Do mesmo modo,

certa candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a

outros discípulos”. Odorico, o dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades,

alvoroçado por saias “principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas.

As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo

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56

para viver com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49) O personagem-narrador, tenta destruir a

“ligação pecaminosa”, sem conseguir combater “[...] uma resistência surda,

impenetrável [...] palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel

e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava”. (RUBIÃO,

2010, p. 49). Junto à mulher o dragão Odorico é encontrado morto, rumores de tiro

fortuito e erro de caçador, mas o olhar do marido abandonado pode desmentir a

versão.

O carinho é transferido para o último dos dragões, recuperado e afastado da

bebida. “Nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência [...]

aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as

compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança . Carregava-os nas

costas, dava cambalhotas” (RUBIÃO, 2010, p. 49). O professor encontra sua “[...]

mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo,

compreendi que ele atingira a maioridade” (RUBIÃO, 2010, p. 50) O fato fez crescer

a simpatia que dragão João tinha entre moças e rapazes. Agora demorava-se pouco

em casa, sempre em grupo cobrado a alegrar soprando fogo, cheio de vaidade, toda

festa solicitava sua presença, mesmo as religiosas.

“Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município”

(RUBIÃO, 2010, p. 50), vem um circo com eventos extraordinários e um homem que

engolia brasas. Jovens interrompem o ilusionista e anunciam que têm coisa melhor.

Sob a réplica desafiante do circo João desce e vomita fogo. Recebe e recusa

propostas para trabalhar no circo “[...] dificilmente algo substituiria o prestígio de que

desfrutava na localidade. “Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito

municipal” (RUBIÃO, 2010, p. 50).

Várias são as versões sobre a fuga de João, dentre elas, amores por uma

trapezista – talvez estratégia do circo para seduzi-lo –; e também se iniciara em

jogos e retomara o vício da bebida; ao fim, o narrador-personagem-mestre: “Seja

qual for a razão, depois disso muitos dragões tem passado pelas nossas es tradas.

“E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que

permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas,

encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos” (RUBIÃO,

2010, p. 51)

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57

Em “Os Dragões”, num volume quantitativo, poderíamos dizer que o plano

representativo-humano predomina: temos todo um cenário com sujeitos da variada

atividade humana: o padre, o professor, o delegado, a esposa, as crianças, a

educação, a igreja, o entretenimento (circo), a cidade e toda a civilidade. E o que

fazer com a trama que treme a contrapelo: abrupto aparecimento de Dragões de um

modo “a-histórico desprovido de contexto” (SCHWARTZ, 1981, p. 39) e a

insalubridade, a apatia e o sumiço ao ser inscrito nessa ambiência humana.Temos

uma problemática da alteridade, justamente onde os devires se acendem.

Mas a alteridade também não cessa de ser subjugada, arquivada e

redistribuída – e é intrinsecamente na linguagem que isto se dá – na economia de

equivalências e semelhanças, onde a diferença é subordinada à identidade;

teríamos como representações, por exemplo, (alteridades recapturadas) as

contrastantes civilizações (bipolaridades ou multipolaridades da geopolítica,

colonizador-colonizado), o marketing estético e as demasiado morais “belezas

interiores” (belas e feras, feio por fora, bonito por dentro), os mitos dos contrários, o

patinho feio (lido como desenvolvimento da feiúra em beleza) etc. Mas não teríamos

ainda uma alteridade radical, fora dessa apropriação global-capitalista das

diferenças que as devolve como produto e consumo, agenciando os sujeitos, e as

subjetividades, no momento mesmo em que falam, veem ou ouvem. Tal alteridade,

ficando mais distante ainda de escapar a um fundo mais imperceptível e implacável,

poderoso centro irradiador, aquela autoridade dada por Deus a Adão, o eixo

humanístico de classificação “[...] esse homem da gleba, criado como réplica de

Deus [...] recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve para

obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, em verdade, seu poder

de domar”. (DERRIDA, 2011, p. 35); ou mesmo em recapturação tropológica, em

codecs metafóricos, alegóricos, realizando com esses dragões o que Derrida temia

fazer ao gato:

[...] a reapropriação antropomórfica teria começado, uma domesticação mesmo poderia já estar em ação se eu cedesse à minha própria melancolia; se me engajasse, para escutá-lo em mim, a sobreinterpretar o que o gato poderia assim, à sua maneira, dizer-me, [...] sugerir ou simplesmente significar em uma linguagem de traços mudos, isto é, sem uma só palavra [...] desejo assim confessado de escapar à alternativa da projeção apropriante e da interrupção cortante

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58

[...] não estou disposto a interpretá-lo ou a senti-lo em negativo (DERRIDA, 2011, p. 40)

Mas há um Devir-Dragões a fender intervalos fatais nessas circularidades, a

interromper – atrevendo-se a criar – a base humanística semio-despótica com a

emissão de um signo excessivo: dragões fora do catálogo, que por mais que se

tente identificá-los, acabam traindo a tradição dos dragões mitológicos, bem como

fazendo vacilar, com certos afectos, a estabilidade das instituições que os

cooptaram por vários momentos e, ao final, deixam os humanos por ver apenas sua

partículas desejantes seguirem afetadas com os dragões.

Em inversão a um conhecido colonialismo, no conto, os homens da cidade

não vão ativamente até a alteridade (os dragões); esta é que chega de surpresa,

pondo-nos (o narrador e o leitor implícito que implica a nós do lado de fora, deixando

tudo em coexistência) em situação de passividade e um mal-estar sobre o que

concordo tranquilamente com o que diz Schwartz: “A necessidade de justificar

racionalmente a origem dos Dragões torna-se um imperativo, já que a sociedade

nega a condição de indivíduo ao ser a-histórico desprovido de contexto social”

(SCHWARTZ, 1981, p. 39). Esta passividade e mal estar inicial, esse ataque-

surpresa de uma a-historicidade repentina é o primeiro golpe do devir que se

configura, é o delirante encontro com o anômalo-dragão, elemento de fronteira que

faz Deleuze sempre lembrar de Lovecraft com o Outsider, coisa que transborda. É

justamente na borda da cidade que se passam os instantes decisivos do Devir-

Dragões – como nas bordas do conto, início e desfecho.

O anômalo está sempre na fronteira, sobre a borda de uma banda ou de uma multiplicidade; ele faz parte dela, mas a faz passar para outra multiplicidade, ele a faz devir, traçar uma linha-entre. É também o “outsider”: Moby Dick, ou então a Coisa, a Entidade de Lovecraft, terror. (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 56)

Mas como o disse Schwartz, a necessidade de racionalizar é imperativa, essa

“vocação para extrair o indeterminado dando-lhe forma, e que desta acção não pode

deixar de sair triunfante” (LYOTARD, 1997, p. 12). E a partir daí, temos o embate

entre devir ou ficar. O primeiro contra-golpe a essa Coisa intempestiva é o do

vigário, velho gramático, afirmando serem enviados do demônio e não permitindo a

sua educação; segue-se então o processo cadastral: o leitor de jornal que falava em

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59

monstros antediluvianos; o povo benzendo-se, abrindo seu arquivo com mulas sem

cabeça e lobisomens. “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os

nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões.

Entretanto, elas não foram ouvidas.” Logo mais, dedicaremos bastante ouvido para

elas; fiquemos com as outras considerações.

As considerações do vigário, a do leitor de jornais com uma fraca formação, e

a do povo com seu ato de benzer-se, corroboram a vestir o dragão com a figura

demoníaca. Deleuze e Guattari põem os estranhos devires como pactos

demoníacos. Afirmo que ironicamente, pois não recuperam aí a figura mitológica do

demônio, mas o fato de que assim eram identificados pela doutrina religiosa, devido

à aliança herege que se realiza – o feiticeiro, as bruxas, com os animais, os

vegetais, com os elementos químico-físicos etc. –, ou seja, traem a palavra de

Ordem; compõem novos sentidos não subalternos ao centro de verdades das

catedrais e castelos. Nestes lugares, dessa formam, localizam-se forçosamente o

elemento estranho em uma origem de registro, detendo, portanto, os protocolos

autorizados de julgamento (padre/déspota, codec).

Logo depois, vem a apreensão dos dragões pela utilidade possível, pela

economia e técnica: animais domésticos e de trabalho, aproveitamento dos dragões

na tração de veículos – com insucesso devido ter poucos dragões para muitos

pretendentes. Por fim, decide o vigário, a apreensão mais grave do estranho:

“receberiam nome na pia batismal e seriam alfabetizados” (RUBIÃO, 2010, p. 48). O

narrador-personagem-mestre irrita-se: “São dragões! Não precisam de nome nem de

batismo!” (RUBIÃO, 2010, 48). Reação de um espírito já fascinado com a alteridade

do dragão e que resiste a algo que faça cessar esse devir. Perplexo, o reverendo

abriu mão do batismo; o outro, cede à exigência de nomes. Segue-se então a trama

da nomeação, educação e participação social: “Segundo os homens (integrados e

representativos da sociedade) os dragões não podem subsistir no meio social sem a

palavra. Justifica-se então a necessidade de atribuir-lhes nomes e sua posterior

alfabetização” (SCHWARTZ, 1976, p. 39). Ainda na leitura de Os Dragões já

mencionamos esse domínio a partir da nomeação, desígnio de Adão por Deus, junto

à citação de Derrida. Este, como no questionamento com o gato, ainda tem muito a

nos dizer sobre essa dominação:

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60

é como se o gato lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer uma só palavra, o relato terrível da gênese. Quem nasceu primeiro antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O sujeito? Quem continua muito tempo sendo o déspota? (DERRIDA, 2011, p. 39)

Os dragões participam da sociedade, bebidas, namoros, travessuras fora da

lei; agora com identidade, cadastrada sua pessoa física; e estão sendo alfabetizados

pelo mestre que não descola de sua fascinante presença – o nome fora aplicado,

mas o batismo fora impedido, mantendo a ligação “demoníaca”. O narrador-

personagem-mestre encontra os olhos dos dragões de um modo delirante “certa

candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a outros

discípulos” (RUBIÃO, 2010, p. 49) Encontro este perigoso, pois é um dos instantes

em que a instituição e a traição da fixidez duelam mortalmente. Um ou outro: “teatro

de ressentimento e culpabilidade. [...] Em seu rosto e em seus olhos sempre se vê

seu segredo” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 60), e o devir é neutralizado, o Outro é

subjetivado, contido, com toda a carga da humanidade de pecados e culpas. Ou

então

Por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo

inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo qualquer lógica

está ausente... O olho liberado de si, não revela nem ilumina mais, ele

corre ao longo da linha do horizonte, viajante eterno e privado de

informações (Henri Miller. Tropique du crpricorne. Chêne, p.177 in:

DELEUZE/PARNET, p. 59)

Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito “animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar. E tudo pode me ocorrer, eu sou como uma criança pronta para o apocalipse, eu sou o próprio apocalipse, ou seja, o último e o primeiro evento do fim, o desvelamento e o veredito. Eu sou o apocalipse, eu me identifico a ele correndo-lhe atrás [...] atrás de toda a sua zoologia. (DERRIDA, 2011, p. 31)

E então é o devir-dragões que continua a agir, mesmo com toda forma de contenção

realizada, como um presságio indeterminado de liberdade.

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61

Quando sugere-se a composição “mestre-personagem-narrador”, é para

tentar registrar um delírio no discurso narrativa deste conto, que é a bifurcação do

personagem que ora é personagem-mestre e suas ações estão enquadradas no

quadro social de colonização da alteridade-dragão; ora é narrador-personagem, com

um discurso anti-mestre, contra sua funcionalidade, este que não participou dos pré-

julgamentos no início sobre os dragões e que ouviu as crianças em sua voz frágil e

sem vez, fascinado pela singularidade dragonácea (interessante termo cunhado por

Schwartz (2010, p.39) para referir a alteridade dos dragões não inferida da

significação dos humanos da cidade). Mas mesmo esse narrador fascinado, mesmo

raramente, ainda sucumbe por instantes ao mestre, e o deixa afirmar que Odorico, o

dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades, alvoroçado por saias

“principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres

achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver

com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49). Esse instante narrativo, ele mesmo, é imbuído de

hierarquia familiar, “irmão mais velho”; de violência à alteridade naturalizando

comportamentos adquiridos, “vagabundagem inata”5; o mestre ainda tenta destruir o

que testemunha como relação pecaminosa de Odorico com a mulher de outrem. O

narrador não encontra mais os olhos do dragão que direcionam em sorrisos para a

mulher. E neste ponto, junto com o narrador, perdemos de vista o devir -dragões que

vemos completamente afogado na circularidade social – ainda assim, com infrações

penais. Odorico é encontrado morto, de tiro, sugestivamente passional.

O carinho do mestre é direcionado para o último dragão, que é recuperado de

vícios sociais e dedica-se aos estudos. Aqui ocorre uma trama familiar e uma nova

complicação com o devir. Segue o narrador a respeito do dragão João, sugerindo

que nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência, “[...]

aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as

compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança. Carregava -os nas

costas, dava cambalhotas (RUBIÃO, 2010, p. 49). O devir mostra sinal de vida. Ao

mesmo tempo em que é inscrito na instituição familiar, ainda porta uma vazão

anômala, demoníaca; a anomalia ocupa hereticamente, e positivamente, o lugar do

5 Neste fato, até revemos, por exemplo, a fofoca preconceituosa que se faz no Brasil sobre a

preguiça “inata” do indígena.

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filho, o lugar da descendência. A árvore é desviada, trai a raiz, cria um vínculo

lateral, rizomático, conjunção disjuntiva, proli feração sem filiação. O mestre tem

esposa, mas não filhos; ouve as crianças e é o único a testemunhar a

indeterminação insistente dos dragões. As dragonidades se agravam e a esposa

alerta que João cuspira fogo. Narra-se que sua maioridade chegara e a reapreensão

dos atributos dragonáceos se opera novamente, a simpatia entre as moças e

rapazes aumentam a se ver, nesse fogo, entretenimento e pirotecnia, showman,

mesmo nas festas religiosas. Inscrevem-no no jogo das disputas ao abrir um desafio

entre seu atributo dragonáceo – traduzido, abduzido em artifício, ilusionismo,

“costumeira proeza de vomitar fogo” – e o ilusionista do circo. O circo gostaria de

contratá-lo, mas houve recusa, nada superaria seu prestígio e até planejava futuros

– o que poria totalmente abaixo sua preciosa a-historicidade –, ser prefeito.

Mas, silenciosamente, uma linha de fuga. Ninguém sabia do desaparecimento

de João, e tal como veio, restavam apenas vagas conjeturas; vagava por rumores.

Fugiu novamente para sua a-historicidade, carregando consigo, levando-os até à

borda da cidade, o narrador-personagem fascinado que traiu definitivamente o

mestre. “Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro,

mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro.

Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 53);

conjuntamente com as crianças, os alunos, a insistirem que os dragões

permaneçam sem receber resposta. Nessa estrada, na borda e além, talvez não

haja palavras, nem linguagem capaz de chamados, apelos ou frases, nem de

respostas. Somente aquele fundo obscuro em que aquelas crianças e o

personagem-narrador, com os quais somos arrastados, puderam experimentar e

permanecerem afetados por dragonidades singulares irreversíveis – não as

catalogadas –, onde uma mesma força inumana originária compreende dragões e

humanidades.

Da experimentação e da interpretação

Diferentemente do que ocorreu em relação a Teleco, o coelhinho, com Os

Dragões houve uma maior conjugação com a leitura realizada por Roberto Schwartz.

A trama da crítica ao humano é bem desenvolvida pelo crítico e na descrição bruta

Page 75: Literatura e Devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença

63

deste aspecto quase não acrescento. No entanto, nas sínteses e conclusões, na

cauterização afirmativa da leitura, ainda é preciso diferenciar. Apesar de indicar

muito bem como os humanos eram totalitários em sua supremacia discursiva sobre

a alteridade dos dragões, certas considerações suas, do lado externo também o são

– sob a perspectiva de leitura em contra-representação desta dissertação – ao

realizar uma genealogia da origem dos dragões, da tradição mitológica que devem

participar, aferindo com isso significados ao conto.

A ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que sejam eliminados os atributos “dragonáceos” [...] A crítica à sociedade e ao homem é levada até as últimas conseqüências, através de uma inversão nos valores convencionais atribuídos ao dragão. [...] no nível conotativo [...] assim como a serpente, que, à diferença do dragão, possui referente concreto-real, a tradição literária ocidental convencionou o dragão como símbolo do mal (SCHWARTZ, 1981, p. 39/40)

Pretendo argumentar, aqui, que esses dragões criados por Murilo Rubião, são

signos excessivos, escapam à enciclopédia dos dragões e que mesmo uma inversão

simbólica não os contém, pois não os tira do eixo do bem e do mal. Os dragões de

Rubião são plasmados em um percepto bem diferente dos dragões mitológicos, sem

tonalidade épica nem de combate. Em que se parecem com os dragões de

“Hércules, Sigurd, São Miguel, São Jorge” (SCHWARTZ, 1981, p. 40) no eixo do

bem e do mal? Neste conto, se não estão sendo “o mal” também não são “o bem”

moralmente construído pelas doutrinas onde essa tradição simbólica do dragão se

formou. Estes dragões são justamente a suspensão dessas alternativas sobre o

mesmo eixo, em prol de pluralidades indeterminadas. A apropriação humana e

social criticada no conto deve atingir a noção de “bem” como constructo seu. Dessa

forma experimentamos os afectos desses dragões de um modo totalmente outro dos

dragões mitológicos; eles traem também a árvore de seus ancestrais. O que se

percebe neles no contexto do conto, é ainda o que se nos apresenta para o mundo

de cá, tal como afirma Schwartz neste trecho.

O Dragão surge como elemento “puro”, sem contexto nem história, e instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade. [...] Os meninos assim como os Dragões, vêm ao mundo desprovidos de um repertório preconceitual, e não apenas sua origem mas o percurso dos dois dentro da sociedade é análogo [...] por isso as crianças são as únicas que conseguem perceber os Dragões do modo que eles são: “simples dragões” (SCHWARTZ, 1981, p. 40)

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64

É somente agora que quero relacionar a epígrafe, uma vez que é sugestivamente tomada

como remissão, como alusão a um texto anterior, como quem dá continuidade em

representações e participa de uma metafísica do desenvolvimento. Diferentemente de aludir,

de confirmar informações; o que Rubião conseguiu realizar com a obsessão das epígrafes é

que são um furo, uma vazão entre as realidades implicadas nos textos, por onde passam

corpos e potências de lá para cá e daqui para lá; é um roubo de forças, como um gato de

energia elétrica. Neste caso específico, se apropria apenas do corpo-dragão e sua potência

muda, imediata e sem comentários, presença de dragão. Não fez questão de corroborar sua

carga simbólica no contexto bíblico e, ainda, devido à vazão contrária, o ironiza.

Há uma imanência ao corpo-dragão, que somente por raríssimas traduções seriam

possíveis o seu recorte para epígrafe; ou então Rubião tenha arriscado versões do latim.

Devido às interpretações na circularidade dos significados reciprocamente substituíveis, em

pelo menos quatro versões não encontro os dragões, mas chacais; e no lugar da ave citada,

umas “avestruzes”, outras “corujas”. Em Jó, 30, 29 temos:

a) Tornei-me irmão dos chacais, companheiro das corujas6.

b) “Irmão me fiz dos chacais, e companheiro dos avestruzes”7.

c) “tornei-me irmão dos chacais e companheiro das corujas” (HItcook, 2005,

p.573)

d) “sou irmão dos chacais e companheiro de avestruzes” (A Bíblia Sagrada,

1980, p.553)

e) “frater fui draconum et socius strutionum”. Acompanhada de uma tradução em

Inglês, na qual se mantêm os dragões e fica-se com as corujas (I am a

brother to dragons, and a companion to owls.)8

No contexto bíblico, Jó assim se expressa devido não estar mais aos cuidados do

Pai, estando em penúria, sendo desprezado por todos, inclusive pessoas

desprezíveis; é banido do convívio social, de modo que tenha tido somente animais

asquerosos como companhia. Se na tradução o chacal é autorizado ao lugar de

dragões é porque o que importa é generalidade simbólica de “mal”, asqueroso; e o

6 http://www.bibliaon.com/jo_30/ acesso em 18/11/2013 7 http://biblia.gospelmais.com.br/jo_30/ acesso em 18/11/2013

8 http://latinitas.org/biblia/iob.pdf acesso em 18/12/2013

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65

que importa é falar de algo mal em oposição um bem (estar sob os cuidados e

aceitação de Deus).

Em Rubião esse contexto não se conecta. O título de seu conto é o critério, o

que interessa é apenas o corpo-dragão que será todo recriado em seu conto – caso

contrário, chacais caberiam também –, não é tomado como asqueroso nem figura do

mal, nem de submundo – a não ser pelo discurso criticado no conto. É mesmo

instância de fascínio, paira indiferentemente ulterior ao bem e ao mal, com toda a

simpatia infantil. A coruja ou o avestruz nada integram. E como encaixar a figura de

Jó se, para esse, os animais estão em negativo, no submundo da bruta miséria

humana da irracionalidade, aliança impura de sua condição deplorável. Fora da dócil

integração remissiva, há mesmo uma salutar traição: “Sempre há traição em uma

linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu

futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem

futuro. Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p.

53). É um drible na historialidade:

Quanto à história, à historicidade, em verdade à historialidade [...] pertencem precisamente a esta autodefinição, a esta autoapreensão, a esta autossituação do homem e do Dasein humano em relação ao vivente e à vida animal, a esta autobiografia do homem que pretendo questionar hoje [...] todas essas palavras, e em particular a história, pertencem de maneira constitutiva à linguagem, aos interesses e aos enganos desta autobiografia (DERRIDA, 2011, p. 49/50)

Enfim, uma última consideração sobre o trato representativo de os dragões.

Bildungsroman às avessas, pois o caminho da aprendizagem conduz o

discípulo à sua perdição, dissociando-o totalmente do meio ao qual ele

deve inicialmente se integrar. A sociedade funciona assim como

elemento contaminador e propagador do mal. Participar dela equivale

à condenação de deixar-se contagiar pelo ser humano. A opção de

permanecer fora da cidade é tão inexistente quanto os próprios

dragões – serve apenas como artifício ficcional de uma opção

inverossímil. A “entrada da cidade” é o limite entre o céu e o inferno,

entre o paraíso e o mundo terrenal. Nem os homens podem transpô-la,

nem os dragões se atrevem a voltar, sob pena de que a maldição da

existência recaia sobre eles, ao repetir o percurso irreversível de Adão

e Eva. Não há uma segunda vinda para os dragões: São eles símbolos

de uma possibilidade para a qual o homem se volta, numa tentativa

frustrada de recuperar o passado. “Fui irmão de dragões”, diz a

epígrafe do conto – e não é casual a similaridade estabelecida: roto o

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66

elo que liga o homem ao dragão, rompe-se a possibilidade de

salvação do primeiro. Os dragões passam então a subsistir na cultura

humana como reminiscência e como vontade; permanece o homem

lutando nas portas da cidade, lutando entre o devaneio do passado e o

gesto incalculável do futuro. O tempo que lhes resta é o presente da

condenação: “postados na entrada da cidade”, batalham aqueles que

não conseguem esquecer o lembrete de Dante: Lasciate ogni

speranza voi che entrate. (SCHWARTZ, 1981, p. 41)

Há talvez o reverso de um “Romance de Formação”, romance de deformação, talvez

melhor, performação, e sugestão aberta a extrapolar princípios do humanismo; mas

bem fora do jogo de perdição e salvação.9 Como os dragões podem não existir após

todo o transtorno que causaram? Que tem de celestial e infernal, no que acabamos

de passar? Que há de Adão e Eva, a não ser a supremacia do nome? Como o

desejo agenciado aos dragões é de salvação? Os dragões são santos? Sim, os

dragões subsistem como desejo; não como lembrança, mas como contágio: para

sempre haverá aquelas singulares dragonidades naquele homem que deu ouvidos

ao testemunho das crianças, que é tomado em um Devir-criança que o conectou aos

dragões10; que deu ouvidos ao mistério irrefratável para nós de que sejam simples

dragões, algo que nos contamina do simples, em longas filas, para bem longe do

“assim na terra”, com o que há de simbólico por baixo, e de “como no céu”.

Realmente há algo de condenação na cidade, da permanência, do mesmo,

pela significância, protocolos – mais ao modo da colônia penal de Kafka –; mas não

há santidade ou salvação com os dragões, o que seria a outra ponta da mesma

doutrina. Há desvio, recomeço, amnésia criadora, arquitetada heresia da inocência

tornada escritura: “meio de orientação para conduzir uma experimentação que

ultrapassa nossas capacidades de prever [...] Experimentem, nunca interpretem.

Programem, nunca fantasiem” (DELUZE/PARNET, 1998, p. 61).

9 “Bildungsroman é um tipo de romance que se caracteriza pela formação do

protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de síntese entre práxis e contemplação”. Consideração sobre o romance de formação a partir do artigo de Flavio Quintale Neto (Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professor dos cursos de Letras e Filosofia da Universidade Metodista de São Paulo): Para uma interpretação do conceito de Bildungsroman (2005).

10 Se transporta alguém de longe, lembro-me de Heráclito e sua preferência a estar com as

crianças e não nas assembléias.

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67

3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O Homem do Boné Cinzento)

Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu palácio. (Daniel, VI, 1).

(RUBIÃO, 2010, 151)

“O culpado foi o homem do boné cinzento. Antes da sua vinda, a nossa rua

era o trecho mais sossegado da cidade.” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Corria tudo em

ordem na residência e na vizinhança do narrador Roderico e seu irmão Artur até a

chegada de um rico celibatário, Anatólio – de quem cobria a cabeça um boné xadrez

preto e branco, com dentes escuros e um cachimbo curvo. Este último, de hábitos

estranhos, deixava a todos perplexos, nunca era visto saindo de casa. Artur

desenvolveu uma forte obsessão em acompanhar a rotina do velho estranho e

sentia uma eufórica alegria em vê-lo: “Olha, Roderico, ele está mais magro do que

ontem!”. Roderico se agastava e achava um aborrecimento a obsessão de

acompanhar a vida do velho e seu definhamento. Seu irmão descobre o nome do

ancião e sua irritação responde: “fosse Nabucodosor!” (RUBIÃO, 2010, p. 152). Uma

bonita moça adentra a casa do estranho para logo mais não dar mais nem sinal de

permanência.Três meses mais tarde, a moça surge para partir do casarão. Anatólio,

à visão de Artur, continua emagrecendo. A confiança que o narrador Roderico em

seus nervos e discernimentos decrescia instaurando uma ansiedade, segundo este,

não tanto pelo velho, mas por seu irmão de quem se lhe afundavam os olhos; e para

lhe provar que não havia anormalidades passa a vigiar também o homem do boné

cinzento. Percebe que sua magreza realmente fascina e lhe indica um fato: o

homem está ficando transparente. Roderico agora assusta-se, através do corpo se

via objetos e o ambiente, o coração dependurado na maçaneta da porta. Artur

também emagrecia mas Roderico ainda não dava importância: Anatólio era sua

única preocupação agora, que de tão magro só tinha perfil. No dia seguinte, o

homem sem mais o que emagrecer, reduz o crânio e o boné folga sobre os olhos, o

vento dobra seu corpo sobre si, num espasmo lança um jato de fogo que varre a rua

– Artur excitado, Roderico atemorizado –, ao fim escorre-lhe uma baba

incandescente e o incendeia; resta somente a cabeça, coberta pelo boné. Artur

afirma que é como previra, sua voz gradativamente afina e se distancia, o corpo

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68

diminui a centímetros, Roderico o sustém nas mãos, com a ponta dos dedos, logo

Artur se transforma em uma bolinha negra a rolar em sua mão.

Dos planos

Há um delírio impressionante como efeito no discurso narrativo que

testemunhará a princípio, duas tramas, para logo mais mesclá-las em um turbilhão

único. Temos o narrador-personagem, Roderico. Mas devido, tão frequentemente,

seu irmão Artur manifestar-se em discurso direto, dá a impressão – e já basta para

ser um fato narrativo – de haver um narrador extra que nos mostraria a história de

dois irmãos em que um, Roderico, narra a trama de Artur acompanhando o velho

celibatário; e ao mesmo tempo deixa o próprio Artur narrar diretamente sua história

sobre o velho celibatário.

Isto ocorre porque cada um tem um discurso apartado, fundado em bases

perceptivas muito diferentes, travando duas histórias em que retomaremos – como

em Teleco e os Dragões – a apropriação e os dribles entre o plano transcendente,

aqui, manifestado pelo equilíbrio sempre seguro dos fenômenos sob as deduções

lógicas de Roderico; e o plano de Devir, perturbações, fascínios e euforias, nas

percepções e testemunhos de Artur siderados pela vazão anômala do Homem do

Boné Cinzento. Veremos o plano de Artur desestabilizar insistentemente o de

Roderico até ao ponto em que a trama da lógica e da normalidade previsível,

dedutível, ordinária, devém em um fluxo único a testemunhar os extraordinários de

que ainda trataremos com mais detalhes.

“A nossa intranqüilidade começou na madrugada em que fomos despertados

por desusado movimento de caminhões” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Esse evento marca

apenas a chegada dos objetos pessoais de alguém. Veja-se que mesmo esse

“nosso” não é comum entre os dois ao início, pois para Roderico é a inquietação

absurda de seu irmão; para este, é já o evento sideral do velho celibatário. Segue-se

a narrativa de Roderico:

Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia suposições menos verossímeis.

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Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum estabelecimento comercial. (RUBIÃO, 2010, p. 151)

Toda sua análise é dedutiva, num tom de certeza quase debochante. Já a

exagerada sensibilidade de seu irmão nos testemunha algo menos tranqüilo, casa

tremendo, e o revezar do branco e cinzento no céu, “Pontos brancos, pontos

cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos

e saltitantes” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Primeira traição à sua “mania de contradição”

(RUBIÃO, 2010, p. 151), chegava o novo vizinho, olhos fundos e corpo esquelético e

cobrindo-lhe a cabeça, um boné tal qual céu descrito pelo irmão. [...] ao invés da

atitude zombeteira que assumi ante aquela figura grotesca, Artur ficou

completamente transtornado. (RUBIÃO, 2010, p. 151). Enquanto seu Artur lhe

contava as coisas de um modo totalmente estranho, percebendo vibraçõe, frases

surrealistas, homem que trouxe os quadradinhos e que desapareceria, Roderico

conjeturava dentro dos padrões lógicos, homem que sem se separar do boné

possivelmente escondia uma calvície adiantada.

Artur em euforia, a repetir-lhe [...] que o homenzinho continuava definhando. –

Impossível! – eu retrucava – o diabo do magrela não tem mais como emagrecer! - e

pois está emagrecendo! (RUBIÃO, 2010, p. 152). Novamente Roderico segue seu

testemunho sensato sobre os fatos, seu irmão em gradativo non sens:

entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando: - Chama-se Anatólio! Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor! (RUBIÃO, 2010, p. 152) Aparecimento de uma moça e entra na casa do velho, para outra inquietação de Artur. - Ora, que importância tem uma jovem residir com um velho celibatário? (RUBIÃO, 2010, p. 153)

Três meses para a saída da moça, “Sozinha como viera, carregou as malas

consigo”. (RUBIÃO, 2010, p. 153). O velho continua emagrecendo no discurso de

Artur. Chega-se então a um momento decisivo; se o celibatário fascina e afeta até

mesmo fisicamente Artur, este começa a despertar em Roderico um mal-estar,

insegurança quanto aos fenômenos que para este até então estavam bem

registrados pelas recorrências. Algo salta para fora do plano, algo invade o plano,

cisma:

Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto

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pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso enigmático vizinho. (RUBIÃO, 2010, p. 153)

A partir daqui, não vemos mais o velho e os fenômenos de Artur fi ltrados pelas

resoluções lógicas de Roderico. Tal mundo previsível se desfaz, os fluxos e planos

agora são únicos e o Roderico-narrador acompanha, comunga, colado e

passivamente o que se segue. Vemos sucumbir toda a lógica ordenada de seu

discurso, e sua percepção passa ser um dueto com a de Artur – levando consigo o

leitor implícito – com partículas de nós aqui de fora – da desconfiança assegurada

pela lógica à sensibilidade direta dos fatos extraordinários.

Dos Anômalos e dos Devires

Se o homem que trouxe os quadradinhos no céu a na cabeça, foi desde o

início o anômalo de Artur, a anomalia do comportamento deste o desterritorializou e

o conectou às forças cinza e branca, da magreza, dos olhos fundos, das

trepidações:

Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe: - Ele está ficando transparente. Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados. Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo (RUBIÃO, 2010, p. 151)

Todo o discurso narrativo é insano, sussurrante, eufórico. Lógicas ainda tentam

levantar-se “nada mais tendo a emagrecer”; para logo serem afogadas: “seu crânio

havia diminuído” (RUBIÃO, 2010, p. 154). Chega-se então ao final como descrito no enredo

sobrescrito. Espasmo de fogo do velho, voz gradativamente afinando de Artur; baba

incandescente, incêndio, e somente a cabeça coberta pelo boné e o triunfo dos

quadradinhos; “Não falei, não falei”, dizendo Artur antes de se tornar uma bolinha negra.

...

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“O culpado foi O homem do Boné Cinzento. Antes da sua vinda nossa rua era o trecho mais

sossegado da cidade”.

Do Narrador extra e o Aion. Devir-tempo (Roderico-depois-de-tudo conta a história

de um Roderico que virá a passar por tudo para ser o Roderico-depois-de-tudo que

conta a história...)

Tal narrador extra, mencionado bem mais acima, é o próprio Roderico depois

de tudo, como indica a frase introdutória que implica, antes de tudo, que a voz vem

de depois de tudo; ciente de que o culpado de tudo que ocorreu/ocorre/ocorrerá

foi/é/será o homem do boné cinzento. Ou seja, o Roderico que está com seu irmão,

passa por sua trama, sucumbe à de Artur, ao final, está apto a ser o narrador do

início do conto, que tem onisciência e conhece os detalhes e o culpado de tudo o

que ocorrerá.

Tal frase no início, cria um percepto, aquela impressão de se ter um terceiro

olhar, pouco mais acima, mais conhecedor que o Roderico que ainda vai passar pela

história e Artur; provoca uma vertigem temporal, pirando Cronos, quebrando o

relógio, estonteando a capacidade psicológica de suster um tempo; fazendo emergir

o fundo não estriado do tempo, aquém de ter um início meio e fim, “o instante

pervertendo o presente em futuro e passado insistentes, „impiedosa linha reta do

Aion‟”. (PELBART, 2010: 71)

Devir-luz, cor e fogo. Devir-elementos: distensão cósmica, dilatação e contração.

O discurso, testemunho, de Artur contém uma sintaxe delirante que como diz

Manoel de Barros, voa fora da asa. Afora toda a euforia, que forma de se

comunicar!: é gaguejante mas promissora, sussurrante de presságio, é sempre

descentrada porém intensa. E, em suas designações dos fenômenos, a sua

semântica principal são as cores. As cores contem o sentido do que ele diz e o

destino dos fatos, Artur é tomado num devir-cor e esta cor num devir-linguagem. A

sua versão da história está em xadrez: pontos brancos, pontos cinzentos,

quadrinhos perfeitos de duas cores; pronto, anunciara aquele que trouxe os

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quadrinhos e desaparecerá – o desaparecimento não é um dos limites das cores? –;

anunciara aquele que ficou transparente, incendiou-se, show pirotécnico de cores a

nos narrar a sua, literalmente, brilhante versão dos fenômenos. Falando em

pirotécnico, interessante comparti lhar aqui outro devir-cor da escritura e sentido

realizado por Rubião, em O Pirotécnico Zacarias, que já na epígrafe convoca a luz

do meio-dia e a estrela D‟Alva do livro de Jó. Neste conto o Branco é um dos

maiores sentidos e, quando um sol brilhando como nunca, diz-se: “os homens

compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque minha existência

se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura

dos meus olhos”. (RUBIÃO, 2010, p. 20) Seu destino, Artur, foi uma bolinha preta.

Há conjuntamente o Devir-cósmico, a distensão entre os anômalos de ligação

mais sideral. Convulsivamente são reclamados pelo cosmo, esse inumano nos

contém em potência, são distendidos ao sólido limite, a bolinha preta; polarizado na

outra ponta pelo éter, vapor e transparência absolutos; conectados por

incandescência, aquecimento e combustão – experimentamos aí, talvez, um espanto

como o dos pensadores originários percorrendo pelos elementos cósmicos e

devires.

Da experimentação e da interpretação

É importante relacionar ainda, como nos outros contos, considerações de

Roberto Schwartz e, através do comentário deste, de Davi Arriguci, sobre uma

questão que atinge o Homem do Boné Cinzento: a questão da hipérbole.

Este sistema de adjunção “A hipérbole não parece ter limite determinável” afirma J. Dubois, em sua Retórica geral (p.189), o que vem confirmar a intimidade da relação forma/conteúdo, ou seja: a hipérbole como forma de expressão formaliza o conteúdo do conto, havendo um imbricamento entre o nível retórico e o seu correspondente semântico. “O discurso ficcional também se coaduna com o princípio de construção do edifício: o conto (...) permanece ironicamente aberto para um contar inacabável: enquanto o edifício ganhara altura”, observa Davi Arriguci, no seu artigo introdutório ao OPZ11, mostrando a superposição do narrar ao fato narrado. As progressões nos contos de Murilo Rubião revelam-se processos incontroláveis, que fogem à vontade dos sujeitos da ação.

(SCHWRTZ, 1981, p. 71) 11 Abreviatura técnica em SCHWARTZ, 1981, para O Pirotécnico Zacarias.

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Na perspectiva desta dissertação, do Devir sob considerações teórico-

filosóficas já expostas em capítulo apropriado, o signo é um movimento único de

escritura-realidade, essa coadunação do discurso ficcional com os objetos e a

realidade designada por ele se opera imediatamente; pelo contrário, não se vê a

possibilidade de uma escritura de devir crer na dualidade forma/contéudo. Não

lemos como hipérbole, pois esta noção parece sugerir uma defasagem e separação

entre conteúdo (como realidade em si) e forma (como fantasma de realidade a vagar

com sua imagem); por isso a alcunha de “exagero”: pois deve haver um designado

fixo, e uma expressão que distende sua imagem ou a reduz, ficando uma

manipulação retórica e não real. Acolhemos sim, com toda a alegria de um achado

importante, quando se fala em dilatação ou contração, que movimentam toda a física

da realidade em questão “uma nomenclatura tipo hipérbole por dilatação e hipérbole

por contração, respectivamente” (SCHWARTZ, 1981, p. 71); ou “processos

incontroláveis que fogem à vontade dos sujeitos”, como na citação, pois no universo

ulterior e imanente desses contos em questão, são eventos literalmente reais.

Observemos:

A forma hiperbólica pode-se apresentar invertida (tapinosis) como é o caso de “O homem do Boné Cinzento” EXM, que relata o gradativo desaparecimento de Anatólio e Artur. O Fantástico não se limita ao movimento físico regressivo, mas também se manifesta por descrições de caráter marcadamente surrealista:

Via-se através do corpo de Anatólio, objetos que estavam no interior da casa. Vasos de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada

somente de um dos lados. (p.123)

(SCHWARTZ, 1981, p. 72)

Sim a construção é infinita em conjunto indiscernível de sua narrativa e não é por

hipérbole, efeito retórico, é por dilatação intensiva da realidade criada. Nesta citação,

nada é hipérbole a não ser que nós sejamos os modelos. Não há surrealismo para

os personagens, pois estes estão literalmente, no seu nível, sendo distendidos,

sumindo, incendiando, transparecendo. Deveremos sempre ler/julgar os mundos de

linguagem tendo o nosso como designação última? O nosso como medida?

Entendendo o que nos ultrapassa ou nos encolhe, apenas “como um modo de dizer”

sobre nós? Dessa forma não há Devir, não há terras não exploradas, não há

experimentação real de mundos e sensibilidades, pois, como quem acorda e diz “foi

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só um sonho”, também diremos, “foi só um modo de dizer”. A hipérbole espera

interpretação, a retirada da máscara para se ver o designado (ilusão de que o nosso

rosto não seja simulacros outros). O Devir, as figuras diretamente estético-

intensivas, dilatação, contração, exigem experimentação; e que não se tome dessa

forma: [...] dilatação/contração, montagem/desmontagem, força centrífuga/centrípeta

definem-se como expressões hiperbólicas e geradoras de uma temática fantástica.

(SCHWARTZ, 1981, p. 73)

Sobre a epígrafe, insisto em dizer que, Rubião opera por recorte mais do que

por desenvolvimento e remissão. É interessante que o texto bíblico retomado

envolva sonhos e interpretações. Nabucodonosor é retirado de seu sossego devido

a sonhos que o perturbam, com imagens um tanto desconexas e, portanto precisa

de um intérprete; recorre a Daniel, já douto neste assunto. Daniel explicou que a

árvore representava a grandeza do reino babilônio, o próprio Nabucodonosor, que

dominava com orgulho e arrogância. Por um tempo determinado o rei seria retirado

dentre os homens, viveria entre o gado do campo, molhado pelo orvalho do céu, e

comeria a erva do campo até reconhecer que o Altíssimo tem domínio sobre o reino

dos homens.

O que o conto retoma disto? Digo que a cena da perturbação a partir de um

evento estranho, imagético. E, pela leitura que já se expôs, o que ele mantém é esse

jogo de euforia, intensidades e cores. Sim, no conto há algo bem Alto que tem

domínio sobre os homens, que captura sua linguagem e sua matéria: o cosmo que

os distendeu e os reclamou ao sólido e ao éter; ao sólido – conectados por olhos,

luz, cores e fogo – ao éter. A experiência de quando o reino dos quadrinhos, dos

cinzas e branco, tem domínio sobre os homens. Pelo buraco de minhoca12 da

epígrafe, é como se o texto preferisse e transportasse somente superfície do sonho

em sua expressão bruta, literal.

12 São pontes, na teoria da relatividade geral, que permitem ligar duas regiões muito

afastadas do espaço-tempo. http://www.portaldoastronomo.org/cronica.php?id=25 Acesso

em 20/11/2013.

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4 Conclusões

A investigação de supostas articulação e produção de uma diferença

(realizada pelo procedimento literário, sob a sugestão de Gilles Deleuze, às vezes

só, e em grande parte com este e Felix Guattari) e que tem como produto um Devir,

um acontecimento que toma e modifica o sentido da existência do que nele se

envolve; e isto, ainda, realizado pelo procedimento de Murilo Rubião nos contos

Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O Homem do Boné Cinzento foi uma experiência

angustiante – devido ser uma perspectiva com muito poucas discussões e

esclarecimentos no tocante à literatura, como uma operação de leitura afora as

análises dos pensadores em questão, e talvez inédita com o escritor mineiro; mas,

foi fascinante ao mobilizar revisão e discussão de saberes capitais aos estudos

literários para que se entenda o seu lugar e sua atuação. Desde o início, não faz

parte dos objetivos discutir até os limites essa revisão que acompanha tal

perspectiva – a que caberia sozinho um trabalho investigativo –; mas apenas

contribuir com um esclarecimento mínimo que situe a discussão e realizar uma

possível operação de leitura com os contos mencionados nesta conclusão.

Quanto à metodologia, talvez não se possa dizer que se tenha organizado um

método; mas podemos dizer que uma operação criteriosa se realizou, obedecendo

aos caminhos propostos. Pode-se dizer, ao final, que o Devir, em si, não se tornou

um operador de leitura nem pode tornar-se talvez; mas entendendo seu

funcionamento como diferença positiva, como recusa de mediações representativas

para seu plano de composição, pôde-se sugerir uma predisposição teórica para o

contemplar com sucessos esperados que foram as análises realizadas dos contos; e

que foi possível pôr tal leitura lado a lado com outras (principalmente a de Roberto

Schwartz, em A Poética do Oroboro) e com isso demonstrar o que se produziu em

concordâncias e em divergências. Isto contribuiu, de modo geral, para a

mobilização produtiva dos saberes para com a literatura; e, especificamente, para

somar na afirmação – como a de Anita Costa Maluf devidamente citada – de que a

noção de Devir aqui acionada, não suportando, em si, tornar-se método sem sua

abolição, ao menos provoca o surgimento de um predisposição teórica que o

enxergue, com ferramentas próprias, aptas a um novo olhar para com a literatura.

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Ainda, outra grande contribuição aos Estudos Literários, reside na reflexão

sobre o Devir-expressivo apontado por Deleuze/Guattari: se um corpo constituído

(uma personalidade, um evento, uma coisa) é tensionado em devir-outro, esse outro

também é comovido em devir. No caso da literatura, se o escritor, e seus universos

virtuais, são afrontados por devires estranhos (animais, vegetais, cósmicos...), ele

que já é tomado pela escritura, só pode sustentar essa afronta irresistível –

acontecimento que toma em si o sentido da existência do que nele se envolve –

dando-lhe escritura; ou seja, essa coisa torna-se escritura. O que não é o mesmo

que dizer escrever sobre isso; este isso – seus afetos, suas potências – sendo o

corpo da escritura. Manoel Bandeira – exemplo rápido para uma conclusão – não

escreve sobre a onda, como assunto. Aonde anda a onda? Seus afectos

(movimentos, ritmos, dobras, zoadas) tornaram-se escritura. A contribuição está em

favorecer que se perceba a possibilidade de um processo semiótico como esse, sem

a dimensão da imitação, devires que talvez sejam responsáveis por grande parte

das escrituras, daqueles que escrevem para não morrer, propagando seus devires,

bibliotecas inteiras de devires.

Posso somar a estas conclusões, que Murilo Rubião nos guarda, e aguarda –

pois pretendo mantê-lo em estudos – muito mais surpresas nesta perspectiva de

Devir. Mas, percebi também, que ele tem um perfil bem complexo para tal análise,

pois mantém os dois planos – o representativo e o de Devir – em proximidade

estonteante de modo que concluo também que é uma singularidade sua, nos dois

primeiros contos analisados, tal proximidade provocante; há uma luta de ironia

melancólica, sussurrante, entre os dois planos – diferenciando-se assim, por

exemplo, do mar e vento loucos, de sideração sanguinária de Achab e Moby Dick,

tão citados por Deleuze.

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