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Literatura e Sociedade

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Universidade de São PauloReitor João Grandino RodasVice-Reitor Hélio Nogueira da Cruz

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretora Sandra Margarida Nitrini Vice-Diretor Modesto Florenzano

Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada Chefe Marcus Vinicius MazzariVice-chefe Viviana Bosi

Imagem da capa: Antonio DiasO país ocupado, 1970 130 x 195 cmAcrilíca sobre telaDaros Latinamarica Collection, ZurichColeção do artista, cedida exclusivamente para essa publicação.

É proibida a reprodução da imagem para qualquer outro fim

Improviso de Ohio (Ohio Impromptu), de Samuel Brecht:All rights whatsoever in this play are strictly reserved. Applications for performance, including professional, amateur, recitation, lecturing, public reading, broadcasting, television and the rights of translation into foreign languages, must be made before rehearsals begin to: Curtis Brown Ltd, 28-29 Haymarket, London. SW1Y 4SP, UK. No performance may be given unless a licence has been obtained.

DTLLC

Literatura e Sociedade/ Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada/ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Universidade de São Paulo. – n. 1 (1996) – . – São Paulo: USP/ FFLCH/ DTLLC, 1996 – Semestral

Descrição baseada em: n. 12 (2009.2)ISSN 1413-2982

1. Literatura e sociedade. 2. Teoria literária. 3. Literatura comparada.I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.

CDD (21. ed.) 801.3

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Literatura e Sociedade

Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Número 14 São Paulo 2010.2 ISSN 1413-2982

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CONSELHO EDITORIALAdélia Bezerra de Meneses

Antonio Candido

Aurora Fornoni Bernardini

Beatriz Sarlo

Benedito Nunes

Boris Schnaiderman

Davi Arrigucci Jr.

Fredric Jameson

Ismail Xavier

Jacques Leenhardt

John Gledson

Ligia Chiappini Moraes Leite

Marlyse Meyer

Roberto Schwarz

Teresa de Jesus Pires Vara

Walnice Nogueira Galvão

PARECERISTAS DESTE NÚMEROAndré Bueno

Homero Vizeu Araújo

Luis Alberto Brandão

Vinícius Figueiredo

COMISSÃO EDITORIALAna Paula Pacheco

Betina Bischof

Marcelo Pen Parreira

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EDITORIAL

Se tomarmos por base Raymond Williams e o Diccionario da lingua portu-gueza, o realismo na sua acepção anti-idealista é uma palavra do século XIX: pas-sou a ser usada na França desde 1830, na Inglaterra a partir de 1850; e o primeiro registro no léxico de Antônio de Morais Silva data da edição de 1858. Desde então o próprio conceito, bem como sua aplicação literária ou crítica, teve seus altos e baixos, encarou contradições, envolveu polêmicas, prestou-se à designação de uma escola literária e conseguiu sobreviver a ela, ainda que muita vez tenha sido e continue a ser visto com desconfiança, como se fosse um bufão mentiroso ou um ardil sutilmente armado para apanhar incautos. Em um artigo inédito no Brasil e aqui agora publicado, o crítico inglês Ian Watt refere-se ironicamente a essas con-trovérsias como “desgastadas” ou “deterioradas”. O termo em inglês, “fly-blown”, sugere algo que foi deixado tanto tempo exposto que atraiu as moscas, serviu como matéria para que elas ali depositassem seus ovos – e possivelmente já vem sendo devorado pelas larvas que deles eclodiram. Estaríamos correndo o risco de trazer à luz, portanto, algo que, ao pé da letra, está virtualmente “bichado”? Se o perigo tem algum fundamento, as medidas para que não incorramos nele parecem bastante convincentes. No mesmo artigo, Watt mostra, por exemplo, que o velho e bom realismo como método geral de representação da realidade e como postura crítica está em excelente forma, sim senhor. Refletindo sobre seu aspecto mais amplo – isto é, não só ultrapassando por um lado a ideia da obra de arte como “espelho fiel” da sociedade e, por outro, o alcance de determinada escola literária oitocentista, mas também oferecendo a possibilidade de fixarmos melhor tanto este quanto aquele aspecto em sua especificidade e dinamismo históricos –, Watt defende uma crítica realista e uma atitude realista para com a literatura e as artes em geral como a melhor maneira de compreender a relação intrínseca entre arte e vida. Em outras palavras, ele enfatiza a necessidade de não esquecermos o fato primordial de que a literatura cobre um “vasto raio de ações e sentimentos huma-nos, de coisas lembradas e imaginadas” (se quisermos, na formulação de Antonio

O realismo em nossa vida

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Candido: “os elementos humanos formalmente elaborados”), fato esse que lhe outorga a faculdade “de ampliar nossas afinidades imaginativas”.

Watt solicita, assim, uma visão ampla do realismo. Sua abordagem metodo-lógica, cujos frutos germinaram no solo da crítica prática e do empirismo ingle-ses, da estilística de Auerbach, do pensamento marxista, das teses de Max Weber, Lukács, Adorno e Merleau-Ponty, pode ser empregada para examinar obras e autores tanto anteriores ao século XIX, quanto bem adentrados nas vanguardas do século XX – e isso sem contar outras formas artísticas, como o teatro, por exemplo. Esse ponto de vista combina com a perspectiva abrangente que norteou nossas discussões sobre o realismo e com o prisma teórico que nos ajudou a es-colher os textos deste número e de seu precedente, ou seja, conforme observamos no editorial do número 13, no fundo combina com nosso interesse por apresen-tar a teoria e o exame das formas que buscaram e buscam representar a realidade social em andamento.

Com 11 artigos, de um total de 14, voltados ao exame de obras do século XX e XXI, este número inverte a tendência ligeiramente mais acentuada na direção do século XIX, que havia na edição anterior. O volume abre com um artigo de Ismail Xavier sobre o cinema documentário, focando em Ônibus 174, de José Padilha, além dos filmes de Eduardo Coutinho, para explorar os ajustes entre os procedi-mentos específicos do cinema e aquelas estratégias que a sétima arte tem em co-mum com outras formas de discurso, como o teatro e o romance. Já o texto de Jean-Claude Bernardet, inserido na seção Rodapé, parte de um objeto e de uma proposta semelhantes (o cinema documentário e suas ligações com o romance), mas com direção e natureza muito diferentes (trata-se, afinal, de comentários es-critos para um blog); ao mostrar a tensão entre os procedimentos narrativos que visam retratar a vida como ela é e aqueles que procuram romper com esse padrão, Bernardet faz uma interessante interpretação de Jogo de cena, de Eduardo Couti-nho, visto como o Ulysses do filme documentário.

O olhar para o século XX, embora buscando os nexos históricos e formais com o passado, prossegue com o artigo de Fábio de Souza Andrade, que, ao investigar o realismo que pode existir no teatro de Beckett, busca suas relações inusitadas com o “vago realismo” da tragédia Electra, de Eurípides. O jogo do contemporâ-neo com a obra antiga é empreendido também (naturalmente por outra via) por Gregório F. Dantas, que faz um cotejo entre o romance Pedro e Paula, do português Helder Macedo, e sua alardeada intertextualidade com Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Regina Pontieri aborda duas ficções curtas, “A marca na parede”, de Virgi-nia Woolf, e a recente “Célula de identidade”, de Bruno Zeni, observando como cada um desses textos, calcados no modo de hipertrofia da subjetividade, guarda na própria forma diferenças fundamentais que evidenciam etapas distintas de “instalação da barbárie”.

As questões sobre identidade e subjetividade, bem como o exame da atual produção literária brasileira, retornam no artigo de Cristiane de Oliveira Fernan-des Garcia sobre uma ficção curta de Modesto Carone. Na linha de pesquisa dos autores medianos, que mesmo assim revelam, na concepção de Antonio Candi-do, viva importância no estabelecimento do sistema simbólico de comunicação

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inter-humana, Bianca Ribeiro investiga os romances Éramos seis e Gina, de Maria José Dupré. Simone Rossinetti Rufinoni, por sua vez, elabora, com base em dois romances de Cornélio Penna, uma análise que faz enxergar sob um ângulo novo a imbricação entre as concepções de realismo e introspecção. E Irenísia Torres de Oliveira toma como ponto de partida o realismo pela chave da sátira para debru-çar-se sobre o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha.

O século XIX comparece nos estudos de Daniel Puglia, que avalia o “realismo utópico” nos grandes painéis da vida humana de Dickens; na análise de Au bonheur des dames, em que Salete de Almeida Cara procura perceber como o modo de mer-cantilização da vida surge transfigurado nesse romance de Zola; e ainda na pesquisa histórica de Ana Paula Freitas de Andrade, que trata dos fundamentos do verismo italiano, compreendido sobretudo por intermédio de seu maior expoente, o escri-tor Giovanni Verga. O século XX volta na discussão de Sandra Guardini T. Vascon-celos, que explica as bases teóricas de A ascensão do romance, de Ian Watt, princi-palmente o diálogo com a crítica prática inglesa e as conexões com Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Esse processo de formação também é explicitado, pela via autobiográfica e analítica, no artigo supracitado de Ian Watt, incluído na seção Rodapé.

O número se encerra com uma tradução inédita de Improviso de Ohio (Ohio Impromptu), de Samuel Beckett, peça escrita a pedido do crítico S. E. Gontarski para um simpósio internacional sobre o dramaturgo ocorrido na Ohio State Uni-versity, e com as ficções curtas de Airton Paschoa, que devem figurar no próximo livro do autor: nelas a vida dos pinguins serve de contraponto irônico e sutil co-mentário zoomórfico para a azáfama humana em tempos sombrios.

COMISSÃO EDITORIAL

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CONTENTS

ESSAYS

Exemplarity and contingency in the stage of evidences • 14 ISMAIL XAVIER

Getting real: notes about the unusual realism • 24 in Beckett and Euripedes FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Charles Dickens’s utopic realism • 36 DANIEL PUGLIA

Giovanni Verga and the construction of verism • 46 ANA PAULA FREITAS DE ANDRADE

Thinking misprints: a reading of Pedro e Paula, • 66 by Helder Machado GREGÓRIO F. DANTAS

Realism and satire in Recordações do • 80 escrivão Isaías Caminha IRENÍSIA TORRES DE OLIVEIRA

Realism and loss of reality: Zola’s naturalism • 100 SALETE DE ALMEIDA CARA

Realism and introspection in Cornélio Penna’s novels • 112 SIMONE ROSSINETTI RUFINONI

“O natal do viúvo” – or the paralyzed body • 124 CRISTIANE DE OLIVEIRA FERNANDES GARCIA

Where did the subject go? – Experiences of the • 136 subjective in 20th century fiction REGINA PONTIERI

Maria José Dupré’s domestic realism • 148 BIANCA RIBEIRO

Ian Watt and the figuration of the real • 170 (reading notes) SANDRA GUARDINI T. VASCONCELOS

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SUMÁRIO

ENSAIOS

14 • O exemplar e o contingente no teatro das evidênciasISMAIL XAVIER

24 • Caindo na real: notas sobre o realismo inusitado em Beckett e Eurípides

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

36 • O realismo utópico de Charles DickensDANIEL PUGLIA

46 • Giovanni Verga e a construção do verismoANA PAULA FREITAS DE ANDRADE

66 • As erratas pensantes: uma leitura de Pedro e Paula, de Helder Macedo

GREGÓRIO F. DANTAS

80 • Realismo e sátira nas Recordações do escrivão Isaías Caminha

IRENÍSIA TORRES DE OLIVEIRA

100 • Realismo e perda da realidade: o naturalismo de ZolaSALETE DE ALMEIDA CARA

112 • Realismo e introspecção no romance de Cornélio PennaSIMONE ROSSINETTI RUFINONI

124 • “O natal do viúvo” – ou o corpo paralisadoCRISTIANE DE OLIVEIRA FERNANDES GARCIA

136 • Onde foi parar o sujeito? – Experiências da subjetividade na ficção do século XX

REGINA PONTIERI

148 • O realismo doméstico de Maria José DupréBIANCA RIBEIRO

170 • Ian Watt e a figuração do real (anotações de leitura)

SANDRA GUARDINI T. VASCONCELOS

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FOOTNOTES

Flat-footed and fly-blown: the realities of realism • 186 IAN WATT

Notes from a blog • 204 JEAN-CLAUDE BERNARDET

FICTION

Ohio Impromptu • 210 SAMUEL BECKETT

Life of the penguins • 214 AIRTON PASCHOA

LIBRARY • 217

Publications of the Departament

APPENDIX • 223

Articles published To collaborators Where to find the periodical

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RODAPÉ

186 • Canhestro e deteriorado: as realidades do realismoIAN WATT

204 • Anotações de um blogJEAN-CLAUDE BERNARDET

FICÇÃO

210 • Improviso de OhioSAMUEL BECKETT

214 • A vida dos pingüinsAIRTON PASCHOA

217 • BIBLIOTECA

Publicações do Departamento

223 • APÊNDICE

Artigos publicados Aos colaboradores Onde encontrar a revista

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ENSAIOS

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14 Literatura e Sociedade

O EXEMPLAR E O CONTINGENTE NO TEATRO DAS EVIDÊNCIAS

ResumoO binômio indexalidade-iconicidade postula(va) a imagem e o som do cinema como evidências de um confronto com o real que, por enquadramento e montagem, recebe(ia)m os ajustes portadores de sentidos. Filmes contemporâneos exibem, entre outras estratégias, procedimentos miméticos afinados à narra-tiva clássica que busca o exemplar (um aspecto de Ônibus 174, de José Padilha), ou jogos de cena de um cinema-ensaio que explora a teatralidade induzida pelo efeito-câmera e, em con-trapartida, ressalta o inesperado, o contingente (documentá-rios de Eduardo Coutinho); nessa tensão entre o teatro, o jogo das vozes e a evidência ocular, há passagens em que a explora-ção da indexalidade-iconicidade engendra o que se pode cha-mar de microrrealismo (o outro lado de Ônibus 174).

Abstract For their iconic and indexical properties, cinematic images and sounds are usually taken as the privileged occasion of an “en-counter with the real”, to which operations like framing and edi-ting can give particular meanings. Documentary films take this into account to create specific “effects of the real”, sometimes through strategies borrowed from classical narrative cinema, when the filmmaker focuses on someone who is seen as an exem-plary character vis-a-vis social reality (one side of Bus 174), sometimes through a self-conscious mise-en-scène which explores the almost inevitable theatricality implied by the presence of the camera, but also calls our attention to what is contingent, unex-pected, in the interaction between the filmmaker and the subject before the camera (Eduardo Coutinho’s recent films). Given the set of tensions involving words, bodies, gestures and visible evi-dences, there are sequences in which the exploration of those em-blematic properties create what we can call micro-realism (the other side of Bus 174).

ISMAIL XAVIER

Universidade de São Paulo

Palavras-chaveCinema contemporâneo; documentário; indexalidade--iconicidade; teatralidade; microrrealismo.

KeywordsContemporary cinema; documentary; iconic and indexical proprieties; theatricality; micro-realism.

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ISMAEL XAVIER O exemplar e o contingente no teatro das evidências 15

Neste artigo,1 meu objetivo é explorar os ajustes e tensões que se engen-dram entre o nível do estilo – onde operam os procedimentos específicos ao cine-ma e ao vídeo, como o trabalho da câmera, a mise-en-scène, a montagem em seus dados da microestrutura – e o nível da trama, ou seja, aquele dado de macroes-trutura (ou movimento) que o cinema partilha com outras formas de discurso (romance, teatro e outros mais): as formas narrativas, sistemas dramáticos. O essencial, portanto, é a passagem pelo detalhe, pelo que se instala na textura de imagem e som, alterando os valores associados a determinadas estruturas mais amplas de um filme.2

1 Este artigo é uma versão modificada de minha contribuição ao livro organizado por Lúcia Nagib que será editado na Inglaterra e que reúne as comunicações e palestras conferidas na “Confe-rence on Realism and Audiovisual Media”, evento que teve lugar na Universidade de Leeds, promo-vido por The Centre for World Cinemas, em dezembro de 2007. Incorporo aqui também muitas passagens de minha comunicação no Seminário Internacional “Retornos do Real: cinema e pensa-mento contemporâneos”, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 2009.

2 David Bordwell trabalha a distinção dos formalistas russos entre fábula e trama (dados de macroestrutura), mas acresce um terceiro termo, o estilo. Esse se define nos procedimentos que envolvem o que é específico a uma forma de discurso e atestam escolhas feitas no trato mais direto do material da expressão; no caso do cinema, falar do estilo é falar do trabalho com a câmera, da montagem, das formas da encenação e iluminação, da trilha sonora, colocando tais escolhas em correlação com tudo o mais na obra. Fábula e trama são dados de estrutura e diegese que, por exemplo, um filme pode partilhar com um romance, mas a comparação entre estilos já implica uma operação mais complexa, dada a diferença entre as matérias da expressão, imagem-som versus tex-to escrito. Pode-se falar em transposição, afinidade, correspondências, mas isso requer a análise em detalhe, ou seja, a consideração dos dados de microestrutura. Nada de novo, enfim, pois é disso que trata usualmente a análise de estilo, quaisquer que sejam as implicações que o crítico esteja ou não disposto a enxergar (ver David Bordwell, Narration in the Fiction Film, Madison, University of Wisconsin Press, 1985; ver também, Ismail Xavier, “Do texto ao filme: a trama, a cena e a constru-ção do olhar no cinema”, in Literatura, cinema e televisão, São Paulo, Senac, 2003).

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Considerando o nível do estilo (onde se lida com o específico), o que me in-teressa aqui em particular é a presença inexorável de um processo de teatralização gerado pelo efeito-câmera. É sobre esse efeito em nossa cultura, incluindo a vida cotidiana, e suas implicações na produção da experiência (se quiserem, produção do real) que giram muitas de nossas discussões. O efeito-câmera, como instância do olhar, se exerce na criação do campo visível que ganha uma dimensão de cena.3 Nessa, há a composição (a geometria do processo) e há o campo de energia, esse da intervenção da câmera pela sua presença e sua interação com o que está diante dela, dissolvendo a ideia de registro “objetivo”, passivo, que manteria a separação radical entre olhar e objeto. Há aí um regime de presença (performance, atuação para um olhar definido), um “estar em situação” muito caro à fenomenologia, mas seria ingênuo supor nesse estar-aí, nessa atuação, uma aura absoluta de autenti-cidade e verdade.

Diante de câmera-e-microfone, no momento do encontro, podemos ter um ato de entrevista ou a atuação de um performer, como é o caso do filme de ficção convencional. Na macroestrutura do filme, podemos ter diferentes esquemas, desde o que se insere em gênero aceito ou tradicional – ou num estilo de repre-sentação em que se pode falar em realismo no sentido mais tradicional – até obras que se movimentam em zonas de fronteira que dissolvem a separação de ficção e documentário, ou são flexíveis na regra do jogo que envolve o olhar da câmera e o tipo de ação que ela registra. Essas marcam um tipo de confronto entre o cinema e o mundo em que a ideia do real não conduz a um tipo standard de representação, mas a jogos mais complexos em que o que se impõe é o acon-tecimento (o real) instaurado pela experiência da filmagem e suas consequências para todos os envolvidos.

No documentário contemporâneo, temos visto uma variedade de caminhos na construção da cena e, dentro dela, da “personagem”. Ora temos uma figura pre-sente ao longo de um filme que nela se concentra – como é o caso de Sandro em Ônibus 174 (2002), de José Padilha e Felipe Lacerda, ou o do pianista Nelson Freire em Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, ou do índio Carapiru, em Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci. Ora trata-se de uma pessoa desconhecida em entrevista de duração variável, quase sempre reduzida a uma única cena, como acontece nos filme de Eduardo Coutinho. Há muitas formas de o sujeito ou “per-sonagem” entrar em cena, compor a sua imagem, ou mesmo ser objeto de outros relatos que oferecem uma imagem indireta, mediada.

Tomando como centro a questão da personagem, da cena e das formas de pre-sença dos corpos e das vozes, vou destacar – com breve comentário – dois casos em que se instala um laboratório formal e social, laboratório que envolve dominação,

3 Tomo cena aqui na acepção de Barthes. Em “Diderot, Brecht, Eisenstein”, ele nos lembra a relação existente entre teatro e geometria, que supõe um “lugar calculado” do olhar que observa as coisas, mira numa certa direção e corta uma superfície de modo a formar com esta um cone. Neste, temos o lugar da ação, o recorte, o olhar que observa (ver Roland Barthes, L’obvie et l’obtus: essais critiques III, Paris, Seuil, 1982, p. 86).

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ISMAEL XAVIER O exemplar e o contingente no teatro das evidências 17

negociação, acordo, operações sem as quais tais formas não seriam possíveis como formas variadas do retorno do real na produção de artefatos.

O cinema brasileiro contemporâneo, ao lidar com a experiência social, se con-fronta com uma esfera pública marcada pela hegemonia exacerbada da televisão como veículo construtor de identidades sociais e regulador das vozes políticas. Como resposta, e não apenas em razão disso, os cineastas desenvolveram um con-tradiscurso de som e imagem voltado para o debate das questões reprimidas ou que se fazem presentes no discurso da mídia como um feixe de clichês, parte de um processo de administração do imaginário. Nesse gesto, os filmes se mobilizam para produzir um certo efeito-do-real por diferença, o que permitiria o recurso a uma noção de “realismo” como traço diferencial, em que um discurso ou um es-tilo atesta sua potência de revelação por sua oposição à convenção sedimentada e aos discursos que já se fizeram clichês.

Coutinho: a construção das personagens e o cinema moderno

O primeiro exemplo a considerar é o de Eduardo Coutinho. Edifício Master (2002) e Santo Forte (1999) são filmes de câmara – no sentido do concerto de câmara – em espaços fechados, com um número mínimo de personagens em cena; uma versão minimalista, depurada, do documentário baseado na entrevista, em que essa se torna a forma dramática exclusiva – momento único de presença das personagens que não têm nenhuma interação continuada com outras figuras de seu entorno. A cena produzida pelo efeito-câmera procura as falas mais longas que favorecem a produção de momentos inesperados, em que a auto-mise-en-scène (Jean Louis Comolli)4 traz essa amálgama do programado e do espontâneo, aquilo que o cinema moderno denominava “momentos de verdade”, sempre ambíguos em razão da mistura de autenticidade e exibicionismo, de um fazer-se imagem e fazer-se sujeito produzido pela efeito-câmera. Alguém fala sobre si, alguém es-colhido porque se espera que não se prenda aos clichês relativos à sua condição social e traga uma expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, nar-rar, vivendo a dualidade que está na fala de Alessandra, a garota de programa de Edifício Master, exemplo de intuição daquela ambivalência implicada no efeito-câmera. Com bom humor, ela comenta a sua condição de “mentirosa verdadeira”, depois de uma sedutora performance em que explicou como se pode mentir quan-do se fala a verdade ou ser verdadeiro quando se mente.

Forma atual de inversão do paradoxo do comediante (Diderot) intuída por uma jovem inteligente? reconhecimento definitivo do documentário como um jogo de cena?

As perguntas procedem, mas há algo mais aí, sem dúvida. Essa dualidade, conhecida dos cineastas, é frequente nas situações de entrevista, mas Coutinho,

4 Ver Jean-Louis Comolli, “Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène no documentário”, in Ver e Poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009.

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18 Literatura e Sociedade

em particular, sabe como poucos criar o ritual, compor o cenário que torna con-creta uma filosofia do encontro que não é difícil formular em teoria, mas cuja rea-lização é rara. Nem sempre o efeito catalisador do olhar do cinema propicia a fala expressiva em sua potência máxima, de modo a compensar o que há aí de progra-ma e de assimetria dos poderes que o cineasta deve trabalhar sem a ilusão de subtraí-la, por maior que seja a sua disposição para a escuta. De qualquer modo, sua procura é pelo momento expressivo, as surpresas e acasos, os lapsos que se insinuam no pormenor – na palavra, na hesitação ou no gesto notável feito por mãos seguras (como o de Dona Teresa, em Santo Forte). Valem as condições que podem gerar uma abertura para o acontecimento e uma compreensão não escora-da em categorias predefinidas, uma fenomenologia atenta ao que permite ao en-trevistado pontuar o processo (de novo, como Dona Teresa).

Não uso por acaso esse vocabulário de feição existencial-humanista típico aos anos 1960, pois há clara afinidade entre a observação da fala e do gesto (em Cou-tinho) e a concepção que se tinha da personagem no cinema moderno, com seu movimento de ruptura com a linearidade da experiência (ou do argumento) que inscreveria cada momento vivido numa lógica determinada, de modo a fazer que, digamos, a verdade de um sujeito fizesse necessária uma concatenação, um enga-jamento em momentos sucessivos de ação aptos a compor uma área de conflitos e decisões, uma história de vida a que teríamos acesso por meio de narrativas como veremos acontecer em Ônibus 174, embora no caso do filme de Padilha a história (ação, espaço, tempo) e seus agentes em conflito não tragam aquela com-posição orgânica que os faria modelos de coerência, mais próximos de um tipo ideal do que indivíduos.

Sabemos que, na ficção clássica, o importante era aparentar verdade, ser veros-símil pela coerência interna das relações, e não buscar o “verdadeiro” no sentido do fato realmente acontecido. A representação da lógica do mundo envolvia a fo-calização do que podia acontecer e que seria mais típico a uma certa ordem de coisas; não a exposição do que empiricamente acontece em certo local e hora, pois o acontecido pode ser improvável, extraordinário, não tendo classicamente um valor de representação da ordem do mundo, porque não característico. Para o ci-nema moderno, tais pressupostos se desdobram em convenções que cabia recusar. Tanto os filmes quanto a crítica a eles afinada ressaltaram que o ponto decisivo pode estar em algum marco do caminho, na força de cada episódio, no que há de revelador em cada instante de vida (onde podem emergir os dados que escapam à racionalidade da concatenação), dentro do que pode ser uma série descontínua, até arbitrária, de experiências. Em consonância, o que se fez foi esgarçar a narra-tiva, tornar mais independente cada episódio, explorar os efeitos da perambula-ção, os impasses, a impotência da ação, ativando uma sensibilidade ao fragmento, ao que se esboça, mas não termina, consagrando o instante, como diria o poeta a respeito de seu ofício.

A personagem moderna pode ser mais errática, não se define inteira no seu destino, pois o desenlace nem sempre é consequência lógica de premissas contidas nas ações já vividas; há lugar para a incoerência, opacidade de motivos, sucessão mais aberta em que há a brecha para que algo inusitado ocorra. É um campo de

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descontinuidades, do mesmo tipo do que ocorre, por exemplo, na sucessão desses momentos em que se dá a conversa entre sujeito e cineasta no documentário, desde que esse se atenha à entrevista como forma.

Em Coutinho, o ponto-chave é a “agonia” (Agon) do entrevistado, no sentido de desafio, confronto com o aparato do cinema, sua performance na situação, lan-ce às vezes efêmero num processo marcado pela contingência, tal como se deu na “ficção moderna” quando pensamos a relação entre o ator e a câmera. Na série de entrevistas que compõem os seus filmes, a composição da cena e de sua duração busca produzir algo que, apesar da montagem e seus fluxos de sentido, retém um quê de irredutível na atuação do sujeito, mais ou menos revelador, sempre confor-me o que uma combinação peculiar de método e de acidente permita. Assim, o drama aí se decide em outro eixo: o da exclusiva interação do sujeito com cineasta e aparato – única ação pela qual os entrevistados podem ser compreendidos, jul-gados, ao contrário de uma narrativa em que ganhariam sua definição, como per-sonagens, pelas decisões que tomassem no seio de sua interação com outras perso-nagens. Tudo se concentra na performance da entrevista, e essa, embora balizada pela situação criada pelo cineasta, não segue um script fechado. A falta de script, por seu lado, está longe de indicar uma liberdade absoluta, pois continuam aí presentes as pressões do verossímil, a questão da aparência de verdade que pres-siona o entrevistado que pode compor a sua fala segundo o que julga ser a opinião do interlocutor (o cineasta e a “opinião pública” que a câmera representa). Essa é uma postura que Coutinho combate com vigor, embora às vezes ela se coloque como um imperativo para o entrevistado que se empenha em combater estereóti-pos a seu próprio respeito, denunciar o preconceito do mundo sobre sua comuni-dade (lembremos o filme Babilônia 2000 (2001), na favela do morro da Babilônia que, em várias passagens, está marcado por essa atitude dos entrevistados, cientes de que há uma imagem a combater quando estão diante da câmera).

O que Coutinho busca é o efeito-câmera no que esse tem de cumplicidade, por assim dizer, com a esfera do contingente que, no entanto, não se pode tomar como lugar do espontâneo, da ação autônoma, absorvida em si mesma, mas como lugar da ambivalência. Ele compõe assim o que se pode tomar como uma fenomenologia que investiga o campo visível e o ato de fala em sua dupla face, ciente de que a experiência em foco permanece numa zona de instabilidade, algo entre a utopia de André Bazin (o “ser em situação” se revelando em sua autenticidade) e o franco jogo de máscaras. Se o efeito-câmera tem esse poder catalisador da confidência que muitos veem como um pilar do documentário, isso é um sinal de sua força, mas não de sua “objetividade” ou neutralidade, tampouco da ideia de que tudo aí é terapia, embora seja uma experiência que afeta as pessoas. Elas não serão as mes-mas após esse momento da performance em que se investiram da condição de su-jeitos, e o cinema de Coutinho tem mostrado que elas são mais do que aparentam e não menos, e atraem um interesse insuspeitado pelo que evidenciam de singular, e não pelo que representam ou ilustram na escala social e no contexto da cultura.5

5 Sobre esse aspecto, ver Consuelo Lins, “Coutinho encontra as fissuras do Edifício Master”, Sinopse, n. 9, agosto 2002.

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Tal movimento afirmativo se faz de “narradores de si mesmos” às voltas com o efeito-câmera; ele radicaliza o estatuto da palavra no cinema, valorizando a orali-dade, sem alimentar a ilusão de falas plenas a todo instante, pois muito nos filmes se faz como exposição do que há de inacabado nessa autoconstrução da persona-gem que molda um estilo. Isso se expressa com nitidez no filme Peões (2004), quando o cineasta entrevista operários da indústria automobilística, sujeitos cujo cotidiano se marca em grande parte pela interação com as máquinas e para quem a palavra tem um outro estatuto, se comparada com a fala de sujeitos cujo cotidia-no envolve um engajamento mais intenso com a conversa e a cena da rua, com lances de sociabilidade.

Em sua espécie de antropologia discreta, o cineasta segue um princípio socrá-tico nas entrevistas, atuando como uma parteira que catalisa a fala do interlocu-tor. Se há a ideia de realismo, essa vem da situação produzida, esse happening tornado possível pela presença da câmera, lugar da ampliação de experiências. Tal realismo, gerado pelas contingências próprias a esse momento de performance sem script, se afina à forma como Ernst Gombricht define o efeito-do-real nas artes visuais. Para ele, o senso de realismo se produz quando nossa percepção encontra a cena que não corresponde a um conceito prévio. Através da forma e do estilo, no jogo entre expectativa e observação, a nova forma provoca o efeito de irrupção do real na medida em que abala convenções e saberes, tal como o fez o cinema moderno.6

A construção da personagem em Ônibus 174: a moldura clássica e o microrrealismo

Caminhando em outra direção, encontramos o filme de Padilha e Lacerda, Ônibus 174, que, ao contrário de Coutinho, constrói seu protagonista por múlti-plos canais e procedimentos, compondo a experiência social como um drama em que vale uma constelação de conflitos concatenados, tornando-se central na cons-trução da personagem o momento em que, diante de uma situação limite, ele de-cide e toma a ação para definir um destino.

A história é conhecida. Um jovem, Sandro, tenta roubar passageiros de um ônibus, as coisas não dão certo e, no impasse criado, a polícia cerca o ônibus du-rante horas, até que ele decide, de forma inesperada, abandonar o veículo, levando consigo uma das reféns que mantivera durante o cerco. Na confusão da saída, a jo vem refém é morta e ele, preso, para depois, longe do olhar das câmeras de tele-visão que registraram a evolução do sequestro, ser assassinado no carro da polícia, a caminho da delegacia.

A montagem do filme alterna as imagens da tarde do assalto – geradas por câmeras de reportagem da TV e por câmeras controladoras do tráfego – com um leque de entrevistas que cumprem diferentes funções, envolvendo os policiais que

6 E. H. Gombrich, Art and Illusion: A Study in the Psychology of Pictorial Representation, Princeton, University of Princeton Press, 1969.

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participaram do cerco, as moças que foram tomadas como reféns no ônibus e pes-soas que conheciam a história de Sandro, desde a infância. Além disso, o filme in-sere imagens de diferentes presídios do Rio e Janeiro, quando se evidencia o absur-do das celas abarrotadas, dos corpos tratados como peças num depósito, gerando a agonia dos presos que, em alguns casos, gritam o seu protesto que vem confirmar a imagem composta pelos depoimentos dos entrevistados. O retrospecto da vida de Sandro se constrói como um “discurso dos outros”, acompanhado de evidências documentais que compõem episódios contundentes, seja do infante que viu a mãe ser brutalmente assassinada em sua casa, seja do menino de rua cujos amigos fo-ram massacrados nas escadarias da igreja da Candelária, seja do jovem preso mais de uma vez.7 As moças falam da experiência de reféns e explicam detalhes do com-portamento de Sandro; seu discurso é compatível com a imagem dele construída na biografia trazida por outros depoimentos. Um sociólogo, Luiz Eduardo Soares, oferece dados do contexto social e trabalha conceitos que sugerem a vida de pobre excluído de Sandro como uma boa explicação para a sua violência, resposta a uma dinâmica social iníqua que o descarta. Os policiais narram a sua versão de certos detalhes da operação, e justificam os erros. E há um rapaz encapuzado, experiente em assaltos, cuja entrevista o coloca no papel de um comentador apto a atestar a incompetência de Sandro, suas escolhas erradas a cada etapa.

Todas essas falas se alternam com o fluxo das imagens daquela tarde colhidas em tempo real, material de arquivo que Padilha e Lacerda organizam com muita habilidade, condensando o drama que durou horas e compondo uma sequência de episódios que, tomados ao vivo, se estrutura como um filme de ficção, com a intensidade de um thriller. Cria-se o suspense que se apoia no efeito-câmera (pre-sente nas imagens de arquivo) e na montagem que articula as imagens e sons para dissecar a evolução dos acontecimentos e destacar o momento do seu clímax (o tiroteio final), como só o cinema e o vídeo o poderiam fazer.

Nesse caso, o Agon do protagonista se instala no próprio seio de um conflito social agudo que envolve a sua ação, o cerco da polícia e as reações das reféns que ele mantém dentro do ônibus. A situação de impasse se desdobra numa performan-ce trágica de Sandro diante de uma assembleia de espectadores in loco, performance amplamente comentada pelo mosaico de depoimentos que discutem o acontecido a posteriori, propondo sentidos para as ações. Quando chegou a esse momento da grande cena final de sua vida, Sandro conhecia a corrupção policial, a repressão e o horror do sistema penitenciário. E sabia do valor da presença da mídia para a sua sobrevivência (longe das câmeras, pensava, seria morto, o que se confirmou). A vida lhe ensinara e ele procurou explorar, pelo menos ali, o efeito-câmera a seu favor. De um lado, fez o teatro dentro do ônibus, dirigindo as moças na composi-ção de certas cenas capazes de gerar pânico fora do ônibus, embora feita de mortes

7 O massacre da Candelária ficou célebre no Brasil. Um grupo de pistoleiros, contratados supos-tamente por comerciantes das redondezas, atirou a sangue frio nos meninos que dormiam na esca-daria da igreja, matando um grupo com quem Sandro costumava conviver. Ele sobreviveu porque não estava lá naquela noite.

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simuladas e tiros de efeito que passariam a imagem clichê do bandido. De outro, se expôs na fala direta com os policiais fora do ônibus, em especial quando pôs a cabeça para fora da janela e gritou a todos o que seriam fragmentos de uma “coleti-va de imprensa”. Os de fora têm certas expectativas e ele atua contando com isso, num misto de deliberação, de desajeito e de explosão emocional gerada pelo que lhe foi sonegado, de cabo a rabo, na vida – seria preferível morrer a mofar na pri-são-inferno, sua conhecida. A ação reflexa, o desespero e os lances de teatro defi-nem a forma como Sandro se fez uma encarnação ambivalente do estereótipo.

Temos então, em Ônibus 174, a construção da cena de abertura e a composição do longo retrospecto, num movimento afinado ao das formas narrativas que tecem os fatos para situar o momento decisivo como um provável desfecho da persona-gem em seu confronto com a engrenagem social. Observei que todos os depoentes julgaram a decisão de Sandro (sair do ônibus) surpreendente, inesperada, o que coloca em pauta a discussão de seus motivos naquela tarde, discussão que o filme alimenta com o retrato de Sandro construído pelos depoimentos, uma descrição externa do seu perfil psicológico. No entanto, sua imagem vem ganhar seu contor-no mais preciso, ou mais enigmático, a partir da decisão que ele toma, aquela que precipita o desenlace, como no drama clássico.

No nível de sua macroestrutura, o filme articula a cena central e o retrospecto de vida para sugerir um sentido ao episódio registrado nas imagens da TV: dentro da lógica social vigente, Sandro se constrói como figura exemplar, e as determinações sociais oferecem um contexto para que se compreenda o teor de sua experiência e suas decisões naquela tarde. Há, portanto, essa dimensão de realismo clássico pre-sente no filme. No entanto, há algo mais nesse jogo, pois o filme elabora todo um discurso com as imagens das câmeras de TV, explorando as propriedades do meio, chegando no final a um microrrealismo que amplia o instante decisivo para subli-nhar a sua conotação trágica em que o protagonista se desenha como uma vítima entre outras, não como algoz.8

Preparado o terreno pela montagem da evolução do drama, sugerida a cres-cente perda do controle por parte da polícia e do próprio Sandro, as imagens na sequência final compõem, em detalhe, repetindo mais de uma vez, o momento em que ele decide sair do ônibus com Geisa, a moça morta no tiroteio. Nesse lance final de sua caminhada fora do ônibus, a teia dos pormenores, de enorme instabi-lidade, incorpora a parte do acaso na composição do desfecho, algo que não exclui o despreparo da polícia e, ao mesmo tempo, trabalha a fração de tempo em que é impossível detectar qualquer decisão de Sandro quando um policial avança e atira, cena mostrada em câmera lenta, mais de uma vez. Atos reflexos, reações motoras: isso traz uma percepção distinta, nuançada, para a informação da perícia policial de que três das balas encontradas no corpo de Geisa saíram do revólver de Sandro (uma delas saiu do revólver do policial que errou o alvo em sua precipitação).

8 O termo microrrealismo vale aqui como uma forma empírica de sinalizar o detalhamento permitido pela câmera-lenta e a repetição, sem nenhuma referência a seu eventual uso na crítica li-terária para caracterizar procedimentos de escritores.

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O suspense de Ônibus 174 encaminha nossa emoção (pois é disso que se tra-ta) em diálogo com uma estrutura narrativa clássica, mas seu lance final trabalha a montagem vertical de imagem e som de modo a dilatar, pela câmera-lenta, o instante decisivo e criar o tempo necessário para o comentário das vozes. Tal microrrealismo – versão prismática do instante – resulta do estilo de montagem adotado desde o início, mas vem instalar outro regime, pois interrompe o fluxo das ações em seu clímax, e faz desse momento o objeto de uma insistente obser-vação visual fortemente conotada pelas narrações que, em voz over, trazem o testemunho dos que estavam envolvidos na cena, notadamente os policiais. É desse coro de vozes que se compõe o teatro das evidências, os enunciados que se referem a mínimos detalhes das ações simultâneas que convergiram naquele mo-mento; as imagens permanecem ambíguas, embora tenhamos a chance de olhar a cena dos tiros e da morte de Geisa várias vezes – essa morte repetida na tela do cinema seria uma profanação indevida aos olhos de alguém como André Bazin, e tem efetivamente uma dimensão de fascínio nesse binômio de voyeurismo e de vontade de saber pela evidência ocular.

Essa detalhada repetição do instante compõe o microrrealismo de Ônibus 174, lance que se apoia na propriedade específica da imagem em movimento e vem realçar o que houve de contingente no momento decisivo. Esse é um aspecto forte na estratégia de Padilha e Lacerda que não querem ver dissolvida, pela impu-tação moral de culpa absoluta ao protagonista, a questão mais relevante trabalha-da ao longo do filme, ou seja, a produção social de Sandro como figura exemplar do excluído. Há nessa articulação entre a macroestrutura e o microrrealismo um movimento em direção à necessidade – ou seja, determinações mais amplas do contexto social explicam a trajetória de Sandro – e outro em direção à contingên-cia – ou seja, em detalhe a configuração do momento decisivo realça o que houve de inesperado, acidental, pouco explicável nas decisões de todas as partes, enca-minhando a resolução do impasse para o pior.

Dessa tensão entre o necessário e o contingente emergem o senso da comple-xidade e a dimensão do trágico, condição para o combate contra o estereótipo da figura do mal que tanto assombra o imaginário da mídia em sua condução do debate público sobre a violência social.

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CAINDO NA REAL: NOTAS SOBRE O REALISMO INUSITADO EM BECKETT E EURÍPIDES

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Universidade de São Paulo

ResumoQue “realismo” se esconde sob um teatro dito “do absurdo” como o beckettiano? O que pode significar a mesma ideia relacionada ao mundo da tragédia euripidana? Comparando a recepção crítica de Dias felizes e Electra, este ensaio busca explorar um conceito cuja utilidade rivaliza apenas com sua labilidade.

Abstract What kind of “realism” might be found in a dramatic work known worldwide as “absurd”? What should we take for “realism” having Euripides’ tragedies in mind? Comparing Happy days’ and Electra’s critical reception, this paper explores a manifolded concept, which has proved itself as useful as deceitful.

Palavras-chave Beckett; Eurípides; Dias felizes; Electra; realismo; tragicomédia e comitragédia.

Keywords Beckett; Euripides; Happy days; Electra; realism; tragicomedy and comitragedy.

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Vinculada na origem à experimentação e à ruptura de gêneros típicas do alto modernismo, tida em sua vertente dramática como alicerce maior de um “te-atro do absurdo”, a obra de Samuel Beckett (1906-1989) é erradamente relegada pelo automatismo crítico às regiões antípodas do realismo, tradição contra a qual seus romances e peças teriam se imposto. Um dos nós da questão está na elastici-dade do conceito, ora remetendo a um período preciso da história literária pós-romântica, ora a um processo de longa duração, a progressiva invasão da alta lite-ratura ocidental pela representação séria do cotidiano humilde, pedra de toque da crítica de Erich Auerbach. Nenhum desses dois aspectos mencionados do realis-mo é indiferente ou dispensável à compreensão e à apreciação da obra beckettiana. Por um lado, não há Molloy sem Rastignac, nem Winnie sem Nora. Beckett chega ao cabo de um ciclo; a impossibilidade de ação e a razão tortuosa que amarram seus solitários protagonistas são expressão do beco sem saída a que se viu confi-nado o sujeito burguês na esteira da alienação contemporânea. Por outro, há uma dimensão mimética em sua obra construída a partir de farrapos de linguagem e restos de erudição e cultura letrada, a mimese em segundo grau de que nos fala Adorno, que faz pensar na culminância do tratamento sério de aspectos prosaicos da realidade que Auerbach estudou.1

Para pensar esse realismo a contrapelo, por terra e aterrador, que se esconde por trás da estranheza de suas personagens – ora vagando a esmo, ora imobiliza-das à força, solitárias em meio a uma babel interior de vozes alheias –, é preciso, contudo, focalizá-lo e exorcizar alguns fantasmas críticos. Penso que nem as lei-turas essencialistas, que ignoram a força da impregnação histórica de seu material estético, nem as que, no polo oposto, se baseiam em um literalismo historicista, atribuindo peso explicativo a determinadas vivências biográficas ou acontecimentos

1 Theodor Adorno, “Versuch, das Endspiel zu verstehen”, in Noten zur Literatur, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981.

“Eu suava em bicas. (Pausa.) Antigamente. (Pausa.) Agora, quase nada. (Pausa.) O calor

aumentou. (Pausa.) A transpiração diminuiu. (Pausa.) É isso que eu acho maravilhoso. (Pausa.) Como

o homem se adapta. (Pausa.) Às condições que mudam.”

(Samuel Beckett, Dias felizes)

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históricos singulares, nos levam muito longe. Um bom ponto de partida, ainda que nada novo, seria levar em conta o quanto o realismo em Beckett se afirmou em polêmica modernista contra o XIX, “século sério”, de que nos fala Franco Moretti, em que o romance e o drama burguês alcançaram seu apogeu. Com acerto, Carla Locatelli mostra como os recursos técnicos de sua prosa inicial, compreendendo o volume de contos More pricks than kicks e o romance Murphy, jogavam parodica-mente com os fundamentos do realismo formal e só se deixam compreender no diálogo intertextual com os pontos altos dessa tradição, de Sterne a Balzac. O salto estranhador veio com a trilogia romanesca parisiense do pós-guerra (Molloy, Ma-lone morre e O inominável) em que aquela ironia intertextual cedeu espaço a um novo patamar de corrosão das convenções narrativas, agora interno ao texto, pro-duzindo obras de máxima tensão e no limiar da ruptura formal, mas tramadas a partir de matéria prosaica e cotidiana.2

De passagem, é preciso notar que a percepção da insuficiência da forma ro-mance tal como amadurecida pelo realismo formal não é produto de uma inteli-gência aberrante ou singularmente genial, mas sintoma disseminado do esgota-mento de um modelo (o que vale também para o naturalismo no teatro). A disputa em torno do como interpretar essa crise de gêneros – uma involução esté-tica ou um alargamento do realismo que permite sua sobrevivência – é o fulcro de conhecida polêmica entre Adorno e Lukács, na qual a obra de Beckett figura como um dos pomos da discórdia.3

Não por gosto de pisar em ovos, mas pelo curioso paralelo na recepção crítica, proponho-me a rever os termos da equação do realismo em Beckett à luz de outra obra que, mesmo fora de qualquer figurino realista estrito e apesar do risco evi-dente de anacronismo, tem sido assim qualificada repetidas vezes. Fruto da pro-dução madura de Eurípides, o “mais trágico dos trágicos” segundo Aristóteles, Electra contrasta enormemente com o tratamento que a vingança dos filhos de Agamêmnon contra os algozes do pai – Clitemnestra, a mãe, cabeça do assassinato, e Egisto, seu cúmplice e amante, usurpador do trono – recebeu nas peças de Ésqui-lo (Coéforas) e Sófocles (uma homônima Electra) dedicadas ao mesmo mito. Essa discrepância inúmeros comentadores modernos atribuíram à presença difusa de um vago realismo na peça.

“Realista comparada a quê?” é a pergunta que fica aos leitores modernos de Eurípides e da resposta, por mais tateante que seja, também haverá algo a apren-der e precisar sobre a pertinência do conceito para o estudo da obra beckettiana. Para extrair o máximo da comparação, aproximo a Electra de Eurípides a uma única peça do autor de Godot, um texto que também traz uma protagonista femi-nina em primeiro plano quase exclusivo. Falo da Winnie, de Dias felizes, que, presa até a cintura, depois até o pescoço, na terra crestada de uma colina, sob um

2 Cf. Carla Locatelli, “Typologies of meaning in Beckett’s narratives”, in Unwording the world: Samuel Beckett’s prose works after the Nobel prize, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1990.

3 Ver Georg Lukács, Significiación actual del realismo crítico, trad. Maria Teresa Toral, Mexico, Ediciones Era, 1963; e Theodor Adorno, “Erpresste Versoehnung – zu Georg Lukács: Wider den missverstanden Realismus”, in Noten zur Literatur, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981.

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sol a pino sem trégua, choca os espectadores pela naturalidade com que enfrenta o insólito de sua situação.

Electra e a tragicomédia: raízes do realismo euripidiano

“Nada é mais engraçado que a infelicidade.”

(Samuel Beckett, Fim de partida)

Os traços perturbadores da Electra, de Eurípides, escrita provavelmente entre 420 e 413 a.C., concentram-se na primeira metade da peça, desafiando desde a abertura as convenções da tragédia ateniense, já firmemente estabelecidas àquela altura do século V. Quem primeiro nos apresenta as circunstâncias envolvendo a infelicidade de Electra, aviltada e longe do palácio, é o marido arranjado da he-roína. Trata-se de um camponês, anônimo e de baixa estirpe, escolhido a dedo por Egisto para afastar a sombra de possíveis futuros rivais, herdeiros reivindicando o poder que ele obteve de maneira criminosa. Humilde, porém honesta, a fala ini-cial do marido defende a decisão de não consumar um casamento de fachada em respeito ao abismo social que o separa da esposa – “Sabe Afrodite que este que vos fala / jamais deixou de ser respeitador,/ jamais a deflorou! De classe baixa,/ me avexa o ultraje à filha do ricaço!”. Revela também sua natureza pragmática, tam-bém preocupada em resguardar a própria reputação e deixando claro que, se ne-cessário, desceria à troca de insultos: “Quem me chamar de frouxo por manter/ a virgem intocada na choupana,/ saiba que mede o certo com parâmetros/ torpes, os seus! Devolvo o xingamento!”.4

Desde logo maculada pelos tons risíveis, se não ridículos, do monólogo inicial, lavagem pública de roupa suja doméstica, a dignidade trágica do tema da vingança de Electra e Orestes e da iminência de nova morte no seio da funesta família abala-se ainda mais à primeira aparição de Electra. Equilibrando um cântaro na cabeça, disposta a buscar pessoalmente a água necessária à rotina da casa, apesar da insis-tência em contrário do marido, ela se mostra de uma amargura ressentida bem pouco sublime, exagerando a própria humilhação e repleta de autopiedade afetada. Comprazendo-se no papel de serva de si mesma, essa Electra lata-d’água-na-cabeça abordada por estrangeiros desconhecidos (na verdade, seu irmão Orestes e o amigo Pilades, incógnitos, vindos para resgatar a honra de seu pai) ralha estrondosamente com o marido que lhes oferece hospitalidade: como receber gente nobre em casa tão humilde? O que servir aos convivas? Que vergonha, o que dirão do como estou vestida? O gesto acolhedor deste último, por sua vez, tampouco vem sem titubeio. O camponês precisa vencer a profunda irritação que a atitude inconveniente, no limite do indecoroso, dos recém-chegados – conversando, animados, com sua mu-lher desacompanhada – lhe desperta.

A rusga do casal expõe seus pretextos comezinhos, estranhos à natureza do trágico, sem pejo algum. Não é piedade ou terror que o realismo doméstico dessas

4 Cf. Sófocles/Eurípides, Electra(s), trad. e pref. Trajano Vieira, São Paulo, Ateliê Editorial, 2009, p. 82.

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cenas desperta. É riso. Tanto que Bernard Knox não hesita em fazer traçar a partir delas a origem da comédia moderna (muito diversa da comédia aristofânica con-temporânea do auge da tragédia), fazendo de Eurípides o núncio precoce de uma linhagem que, inaugurada por Menandro, conduz de Plauto e Terêncio, passando pelos dramaturgos renascentistas, aos grandes nomes da tradição europeia do gê-nero, de Shakespeare a Oscar Wilde.5 Trata-se da comédia de costumes, das intri-gas familiares entre pai e filho, marido e mulher, das identidades trocadas e reve-ladas, da superação das desavenças entre pretendentes apaixonados e pais zelosos. A ruptura do sistema de gêneros dramáticos que a novidade da Electra euripidiana força no final do século V ateniense – alterando decisivamente sua estrutura e pro cedimentos composicionais, como atesta a redução da importância antes cen-tral do coro – é que torna o cotejo com Dias felizes de tanto interesse. Também no contexto moderno estamos às voltas com um alargamento de possibilidades ex-pressivas que, em grande parte, radica nessa combinação inédita de recursos trá-gicos e cômicos, reordenação das convenções formais dos gêneros puros em mo-mento de crise e esgotamento de modelos bem estabelecidos.6

Como no caso de Beckett, campos muito diversos são recobertos pelo emprego intuitivo, indiscriminado e generalizado do termo “realismo” entre os comentado-res da Electra euripidiana. Em recente balanço do estado atual da questão, Barbara Goff agrupa seu uso mais recorrente em quatro grandes categorias.7 Primeiro, há os que como H. D. Kitto e Friedrich Solmsen identificam no desenho da personagem o dedo do realismo psicológico do autor, grande conhecedor da psiquê feminina. Afastando-se de Ésquilo e Sófocles, Eurípides teria feito da sua Electra algo além de uma figura abstrata, mero suporte da ação e da força do mito, aproximando os con-tornos de seu ressentimento de paixões comuns, de gente como a gente. No en tan-to, como observa Goff, ainda que abandonar o modelo trágico anterior represente de fato um passo na direção do que entendemos por realismo, a natureza extremada das falhas e das fraquezas da Electra euripidiana são idiossincráticas, assumem di-mensões monstruosas, extraordinárias, impossíveis de atribuir à gente comum.

Em segundo lugar, Goff lembra os helenistas que enfatizam a invasão da peça por uma “atmosfera geral de domesticidade”, expressão também de Kitto, destacan-do no cenário simples e figurino modesto a materialidade das coisas do dia a dia, trazendo para o primeiro plano os cântaros, a comida ou o traje simples, os “trapos” que vestem e envergonham a protagonista. O mesmo Bernard Knox assinala o quan-to essa ênfase nos objetos ignóbeis e na comilança parece deslocada no território do trágico, lembrando antes a preocupação dominante de personagens da comédia ou

5 Bernard Knox, “Euripidean comedy”, in Word and action: essays on the Ancient Theater, Balti-mor, London, The Johns Hopkins University Press, 1979.

6 A boa tradução recente de Trajano Vieira apanha bem esse traço, vertendo uma fala do ma-rido, no calor da discussão com Electra, por um coloquialíssimo “Será o Benedito?” (Sófocles/Eurípides, Electra(s), op. cit., p.83, síntese correta do tom ambíguo da personagem, obreiro digno, mas matuto, sério, mas risível.

7 Barbara Goff, “Try to make it real compared to what? Euripides’ Electra and the play of genres”, in M. Cropp, Kevin Lee, D. Sansone (ed.) Euripides and tragic theatre in the late fifth cen-tury, Illinois, Illinois Classical Studies, 2000.

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do drama satírico (como o Ciclope, do próprio Eurípides), ainda que o tom cômico assuma na Electra uma nova função: a de confronto com a tradição mítica por trás do trágico, introduzindo na peça uma “dicotomia entre o passado heróico e majes-toso do mito e o presente democrático, nada glamoroso da realidade”.8

Afastando-se do modelo homérico de heroísmo, predominante na Ilíada, o Eu-rípides maduro teria passado a beber mais no mundo da tradição familiar e domés-tica, que em Homero encontra seu lugar na Odisseia. Na peça em questão, o preâm-bulo leve, contudo, não impede que os horrores do desfecho se confirmem (Electra e Orestes levam a cabo o que previa o mito e tiram a vida de Clitemnestra), mas cria uma nova zona de complexidade moral, em que motivos fúteis e banais – como o esnobismo ofendido da protagonista – e expedientes baixos – como atrair a mãe para a morte dizendo-se recém-parida e necessitada de ajuda – disputam a primazia com o que nas tragédias anteriores dedicadas ao tema correspondia a um desejo legítimo de reparação.

Autores como Winnington-Ingram e George Gellie, por sua vez, atribuem a nota identificada como realista no Eurípides tardio a uma terceira razão: um ceticis-mo crescente da plateia ateniense do fim do século V, formada por espectadores médios que, no contexto da ascensão do sofismo e da filosofia, passavam a exigir do dramaturgo clareza, lógica e razão que se aplicavam ao contexto cotidiano. De fato, a cena do reconhecimento entre os irmãos na Electra traz uma paródia saborosa da passagem análoga nas Coéforas, de Ésquilo, em que a lógica implacável da protago-nista euripidiana derruba, um a um, os mesmos argumentos que na peça de Ésqui-lo a convencem da volta do irmão ausente e conferem eficácia poética à reunião da memória remota da convivência à urgência presente dos planos de vingança.

Em Ésquilo, libando junto ao túmulo do pai, Electra encontra a oferta de me-chas de cabelo que lembram o seu, pegadas que combinam com as suas e, por fim, um estranho portando uma veste enfeitada por um bordado antigo saído de suas mãos, a quem associa o cabelo e as pegadas. Os sinais tem sobre ela efeito de re-velação divina, levando-a à certeza aliviada da volta do irmão. Já em Eurípides, quando um ancião, amigo de seu pai, coloca-a frente a frente com os mesmos elementos, a moça passa longe de aceitá-los. Ao contrário, ridiculariza-os tomada por irrecusável bom senso pedestre: quanto aos cabelos, mostra que tom idêntico não é exclusivo a parentes e, além disso, “que relação existe entre as madeixas/ de um nobre desportista e as melenas/ de uma donzela que as escova sempre?”; des-confia da existência em si das pegadas – “como o pé se imprime em terreno pe-dregoso?” – e descarta a possibilidade da semelhança de forma entre os pés de ir-mãos, “pois homens calçam mais”; por fim, lembra que Orestes partiu menino e, mesmo que então levasse vestes bordadas por ela, seria impossível que, homem agora, ainda as trouxesse vestidas, a menos que as roupas “crescessem com o corpo”.9 Note-se que essa dimensão paródica e metateatral da peça, presente desde o primeiro episódio (o cântaro de água para uso doméstico rebaixa o jarro usado

8 Arnott apud Goff, “Try to make it real compared to what? Euripides’ Electra and the play of genres”, op. cit., p. 97.

9 Sófocles/Eurípides, Electra(s), op. cit, p. 100.

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durante as libações nas Coéforas), também perturba a suspensão da descrença associada ao trágico.

A quarta vertente crítica, segundo Goff, entende o realismo em Eurípides como expressão quase imediata do contexto histórico grego contemporâneo. O resultado abala a imagem corrente do dramaturgo como um subversor da ordem e reforça a presença de valores socialmente normais em sua obra. Passagens da Electra que a outros leitores pareceram esdrúxulas, expressão de uma autocomi-seração incompatível com a dignidade de uma heroína trágica, seriam compreen-síveis à luz de comportamentos convencionais disseminados na sociedade grega (o exagero da dor como sinal de luto, por exemplo).

Ainda que repleto de armadilhas, do anacronismo psicologizante ao historicis-mo mecanicista, o quadro resumido é imensamente sugestivo, tanto para os inte-ressados em sua obra quanto para os que investigam o conceito do realismo. Bem pesada a tensão entre desfecho trágico e os recursos cômicos e paródicos da aber-tura, a invasão do domínio trágico pela esfera doméstica e a diferença de classes, a ênfase na materialidade simples dos objetos cênicos e da vida humana, a submis-são da verdade poética do mito ao tribunal da lógica eficaz e das razões práticas cotidianas, parece que o melhor sinal da impregnação da obra de Eurípides pela história e a realidade contemporânea está numa transformação essencial da forma trágica, acolhendo em proporção inédita elementos cômicos e praticamente fun-dando uma nova tradição, a da tragicomédia, vertente longeva e aberta à apreen-são estética do material cotidiano.

Dias felizes e a comitragédia: Beckett e o realismo contracorrente

“Nada é mais grotesco que o trágico.”

(Samuel Beckett)10

As variáveis críticas que envolvem a questão do realismo beckettiano são curio-samente análogas e de idêntica complexidade às que rondam o Eurípides da pri-meira parte da Electra, mas também da Helena e da Ifigênia em Tauris. Se o drama maduro euripidiano inaugura uma nova combinação de trágico e cômico, um gêne-ro eivado de elementos temáticos e formais que modernamente reputamos realista, o teatro e a ficção do autor de Esperando Godot vêm na esteira de um longo desen-volvimento orgânico dessa tradição. Em Eurípides, estranha-se o despertar de um certo “realismo” ainda desconhecido; em Beckett, sua sobrevivência pouco reco-nhecível à custa de uma superação das convenções enrijecidas. Em comum, ambos dividem o contexto de crises no sistema de gêneros literários de seu tempo.

Os fundamentos do controverso “realismo” euripidiano na Electra têm encon-trado justificativa em quatro principais linhas, mais ou menos produtivas critica-

10 Em carta a Roger Blin, de 9 de janeiro de 1953, Beckett ressalta a importância da cena de Esperando Godot em que, procurando algo para se enforcar, Estragon desamarra a corda que lhe serve de cinto e suas calças caem até os calcanhares, deixando-o seminu em cena aberta: “the spirit of the play, to the extent to which it has one, is that nothing is more grotesque than the tragic” (cf. a bio-grafia de Deirdre Bair, Samuel Beckett, New York, Simon and Schuster, 1990).

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mente. É mais que possível transformá-las em hipóteses de leitura da dramaturgia beckettiana na aposta razoável de que o resultado também jogue luz sobre uma dimensão realista da obra do irlandês escamoteada pelo rótulo corrente e inade-quado de autor “do absurdo”.

Concebida e levada aos palcos pela primeira vez em 1961, Dias felizes apresen-ta em dois atos os monólogos de Winnie, uma mulher vaidosa, de meia-idade, presa a um casamento também envelhecido. A banalidade otimista e corriqueira de suas falas contrasta flagrantemente com a situação insólita e desesperadora em que a vemos apanhada. Ao seu redor, em um passado impreciso, a terra árida de um deserto desabitado abriu-se em armadilha, mantendo-a enterrada, primeiro até a cintura, depois até o pescoço, ao longo de toda ação. Tudo que lhe resta é falar a esmo, entreouvida às vezes pelo marido indiferente, ou dedicar-se aos cui-dados femininos com a toalete, distraindo-se com o repetitivo inventário do con-teúdo da bolsa que a acompanha. Na sua vizinhança, as leis da natureza parecem ter sido revogadas.11 Winnie alterna períodos de vigília e sono segundo os capri-chos insondáveis de uma estridente campainha que marca – aleatória, mas impe-rativa – as horas de despertar e de dormir, sempre sob o brilho de um sol abrasa-dor. Vive sob a angústia da travessia das horas despertas, torturada pela luz ofuscante e o calor opressivo, contando apenas com o alívio fugaz e ocasional das lembranças esparsas, restos de um passado fugidio, tão feliz quanto remoto.

Da mesma forma que a plausibilidade psicológica atribuída às razões do com-portamento da Electra, sobrepondo à inelutabilidade do mito a economia do res-sentimento e do orgulho ofendidos, não convence plenamente em Eurípides, a Winnie de Dias felizes tampouco se ajusta à receita de construção de um perfil psicológico complexo e convincente em seu confronto otimista com o meio hostil. A oscilação entre uma consciência possível do horror cabal de seu estado presen-te, temida e evitada a todo custo, e o recurso diversionista dos rituais de fuga, os jogos com palavras e coisas ao seu dispor, não se explicam a partir de um núcleo pregresso de experiência biográfica. Nem traumas específicos, nem papéis sociais típicos resolvem a complexidade da personagem.

Winnie vive uma temporalidade própria, mutilada, que não mais permite o desdobramento de uma sucessão de encontros e choques circunstanciados com as pessoas e com o mundo. O que nela se entrevê é um mundo individual feito de retalhos, o colapso da noção de subjetividade burguesa que na linguagem becket-tiana se concretiza por meio de procedimentos dramáticos inesperados. É o caso da figura da repetição, estruturalmente presente em vários níveis da peça, encar-nando o tempo da má infinitude, infernal, e introduzindo um intervalo entre os sentidos de gestos e falas. Animados em restos mínimos de ação desconexa e razão

11 “Você acha que a terra perdeu a atmosfera, Willie? (Pausa.) Acha, Willie? (Pausa.) Não tem uma opinião a respeito? (Pausa.) Tudo bem, é a sua cara, você nunca teve opinião sobre nada. (Pau-sa.) Compreensível. (Pausa.) Muito. (Pausa.) O globo terrestre. (Pausa.) Às vezes me pergunto. (Pausa.) Talvez não completamente. (Pausa.) De tudo fica um resto. (Pausa.) De tudo. (Pausa.) Al-guns restos. (Pausa.) Se a razão faltasse. (Pausa.) O que não acontecerá, é claro. (Pausa.) Não de fato. (Pausa.) Não a minha. (Sorri.) Não agora. (Sorriso mais largo). Não não (cf. B. Beckett, Dias felizes, trad. Fábio de Souza Andrade, São Paulo, CosacNaify, no prelo).

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improdutiva, a representação dos vestígios de uma individualidade complexa, fato de teatro mais que caso clínico, ganha aqui o palco.

Em Dias felizes, há também um arremedo moderno da demanda das plateias eu-ripidianas, movidas pela onda sofista, por uma ação que respeitasse a lógica pedes-tre que orienta o comportamento empírico dos homens no mundo cotidiano. Perdi-da em suas lembranças, Winnie narra a história de um casal de passantes, os Shower ou Cooker, derradeiras testemunhas casuais de sua vida aprisionada. Seu relato re-produz textualmente, de memória, as falas dos dois que demonstram sem margem de dúvida o empenho do homem na busca por um significado prático, na impos-sibilidade de um metafísico, para o espetáculo esdrúxulo que ela proporciona:

Bem, de qualquer modo – este sujeito, o Shower – ou Cooker – tanto faz – e a mulher – de mãos dadas – cada um com uma sacola – destas grandes, pardas, de supermercado – plantados lá, me olhando – até que o homem, Shower – ou Cooker – termina em “er” – tenho certeza – diz: O que ela está fazendo? – O que ela está querendo? Enterrada até as tetas nesta terra estru-mada – era um casca-grossa, o tipo – aí ele diz: O que significa isso? – O que será que ela pensa que isso significa? – e patati, patatá – muito mais coisa do tipo – a bobageira de sempre – e ele diz: Você está ouvindo? – e ela diz: Estou, Deus queira – e ele diz: O que significa isso de Deus queira? (Para de lixar, levanta a cabeça, olha para a frente.) E você, ela diz, o que acha que você significa? Só porque continua plantado nestes dois pés chatos, com esta mochila cheia de merda enlatada e trocas de cuecas, me arrastando, para cima e para baixo, neste deserto fodido, uma megera escandalosa, companheira à altura – (com violência súbita) – largue a minha mão e caia fora, ela diz, pelo amor de Deus, caia fora! (Pausa. Volta a lixar.) Por que ele não a desenterra? ele diz – se referindo a você, meu anjo – De que ela lhe serve assim? – De que ele lhe serve as-sim? – e por aí afora – as tolices de sempre – Isto! ela diz, por Deus, tenha coração – Desenter-re-a, ele diz, desenterre-a, do jeito que está, ela não faz sentido – Desenterrá-la com o que?, ela diz – Eu a desenterraria com minhas próprias mãos, ele diz – acho que eram marido e – mulher. (Lixa em silêncio.) Em seguida, eles vão embora – de mãos dadas – com as sacolas – sumindo – depois sumidos – os últimos seres humanos – perdidos por estes lados. (Acaba a mão direita, examina-a, deposita a lixa, olha fixamente para a frente.) Coisa estranha, numa hora destas, lem-brar de coisas assim. (Pausa.) Estranha? (Pausa.) Não, aqui tudo é estranho. (Pausa.) Sou grata por isto, em todo caso. (Voz entrecortada.) Muito grata.12

O episódio escancara o colapso dos sonhos de eficácia de uma razão finalista e instrumental, sustentáculo da (e pressuposto necessário à) forma realista clássi-ca. Ao notar que, enterrada, aquela mulher não faz sentido algum, ou seja, não presta para nada (o que, traduzido nos termos rasteiros de sua fantasia, equivale à impossibilidade de dar curso à lubricidade do companheiro), o pragmatismo rude do passante denuncia os limites históricos dessa modalidade de razão. Sua ceguei-ra à seriedade do impasse que testemunha também é a caricatura da inadequação de nossos instrumentos críticos no esforço interpretativo da peça. Por inércia, seguimos exigindo ao drama beckettiano uma representação compatível com o naturalismo estrito, quando é apenas a partir da erosão de suas convenções que ele ganha sua contundência incisiva.

Gesto de retórica combativa, o desprezo confesso por Balzac do leitor de pri-meira hora de Proust que foi Beckett não deve encobrir a nossos olhos o quanto os antirromances beckettianos da trilogia do pós-guerra parisiense (Molloy, Malone

12 Beckett, Dias felizes, op. cit.

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morre e O inominável), por exemplo, se constroem em diálogo polêmico com a tradição, erodindo as convenções do realismo formal por dentro. Não tem nada da recusa abstrata do tempo presente de que foram acusados pela militância do já nada jovem Lukács, na polêmica que manteve com Adorno, incapaz de lê-los se-não a partir de uma equivocada disjunção entre forma e conteúdo e decretando seu banimento como arte decadente, qualificativo primo-irmão de degenerado, selo preferido pelo nacional-socialismo.

Se uma vocação solipsista escandalosamente livre de afetos e avessa a quais-quer laços humanos caracteriza personagens marginais como Winnie, o par Estra-gon e Vladimir ou Molloy, desprovidas de memória ou planos, incapazes de reação transformadora e sedes de uma razão residual e falha, nem por isso deixam elas de ser típicas de seu tempo, muito ao contrário. Devemos buscar na forma nova elei-ta por Beckett, privilegiando o empobrecimento dos meios e a figura do paradoxo, uma revelação aguda desse impasse histórico que a transcende, conteúdo social precipitado, como queria Adorno. Nos romances, ela determina tanto o autocan-celamento das estruturas narrativas, curto-circuito lógico que anula o “post hoc, propter hoc” na arquitetura geral da trama, quanto a singularidade dos torneios estilísticos beckettianos, erodindo a sintaxe da frase e apostando na repetição e nas lacunas, nas falhas da linguagem, como seus gestos expressivos por excelên-cia. No teatro, minimiza a importância da ação, repetitiva e fragmentária, explo-rando a restrição voluntária do espaço, a imobilidade crônica dos protagonistas e a falência da comunicação para seguir sendo crítica.

Indissoluvelmente imbricada na forma, a realidade em ruínas que constitui a obra beckettiana dificilmente se oferecerá inteira aos que buscam sua origem na experiência biográfica transposta de eventos históricos precisos. No processo de composição de Esperando Godot, Fim de partida e Dias felizes, estudado à exaustão pela crítica, o esforço de Beckett concentrou-se na direção oposta: a do apagamento de referências diretas e identificáveis ao terror contemporâneo, ameaças que varia-vam da clandestinidade na França ocupada às oscilações da guerra fria. Contra aqueles que tomaram essa fala indireta como signo de um universalismo essencia-lista, fuga do tempo em direção a uma condição humana atemporal, ensaístas res-peitáveis como Jan Kott e Marjorie Perloff procuram recusar as leituras alegóricas ancorando as peças em lastros mais determinados, capazes de conferir sentido e legibilidade a imagens desconcertantes por vocação, mas nem por isso absurdas.13

Estudos dedicados ao processo de composição das peças beckettianas de-monstram como o sentido geral das revisões sucessivas dos textos foi o de cultivar potenciais ambiguidades, apagando referências a processos históricos específicos e valorizando a alusão que não nomeia diretamente, o paradoxo, a disputa entre sentidos conflitantes. Assim, se, em Esperando Godot, sobreviveu na versão final a menção cifrada aos vinhedos da família Bonnelly (onde Beckett efetivamente tra-balhou quando clandestino em Roussillon, nos anos finais da Segunda Guerra),

13 Jan Kott, “A note on Beckett’s realism”, The Tulane Drama Review, v. 10, n. 3, p. 156-59, Spring, 1966; e Marjorie Perloff, “In love with hiding: Samuel Beckett’s war”, The Iowa Review, v. 35, n. 1, p. 76-103, Spring, 2005.

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em Fim de partida, os indícios da escassez geral e de extinção iminente que abun-dam nos diálogos de Hamm, Clov, Nagg e Nell, últimos sobreviventes de uma humanidade destruída, perderam o caráter inicial, mais demarcado, com a supres-são da referência à paisagem normanda devastada pela Primeira Guerra.

Também nas primeiras versões de Dias felizes, a leitura do jornal, amarelado e evidentemente vencido, com que o lacônico marido quebra excepcionalmente seu silêncio, tendia a explicar mais a desolação da paisagem. Antes, as notícias enume-ravam sucessivas explosões de mísseis, causando a morte não apenas do reverendo Charles Hunter, mantida no texto final, mas de um enorme contingente: 83 padres, milhares de habitantes de Pomona, os habitantes de Man (a ilha?), onde apenas uma “faxineira de banheiro feminino” teria sido poupada. Suprimindo essas alu-sões cômico-grotescas a uma tecnologia de destruição de massas ativa e desgover-nada, memória histórica recente e ameaça ainda no horizonte, restringindo a leitura a vagas de emprego (ironia extrema no contexto do velho casal), Beckett preferiu focar as causas e efeitos desse processo alucinado na intimidade de um casal isola-do, das consciências individuais, potencializando a reverberação simbólico-alegó-rica do deserto inóspito que as rodeia. Se essa reescrita recusa a conversão do texto em documento histórico datado, não diminui em nada a impregnação histórica da experiência, ou impossibilidade dela, que Winnie encarna no palco.14

Kott encontra na rotina hospitalar, em especial a dos pacientes presos ao leito por longos períodos, a situação que torna compreensível a figura enigmática, “ab-surda”, de Winnie em Dias felizes. Regulada pelos toques da campainha e pela destruição da diferença entre dia e noite, convertida numa sucessão de contínuos sobressaltos, a temporalidade singular da peça teria sua equivalência na desorien-tação temporal produzida pelo entra e sai ininterrupto de médicos e enfermeiras, pela estridência intermitente e sem cerimônia dos aparelhos ligados ao doente. Também o apreço reverencial de Winnie pelas coisas, tesouros preservados no res-guardo da bolsa, ecoaria por sua vez a intimidade amorosa que os acamados acaba-riam por desenvolver com tudo aquilo que está disposto no círculo restrito ao re-dor do leito, alcançável pela extensão de um braço. Em síntese, Kott sustenta que a dificuldade em cumprir os rituais mínimos necessários à manutenção do corpo como suporte da vida e a destruição progressiva da autonomia, mina nos pacientes internados a inteireza psicológica, levando-os a um estado de fragilidade solitária e desamparada, incomunicável, que se ajusta como luva à rotina de Winnie.

Sedutora, a clareza do paralelo entre a experiência dos hospitalizados e o sofri-mento de Winnie sob a terra também responde por seus limites. Se não devemos confundir a espera manca por Godot com uma reinvenção estética da experiência da clandestinidade dos membros da Resistência na França ocupada, reduzindo-a a documento de um processo histórico, por mais central que seja, tampouco pode-mos reduzir a impossibilidade de redenção de Winnie a um dos aspectos que ela contempla. A falência de seu mundo é ideológica, linguística, física e emocional, o que só torna mais excepcional e patético seu esforço de suportá-la. O impacto

14 Cf. Stanley Gontarski, Beckett’s Happy Days: a manuscript study, Columbus, Ohio, Ohio State University Libraries, 1977.

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reve lador da visão da mulher enterrada – imagem em cena da vida travada, imo-bilizada à força, guarnecida pela sombra inócua de uma sombrinha modesta e a ameaça velada de um revólver – depende de sua capacidade de resistir a uma ex-plicação cabal, a uma assimilação do que na sua estranheza é resistência à nossa indiferença cada vez maior ao horror entranhado na rotina diária, naturalizado.

Estranho e familiar: o risus purus do realismo beckettiano

Sem sombra de dúvida, o ponto em que o paralelo entre o rebuliço crítico em torno do realismo em Beckett e Eurípides mais ensina é o da confusão voluntária, cultivada por ambos até a convivência promíscua, entre recursos próprios ao trá-gico, como a piedade e o terror, e o recurso cômico do riso. Se a Electra euripidia-na arma sua vingança grandiosa entre potes e panelas, Winnie tem por testemu-nhas do seu sofrimento atroz escovas de dente e postais obscenos. Como de hábito em Beckett, o drama sério deixa-se invadir em grau extremo pelo grotesco, sem rebaixar sua pretensão à seriedade, o que não escapou a alguns de seus me-lhores comentadores, como Hugh Kenner, Ruby Cohn ou Enoch Brater.15 Na composição de Dias felizes, a um corpo que vacila e chama nossa atenção em cena para sua existência e funcionamento imperfeitos – fisiologia em primeiro plano – corresponde o exame impiedoso de uma razão tortuosa, vacilante e terminal, ainda que otimista, contra todas as apostas. Elevar as coisas ao patamar de com-panheiras dotadas de vontade própria, aliadas ou antagonistas mais assíduas da solitária Winnie, é o passo seguinte da lógica reificada que preside esse universo comitrágico ou tragicômico. Que a sombrinha volte no segundo ato, depois de consumida pelas chamas no primeiro, que os cacos do vidro de remédio que Win-nie quebra se recomponham no mesmo prazo, eis as provas de que sob o primado da mercadoria a realidade já não se deixa ler nas linhas da superfície.

Na mescla de gêneros, o realismo beckettiano se distancia do modelo nove-centista, sério por excelência, mas nem por isso se torna menos realista, alcançan-do o “risus purus”, capacidade de rir na infelicidade que Watt, protagonista afásico do romance homônimo do dramaturgo irlandês, reputava a forma mais alta do riso, a única à altura do realismo estranho que nos faz falta:

Antigamente eu achava – digo, antigamente eu achava – que todas estas coisas – colocadas de volta na bolsa – se fosse cedo demais – colocadas de volta cedo demais – poderiam ser tiradas de novo – se fosse preciso – se fosse o caso – e assim por diante – indefinidamente –de volta para a bolsa – de volta para fora da bolsa – até que tocasse – a campainha. (Para a arrumação, levanta a cabeça, sorri.) Mas não. (Sorriso mais largo.) Não não. (Desfaz o sorriso. Volta à arrumação.) Pode parecer estranho – isto que... como dizer? – isto que acabo de dizer – é – (pega o revólver) – estranho – (vira-se para colocar o revólver na bolsa) – a não ser pelo fato de que – (a ponto de guardar o revólver, interrompe o movimento e vira-se de frente) – pelo fato de que – (deposita o re-vólver à sua direita, interrompe a arrumação, levanta a cabeça) – tudo parece estranho. (Pausa.) Muito estranho. (Pausa.) Nunca mudança nenhuma. (Pausa.) Cada vez muito mais estranho.16

15 Ruby Cohn, Samuel Beckett: the comic gamut, Rutgers University Press, 1982; Hugh Kenner, The stoic comedians: Flaubert, Joyce, Beckett, University of California Press, 1975; Enoch Brater, “Beckett, Ionesco and the tradition of tragicomedy”, College Literature, v. 1, n. 2, p. 113-27, Spring, 1974.

16 Beckett, Dias felizes, op. cit.

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O REALISMO UTÓPICO DE

CHARLES DICKENS

DANIEL PUGLIA Universidade de São Paulo

Resumo Um dos aspectos mais notáveis dos romances de Charles Dickens é a intenção de abarcar a totalidade da vida cotidia-na. Com resultados desiguais, mas sempre interessantes, tal elaboração artística acaba por formular uma crítica contun-dente à racionalidade prática e à desigualdade presentes na sociedade vitoriana. Esse diagnóstico, no entanto, tem um caráter peculiar: as instituições e estruturas sociais devem ser transformadas pela pureza do amor e da inocência, num impulso ao mesmo tempo utópico e regressivo.

Abstract One of the most remarkable aspects of Dickens’ novels is his ef-fort to depict the totality of daily life. Though flawed at times, but always interesting, these descriptions contained a sharp criticism of the pragmatism and inequality present in Victorian society. There is, however, a peculiar aspect of Dickens’ social vision: for him, social structure and institutions could only be transformed through the purity of love and innocence, a belief which is at the same time utopian and regressive.

Palavras-chave Charles Dickens; romance inglês; história.

Keywords Charles Dickens; english novel; history.

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Dombey e Filho (1848) foi o sétimo romance de Dickens e possivelmente atuou como um divisor de águas em sua obra: a crítica social, a observação dos costumes e o diagnóstico da época passariam a ser, daí em diante, mais mordazes e contundentes. Nessa obra o narrador dickensiano formalizava os paradoxos da sociedade inglesa em meados do século XIX, elaborando soluções estéticas para contradições da realidade. Em consequência, uma poderosa rede de pressupostos críticos e de concepções sobre a própria época era mobilizada nos detalhes do tecido narrativo. Para leitores do século XXI, o possível interesse em desentranhar tais debates talvez resida na permanência de muitas das contradições tanto estéti-cas quanto históricas daquele período, bastante revigoradas desde então.

Como linhas bastante gerais, o enredo de Dombey e Filho traz a história do inflexível e rigoroso Mr. Dombey, obcecado pelo desejo de ter um herdeiro para sua empresa, a Dombey e Filho, ao mesmo tempo em que ignora e despreza sua filha, Florence. O romance começa com o nascimento de seu filho, Paul, e a mor-te de Mrs. Dombey logo após o parto. O menino é visto quase que exclusivamente como um novo parceiro nos negócios, centro das atenções de Mr. Dombey. O no-me do próprio romance já é repleto de significados e entroncamentos, pois designa uma relação que é concomitantemente empresarial e familiar, numa nota de am-bivalência que reverbera continuamente ao longo da trama. Por fim, teremos uma punição exemplar do gerente-geral Carker e todas as peripécias terminarão com o resgate celebratório do amor entre o pai e a filha anteriormente rejeitada, demons-trando, entre outras mensagens de cunho moralizante, que uma família não deve ser gerida como um entreposto comercial.

Durante todo o romance o narrador opera de um modo particular, não raro contraditório: por meio de seus procedimentos de quebra e justaposição de cenas e comentários, parece querer a um só tempo apreender e ocultar certos conteúdos que afloram a partir do funcionamento da sociedade que tem diante de si. Nessa linha tênue entre desvelar e encobrir, realiza um de seus grandes méritos, que é a demonstração das múltiplas conexões e determinações de uma intrincada trama

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social. Visto como totalidade, na visão de seus vários episódios constituintes, Dom-bey e Filho não culpabiliza quaisquer personagens isoladamente, de modo que sua investigação tenta averiguar vínculos e simbioses de vasta abrangência e alcance. Ainda assim, a execução final do vilão Carker, atropelado por um trem, surge como um traço melodramático incômodo e que merece ser mais bem investigado, quase o espasmo de um narrador que reluta em aceitar as consequências finais de seu diagnóstico: a constatação de que os processos sociais e subjetivos têm causalida-des e explicações multiformes, sem espaços para esquemas ou reduções maniqueís-tas. Ou seja, o narrador faz um mapeamento e, a despeito de si próprio, consegue estruturar em forma literária uma previsão: a de que conflitos latentes por fim aca-barão emergindo e, para evitá-los ou solucioná-los, de nada adianta a simples no-meação de heroísmos ou vilanias individualizadas, sem contextos ou mediações.

Vale lembrar, entre outros fatores, que a escrita de Dombey e Filho acontecia nos meses anteriores aos conflitos e revoltas de 1848 na Europa, os quais, como ante-visto pelo romance, seriam abafados pelo uso da força e da violência. Ocorre que, sendo ponto de inflexão na estética dickensiana, o narrador de Dombey e Filho conserva e retrabalha estratégias anteriores enquanto formula novos caminhos. Daí a possibilidade de que o sacrifício final do vilão seja um recurso remanescente do melodrama, um recurso um tanto quanto artificial e utilizado num romance cuja matéria social, felizmente, acaba por se impor. Se estivermos corretos, é provável que essa solução um tanto quanto desajeitada, de purgar os males por meio de uma punição exemplar, seja uma tentativa de achar um antídoto momentâneo para um conjunto de problemas interligados ao longo da trama. Em virtude disso, o que pode estar em processo não é apenas o encontro de um escritor com sua maturidade criativa, mas, sobretudo, a cartografia de um sistema de relações em que tudo pas-sava a ser mercável, em que uma empresa familiar já podia ser utilizada para vis-lumbrar um princípio de organização: de um país, de um império, de um modo de dominação social. Nessa dinâmica, um segredo começava a ser intuído: o de que na base de tal dominação se encontrava um discurso que negava a opressão en-quanto a exercia, que fazia da Inglaterra um império – ao preço de, internamente, subjugar a maior parte de sua população e, externamente, violar em termos cultu-rais e materiais suas colônias. Portanto, denunciar e simultaneamente justificar tal sistema de forças acaba sendo a dança e contradança desse narrador, que na sua coreografia pode aprender seu passo fundamental: entender de que maneira o dis-curso de uma cultura regida por laços econômicos poderia ser a pista enigmática, a ponta do iceberg de uma forma hegemônica de organizar a vida social. Isso neces-sariamente trazia à tona, não sem resistências, um grande contingente de pessoas cujas vozes eram silenciadas – nas colônias e nas fábricas, nas ruas e nos lares. Ao fim e ao cabo, no entrecho dickensiano essa combinação de império próspero e usurpação social caminha sob um disfarce: o estigma da conciliação.

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Nos escritos de Dickens o trabalho, a atividade laborativa do ser humano, surge sob a marca da dualidade: de um lado, com nota positiva, numa oposição ao ócio dos desocupados e malandros; de outro, com nota negativa, quando oposto ao

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diver timento e fruição. Evidentemente estão presentes aqui juízos morais, em seu tanto de abstrato e descolados das condições materiais em que o trabalho se efetiva. A bem da verdade, a rotina mecanizada, destituída de sentido, que transforma seres humanos em autômatos cumpridores de tarefas: isso surge na obra dickensiana como clara decorrência da Revolução Industrial. Entretanto, se reconhece o estatu-to escorchante imposto cotidianamente pelo modo de produção capitalista, Dickens coloca como contraposição a necessidade da fantasia, de uma certa esfera lúdica que iria mitigar essa situação calamitosa – nesse ponto, basta lembrarmos de Tempos difíceis (1854) e a maneira como o utilitarismo e o sistema educacional são critica-dos por embotarem aquilo que seria o livre curso da imaginação. Por outro lado, essa aparente dicotomia simplificadora em relação ao trabalho acaba por tangenciar o incandescente da exploração, para além do véu que a mantém encoberta e disfar-çada. Em outros termos, os apelos em prol dos livres andamentos da fantasia – re-gressivos se tomados como objetivo final – são certamente um ponto avançado na denúncia da vida transformada em mercadoria, quando os saltos do imaginário e do devaneio são permitidos, mas desde que sob a vigilante tutela econômica. As-sim, no momento em que Dickens defende os poderes da imaginação, acaba por denunciar o aprisionamento ao qual a fantasia humana está submetida. Não iden-tifica todos os elos formadores desse cárcere, mas mostra que as correntes existem. Nesse sentido, os méritos de sua obra nesse capítulo, ainda que insuficientes, não são poucos – principalmente se lembrarmos o enorme peso ideológico que o elogio ao trabalho possuía dentro da moralidade vitoriana, uma pregação profundamente enraizada no puritanismo das classes médias ascendentes. Em meados do século XIX, quando Dombey e Filho estava sendo escrito, a glorificação do trabalho havia adquirido ares de mandamento inquestionável. Matthew Arnold, por exemplo, gostava de citar o seguinte preceito: “Trabalhar. Não nisto ou naquilo – mas, Traba-lhar”. Ou ainda o eminente Cardeal Newman: “Todos que respiram, ricos e pobres, educados e ignorantes, têm uma missão, têm um trabalho”.1

O trabalho sem qualificadores, flanando num mundo ideal, no modo referido por Arnold, ou como missão edificante, de conciliação das diferenças, na asserção de Newman: esse realmente parece ser o paradisíaco horizonte da labuta purificada. Para os que sentavam nas almofadas da injustiça e não tinham de respirar o ar das minas, adoecer nos teares ou esgotar-se como serviçais, realmente nada era mais fascinante que o trabalho, pois a contemplação distante permite o elogio elo quente. Por seu turno, com a costumeira ambiguidade que o caracteriza, Dickens reconhece que esse trabalho pode não apenas dignificar, mas também destruir os seres huma-nos. Assim, existe uma certa obsessão, na sua obra como um todo, por apresentar os modos pelos quais seus personagens ganham suas vidas, de que maneira retiram seu sustento, num verdadeiro compêndio e catálogo de profissões, ocupações e afazeres. A criação de valores, a geração da riqueza, bem como o metabolismo entre seres humanos e natureza, passam todos a ser observados sob um ponto de vista material, em que a divisão social do trabalho adquire contornos determinantes.

1 Essas citações aparecem em W. E. Houghton, The Victorian Frame of Mind 1830-1870, New Haven, Yale University Press, 1957, p. 243-4.

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Em alguma parte de As aventuras de Tom Sawyer (1876), o norte-americano Mark Twain escreve que o trabalho seria tudo aquilo que uma pessoa é obrigada a fazer e o passatempo seria tudo aquilo que uma pessoa não é obrigada a fazer. Até certo ponto isso poderia ser aplicado à cisão que Dickens estabelece entre atividade produtiva e divertimento, entre tarefas e fruições. Ocorre que para o escritor in-glês a dicotomia apresenta impurezas, os limites são quebrados e a dinâmica que surge é a de uma realidade avassaladora: mais e mais todo o tempo livre, qualquer passatempo, tudo vai sendo tomado pela esfera do trabalho. A maioria dos perso-nagens passa a ter uma profissão e é nesse sentido que o gerente-geral Carker é um exemplo ilustrativo desse perfil. Não por acaso, ele também irá corporificar os novos impulsos de modernização e progresso da sociedade vitoriana, impulsos esses que trazem em si toda uma série de desventuras que parecem minar e relati-vizar a própria ideia de modernização e progresso.

Nesse novo mundo pleno de profissionais assalariados, dos mais humildes aos mais abastados (caso de Carker), os personagens dickensianos que recebem as mais severas críticas são aqueles que não trabalham, os diletantes como Henry Gowan, de Pequena Dorrit (1857), os aristocratas egoístas como Sir Mulberry Hawk, de Nicholas Nickleby (1839), ou os parasitas como Harold Skimpole, de Casa soturna (1853). Por outro lado, a profusão de empregados e serviçais domésticos que de-sempenham papéis relevantes nos entrechos dickensianos é notável,2 cabendo lembrar que pela própria natureza da Dombey e Filho – ou seja, uma gigantesca empresa de raiz familiar e ao mesmo tempo uma família administrada como uma empresa –, Carker surge como uma síntese de todo um universo de empregados de escritório e serviçais domésticos, que em teoria mereceriam o elogio do narra-dor, sempre em contraposição aos que não trabalham. Contudo, nesse caso, o trai çoeiro gerente serve como alegoria da ameaça representada pelas classes labo-riosas, em consonância com uma percepção que passava a vicejar em muitos seto-res da elite vitoriana: os trabalhadores assalariados eram vistos, grosso modo, como uma massa perigosa, por vezes incontrolável, e o temor que causavam era apenas tolerado em virtude do reconhecimento do quanto a atividade econômica era dependente deles. Eram vistos como fundamentais, porém detentores de uma força que, em revolta, poderia modificar de maneira inédita a realidade do perío-do. Nesse sentido, muitos chegavam a comparar o potencial benéfico e maléfico dos trabalhadores assalariados ao mesmo poder que começava a ser atribuído a uma outra grande novidade da época: as ferrovias.

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Após a morte de seu filho, o pequeno Paul, Mr. Dombey viaja de Londres a Birmingham e compara a ferrovia à própria força triunfante da morte. Está de luto, vivendo uma introspecção que é apresentada aos leitores numa surpreenden-te novidade, consideradas suas parcas demonstrações de vida interior até então. Mas o narrador avança e ilustra um mal-estar que sugere conexões amplas, para

2 P. Horn, The Rise and Fall of the Victorian Servant, Gloucestershire, Sutton Publishing, 1997.

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além do drama sofrido pelo protagonista. A modernidade é vista pelos olhos de Mr. Dombey e os ritmos do trem são registrados quase como sendo a pulsação da morte, algo implacável e incompreensível: “objects close at hand and almost in the grasp, ever flying from the traveller, and a deceitful distance ever moving slowly with him: like as in the track of the remorseless monster, Death!”.3 No entanto, todos os elementos configuram um conjunto de objetos e coisas sob a influência de mãos demasiado humanas: a máquina do progresso serve para que Mr. Dombey viva seu luto, mas num mundo forjado pelo trabalho social.4 Ou seja, a revelação dos con-flitos internos do protagonista acontece num movimento de contradição interna da própria modernidade, em que os traumas subjetivos estão sendo remodelados de acordo com um contexto que determina a necessidade de uma nova experiên-cia psíquica. Até certo ponto, o encadeamento e o fluxo das palavras sugerem a entrada do narrador em uma nova seara: a de uma psicologia preocupada em de-monstrar a reificação e os sacrifícios aos quais Mr. Dombey está submetido.5 A linguagem mimetiza os inexoráveis ritmos do trem – “Away, with a shriek, and a roar, and a rattle, from the town, burrowing among the dwellings of men and making the streets hum”6 – e a máquina é comparada quase que a um animal que serpen-teia, rugindo e chocalhando, numa poderosa síntese em que a violência do mundo natural empresta seus atributos para que seja efetivada a subjetivação do mundo industrial. Os sofrimentos de Mr. Dombey são descritos por um método que, como um todo, tenta combinar os efeitos imediatos da velocidade sobre a visão e a audição com um ágil caleidoscópio de cenas e quadros vertiginosamente expos-tos – tudo isso sob o sugestivo influxo da argamassa dos contrastes sociais: “The power that forced itself upon its iron way – its own – defiant of all paths and roads, piercing through the heart of every obstacle, and dragging living creatures of all classes, a ges, and degrees behind it, was a type of the triumphant monster, Death”.7

O narrador deixa transparecer todos os pavores e todos os encantos que a modernidade corporificada nas ferrovias causava numa época atordoada pelo im-pacto das recentes forças produtivas. O desenvolvimento de tais forças, entretanto, deixa entrever o caráter caótico da nova economia: dinâmica e inovadora, porém insaciável e voraz. Contudo, fazer a conexão da morte com uma máquina que simbolizava a nova ordem também desloca o medo indeterminado do futuro e

3 C. Dickens, Dealings with the firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for exportation, London, Penguin, 1985, p. 354 [“objetos tão próximos que quase podem ser tocados, e que sem cessar escapam ao viajante, enquanto um enganoso horizonte se move lentamente nele: como numa trilha desse monstro impiedoso, a Morte!” – tradução nossa].

4 I. Milner, “The Dickens Drama: Mr. Dombey”, Nineteenth-Century Fiction, v. 24, p. 477-87, 1970.

5 D. Rainsford, Authorship, Ethics and the Reader: Blake, Dickens, Joyce, Houndmills, Macmillan, 1997, p. 127-37.

6 Dickens, Dealings with the firm of Dombey and Son, op. cit., p. 354 [“Avante, bradando, rugindo, chocalhando, partindo da cidade, escavando seu caminho por entre as moradias dos homens e fa-zendo vibrar as ruas” – tradução nossa].

7 Idem,ibidem [“A poderosa força que arrastava todo o comboio sobre a via férrea, desafiadora de todos os caminhos e estradas, mergulhando no coração de cada obstáculo, e arrastando atrás de si criaturas de todas as classes, idades, e condições, era uma manifestação do monstro triunfante, a Morte” – tradução nossa].

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focaliza as possibilidades palpáveis de mudança, ou seja, não apenas e tão somen-te um pavor metafísico diante do desconhecido, mas uma inquietação fundada em condições materiais. Tais condições, uma vez compreendidas, podem servir para que algum controle seja estipulado, para que alguma ordem seja estabelecida – e talvez não seja exagero sugerir que o potencial destruidor da ferrovia será domes-ticado quase ao final do romance, quando ela será utilizada para o aniquilamento de Carker: a máquina como espada da justiça.

Após a viagem de trem em que Mr. Dombey vive o luto pela perda de seu filho, e portanto vê frustrados seus planos sucessórios para a empresa, o romance desen-volve um terreno constantemente movediço, com sua filha Florence sendo forçada a abandonar a casa paterna, com o casamento fracassado de Mr. Dombey e Edith e, não menos importante, com o gerente-geral Carker dilapidando a Dombey e Filho em proveito próprio: tudo isso numa sôfrega sucessão de infortúnios que realça e desenvolve o aturdimento causado pela viagem de trem. Para Mr. Dombey a ferrovia talvez apareça quase como a tecnologia mitificada, carregando-o para um universo de visões reprimidas, em que a morte e a finitude respondem como anteparo, bas-tante precário, às ilusões perdidas: suas, de sua classe, de sua época. No entanto, o narrador utiliza tal aturdimento também para trazer à tona novos aspectos de uma realidade complexa, diluindo as rígidas separações entre o individual e o social, o particular e o geral. Esse diagnóstico é o inventário de violências amealhado pelo narrador, numa rede de conexões em que o peso estrutural do sistema rompe as fronteiras entre dilemas individuais e impasses coletivos, também aniquilando o envoltório das soluções isoladas em meio ao caos universal. Desse modo, a morte do pequeno Paul é a morte do herdeiro e também a alegoria das várias mortes exigi das no altar da acumulação – que arrasta “living creatures of all classes, ages, and degrees behind it”.8 E, nesse sentido, a morte de Carker é particularmente relevante.

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A eliminação do gerente-geral serve como sintomática advertência. Esse vilão dickensiano foi possivelmente o primeiro grande representante dos escalões de su-pervisão e administração na ficção britânica.9 Nas classes dominantes da era vitoria-na, começava a surgir uma certa inquietação no que se referia a essa camada geren-cial, no leque que ia desde os diretores da mais alta patente até os supervisores mais rasos, todos representantes de um mal necessário para o estabelecimento da nova hierarquia profissionalizada no mundo dos negócios. A consolidação de uma faixa de funcionários posicionada entre capitalistas e proletários parecia trazer embutido mais um ingrediente de desafio ao predomínio dos donos dos meios de produção. E de certo modo isso era baseado numa verdade empírica: os gerentes possuíam um conhecimento mais completo e preciso acerca do que acontecia nos locais de traba-lho. Tal diferença em relação à quantidade de informação e experiên cia, resultado

8 Idem, ibidem [“arrastando atrás de si criaturas de todas as classes, idades, e condições” – tra-dução nossa].

9 R. B. Henkle, Comedy and Culture: England 1820-1900, Princeton, Princeton University Press, 1980, p. 111-84.

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prático da divisão das tarefas, fornecia as bases para os conflitos de poder, ou seja, a cisão entre empregadores e gerentes deixava espaço para que fossem questiona-dos deveres, responsabilidades e autoridades – numa reverberação que deixava mais explícita a contradição interna do sistema: a separação entre os que apenas possuíam sua força de trabalho e os que possuíam os meios para que tal força fosse efetivada. Contrariamente aos proletários, os níveis gerenciais recebiam dados mais abrangentes sobre o processo de trabalho, o que lhes dava elemen tos adicio-nais para compreender os bastidores e a lógica dos interesses em conflito. Além disso, ao mesmo tempo em que eram polias e roldanas no mecanismo para dis-ciplinar os demais subordinados, os gerentes estavam eles próprios sujeitos ao re-gime de vigilância e obediência. Assim, o narrador de Dombey e Filho aborda tais contradições ao escolher um gerente-geral de uma empresa mercantil, ainda mais se considerarmos que no ambiente dos escritórios as discrepâncias ficavam bastan-te evidentes e pronunciadas: em última instância, os empregados administrativos nada mais eram que trabalhadores assalariados, embora a distância do chão das fá bricas criasse uma certa ilusão de superioridade. Por outro lado, a escolha de Carker e também seu sacrifício em rito sumário dão pistas de algo mais: os geren-tes e o universo administrativo entraram conjuntamente no imaginário do século XIX – e essa ligação não foi casual, uma vez que os escritórios vitorianos espelha-vam e produziam as ambiguidades institucionais do próprio papel dos gerentes.10

O dilema que passava a afligir os detentores das rédeas econômicas era: até que ponto seria prudente delegar poder e autoridade para esse novo rebanho ge-rencial, um rebanho dado a estripulias e com perigosas tendências a ter vontade própria? A resposta do narrador de Dombey e Filho a tal dilema não poderia ser mais categórica: Carker não havia sido nada confiável e Mr. Dombey, ao confiar-lhe o poder, viu-se praticamente destituído de quaisquer funções, como se um novo arranjo na organização do trabalho pudesse estabelecer novas relações de produção, pudesse quebrar linhas hierárquicas enrijecidas. As conclusões, se leva-das às últimas consequências, eram perturbadoras. Assim, o narrador evita ques-tionar a autoridade do proprietário, a organização dos escritórios, as instituições: tenta localizar a nota desafinada num indivíduo, em Carker, mantendo as portas abertas para que outros funcionários, cordatos e subservientes, fizessem bom uso das estruturas estabelecidas. No conhecido comportamento do narrador, vão sen-do registradas as instabilidades e inseguranças do progresso vitoriano, mas ao mes-mo tempo tentando manter a validade de suas instituições socioeconômicas. Em decorrência disso, Carker vira bode expiatório porque com suas tramoias e nego-ciatas escusas acabara mostrando a nudez do sistema: o dinamismo do mercado, o poder prevalente do dinheiro, a modernidade avassaladora – tudo isso aparecia como novo reino da liberdade, mas todos os caminhos estavam bastante predeter-minados de acordo com interesses de grupos específicos. Carker não podia vencer no mundo das carreiras aparentemente abertas ao mérito: seus limites na hierar-quia eram aqueles dados aos trabalhadores assalariados, num jogo com regras já

10 D. Lockwood, The Blackcoated Worker: A Study in Class Consciousness, Oxford, Clarendon, 1989, e também G. Anderson, Victorian Clerks, Manchester, Manchester University Press, 1976.

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anteriormente definidas. Porém, também tais predeterminações começavam a es-capar ao controle dos grandes proprietários, como vimos em Mr. Dombey no seu pasmo sobre os trilhos da modernidade. Desse modo, era mister retomar o contro-le, mostrar afinal que o mundo da livre iniciativa não era o mundo em que todas as iniciativas eram livres. Em decorrência disso, e na contracorrente do intricado mapeamento de relações que estabelecera ao longo do romance, o narrador tenta preservar a moldura do sistema e centraliza os problemas em Carker. As distor-ções ocorreriam no nível individual, nas sutilezas das falhas morais e dos tropeços de caráter. Com a punição exemplar de Carker, estraçalhado por uma locomotiva, o narrador principia a curva ascendente para o término do romance em chave de júbilo, no estabelecimento esfuziante de uma paz reencontrada.

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A interdependência entre jugo econômico e conflitos latentes alcança em Dom-bey e Filho um momento central na obra de Dickens – e que nos ajuda a entender alguns caminhos históricos. Se em seus romances iniciais a importância dada ao poder econômico já aparecia de modo marcante, a abordagem do universo das fi-nanças ainda era feita por meio de um enfoque particularizado, ou seja, normal-mente um usurário, pessoa com posses mas de má índole, e responsável por todas as mazelas e desgraças na trama. Nesse sentido, em Nicholas Nickleby (1839) e Loja de antiguidades (1841) surgem os sentimentos de veio moralizante, com a usura sendo condenada por permitir que pessoas ganhem dinheiro sem ter de trabalhar. Contrariamente a isso, os ricos benévolos eram retratados como uma classe que tinha, em algum momento no passado, trabalhado para adquirir seus bens. Mas nessa altura da obra dickensiana todos os contrastes e as rígidas divisões entre bons e maus são retratadas fundamentalmente em nuance de leveza cômica – e talvez isso possa ser dito até Martin Chuzzlewit (1844). Nas Aventuras de Mr. Pickwick (1837), por exemplo, existe como que um equilíbrio idealizado entre os diferentes agrupamentos de personagens ao final do romance. Em Oliver Twist (1839) uma crítica mais severa começa a ser feita, principalmente quando a gangue dos ladrões mirins serve como imitação, em tom de chacota, das maquinações e das ideias fir-memente aceitas nas esferas de poder inglesas: com humor, às vezes soturno, o discurso da hipocrisia imperial é caricaturizado pelo modus operandi da quadrilha dos garotos – mas as conexões não são imediatas, prevalecendo uma ordem con-fiante nos bons desígnios de uma nação que, em última instância, promoveria o pacífico convívio entre todos os seus cidadãos. Por outro lado, é certo que já em Nicholas Nickleby (1839) existe uma primeira tentativa de dar forma ao heroísmo de um jovem gentleman, que quer construir sua trajetória como realização do mito individualista, de alguém que, por supostas qualidades pessoais inquestionáveis, merece ter sob seu comando serviçais, mulheres e crianças. Todavia, isso ainda não conforma as principais linhas de força na obra dickensiana do período.

Mas o que já se anunciaria, parcialmente, em Martin Chuzzlewit, seria adensado , e agora formalizado no romance seguinte, Dombey e Filho. Ou seja, o ordenamento social europeu, que tinha na Inglaterra um de seus pilares de sustentação, estava prestes a ser convulsionado por crises econômicas e levantes populares, algo que teve impacto nas elaborações artísticas do período. A partir do que emergira em

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Dombey e Filho, isto é, a percepção de que a prosperidade inglesa e europeia pre-cisava ser mantida com mãos de ferro, uma nova época na vida do continente determina um novo enfoque para os romances dickensianos. O poder financeiro deixa de ser visto apenas sob a lupa individual para ser analisado como fenômeno sistêmico, ainda que com eventuais recaídas, como no caso da culpa individuali-zada em Carker. De todo modo, podemos ver que em Pequena Dorrit (1857), Grandes esperanças (1861) ou Nosso amigo comum (1865), os destinos dos perso-nagens, os desdobramentos dos enredos e a perspectiva narrativa mantêm uma estreita simbiose com os ritmos e compassos dados pelo poderio econômico de nações e culturas em disputa – poderio esse que nunca tem seus mistérios de ori-gem ou funcionamento completamente esclarecidos. O que havia sido visto como vilania agora passava a ser despersonalizado, às vezes encarnado nas bolsas de valores, outras vezes em intrincados conglomerados de investimento e financia-mento. Em sua refração estética, o espírito dos novos tempos tornava cada vez mais difíceis os finais felizes oriundos da simples mudança no coração de indiví-duos arrependidos. Desse modo, num romance como David Copperfield (1850), ainda aparece como tentativa, ao menos na superfície, a criação de um universo das classes médias que podem vencer pelo esforço: surgia uma vez mais a quimera do triunfo individual em meio à vasta arena de conflitos econômico-sociais. Ocor-re que, já em torno da própria saga de David, ficarão estabelecidos os desencaixes entre prosperidade e destituição, seja na metrópole, seja nas colônias do império. Tudo isso ficará ainda mais acentuado em Grandes esperanças, quando a imagem do projeto nacional não resiste à contraprova de todos aqueles que são deixados nas sombras do imperialismo inglês – e que a qualquer momento podem retornar e apenas exigir seu direito de voz. Entretanto, tudo isso é parcialmente dissimulado pelo narrador, numa lição talvez aprendida desde Dombey e Filho.

Retornando ao nosso ponto de partida, vemos que a tensão para conciliar con-tradições faz que o narrador de Dombey e Filho seja, sob certa perspectiva, um precursor dentre os narradores dickensianos. Se, por um lado, tal narrador parece ser um patriarca, talvez apenas um pouco menos despótico que o próprio Mr. Dombey, por outro, sua galeria de personagens é construída como um quebra-cabeças esclarecedor: mulheres forçadas à submissão, serviçais vindos das colô-nias, trabalhadores acossados e crianças maltratadas formam um coro, silencioso e difuso, usualmente nas margens da trama, mas pleno de liames narrativos. Sua presença cria contrapontos e ilumina aspectos mais relevantes que os preconcei-tos e estereótipos articulados pelo narrador, em seu esforço para dirimir eventuais dissonâncias. Ao mesmo tempo, deve ser parte do empenho elucidativo na inter-pretação reconhecer que tais acomodações à ordem hegemônica não podem ser naturalizadas e vistas como um recurso estético entre outros. Em consequência disso, e como já apontado por Arnold Hauser,11 vale lembrar: o sentimentalismo dickensiano usualmente mascara uma aterradora crueldade, seu decoro está sem-pre a um passo da criminalidade e sua apologia da paz tem por hábito camuflar um acordo imposto pela violência – tudo isso, em consonância com as leis tácitas de sua época, matriz histórica de nosso próprio tempo.

11 A. Hauser, História social da literatura e da arte, São Paulo, Martins Fontes, 2000.

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GIOVANNI VERGA E A CONSTRUÇÃO DO VERISMO

ANA PAULA FREITAS DE ANDRADE Universidade de São Paulo

ResumoEste artigo trata da construção e da trajetória do Verismo ita-liano, focalizando, especialmente, o papel desempenhado por Giovanni Verga nesses processos.

Abstract This article is about the construction and the trajectory of the italian Verism, focusing, specially, on the role performed by Gio-vanni Verga in these processes.

Palavras-chaveVerismo; Giovanni Verga; naturalismo; narrador impessoal; paródia.

KeywordsVerism; Giovanni Verga; naturalism; impersonal narrator; parody.

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Verga publicou Os Malavoglia, obra-prima do verismo, em fevereiro de 1881. A primeira edição do romance não alcançou o mesmo sucesso das últimas publicações do escritor siciliano. Numa carta que enviou ao amigo e também es-critor Luigi Capuana, Verga queixava-se do “fracasso total” do seu romance e da indiferença do público italiano, que se dizia amante de literatura.1 Pouco depois, numa resenha publicada no Fanfulla della Domenica, Capuana afirmava que Os Malavoglia eram um romance de vanguarda, que tinha alcançado o ideal da im-pessoalidade narrativa, como nenhum outro romance moderno.2

O silêncio da crítica e a indiferença do público, que perduraram por mais de vinte anos, podem ser creditados tanto ao caráter inovador da obra como a uma série de preconceitos que sempre marcaram as relações entre o norte e o sul da península, e foram exacerbados durante o processo de assimilação das diferenças socioeconômicas e culturais da Itália recém-unificada. Certamente, a língua cria-da por Verga para narrar as desditas da família Malavoglia, resultado de uma ou-sada “sicilianização” do italiano, desgostava à crítica conservadora da época, e afastava o público, acostumado ao italiano como padrão literário. Somente no século XX, a crítica “descobriu” Os Malavoglia, a partir de um ensaio de Benedetto Croce, publicado no primeiro número de sua revista La Critica. As gerações se-guintes passaram a reconhecer o autor como “mestre do Verismo”, e o romance, como clássico da literatura italiana.

Desde meados da década de 1870, a dupla Verga e Capuana participava da vida artístico-intelectual milanesa, divulgando materiais literários de caráter natu-

1 Gino Raya (org.) Lettere a Luigi Capuana, Firenze, Felice Le Monnier, 1975, p. 168-170 (carta de 11 abr. 1881).

2 Corrado Simioni, “Introduzione”, in Giovanni Verga, I Malavoglia, Milano, A. Mondadori Ed., 1978, p. 21.

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ralista, de origens francesa, inglesa e russa. Quando não estavam na mesma ci-dade, mantinham intensa correspondência entre si e também com outros litera -tos – Felice Cameroni, Salvatore Farina, Emilio Treves, e integrantes do grupo dos scapigliati –, em que discutiam as novas ideias, e as maneiras de aplicá-las à pró-pria criação literária, adaptando-as ao contexto italiano. O plano de elaborar uma versão nacional da literatura naturalista assumia importância capital na vida dos dois escritores sicilianos, e sua atuação, juntamente com os colegas mais chega-dos, fez que o verismo começasse a adquirir contornos próprios. Luigi Capuana, chamado “profeta do naturalismo”, empenhou-se em promover a obra e as con-cepções de Zola. Escreveu uma série de ensaios, estudos e artigos sobre a temática naturalista, e é autor de Giacinta, publicado em 1879 e reconhecido como o pri-meiro romance verista.

Na tentativa de investigar e compreender as forças que condicionam as cir-cunstâncias espirituais, econômicas, culturais da vida diária e geram os movimen-tos histórico-sociais, a expressão literária naturalista privilegiava a representação da realidade em seus estratos mais profundos e abrangentes. Na Itália, onde ocor-ria um processo de unificação política conturbado, e a urbanização e a industria-lização desenvolviam-se de forma desigual nas regiões Norte e Sul, foi a sociedade rústica e atrasada das províncias sicilianas que atraiu o olhar dos veristas.

Em 1874, com a publicação do conto Nedda 3 Verga inaugurou o principal filão temático do verismo: a vida de camponeses e pescadores nas províncias sicilianas, sob condições de sobrevivência extremamente precárias, regida por estruturas e costumes arcaicos, afligida por antigas mazelas sociais e vítima de sequelas do processo de Unificação italiano. Ao explorar esse novo cronotopo literário, o au-tor experimenta tendências artísticas, elementos narrativos e técnicas de compo-sição que viriam a se estabilizar no repertório da literatura verista: a apropriação de temas e motivos culturais populares, a reprodução da linguagem falada regio-nal na prosa literária, a descrição minuciosa dos costumes e do cotidiano do ho-mem comum, o desenvolvimento do enredo narrativo de acordo com princípios de dois sistemas filosóficos relevantes do século XIX, o positivismo de Auguste Comte e o pessimismo de Arthur Schopenhauer.

O narrador de Nedda dá início à fabulação com um breve prólogo em primeira pessoa, por meio do qual prepara o leitor, burguês como ele, para um espetáculo de “atmosferas desconhecidas”4 que o deixará com cabelos brancos e rugas no rosto. Numa poltrona confortável junto à lareira, o narrador convida o leitor a acompanhar o seu espírito que vagabundeia por caminhos inusitados, até chegar a uma pequena propriedade rural perto do Etna, onde a história se passa. É um povoado miserável, e a protagonista Nedda parece ser a mais desgraçada de todos. O tema da história é a luta desigual da camponesa contra a miséria e a morte, que

3 Publicado originalmente na Rivista italiana di Scienze, Lettere ed Arti, de Milão, em 15 de junho.

4 G. Verga, “Nedda”, Tutte le novelle, novelle (a cura di Lina e Vito Perroni), Milano, A. Monda-dori Editore, 1940, v. I, p. 14.

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paulatinamente vão-lhe tomando os entes mais próximos – a mãe, o namorado, a filha recém-nascida –, até a deixarem só e desamparada. Tanto a encenação inicial armada pelo narrador quanto o assunto evocam os tradicionais serões invernais entre familiares e amigos, em que eram desfiados os racconti di veglia – contos maravilhosos, frutos da cultura popular apenínica.

A abertura do conto, impregnada de um lirismo aconchegante, funciona como uma antessala da história a ser narrada, uma zona neutra em que o narrador pre-serva o leitor e a si mesmo a uma boa distância do universo que ele passará a narrar, assumindo então uma voz em terceira pessoa. É como se, à realidade crua e mísera só fosse permitido o tratamento literário sério por meio desse processo de adequação, em que uma história incômoda é revestida de uma outra aprazível que a justifica.

Embora o conto descreva uma faceta da sociedade siciliana sob forte acondi-cionamento romântico, que faz que o narrador se mantenha diferenciado do mun-do que representa e confronte realidade e idealidade, a narrativa experimenta princípios compositivos da escola naturalista francesa, desde já temperados à moda italiana. A começar pelo papel de protagonista concedido a uma camponesa do mais baixo escalão de sua classe social, Nedda vive de expedientes, nem sem-pre consegue trabalho, não tem como comprar os remédios para a mãe doente, e nem o pão de cada dia. O retrato dessa comunidade arcaica é traçado de acordo com o método desenvolvido por Balzac, definido como “estudos dos costumes”, que privilegia a descrição de hábitos e usos do presente, “com tudo o que tiver de cotidiano, prático, feio e comum”.5 É o que Verga faz, ao descrever as agruras do trabalho no campo, a parca refeição no fim do dia, as conversas de poucas pala-vras, orientadas pela lógica do senso comum, o comportamento das pessoas regido pela fé cega nos preceitos católicos.

No conto, predomina a forma narrativa convencional (do narrador burguês que conta a história ao pé da lareira), e a representação da língua falada do grupo social retratado se dá pela reprodução de algumas expressões dialetais, termos do trabalho, o trecho de uma cançoneta popular e alguns provérbios da região, que, tanto no discurso direto quanto no indireto, aparecem destacados por grifo – re-curso que resguarda o nível culto da língua literária, sem deixar de dar uma amos-tra da língua local.

A representação da hierarquia da comunidade social obedece aos critérios dar winistas da seleção natural. No dia de pagamento do trabalho, recebem-no primeiramente os homens turbulentos, em seguida as mulheres briguentas, e por último as tímidas e fracas. A equiparação entre seres humanos e animais é recor-rente, Nedda parece um passarinho assustado, corre feito uma cabrita tresmalha-da ou trabalha como uma formiga, e seu namorado migra de cá pra lá como a cotovia em busca de milho. A sucessão ininterrupta de desgraças, que culmina na

5 E. Auerbach, Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental, São Paulo, Perspec-tiva, 1971, p. 430.

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resignação trágica da protagonista ao sofrimento da vida, já engendra a lógica pessimista, típica do verismo.

A opção do autor por explorar argumentos de um novo campo sociocultural implica a criação de padrões estéticos, soluções estilísticas e recursos narrativos que os comportem e representem o novo objeto literário com propriedade. Ao serem introduzidos conteúdos inéditos na literatura, desencadeia-se uma crise na criação estética que leva à superação da própria arte;6 e dessa perspectiva, enten-de-se que ao colocar em prática as concepções artísticas que defendia, Verga con-tribuiu não somente para a construção do verismo, mas também para a renovação dos fundamentos da “literaturidade e da poeticidade dominantes”7 em seu país. O conto Nedda configura-se como o anúncio do rompimento das convenções vigen-tes na literatura italiana da época, porque agrupa em gérmen as propostas de inovação da criação literária, as quais, ao longo dos anos subsequentes, passariam a fazer parte do preceituário do verismo.

Entre 1875 e 1880, Giovanni Verga trabalhou concomitantemente na redação do romance Os Malavoglia e de alguns contos,8 em que criou um numeroso elen-co de personagens sicilianos típicos. “Fantasticheria” e “L’amante di Gramigna”9 são material precioso para o estudo dos métodos de representação verguianos e da própria trajetória da escola verista. Além desses contos, as várias etapas de criação de Os Malavoglia consubstanciam a experimentação do escritor em busca do narrador impessoal perfeito, ao mesmo tempo que dão uma amostra de suas reflexões sobre o significado e a funcionalidade das proposições artísticas, de caráter naturalista, que iriam revolucionar a literatura italiana nas últimas déca-das do século XIX.

O conto “Fantasticheria”, além de antecipar o argumento de Os Malavoglia, ganha ares de manifesto verista, uma vez que o seu objetivo não é propriamente narrar uma história, mas sim discutir concepções e métodos literários inovado-res, inspirados na práxis do naturalismo francês, que são ilustrados com breves quadros narrativos, adaptados ao conteúdo temático da realidade sociocultural italiana.

O autor-narrador apresenta o texto como uma carta em resposta a um pedido de uma signora da alta sociedade setentrional, com a qual tivera um romance fu-gaz num cenário idílico à beira-mar de Aci Trezza, onde ela, depois de um primei-ro momento de encanto e excitação, logo ficara entediada. Na prática, “Fantasti-cheria” é uma carta aberta ao leitor burguês, com a intenção de introduzir um espetáculo literário inusitado, a representação realista de uma pequena comuni-dade da costa siciliana. O narrador adverte o público de que o espetáculo pode causar tanto estranheza quanto divertimento. O título já desvela a ironia fina e o

6 Cf. M. Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 215-216.7 M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética (A teoria do romance), São Paulo, Hucitec,

Unesp, 1988, p. 403.8 Reunidos em Primavera e altri racconti (1876) e Vita dei Campi (1880).9 As publicações originais desses contos, em periódicos, são de 1879 e 1880, respectivamente.

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tom sofisticado da denúncia social que permeiam a narrativa: para a burguesia, que passa a galope e vê superficialmente a vida vagarosa e simples da província, é fácil se dar ao capricho de tomá-la por motivo de diversão intelectual. Como se o resultado da representação literária da existência “dessa gente sem eira nem beira” fosse pura fantasia e não correspondesse à realidade concreta de um grupo desfa-vorecido nos aspectos materiais, sociais e espirituais da existência.

Uma das propostas mais interessantes do conto é preparar os leitores para uma óptica literária inédita, que ajusta o foco em um novo objeto artístico. O nar rador convida a “gente di toga” a olhar pelo microscópio o pequeno mundo da “gente di mare” de Aci Trezza.10 Logo de saída, explicitando o caráter positivista da narrativa, ele se mune de princípios científicos para estabelecer um ponto de vista imparcial, a partir do qual desenvolve a representação literária realista da comunidade. A narrativa sustenta um jogo sutil de lentes entre a fantasia da bur-guesia e a realidade crua dos miseráveis. A primeira não enxerga a segunda a olho nu, e esta, por sua vez, ofusca-se bestificada perante a miragem da opulên-cia burguesa.

O narrador-observador focaliza uma célula social, uma família de pescadores, trazendo à tona as suas pequeninas causas. Expõe o nó do drama dos pequenos, como os chama, e se propõe a desenvolvê-lo num romance a ser publicado futu-ramente. Ao descrever o lugar e a população, que tem a pele mais dura que a casca do pão que come, o narrador debuxa o universo ficcional de Os Malavoglia (no qual Verga já trabalhava): o velho avô, timoneiro, que morre sozinho no hos-pital; a mocinha que espia por detrás do arbusto de manjericão; o pai e o filho marujos, vítimas fatais de naufrágios; a mulher que vende laranjas numa banqui-nha na rua; a mendiga que pede esmola na praça; aqueles que “comem o pão do rei”;11 o médico que chega montado num burrico; a casa onde falta a nespereira, já cortada; a taverneira, e a porta do seu estabelecimento abarrotada de gente em dia de chuva; os rochedos gigantescos que guardam o sofrimento e a carência do povo. A análise da sociedade local não foge ao viés positivista, o narrador com-para-a com um exército de formigas: homens e insetos subjugados às mesmas e inexoráveis leis do instinto animal. A natureza reina soberana nesse ambiente, onde os pequeninos nada podem fazer para refrear a sua fúria, que toma forma de borrascas, tempestades, ou ainda de pestes que periodicamente varrem o for-migueiro humano.

“Non capisco come si possa vivere qui tutta la vita”12 é a questão que a distinta signora coloca, quando começa a se entediar, durante sua breve estada na aldeia. O narrador toma-a como mote e, a partir da premissa de que basta não dispor de cem mil liras para viver ali eternamente, desenvolve o “ideal da ostra”13 – uma alegoria filosófica de teor positivista e prognóstico pessimista, que se estabelece

10 G. Verga, “Fantasticheria”, Tutte le novelle, op. cit., p. 146.11 Idem, ibidem.12 Idem, ibidem.13 Idem, ibidem. p. 151.

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como estatuto da existência ficcional do elenco malavogliano e, de uma maneira geral, de toda a linhagem de personagens de obras veristas. A teoria de Verga in-terpreta a malfadada vida da gente do mar, com base na ideia positivista, já esbo-çada em Nedda, de que o ambiente natural determina as condições da vida huma-na. O narrador faz uma recriação metafórica da gênese dos seres, ao supor que enquanto o destino semeava príncipes e duquesas aqui e ali, deixou cair entre os rochedos essa pobre gente, que, numa atitude corajosa, agarrou-se aos escolhos, resignando-se a uma vida destinada a miséria, ignorância e desgraça. O arrimo da comunidade é a “religião da família”14 que invariavelmente, de pai para filho, re-verencia o trabalho, a casa e as pedras que a circundam. Para o autor, o drama ganha dimensão literária quando a cobiça pelo bem-estar atinge um dos pequeni-nos corações, talvez o mais fraco ou incauto, a ponto de inspirar-lhe desejos que o projetam para além do seu círculo social e o fazem romper com o restrito código moral da comunidade.

No sistema linguístico do conto, predomina a linguagem literária culta, permea-da por um leve tom de informalidade, por se tratar da representação da correspon-dência íntima entre interlocutores burgueses. O narrador refere-se ao dialeto sici-liano como semibárbaro e as poucas expressões locais que emprega – “gente di mare”, “gente di toga”, “sotto le sue tegole”, “occhiata di sole”, “nei guai”, “mangiano il pane del re” – figuram entre aspas, como a delimitarem dois planos linguísticos distintos: o alto e o baixo; aos quais correspondem duas realidades sociogeográfi-cas do país, radicalmente desiguais: lassù e laggiù. A organicidade linguística do conto está de tal forma amarrada à realidade social da Itália pós-unitária, que faz saltar aos olhos a fronteira invisível que, à revelia do processo de unificação polí-tica (e mesmo à custa dele), ainda divide a sociedade italiana em duas facções: a do norte, privilegiada, e a do sul, desfavorecida.

Verga não perde de vista as crises internas do país e as denuncia ao público com paciência didática. Ao botar o dedo na ferida nacional, prática timidamente inaugurada em Nedda e que vai se tornando mais incisiva em Vita dei campi e Os Malavoglia, o escritor pretende não só sanar um quadro social desequilibrado, mas também educar o senso crítico dos leitores, que em matéria de literatura ain-da preferia as amenidades e o melodrama15 à representação realista das questões sociais urgentes. É interessante notar os cuidados, em doses homeopáticas, que Giovanni Verga ministra para legitimar um tratamento literário sério à problemá-tica sociopolítica italiana e, ao mesmo tempo, cativar o espírito do público, expe-rimentando progressivamente conceitos e procedimentos artísticos, que aos pou-cos abrem caminho para a prática literária naturalista na Itália e criam condições à consolidação do verismo. Verga comemora essa conquista com o amigo Capua-na, numa carta de março de 1879, na qual avalia que todo o esforço tinha resulta-do num bom avanço, mas ainda deveriam “malhar muito o ferro” para que seus

14 Idem, ibidem.15 Cf. G. Petronio, L’attivitá letteraria in Italia, Milano, Garzanti, 1990, p. 710.

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propósitos fossem compreendidos, e eles finalmente pudessem ser aplaudidos em vez de apedrejados.16

Em “L’amante di Gramigna”, outra face da crise social da Itália pós-unitária é exposta. Divide-se em duas partes: a primeira é uma introdução dedicada ao escri-tor Salvatore Farina, em que se discute o critério da verdade psicológica como argumento principal de uma nova literatura, e aborda a problemática da impes-soa lidade no romance moderno; a segunda é a história de Peppa e seu amante, o brigante Gramigna.

Na introdução, o autor explica que se trata de uma narração popular de valor histórico, um “documento humano”,17 que ele reproduz tal e qual ouviu nas ruas. “Parecchi anni or sono, laggiù lungo il Simeto, davano la caccia a un brigante, certo Gramigna.”18 A história é situada em pleno desenrolar do Banditismo Meri-dional, e retrata a caçada a um líder brigante. Gramigna é perseguido por toda a força militar da região, e suas proezas e insubordinação extraordinárias geram lendas que correm toda a província, inspirando à população sentimentos contra-ditórios de admiração e medo. A aura lendária de Gramigna eleva-o à condição de herói popular e seduz a bela Peppa, que está de casamento marcado com um dos melhores partidos do lugar, o compadre Finu. Fascinada pela lenda, a moça abandona a mãe, o noivo e o enxoval para juntar-se ao bandido. Quando Peppa se desgarra da comunidade, rompe com a “religião da família”, dando início a toda uma sorte de desgraças. Junto a Gramigna, a jovem leva uma vida degradan-te; e depois de lutas sangrentas e fugas arriscadas, finalmente os dois são captu-rados. A mãe de Peppa vende tudo para pagar o advogado e tirá-la da prisão. Ela volta à casa materna com um filho de Gramigna nos braços, e lá permanece, como uma fera enjaulada, até que a mãe morre de desgosto. Na calada da noite, Peppa abandona a criança à roda dos expostos e vai para a cidade onde ouvira dizer que Gramigna estava preso. Pouco depois, fica sabendo que o amante foi transferido para um lugar distante, e só lhe resta então “ganhar o pão” por ali mesmo, prestando serviços aos soldados.

Como se trata da estilização paródica de uma lenda, Verga sincroniza dois planos narrativos e dois tipos de narrador: um conto escrito pelo autor burguês para o leitor burguês, que reproduz uma lenda contada por um narrador popular para pessoas do povo. No ponto em que ocorre a defasagem desses planos, em que cada um se resguarda à sua própria natureza, tornam-se evidentes os diferentes modos de transmissão de conhecimento e experiência narrativa de um e de outro. De um lado, o escritor burguês experimenta uma técnica narrativa e conceitos artísticos inusitados, com o propósito de educar a burguesia para uma literatura e uma consciência social novas; de outro, o narrador naturalista estiliza o narrador popular, que conta uma parábola anônima e transmite um preceito moral, cuja

16 Gino Raya (org.) Lettere a Luigi Capuana, op. cit., p. 117.17 Em “L’amante di Gramigna”, in G. Verga, Tutte le novelle, op. cit., p. 203.18 Idem, ibidem, p. 204.

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finalidade é perpetuar a tradição, educando a comunidade para a preservação da cultura e dos valores.

A lenda é um gênero narrativo composto de elementos que povoam o imagi-nário popular, e, nesse sentido, a história de Peppa e Gramigna expressa simbo-licamente medos e temores que assombram a província siciliana no período pós-unitário: miséria, fome, doença, prostituição, desagregação familiar, desamparo social e carência de perspectiva existencial. Verga expõe camadas mais profundas e sutis da ferida social da Itália recém-unificada, haja vista a declaração que faz na introdução do conto, afirmando que seu interesse maior concentra-se no estudo e na representação literária séria dos fenômenos psicológicos da sociedade.

Outro procedimento artístico experimentado no conto e desenvolvido de for-ma mais produtiva em Os Malavoglia, que atua no âmbito das verdades interiores com a intenção de desconstruir valores impostos pela tradição religiosa, é a cons-trução de personagens centrais a partir da paródia de legendas de santos e márti-res da fase inicial do cristianismo, os quais são patronos da região em que a histó-ria se passa, e protetores de profissões, atividades ou costumes típicos do lugar. Peppa, por exemplo, é comparada à padroeira das prostitutas arrependidas,19 “lei che ci aveva dell’oro quanto Santa Margherita!”.20 Nesse processo de representação paródica, a trajetória da vida, as provações e o destino que o enredo reserva à per-sonagem correspondem, até certo ponto, àqueles da legenda. Ao parodiar hagio-grafias, o autor reporta para o seu texto características marcantes do gênero, e or ganiza-as na estrutura narrativa em prol da despersonalização do narrador e intensificação da verossimilhança. A forma hagiográfica parte do princípio de que seu objeto de representação é pouco verossímil, e para que a narrativa inspire credibilidade, requer uma espécie de renúncia resignada do autor. Para lidar com a inadequabilidade do objeto é elaborada uma voz narrativa que abre mão da in-dividualidade autoral para ressoar numa frequência comum, de generalização. De acordo com essa perspectiva, o narrador verista ao mesmo tempo que intensifica a marca de impessoalidade no discurso, desfruta da “autoridade indiscutível”21 da hagiografia, para adentrar o imaginário do leitor, sem que esse imponha restri-ções. No que diz respeito à representação realista dos fenômenos psicológicos pretendida por Verga, o recurso cai como uma luva, pois retrata a mentalidade ultrapassada e as limitações imutáveis da vida desse grupo social, por meio da paródia de seus próprios ícones e valores religiosos.

As linhas que Giovanni Verga dedica a Farina têm, como “Fantasticheria”, um quê de manifesto verista, porque, além de apresentarem as intenções programáti-cas do escritor, são redigidas na primeira pessoa do plural, sugerindo que é porta-voz de um grupo que desenvolve uma nova literatura. “Noi rifacciamo il processo artistico al quale dobbiamo tanti monumenti gloriosi”22 – seu discurso não rejeita a

19 Cf. www.santiebeati.it.20 G. Verga, “L’Amante di Gramigna”, op. cit., p. 208.21 Cf. M. Bakhtin, Estética da criação verbal, op. cit., p. 170.22 Em G. Verga, “L’amante di Gramigna”, op. cit., p 203.

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tradição romântica, antes, digere-a para dar continuidade à exploração de um ar-gumento antigo, “o fato humano”, marcado pelas “lágrimas verdadeiras, febres e sensações que passaram pela carne”.23

As palavras do autor traduzem a visão de mundo do “eu naturalista”, que pro-cura equilibrar razão e emoção num só corpus fisiológico. Ao argumentar que o verdadeiro “fato humano” é de natureza psicológica, demonstra que os critérios do seu método de criação não se restringem à compreensão de uma representação realista apegada somente à realidade concreta, a qual apenas “reproduz a fachada” e “auxilia na produção do engodo”;24 mas sim, privilegiam a representação que explora a psicologia dos indivíduos. De acordo com a concepção do escritor, se o fato verdadeiro é o psicológico, a consciência do artista que o representa não é menos verdadeira; e a subjetividade do autor se traduz em objetividade, dado que a percepção psicológica e a concepção artística da realidade atuam num mesmo plano de representação.

Na teoria e na prática, como nos mais bem sucedidos contos de Vita dei campi e no romance Os Malavoglia, Verga propõe a observação dos caracteres das perso-nagens e dos valores morais atuantes em cada situação, por meio de um processo dedutivo, em que a inferência do leitor é essencial para que o ambiente e as con-dições exteriores que condicionam o universo ficcional sejam depreendidos. De acordo com esse método, os fenômenos psicológicos são veiculados na narrativa a partir da consciência do autor, que se dá conta e se apropria das forças subjacen-tes atuantes no momento e no lugar em que a história se passa. O narrador des-creve as personagens em situações corriqueiras e de interação entre si, de modo que as qualidades e os valores internos individuais revelam-se naturalmente e atuam por si na representação da realidade social e material a que estão submeti-das. Esse método de criação privilegia a representação da fisiologia do espírito humano, de forma integrada a um contexto de amplitude antropológica.

Em carta de abril de 1878, Verga contava ao amigo Salvatore Paola Verdura sobre um grande projeto literário, em que pretendia compor um ciclo de cinco romances, intitulado Marea. A obra representaria a fisionomia da sociedade italia-na moderna e traçaria a “fantasmagoria da luta pela vida”,25 valendo-se dos méto-dos naturalistas da observação imparcial, minuciosa e da narração impessoal. De acordo com seu plano, cada romance estudaria uma classe social, desde a mais ínfima, onde a luta é “limitada ao pão cotidiano”,26 até a mais luxuosa, onde a cobiça e a avidez regem os propósitos humanos. No prefácio a Os Malavoglia, Verga deu novo título ao ciclo, I vinti (Os vencidos), porém das cinco obras progra-madas, respectivamente I Malavoglia, Mastro Don Gesualdo, Duchessa di Leyra,

23 Idem, ibidem.24 Cf. Adorno, Notas de literatura I, São Paulo, Livraria Duas Cidades, Editora 34, 2003, p. 57.25 Apud C. G. Lanza, “Invito alla lettura”, in: G. Verga: I grandi romanzi e tutte le novelle, Roma,

Newton, 1992, p. 33-34.26 Idem, ibidem, p. 34.

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L’onorevole Scipioni e L’uomo di lusso, somente as duas primeiras e parte da terceira foram concluídas.

O prefácio de Os Malavoglia foi redigido um mês antes da publicação do livro, e especialmente recomendado ao editor. Isso indica que o texto já tinha sido pla-nejado como parte indissociável da obra, e sua ideação foi-se maturando ao longo da redação do romance. “Em qualquer livro, o prefácio é, ao mesmo tempo, a pri-meira e a última palavra. Serve para explicar o objetivo da obra ou para justificar e responder às críticas”, observa Liérmontov.27 No prefácio de Os Malavoglia, a voz do autor implícito28 é veiculada por uma instância narrativa de estilo naturalis-ta, que, ao apresentar a intenção programática, os conceitos e os métodos do es-critor verista, resgata suas raízes na tradição literária, ao mesmo tempo que projeta suas funções artístico-sociais na trajetória da literatura contemporânea.

O prefácio orienta a leitura para as questões específicas do romance, eviden-ciando seus principais aspectos e traços constitutivos. Trata da organicidade da obra verista, justificando a escolha do objeto e dos critérios que regem sua repre-sentação, e discorre sobre o modus operandi do narrador impessoal. Sustenta a unidade orgânica e promove a “afinidade e a coesão”29 da obra, porque expõe os princípios básicos que “darão vida a todos os setores, colorindo cada um com suas particularidades qualitativas próprias”.30 Como definição do método de criação verista, que visa à reprodução artística exata da realidade, os preceitos nele apre-sentados dão ensejo a um processo de composição metonímico, de acordo com o qual, forma e conteúdo são atravessados por um único princípio de representação, que resulta e reverbera no todo. Desse ponto de vista, evidencia-se a concepção de Os Malavoglia como um romance-tese, pois é possível entrever que a força inte-gradora de sua organicidade permite que na obra coexistam ativamente o romance verista e a tese desse romance.

O prefácio explica o método de observação do narrador para representar o objeto de maneira incontaminada, preservando suas particularidades. O narrador verista é idealizado como um observador imparcial que, ao contar a história de uma família siciliana subjugada às condições do presente histórico, restitui a “cena nitidamente, com as cores devidas, de modo a dar a representação da realidade como ela foi”.31 Para tanto, ele procura identificar-se com o seu objeto de repre-sentação, colocando-se como um observador arrastado pela mesma cheia, que olha “ao seu redor”, com interesse “pelos fracos que ficam pelo caminho”.32 Re-presentar a realidade em toda sua complexidade, através de uma instância narra-

27 Em Liérmontov, “Prefácio do autor”, in O herói do nosso tempo, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1988, p. 11.

28 Cf. H. Grosser, Narrativa – Manuale / Antologia, Milano, Principato, 1985, p. 44.29 Cf. G. Verga, “L’amante di Gramigna”, op. cit., p. 204.30 Cf. S. Eisenstein, Reflexões de um cineasta, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969, p. 62.31 G. Verga, “Prefácio”, in Os Malavoglia, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de

Andrade, São Paulo, Ateliê Editorial, 2002, p. 10.32 Idem, ibidem, p. 9.

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tiva despersonalizada e imparcial, que seja capaz de deixar o objeto falar por si, é o cerne da problemática naturalista, e também a questão para a qual o romance-tese propõe uma solução.

A história de Os Malavoglia se passa entre 1860 e o final da década de 1870, no vilarejo de Aci Trezza, região natal de Verga. O período, que compreende os anos em que o escritor foi soldado e jornalista, é considerado um dos mais con-turbados e sangrentos da Unificação italiana; especialmente na Sicília, onde a Guardia Nazionale e o exército de Garibaldi, depois de derrotarem a resistência bourbônica, combateram violentamente numerosos bandos de camponeses rebe-lados em decorrência da miséria. A luta estendeu-se por cinco anos (1860-1865) e resultou no massacre de milhares de vítimas dos dois lados.33

No prefácio ao romance, valendo-se de uma metáfora explícita dos conflitos internos, o autor define a obra como um relato objetivo da realidade dos venci-dos, que “levantam os braços desesperados, e dobram a cabeça sob o pé brutal dos que sobrevêm”.34 Ele se apresenta como um observador que se retira “um instante para fora do campo da luta para estudá-la sem paixão”.35 Os Malavoglia reconstituem a realidade dos mais fracos durante um acontecimento histórico recente: a primeira edição do romance dista apenas duas décadas da fase mais violenta da Unificação italiana. O tema era atualíssimo e polêmico. O modo de tratá-lo também, pois seguia o receituário naturalista, segundo o qual “os carac-teres, as atitudes e as relações das personagens atuantes devem estar estritamente ligados às circunstâncias da história da época”.36 Para tanto, as condições políti-cas e sociais do momento histórico contemporâneo são enredadas na trama nar-rativa, de modo a contribuir para a restituição fidedigna do “espetáculo”, e alcan-çar, como Verga pretendia, a “representação da realidade como ela foi, ou como deveria ter sido”.37 No romance, é representada uma comunidade de pescadores isolada do mundo. O narrador relata detalhadamente sua vida diária, reproduz seu modo de falar e descreve seus usos, costumes, ofícios, crenças e marcas cul-turais. As circunstâncias que compõem a vida da sociedade ficcional são expos-tas, e, aos olhos do leitor, descortina-se um quadro humano muito significativo, que remete às verdadeiras condições sociais, políticas e econômicas que determi-nam a vida da população siciliana.

O contexto sociopolítico real da Sicília pós-unitária deixa-se entrever na nar-ração de certos episódios, como a revolta dos aldeões contra o imposto sobre o piche, além daquele já cobrado sobre o sal; o alistamento obrigatório no servi-ço militar de dois irmãos Malavoglia, cuja partida da terra natal debilita a força de trabalho da família; a morte de um deles durante uma batalha naval ocorrida,

33 Cf. A. Pagano, “1862 – Cronologia di un anno infame – La pulizia etnica piemontese nelle Due Sicilie”, disponível em: <http://www.cronologia.it>.

34 G. Verga, “Prefácio”, in Os Malavoglia, op. cit., p. 9.35 Idem, ibidem, p. 10.36 Cf. E. Auerbach, Mimesis, op. cit., p. 408.37 G. Verga, “Prefácio”, in Os Malavoglia, op. cit., p. 10.

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de fato, em 1866; a epidemia de cólera que mata a mãe da família, e que, na rea-lidade, alastrou-se pela região em 1867; a incompetência administrativa do pre-feito e do secretário da província que, em vez de defenderem interesses da popu-lação, favorecem causas próprias. Ademais, no decorrer da história, algumas personagens aludem a personalidades do cenário político da época: os Bourbons, Franceschello (apelido do rei Francesco II, deposto em 1860), Garibaldi, Vittorio Emanuele II. A partir da identificação na narrativa de elementos reais do cenário sócio-político-econômico do país, estabelecem-se pontos de contato entre o enre-do romanesco e o processo histórico real. À medida que a leitura do romance des vela o desamparo da sociedade ficcional, oferece também subsídios para a com preensão da situação concreta da população siciliana à época.

Os Malavoglia fazem um recorte antropológico da sociedade siciliana no ápi-ce da Unificação italiana; e a versão oficial desse processo histórico, registrada em documentos governamentais e ilustrada em livros didáticos, diferia muito da realidade representada no romance. Isso se deve especialmente ao fato de o nar-rador-observador adotar o ponto de vista da classe subjugada. Conforme o autor explica no prefácio, o enfoque particularizado evidencia aspectos pouco nobres do “espetáculo”,38 os vícios e as fraquezas que o movem. Tal perspectiva opõe-se à visão do conjunto, que tende a diluir os pormenores inconvenientes e a repre-sentar tão somente a grandiosidade do todo, como sói acontecer em relatos tra-dicionais de história, ou mesmo em romances históricos convencionais. O as-pecto documental da narrativa literária propõe ao leitor, de qualquer época ou país, uma leitura amarrada à realidade histórica, que o leva a enxergar-se como peça do mesmo quadro da civilização humana. Nesse sentido, a função artístico--social do romance verista satisfaz o propósito educativo que a inspira. No plano sociocultural, Os Malavoglia são a contraversão da história oficial da Sicília pós--unitária, justamente por contá-la da perspectiva dos vencidos; e no plano artísti-co, um paradigma literário inédito, pois a adoção do novo objeto artístico, aliada a um enfoque narrativo original, propõe uma série de procedimentos que sub-vertem a rigidez da literatura italiana oitocentista.

A noção de objeto artístico como objeto de estudo literário está relacionada com a função que a literatura, especialmente a naturalista, criou para si dentro da cultura burguesa europeia do século XIX. Esse tipo de expressão literária privilegia o fator social no processo de criação, de modo que o vocabulário do universo representado recebe tratamento estilístico cuidadoso na composição do sistema linguístico da obra. Para Auerbach, a inserção da língua vulgar na narrativa literária foi fundamental para tratar com seriedade o cotidiano real das pessoas sem importância.39 Os estudos de Bakhtin concordam com tal proposi-ção, ao sustentar que o tratamento literário sério aplicado à vida do homem

38 G. Verga, “Prefácio”, in Os Malavoglia, op. cit., p. 10.39 Em E. Auerbach, Mimesis, op. cit., p. 26.

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comum só se dá a partir do rebaixamento da língua literária culta e da mistura dos níveis de linguagem.40

Tudo indica que desde a primeira ideia que inspirou o romance Os Malavoglia, Verga tinha em mente a preocupação de elaborar uma solução linguística que fi-zesse jus à proposta de representação realista do objeto. Em carta de setembro de 1875, ele comunicava ao editor Emilio Treves que estava trabalhando num “esbo-ço marinheiresco” intitulado Padron ‘Ntoni (texto que deu origem ao romance).41 É bem provável que, conforme o escritor relatou ao jornal Tribuna em 1911, a origem desse esboço remonte a um “acaso verídico” que lhe ocorrera.42 Segundo a entrevista, Verga conta que certa vez caiu-lhe em mãos um jornal de bordo que narrava as peripécias de um capitão em seu veleiro, e muito o intrigou, pela con-cisão e total falta de cuidados gramaticais: “Golpeou-me, reli-o: era o que eu pro-curava sem distintamente me dar conta. Às vezes, sabe-se, basta um ponto. Foi um facho de luz”.43 O fato de a primeira pedra do romance ser um material não literário, de cunho regionalista e escrito num registro linguístico específico da lida marinheira, demonstra que Verga pretendia extrair a ficção da vida real, tinha a atenção voltada a determinada problemática sociogeográfica (no caso, da sua re-gião natal), e preocupava-se com a questão da língua literária.

Dessa perspectiva, há que considerar outro traço essencial do romance, que advém do interesse do autor pela narrativa popular, despertado por uma “pequena obra-prima” de Capuana, o divertido conto “Lu cumpari”, o qual retoma o mote de uma velha canção folclórica.44 Em carta de 1882, Verga confessava ao amigo que devia a ele a “primeira inspiração da forma genuinamente popular”45 que ti-nha procurado dar a suas novelas. Enquanto escrevia o romance, Verga trocava ideias sobre o seu trabalho com Capuana, pedindo sugestões de ditos e injúrias da tradição oral, bem como indicações de antologias e dicionários de provérbios e modos de falar do dialeto siciliano.46 Havia algum tempo, Capuana dedicava-se à pesquisa de clássicos da literatura italiana, de narrações populares e provérbios sicilianos, a fim de definir as perspectivas ideológico-verbais de uma língua literá-ria que representasse com autenticidade o mundo popular das províncias meri-dionais, e fosse compreendida pelo público leitor concentrado nas regiões privile-giadas do país. “Ah, a língua!... O nosso gravíssimo escolho!”,47 desabafaria

40 Em M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética..., op. cit., p. 409.41 Apud C. Simioni, “Introduzione”, op. cit., p.13. 42 Cf. E. Sanguineti, Cronologia della vita e delle opere” (Prefazione), in G. Verga, I Malavoglia,

Roma, Editori Riuniti, 1982, p. xxvi.43 Apud C. Simioni, “Introduzione”, op. cit., p.14.44 Cf. G. Verga, Lettere a Luigi Capuana, op. cit., p. 201.45 Idem, ibidem, p. 200.46 Idem, ibidem, p. 93 (carta de 17 mai. 1878); p. 121 (10 abr. 1879).47 Apud G. Petronio, L’attivitá letteraria in Italia, op. cit., p. 716. O termo utilizado por Capuana,

“scoglio”, foi aqui traduzido literalmente, para manter a referência aos escolhos, ou “farilhões dos Ciclopes”, situados em Aci Trezza, que, na literatura verguiana são associados à limitação, desgraça, perigo (cf. p. 19, “o ideal da ostra”).

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Capuana ao relembrar o trabalho que teve, durante a redação de Giacinta, para chegar a uma solução estilística eficaz. Além de recorrer ao amigo, Verga planejou passar algumas semanas em Aci Trezza, logo que terminasse de escrever o roman-ce, para dar o tom local à narrativa.48 De lá escreveu a Capuana, contando que aproveitava a estada à beira-mar para observar de perto “aqueles pescadores e colhê-los vivos como Deus os fez”.49

Ao incorporar no processo de criação do romance linguagens de outros gêne-ros textuais e da tradição oral – o diário de bordo, os contos popularescos, o lin-guajar dos marujos, o modo de falar dos habitantes de Trezza, os rifões da sabedo-ria popular siciliana – o autor implanta na sua gênese o plurilinguismo,50 que res soa em todos os seus elementos formais e conteudísticos. A organização do diálogo interno das diversas linguagens sociais relativas às áreas de atuação e aos sistemas ideológico-culturais da comunidade linguística representada define a “estilística sociológica”51 do romance. Trata-se de uma revolução muito importan-te nos domínios da literatura, porque liberta a expressão artística do poder arbi-trário de uma língua literária única. Uma batalha particularmente difícil no cam-po da literatura italiana do século XIX, onde o romance era considerado um gênero secundário, e predominava uma língua literária conservadora e refratária ao coloquialismo e aos dialetos regionais. A proposta verista perseguia o ideal da impessoalidade narrativa, cujo objetivo era deixar as personagens populares fala-rem por si, sem o intermédio de um narrador que elevasse o discurso ao nível do autor burguês. Por relegarem a tradição da língua literária culta, os escritores ve-ristas foram, durante um bom tempo, taxados de maus escritores pela maior parte dos leitores e da crítica da época.

A língua literária que Giovanni Verga criou em Os Malavoglia resultou no “instrumento mais perfeito e eficaz que o estilo narrativo conheceu na Itália por meio século”,52 resume Antonio Candido, expressando uma opinião que se afina com a da crítica italiana atual. No prefácio ao romance, o autor explicita os crité-rios da sua criação linguística. Há que considerar o desejo sincero de “demonstrar a verdade”, e então, para que o quadro social explorado possa ser representado de modo realista, é essencial imprimir no discurso a marca genuína da língua falada da comunidade retratada. Deve-se levar em conta o fato de que “a linguagem ten-de a individualizar-se, a enriquecer-se de todas as meias tintas, dos meios senti-mentos, de todos os artifícios da palavra para dar relevo à ideia”. Para que a repro-dução artística seja exata, prossegue o autor, é preciso “seguir escrupulosamente as normas desta análise”, pois, no seu entender, “a forma é tão inerente ao sujeito, quanto cada parte do próprio sujeito é necessária à explicação do argumento

48 Cf. G. Verga, Lettere a Luigi Capuana, op. cit., p. 93 (carta de 17 mai. 1878).49 Idem, ibidem, p. 114 (carta de 14 mar. 1879). 50 Cf. M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética..., op. cit., p. 107-133.51 Idem, ibidem, p. 106.52 Em “O mundo-provérbio”, in G. Verga, Os Malavoglia, op. cit., p. 348.

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geral”.53 O discurso narrativo do romance é construído de acordo com o vocabu-lário e a sintaxe da língua falada dos moradores da aldeia siciliana. A solução es-tilística de Verga combina a língua culta com a rústica, e o seu narrador trabalha com quatro possibilidades linguísticas: “toscano culto, toscano popular; siciliano eventualmente submetido a tratamento literário, siciliano popular”.54 O ritmo da oralidade e o lugar-comum típicos do dialeto local evidenciam-se, na narrativa, pela reprodução de provérbios, expressões idiomáticas, frases feitas, jargões do trabalho e da lida doméstica; bem como, pela criação e uso recorrente de epítetos, formulados com elementos do senso comum da comunidade retratada.

A língua do romance é articulada através de um narrador em terceira pessoa que continuamente rompe as formas fixas da enunciação,55 suprimindo as conven-ções sintáticas dos discursos direto, indireto e indireto livre, e nivelando as vozes do narrador e das personagens num só plano discursivo. Em carta a Edouard Rod, tradutor de Os Malavoglia para o francês, Verga mostrava-se plenamente ciente de que a língua literária que criara era inédita na literatura italiana, e enfatizava que sua intenção fora exprimir com nitidez a língua local, preservando-lhe ao máximo o tom verdadeiro e a marca própria.56 De fato, é a força da expressão social da língua do romance que o configura como uma consciência linguística ativa e par-ticipante do processo de evolução da língua literária italiana.57 No plano estrutu-ral da narrativa, a língua é peça-chave que faz convergir os recursos estilísticos empregados pelo autor para a construção do narrador impessoal, e de uma veros-similhança narrativa perfeitamente orgânica.

Os ideais naturalistas, relativos a um narrador e uma língua literária que dei-xam o objeto falar por si, são plenamente contemplados no romance de Verga. De acordo com Roman Jakobson, toda inovação artística que se propõe a uma maior aproximação da realidade deforma ao máximo os cânones artísticos;58 e a partir dessa perspectiva, pode-se considerar que Os Malavoglia, ao desenvolverem uma série de procedimentos artísticos inovadores, contribuíram para a deflagração de uma crise do gênero no âmbito da literatura italiana. A língua malavogliana, como instrumento de representação realista da sociedade da província siciliana, promo-ve uma revolução que está intimamente ligada ao processo de Unificação italiana. Ela integra língua literária convencional e língua dialetal, e nesse gesto simbólico propõe a legitimação das várias identidades culturais das regiões italianas. Ao organizar diferentes vozes sociais de uma só nação, a língua do romance ganha

53 G. Verga, “Prefácio”, op. cit., p. 8.54 Cf. A. Candido, “O mundo-provérbio”, in O discurso e a cidade, São Paulo, Duas Cidades,

1993, p. 348.55 Cf. M. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem – Problemas fundamentais do método socio-

lógico na ciência da linguagem, São Paulo, Hucitec, 1999, p. 139-143.56 Cf. A. Candido, “O mundo-provérbio”, op. cit., p. 349.57 Cf. M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética..., op. cit., p. 164-210.58 Cf. R. Jakobson, “Do realismo artístico”, in Teoria da Literatura – Formalistas russos, Porto

Alegre, Globo, 1971, p. 122-123.

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dimensão política, e define a sua função artístico-social. O romance-tese propõe a unificação da literatura italiana, pois, ao conferir dignidade literária à língua, a te-mas, motivos e personagens da Sicília, rompe a hegemonia artística setentrional.

Ao tratar a questão da impessoalidade no romance moderno, em “L’amante di Gramigna”, Verga ousou ir além da proposta lançada em “Fantasticheria”, onde convidava o leitor a observar o objeto artístico por intermédio do microscópio. Em “L’amante di Gramigna”, sua intenção é deixar que o leitor depare com “o fato nu e genuíno”,59 não submetido à lente do escritor – não há mais barreira que separe o leitor-observador do objeto de representação. Na resenha que fez a Os Malavoglia, Capuana alega que a questão da impessoalidade narrativa era o alvo supremo das ambições dos romancistas da época. Numa carta que escreveu a Ca-puana em fevereiro de 1881, Verga se referia à sua “velha fixação”60 pela impessoa-lidade da obra de arte. Na sua opinião, a obra bem sucedida é um organismo vivo, completo, imortal, e, portanto, muito mais valiosa do que o artista que a criou. Para defender a ideia junto ao amigo, colocou-lhe as seguintes questões: “Che cosa è non il tuo nome, né il mio, ma quel del Manzoni, o di Zola, in faccia ai Promessi Sposi e dell’Assommoir? L’opera d’arte non val più dell’autore?”.61 Verga fez questão de prenunciar que a arte do futuro deveria, de maneira universal, admitir o total desapego pelo artista. A Salvatore Farina, Verga afirmou que o triunfo do romance seria alcançado quando a organicidade de suas partes fosse tão perfeita, e a sua matéria, tão necessária, que a “mão do artista” permaneceria totalmente invisível, de modo que a obra teria “a marca do acontecimento real” e pareceria “ter sido feita por si”, como um “fato natural”, que nasce sem conservar nenhum ponto de contato com o autor-criador. Tais declarações denotam que o escritor refletia so-bre a evolução do romance moderno e participava de tendências e ideias artísticas originais em seu tempo.

Em literatura, o ideal da impessoalidade recai sobre o narrador: os esforços do autor convergem para não se deixar entrever o narrador na matéria narrada. A “emancipação do romance em relação ao objeto”62 é limitada justamente pela lin-guagem discursiva, a qual, por sua vez, é o único instrumento de que o narrador dispõe para contar a história. Superar tal limitação depende da força criativa da técnica de representação desenvolvida no discurso do narrador para iludir o leitor de que a voz narrativa é o próprio objeto. Dessa perspectiva, compreende-se como a construção bem sucedida do narrador verista, que não se deixa detectar com facilidade, está intimamente vinculada à aplicação maciça do princípio de veros-similhança ao sistema linguístico-discursivo do romance. O objeto de representa-ção artística parecerá autêntico ao leitor, na mesma medida em que a voz narrativa

59 Em G, Verga, “L’amante di Gramigna”, op. cit., p 203.60 Apud R. Scrivano, La narrativa di Giovanni Verga – appunti per le lezioni di letteratura italiana,

Roma, Bulzoni Editore, 1981, p. 137 (carta de 19 fev. 1881). 61 Idem, ibidem.62 Cf. T. Adorno, Notas de literatura I, São Paulo, Livraria Duas Cidades, Editora 34, 2003, p. 56.

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também soar natural e legítima, por se expressar numa linguagem identificada com o universo sociocultural representado.

Verga trabalhou nos contos de Vita dei campi e no romance Os Malavoglia sempre com o propósito de alcançar a impessoalidade narrativa. Os contos podem ser considerados etapas experimentais da composição do narrador impessoal, al-mejado pelo autor, e alcançado no romance de maneira inigualável, como avaliou Capuana, na já referida resenha. Em “L’amante di Gramigna”, ao propor a repro-dução fiel de uma narração popular de caráter histórico, Verga lança os funda-mentos da construção do seu narrador. Ele informa que apenas repetirá a história ouvida, preservando-lhe as palavras “simples e pitorescas”.63 Segundo Benjamin, “a experiência que anda de boca em boca”64 é a fonte de todos os narradores, e ao recorrer diretamente a ela, Verga investe na despersonalização do seu narrador, valendo-se do princípio de que a história escrita que provém da tradição oral po-pular tende a preservar-lhe o espírito de anonimato, justamente porque procura não se distinguir “do discurso dos inúmeros narradores anônimos”.65

O detalhe significativo do método realista de representação literária que Verga inventou em Os Malavoglia fica por conta do apelo às raízes. Nesse método, a pa-ródia e a estilização são as operações essenciais, utilizadas como mecanismos de despersonalização e isenção narrativa. De uma perspectiva processual, o recurso vale-se da força arquetípica dos mitos que a narrativa recupera. Os arquétipos, por atuarem na esfera do inconsciente coletivo, atingem em cheio o leitor, cuja ener-gia psíquica, num processo de identificação sensível-intuitiva, é ativada pelo sim-bolismo que a narrativa propõe. Sem dúvida, esse é um recurso poderoso para suprimir as barreiras que costumam delimitar as relações convencionais entre au-tor, obra e leitor.66

Como instância mediadora dessa tríade, o narrador de Os Malavoglia se oculta do leitor, não por se diferenciar dele, do mesmo modo como não se diferencia das personagens; mas, ao contrário, por uma espécie de contaminação mimética. Em relação às personagens, esse processo se dá pela representação paródico-estilizada de elementos da realidade da comunidade retratada (linguagem, cultura, crença, mentalidade, valores morais, situações cotidianas e do trabalho etc.). Já no que diz respeito ao leitor, a tarefa de aproximação do narrador ocorre a partir da representa-ção, também paródica, de temas arquetípicos (mitos, legendas, sabedoria popular, tradição oral, literaturas antiga, clássica e popular) que apelam a esferas sublimi-nares de generalidade e primordialidade; de modo a fazer que o leitor identifique-se com a história narrada, a ponto de ter a impressão de estar circunscrito àquele universo, que mesmo sendo outro é o seu, pois a expressão artística irradia a es-sência do gênero humano.

63 Em G. Verga, “L’amante di Gramigna”, op. cit., p. 203.64 W. Benjamin, “O narrador – observações acerca da Obra de Nicolai Leskow”, in Textos esco-

lhidos, São Paulo, Abril, 1980, p. 58.65 Idem, ibidem.66 Cf. A. Candido, Literatura e sociedade, São Paulo, T. A. Queiroz Editor, 2000, p. 22.

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O prefácio coloca que o narrador verista privilegia a observação de perto, dos detalhes, para evidenciar “todas as contradições, de cujo atrito brota a luz da verdade”.67 Tal proposição anuncia o princípio paródico que rege o método de re-presentação do romance. De acordo com ele, o plano da obra é sobreposto ao plano do elemento parodiado, e para que a paródia possa alcançar sua intenção reveladora, faz-se necessária a “desarticulação dos dois planos, o deslocamento de ambos”.68 a fim de que se dê o “atrito” revelador, aquele que dá chance à percep-ção da verdade subjacente da coisa. Ao retratar o cotidiano duro e a vida desgra-çada da família Malavoglia e dos habitantes da aldeia, Verga disseca aos olhos do leitor o seu objeto de estudo, reservando-se o direito, outorgado pelo escrúpulo cientificista, de não julgar as chagas sociais que expõe. No entanto, graças à con-tinuidade de seu estilo, a paródia estabiliza-se como o princípio organizador do romance; e a função artístico-social que tal mecanismo desempenha distingue-se por articular a crítica ao caso social representado de maneira oblíqua, porque o princípio de criticidade reside no próprio método de criação literária, que recorre a procedimentos paródicos para representar a realidade de forma séria. Desse modo, são engendradas na narrativa estratégias de ruptura, desconstrução, revo-lução dos padrões artísticos e axiológicos convencionais. Essa maneira de colocar as coisas revela-se bastante inteligente e democrática: Verga delega ao leitor a ta-refa nada fácil de decifrar as nuanças ideológicas do discurso narrativo e atribuir-lhes sentido próprio, de um modo que, apesar de o leitor ter a impressão de fazer o percurso sozinho, caminha o tempo todo pela trilha aberta pelo narrador, e nes-se caso, está sempre ao lado dos vencidos.

A paródia, em razão do princípio de duplicidade que a caracteriza, apresenta-se como a única possibilidade de recriação crítica do quadro social retratado. Na representação do momento histórico, a população de Aci Trezza está à margem do desenvolvimento tecnológico e da urbanização do século XIX, e vive o presen-te à moda antiga, de acordo com o regime de vida dos antepassados. A partir dessa perspectiva, percebe-se que em Os Malavoglia o presente é paródia do pas-sado. A retrógrada aldeia siciliana, que subsiste numa época de progresso rápido e ideias avançadas, só pode ser descrita pela paródia do mundo antigo, estático e de pensamento absoluto. Em uma mesma operação paródica de representação, é possível combinar elementos opostos, que coexistem nesse universo, e, ao se sobrepor o plano da antiguidade ao da atualidade, este último, por estar em vigor, desnuda-se em profundidade. Ainda mais interessante é notar que as categorias e qualidades que a paródia introduz no romance se chocam contra os princípios positivistas e o engajamento social do naturalismo literário nos quais a obra se fundamenta, pois essa desarticulação propõe uma revisão crítica profunda da rea-lidade artística e social.

67 G. Verga, “Prefácio”, op. cit., p. 9.68 Cf. Tyniánov, “‘Dostoevskij e Gogol’: per una teoria della parodia”, in Avanguardia e Tradizione,

Bari, Dédalo Libri, 1968, p. 138.

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ANA PAULA FREITAS DE ANDRADE Giovanni Verga e a construção do verismo 65

Tudo isso leva a crer que apesar da afinidade com a escola naturalista e da colaboração decisiva para a construção do verismo, Verga não amarrou sua produ-ção literária nem a uma coisa, nem a outra. Avesso a rótulos, o escritor sempre se destacou por uma consciência artística autônoma. Haja vista o caso de Os Malavo-glia, que contemplam plenamente os preceitos naturalistas e estabelecem-se na literatura italiana como protótipo do romance verista, mas, ao mesmo tempo, extrapolam a própria prédica que os inspirou, porque revolucionam os padrões artísticos da época e experimentam uma nova arte, antecipando a paródia como método de representação realista que caracterizaria o romance do século XX.

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* O presente ensaio foi adaptado de um capítulo da tese de doutorado Metáforas da história: uma leitura dos romances de Helder Macedo, defendida na Universidade Estadual de Campinas em fevereiro de 2009.

AS ERRATAS PENSANTES:UMA LEITURA DE PEDRO E PAULA, DE HELDER MACEDO*

GREGÓRIO F. DANTAS

Universidade Federal da Grande Dourados

ResumoO presente ensaio pretende realizar uma leitura do romance Pedro e Paula, do escritor português Helder Macedo, conside-rando a apropriação de referências intertextuais da obra de Machado de Assis. Para tanto, pretendemos interpretar Pedro e Paula a partir dos critérios adotados pelo próprio autor para interpretar as obras ficcionais de sua eleição, incluindo Ma-chado de Assis.

AbstractThe present essay intends to undertake a reading of Pedro e Pau-la, the novel by the Portuguese author Helder Macedo, taking into account the appropriation of intertextual references of Ma-chado de Assis’ works. Thus, we intend to interpret Pedro e Paula from the criteria adopted by the very author to interpret the fic-tional works of his election, Machado de Assis included.

Palavras-chave Helder Macedo; ficção portuguesa; Machado de Assis.

Keywords Helder Macedo; Portuguese fiction; Machado de Assis.

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Pedro e Paula, o segundo romance do escritor português Helder Macedo, foi publicado em 1998. Sua recepção crítica localizava muitos pontos de contato entre este e o romance anterior de Macedo, Partes de África (1991). Não poderia ser de outro modo, já que eram evidentes as constantes estilísticas e temáticas entre as duas obras: a relação entre a ficção e a história, a composição de um nar-rador caprichoso e irônico, as muitas referências intertextuais.

Havia, porém, algumas diferenças essenciais. O narrador, embora fosse o mesmo (certo professor português chamado Helder Macedo), passava a manter maior dis-tância dos acontecimentos centrais da trama, de modo que o tema (o de uma his-tória familiar que acompanha diferentes e significativos momentos da recente histó-ria portuguesa) desenvolvia-se, desta vez, a partir de personagens totalmente ficcionais, ao contrário do “romance disfarçado de autobiografia” que era Partes de África. Já as referências intertextuais continuavam as mesmas (Laurence Sterne, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Eça de Queirós), com especial destaque para Machado de Assis, citado já em uma das seis epígrafes, precisamente a que tomamos emprestada na abertura deste ensaio.

A relação entre os romances macedianos e as inúmeras referências intertextuais mais ou menos ocultas em suas páginas vai além do mero acúmulo de citações. No caso de Machado de Assis, trata-se de um diálogo temático e estrutural. A premissa de Esaú e Jacó e a recusa ao determinismo realista personificada por Capitu servem a Helder Macedo como princípios de composição de Pedro e Paula. A pista para essa leitura nos é sugerida pela produção acadêmica de Helder Macedo; antes de chegarmos a ela, contudo, é preciso descrever seu romance em termos gerais.

2

O enredo de Pedro e Paula é uma adaptação da história de Esaú e Jacó. Os gê-meos de Machado de Assis são Pedro e Paulo, e brigaram desde crianças, ainda no

“Esaú e Jacó brigaram no seio materno, é verdade. Conhece-se a causa do conflito. Quanto a outros, dado que briguem também,

tudo está em saber a causa do conflito...”

(Machado de Assis)

“Tudo para que este livro de agora, moderno e europeu, pudesse ter começado assim, à maneira realista. Ou seja: baseado

no que eu próprio vi e não no mero diz-se.”

(Helder Macedo)

1

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ventre materno. Desde a juventude, assumem sua simpatia por ideologias políti-cas opostas: Pedro é um fervoroso defensor da Monarquia, Paulo, da República. O romance é marcado, precisamente, pela proclamação da República, em 1889. Já o segundo romance de Helder Macedo reencena essa premissa, ambientando-a em Portugal, antes e depois da Revolução dos Cravos. Os gêmeos desta vez são Pedro e Paula, e representam a geração portuguesa do pós-guerra: ele, conservador, é ligado às estruturas políticas e sociais colonialistas, enquanto ela, artista e com-prometida com o futuro, expressa o movimento de mudança portuguesa. Em Ma-cedo, porém, a metáfora machadiana ganha novos significados.

Os gêmeos de Esaú e Jacó apresentam total similitude em suas diferenças. Mais do que fisicamente idênticos, o comportamento de um espelha o do outro, mesmo que em uma nota política antagônica. Machado ironiza, inclusive, a superficiali-dade de suas crenças:

Não eram propriamente opiniões, não tinham raízes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de cor particular, que eles atavam ao pescoço, à espera que a cor cansasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. Também se pode crer que a de cada um era, mais ou menos, adequada à pessoa.1

Desse modo, sem que suas convicções sejam mais do que opiniões superficiais e, no fundo, sejam iguais, os conflitos entre Pedro e Paulo tendem a se equilibrar. O discurso dos personagens assim o faz, minimizando as desavenças, considera-das diferenças de opinião bastante normais entre dois rapazes que se dão bem. Já o narrador dispensa o mesmo tempo e os mesmos “favores” a ambos os irmãos: cada qual acompanha Flora a um baile, e quando a moça encontra um deles logo lamenta a ausência do outro. Por vezes, não há sequer um esforço para diferenciá-los: “Um deles, parece que Paulo, foi lá nessa mesma noite...”.2

1 Machado de Assis, Esaú e Jacó / Memorial de Aires, São Paulo, Nova Cultural, 2003, p. 56. Além disso, Machado é bastante enfático ao ironizar os dois regimes de governo que os gêmeos de-fendem com tanta dedicação. Afinal, em essência, não seriam mais do que variações do mesmo problema. Um dos episódios mais famosos do romance, o da tabuleta do Custódio, é bastante claro nesse sentido. Para John Gledson, é significativo que no momento político mais importante do ro-mance, nosso olhar seja desviado para um caso tão prosaico, o que esvazia o evento histórico de seu sentido maior: “Até mesmo a espécie de loja – uma confeitaria – indica a superficialidade da mudan-ça: é simplesmente um lugar onde as coisas são enfeitadas e se tornam atraentes ao olhar. Cada re-gime, pelo que parece, é um produto artificial, com pouca ligação substantiva com a realidade que pretende representar” (John Gledson, Machado de Assis – ficção e história, trad. Sônia Coutinho, 2.ed. rev. e ampl,.São Paulo, Paz e Terra, 2003, p. 200).

2 Assis, Esaú e Jacó / Memorial de Aires, op. cit., p. 173. Em seu ensaio dedicado ao conselheiro Aires, Alfredo Bosi explica que “um exame estilístico do modo pelo qual se vai moldando a perspec-tiva de Aires faz pensar exatamente na palavra atenuação. Em face das diferenças, dos desencontros que espinham a vida em sociedade, o Conselheiro tende, primeiro, a dizer o que vê (“vocação de descobrir”), desdizer depois (“vocação de encobrir”), para, num último movimento, deixar sobre-postos o rosto e a venda. O efeito é sempre o de dupla possibilidade: a salvação do positivo, apesar do negativo, a persistência deste apesar daquele” (Alfredo Bosi, “Uma figura machadiana”, in Ma-chado de Assis – o enigma do olhar, São Paulo, Ática, 1999, p. 131).

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Ao contrário do que ocorre com os gêmeos machadianos, os conflitos entre os irmãos portugueses não tendem ao apaziguamento: são evidentes desde o início, e agravam-se com o passar do tempo. Paula, insatisfeita com a vida em Moçambi-que, onde cresce com a família, sai em viagem pela Europa – esteve em Paris, em 1968 – para encontrar seu padrinho, Gabriel, na Inglaterra. Toma suas decisões de maneira independente e recusa a herança colonialista de seu país, da qual sua fa-mília faz parte. Pedro, pelo contrário, mostra-se constantemente devedor da opi-nião e do apoio financeiro dos pais. Seu relacionamento com Fernanda, por exem-plo, termina nos termos (machistas) ditados por seu pai, e com a encomenda de um aborto, a maneira mais prática de se resolver uma “aventura transitória” (abor-to que, aparentemente, nunca chega a ser realizado). Além disso, contrariando sua postura de “irmão mais velho”, supostamente responsável pelo bem-estar da irmã, Pedro é ajudado por Paula mais de uma vez: quando encontra dificuldades para se formar, e quando foge de Moçambique. Aliás, a expedição de seu diploma deve muito às manobras do agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), Ricardo Vale, enviado pelo pai a Lisboa para investigar os filhos. Não é o tipo de dívida que se contraia impunemente.

Enquanto Paula toma decisões e realmente se aventura (inclusive afetivamen-te), Pedro mantém-se à sombra da família (e, consequentemente, da pátria), e ali-menta um crescente ressentimento contra a irmã, “cada vez mais subversiva”.3 A carta nunca enviada ao pai – mas que a nós, leitores, é consentido ler – culmina na confissão de um estado de depressão profunda, e na referência quase acidental à “puta da Paula”.4 Esse ressentimento culminará em um ato final e extremo de vio-lência, o estupro da irmã.

Em comparação com Pedro, Paula é a mulher emancipada, aberta para o fu-turo, livre dos grilhões familiares, sociais e históricos. Em certa medida, é a rea-lização dos desejos mais secretos nutridos na juventude por sua mãe, Ana, quando essa se encontrava dividida entre seus dois melhores amigos, José e Gabriel. É Ana quem termina por dissolver “a inquietação das dúvidas na placidez das cer-tezas” e aceita o pedido de casamento de José, ao lado de quem se sentirá “mais segura, menos vulnerável”.5 A segurança no casamento, inclusive financeira, não traz felicidade, até porque, em seu íntimo, Ana acreditava que “no filme certo” seu noivo seria Gabriel. A propósito de sua escolha, ela escreveria mais tarde, ao filho já adulto:

Não se pode, não se deve amar só por amizade, por compaixão, apenas por nos amarem. Seria a pior das traições, é a pior crueldade que se pode fazer a alguém de quem se gostou, é trair um afeto verdadeiro com um falso sentimento. Ouve a tua Mãe, acredita no que te digo, eu sei que isto é verdade.6

3 Helder Macedo, Pedro e Paula, Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 64.4 Idem, ibidem, p. 63.5 Idem, ibidem, p. 23.6 Idem, ibidem, p. 68.

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E aqui é preciso lembrar que esse triângulo amoroso também evoca o entrecho de Esaú e Jacó. Primeiramente, o triângulo sugerido entre Aires, Natividade e San-tos, muito embora o Conselheiro não fosse homem de paixões fortes: “tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação”.7 O que não o impede de conside-rar a hipótese fantasiosa de ser um pai para os gêmeos.

Em segundo lugar, há uma semelhança importante entre Ana, de Pedro e Pau-la, e Flora, de Esaú e Jacó. A primeira deseja que os rivais fossem gêmeos, o que equivale a dizer gostaria de se encontrar em uma posição semelhante à de Flora que, dividida entre dois homens absolutamente iguais, não consegue tomar uma decisão, não escolhe, e morre como que dessa indecisão. No caso de Ana, ela en-contra-se dividida entre dois amigos cada vez mais diferentes, entre dois perfis bastante contrastantes. Sua escolha pela segurança é quase uma não escolha. Sua hesitação a faz deixar-se levar pela decisão de José, e ela se deixa casar com ele. O que acarreta consequências graves.

No futuro, quando Paula mantém um romance com seu padrinho Gabriel, passa a encarnar todos os desejos frustrados da mãe. Ana vive a esperança de uma vida que não foi a sua: “Ah, quem me dera ser a Paulinha!”.8 Segundo o narrador, trata-se de exercer a única forma de liberdade que conheceria, a de “ser a volun-tária vítima especular da vida que desejara viver e forçadamente não vivera”.9

Repetem-se assim, em Pedro e Paula, os triângulos amorosos de Esaú e Jacó. Com uma fundamental diferença: em Macedo há, de fato, uma escolha possível. Cada um de seus personagens vivencia uma escolha moral essencial. Gabriel, que em um primeiro momento parece destinado a reproduzir o papel de observador e desse modo manter-se, como o Conselheiro Aires, relativamente à parte dos confli-tos e das relações afetivas do romance, será diretamente implicado nelas. E o pa pel de Aires será, afinal, desempenhado por outro personagem, que só adentrará o universo do romance após abril de 1974: o narrador, Helder Macedo.

Uma das características mais ostensivas do narrador macediano – principal-mente de seus três primeiros romances, narrados por um personagem chamado Helder Macedo – é a contínua referência a um certo número de escritores e obras às quais ele pretende se filiar, e os não menos recorrentes comentários metaficcio-nais. Quando, em Partes de África, o narrador descreve sua “teoria do mosaico”, a qual alega estruturar sua narrativa, ele está iniciando a descrição do que podería-mos chamar de uma “teoria ficcional”, desenvolvida fragmentariamente em seus livros seguintes. Não se trata de uma teoria coesa a ponto de podermos excluí-la dos romances e descrevê-la como se de um ensaio se tratasse, ou como uma decla-ração de princípios literários a ser fielmente executada. Afinal, como lhe é próprio, o autor não se furta a algumas contradições, ambiguidades e pequenas ironias para com o leitor e críticos literários ávidos por pistas de interpretação.10

7 Assis, Esaú e Jacó / Memorial de Aires, op. cit., p. 37.8 Macedo, Pedro e Paula, op. cit., p. 105.9 Idem, ibidem, p. 180.10 Como alerta Vilma Arêas, em seu ensaio “Pedro e Paula – partidas e contrapartidas”, as pistas

literárias “vêm tão claramente expostas que levantam suspeitas”, principalmente a suspeita de que

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Seguramente, porém, há alguma coerência em todos esses procedimentos me-taficcionais, coerência que podemos estender para uma produção ensaística do autor. Um adendo: é certo que não devemos tomar um narrador chamado Helder Macedo como uma representação fiel do autor empírico de mesmo nome. O nar-rador, fazendo parte do campo da literatura, como literatura deve ser tratado (o que, aliás, ele já deixava claro em Partes de África, ao revelar determinados proce-dimentos ficcionais adotados em sua “autobiografia”). Ainda assim, não se pode negar que o narrador-personagem e o acadêmico Helder Macedo compartilham uma variada gama de ideias, impressões e, principalmente, de leituras: Sterne, Garrett, Camilo, Cesário, Bernardim Ribeiro, Machado de Assis, todos autores sobre os quais Macedo desenvolveu importantes ensaios acadêmicos. Além disso, estando a relação entre a ficção e a obra ensaística estabelecida dentro dos pró-prios romances – em referências recorrentes a ensaios, aulas e conferências do professor –, ela se legitima, se não como unívoca estratégia interpretativa, ao me-nos como uma estratégia possível: o diálogo entre ensaio e ficção é sugestivo de-mais para o ignorarmos.

E a propósito de Pedro e Paula, um ensaio que Macedo dedicou a Machado de Assis deve nos sugerir importantes caminhos de interpretação. Importantes tam-bém porque contrariam o óbvio: ainda que Esaú e Jacó seja a mais evidente refe-rência intertextual do romance, a mais importante delas talvez seja outra, dissi-mulada no texto e, principalmente, na composição da personagem Paula: Dom Casmurro.11

3

Em “Machado de Assis entre o lusco e o fusco”, Helder Macedo parte do exem-plo da vida de Machado de Assis – um mulato pobre, epilético e levemente gago, que ascendeu socialmente e foi reconhecido, ainda em vida, como o grande escri-tor de seu tempo – para argumentar que, de acordo com as regras da literatura realista do final do XIX, esse percurso biográfico seria inverossímil. Fosse a vida de Machado romanceada, o autor dessa hipotética ficção seria provavelmente acu-sado de leviandade, pois que aplicando as teorias científicas então em voga ao suposto personagem, o resultado não poderia ser outro senão a tragédia (lembre-mos, por exemplo, que Memórias póstumas de Brás Cubas foi lançado em 1881, mesmo ano em que saiu O mulato, de Aluízio Azevedo).

Sendo assim, não há que duvidar: um destino trágico para o nosso personagem seria logi-camente mais verossímil do que a alternativa feliz factualmente verdadeira. Com efeito, a es-sência do realismo é a verossimilhança, e a verossimilhança não é mais do que a confirmação

muitas delas constituem verdadeiras “armadilhas para apanhar críticos” (Vilma Arêas, “Pedro e Pau-la – partidas e contrapartidas” in Teresa Cristina Cerdeira (org,) A experiência das fronteiras – leituras da obra de Helder Macedo, Niterói, EdUFF, 2002, p. 140).

11 “Machado de Assis entre o lusco e o fusco” foi publicado pela primeira fez na revista Coló-quio/Letras n. 121/122, em 1991, antes, portanto, da primeira edição de Pedro e Paula. O ensaio foi recentemente editado em Helder Macedo, Trinta leituras, Lisboa, Presença, 2007.

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de expectativas fundamentadas numa lógica de causa e efeito. Mas Machado de Assis [...] teria tido boas razões para ponderar, como ponderou, sobre quanto há de precário na lógica de cau-sa e efeito praticada pelo realismo e quanto há de tautológico no determinismo que lhe serviu de base postulada. Ou, como diz o personagem narrador de Dom Casmurro, “a verossimilhança é muita vez toda a verdade”, afirmação que também serve para significar que, muita vez, tam-bém não é.12

Essa distinção fundamenta o principal argumento de Macedo, o de que Dom Casmurro é a culminância das “satíricas inversões que Machado de Assis impôs ao realismo literário e ao determinismo social” nos romances anteriores. Em Memó-rias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, havia a filosofia do humanitismo, uma evidente sátira ao determinismo e ao realismo literário dele decorrente; a sátira tem prosseguimento em Dom Casmurro, cujo narrador, Bento Santiago, apresenta uma “argumentação casuística [...] baseada numa aparente lógica de causa e efeito”, mas que termina por compor “o exemplo mais acabado de narra-dor ‘suspeito’ na literatura de língua portuguesa”.13

A argumentação de Bentinho baseia-se na premissa de que ele teria sido traído por sua esposa, Capitu, e a organização da narrativa caminha no sentido de prová-lo. Para tanto, adota um discurso determinista:

Com efeito, sob o ponto de vista semântico, Bento Santiago procede estritamente em ter-mos de causa e efeito, como qualquer realista programático, visando a provar – através da acumulação gradual de “pequenos factos significativos”, à maneira de Taine – que o futuro es-tava inevitavelmente previsto no passado, ou seja (na lógica perversa do determinismo), que o efeito é a origem da causa.14

Em outras palavras: a menina Capitu já seria um embrião da personalidade futura da Capitu adúltera. Causa e efeito. Daí a atenção desmedida do narrador dispensada à infância, e ao relativamente pouco tempo dispensado à vida adulta, limitada à sobreposição de “episódios significativos”. Para descrever o método narrativo de Bentinho, Helder Macedo recorre à categoria já utilizada em Partes de África, a dos literalistas da imaginação. Mais precisamente, Macedo usa a expres-são literalismo metafórico, que seria, em poucas palavras, a propensão de “colocar no mesmo plano de significação o literal e o metafórico, quando não de interpre-tar o literal à luz do metafórico”.15 O procedimento consiste em, sempre que Ben-tinho pretende descrever a si mesmo e a seus atos, utilizar-se de descrições obje-tivas, literais; pelo contrário, quando se refere a outros personagens, recorre a metáforas. De modo que, quando passa a exemplificar ou a detalhar o comporta-mento alheio, o narrador o faz a partir de elementos inicialmente metafóricos, o que não ocorre quando fala de si mesmo. Sob a literalidade com que descreve seus atos, acaba por esconder seus desígnios e intenções.

12 Helder Macedo. Trinta leituras, op. cit., p. 51.13 Idem, ibidem, p. 57.14 Idem, ibidem.15 Idem, ibidem, p. 61.

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Um exemplo de descrição metafórica é a dos olhos de Capitu, primeiro “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada” (nas palavras de José Dias), depois “olhos de ressaca” (nas palavras de Bento), termos que associam a mulher ao mar, ou seja, ao fascínio que leva ao afogamento, do sexo que conduz à morte, o que mais tarde acontecerá literalmente com Escobar. De modo que, nessa linha de raciocínio, Bentinho acredita que como prova do adultério de Capitu basta o olhar que ela lançou a cadáver de Escobar, durante o velório. Morte da qual também seria culpa-da, como se tivesse seduzido e enfeitiçado Escobar e o tivesse arrastado para o mar de ressaca, onde de fato ele se afogou, “como se num encadeamento lógico – e também mágico – de causa e efeito”.16

Do mesmo modo, os eventos anteriores à morte de Escobar já anunciavam, metaforicamente, sua morte. Na descrição dessa cena – em que Bentinho flerta com a ideia de seduzir a mulher de Escobar, Sancha –, Macedo chama a atenção para um procedimento a que nomeia, nesse e em outros ensaios, de “justaposição significativa”.17 Para sugerir o desejo de Bentinho, são justapostas duas imagens alternantes: a dos olhos “quentes e intimativos” de Sancha e a do mar revolto lá fora. Quando o atlético Escobar irrompe na sala, diz-se desafiado pelo mar, sua postura e força promovem a “erotizada humilhação” de Bentinho, que dirigirá toda sua frustração sexual para Capitu. Afinal, é ela que, frente ao cadáver de Es-cobar, o fita “como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nada-dor da manhã”.18

Rememorando os fatos mais significativos de sua vida, e enredando-os sob um raciocínio que se quer lógico (mas que se mostra mágico), Bento Santiago está buscando a restauração de seu passado (outra expressão das mais caras a Helder Macedo). Restauração como reparação. Ou seja, reescrever o passado não é ape-nas reconstituí-lo em todas as suas nuanças, mas também corrigi-lo. Não necessa-riamente mudá-lo, mas justificá-lo, e assim provar a validade de seu ponto de vista, de suas ações. Bento age no sentido de legitimar sua posição e seu destino, e superar o fato de ter obliterado a possibilidade encarnada por Capitu.

Capitu representara para Bento Santiago a abertura de um destino alternativo àquele que lhe tinha sido imposto pela promessa da mãe. Personifica assim o princípio do desassossego num universo predeterminado. A liberdade que ela representava era, por isso, potencialmente subversiva e, desde logo, foi entendida como ameaçadora pelos detentores e instrumentos do poder – a mãe viúva de Bentinho, o “agregado” José Dias – e não menos pelo próprio Bentinho quando neutraliza Capitu abdicando nela a possibilidade de escolha que representava e que anteriormente havia abdicado na mãe.19

16 Idem, ibidem, p. 63.17 Expressão usada por Harry Levin para se referir a Flaubert (Harry Levin, The gates of horn – a

study of five french realists, New York, Oxford University Press, s. d.). Macedo utiliza essa expressão em suas leituras de Cesário Verde, Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. Como pretendi mos-trar em minha tese de doutorado, os romances de Helder Macedo também são construídos, em parte, a partir de justaposições significativas.

18 Macedo, Trinta leituras, op. cit., p. 63.19 Idem, ibidem, p. 58.

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Para Helder Macedo, a grande questão de Dom Casmurro é a questão da esco-lha. Porque o ciúme nada mais é do que uma manifestação extrema do conflito da escolha, a mesma escolha a que são submetidos Flora, frente a Pedro e Paulo; Ana, frente a José e Gabriel; e, finalmente, Paula, frente à vida imposta pelo pai e uma outra vida possível, a da emancipação.

No caso de Bento Santiago, pode-se dizer que ao final da vida, vivendo solitá-rio sob uma “alcunha fradesca”, ele acaba por restaurar a vida sacerdotal a que havia abandonado. De certo modo, ele cumpre o seu destino.

O narrador caprichoso e subjetivo de Machado de Assis impõe à rigidez da narrativa realista-naturalista o caos e a arbitrariedade, expressos, formalmente, na estrutura de seus romances – o capricho do narrador, suas contradições, os jogos com o leitor e a diferição narrativa – e, tematicamente, nos conflitos de seus per-sonagens, submetidos a escolhas que inaugurariam novos rumos, alternativos, para si mesmos e para o país que metafórica e metonimicamente representam. Helder Macedo segue o caminho de Machado de Assis que, “em vez da inevitabi-lidade lógica de um destino, revela a arbitrariedade de um não-destino”.20

4

Um dos procedimentos mais eficientes para se defender o livre-arbítrio e a independência dos personagens é, precisamente, a reiteração dos limites do au-tor. Para tanto, Helder Macedo insere o autor dentro do universo ficcional que retrata, representando-o supostamente sem disfarces, enfatizando seus limites

20 Idem, ibidem, p. 52. O elogio da arbitrariedade, a recusa do determinismo naturalista e a cria-ção de vidas alternativas não são estranhos à literatura contemporânea. Muito do conceito de meta-ficção historiográfica, por exemplo, baseia-se na premissa de se fazer representar versões alternativas e/ou paródicas para a história oficial. Segundo Linda Hutcheon, um caso exemplar da apropriação paródica da História é A mulher do tenente francês, um dos mais cultuados romances de John Fowles (1926–2005), considerado um paradigma da metaficção historiográfica (Linda Hutcheon, A poética do pós-modernismo, trad. Ricardo Cruz, Rio de Janeiro: Imago, 1991). O narrador elabora sua “teoria ficcional” nos seguintes termos: “Só há um motivo compartilhado por todos nós: Desejamos criar mundos reais como aquele em que vivemos, mas diferentes. Por isso não podemos fazer planos. Sabe-mos que o mundo é um organismo, não uma máquina. Também sabemos que um mundo genuina-mente criado deve ser independente de seu criador; um mundo planejado (um mundo que revele totalmente seu planejamento) é um mundo morto. Nossos personagens e nossa trama só adquirem vida quando começam a nos desobedecer. [...] A questão é que, além de ele [Charles] ter começado a ganhar independência, eu devo respeitá-la e renunciar aos planos quase divinos que concebi para ele, se quiser que ele seja real [...]. O romancista ainda é um deus, uma vez que cria (e nem mesmo o mais aleatório romance moderno de vanguarda conseguiu eliminar totalmente o autor). O que mudou é que já não somos mais os deuses da imagem vitoriana, oniscientes e prepotentes, mas sim os de uma nova imagem teológica, em que nosso primeiro princípio é a liberdade, não a autoridade” (John Fowles, A mulher do tenente francês, trad. Adalgisa Campos da Silva, Rio de Janeiro, Objetiva, 2008, p. 106-7). É esse princípio da liberdade um dos temas mais importantes do romance, e dos mais caros a certa literatura contemporânea: o personagem possui liberdade de ação, e não está submetido aos caprichos do autor nem aos determinismos da história. Tive a oportunidade de co-mentar esse romance em uma resenha publicada na versão online do Le Monde Diplomatique – Brasil (Suplemento Palavra, n. 26, 25 abr. 2008).

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como demiurgo. O narrador-autor Helder Macedo se diz não onisciente, e muitas das ações dos personagens são narradas como simples conjecturas: “Quero crer, em suma, que a Ana teria considerado que no filme certo o noivo é que estaria bem para o papel de melhor amigo e não o outro”;21 “Julgo que uma das principais características de José é que precisava ter de si próprio a imagem do lutador”.22 Ou ainda, na condicional: “Ou assim terá sido a noite plausível de Gabriel”;23 “Ou tal-vez tivesse sido tão difícil se escolha de fato tivesse havido”.24

A declarada proximidade entre autor-narrador e os personagens não significa, contudo, total adesão aos seus pontos de vista. Helder Macedo já havia declarado que, às vezes, o melhor disfarce é não se disfarçar; do mesmo modo, a proximidade com os personagens proporciona por vezes (e paradoxalmente) um distanciamento irônico, como quando o narrador adota o vocabulário dos personagens. Sobre Ana, por exemplo, ele diz que “A verdade é que sempre achara que Gabriel tinha um poucochinho mais de tudo do que José”.25 E ainda, sobre os valores da época, aceitos pela personagem: “Ou à sua condição feminina, como ao tempo se dizia, e que era assim uma espécie de doença que as meninas apanhavam quando nasciam e lhes ficava para o resto da vida”.26 O discurso indireto livre denuncia o absurdo daquelas opiniões.

O mais importante, porém, é o quanto esse ponto de vista pode nos dizer so-bre a “teoria ficcional” do narrador-autor. No início do capítulo 9, o narrador ex-põe uma das ideias que norteiam sua escrita, a de que os personagens fogem ao controle de seu autor:

nos romances, como na vida, a certa altura o autor deixa de poder fingir que tem escolha, mes-mo aqueles autores que fingem até o fim. Mas mesmo esses, quero crer, sabem perfeitamente que a certa altura as personagens passam a inventar o seu autor, não menos personagem do que elas. A colaborar ou a recusar se o autor as quer obrigar a ser o que não são, a irem logo fazer queixinhas ao leitor da falta de respeito do autor. Não é que não gostem sempre do autor, mes-mo quando colaboram, algumas teriam preferido outro destino. Mas isso é ainda outra coisa, outras histórias de livre-arbítrio.27

De certa forma, o narrador-autor se desqualifica, limitando seus poderes no mundo da ficção. Situando-se como narrador-testemunha (como se os persona-gens fossem verídicos), ele rebaixa seus poderes para interferir na trama. O que poderíamos compreender apressadamente como uma maneira de defender um tipo de verossimilhança que poderíamos chamar de realista. Em seu estudo sobre Machado de Assis, Macedo defende que “a essência do realismo é a verossimilhança,

21 Macedo, Pedro e Paula, op. cit., p. 23 (grifo meu).22 Idem, ibidem, p. 25 (grifo meu).23 Idem, ibidem, p. 43 (grifo meu).24 Idem, ibidem, p. 23 (grifo meu). 25 Idem, ibidem (grifo meu).26 Idem, ibidem, p. 24.27 Idem, ibidem, p. 139-40.

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e a verossimilhança não é mais do que a confirmação de expectativas fundamen-tadas numa lógica de causa e efeito”.28 De modo que, em Pedro e Paula, expostas as causas, cabem aos personagens se desenvolverem de acordo com os efeitos es-perados. O autor propõe a recusa do determinismo, e põe seus personagens à prova: no que se refere ao enredo e ao futuro dos personagens, Macedo “lava as mãos”, dispõe as cartas na mesa e deixa que cada um deles faça seu jogo.

Essa independência conferida aos personagens impossibilita que eles sejam símbolos óbvios da história. O narrador diz-se incapaz de fazer como Garrett que, segundo o próprio Macedo em um ensaio sobre Viagens na minha terra, criara na velha cega, avó de Joaninha, um espelho da “estagnada expectativa” de Portu-gal.29 Para Macedo, uma caracterização de uma personagem alegórica nesses mol-des seria impossível, já que suas personagens demonstram ter vida própria e se recusam a ser controladas: dentro delas “há pedaços de gente a querer existir, vontades próprias a interferirem nas minhas monstrificações emblemáticas”.30 Ainda que alguns dos personagens macedianos sejam inegavelmente alegóricos, eles são compostos por contradições e antinomias que quase os descaracterizam como símbolos, como que se não se conformassem ao sentido que lhes foi impos-to pelo autor.

Um caso exemplar é Gabriel. Não se trata apenas do oposto ideológico de José. Herdeiro de “um nome cheio de partículas e de tradições”, conseguiu a algum custo tornar-se apenas “Gabriel de Vasconcelos como toda a gente”.31 Atitude essa de recusa simbólica de seu passado familiar, como que se redimindo do que José qualificou de “um lamentável caso de feudalismo culpabilizado, todo teorias sem ação”.32 Gabriel sem dúvida encarna alguns dilemas recorrentes aos personagens macedianos: a aparente contradição de se ser um intelectual de esquerda e perten-cer a uma classe alta, proprietária de terras, sob a qual se sustenta em grande parte o poder político e a retórica ideológica salazarista; e a condição de militante ou intelectual autoexilado de seu país, igualmente culpabilizado pela condição de espectador (muito embora Gabriel, mesmo que a distância, tenha colaborado com o partido). Paula, nesse sentido, surge como uma saída, uma nova possibilidade de futuro: “talvez ele conseguisse aprender com a liberdade dela outra forma de liberdade que não fosse aquele absurdo falso exílio em que estiolava”.33

28 Macedo, Trinta leituras, op. cit., p. 51.29 Trata-se do ensaio “As viagens na minha terra e a menina dos rouxinóis” (in Macedo, Trinta

leituras, op. cit.). 30 Macedo, Pedro e Paula, op. cit., p. 171.31 Idem, ibidem, p. 22.32 Idem, ibidem, p. 26-7.33 Idem, ibidem, p. 43. Outros exemplos poderiam ser elencados para comprovar a importância

das contradições, antinomias e antíteses na ficção de Helder Macedo. Como um princípio estrutu-rador do romance, elas estão presentes na composição dos personagens, nos duplos e triangulações do enredo, no discurso metaficcional (diferições narrativas, contradições internas), no título de al-guns capítulos (“Entradas e saídas”, “Espíritos e corpos”, “O não e o sim”) e na própria sintaxe de determinados trechos (como o período que abre o romance: “O que certamente não aconteceu foi talvez o seguinte” (Idem, ibidem, p. 12).

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De modo que, se os personagens macedianos fogem da previsibilidade natu-ralista, fogem também do conteúdo simbólico mais óbvio. As causas e efeitos que sejam predeterminados são compreendidos, nesse sentido, como alienadores da ficção, já que reduzem o texto à comprovação de uma tese, de uma verdade preestabelecida.

Em “Machado de Assis entre o lusco e o fusco”, Macedo demonstra como as Memórias póstumas de Brás Cubas rompiam com a doutrina do realismo programá-tico: no lugar do narrador objetivo previsto por Taine, um narrador caprichoso e “subjectivíssimo”; uma história baseada não em uma cronologia e em relações causais determinadas, mas uma “caótica autobiografia” que se inicia na morte do protagonista; e, finalmente, “em vez da inevitabilidade lógica de um destino, [...] a arbitrariedade de um não-destino”.34

Não é portanto a escolha do modelo, é o seu modificado valor no contexto estético e ideo-lógico do realismo e do determinismo social que precisa ser assinalado: o que era excentricidade satírica em Sterne tornou-se ideologicamente anarquístico e subversivo nas Memórias Póstumas pela transformação dos elos deterministas de causa e efeito inerentes ao realismo oitocentista numa nova forma de realismo que é o seu reverso crítico.35

Se o realismo prevê que o homem é produto de seu meio, Machado cria per-sonagens que são “erratas pensantes”, uma sucessão de experiências caprichosas, incoerentes, que por vezes anulam-se respectivamente.36 Compreende-se que essa subversão seja ideologicamente anárquica, e que Dom Casmurro represente, então, a culminância dessa estética. O literalismo da imaginação de Bentinho é subvertido pelo livre-arbítrio e o desassossego de Capitu.

Helder Macedo prega a imprevisibilidade como método de composição ficcio-nal. Daí a recorrente utilização da metáfora do jogo de cartas, símbolo da impre-visibilidade e do logro:

Os jogos estão feitos? Bom, estão e não estão. Diria antes que as cartas foram distribuídas, bem ou mal, e que agora compete a cada personagem fazer o seu jogo, nunca esquecendo que muitas vezes não é quem tem a melhor mão que vai ganhar. No pôquer há o bluff, no bridge a finesse, nos romances o livre-arbítrio até deixar de haver, como no vasto da vida lá fora. Diga-mos portanto que de momento temos apenas os hipotéticos corpos das nossas personagens, a que ainda faltam os espíritos factuais. E algumas correspondências, por semelhança ou por contraste, sugerindo metafóricos potenciais.37

O imprevisível não é sinônimo de sorte, o que equivaleria a se deixar reger pelos caprichos da Fortuna. No pôquer (como no truco), o sucesso não depende

34 Macedo, Trinta leituras, op. cit., p. 52.35 Idem, ibidem, p. 53.36 Nas palavras de Brás Cubas, “[O homem] é uma errata pensante [...]. Cada estação da vida é

uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (apud Macedo, Trinta leituras, op. cit., p. 53).

37 Macedo, Pedro e Paula, op. cit., p. 93.

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apenas da sorte (“não é quem tem a melhor mão que vai ganhar”), e o blefador não é apenas um mentiroso. Ele anuncia que possui cartas altas, um jogo vence-dor, e desafia seus oponentes a tirarem a prova. Se o jogador está blefando e seu adversário aceita o desafio, o blefe é malsucedido (a não ser que o adversário es-teja igualmente blefando; nesse caso, mediriam as forças “verdadeiras” das cartas, ou novos “contrablefes” renovariam a aposta). Mas, no limite, pouco importa quais cartas o blefador tem em mãos: isso porque o bom jogador orienta-se não apenas através das cartas de que dispõe (ocultas aos olhos adversários), mas tam-bém, e principalmente, das que estão à mesa, à vista de todos, pois são essas as cartas que compõem a verdadeira história do jogo: criam expectativas sobre os próximos movimentos e hipóteses sobre os jogos de cada um, o que exige reações determinadas, e que o bom jogador logo antecipa. Usando uma analogia literária, podemos dizer que as cartas à mesa criam uma verossimilhança para a história do jogo: os jogadores “leem” essa história a partir das pistas expostas, e daí “interpre-tam” quais sejam as cartas ocultas. Sabendo disso, o bom jogador lida com a ex-pectativa de seu adversário, manipulando-a, assim como o escritor lida com as expectativas de seu leitor. No jogo de cartas, o verossímil também é, muitas vezes, toda a verdade.

Blefador assumido, indigno de nossa confiança, o narrador convida (ou desa-fia?) o leitor para seu jogo de verdades ficcionais e históricas. Mas perde o jogo, porém, para os personagens, a quem delega o futuro da narrativa, deixada em aberto com um reticente “pois é”.

Não há dúvida, porém, de que os principais jogadores são os irmãos Pedro e Paula. Ele, como Bentinho, é preso aos desígnios familiares e incapaz de se aven-turar fora dele. Pedro fracassa porque vive à sombra do pai e, depois, de Fernanda, sua esposa que, uma vez militante de esquerda, se torna uma empreendedora imo-biliária de sucesso. Ressentimento por um passado perdido.

Paula, pelo contrário, como Capitu (ainda que por outros motivos e outras injunções), representa “o princípio do desassossego num universo predetermi-nado”,38 ou seja, ela rompe com o discurso da tradição-família-propriedade que regia a moral da pátria e o paternalismo do Império. A imaginação no poder. Sua primeira atitude subversiva é submeter-se a uma intervenção cirúrgica para “per-der”, sozinha, sua virgindade, e assim não “entregá-la” a ninguém. Paula cria seu destino ao aventurar-se em Paris e Londres. E mesmo sob os cuidados de uma fi-gura paterna que é Gabriel, sua relação jamais se resume à dependência. Ao final, como vimos, ela declara (a partir das cartas que tem em mãos) que Filipa é filha de Gabriel, como que afirmando assim o futuro da criança: “Ainda bem que deci-di... que deixei que a Filipa nascesse”.39 Sua atitude é a de desprender-se do pas-sado, abandoná-lo em definitivo, mesmo no que se refere a Gabriel; quando da morte do pai, Filipa é afastada da casa em que crescera:

38 Macedo, Trinta leituras, op. cit., p. 58.39 Macedo, Pedro e Paula, op. cit., p. 229.

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Pois é, dadas as tendências da família e os antecedentes sebastiânicos da pátria, achei que ela tinha de sair dali. E da nossa casa. Nesse aspecto ainda bem que a casa de Knightsbridge foi vendida, que não é uma memória dela. Senão ainda ficava lá à porta à espera do Romeiro. Tudo isso foi um pouco brutal, mas era preciso. Senão ficamos todos vampiros.40

Paula sabe que as restaurações do passado não são possíveis, tema que retor-nará nos romances seguintes de Macedo.

Maria Lúcia Dal Farra já demonstrou como a questão da propriedade é funda-mental em Pedro e Paula (no já referido ensaio “De Pedro e Paula: um caso de amor de Helder Macedo”): as posses da família de Gabriel que, segundo José, são indício de sua hipocrisia; o lucrativo investimento imobiliário de Fernanda (essa sim transformada em seu contrário, de uma revolucionária de esquerda à ambi-ciosa capitalista); a posse figurada e literal por Paula, disputada por Ricardo do Vale (que se “apossa” de Ana, em lugar da filha) e por Pedro, que encarna a tutelar proteção de um irmão mais velho. Desse modo, nos diz Dal Farra,

a brutalidade do estupro incestuoso, várias vezes ensaiado por Pedro contra a irmã gêmea, e por fim executado na dimensão de uma agressividade sem peias, só pode ser entendido à luz da sua perda de ascendência sobre a irmã que, em definitivo, se alforriara da proteção e do jugo do seu gêmeo.41

Um ato de morte que Paula compensará entregando-se a Gabriel em seus mo-mentos finais (momentos finais que, paradoxalmente, o casal transforma simboli-camente em vida). O romance, através de Paula (que se livrou do jugo do irmão, da família, do Estado), indica o caminho traçado por Portugal, do totalitarismo à democracia, da submissão à liberdade.

Esse caminho só será traçado através do exercício do livre-arbítrio, do blefe, da criação da verossimilhança, da ficção. Paula e o país precisam criar seu futuro, estabelecer possibilidades. A vida possível, alternativa, é a resposta à intransigên-cia do Estado totalitário, do moralismo reacionário da Família, da relação afetiva feita posse do outro.

40 Idem, ibidem, p. 231.41 Maria Lúcia Dal Farra, “De Pedro a Paula: um caso de amor de Helder Macedo”, in Teresa

Cristina Cerdeira (org.) A experiência das fronteiras – leituras da obra de Helder Macedo, Niterói, EdUFF, 2002, p. 133.

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80 Literatura e Sociedade

REALISMO E SÁTIRA NAS RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA

IRENÍSIA TORRES DE OLIVEIRA

Universidade Federal do Ceará

Resumo Este artigo discute a mistura de realismo e sátira no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, pu-blicado em 1909. A coexistência dos dois gêneros no romance tendeu a ser considerada pela crítica um defeito de composi-ção, com prejuízos graves à unidade narrativa. Propõe-se aqui examinar este desacerto em relação àquele outro identificado por Roberto Schwarz em Senhora, também caracterizado pela dualidade de tons e a ruptura de unidade, articulando as difi-culdades formais de desenvolvimento da história de Isaías ao problema de longo curso da literatura brasileira de tratar as realidades locais no modelo de romance europeu.

Abstract This article discusses the mixture of realism and satire in Lima Barreto’s novel Recordações do escrivão Isaías Caminha, pub-lished in 1909. The coexistence of the two genres in the novel tended to be considered by the critic as a composition fault, with serious damages to the narrative unity. It is proposed here to examine such disagreement in relation to that one identified by Roberto Schwarz in the novel Senhora, both characterized by the duality of tones and the disruption of unity, articulating formal development difficulties of Isaias’ story to the long term problem of Brazilian literature to treating local realities in European model of novel.

Palavras-chave Realismo; Sátira; Recordações do escrivão Isaías Caminha; Lima Barreto.

Keywords Realism; Satire; Recordações do escrivão Isaías Caminha; Lima Barreto.

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IRENÍSIA TORRES DE OLIVEIRA Realismo e sátira nas Recordações do escrivão Isaías Caminha 81

A s intenções realistas de Lima Barreto provavelmente levaram-no ao roman à clef e à sátira, portanto a procedimentos com intenção mimética, mas que atuam sobretudo pela distorção. Em parte, a relação direta com o representado deve ter sido desejada por Lima Barreto, como forma de intervir no presente e nas situa-ções concretas que o rodeavam, não permitindo aos contemporâneos reduzir seus escritos a alguma espécie de reflexão geral e distante sobre a humanidade, como ele via acontecer com Machado de Assis. “Imitando” pessoas conhecidas, não deixava dúvidas de que queria falar do que estava acontecendo naquele momento.1 A crítica da época viu nisso um sinal de fraqueza, a autocondenação de um livro que tinha méritos – as Recordações do escrivão Isaías Caminha –, ao circunstancial e provisório.2 Como se sabe, Lima Barreto ganhou a aposta de seus contemporâ-neos, ao sustentar que o romance, publicado em 1909, permaneceria mesmo de-pois de desaparecidas as pessoas satirizadas.

Entretanto, permaneceria também a desconfiança da crítica sobre a presença da sátira nas Recordações. Chamo a atenção para a análise cuidadosa de Lúcia

1 “The wide popularity and stubborn persistence of the roman à clef [...] suggests that, far from being an sclerotic form, it continues to energize the imagination of readers and writers unable or unwilling to accept the novel’s isolation from the world of fact” (cf, Sean Latham, The art of scandal: Modernism, libel law and roman à clef, New York, Oxford University Press, 2009, p. 10).

2 “Perdoe-me o pedantismo, mas a arte, a arte que o senhor tem capacidade para fazer, é repre-sentação, é síntese, é, mesmo realista, idealização. Não há um só fato literário que me desminta. A cópia, a reprodução, mais ou menos exata, mais ou menos caricatural, mas que se não chega a fazer a síntese de tipos, situações, estados d’alma, a fotografia literária da vida, pode agradar à malícia dos contemporâneos que põem um nome sobre cada pseudônimo, mas, escapando à posteridade, não a interessando, fazem efêmero e ocasional o valor das obras” (cf. Carta de José Veríssimo, in Lima Barreto, Correspondência ativa e passiva, São Paulo, Brasiliense, 1956, t. 1, v. XVI, p. 204). Além dessa carta, houve críticas mais ácidas nos jornais: de Medeiros e Albuquerque (A Notícia, 1909), Alcides Maia (Diário de Notícias, 1909) e, alguns anos mais tarde, João Ribeiro (O Imparcial, 1917).

“Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das

estrelas ilumina. Tudo lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é vasto e no entanto é como a própria casa,

pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas.”

(G. Lukács, A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica).

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Miguel-Pereira, que valoriza muito a obra de Lima Barreto,3 mas aponta defeitos no romance. Para ela, o escritor fazia romance na primeira parte e sátira na segun-da. Enquanto a metade inicial primava pela análise fina e a introspecção, a última entregava-se ao traço pesado e à caricatura. Era um livro desigual, como o defini-ra o próprio autor em carta a um amigo. Se conseguira fundir, pelo poder criador, a capacidade de análise e o senso poético, os quais possuía em alto grau, fizera também conviver ali duas formas inconciliáveis, o realismo e a sátira. “Na verda-deira sátira há um fator idealista, uma transposição da realidade que não lhe per-mite sofrer o contacto com a observação direta dos fatos e dos caracteres sem se transformar em caricatura superficial e vulgar, sem restringir o seu alcance.”4 Lú-cia Miguel reconhece em Lima Barreto “essa solidariedade informulada, instinti-va, essa capacidade de fazer eco a todas as dores”,5 comum a todo grande roman-cista, mas lamenta nele a tendência caricatural, que perturba a grandeza daqueles sentimentos e promove “um deliberado amesquinhamento da vida”;6 No Triste fim de Policarpo Quaresma, por exemplo, a sátira tinha sido capaz de superar a inuma-nidade da caricatura por uma visão de dentro das personagens. D. Quixote seria o modelo da verdadeira sátira, onde se fundiam “emoção e julgamento”.7

Pelo que me lembro, a mistura de sátira e introspecção (às vezes uma serieda-de inesperada) encontra-se em quase tudo que Lima Barreto escreveu, inclusive no Triste fim. Nesse, a distância narrativa varia desde uma perspectiva mais distan-te, aquela que olha de cima, até outra que está no mais íntimo das personagens. A simpatia suaviza realmente a sátira, como avalia Lúcia Miguel, mas não deixa de haver ali, de uma personagem para outra, certas oscilações de distância que não passam despercebidas ao leitor. Percebe-se o mesmo no romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que pende para o lado da confissão mas não deixa de ter seus momentos de sátira desabusada, principalmente contra a burocracia.

Diante da diferença de tons (confessional e satírico) existente nas Recordações, e percebida por vários críticos como defeito de composição,8 este artigo propõe

3 Para Lúcia Miguel-Pereira, a obra de Lima Barreto é, “incontestavelmente, um elo entre o ro-mance machadiano e as atuais tendências da ficção [o Modernismo]” (Lúcia Miguel-Pereira, Prosa de ficção (1870-1920), Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1988, p. 275).

4 Miguel-Pereira, Prosa de ficção (1870-1920), op. cit.,p. 293-4.5 Antonio Candido considera mesmo essa solidariedade como o movimento profundo da prosa

de Lima Barreto: “a sua passagem constante da particularidade individual para a generalidade da elaboração romanesca (e vice-versa)” (cf. Antonio Candido, “Os olhos, a barca e o espelho”, in A educação pela noite & outros ensaios, 2.ed., São Paulo, Ática, 1989, p. 49).

6 Lúcia Miguel Pereira, Prosa de ficção (1870-1920), op. cit., p. 292. 7 Idem, ibidem, p. 294.8 Além de Lúcia Miguel, Carlos Nelson Coutinho também considera que, na segunda parte, as

Recordações entregam-se à mera descrição e perdem com isso a totalidade abrangente da vida (cf. Carlos Nelson Coutinho, “O significado de Lima Barreto na Literatura Brasileira”, in Carlos Nelson Coutinho et al., Realismo e anti-realismo na literatura brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 1-56). Na análise do romance em foco, o autor segue de perto a argumentação desenvolvida em Georg Lukács, “Narrar ou descrever”, in Ensaios sobre literatura, trad. Giseh Vianna Konder, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 47-99.

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refletir sobre a possibilidade de que tal desacerto tenha relação com aquele outro apontado por Roberto Schwarz no romance Senhora, de José de Alencar.9 Trata-se ali também de um desacerto de tons, ora grandiloquente, ora bonachão, no qual o crítico aponta um desencontro mais profundo, com raízes na vida ideológica do país. Os valores na obra de Lima Barreto são diferentes muitas vezes e outras va-riáveis estão presentes, mas é possível que ainda aqui o problema tenha se repro-posto. Uma vez que isso se evidencie, interessa naturalmente pensar os novos elementos e circunstâncias em jogo.

Na análise de Senhora, Schwarz explica que o desacerto aparece, em termos literários, como um problema de unidade: o problema formal resultava duma combinação ideológica normal no Brasil submetida à exigência de unidade pró-pria ao romance realista e à literatura moderna. Alencar pretendera trazer para o romance tanto os grandes temas do romance europeu (“a carreira social, a força dissolvente do dinheiro, o embate de aristocracia e vida burguesa, o antagonismo entre amor e conveniência, entre vocação e ganha-pão”10), quanto as figuras da vida cotidiana brasileira, regidas pelo favor. Para ser fiel a esses dois sistemas (conflitos próprios à forma do romance e sociedade brasileira), Alencar os repre-senta cuidando de diferenciar os tons em que aparecem. Assim, no centro, onde se passa o conflito propriamente europeu, universal (amor versus dinheiro), o tom é reflexivo e problemático; e, na periferia, onde se encontra a população peculiar-mente brasileira (famílias irregulares, comadres, sinhazinhas, agregados), o tom é desafogado e bonachão. O princípio de composição (valores liberais, a dignidade do indivíduo) valia apenas para o conflito nuclear, mas não para a periferia. “O aspecto programático dos sofrimentos dela [Eugênia], que lhes deveria avalizar a dignidade mais que pessoal, faz efeito de veleidade isolada, de capricho de moça.”11 O predomínio formal, portanto, não correspondia ao peso social dessas esferas. Formalmente, o privilégio era do enredo mas Alencar não materializava esse pri-vilégio, pois não criticava a ordem do favor, a qual na verdade apreciava. Forma europeia e sociabilidade local contradiziam-se em princípio, mas essa contradição não tinha consequências no romance justamente pelo senso de realidade de Alen-car, afinal, de fato, ambas conviviam na sociedade brasileira e a esfera européia existia aqui efetivamente, mas modificada. Para fazê-las atuar em sistema, ou seja, submetendo-as ao mesmo princípio de composição e unidade formal, seria preci-so descobrir o seu “sistema de modificações”, a lógica da convivência de ideias liberais e sociedade clientelista no Brasil. Machado de Assis encontrara a solução para o desacerto, ao trazer a população periférica do romance de Alencar para o centro, fazendo coincidir predominância formal e social, e ao tomar o desacerto como ponto de partida. O que antes aparecia como resultado, agora era pressu-posto. Na fase madura de Machado, o desacordo entre ideias e práticas impregnava

9 A análise de Senhora encontra-se em Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2000.

10 Idem, ibidem, p. 37-8.11 Idem, ibidem, p. 62.

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cada frase, não mais como efeito inevitável e indesejado, mas como resultado his-tórico incorporado à forma, na clave do humor e do sarcasmo.12 Espero ter resu-mido adequadamente os pontos-chave da argumentação de Schwarz, para os fins aqui propostos, que são os de refletir sobre o romance de Lima Barreto, articulan-do-o a um problema de longo curso do romance brasileiro em sua relação com o modelo europeu.

Em meio à literatura autossatisfeita do início do século XX, extremamente convencionalizada nos conflitos e linguagem, Lima Barreto chega ao problema que nos interessa buscando “tratar as grandes questões do tempo” e retomando, para isso, a tradição crítica do romance europeu. A motivação da escrita das Re-cordações, declarada num texto inicial chamado “Breve notícia”, é desmentir a tese lida em um artigo de revista, segundo a qual os mulatos, mesmo quando tinham um começo de vida promissor, terminavam por fracassar, devido à falta de energia característica da raça. Isaías, ele mesmo afetado por tal prognóstico, resolve con-tar sua história para mostrar que tais insucessos não se deviam a fatores fisiológicos (“não estava em nós, na nossa carne, no nosso sangue”), mas a constrangimentos sociais. A intenção, portanto, era mostrar que a responsabilidade do fracasso esta-va na sociedade e não no indivíduo.

Não é meu propósito também fazer uma obra de ódio; de revolta, enfim; mas uma defesa a acusações deduzidas superficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais das ve-zes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de tudo, [...] isolado contra inimigos que o rodeiam.13

Com isso, abre-se um romance em primeira pessoa, cuja história remete a um tipo de enredo clássico do romance europeu. O indivíduo ingênuo e arrogante lança-se ao mundo para conquistar os objetivos aparentemente à sua disposição, convencido de ter os méritos e valores suficientes para isso. Com os instrumentos do romance, trazendo à luz o indivíduo em luta contra a sociedade, começa a sur-gir a distância daquela constituição de indivíduo, que pressupunha o contexto europeu, para as chances reais de individuação numa sociedade paternalista e de dependência pessoal como a brasileira. Em outro artigo, com o título “Uma palha na cidade”, procurei pensar justamente a rapidez com que as altas intenções e o orgulho de Isaías são aniquilados sumariamente, diante dos primeiros obstáculos, rastreando a problemática até a fragilidade de sua consciência individual, consti-tuída sobre o lastro precário dos elogios na escola e por um manual de força de vontade. A sátira vigora na falta de inteiriçamento desse personagem, de sua im-possibilidade de prolongar o atrito, a tensão dramática, o jogo das ações em que se revelam, no romance europeu, o indivíduo e a sociedade.14 Policarpo Quaresma

12 A argumentação completa, aqui muito rapidamente resumida, encontra-se no capítulo II, “A importação do romance e suas contradições em Alencar” (Idem, ibidem, p. 33-79).

13 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 42, v. I, da obra completa.

14 O artigo foi publicado na Revista Letras, Curitiba, n. 64, p. 77-89, set.-dez. 2004.

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será muito mais obstinado que Isaías, mas essa obstinação, que garante a existên-cia de ações e a revelação de um panorama variado da sociedade brasileira, é uma excentricidade, uma quase loucura, certamente uma alienação.

É possível notar que a história de Isaías, que se muda para a cidade grande, com o objetivo de formar-se e ocupar uma boa posição na sociedade, esse enredo típico do romance europeu, assume um tom sério, reflexivo e confessional, en-quanto o meio em volta, com seus doutores e jornalistas, é captado com distância e representado satiricamente. A pergunta da qual parte esse artigo é se o romance de Lima Barreto também separou, como Senhora, a forma de tratar o enredo euro-peu e a de tratar a sociedade brasileira, inadequada ao modelo. A diferença seria que, agora, as ideias liberais, sobretudo a dignidade do indivíduo, incidem tam-bém sobre a “matéria brasileira”, com virulência e força crítica, mas ao custo de rebaixar essa matéria, como aponta Lúcia Miguel-Pereira. Entretanto, há ligações entre uma parte e outra que iluminam complexidades tanto dos gêneros narrati-vos quanto de suas relações com as sociedades representadas.

Para chegar a elas, será preciso acompanhar um pouco a trajetória de Isaías, da maneira como ele a recupera anos depois, de um lugar distanciado. O narrador começa com a explicação da origem de seus anseios de inteligência, os quais atri-bui à desigualdade de nível intelectual no meio familiar. “O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu ao meus olhos como um deslumbramento.” O pai, inteligente e ilustrado, impressionava-o com seus conhecimentos e exortações obscuras, enquanto a mãe parecia-lhe triste e humilde porque não sabia dizer os nomes das estrelas, nem explicar a ocorrência da chuva. Na primeira recordação do romance, o pai apre-senta-o ao modelo mais alto da época:

Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!15

Napoleão será mencionado vários vezes ao longo da narrativa, o que relaciona as Recordações aos valores que cercaram o modelo de romance europeu do século XIX, adotado por Isaías na escrita de sua história.16 A importância da figura de Napoleão na vida intelectual do século XIX é avaliada por Georg Lukács, em en-saio sobre Dostoiévski, partindo de observações de Emerson, para quem o segredo

15 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 45.16 “Estão ali O crime e o castigo de Dostoiévski, um volume de contos de Voltaire, A Guerra e a

Paz de Tolstói, o Rouge et Noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Education Sentimentale de Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça; na estante, sob as minhas vistas, tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros autores de literatura propriamente, ou não. Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer” (cf. Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 120).

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do influxo napoleônico estaria em que esse “encarnava em si as virtudes e os de-feitos de um grande número de homens” de sua época e da subsequente. Balzac e Stendhal teriam procurado justamente as consequências do relacionamento entre o homem e a época, ou seja, entre o modelo de indivíduo espelhado em Napoleão e a sociedade burguesa, submetendo-a a uma espécie de prova:

Esse Napoleão é o símbolo das possibilidades ilimitadas que a inteligência tem na sociedade democrática e, ao mesmo tempo, a verdadeira medida do caráter democrático da sociedade; que revelaria essa medida pelo seu comportamento diante da pergunta: até que ponto nesta deter-minada sociedade é possível uma carreira napoleônica?17

Os dois escritores já reconheciam, entretanto, que o período revolucionário burguês se esgotara. Para Rastignac, Napoleão não aparecia como representante da Revolução Francesa, mas como um exemplo de energia: “Da figura de Napo-leão emana um fascínio e ela constitui-se em um modelo, nem tanto pelos fins, onde sua ação é direta mas acima de tudo pelos seus métodos, pela sua maneira de agir, pela sua técnica de superar os obstáculos”.18 Também para Isaías, Napo-leão apresenta-se mais como um exemplo de força interior e êxito, do que pro-priamente como representante dos conteúdos revolucionários, que, no Brasil re-publicano, tinham pouca consequência prática.

Na breve cena inicial, estão dados, portanto, os valores que Isaías irá perseguir ao longo da vida: a figura de Napoleão, como exemplo de grande homem, e a imagem do saber, expressa no livro, como meio para atingi-lo. Reforçando esse conjunto – o pai branco, o livro, a consideração social – o narrador apresenta ain-da como influência marcante a professora, Dona Ester:

Correspondi-lhe à afeição com tanta força d’alma, que tive ciúmes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu então dois anos de escola e doze de idade. Daí a um ano saí do colégio, dando-me ela como recordação, um exemplar do Poder da Vontade, luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira.19

É possível aqui pensar na afinidade entre os papéis que exercem a figura de Napoleão e o livro dado pela professora no romance, ambos funcionando como estímulos a uma individualidade em formação, deslumbrando e seduzindo, mas destituídos de conteúdos específicos e de algum tipo de impregnação ideológica com requisito de coerência. Assim, vencer pelo estudo pode compartilhar, em certo nível de generalidade, com o ponto de partida do romance de Balzac ou Stendhal, que busca testar até que ponto a sociedade é realmente democrática, a depender das “possibilidades ilimitadas da inteligência” e da plausibilidade de uma carreira napoleônica. Se os romances europeus desmentem o caráter preten-

17 Lukács, “Dostoiévski”, in Ensaios de literatura, op. cit., p. 157.18 Idem, ibidem, p. 158.19 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 46-7.

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samente democrático da sociedade burguesa, o romance de Lima Barreto, que lhes segue com atenção o modelo, alcança também uma visada crítica da sociedade brasileira, mas sofre uma série de dificuldades ligadas à especificidade da matéria, entre as quais a de ceder o passo à sátira em boa parte da narrativa.

Também já de início estabelece-se o contraponto de tudo o que Isaías valoriza, quando criança e quando jovem. Ele quer vencer na vida, indo em direção ao pai que não o reconhecera (o pai é padre, sabe-se depois), mas de cuja imagem fixada na infância ele quer aproximar-se (“Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor...”). Pela oposição na qual os pais estão fixados, isso significa não reconhecer-se na mãe, obscura, analfabeta, pobre e negra. No que tem de melhor, o romance conduz esse conflito noutra linha de força, não explícita mas relevante, onde estão em jogo os valores que disputam a consciência em formação do jovem intelectual pobre e mulato. Voltaremos a isso mais tarde.

Com essa série de noções na cabeça, Isaías ainda hesita um pouco entre a pa-cata vida roceira e as expectativas de triunfos no Rio de Janeiro, até que se decide, de um dia para o outro, pela partida. Inicialmente dispensa qualquer orientação (Não sou eu rapaz ilustrado? Para que conselhos?), mas depois acompanha um amigo da família, misto de agregado e protetor, para conseguir um bilhete do fa-zendeiro, coronel Belmiro, pedindo ao deputado Castro um emprego, com que se sustentasse no período de estudos. A indiferença inicial de Isaías por esse bilhete contrasta com o peso que assume posteriormente, quando ele já está no Rio de Janeiro, tornando-se praticamente o único recurso do jovem aspirante ao dou-torado. Por um bom tempo, Isaías dedica-se exclusivamente a procurar o deputa-do, na Câmara ou em casa, em vários horários diferentes, sem encontrá-lo. O di-nheiro vai acabando e Isaías angustia-se com medo de não poder pagar o hotel, ser preso e cair na miséria, em um lugar onde não possuía amigos, nem nenhuma relação. Nesse momento, revela a esperança que colocara no bilhete: “Saíra de meus penates, cheio de entusiasmo, certo de que aquela carta, mal fosse apresen-tada, me daria uma situação qualquer. Essa era a minha convicção, dos meus e do próprio coronel”.20

Na mesma ocasião, o dinheiro, como entidade suplementar à proteção que falha, surge positivamente: “Os meus únicos amigos eram aquelas notas sujas encardidas; eram elas o meu único apoio; eram elas que me evitavam as humilha-ções, os sofrimentos, os insultos de toda a sorte”.21 O dinheiro, portanto, não aparece, a exemplo do romance europeu, como uma força dissolvente dos valores e das tradições, mas como uma espécie de sucedâneo anônimo da proteção, capaz de valer a qualquer um. Essa espécie de visão do dinheiro, embora circunstancial no romance, pressupõe uma sociedade ainda não mediada no seu cotidiano por relações estritamente capitalistas, em que o ganho pecuniário tenha vindo a pri-meiro plano e provocado uma alienação nas relações mais próximas. Naquelas

20 Idem, ibidem, p. 85.21 Idem, ibidem, p. 86.

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condições, em que a referência de poder ainda é pessoal, o dinheiro subordina-se a essa referência, assumindo a forma de um protetor. “Eu nunca compreendi tanto a avareza como naqueles dias que dei alma ao dinheiro”.22

Daí a alguns dias, Isaías fica sabendo onde mora de fato o deputado (na casa de uma amante) e vai procurá-lo cheio de esperanças. Mas não é recebido, nem atendido, com a prontidão que esperava. O deputado alega crise, falta de prestígio, recomenda-lhe prestar concurso e, finalmente, condena a busca de proteção:

Houve ocasião em que ele exprobou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os ingleses e os americanos. – Todo o mundo quer ser doutor... Corei indignado e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com ela; se os fortes e aparentados, os relaciona-dos, para a formatura apelavam, como havia eu, mesquinho, semi-aceito, de fazer exceção?23

A reivindicação de Isaías, como se percebe, é a igualdade no direito ao favor. Percebe-se aqui uma mescla entre uma postura liberal – uma espécie de dicção liberal – e as condições de poder pessoal efetivamente válidas, que aliás aparece ao longo da narrativa das mais variadas formas. A igualdade que, no contexto euro-peu, pressupunha a universalidade e a impessoalidade, combina-se, na fala de Isaías, ao pedido de proteção mediado por uma cadeia de relações pessoais. Mas evidentemente a proteção não é para todos, depende de interesses particulares, não controlados pela parte mais fraca. Para justificar a negativa, o deputado lança mão do liberalismo inglês e americano, forçando o individualismo econômico a atuar como ideologia de primeiro grau.24 Isaías retruca com a experiência concre-ta. No fim de tudo, Dr. Castro o engana, mandando-o procurá-lo depois no escri-tório, quando já está de partida para um período em São Paulo. Isaías sabe isso pelo jornal, no caminho de casa, e tem uma grande reação de revolta. “Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei che-gar ser um dia”.25

Depois disso, acontecem em rápida sucessão dois episódios, que vão tirar as esperanças de Isaías definitivamente. O primeiro é a intimação da polícia por cau-sa de um furto no hotel em que está hospedado. Na delegacia, enquanto espera ser chamado, o jovem observa as pessoas em volta, todas pobres, até que ouve do de-legado: “E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal ‘mulatinho’?”. O tratamento pejo-rativo desperta em Isaías, como em outras situações ao longo do romance, a cons-ciência do desacordo entre sua visão de si mesmo e a que os outros têm dele.

Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vie-ram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de

22 Idem, ibidem.23 Idem, ibidem, p. 101.24 A noção de “ideologia de primeiro grau” é referida aqui no sentido utilizado por Roberto

Schwarz, no ensaio “As idéias fora do lugar”, in Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 9-31. 25 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 103.

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respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na rea-lidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.26

O orgulho, a dignidade, enfim, a constituição da representação de si é perce-bida por Isaías como fruto de um “ambiente artificial”. Esse desencontro no ro-mance está agravado pelo fato específico da cor da pele, que, no ambiente da fa-mília e da pequena cidade, entre ocupações simples e despretensiosas, não se apresenta como problema para o jovem. O sentimento de si como indivíduo dig-no, abonado pelos méritos da inteligência, essa espécie de individualismo de estufa, choca-se com uma lógica social que simplesmente o desconhece. A passagem pela delegacia é mais um degrau para baixo na visão que Isaías tem de si mesmo como um igual, como um indivíduo digno ou como um cidadão (“meus direitos ao Bra-sil” e a um “tratamento respeitoso”). Isaías é preso por desacato, por insistir em declarar-se estudante e reagir ao ser chamado de gatuno. Horas depois, é solto pelo delegado já mais brando, sem processo, sem justificativa. “Esses arrependi-mentos, essas voltas atrás são freqüentes e fatais no modo de agir das nossas autoridades”.27

À noite, amargando a revolta contra o dono do hotel, que provavelmente o apontara como suspeito, Isaías junta forças para prosseguir. Talvez não fosse o mundo que estivesse fechado para ele ou que não o deixasse passar, talvez fossem seu “sangue covarde”, seus “defeitos de caráter”, que lhe amontoavam obstáculos à frente. “Não seria tolice, pusilanimidade escondida fazer repousar a minha feli-cidade na presteza com que um qualquer deputado atendesse um pedido de em-prego? […] As condições de minha felicidade não deviam repousar senão em mim mesmo”.28 Agora, de fato, entra em teste o indivíduo sozinho no mundo. O futuro doutor decide começar de baixo e procurar um emprego humilde. Lê no jornal um anúncio para entregador de pão e, antes de atender-lhe, prepara-se psicologi-camente, convence-se de que não havia mal no trabalho humilde, ainda mais que “era desconhecido, sem família, sem origens...”. Se vencesse depois, não teria do que se envergonhar.29 Depois de toda essa preparação, Isaías vai até alegre em busca do emprego. Mas aqui o degrau para baixo é ainda mais profundo. Quando ele se apresenta ao dono da padaria para o emprego, o homem examina-o, diz-lhe bruscamente “não me serve” e volta-lhe as costas. Esse episódio liquida o jovem estudante, encerra as expectativas de vencer pela inteligência, de conquistar por si mesmo as condições de sua felicidade. “Naquela recusa do padeiro em me ad-mitir, eu descobria uma espécie de sítio posto à minha vida. Sendo obrigado a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de sentimentos injustificáveis”.30

26 Idem, ibidem, p. 110.27 Idem, ibidem, p. 122.28 Idem, ibidem, p. 124.29 Idem, ibidem, p. 127.30 Idem, ibidem, p. 127, grifo meu.

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Como se viu, um “senso de dignidade”, ligado sobretudo ao intelectualismo, exige de Isaías toda uma preparação interior para conformar-se com a ocupação de pessoas humildes, como a de sua mãe, por exemplo. Ele se prepara para ser aceito, mas não para não sê-lo. De qualquer forma, antes e depois, sua visão do trabalho é ruim, está naquele polo da vida do qual ele quer fugir pela atividade intelectual. O orgulho de estudioso e inteligente coloca Isaías numa posição ima-ginariamente mais alta, ombreando com a posição ideológica da elite brasileira, para quem o trabalho apresenta-se como obrigação injuriosa.

Assim como no episódio do Dr. Castro, Isaías revolta-se intimamente com a recusa do emprego, mas seus “sentimentos liberais” impedem-no de condenar particularmente o padeiro, em quem apenas se manifestava um sentimento geral. A abertura do capítulo seguinte, já quase na metade do livro, mostra o resultado até aqui dos insucessos do protagonista: “Aquele meu fervor primeiro fora substi-tuído por uma apatia superior a mim. […] A minha individualidade não reagia; portava-se em presença do querer dos outros como um corpo neutro; adormecera, encolhera-se timidamente acobardada”.31

Sem mais grandes expectativas, Isaías entrega-se a uma vida à margem, ainda assim dependente. Sai do hotel, aluga um quarto com mais algum dinheiro envia-do pela mãe e, por acaso, encontra um ex-colega de escola, empregado no escritó-rio de um medalhão no Rio de Janeiro. Torna-se seu secretário e professor, em troca de salário exíguo e irregular. Nesse período, toma contato com a boêmia li-terária e revolucionária, da qual se ressaltam sobretudo a imaturidade e a incoe-rência. Abelardo Leiva, poeta e revolucionário que o introduzira na vida boêmia, era por exemplo anarquista e positivista. Isaías guarda distância de seus entusias-mos, mas de certa forma está ativo em observar, examinar, estabelecer pontos de vista críticos, ainda que caracterize esse período como de grande atonia: “Aban-donara-me à miséria que a proteção de Agostinho Marques impedia que chegasse a ser declarada”.32

A fragilidade de sua situação evidencia-se quando o colega e protetor viaja para o norte do país, para lá permanecer por três meses, período em que tem de vender suas roupas e outros objetos, ainda passar fome e depender de quem, aqui e ali, lhe oferecesse um jantar. Em resposta ao pedido de ajuda à mãe, recebe a notícia de sua doença, muito grave, já terminal: “Morria minha mãe! E via-a logo morta, muito magra, os círios, o crucifixo, o choro...”.33 Lembra então de como pouco havia pensado nela nos primeiros meses no Rio e como, recentemente, a lembrança da mãe tornara-se frequente: “sua figura flutuava a meus olhos: magra, esquálida, com o corpo premido pelos trabalhos e tendo pelas faces aquelas man-chas de fumaça entranhada...”.34 E embora Isaías quisesse envolver essa lembrança

31 Idem, ibidem, p. 133.32 Idem, ibidem, p. 148.33 Idem, ibidem, p. 149.34 Idem, ibidem.

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no que nele havia de mais terno, embora recordasse com sofrimento sincero dos carinhos e cuidados maternos, é possível ainda perceber a distância, o medo de comungar do mesmo destino.

Nesse momento extremo, encontra casualmente no correio Gregoróvitch, com quem chegara a travar amizade logo depois de sua chegada ao Rio. O jorna-lista compadece-se de sua situação e o indica para um emprego de contínuo no jornal. A partir daqui, exatamente na metade do livro, Isaías entra em uma nova fase e o enredo retrocede para dar lugar à sátira. O motivo dessa alteração de re-gistro ou de gênero não se deve apenas, como pretendo mostrar, a tendências pessoais do autor que teriam interferido na boa construção do romance. Essa alteração ocorre justamente porque Lima Barreto tem em vista, de maneira muito consequente, um modelo pregnante de romance (Dostoiévski, Balzac, Stendhal, Flaubert), com o qual tenta contar a história de um jovem mulato brasileiro, do início do século XX.

A possibilidade de que o romance, por um desequilíbrio entre tendências internas objetivas e subjetivas, possa converter-se em sátira está considerada al-gumas vezes em A teoria do romance de Georg Lukács. A primeira menção insere-se numa discussão sobre a necessidade do autorreconhecimento ou da autossu-peração da subjetividade, segundo o que os teóricos românticos chamaram de ironia. Era necessária uma cisão interna do “sujeito normativamente criador” em uma subjetividade que enfrenta o mundo e busca realizar nele os conteúdos de sua aspiração e em outra que rejeita a abstração pura e simples, compreende mundo e sujeito em seus limites, ou seja, não escamoteia a dualidade, mas é ca-paz de configurar uma unidade no condicionamento recíproco dos elementos alheios entre si. Essa unidade é formal e o alheamento de mundo interno e exter-no não é superado, mas apenas reconhecido como necessário, e o sujeito desse reconhecimento está tão submetido à lógica interna do romance quanto seus outros objetos: “Isso retira da ironia toda a superioridade fria e abstrata que redu-ziria a forma objetiva à sátira, e a totalidade, a um aspecto”.35 Mais adiante no livro, tratando agora de uma de suas mais famosas tipologias, o romance da desi-lusão, o crítico húngaro reforça a visão da sátira como resultado possível num eventual desequilíbrio subjetivista da forma do romance. Na formulação lukac-siana, o romance da desilusão configura-se num tipo de relação inadequada entre alma e realidade, em que o mundo interior e os anseios espirituais são mais vas-tos que os destinos que a vida concretamente pode oferecer-lhe. Nesse tipo de romance, a subjetividade tende a reconhecer-se como única essencialidade e a buscar um máximo de continuidade. Essa busca resulta, entretanto, em descome-dimento, em desrealização do mundo em estados de ânimo, logo desabonados pelo todo como nulidade reflexiva. Nessa situação, sujeito e mundo precisariam ser negados, pois a afirmação de cada um desses elementos perturbaria o equilí-brio das forças internas do romance:

35 Lukács, A teoria do romance, op. cit., p. 75.

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a afirmação do mundo daria razão ao filisteísmo vazio de idéias, à obtusa capacidade de acomo-dação a essa realidade, e permitiria surgir uma sátira fácil e barata; e a afirmação inequívoca da interioridade romântica teria de suscitar uma volúpia amorfa de um psicologismo lírico, que se adora frivolamente e espelha-se com vaidade.36

No caso das Recordações, o equilíbrio está desde logo ameaçado porque o pon-to de vista subjetivo interno é frágil, então a possibilidade de que o mundo “vazio de ideias” imponha-se é sempre grande. O indivíduo problemático lukacsiano pressupõe que um indivíduo tenha se constituído, com um grau razoável de au-torrepresentação e confiança. Tanto que as Recordações buscam criteriosamente prover esses elementos: Isaías tem uma visão positiva de si mesmo, é encorajado pelo pai e pela professora, que lhe inculcam modelos coerentes com as necessi-dades de constituição do romance. Mas essa, como ele mesmo logo percebe, cons-titui-se em um meio artificial, fechado, fora de contato com o mundo real. Dife-rente, portanto, da individualidade dos heróis do romance europeu, por exemplo, que encarnavam valores sociais difundidos pela figura pregnante de Napoleão, ainda que irrealizáveis na prática. Por isso, para Isaías, os primeiros contatos com a vida concreta são tão arrasadores. Não são as suas qualidades intelectuais e mo-rais, a capacidade de se haver com o assédio da necessidade ou da ganância que estão em primeiro plano, mas a de não ser simplesmente suprimido como indiví-duo, entidade de forma alguma dada previamente, como possa parecer. E ele chega de fato a anular-se como individualidade, pela metade do romance, para ressurgir apenas algumas páginas antes do final.

Os problemas narrativos das Recordações vão esbarrar assim no que Ian Watt apontou como condição de existência do romance. O tratamento sério de pessoas comuns na literatura dependia de que essa sociedade valorizasse cada indivíduo e houvesse uma variedade de crenças e ações que despertasse o interesse do leitor. Essas duas condições estavam ligadas ao “vasto complexo de fatores interdepen-dentes denotado pelo termo ‘individualismo’”,37 ou seja, que toda a sociedade se organizasse sob o consenso da independência e autonomia do indivíduo. Em par-te, a decisão de Isaías de ir estudar no Rio, a confiança na própria inteligência têm aí o seu ponto de partida, que não progride muito, porque logo se vai buscar o bilhete do coronel. Quando o Dr. Castro tenta instigá-lo a outras iniciativas, Isaías o confronta com o dado da realidade, que é a mediação onipresente do favor. De-pois de algumas tentativas mais, a vida de nosso herói borboleteia de proteção em

36 Idem, ibidem, p. 124-5.37 “The novel’s serious concern with the daily lives of ordinary people seems to depend upon two

important general conditions: the society must value every individual highly enough to consider him the proper subject of its serious literature; and there must be enough variety of belief and action among ordi-nary people for a detailed account of them to be of interest to other ordinary people, the readers of novels. It is problable that neither of these conditions for the existence of the novel obtained very widely until fairly recently, because they both depend on the rise of a society characterised by the vast complex of in-terdepent factor denoted by the term ‘individualism’” (cf. Ian Watt, The rise of the novel, London, Chat-to & Windus, 1967, p. 60).

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proteção. O traçado de suas ações, aliás bem poucas, e de sua vida nesse período faz a estrutura da narrativa tender para uma divisão em episódios (Dr. Castro, o delegado, o padeiro, a boêmia, o jornal, Loberant etc.), aproximando-a mais da forma da novela. A fragilidade de encadeamentos e causalidades internas, na his-tória de Isaías, indica a falta daquelas condições apontadas por Watt, ou seja, a falta do variado conjunto de relações que a sociedade burguesa moderna colocara à disposição do romance europeu.

A predominância da sátira na segunda parte do romance também tem relação com a ordem de coisas consideradas por Ian Watt. Em carta a um amigo, Lima Barreto justifica a inclusão da sátira e, mais que isso, do roman à clef, nas Recor-dações, pela necessidade de combater a indiferença sobre seu livro de estreia.38 Tal afirmação deve ter reforçado a ideia de enxerto, de superposição de registros, que simplifica o problema da unidade. À parte isso, a declaração ressalta a consciência do autor de que a história de Isaías, por si mesma, não interessaria aos leitores disponíveis, aos seus contemporâneos. Não deixa de ser curioso que Lima Barreto praticasse então o gênero que ressurgia com força no começo do século XX na Europa, em condições diversas. Na visão de recente estudo sobre o assunto, o roman à clef tinha feito parte do amplo movimento de renovação da ficção naquele perío-do, reagindo ao realismo conservador do final do século XIX, apesar de ser em geral subestimado pela crítica.39 Mas Lima nem atenderia ao apelo da crítica con-temporânea, em favor de um realismo “mais idealista”, nem rejeitaria o realismo formal pela problematização das normas de representação e o ataque direto, fican-do numa posição frágil de ambos os lados. Entretanto, o realismo europeu, naquele momento, vivia uma crise de credibilidade que tinha algo em comum com as os-cilações do realismo de Lima, uma crise que passava pelo indivíduo. Para Adorno, era ideológica a intenção de contar a própria história, “como se o curso do mundo ainda fosse o da individuação”.40 O cotidiano da vida industrial negava tal preten-são, como entre nós a dependência. Os narradores de Lima Barreto e do romance realista criticado por Adorno, embora em temporalidades distintas, têm em co-mum o desencontro entre uma forma de narrar e o processo social em curso. Nesse sentido, são ideológicos.

O momento da verdade (para falar com Adorno), ou seja, da historicidade das Recordações, está justamente em que as dificuldades do modelo em lidar com a

38 Trata-se de uma carta a Gonzaga Duque, escrita em 1909. Lima Barreto, Correspondência ativa e passiva, op. cit., t. I, v. XVI, p. 169.

39 “At its core, The Art of Scandal makes a simple claim with far-reaching consequences: writers throughout the early twentieth century revived the roman à clef as part of a large movement to renovate fiction by loosing it from the strictures of a conservative realism. […] Yet the often chaotic and still reso-nant results of such experimentation have largely been ignored, repressed or condemned as inartistic and inauthentic. By developing a distinctive art of scandal, however, writers and readers found a way to resist aesthetic autonomization by working at the complicated nexus of coterie culture, the mass market, cul-tural analysis, and the courts of law” (cf. Latham, The art of scandal, op. cit., p. 19-20).

40 Theodor W. Adorno, Notas de literatura I, trad. Jorge de Almeida, São Paulo, Ed. 34, Duas Cidades, 2003, p. 56.

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matéria brasileira terminam inscrevendo-se na forma, ao longo da narrativa, seja pela oscilação constante do gênero em direção à novela, seja pela predominância satírica da metade para o fim do romance. O problema de unidade aqui, como se viu, apresenta-se de maneira diferente do percebido em Senhora, com outros re-sultados, mas de certa maneira pela recombinação de elementos comuns ou afins. Lima Barreto, diferentemente de Alencar, fez também incidir sobre a população “peculiarmente brasileira”, ou seja, os que não vivem os conflitos do enredo prin-cipal, as ideias liberais. A fidelidade ao modelo de romance, como vimos, empur-rou para a sátira a representação crítica dessa esfera, depois da anulação do herói. Nos dois casos, a tentativa de manter-se fiel ao modelo e à realidade interfere significativamente na forma. Fico pensando que o êxito detectado por Antonio Candido em O cortiço, que equaciona admiravelmente “a filiação a textos e a fidelidade a contextos”,41 provavelmente se deve à pouca importância do indiví-duo no romance naturalista. A noção de indivíduo é tão profundamente social (ou seja, pressupõe toda uma sociedade, como explica Watt) que seu mero trans-plante constitui-se em fonte de desacertos.

Enfim, como Lukács descreve, em A teoria do romance, a conformação do he-rói encaminha a narrativa para a sátira.42 Desaparece o polo positivo do herói que busca, ele também submetido à normatividade da forma, e permanece a visão

41 Cf. Antonio Candido, “De cortiço a cortiço”, in O discurso e a cidade, 2.ed., São Paulo, Duas Cidades, 1998, p. 123-52.

42 Na formulação de Northrop Frye para os gêneros, em Anatomia da crítica, o enredo do ro-mance (que limita suas aventuras e atinge uma forma literária) englobaria os quatro mitos por ele considerados: romance (em sentido mais amplo e mais antigo), tragédia, ironia ou sátira e comédia. “Agon or conflict is the basys or archetypal theme of romance, the radical of romance being a sequence of marvellous adventures. Pathos or catastrophe, whether in triumph or in defeat, is the archetypal theme of tragedy. Sparagmos, or the sense that heroism and effective action are absent, disorganized or fore-doomed to defeat, and that confusion and anarchy reign over the world, is the archetypal theme of irony and satire. Anagnorisis, or recognition of a newborn society rising in triumph around a still somewhat misterious hero and his bride, is the archetypal theme of comedy” (cf. Northrop Frye, Anatomy of criti-cism, Princeton, New Jersey, 1973, p. 192). Mais adiante, quando trata especificamente da sátira, o autor reforça a ideia de desaparecimento do heroico como constitutivo desse mito: “The figure of the low-norm eiron is irony’s substitute for the hero, and when he is removed from satire we can see more clearly that one of central themes of the mythos is the disappearance of the heroic (Idem, ibidem, p. 228). As Recordações podem ser descritas nesse esquema: primeiro, a série de tentativas de Isaías de colo-car-se na sociedade (agon); depois, o momento extremo em que se esgotam suas chances de sobre-vivência, culminando com a morte da mãe (pathos); a acomodação de Isaías no mundo dissolvente do jornal (sparagmos); e, finalmente, o ressurgimento do herói pela consciência e a reconciliação com a figura da mãe (anagnorisis). Mostro a concordância geral do romance de Lima com o esquema estrutural proposto por Frye para enfatizar a presença forte de um modelo narrativo em sua compo-sição. Também se reforça aqui a noção de que a sátira não é necessariamente um enxerto externo na estrutura romanesca. Os modelos de romance e sátira organizam-se em diferentes combinações de elementos intercambiáveis. No caso específico em estudo, a sátira pode autonomizar-se no romance por causa da matéria histórica representada, ela também uma forma, que interfere na organização dos elementos do modelo.

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abstrata do narrador que recorda, Isaías já maduro, como contraponto isolado. O estado de pobreza em que se encontrava o jovem, quando finalmente consegue o emprego no jornal, o predispõe a uma adesão sem restos que se estende até o des-lumbramento. “De tal maneira é forte o poder de nos iludirmos, que um ano de-pois cheguei a ter até orgulho da minha posição. Senti-me muito mais que um contínuo qualquer, mesmo mais que um contínuo de ministro”.43 Nessa condição, será observador passivo e arredio dos acontecimentos no jornal, que pouca ou nenhuma influência tem diretamente sobre sua vida. Em termos gerais, a impor-tância do jornal na trajetória de Isaías é franquear-lhe o conhecimento de um mundo do qual ele está excluído: o mundo da política, dos negócios, da cultura, enfim, das elites do país.

Boa parte da representação literária da segunda parte, como se sabe, é roman à clef, ou seja, tem como referente imediato o jornal oposicionista Correio da manhã, de Edmundo Bittencourt, e algumas figuras importantes do meio intelectual da época, como Coelho Neto e João do Rio. Já foi discutida rapidamente, um pouco antes, a atitude subjacente a esse tipo de literatura, que aprofunda na sátira a ten-dência pragmática de intervir na vida presente. Gostaria apenas de reiterar que a sátira se estabelece no recuo do herói, impedido pelos obstáculos que encontrou ao longo do caminho, ou seja, mesmo vinculando-se a referentes externos, a sátira tem uma ordem de necessidade no romance, dadas as condições de partida, assim como terá adiante influência na posterior desilusão do herói, quando volta a se incompatibilizar com o mundo. Antes disso, o narrador já anuncia o resultado dessa experiência: “No meio daquele fervilhar de ambições pequeninas, de intri-gas, de hipocrisia, de ignorância e filáucia, todas as cousas majestosas, todas as grandes cousas que eu amara, vinham ficando diminuídas e desmoralizadas”.44

Talvez seja emblemático dessa diminuição um trecho no romance em que aparece novamente a figura de Napoleão, o modelo de grande homem apresentado pelo pai. Veiga Filho, o famoso literato, havia feito uma conferência sobre a bata-lha de Austerlitz e reclamava do jornal uma notícia a respeito. Como nenhum dos repórteres tivesse tempo naquele dia, o próprio conferencista escreve a notícia, a ser publicada anonimamente, e lida depois no jornal “como um elogio valioso, isto é, nascido de entusiasmo sem dependência com a pessoa”:

Foi um duplo triunfo, terminava assim a notícia, de Veiga Filho e de Napoleão, o último grande homem que a nossa espécie viu, cuja grandeza e cujos triunfos aquele grande artista soube pintar e descrever, jogando com as palavras como um malabarista hábil faz com as suas bolas multicores.45

A distância entre o Napoleão da primeira parte e o da segunda traça o abismo percorrido entre o sonho de grandeza de Isaías e o encontro com a realidade e, em

43 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 177.44 Idem, ibidem, p. 262.45 Idem, ibidem, p. 173.

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termos de narrativa, entre o ponto de partida em falso e o rebaixamento da realidade representada. Lúcia Miguel-Pereira tem razão quando reclama de amesquinha-mento da vida. Entretanto, a sátira acerta um alvo preciso, que é a irrelevância do meio intelectual de sua época. Esse tipo de delírio do literato Veiga Filho devia mesmo acontecer a todo momento, como ainda hoje em meios intelectuais mais acanhados. O problema dessa forma é que o modelo continua pairando, preservado pela abstração do ponto de vista, sobre a comédia de erros. Tanto que Isaías, no fim, depois de tudo, ainda se angustia por não ter sido forte o suficiente para ven-cer todos os obstáculos. Em outras palavras, a forma do romance não atinge Na-poleão, de maneira que, no final, a questão tivesse de ser outra, mais direcionada aos conflitos reais. São agruras inerentes à consequência com que Lima Barreto retomou a grande tradição crítica do romance europeu, procurando com ela dire-tamente tratar a matéria brasileira. Seria preciso que o romance estabelecesse, as-sim, outra normatividade, outro princípio de composição, diferentes daqueles trazidos com o modelo.46 Mesmo assim, talvez porque o romance vá adiante sem desviar das dificuldades formais e mobilize experiências muito presentes, é possí-vel identificar lateralmente outra questão que se apresenta para Isaías e é relevante no conjunto de assuntos e formas do romance, como veremos logo à frente.

Também é digno de nota que o protagonista já tenha perdido suas energias quando chega a entrar em contato com a instituição que está, naquele momento, mais próxima da empresa capitalista moderna, que é o jornal opinativo, no modelo do Correio da Manhã. O jornal O Globo vive de sua venda de exemplares, sem ne-nhuma subvenção do governo, e tem uma linha de atuação que visa o grande público. Isso interfere na linguagem, no tratamento das matérias, na escolha dos assuntos etc. Por sua vez, a grande tiragem também favorece a manipulação do público e a conquista de uma significação política.47 Toda essa gama de interesses, razoavelmente variada, não tem uma interseção com a experiência de Isaías, que permanece seu expectador. A condição de contínuo o coloca em uma situação de quase invisibilidade, que só muda por obra do acaso, quando Isaías vai avisar a

46 Para Roberto Schwarz, a viravolta machadiana para a fase madura implica abandonar os prin-cípios de composição importados com o modelo, da maneira como o escritor pratica ainda na pri-meira fase de sua obra, e submeter a forma do romance a uma lógica capaz de fazer jus à gravitação das idéias no Brasil (cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, São Paulo, Duas Cidades, 1990; Idem, “A viravolta machadiana”, Novos Estudos Cebrap, n. 69, p. 15-34, julho, 2004).

47 “Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais. […] Cada qual mais queria, ninguém se queria submeter nem esperar; todos lutavam desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de ceri-mônias, nada de piedade; era para a frente, para as posições rendosas e para os privilégios e conces-sões. Era um galope para a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e inimigos, parentes e estranhos.” O jornal participava do jogo pela manipulação política, “indústria” em que se conti-nuou fazendo dinheiro à margem do código, após as aventuras do encilhamento (cf. Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 190-1).

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Loberant, no bordel, do suicídio de um repórter. Pego em situação constrangedora, o diretor passa a prestar mais atenção no jovem humilde. Descobre então o bom nível intelectual de Isaías e oferece-lhe o cargo de repórter, pelo qual ele se esforça e luta, inclusive fisicamente. Mesmo no período em que atua na redação, nosso herói adapta-se sem maiores problemas e não se perturba propriamente pela su-perficialidade, rebaixamento, fisiologismo, a que o obriga o trabalho. Isaías não se distingue e até aprende com os colegas as artimanhas de redação. Outros colegas é que protagonizam conflitos com a forma de trabalho do jornal. Floc, o crítico literário, enfrenta a dificuldade crescente de escrever de improviso, sob a pressão da hora, e termina suicidando-se na redação. Também o revisor Lobo tem um fim trágico, pois a mania das regras gramaticais leva-o à loucura, principalmente num meio em que o purismo atrapalha. Embora haja muito de caricatural nos dois, eles são inadequados de uma maneira que Isaías não será, ou seja, na medida em que certas características pessoais ou idiossincráticas conflitam com as formas da racio-nalização burguesa. O suicídio de Floc é apreciado pelo narrador como contrapeso positivo à dissolvência do jornal, mas o caso isolado é claramente incapaz de se afirmar frente ao desmonte promovido pela sátira até ali.

O grande jogo do dinheiro e do poder aparece agora sim como forma dissol-vente, da qual o jornal faz parte. Isaías também participa indiretamente como re-pórter e beneficia-se dele quando se torna o favorito e companheiro de farras do proprietário do jornal. A prodigalidade do chefe garante-lhe um período de vida cheio de consideração, dinheiro e mulheres. Apenas nessa situação, não na do tra-balho em si, surge o sentimento de inadequação: “Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo”.48 Para fugir à dependência completa, que lhe fere um resto de orgulho, recorre mais uma vez à mediação do favor e pede ao influente Loberant que lhe arranje com o ministro um emprego de escrivão no interior. Assim, em todo o romance, Isaías nada consegue por si mesmo, encenan-do, tanto na forma realista quanto na satírica, apenas o fracasso de seu desejo de au todeterminação.

A onipresença da proteção, numa obra que parte do indivíduo livre e digno, é tanto mais curiosa porque esse não é seu foco. A intenção das Recordações até o fim é mostrar que o consenso da sociedade sobre a incapacidade do negro ou do mulato mina a sua visão de si mesmo e a sua força interior. A história de Isaías é a prova desse consenso, mas vai adiante. Fragilizado, nosso herói é jogado sem salvaguardas nas várias peripécias da loteria do favor, de maneira que ora passa fome, ora vive na abastança, sem poder atribuir aos seus atos a boa ou a má fortu-na, que está nas mãos de outros sujeitos (Dr. Castro, o delegado, Agostinho Mar-ques, Gregoróvitch, Loberant).

Nessa chave, não é possível mesmo construir uma experiência de si. Mas, como venho indicando ao longo do artigo, o romance de Isaías constrói outra li-nha de conflito, não explícita, em que outra história se passa. Nela, Isaías sai de

48 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 282.

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casa para traçar a trajetória de Napoleão, a do pai, e, como diria Walter Benjamin, a de todos os vencedores. Mas acaba percebendo que as pessoas o veem como à mãe. Em boa parte do romance, ele procura fugir desse destino, no qual não quer se reconhecer. Debruçado em sua janela, no quarto de cortiço, o contínuo do jornal observa os vizinhos com incompreensão e piedade: “Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificul-dades”.49 Mas ele prospera, inesperadamente, torna-se protegido de um dos ho-mens mais poderosos da República, em que se reúnem num só tempo as imagens do pai e de Napoleão. Nesse momento, entretanto, sente o “falso” e a “exceção” do lugar que ocupa. Decide desistir de tudo e até para isso precisa de Loberant. No fim do romance, sem ordem de tempo precisa, está o passeio à Ilha do Governador, com Leda, uma italiana, e o chefe. Lá os três entram pela mata até perderem a noção do caminho, e chegam a uma casa, que lembra a Isaías a sua, da infância: “Era o mesmo aspecto, baixa, caiada, uma parte de tijolos, outra de pau-a-pique”. Logo a seguir, na venda, enquanto comem alguma coisa, vêm-lhe mais lembran-ças: “Fomos servidos em velhos pratos azuis com uns desenhos chineses e as facas tinham aquele cabo de chifre de outros tempos. À vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância”.50 A traves-sia da volta completa o reconhecimento do herói:

Voltamos de bote para a ponta do Caju. Durante a viagem a angústia avolumou-se-me. As pás dos remos, caindo nas águas escuras, abriam largos sulcos luminosos de minúsculas estrelas agrupadas e todo o barco vogava envolvido naquele estrelejamento, deixando uma larga esteira fosforescente.

Lembrava-me da vida de minha mãe, da sua miséria, da sua pobreza, naquela casa tosca; e parecia-me também condenado a acabar assim e todos nós condenados a nunca a ultrapassar.51

Nesse final, Isaías ainda vê depois, da carruagem, uma mulher sendo levada por dois soldados. Reconhece nela a amante do Dr. Castro e, sem saber por quê, julga-se culpado por sua desgraça. As cogitações e angústias de Isaías concentram-se na autoconsciência de sua fraqueza, adequadas ao enredo de primeiro plano. Elas desviam entretanto a atenção de outro reconhecimento, que Isaías não chega a formular, mas está no centro dessas últimas páginas: o reconhecimento de si mesmo na mãe e, a partir dela, com todos os vencidos (todos nós). Se estou certa, as Recordações conduzem uma outra linha de sentido, desenvolvida tenuemente, em que se trata do problema do intelectual brasileiro pobre, mulato, em sua for-mação e definição ideológica. O barco em que Isaías faz a travessia para casa voga entre as estrelas refletidas. A beleza desse romance desigual está na força de retirar algo para si, apesar de tudo, quer dizer, do meio de todas as inadequações, fazer

49 Idem, ibidem, p. 223, grifo meu.50 Idem, ibidem, p. 287.51 Idem, ibidem, p. 287, grifo meu.

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cintilar uma questão relevante para o próprio destino. Para onde se vai com isso, fica em aberto.52 Não por acaso, o romance termina com a mesma imagem que inicia o livro A teoria do romance de Lukács: “Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos”.53

52 O romance deixa em aberto se o autorreconhecimento individual de Isaías terá alguma conse-quência, mas o problema proposto tem ressonâncias coletivas e históricas importantes, basta lembrar que as décadas seguintes promoveriam uma mudança forte de orientação intelectual, que incluiu o “desrecalque localista” dos anos 1920, o “sopro de radicalismo” do romance e da análise social dos anos 1930, uma crescente “ida ao povo” e a consciência crítica do subdesenvolvimento (cf. Antonio Candido, “Literatura e cultura de 1900 a 1945 (Panorama para estrangeiros)”, in Lite-ratura e sociedade, 8.ed., São Paulo, T. A. Queiroz, 2000, p. 109-38; Idem, “O significado de Raízes do Brasil”, Prefácio (1967), in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 10.ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1977; Idem, “Literatura e subdesenvolvimento”, in A educação pela noite & outros ensaios, op. cit., p. 140-2; Idem, “A revolução de 1930 e a cultura”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 27-36, abril 1984). Neste último ensaio, sobre os anos 1930, Candido refere-se especi-ficamente à situação do negro: “a radicalização propriamente dita, crítica e ‘progressista’, teve como traços mais salientes, além da ‘consciência social’, a ânsia de reinterpretar o passado nacional, o in-teresse pelos estudos sobre o negro e o empenho em explicar os fatos políticos do momento. Quanto ao negro, é preciso mencionar a iniciativa cultural dos próprios ‘homens de cor’, que inclusive cria-ram então uma imprensa muito ativa, não raro ligada a organizações como a Frente Negra Brasileira” (Idem, ibidem, p. 32).

53 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, op. cit., p. 289.

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REALISMO E PERDA DA REALIDADE: O NATURALISMO DE ZOLA

SALETE DE ALMEIDA CARA

Universidade de São Paulo

Resumo O romance Au bonheur des dames, de Émile Zola, confere ao próprio consumo a centralidade que passará a ter em relação ao sistema de produção no mundo contemporâneo. O pre-sente ensaio pretende examinar de que modo a mercantiliza-ção da vida está configurada na forma desse romance, no âmbito do legado realista que o escritor deixa aos prosadores que o sucederam.

Abstract Émile Zola’s novel Au bonheur des dames gives to consumption itself the central role it would take vis-à-vis the system of produc-tion in the contemporary world. Our purpose is to examine in which way this novel renders life’s merchandization, viewed in the context of the realistic legacy the author hands down to sub-sequent prose writers.

Palavras-chave Prosa realista; mercantilização; encenação épica; enredo romanesco.

Keywords Realistic prose; merchandization; epic dramatization; novelistic plot.

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A prosa de Émile Zola desafia o leitor e pode mesmo enganá-lo, pelo modo como apanha sua matéria no exato momento em que ela tomava novas configura-ções e, portanto, exigia novas formas narrativas. Em cada um dos romances e no conjunto que eles armam, o tempo da narrativa e o dos anos em que o escritor trabalhou na sua construção têm, ambos, presença decisiva na exposição desafia-dora do processo de mercantilização da vida ditado pelo capital, que começara a se internacionalizar sob Napoleão III. Em Au bonheur des dames (1883), que vou aqui examinar, o processo é exposto de modo particularmente curioso pela forma do romance, desafiando o leitor de hoje, que vive em grau extremo a mercantili-zação dos seus próprios desejos.1

Nos romances do ciclo dos Rougon-Macquart, Zola mostrou que suspeitava das promessas de autonomia do sujeito nos termos do desenvolvimento de um processo histórico, de ordem política, desconfiando também que os melhoramen-tos da vida moderna não iriam poupar meios de evitar que a fatia da vida mais espoliada perturbasse a sua marcha. O que, de certo modo, estava nos romances de Balzac. Mas, não à toa, Zola chamava fantasmagoria ao excesso de imaginação balzaquiana, que o irritava. O enredo amoroso (na falta de termo melhor) de Au bonheur des dames sinaliza bem a distância que ele toma de enredos que ainda pres supunham a existência de uma liberdade humana massacrada pelos interesses da máquina burguesa.

1 O ciclo dos Rougon-Macquart se passa entre 1850 e 1874 e traz a experiência do II Império de Napoleão III (1852-1870). Concebido nos fins dos anos de 1860, foi escrito e publicado entre 1871 e 1893, durante a III República, inicialmente capitaneada por Thiers, o responsável pelo massacre da Comuna de Paris em 1871. Trata-se da República de uma burguesia “hoje enlouquecida com as revoluções que vêm de baixo”, escreve Lissagaray no prefácio à segunda edição do seu livro, em 1896, referindo-se ao acirramento das lutas dos trabalhadores por seus direitos (ver Prosper-Olivier Lissagaray, História da Comuna de 1871, Trad. Sieni Maria Campos, São Paulo, Ensaio, 1991).

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O passo dado pelo romance de Zola elimina essa dualidade, e é bem maior do que leva a pensar a referência que faz Theodor Adorno ao romance naturalista, ao comentar a avaliação de Engels, que prefere Balzac a “todos os Zolas passados, presentes ou futuros”. Embora Adorno se refira àqueles momentos nos quais se daria uma “representação dos fatos sob a forma de protocolo”, creio que a prosa de Zola vai mais longe, como mostra Au bonheur des dames, romance que dá ao próprio consumo a centralidade que passará a ter em relação ao sistema de produção indus-trial no mundo contemporâneo, mostrando o início de um consumo de massa (implicando rapidez na substituição dos estoques e novos modos de exposição das mercadorias), justificado por uma pretensa democratização do comércio de luxo.2

Centralidade que desestabiliza, pela mediação das mercadorias, o caráter es-sencialista de valores que sustentavam o projeto burguês de harmonia social (os bons propósitos morais do indivíduo, a dependência entre mérito e sucesso, a ma-nutenção das diferenças de classe social, entre outros), em relação aos quais o ro-mance naturalista de Zola estabelecia uma distância crítica, na medida mesma em que punha sob suspeita o modelo de trama romanesca que os valorizava, escamo-teando justamente a complexidade de um sistema econômico que tinha interesse nessas encenações maniqueístas, ainda que, nelas, os seus próprios agentes apare-cessem como vilões. Em Au bonheur des dames não há vilões no sentido romanesco. O que se passa?

Nos anos de 1880, Zola escreveu romances como Nana (1880), Pot-Bouille (1882), Au bonheur des dames (1883), Germinal (1885) e La Terre (1887). No míni-mo, essas obras dão a ver que não é de natureza simples a presença constitutiva da experiência na forma de romances que não tinham no seu horizonte a imediatez da empiria, apreendendo seus objetos enquanto processo, isto é, enquanto trans-forma ção e permanência de estruturas sociais, onde aos destinos humanos não caberiam previsões nem leis inevitáveis (como, de resto, Zola expôs nos seus tex-tos críticos).3

2 “Quando ele prefere Balzac a ‘todos os Zola passados, presentes ou futuros’, ele não quis fazer alusão senão àqueles momentos nos quais o primeiro é menos realista do que seu sucessor cientista, que não substituiu por acaso o conceito de realismo pelo de naturalismo. [...] Mas quando o natura-lismo dedicou-se à representação dos fatos sob a forma de protocolo, o dialético também se alinhou ao lado do que os naturalistas baniam como metafísica, rebelando-se contra a educação automática do gênero humano. De fato, a própria verdade histórica não é nada mais do que esta metafísica que aparece e se renova pela demolição permanente do realismo. É justamente a fidelidade de fachada de um procedimento purificado das deformações balzaquianas que pactua, na indústria cultural como no realismo socialista, com as intenções introduzidas de fora, que não conseguem nem por um se-gundo reverter a narrativa balzaquiana: o protocolo se justifica em relação a acontecimentos corroí-dos, mas, em literatura, todo planejamento representa a tendência dominante. [...] Para ele [Engels] a grandeza de Balzac se revela justamente nas apresentações que se opõem às suas próprias simpatias de classe e de seus preconceitos políticos, e que desacreditam a tendência legitimista” (ver Theodor Adorno, “Lecture de Balzac”, in Notes sur la littérature, 5.ed. Paris, Flammarion, 1984, p. 95).

3 Nesse momento a ideologia liberal-republicana de progresso e coesão social procurava desqua-li ficar os conflitos entre classes sociais, que resultavam da organização dos trabalhadores, enquanto recuperava o impulso industrial, inaugurado pelo II Império com a construção de ferrovias e fabricação de trilhos de aço, seriamente abalado com as perdas financeiras trazidas pela guerra franco-prussiana.

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Pode parecer estranho dizer que Au bonheur des dames traz uma contribuição particular a essas relações ao embutir num desfecho aparentemente feliz o fracasso do indivíduo, pondo em evidência o caráter corrosivo das relações mercantis que o colonizam, ainda que se chame integridade à sua subordinação cordata aos de-sígnios do capital. É assim, no entanto, que Au bonheur des dames compõe o quadro pressuposto pela prosa de Zola como etapa final do romance realista. Resta saber de que modo ele o faz. Se o romance de Zola depende do espaço das grandes lojas, que sua prosa chama “novos templos”, as relações que ali se dão são expostas pela convivência tensa entre aquilo que revela a épica de um horror domesticado, e aquilo que pretende ocultar uma intriga melodramática.

A matéria de vasto assunto dos seus romances exigia encenação epicizante, e o escritor encontrou na prosa de Flaubert um aliado: não se interessar pelo roma-nesco, pela “invenção extraordinária”, pela intriga ainda que a mais simples (o que dizer das rocambolescas e surpreendentes?), pela construção de heróis, pela presença excessiva do autor impedindo as conclusões do próprio leitor. Tais reso-luções de conteúdo e forma, às quais Zola deu desdobramentos, não dependeram do abandono do otimismo quanto ao futuro ou de uma perspectiva revolucio-nária do próprio escritor. Ao discorrer sobre suas expectativas, Flaubert sacudia os ombros (“quando eu afirmava minhas crenças no século XX, quando eu dizia que nosso vasto movimento científico e social devia resultar numa plenitude de humanidade...”).4

Ainda que Zola apostasse no projeto de harmonia social com lugar para as ditas virtudes filantrópicas, no qual se empenhava o liberalismo conservador da III Re-pública, é complexa a tensão formal que atravessa Au bonheur des dames. O roman-ce se passa entre 1864 e 1869, e mostra a vida num grande magazine com estoques a preço baixo e enorme variedade de mercadorias, do tipo daqueles que encontra-ram seu espaço na Paris do II Império, transformada pelo prefeito imperial Hauss-mann, e cuja reforma se tornou símbolo de modernidade urbana de alcance inter-nacional (não só pelas técnicas de engenharia empregadas na reconstrução da cidade, mas também porque a reforma retirou os pobres do centro da cidade). As grandes lojas de departamento ganharam impulso durante a III República.

Walter Benjamin viu esse tipo de loja como herdeira das antigas passagens pa-risienses – galerias cobertas que serviam ao luxo industrial, desde o início do século

4 No caso da Comuna de Paris que, como escreveu Prosper-Olivier Lissagaray, em 1876, foi um movimento da classe trabalhadora, patriotas republicanos massacrados, banidos e renegados por republicanos, e que Émile Zola tratou em La débâcle (1892), o resultado foi o fracasso do narrador e a configuração de uma crise da forma do romance. Em Marx, Zola e a prosa realista, procurei mos-trar as condições objetivas das dificuldades de Zola (ver Salete de Almeida Cara, Marx, Zola e a prosa realista, São Paulo, Ateliê Editorial, 2009). Enquanto La débâcle configura a Comuna de Paris como um impasse formal que o escritor não supera, os demais romances do ciclo mostram o alcan-ce crítico de sua prosa numa faixa de temporalidade mais ampla do que a do II Império. Cabe lem-brar que trinta anos antes, no romance de Flaubert A educação sentimental (1862), os massacres de 1848 estavam presentes pelo viés de um jovem burguês afeito às musas, cuja posição indiferente e centrada em aventuras pessoais o escritor mostrou com ironia, segundo a leitura de Dolf Oehler.

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XIX. “As passagens como templo do capital mercantil”, escreve Benjamin no seu estudo sobre o papel da forma mercadoria na vida dos homens. “Pela primeira vez na história, com a criação das lojas de departamentos, os consumidores começaram a sentir-se como massa (antigamente, só a escassez lhes dava esta sensação). Com isso aumenta consideravelmente o elemento circense e teatral do comércio”.5

Os anacronismos do “templo do consumo” criado por Zola no romance (luz elétrica, projeto arquitetônico da loja, e mesmo a derrocada do pequeno comér-cio) já foram bastante comentados. Mas, além disso, chamam a atenção os funda-mentos modernos que iriam sustentar o aperfeiçoamento daquele tipo de comércio capitalista. Opondo-se ao pessimismo dos homens cultivados e blasés que iriam compor a fisionomia finissecular, o empreendedor Octave Mouret, proprietário do magazine, defende com entusiasmo as carreiras que se abriam aos homens práticos, “quando o século inteiro se lança para o futuro”, e se alia ele próprio ao capital bancário, por sua vez aliado do poder público que administra a cidade, todos co-mungando nos interesses do capital.6

Uma questão decisiva depende também de uma perspectiva crítica de proble-mas que se mostrarão duradouros, e se referem às crescentes e abissais diferenças, que são de classe social, entre as chances de exercer o que se considera “vontade livre” dos sujeitos – conceito do qual se abusa muito, mas que não é medida de nenhum fenômeno. A esse respeito, o leitor poderá encontrar, em outros roman-ces de Zola, mais material para uma reflexão sobre a pretensa liberdade da vontade, no limite impossível, a exemplo de Germinal, de 1885. O desfecho de Germinal faz pensar que a “vontade livre” não é a mesma para os operários da mina de carvão e para o futuro jornalista Étienne Lantier.7

O assunto está também em Au bonheur des dames. O comércio de novidades é tributário de concepções de tempo de trabalho plasmadas pela indústria como experiência propriamente moderna e promissora. Mas será possível ir além de uma tese sobre a humanização da atividade comercial como “o embrião das gran-des sociedades trabalhadoras do século vinte” (como se lê no romance), afirma-ção sempre destacada pela crítica para marcar um juízo do próprio romance sobre o moderno sistema comercial? Se for possível ir além, isso se deve ao modo como Zola expõe, na própria forma do romance, os resultados do alcance do mundo das mercadorias.

5 “Característica específica das lojas de departamentos: os compradores sentem-se como mas-sa; são confrontados aos estoques; abrangem todos os andares com um só olhar; pagam preços fixos; podem ‘trocar as mercadorias’” (ver Walter Benjamin, Passagens, org. Willi Bolle, Belo Hori-zonte, Editora UFMG; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2006, p. 80, 86, 98).

6 Traduzi todas as citações do texto original do romance.7 É como leio o final de Germinal, quando Étienne Lantier parte para Paris, depois de acabado

seu período de “educação” na mina de carvão, indo assumir o papel que lhe está reservado como “ideólogo da revolução” (“raisonneur”). Ele acredita numa revolução próxima, sente ódio da bur-guesia, mas também já se sente incomodado com o “cheiro da miséria”. Retomando seu caminho pessoal, Étienne sonha colocar os trabalhadores na glória, e já se vê “na tribuna triunfando com o povo, se o povo não o devorasse”.

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Pressionada entre um senso de degradação da vida (e os limites de um modelo de prosa) e as ideologias do progresso (que nem sempre as intenções pessoais do artista foram capazes de superar, como confirmam os romances posteriores ao ci-clo dos Rougon-Macquart), a forma narrativa revela contradições que são, ao mes-mo tempo, da matéria e de sua apreensão ficcional. E através da inserção de um material melodramático (ou de uma intriga romanesca) numa prosa de teor épico, sem chegar a ironizar explicitamente a intriga, o romance realista de Zola deixa implícita uma reflexão sobre os desafios formais que iriam se impor às narrativas do novo tempo que se abria.

Se essa questão for deslocada para uma ordem não ficcional, esses desafios, que são os das condições históricas objetivas incrustados nas formas narrativas dispo-níveis, ficarão reduzidos à formulação de apreciações sobre o próprio escritor, ora visto como socialista crítico, ora como liberal otimista, ora como positivista agnós-tico (como prefere Lukács). Donde a necessidade de entender o sentido que assu-me o melodrama que, se usado na sua função canônica, simplesmente traria para o âmbito individual e apolítico o que deveria ser procurado no âmbito das relações sociais, reatando com uma tradição romântica que anula contradições e escolhe a via da fantasia como consolação para as crueldades do mundo. No entanto, não é isso o que acontece em Au bonheur des dames.

Embora o romance seja considerado o primeiro em que Zola dá destaque aos mecanismos capitalistas, observados nos procedimentos dos grandes magazines parisienses, a crítica também tem afirmado que Zola teria visto, no “monstro irre-sistível”, uma saída depois da crise econômica de 1882. “Tudo somado, é possível dizer que Zola, com Au Bonheur des dames, cauciona a utopia e a ilusão dos filan-tropos de seu tempo”, escreve Jeanne Gaillard, num sentido bastante discutível de utopia, que leva em conta a oposição do escritor à reação moralista que, nos anos de 1880, acusava o consumo de luxo de dissolver a moral e os bons costumes (as manifestações alcançavam também a construção do metrô).8

Num estudo recente, o romance é um “relatório darwiniano” das convulsões psicológicas e comportamentais causadas pelo êxito desse tipo de comércio, que provoca tragédia e vítimas com suas condições de trabalho e seu regime de con-corrência brutal, mas também apaixona com o espetáculo das mercadorias e a emoção do consumo. Retomando a interpretação corrente do caráter fabular do enredo – o casamento entre desiguais, a moça pobre (Denise) e o rapaz rico (Mou-ret), Rachel Bowlby detém-se na construção da figura de Denise, que concilia o modelo da “moça maternal” ao da empresária moderna, bem sucedida ao criar melhores condições de trabalho e triunfando sobre a onipotência masculina.

8 Ver Jeanne Gaillard, “Prefácio”, in Emile Zola, Au bonheur des dames, Ed. anotada e estabeleci-da por Henri Mitterand, Paris, Gallimard, 1980. Ao endossar a tese de que Zola estaria defendendo “utopias do seu tempo”, Jeanne Gaillard lembra que iniciativas como seguros para períodos de ina-tividades no trabalho, bibliotecas, cursos de música e de línguas para os empregados tinham sido criadas entre 1872 e 1876 no “Bon Marché”, a loja de departamentos parisiense, por sugestão da mulher do proprietário.

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Na condição feminina caberia também cinismo, já que ela é cúmplice da espe-culação de mulheres e crianças (quando chefe da seção infantil). A interpretação de Bowlby considera que Denise “jamais se imaginou como potencial cliente”, e por isso salva “a família, reinventando-a como fundamento ético de uma instituição capitalista de vastas dimensões”, ao conseguir transformar “a impiedosa lógica econômica”. Cito o parágrafo final de Bowlby: “Transformados pelo amor de uma boa mulher, tanto o homem quanto o grande magazine avançam para um século XX que confirmará as intuições antecipatórias de Denise, mãe-gerente de um grande empreendimento econômico atento ao bem-estar social”.9

Em resumo, de acordo com as duas interpretações o romance dá soluções, ainda que de alcance diversos. Na primeira delas, ratificando uma ideologia do seu tempo; na segunda, apreendendo uma totalidade problemática ao prenunciar uma ideologia futura que, no entanto, não parece levar às últimas consequências (por isso mesmo não cabe à interpretação crítica mais do que reconhecer a premo-nição). Seja conformando-se ao otimismo acrítico e individualizante das promessas liberais (Gaillard chega a sugerir que Zola não faz diferença entre aburguesamen-to e socialismo), seja antecipando a manipulação moderna do princípio ético, as duas interpretações levam a pensar na posição paralisante de uma prosa que não incorporaria nenhum ponto de transformação, e manteria a dicotomia entre siste-ma e indivíduo.

Numa outra direção, sugiro que o lado mais instigante do romance, tanto fic-cional quanto político, formaliza uma critica e uma reflexão dupla sobre a matéria e o modo de tratá-la, através da montagem de registros narrativos diversos, sendo que o ponto de transformação é dado pelo próprio desequilíbrio entre eles. Se estivermos interessados em observar o que diz a forma de um romance que faz mais do que transformar o magazine de monstro em benfeitor, sem se esborrachar na prioridade do romanesco, veremos que a coexistência dos dois registros narra-tivos é que problematiza a complexidade da matéria. Uma coexistência tensa e sem solução à vista. Privilegiar a ação dramática, como via de regra se faz, signifi-ca conferir à narrativa um teor regressivo e ingênuo.

No entanto, a forma de um romance só pode fazer pensar pela própria régua e compasso que oferece. Nesse sentido, não se deve perder de vista que a prosa de Zola inclui, programaticamente, a esfera privada no horizonte público. O registro épico mostra o reino das promessas constitutivo das próprias mercadorias, por meio do qual o consumo dá aparência de liberdade à sujeição dos homens (“em seguida foram as lãs escocesas, em diagonal, em relevo, todas as variedades de lã, que ela teve a curiosidade de tocar, só por prazer, já decidida no íntimo a levar qualquer uma”). O procedimento da descrição é aqui a chave para a montagem das cenas narrativas.

O processo de reificação é diretamente proporcional à presença assustadora-mente humana dos objetos e das mercadorias. As imagens concretas e palpáveis,

9 Ver Rachel Bowlby, “O desejo: o paraíso das damas”, in A cultura do romance, org. Franco Mo-retti, trad. Denise Bottmann, São Paulo, CosacNaify, 2009.

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tais como se apresentam aos clientes, sustentam a montagem de cenas que sub-mergem numa temporalidade lenta, priorizando relações erráticas de todos com todos em torno das mercadorias e do consumo, e conferindo um peso aos aconteci-mentos que já não é o previsto numa narrativa centrada na narração como sequên-cias necessárias ditadas pela linha geral da ação.10

As relações entre personagens não são apreensíveis por leis psicológicas e so-ciológicas (como Zola também esclarecia como parte do seu programa), mas acompanham o movimento do cálculo mercantil do qual dependem os aconteci-mentos descritos e narrados, tendo como eixo central os espetáculos que se suce-dem: a massa de clientes (“era um novo espetáculo, um oceano de cabeças vistas em atalhos, escondendo os bustos, fervilhando numa agitação de formigueiro”), as mulheres “pálidas de desejo” e “mãos glutonas” diante das sedas, “pobres mu-lheres sem defesa” diante da renovação dos estoques esteticamente expostos em arranjos vivos de cores e tatos.

Em certo momento, o vestíbulo transformado num magnífico salão oriental, com o luxo de tapetes raros, será isca para consumidores de arte (“A Turquia, a Pérsia e a Índia estavam ali”). E no triunfo final, com as demolições que abrem espaço para mais um “templo construído para a loucura consumista da moda”, a luta será entre os grandes. O banqueiro financia dois magazines, e um deles tem a bela ideia de levar o pároco da Madeleine para benzer a loja (Mouret pensa então em recorrer ao arcebispo). Afinal, é a “a religião do banco” que invade magnifica-mente todas as seções, e as descrições apreendem a própria alma da vida pública de Paris (“o rio humano nadava sob a alma desfraldada de Paris, um grande e doce sopro, onde se sentia uma enorme carícia”).

Nesse registro o leitor é levado a questionar o argumento conservador do fata-lismo abundantemente empregado por Octave Mouret e por Denise, como justifi-cativa da sua ardente defesa do empreendimento comercial a cuja lógica econômica eles são servis. Se assim for, Zola inverte os próprios termos de um romance e de uma recepção aferradas às aparências e coniventes com os termos de uma felici-dade privada mercantilizada, que, afinal, bloqueia todo movimento genuíno de insatisfação e inconformismo social.

Mas esse fatalismo encontra resistência entre os pequenos comerciantes massa-crados que lutarão até que suas forças se esgotem, sem compactuar. Neles, a obses-são pelo grande magazine é de outra natureza, enquanto a identidade de De nise é forjada, desde o início da narrativa, nas suas relações com o magazine e a partir do seu desenraizamento da própria classe social, a favor do capital, alegorizado pelas relações com a família do tio Baudu e com os outros comerciantes que, prestes a serem dizimados, ainda a acolhem fraternalmente em momentos de necessidade.

10 A análise de Antonio Candido do romance L’Assommoir (1877) leva em conta o sentido des-sa inversão para a exposição do estado psíquico e dos comportamentos das personagens, onde os elementos que poderiam parecer acessórios na narrativa, constituídos pela descrição, são, na verda-de, mediações decisivas para o caráter simbólico dos espaços do bairro operário (ver Antonio Can-dido, “Degradação do espaço”, in O discurso e a cidade, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1993).

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Apesar da extensa documentação histórica de que sempre se valia Zola, o massacre dos pequenos proprietários é anacronismo com função estrutural, e não se limita a opor passado e presente para tomar partido do progresso que tem Denise como heroína e musa.

O outro registro, incrustado no primeiro (e que pode ser visto como excrescên-cia, ou como resíduo de uma forma anterior), é o do andamento melodramático, que destaca uma jovem pobre, sofredora e bondosa, mas também destemida, com senso das oportunidades e tino comercial-amoroso profundamente ético. Tensio-nado pela contiguidade com o registro épico, ele não sustenta o enredo de final feliz como solução das contradições da matéria e da forma. Ainda que essa coexis-tência possa parecer uma má resolução, qualquer objeção desse tipo será revertida se atentarmos para o sentido do conjunto, uma estranha e esgarçada totalidade.

O melodrama narra a aceitação subserviente do fatalismo destrutivo do pro-gresso que o romance não escamoteia, dando a ver Denise engolida “pela lógica dos fatos”, apesar dos horrores que presencia (“Há muito tempo ela mesma estava presa nas engrenagens da máquina. Pois ela não tinha sangrado?). Ao escolher Mouret, depois de viver a tragédia coletiva, lemos:

A força que varria tudo, a carregava junto, a ela, cuja presença deveria ser revanche. Mouret tinha inventado esta máquina de massacrar o mundo, cujo funcionamento brutal a indignava; ele tinha semeado ruínas no bairro, despojado uns, matado outros; e ela o amava justamente pela grandeza de sua obra, ela o amava ainda mais a cada um dos excessos do seu poder, apesar do rio de lágrimas que a excitava, diante da miséria sagrada dos vencidos.

A contradição entre os registros é a figura seminal da prosa, que dá a ver o cerne da experiência moderna nas próprias artimanhas narrativas que se valem da ideia do ímpeto progressista da natureza humana. Desse modo, qualquer aposta autoral perde todo o interesse diante da força da prosa que revela os bas-tidores de uma negação que, ilusoriamente, acredita encontrar satisfação justa-mente ali onde a sua própria experiência subjetiva já não pode existir, como é o caso exemplar de Denise, retalhada entre a paixão pelo andamento dos negócios e a experiên cia cruel do seu caráter predatório, demolidor e mortal em relação à sua própria classe social, sem deixar de optar pelo primeiro: essa a “mãe-gerente” a que se refere Rachel Bowlby.

A descrição das mercadorias e das atividades implicadas no comércio moderno torna-se, portanto, ela mesma, a linha narrativa principal e o móvel das emoções, sentimentos e relações intersubjetivas. A alegoria que o romance monta, contando com o viés melodramático como uma antinarrativa, apanha as figuras do proprie-tário, empregados, clientes, pequenos comerciantes, investidores financeiros e fornecedores enquanto tipos constitutivos de um processo, o mercantil, localizados em lugares diferentes no sistema de produção e consumo, e sem os quais seria im-pos sível sua sistematização ficcional.

Não é pouca coisa observar que, num romance realista escrito nos anos de 1880, apenas o registro melodramático possa satisfazer ao desejo de um final feliz. A paixão, se é que a narrativa trata disso, será impossível sem o comércio e o lucro

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(“aquela força que transformava Paris”), que o registro épico impiedosamente desmonta ao narrar o triunfo das mercadorias (“a seção das sedas era como um quarto de amor, drapeado em branco por um capricho de uma apaixonada nua como a neve, desejando combater em brancura”).

É sempre o magazine, motor em plena marcha, que agarra e congrega imagi-nações e tem o poder de dar sentido a existências sem dignidade e a mortes que revelam a vilania (“A senhora Baudu manteve os olhos fixos, cheios da visão do monumento triunfante, daqueles vidros límpidos, atrás dos quais passava um ga-lope de milhões [...] e quando eles se apagaram na morte, continuaram ainda abertos, olhando sempre, embaçados por espessas lágrimas”).

Como em outros romances do ciclo, as referências a encenações teatrais exi-gem posição ativa do espectador-leitor: em vez da unidade tradicional e da drama-tização de pontos de vista individuais, o que se tem é o desmascaramento de um espetáculo de falseamento ideológico, com uma multidão de atores. As atitudes de comando direto e eficiente de Octave Mouret alegorizam a ideologia do trabalho que rege o novo comércio, costurada por poses de “patrão humano” e pela ence-nação de relações pessoais que ratificam a gratidão dos empregados, que dependem do interesse do capital para “satisfazer as paixões” (“Mouret entrou em cena para fazer o papel de bom príncipe”, ele “que adorava lances teatrais”).11

Duas referências ao falanstério tratam de distanciá-lo da utopia de Charles Fou-rier – sociedades coletivas brotando de um ímpeto natural, que seriam anônimas e com divisão de lucros – e de atrelá-lo aos mecanismos de mercado, insistindo na contradição como figura-chave da narrativa: a aposta piedosamente otimista do registro romanesco, cuja realização depende de agentes individuais, aposta também nas condições da sua impossibilidade. Antes das conquistas de Denise, o falanstério é máquina infernal que engole a todos (“Todos não eram mais do que engrenagens, eram levados pela máquina, abdicando de sua personalidade, adicionando simples-mente suas forças, ao todo banal e poderoso do falanstério. Apenas lá fora, a vida individual reaparecia, com a brusca chama das paixões que acordavam”).

E quando alimentado pelo sonho de “melhorar o mecanismo” comercial, de criar uma “cidade do trabalho” onde cada um “teria sua parte exata dos benefícios, segundo seus méritos, com a certeza do amanhã assegurada por um contrato”, o que dará à máquina poder ainda maior, quase divino, o falanstério depende de “argumentos tirados do próprio interesse dos patrões” e virá como expiação pelas desgraças e mortes, para as quais Denise encontra explicações, ingênuas ou cínicas, no confronto com o registro épico da tragédia coletiva (“Sim, era a parte do sangue, toda revolução fazia seus mártires, só se marchava em frente sobre os mortos”).

Na verdade, trata-se de sair do mesmo para voltar ao mesmo: esse o diagnós-tico da prosa. Como dirá uma cliente sobre o magazine, ele “é um mundo [...] Não se sabe mais onde se está”. Um mundo em constante movimento, onde a certa

11 Um outro exemplo de referência teatral trabalhada de modo diverso, mas também com sen-tido crítico, é a pontuação irônica e caricata das encenações que são do agrado da burguesia de Passy, que nelas procuram um ideal de autenticidade e sinceridade, em Une page d’amour (1878).

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altura já nada se distingue de nada, nem pessoas nem mercadorias, todas despeda-çadas num festival comum de partes de uma engrenagem. Nas vendas de inverno ou de verão, nas exposições das novidades da estação, ou na inauguração de novas lojas que entronizam definitivamente o poder das estruturas de ferro, “a Indústria e o Comércio se dão as mãos” e a clientela se diversifica, “todos febris pela mesma paixão” que lhes traz a extrema e eterna felicidade do consumo, além de refrescos e salas de leitura. Mais tarde serão concertos executados por um grupo de empre-gados e divulgados junto ao público.

Destaco o comentário descritivo do narrador sobre a lógica que desperta “no-vos desejos” e novas necessidades na própria carne das mulheres, numa “demo-cratização do luxo” que, a rigor, é movimento frenético e cotidiano que alimenta a ilusão de luxo para todos e, sobretudo, alimenta o capital (“o capital sempre renovado”). Talvez seja possível transcrever, entre tantos, um trecho que configura o objeto da narrativa, passando pela animada descrição de procedimentos comer-ciais (fornecedores, estoques, números, organização dos departamentos, promo-ções, premiações que levam os empregados a mergulhar “apaixonadamente no trabalho” procurando erros nas notas de débitos).

No ar imóvel, onde a sufocação do aquecedor amornava o cheiro dos tecidos, o burburi-nho aumentava, feito de todos os barulhos, dos passos contínuos, das mesmas frases cem vezes repetidas em volta dos balcões, da moeda sonante sobre o couro das caixas assentadas numa desordem de porta-níqueis, de cestos rolantes onde as cargas dos pacotes caíam sem cessar em grandes porões. E, sob a poeira fina, tudo acabava por se confundir, não se reconhecia mais a seção das sedas; abaixo, a seção de aviamentos parecia inundada; mais distante, nos tecidos de algodão branco, um raio de sol, vindo da vitrine da rua Neuve-Saint-Augustin, parecia uma flecha de ouro na neve; aqui, na seção de luvas e lãs, uma massa espessa de chapéus e arranjos de cabelo bloqueava os fundos da loja. Não se viam nem mesmo os vestidos, apenas os pentea-dos flutuavam, entulhados de plumas e fitas; alguns chapéus de homens eram manchas negras, enquanto a tez pálida das mulheres, de fadiga e calor, tinha a transparência de camélia.12

Como apanhar o sentido mais fundo e perturbador da sensação de segurança das pessoas por pagar preços fixos pelas mercadorias, da sensação de liberdade por poder trocá-las depois de compradas, da sensação de domínio e poder ao abar-car com um só olhar todos os andares da loja, além de ter contato direto com grandes estoques? Como narrar as promessas das mercadorias de integrar e satis-fazer a todos para sempre? Como conciliar tudo isso com uma aposta no novo comércio – “uma nova religião”, onde o proprietário reinava “com a brutalidade de um déspota” – tido como fator de progresso e de conquista de direitos?

12 “O realismo ao qual aspiram também idealistas, não é primário, mas derivado: o realismo por perda da realidade. Uma literatura épica que não controla mais as relações de objeto que ela procura apanhar e fixar é obrigada a exagerá-la pela sua atitude de descrever o mundo com uma precisão excessiva, precisamente porque ele tornou-se estranho, porque não se pode mais tocá-lo com o dedo. Esta nova objetividade que, mais tarde, será levada à dissolução do tempo e da ação, uma conseqüência muito moderna em obras como Le Ventre de Paris, de Zola, já contém no procedimen-to de Stifter e mesmo nas formulações do velho Goethe, um núcleo patogênico, o eufemismo” (ver Adorno, “Lectures de Balzac”, op. cit., p. 92).

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A decisão de Mouret pelo casamento (“a santidade necessária”) se mescla à euforia por haver alcançado o lucro de um milhão num único dia. Denise vê o dinheiro na escrivaninha. Enquanto ela ainda negaceia, “aquele milhão imbecil” os espreita (“inútil”), mas é sobre ele que Mouret se senta enlaçando Denise que, afinal, consente. Os anti-heróis Denise e Mouret são atravessados pela mercantili-zação generalizada, que apanha um Mouret antes de tudo lógico na consecução dos interesses financeiros e amorosos (“Então ele lhe tomou as mãos, disse numa explosão de ternura, depois da indiferença que havia se imposto: – E se eu a espo-sasse, Denise, você partiria?”). Seus suspiros pela inutilidade da fortuna diante das negativas de Denise compõem um tipo que só tem sentido na prosperidade dos negócios (para a qual Denise contribui).

Contrariando a lógica mercantil que rege as ditas relações de afeto, que dá se-gurança e atende aos interesses de um e de outro, é o tio Baudu quem, espoliado dos próprios afetos e trabalho e vivendo num sanatório, tinha sido capaz de comentar o que a narrativa expõe ao incorporar um enredo melodramático à encena ção épi-ca realista. Numa ocasião em que, mais uma vez, Denise lhe tinha exposto suas ideias sobre as “necessidades dos tempos modernos”, a inevitabilidade do progres-so, “a grandeza das novas criações, enfim o bem-estar crescente do público”, ele dissera: “Tudo isso, são fantasmagorias”. E completando seu juízo: “Não há senti-mento no comércio, há apenas cifras”. Au bonheur des dames é um desafio às novas configurações da interdependência inevitável entre relações subjetivas e sociais.13

13 Sobre a fantasmagoria das mercadorias, Walter Benjamin fala em “atualidade eternizada”, retomando a ideia de fetichismo em Marx, a saber, a ocultação e, por isso mesmo, a eternização do processo de exploração do homem através da transformação do produto do seu trabalho em merca-dorias cambiáveis entre si.

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REALISMO E INTROSPECÇÃO NO ROMANCE DE CORNÉLIO PENNA

SIMONE ROSSINETTI RUFINONI

Universidade de São Paulo

ResumoEste artigo discute a relação entre a concepção de realismo e de introspecção no moderno romance brasileiro a partir dos anos 1930, especificamente na obra de Cornélio Penna, por meio da análise de duas cenas de dois de seus romances: Fron-teira (1935) e A menina morta (1954).

Abstract The article discusses the relationships between the conception of realism and introspection in the modern Brazilian novel from the 30s, specifically of the Cornélio Penna’s work, through the analy-sis of two scenes from two of his novels: Fronteira (1935) and A menina morta (1954).

Palavras-chave Moderno romance brasileiro; realismo; introspecção; Cornélio Penna.

Keywords Modern Brazilian novel; realism; introspection; Cornélio Penna.

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O debate em torno das formas romanescas a partir de 1930 no Brasil deixa entrever a oposição entre engajamento e experimentação por trás da qual se en-contra a urgência em aceder a uma fidelidade ao dado localista. Diante da recep-ção crítica obtida pelos expoentes do romance do período, impõe-se a reflexão sobre a forma literária que não pode ser subestimada nem substituída pelo lúcido ângulo de apreensão da realidade adquirido pela intelectualidade brasileira do período: de que modo o moderno romance brasileiro, a fim de buscar a especifici-dade nacional, cede à tendência antimodernista? Quais as consequências de um realismo cujo caráter documental incide sobre a fatura? Pode a opção pela forma antimimética ser, ainda assim, realista?

Atualizando os termos de uma literatura que nasceu empenhada, a consciência aguda das condições do subdesenvolvimento faz-se representar pelo romance do Nordeste cujo veio predominantemente naturalista buscou comunicar os conflitos mediados pela representação do vencido – o sertanejo, o operário, a mulher, o po-bre-diabo. Escolhido o ângulo prioritário do enfoque, a elaboração estética esteve a serviço sobretudo da comunicação que por vezes levou o romance à proximidade do documento. O retrato do desvalido obteve primordialmente representação rea-lista, de certo modo fiel à lição de Georg Lukács segundo a qual cabe ao romance testemunhar a trajetória do sujeito cujo destino expressa o de uma classe.1 De algum modo, a eleição da mimese do real como esfera privilegiada para plasmar as forças

1 O estilo realista é assunto do ensaio de G. Lukács, Narrar ou descrever, in: Ensaios sobre litera-tura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Ver também G. Lukács, “O romance como epopeia burguesa”, in Ensaios Ad Hominem, São Paulo, Estudos e Edições Ad Hominem, 1999, n. 1, t. II – música e literatura. A pertinência desses ensaios para essa discussão está na defesa da retomada das formas realistas por oposição ao descritivismo naturalista e ao subjetivismo. Embora distante desse nível de discussão estética, a crítica brasileira ajuizou o romance segundo critérios que, ao privilegiar o assunto em detrimento da estrutura, a aproxima da reabilitação do realismo.

“Não o conceito de estreiteza, mas o de amplitude combina com o realismo.”

(Bertold Brecht)

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da vida social legitima a reflexão que mobiliza os pressupostos da estética do crítico húngaro e, por extensão, a daqueles que, na mesma tradição, lhe fizeram frente.

Próximos dos experimentos do romance moderno europeu, centrado na des-centralização do sujeito, na desrealização e na conformação de uma estrutura que captasse o quadro da crise do homem contemporâneo, os representantes brasilei-ros do chamado romance de introversão estiveram à margem da aceitação crítica de sua época cujas exigências baseavam-se num conceito estrito de realismo e de engajamento. Sob tais critérios foram ajuizadas as literaturas de Cornélio Penna ou de Lúcio Cardoso, sem que o imperativo estético ou um novo conceito de rea-lismo pudesse pôr em xeque a legitimidade de suas escolhas. É de notar, contudo, de acordo com a revisão promovida pela historiografia recente do período, que a extrema valorização do romance do Nordeste declina após 1933, configurando um auge um tanto breve cuja contraparte será a longevidade do moderno roman-ce psicológico.2

O debate brasileiro entre neorrealismo e intimismo repõe, a seu modo, a que-rela entre arte engajada e experimentalismo estético, de onde emergem questiona-mentos sobre a relação entre forma e matéria social. As perguntas recaem sobre a capacidade das formas do passado atenderem às necessidades da arte no mundo moderno ou se caberia à arte pós-vanguardista um retrocesso ao realismo oitocen-tista – tais questões glosam o velho impasse a propósito da possibilidade da arte engajada desvincular-se do caráter didático.3

Reposta em outros termos, adequada às exigências do contexto social diverso, trata-se da discussão sobre a legitimidade do viés subjetivista face à denúncia so-cial, o que leva a pensar no conceito de realismo em jogo. Realismo como uma forma historicamente configurada ou como a variedade de modos de que a arte dispõe para melhor aproximar-se do sentido do real? A esse propósito cabe a res-salva de Bertold Brecht de que “se nós percebermos de quantas maneiras variadas a realidade pode ser descrita, então perceberemos que realismo não é uma questão formal”.4 Trata-se, antes, da defesa de certo efeito do real que subjaz às obras que se afastam desse estilo de época. Esse é atacado por Brecht no contexto da polêmi-ca travada com Georg Lukács; para o primeiro, trata-se de uma forma ultrapassada a ser substi tuída por um “novo realismo”, um “autêntico realismo” adequado aos novos tempos.5

2 Luís Bueno, Uma história do romance de 30, São Paulo, Edusp; Campinas, Editora da Unicamp, 2006, p. 15.

3 Walter Benjamin também aponta a presença desse impasse na intelectualidade francesa das primeiras décadas do século XX (ver “Sobre a atual posição social do escritor francês”, in Walter Benjamin. Sociologia: grandes cientistas sociais, n. 50, São Paulo, Ática, 1985).

4 Bertold Brecht. “Amplitude e variedade do modo de escrever realista”, Revista de Estudos Avan-çados, São Paulo, n. 34, p. 275. E ainda: “não o conceito de estreiteza, mas o de amplitude combina com o realismo. A própria realidade é ampla, multifacetada, contraditória; a história cria e recria modelos”,(Idem, ibidem, p. 274).

5 Para Brecht, “as formas do romance de formação de Rousseau ou as técnicas através das quais os Stendhal e os Balzac descrevem a carreira de um jovem burguês, estão já infinitamente ultrapas-sadas, mesmo para descrição dos processos nos quais se insere o homem do capitalismo tardio”

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A polarização entre tendências do romance brasileiro – cujas raízes entron-cam-se na consciência de subdesenvolvimento atrelada ao debate político em cur-so – exige pensar sobre o impasse da adoção das formas da tradição na moderni-dade. Desse modo, o debate sobre estética marxista empreendido na Europa durante os anos de 1935 e 1940 pode auxiliar a reflexão acerca da ideologia das formas que, no contexto brasileiro do período, esteve relegada à dicotomia entre engajamento e intimismo, grosseiramente associados às tendências políticas de esquerda e de direita.

A polêmica europeia do entreguerras procura compreender a função social da arte e do artista expressas pela técnica adotada para a representação literária. Em pauta, a questão da “herança cultural”: qual o papel e o lugar da tradição na elabo-ração estética contemporânea. Defendido por Lukács, o estilo realista tradicional é questionado por Brecht para quem “a antiga técnica, que se nos apresenta como coisa de manual, já esteve em condições de cumprir certas funções sociais, mas deixou de o estar para funções novas”.6 A complexidade e os meandros dessa discus-são em torno da ideologia da estética oferece instrumentos teóricos para se pensar o caso brasileiro sem cair nas velhas dicotomias mobilizadas pela crítica do período.

É de supor se não estaria em uma espécie de estética da identificação – que se aproximaria, em certa medida, da apregoada por Lukács – o impacto da verossi-milhança por vezes desproblematizada do desvalido levada a termo por represen-tantes do romance social brasileiro; ao passo que a uma espécie de desidentificação corresponderia a imagem da subjetividade problemática e da realidade descontí-nua caras à prosa de introversão.7 Assim como as formas correspondem a modos diversos de apreensão da práxis, a recepção que se almeja também participa de uma singular intenção do efeito estético.

Não se deve esquecer, ainda, de que, a despeito das preferências da crítica brasileira do período, muitas das melhores obras não se enquadraram nos pressu-postos das duas vertentes vistas como excludentes e restaram como objetos fora do lugar, o que aponta para a não adesão a modelos consagrados, eventualmente

(João Barrento (org.), Realismo, materialismo, utopia (uma polêmica 1935-1940), Lisboa, Moraes, 1978, p. 123). O problema da forma moderna para Lukács situa-se na apreensão tão só da superfície do real, fragmentariedade que é sintoma de uma aparência e não da essência das relações sociais, incapaz de atingir a “realidade tal como ela é de fato constituída...”; tais obras, reduzidas à imedia-ticidade, não captam “os fatos de mediação que ligam essas vivências à realidade objetiva da socie-dade”. “Trata-se do Realismo!” (op. cit., p. 40 e 44). No contexto dessa polêmica sobre a teoria cul-tural e estética marxista, situa-se o papel da “herança cultural” burguesa, discussão que permite indagar sobre o lugar do realismo e sua legitimidade na arte moderna.

6 Brecht, “Notas sobre a escrita realista”, João Barrento, Realismo, materialismo, utopia, op. cit., p. 121.

7 João Barrento comenta o confronto entre duas concepções da literatura em sua relação com a sociedade: a primeira (representada por Lukács) de fundo mimético que busca a empatia e a se-gunda de caráter aberto (representada por Brecht e Ernst Bloch) que expõe as contradições sem solucioná-las. “De Weimar a Moscovo: a teoria marxista do realismo e da literatura entre as duas guerras” (op. cit., p. 26-8). É possível inferir que a apreensão da crise do sujeito da prosa de intro-versão participa dessa descontinuidade problemática que gera a desidentificação e o choque.

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mais apreciados pela crítica que pelos criadores.8 Com efeito, não é possível restrin-gir a uma ou outra tendência as melhores obras que usufruíram o legado de 30 – vida interior e experiência social coexistem em Vidas secas ou em Fogo morto.

Seguindo a pista de Brecht, percebe-se que a adesão ao realismo propagada por Lukács não foi opinião indubitável dentro dessa tradição crítica cujas posturas afastam-se da valorização do modelo do realismo oitocentista e parecem pergun-tar pela historicidade imanente às formas; seguindo essa preocupação, a retomada do realismo na moderna literatura brasileira estaria, sob outro aspecto, condenada. Trata-se de uma questão de técnica literária, preocupação teórica enfrentada por Peter Bürger em ensaio que discute a posição de Theodor Adorno a respeito da legitimidade das formas do passado na arte contemporânea.9 Para Adorno, se as formas são historicamente condicionadas, a retomada de um estilo do passado implica uma recaída reacionária, incapaz de representar as forças de seu tempo. Bürger intenta opor-se a essa tese reabilitando o retorno à tradição como opção estética que não necessariamente se reduz à recaída conservadora e pode coincidir com retrocessos hauridos de esferas da vida social.

A legitimidade ou impropriedade da adoção das formas do passado é discutida por Bürger a partir da postura de Adorno para quem “o neoclassicismo é denun-ciado ao mesmo tempo como politicamente reacionário”, já que cada “material artístico reflete o estado do desenvolvimento social total”.10 Nessa trilha, cada época disporia de um único material esteticamente adequado à configuração for-mal da especificidade histórica das forças produtivas. Seguindo esse ponto de vis-ta, a estrutura adotada pelo romance social brasileiro constituiria uma regressão incompatível com o olhar que se quer engajado.

No contexto local, essa discussão muda de sinal: coube à retomada do realis-mo no romance do Nordeste boa parte da acolhida que lhe deu a crítica, ao passo que a busca de uma forma diferenciada levada a termo pela prosa de introversão foi praticamente tida como um despropósito. A discussão sobre o caráter ideoló-gico das formas parece mudar de sinal na periferia, o debate a respeito dos conte-údos inerentes às formas é substituído pela questão mais chã do caráter didático do engajamento por oposição a um suposto anacronismo da prosa de análise.

Diante da discussão sobre o lugar e sentido da estética antimoderna, a posição do neorrealismo brasileiro entronca-se numa questão de forma central para a arte moderna. Em pauta o lugar do material artístico do passado na contemporaneida-de, dada a possível assimilação daquele com certo caráter reacionário. As diferen-ças dessa polêmica no cenário brasileiro passam pela inobservância da estrutura artística como mediadora de conflitos, de modo que a literatura pode confundir-se com o documento e meramente espelhar o real. A recepção crítica do romance moderno nos anos 1930 desdiz da primazia da problemática formal; essa é substi-

8 A observação é de Alfredo Bosi citado por Luís Bueno, Uma história do romance de 30, op. cit., p. 38.

9 A esse propósito, ver Peter Bürger, “O declínio da era moderna”, Revista Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 20, 1988.

10 Bürger, “O declínio da era moderna”, op. cit., p. 83-4.

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tuída pela urgência de um conteúdo mais afeito às necessidades da busca do caráter nacional, entendido nesse momento enquanto denúncia das mazelas sociais.11

Dado que o ajuizamento das obras seguia o padrão da denúncia socialmente eficaz e não se pautava pela discussão mais consequente do sentido político das formas, a desatenção com os aspectos formais possivelmente regressivos – como é o caso da adoção da forma realista – não se apresentava como possível força con-servadora. A esse propósito é possível comparar a rejeição a romances de autores católicos e a despreocupação com a retomada das formas do passado nesses mes-mos autores – o que, em certa medida, ocorre em A menina morta.

Nesse contexto – de discussão quanto à politização das formas versus a preva-lência, no cenário local, do retrato do real –, o conceito de realismo tinge-se de nuanças: ora aponta para um aspecto formal específico, enraizado na experiência culta do romance oitocentista, ora refere-se ao conteúdo socialmente engajado dos romances do período. Ao realismo visto como estilo de época ou como retrato do real pode-se opor, ainda, um outro critério, esse tomado à formulação de Brecht: realismo como verdade social.12

Problematizado, o conceito de realismo descola-se da verossimilhança e do caráter didático e pode encampar modos alternativos de representação em busca do conteúdo de verdade imanente à práxis de uma época. Ao afastar-se da carac-terização meramente formal, pode ser entrevisto na especificidade com que deter-minado autor refaz esteticamente a dinâmica histórica. Nesse percurso, a imagem do real pode ser desentranhada da obra de um representante da tendência intros-pectiva como Cornélio Penna. Ao mesmo tempo, e em outra direção, cabe pensar como esse mesmo autor traz para a confecção de seu último e melhor romance a preocupação com o pormenor, retornando à forma realista e tingindo-a de tonali-dades antimiméticas.

A fim de investigar a presença e a problematização do conceito de realismo na obra de Cornélio Penna, serão analisadas duas cenas de duas obras: uma de Fronteira, seu primeiro romance (1935) e outra de A menina morta, sua última obra (1954).

Diante da presença do sagrado aliada ao esfumaçamento dos sujeitos e do en-redo de Fronteira, é possível condenar o distanciamento do real ou aderir ao ponto de vista interno à obra, entendendo ver na religiosidade a chave para a interpreta-ção. Contudo, perseguindo o pressuposto de um realismo como imagem possível de certo ângulo de consciência estética sobre o real, as páginas desse romance em forma de diário dão a ver a estranheza que advém do mundo. Conforme contri-buição da crítica recente, Fronteira apreende inclusive, e a seu modo, certo telurismo

11 Luís Bueno menciona que a primazia do problema sobre o personagem – retomando os ter-mos do ensaio de Antonio Candido “A revolução de 30 e a cultura” – aliada à indefinição do con-texto ideológico brasileiro em meados da década, levou a crítica a equívocos como considerar de esquerda obras cuja visão de mundo era reacionária e como conservadoras obras cujas posturas afinavam-se com a esquerda.

12 Refiro-me ao sentido de realismo presente em “Amplitude e variedade do modo de escrever realista”., op. cit. Como pano de fundo está a já mencionada polêmica travada com Lukács (João Barrento, Realismo, materialismo, utopia, op. cit.).

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relativo à presença da natureza de Minas Gerais, paisagem cuja morbidez se coa-duna com a dos sujeitos que ali vivem onde “as montanhas fecham a cidade, que fecha a casa, que fecha os homens”.13 Nesse romance de análise, os retalhos de paisagem oferecem um retrato que, aliado à interioridade em conflito, permite ver um mundo concreto, malgrado o teor de intensa subjetivação.

O capítulo 38 (reproduzido na íntegra) está apto a fornecer a interpretação de um peculiar realismo:

38

Desde a chegada da viajante, a palidez soturna de Maria acentuou-se, e ela passeava de um lado para outro, silenciosamente, nas salas e corredores, como um fantasma de tédio, realçado pela legenda crescente de sua sobre-humana abstinência.

Foi por isso que Tia Emiliana me recebeu como se fosse a própria Providência Divina que surgisse, com suas luzes, naquela sala escura e sinistra, com seu misterioso alçapão de pesadas argolas de ferro, muito empoeiradas e enferrujadas, a demonstrar os anos que levavam imóveis, intatas, e mal tapavam o riacho murmurante que passava por debaixo das arcadas da velha casa, e cujas águas, com seu murmúrio incessante, me enervavam e irritavam. Uma escada er-guia-se abruptamente, e penetrava de modo brutal na muralha muito larga, subindo para o sótão, tendo um grande Arcanjo São Miguel, grosseiramente esculpido e pintado, que servia de suporte ao teto, e de pilastra para o áspero corrimão.

A um canto, a mucama negra, sentada na terra, entre amigas também negras e de lanço à cabeça, parecia celebrar uma cerimônia tranquila de sua religião primitiva e confusa.

– Vai-me fazer uma esmola! – disse-me Tia Emiliana, que levantou os braço para o céu, com ostentação. – Há muitos e muitos dias que Maria Santa não aceita, não se serve, não come coisa alguma! Diga-me, não é para se ficar doida com uma coisa assim? Ela vai adoecer, não é verdade? Ninguém poderia ficar tanto tempo sem tomar nada

“Eu bem sei – acrescentou baixando a voz respeitosamente – que ela é uma verdadeira santa, mas não quero que fique doente e nos falte com a sua presença!”.

Maria sentou-se à mesa, depois de insistentes pedidos, de súplicas dramáticas de Tia Emi-liana e tornou-se de súbito ausente, o olhar imóvel e distante, a boca amarga, pendida nos cantos, as mãos lívidas, perdidas no colo, toda em uma plena e dura serenidade.

Ela parecia já marcada pela dissolução, e havia qualquer coisa de eterno na sua patética desolação, no sonho surdo e monótono que a cingia, e senti como não se pode perceber o fluxo misterioso das lamas nas quais nunca penetraremos.

Foi assim que a vi, tendo diante de si um enorme cesto de frutas de chácara, e estava tão alheada que não notou que eu chegara, não percebeu a minha entrada, saudada pelas exclama-ções de Tia Emiliana, e não pareceu ouvir o que dizíamos.

As negras murmuravam entre elas, e olhavam de soslaio para nós. Na penumbra de seu canto, eu via os seus olhos muito brancos, que se destacavam fortemente nos rostos negros e luzidios.

Dei alguns passos, e ia falar, quando a porta se abriu, e a luz do sol, vivíssima, cortou a sala com uma faixa deslumbrante, fez as negras encolherem-se em seu canto, com gestos de morce-gos irritados, e alguém, ao entrar, parou exclamando:

– Está alguém aqui? Que diabo, por que não abrem as janelas? Isto parece a casa do remorso!

E ouviu-se a mesma risada sonora de dias atrás, em três notas muito claras, e a viajante atravessou a sala, e subiu a escada precipitadamente para os quartos do sótão.

13 Bueno, Uma história do romance de 30, op. cit., p. 528.

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Maria Santa levantou-se, e depois de fazer um grande sinal-da-cruz, pôs-se a rezar com voz abafada.

Tia Emiliana, imediatamente, ajoelhou-se, e disse voltando-se para as pretas:

– Ajoelhem-se! Foi Nossa Senhora que passou – e, como para me dar uma explicação, que não pedira, nem sequer pensara em pedir-lhe, acrescentou com solenidade, voltando-se para mim:

– A Santíssima Virgem não podia permitir que essa casa fosse manchada por esse demônio, e veio Ela Própria purificar-nos com a sua Presença. E Maria teve a felicidade de recebê-La.

Maria Santa passou por mim e saiu, silenciosamente, sem me olhar, de cabeça baixa.

Fiquei com as mãos apoiadas ao rebordo da mesa, por muito tempo, sem ver nem ouvir a mucama e suas amigas, nem a Tia Emiliana, que cobria o rosto com as mãos.

Uma lengalenga monótona, uma espécie de oração interminável, despertou depois a mi-nha atenção e curiosidade adormecidas, e prestei ouvidos, distinguindo com dificuldade frases soltas, entremeadas de exclamações, ditas com repentina energia, mas alternadas com perfeita regularidade.

Vi que a negra se debruçava sobre um grande boião de barro, e tapava os lados com as pontas longas de seu chalé preto, cuja franja escassa chegava até o chão, formando assim um porta-voz.

E dizia ela:

– Maria meu ’tá’i... Maria meu ’tá’ i... a cidade vai morrer... tudo vai morrer... as invenções do demônio também... ela também..

Suas amigas entoavam um cântico que mais parecia um gemer de bruxas

E nesse momento reparei que, nos corredores escuros, muita gente, silenciosa e recolhida, nos observava com olhos espantados e embrutecidos.

Nesse capítulo concentram-se linhas de força que cosem a estrutura profunda desse romance da decadência: introspecção, atmosfera esfumada, nostalgia mór-bida, impregnação de certo sagrado. A sacralidade problemática da personagem Maria Santa – impasse que se imprime na subjetividade dilacerada do narrador cindido entre a crença e a dúvida – é aqui estilizada em efeitos de luz e sombra. Na contramão da atmosfera decadente da casa surge a “viajante”, personagem sem nome próprio e sem identificação cuja chegada parece trazer um sopro de vida à morbidez e à escuridão reinantes. Não só desfaz as sombras cultuadas como enun-cia em tom irônico, em tudo avesso à gravidade que rege a busca do sagrado: “–Está alguém aqui? Que diabo, por que não abrem as janelas? Isto parece a casa do remorso!”. A luz que a viajante traz não somente viola a lei do claustro, como é também emissária de um discurso com algum grau de resistência. Contudo, a prevalência do ponto de vista soturno entende o brilho novo como funesto; ao mesmo tempo, e como que a desfazer a impressão dessa luz amaldiçoada, tia Emi-liana anuncia a entrada da Virgem, dando prosseguimento à obsessão sagrada que faz o infortúnio de Maria Santa. É assim que à claridade trazida pela intrusa acu-mulam-se outras: o narrador surge como a “Providência Divina”, a Virgem apa-rentemente entrevista, os olhos das negras e a “vivíssima” luz do sol. Tais focos de luminosidade estabelecem contraste com a treva que reverbera a prisão de interio-ridades em conflito. O capítulo é composto quase em chiaroscuro, à maneira téc-nica das artes plásticas.

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No todo enigmático da cena, o significado que se depreende dessa formalização matizada se comunica à oscilação paroxística de vida e morte que marca a prosa. Face à atmosfera de isolamento dos seres e da cidade morta que habitam, a luz que vem da personagem urbana não afeita ao culto alienante de Maria Santa, é porta-dora de uma ideia de emancipação inexistente na cápsula em que vivem. Daí que para tia Emiliana – personagem responsável pela crença da santidade de Maria – a luz é demoníaca, uma vez que traz o halo de um novo tempo, de uma modernidade que não se afaz ao enclausuramento e ao apego ao passado. Contribuindo para a atmosfera ambígua do romance, o mesmo mundo que os aprisiona e tortura é cultuado; a decadência é modo de vida e o sagrado, a única saída que lhes ocorre. É a esse mundo morto cujos escombros ecoam um passado de opulência, autori-dade e ociosidade que se aferram – as ruínas do escravismo e da época do ouro. A decadência de Minas Gerais imprime-se nessas vidas ciosas de distinção e de reli-giosidade, coladas a um tempo parado incapaz de atender à modernidade, onde a ascese surge como um dos móveis de distinção nesse espaço fora do tempo. Ad-vém desse todo a sensação de emparedamento – mundo turvo sem rota de fuga.

Nesse contexto, ainda ecoando a nuança em luz e sombra, desponta a marca incólume da escravidão: as negras acocoradas a um canto, desindividualizadas, entoando cânticos primitivos, temendo o sobrenatural, servindo e obedecendo como nos tempos da escravidão. As negras contribuem para a plasticidade do episódio, seus olhos brilham no escuro repisando o contraste. Nessa como em outras cenas de Cornélio Penna, a literatura parece flertar com a gravura ou xilogravura;14 aqui o claro-escuro alude a um sentido moral de luz e treva, contu-do com sinais trocados e reversíveis, de vez que não se oferece a via fácil da sim-bologia cristã.

O efeito estilístico do claro-escuro, cujo sentido profundo coabita sujeitos e objetos, palia os refolhos da vida social, de onde se depreende um inaudito senti-do do real, desvencilhado da adoção do material objetivista.

A discussão sobre o realismo adquire uma nuança a mais em A menina morta; nesse caso, a par da inflexão de realismo como entrevisão de uma verdade social, há o retorno ao estilo enquanto forma, no sentido de certa retomada do romance oitocentista. Nesse romance de 1954, não só o enredo volta-se para o século XIX, à saga do latifúndio cafeicultor prestes a se desmantelar. A fim de compor esse mundo em dissolução, Cornélio Penna valeu-se da introspecção aliada ao trata-mento do pormenor na narrativa, perfazendo um todo híbrido entre os modos do romance moderno e tradicional. A peculiaridade dessa fatura parece consistir no modo com que o sujeito negativo e os efeitos de desrealização e introspecção se casam a momentos de retrato pormenorizado de facetas do real. Desse todo emer-ge um mundo estranhado, onde à impessoalidade da coisa soma-se a desindividua-ção, introspecção que paradoxalmente oferece um eu esvaziado.

14 A plasticidade dialoga com a carreira de pintor de Cornélio Penna, abandonada em nome da literatura. Quando artista plástico compôs obras de um simbolismo algo decadente, de intensa ex-pressividade. Nesse como em outros episódios, o traçado de sua prosa evoca a xilogravura, sobretudo pela inflexão expressionista dessa técnica, cujas deformidades parecem afins ao universo do autor.

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A presença do realismo formal nesse romance retorna ao argumento de Peter Bürger segundo o qual a retomada de formas do passado seria sim legítima, uma vez que pode dever-se à necessidade estética de representar o atraso. Em A menina mor-ta, o retorno provém da natureza do objeto representado e da representação – olhar moderno que lança por sobre o passado os entraves e paradoxos da modernização conservadora, que se fazem estéticos. Ao lado disso, esse viés da fatura pode também condizer com certa inclinação ao viés classicizante oriundo da geração de 45.15

A busca do realismo em A menina morta se faz pois em duas vias: como dado de estilo, a forma oitocentista articulada à introspecção moderna; e como verdade social, no sentido da apreensão artística do sentido de uma era. A observação da forma do romance burguês, aliada à investigação de sua significação, traz à tona imagens sobrepostas; a de um Brasil às vésperas da abolição, a do sujeito moderno cuja subjetividade falhada enraíza-se no passado. A fim de verificar esses dois rea-lismos entrelaçados, sirva como exemplo o capítulo 16 cuja circunstância é a da tentativa das escravas em acompanhar o enterro da sinhazinha.

Dentro em pouco estavam longe, dentro da mata ainda escura, e caminhavam mudas, mui-to unidas, formando um só bloco esbranquiçado que se movia pesadamente nas trevas. Era um dragão fabuloso, cheio de escamas e de protuberâncias, todo de cinza e preto, que se agitava seguro e muito rápido em marcha espectral, parecendo não tocar no solo da estrada com seus pés múltiplos e quase invisíveis. Agora estavam todas caladas, o pensamento fixo no desejo de chegar logo e tudo se desfazia diante delas e para trás nada ficava. Cada uma era só ideia, o pequeno mundo fechado, trancado sobre si mesmo onde palpitava apenas a vontade de ver onde dormia para sempre a Nhanhãzinha.

Obtida a permissão para acompanhar o enterro, as negras saem de manhã, unidas num só bloco alvo e negro – aqui o efeito de claro-escuro repercute das roupas e da tez – coesão que se dá pelo culto à menina. Causa impacto a figuração de um “dragão fabuloso” que paira sobre o solo e cujo fiapo de consciência é a observância do poder patriarcal tornado ícone; o monstro surge, assim, como ima-gem grotesca da escravaria desprovida da consciência de sua historicidade.

O caminhar resoluto e cego face à realidade chã e inexorável do castigo corpo-ral tem por trás de si a utopia alienante da imagem sagrada da sinhazinha. Ocorre que a promessa de felicidade momentânea tem por termo o capricho do patrão cujas ordens o feitor executa. Não obstante, face ao clamor do retorno, fingem-se surdas e continuam adiante, sabendo-se, de antemão, perdidas. A irracionalidade desse desgoverno tem algo de racional: fuga sem fôlego, antes agravo que remissão, traz embutida uma frágil – porque desprovida de autoconsciência – ânsia de liber-dade. Forçadas a voltar, antevendo o castigo impiedoso, o bloco emerge, qual bicho furioso, desumanizado e desindividualizado, um todo sem identidade ou desejo só unido pelo ódio à condição de classe e de cor.

15 A releitura do sentido político do retorno ao clássico é tema do estudo de Camilo, Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas, obra que auxilia a discussão sobre a legitimidade crítica do retorno antimoderno à tradição (ver Vagner Camilo, Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas, São Pau-lo, Ateliê Editorial, 2001).

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[...] Seus olhos brilhavam e lançavam olhares mortais umas às outras, onde se liam acusações alucinadas, ferozes e sem perdão, e os grossos lábios arroxeados tremiam, agitados por mudas maldições. Os corpos se tocavam, e o cheiro que deles se desprendia era sufocante, acre, mas eram inimigas implacáveis as carnes que se uniam, e as almas entravam em guerra de morte. Muitas prometiam a si mesmas sangrentas vinganças e fariam todo o mal possível às compa-nheiras que ali estavam, inermes e transidas como elas próprias! Tudo seria possível tudo se faria, de faca nas mãos e o riso da demência nos lábios abrasados... quando passasse aquele momento de pavor! Mas, em meio da loucura que fazia ferver as suas pobres cabeças, as negras, em algum canto recôndito e intocado de suas almas tumultuosas, que permanecia tranquilo e consciente, tinham a certeza de que nada fariam quando saíssem daquele inferno, e continua-riam a viver e a rir, sempre juntas!

O feitor com uma praga gritou-lhes qualquer coisa que não entenderam. Entretanto já co-nheciam o que era, puseram-se todas no meio da grande quadra, elas mesmas desprenderam as pesadas camisas que lhes cobriam os bustos de romãs opulentas e exageradas, e ficaram nuas até a cintura. Sabiam que não podiam receber palmatoadas como as outras porque então não poderiam lavar a roupa naquele dia, pois ficariam com as mãos inchadas e sangrentas... e tam-bém não queriam rasgar os vestidos que tinham de chegar até o dia da festa próxima, quando seriam feitas novas distribuições!

As portas já haviam sido fechadas e dentro em pouco gritos selvagens, ulos e súplicas ga-guejadas, vieram lá de dentro mas perderam-se no terreno imenso, e eram logo abafadas por ameaças ditas em tom surdo para que os ecos não chagassem até a residência, àquela hora ainda envolta em sombras e serenidade... mas, se chegassem até lá, poderiam ouvir que soluçavam:

– Sinhazinha! Sinhazinha!

O trecho trai certa inverossimilhança no ódio mútuo que exige interpretação. Amaldiçoam-se, culpam-se, odeiam-se por sentirem-se do mesmo barro desprezível. Nesse exemplo da prosa de análise, o dado inalienável da intimidade é subsumido pelo grupo cujo sentido uníssono é enunciado pela voz da onisciência. De modo que ao eu hipertrofiado caro à prosa de tendência introspectiva se alia a objetivida-de impotente de um narrador distanciado, à moda do romance tradicional. Esse é mobilizado a fim de garantir o distanciamento face ao drama encenado das interio-ridades paradoxalmente desindividualizadas. O narrador penetra dialeticamente os estilhaços da subjetividade sob a escravidão e, ao formalizar tais conflitos, lança mão de certa onisciência, instância capaz de plasmar a impotência da alienação.

No momento da punição clamam pela menina-mito, ícone mormente respon-sável pela condição de animalidade em que se encontram. O capítulo figura como um fragmento da condição dos escravos; o bloco que se move, qual rebanho uni-do na crença alienante e desunido na possível revolta contra o opressor, referenda um possível realismo imanente à inconsciência de si e à adoção de um ritual an-corado no instituto da escravidão – o culto à menina, sucessora inevitável do mando. Contudo, se há um viés realista no desenho da cena e na apreensão da alienação do escravo, esse é conseguido graças ao recurso à imagem fragmentária que se configura uma alegoria, ao permitir a leitura do agrupamento de escravas como emblema da escravidão. O bloco negro como a massa de escravos desuma-nizada, desprovida de consciência de si, indiferente a seu destino de classe e atre-lada aos cultos da elite é selo da particularidade no geral, procedimento alegórico caro à modernidade. A imagem surge como ruína da história ao petrificar seus antagonismos em uma imagem inorgânica: dragão disforme em cinza e negro cuja marcha espectral de múltiplos pés não logra alcançar o chão.

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Não é avesso ao capítulo o contorno realista do pormenor; ao mesmo tempo, o episódio é da ordem da alegoria e descontínuo face ao enredo do romance. A figu-ração do cativo é a de um títere manipulado por forças maiores que o fazem objeto incapaz de participar ativamente da luta social. O ódio quase irracional aos de sua igualha, testemunhado pelo trecho, dá a ver, no seu avesso, a racionalidade da con-dição escravista que desumaniza o negro e repele o trabalho cuja proximidade traz o vinco do opróbrio. A impotência diante da dinâmica social é concreta e a prosa procura dar representação à mutilação do humano; no enredo, essa situação será perversamente agravada pela abolição que os lança ao trágico destino histórico da indigência. A distância entre enunciação – de lembrar que o romance é de 1954 – e enunciado – o século XIX – permite a clarividência antecipada quanto aos efeitos desse abandono histórico; a modernidade do ponto de vista narrativo pôde formular a singularidade dessa crise que, de antemão, é lançada por sobre todo o romance.

Retomando a discussão acerca da volta ao material objetivista, pode-se inferir que apesar da ancoragem nesse estilo, o trecho encampa o modo da petrificação e não da dinâmica potencialmente reveladora dos conflitos. Mesmo que afeita ao estilo realista, a cena não realiza, portanto, a almejada “conexão épica” de que fala Lukács,16 já que a petrificação alegórica dos sujeitos não orienta a ação atrelada aos destinos históricos de uma classe. Acrescente-se a isso a dessubjetivação do desvalido, muito afim à paralisação dos sujeitos e da ação, o que se coaduna com a crítica à impotência, de onde freme a ameaça da capitulação, frente à opressão do patriarcado. Em parte isso ocorre porque não há espaço privilegiado para os negros, motivo que ecoa a situação socialmente dada, fazendo-os surgir como sombra esbatida do mundo do trabalho, esse também fortemente ensombrado pelos motivos que estão à tona: a situação da dependência, a decadência da aris-tocracia cafeeira, a ameaça da abolição e da modernidade.

De fato, o apego ao estilo realista não se reduz aos traços do realismo histórico: impõe-se a força da subjetividade vazia aliada a um sentido crescente de paralisia. Nem tampouco a introspecção ganha a radicalidade da análise capaz de apagar os vestígios do real. De modo que a introspecção mina qualquer pureza na adoção da onisciência ou do recurso ao pormenor; por sua vez o objetivismo imparcial pro-blematiza o recurso à sondagem do eu como via de um possível autoconhecimento. O sentido do real provém desse todo estranhado onde o peso de um destino his-tórico incontornável, tornado natureza, traça o espectro da presença-ausência do escravo, pela via da imagem alegórica do desconhecimento de si.

Menos lacunar e enigmática que a prosa de Fronteira, em A menina morta o funcionamento distorcido da vida social brasileira é incorporado pelos movimen-tos de uma forma híbrida de realismo e introversão, prática possível, ao lado da prosa de análise, do “jogo soberano de um artista com as formas preestabelecidas do passado”,17 mescla que confere ao paradoxo a difícil entrevisão de uma verdade esteticamente válida do real.

16 Lukács, Ensaios sobre literatura, op. cit.17 Bürger, “O declínio da era moderna”, op. cit., p. 83.

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* Este artigo integra a dissertação de mestrado Ao redor do castelo: uma leitura das narrativas de Modesto Carone, defendida em março de 2010 na FFLCH-USP.

“O NATAL DO VIÚVO” – OU O CORPO PARALISADO*

CRISTIANE DE OLIVEIRA FERNANDES GARCIA

Universidade de São Paulo

Resumo Dentro dos dilemas vividos pela literatura contemporânea brasileira, principalmente nas duas últimas décadas do século XX, interessa-nos, neste ensaio, o estudo da narrativa breve de Modesto Carone “O natal do viúvo”, principalmente por-que esse conto faz referência às questões da identidade e da subjetividade, como essas se apresentam em nossos dias, e trabalham a literatura como elemento crítico da sociedade. Este estudo tem como objetivo iniciar um diálogo a respeito da formalização estética de questões sociais presentes na nar-rativa do autor e espera poder contribuir para novas possibi-lidades de interpretação de sua obra dentro do painel da lite-ratura contemporânea.

Abstract Among the dilemmas experienced by contemporary Brazilian lit-erature, especially over the last two decades of the twentieth cen-tury, I have chosen to discuss issues of identity and subjectivity, as they present themselves in the short story by Modesto Carone “O natal do viúvo”. This study aims to investigate the aesthetic formalization of social issues present in Modesto Carone`s and hopes to contribute to new possibilities of interpretating the Bra-zilian author’s work within the reality of contemporary litera-ture, understood as a critical element of society.

Palavras-chave Modesto Carone; literatura brasileira; conto contemporâneo.

Keywords Modesto Carone; Brazilian literature; contemporary narrative.

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Inédita em livro até 2007, quando integrou o volume Por trás dos vidros, a pequena narrativa “O natal do viúvo” já havia sido publicada na Folha de S.Paulo, Caderno Ilustrada, em 29 de agosto de 2000, e na revista Novos Estudos Cebrap, n.32, de março de 1992. Formada por apenas um parágrafo que ocupa pouco mais de duas páginas, a narrativa pode ser lida rapidamente, mas não sem certa dificul-dade de apreensão do sentido, pois logo nas primeiras linhas torna-se evidente a dificuldade do narrador em expor a história.

De forma muito panorâmica, o conto nos apresenta, logo em seu início, a cena de um viúvo inominado que permanece sentado em um canto da sala escura de um sobrado também tomado pela penumbra em uma noite de Natal. No decorrer da exposição, há descrições da sala, do quintal, da rua. Em determinado ponto da narrativa, o real parece ficar tomado pelo que parece ser outro tempo, uma diver-sa realidade já não existente, mas que permanece somente para esse viúvo e inclui a presença da mulher, dos filhos e de detalhes de uma noite de Natal passada. Essa cena que emerge na narrativa dura pouco, a consciência da realidade retorna e tudo parece, novamente, escuro e sem movimento.

Embora a personagem principal da narrativa seja o viúvo e o enredo baseie-se nas circunstâncias que o envolvem – enredo esse que pode ser resumido em pou-cas palavras como fizemos –, não há como negar que existe um elemento mais instigante que sobressai durante a leitura. Esse elemento diz respeito ao narrador que organiza e nos apresenta as cenas. O conto é narrado em terceira pessoa, por uma voz que nos é desconhecida, uma entidade que observa ambiente e persona-gem sem conseguir configurar a ambos de forma objetiva. Esse fato já nos chama a atenção por diferir daquele que parece ser o típico narrador caroniano: o narra-dor em primeira pessoa.

Memória

Amar o perdidodeixa confundido

este coração.

Nada pode o olvidocontra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveistornam-se insensíveis

à palma da mão

Mas as coisas findasmuito mais que lindas,

essas ficarão.

(Carlos Drummond de Andrade)

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As poucas narrativas em terceira pessoa presentes em seus quatro livros1 tra-zem características muito peculiares, pois, dos seus 59 contos, apenas dez são escritos com esse foco narrativo. Desses dez, “Escombros”, do livro Dias melhores, é o que apresenta o narrador em terceira pessoa da forma mais tradicional: uma voz que apenas conta o percurso de uma personagem ao perseguir uma mulher nas ruínas de uma cidade, descrevendo os percalços e dificuldades para poder se aproximar dela. Ao final da narrativa, constituída de quatro pequenos parágrafos, a personagem consegue apenas visualizá-la à luz de uma claraboia, embora não a consiga alcançar como pretendia.

O conto “Noites de circo”, presente no livro As marcas do real, não chega a ser contabilizado no levantamento do foco narrativo de Modesto Carone feito por Cás-sio Tavares,2 pois esse acredita que não há como identificar o lugar de onde parte a voz narrativa, além de não haver a configuração de um protagonista. De modo geral, essa narrativa apresenta uma voz que apenas descreve a presença de um ca-dáver na arena de um circo, expõe as reações da plateia e dos demais envolvidos na cena quando defrontados com esse fato inusitado, fazendo referência ao jogo que se desenvolve entre o real e o ilusório, entre o verossímil e o absurdo.

Nos contos “As marcas do real” e “O assassino ameaçado”, o primeiro do livro homônimo e o segundo de Dias melhores, o narrador, ainda segundo Cássio Tava-res, não poderia estar em primeira pessoa em nenhum dos dois casos exatamente pela essência do assunto de que eles tratam, ou seja, essas narrativas tematizam objetos concretos e inanimados que não teriam como assumir a voz narrativa sem que o conto se aproximasse das características da fábula. Assim, nesses contos, o narrador estaria

condenado à condição de instância externa abstrata pela natureza do assunto, já que o que to-mam como objeto é coisa concreta: no primeiro caso, trata-se de poesia do poeta austríaco Georg Trackl, e no segundo, de um quadro de Magritte.3

Em outros três contos, “Passagem de ano”,4 “Rito sumário” e “Fim de caso”, todos do livro Dias melhores, a personagem-tema morreu, e o que o relato propõe é a decifração de como essas personagens chegaram às circunstâncias de suas mortes. Nesses contos, seguindo ainda o pensamento de Cássio Tavares, o narra-dor assemelha-se mais a uma personagem marginal do que a uma instância externa

1 Modesto Carone, As marcas do real, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; Idem, Aos pés de Matilda, São Paulo, Summus, 1980; Idem, Dias melhores, São Paulo, Brasiliense, 1984; Idem, Por trás dos vi-dros, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

2 Cássio Tavares, O conto e o conto contemporâneo, São Paulo, 2003, Tese (Doutorado em Teoria literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

3 O levantamento das características do narrador nos três primeiros livros de Modesto Carone foi feito por Cássio Tavares e é nesse estudo que nos baseamos para esse pequeno painel do foco narrativo do autor. As contribuições referentes ao livro Por trás dos vidros são nossas.

4 No livro lançado em 2007, Por trás dos vidros, esse conto aparece com o título de “Virada de ano”.

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abstrata como nos outros contos, uma vez que especula a respeito do percurso que conduz o morto a seu destino, parecendo ser uma figura próxima ou interessada nos eventos narrados, embora em nenhum momento possa ser identificado de quem se trata pelo leitor.

Dos contos inéditos do livro Por trás dos vidros, três podem ser incluídos entre os narrados em terceira pessoa: “Dueto para corda e saxofone”, “O retorno do re-primido” e “O natal do viúvo”, pois trazem aproximações com esse narrador que, temos a impressão, precisa estar em terceira pessoa, uma vez que a personagem não tem condições de assumir a palavra, como vimos nos contos anteriormente comen-tados. Em “Dueto para corda e saxofone”, uma personagem está prestes a cometer suicídio, procurando e testando os meios mais apropriados e seguros para ter su-cesso em seu intento. Primeiro analisa a resistência de um cinto, depois a de uma corda e do nó que deve correr livre; também analisa a eficácia do banco de plástico que servirá de apoio. Em determinado momento, a personagem é interrompida pelo som de um saxofone que, por algum tempo, a desvia de sua empreitada e a faz perceber uma nova postura dos objetos da sala e do prédio em que se encontra, mas essa interrupção, ao final, não é suficiente para demovê-la de seu intento. Um dado interessante, ainda carente de estudo mais apurado, é que, no último parágrafo dessa narrativa, quando a personagem já deu fim à sua vida, um “eu” assume a palavra: “Creio que só bem mais tarde o vento vindo do pátio escancarou as janelas e espalhou os papéis da mesa sobre a trama brilhante do tapete de sisal”.5

Já o conto “O retorno do reprimido” nos apresenta uma personagem que não está em condições de assumir a palavra por assemelhar-se a um animal ou, pelo menos, por aparentemente lhe faltar a capacidade racional. A narrativa apresenta uma pessoa confinada em uma sala acolchoada, com a porta travada por fora, que morde o tapete, urra, baba, tem acessos de raiva, o que a impede de desenvolver um pensamento claro e objetivo e, talvez por esse motivo, haja a necessidade da utilização de uma voz exterior capaz de descrever sua situação. A técnica da des-crição talvez seja o procedimento mais presente nessas narrativas de Carone, prin-cipalmente para tentar embasar a atividade racional, quer por meio de um narra-dor-personagem em primeira pessoa que procura organizar e explicar para si mesmo a situação vivenciada, quer por meio de um narrador em terceira pessoa que busca compor um quadro da situação por ele observada.

Em “O natal do viúvo”, a voz narrativa, em terceira pessoa, esforça-se em se aproximar do outro, no caso o viúvo que, como dissemos, permanece sentado na poltrona em um canto da sala escura. As várias investidas dessa voz são percebidas pelo processo de aproximação e recuo executado diversas vezes durante a narrati-va. O narrador descreve primeiramente o tempo, a chuva e o viúvo: “É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto da sala”, O narrador, ao que parece, não percebe nenhuma reação da personagem, então se afasta e descreve a sala: a obscuridade em razão das cortinas descidas, as poucas frestas por onde a luz

5 Modesto Carone, “Dueto para corda e saxofone”, in Por trás dos vidros, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 27.

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passa. Novamente, volta-se para o viúvo, mas apenas para confirmar a primeira impressão: “ele está parado ou permanece parado”, confirmação que estará sempre modulada pela imprecisão, pois “não é possível registrar nada com nitidez”.6

A narração se afasta um pouco mais para descrever, agora, os carros que pas-sam chiando pela rua; volta-se para o quintal – “um ruído de folhas” – e novamente para o interior da casa descrevendo objetos que poderiam ser usados na noite natalina: copos, toalha, pratos, talheres, guardanapos, velas. A voz aproxima-se outra vez do viúvo que não esboça movimento seguro: “Ele não fixa o olhar na mesa pois conserva a cabeça baixa ou apoiada na mão direita, talvez na esquerda”. Ao insistir, a voz narrativa parece perceber certa atividade interior da personagem, embora tudo continue opaco para o narrador:

Mas ele não é cego, olha para dentro e remexe, apalpa o que vê, as imagens vão de um lado para outro, rodopiam, escondem-se atrás da coluna de gesso e desaparecem sem deixar vestígio.7

O narrador, diante da impossibilidade de captar algo com maior precisão, afas-ta-se novamente se atendo à descrição do ar espesso e da criada que varre a sujei-ra deixada pela coluna de gesso que acaba de desabar. Nessa passagem, que inau-gura o segundo terço da narrativa, deparamos com essa imagem da coluna atrás da qual as imagens interiores do viúvo rodopiam e se escondem. Coluna que pode ser associada a algo que sustém, um apoio, um alicerce, mas frágil em demasia devido ao material de que é composta: o gesso. Acentua-se, assim, a indefinição, a impossibilidade de distinguir temporalidades, uma mistura entre o presente e o passado, pois o que se segue é a lembrança de uma cena remota: a campainha toca, a esposa abre a porta para a filha, a sala se ilumina, o filho chega e abraça “as duas mulheres de perfil idêntico”. A mesa está posta, as velas acesas, a criada entra sorrindo com uma travessa nos braços. Eles comemoram, brindam, sorriem. Mas emerge um clarão e “a cera começa a derreter”. A cena começa a derreter, não se refazendo. A esposa volta-se para a poltrona “faz um gesto com as mãos, insiste, insiste”. Novamente a voz narrativa se afasta, contempla a paralisia e a mudez desse viúvo mortificado pela dor. Afasta-se ainda mais, fixa-se nas cortinas fecha-das, na noite que avança; volta para a personagem que continua imóvel, que talvez apoie o rosto nas mãos ou cruze as pernas. E mais uma vez se afasta: o sino que não soa, a sombra que desliza, as nuvens que se afastam, a porta lateral trancada, a campainha muda, o portão de ferro coberto pela hera, as vidraças vazias. O viú-vo continua sentado na sala.

A pungência da dor da perda é latente no conto. Como em um processo de “mineração”,8 a voz narrativa – essa voz sem nome e sem indicação – tenta escavar

6 Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 11.7 Idem, ibidem, p. 12.8 Lembramos aqui um belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade, “Mineração do ou-

tro”, no qual, apesar de referir-se ao relacionamento amoroso, lembra-nos o movimento do narrador desse conto de Carone, em sua tentativa de aproximar-se da personagem: “Os cabelos ocultam a

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o outro, investe diversas vezes, aproximando-se e afastando-se numa insistência que avança um pouco mais a cada tentativa, mas que não é violenta. É, antes, uma discreta aproximação que respeita o sofrimento alheio, mesmo quando o sentido escapa – e ele sempre escapa, pois não há mais nenhuma possibilidade de domí-nio, nenhuma possibilidade de plenitude de saberes –, percebemos, apenas, o vai-vém dessa voz na tentativa de contato com o ser que sofre.

Por outro lado, o narrador consegue descrever, por um instante, o interior da personagem no momento em que a cena de um natal passado invade a narrativa, momento no qual a família estava reunida e feliz. Há, aqui, um movimento que pode nos sugerir a onisciência de um narrador tradicional, porém, não existe mais a possibilidade de um narrador como esse. É bem provável que qualquer aproxima-ção, como o da empregada que varre o chão, e para quem ele faz um gesto de impa-ciência ou de dor, passe a ser algo incômodo para o viúvo, pois o processo de traba-lho do luto gasta todas as suas energias e consome, igualmente, seu corpo físico.

Mas ele não é cego, olha para dentro e remexe, apalpa o que vê, as imagens vão de um lado para outro, rodopiam, escondem-se atrás da coluna de gesso e desaparecem sem deixar vestígio. O ar que ele respira é espesso, a neblina sobe do chão, a coluna vacila, de repente desaba, os pedaços se espalham pelo chão sem barulho. A criada de avental está varrendo o assoalho, a vassoura de pêlo trabalha como um autômato, a moça vira as costas para a sala, some pela porta da copa.9

O luto, como se sabe pelos estudos psicanalíticos de Freud, é o sentimento de dor ou pesar originado pela consciência da perda de uma pessoa amada ou alguma abstração que se coloque em seu lugar: pátria, liberdade, ideal. A reação a essa consciência da perda é um estado de ânimo doloroso, um desinteresse pelo mun-do externo; esse se torna pobre e vazio na medida em que não se relaciona com a memória do morto. Há, no trabalho do luto, uma tendência ao isolamento e ao silêncio para que, com o passar do tempo necessário, o ego liberte sua libido do objeto perdido. Mas enquanto dura, o trabalho do luto absorve todas as energias do ego e pode provocar a paralisia do sujeito, inclusive a corporal, como presen-ciamos no conto de Modesto Carone.

Cabe registrar, ainda, que o luto difere da melancolia por esta apresentar, além das características descritas para aquele, um rebaixamento do sentimento de au-toestima, pois introjeta o objeto perdido, ou seja, é uma perda inconsciente e não se refere a algo que realmente morreu, mas faz que o ego se sinta morto, na medida em que existe uma impossibilidade de reconquista e uma identificação narcísica entre o ego e o objeto perdido. No melancólico há uma tendência para a comunica-ção, para o autodesnudamento, geralmente atribuindo a si mesmo caracterís ticas

verdade./Como saber, como gerir um corpo/Alheio?/Os dias consumidos em sua lavra/Significam o mesmo que estar morto./ [...] /O corpo em si, mistério: o nu, cortina/De outro corpo, jamais apreen-dido,/Assim como a palavra esconde outra/Voz, prima e vera, ausente de sentido” (Carlos Drum-mond de Andrade, “Lição de coisas”, in Nova reunião, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983, v. 2, p. 379-80).

9 Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 12.

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desmerecedoras ou indignas, atitude que, ao fim, revela o desejo de queixar-se de outra pessoa que amou, ama ou deveria amar. Na melancolia, não tendo sido acei-ta a perda do objeto, ele se internaliza e, assim, a queixa contra si mesmo é na verdade a queixa contra o objeto perdido. As causas do estado melancólico ultra-passam a morte simplesmente e podem abranger todas as situações de ofensa, desprezo e decepção.

Entre essas duas condições – luto e melancolia –, Freud afirma que o luto é considerado normal; sua elaboração demanda tempo e energia, mas, embora acar-rete graves desvios da conduta normal da vida, não deve ser perturbado, pois não é uma condição patológica como, algumas vezes, a situação melancólica o é. No trabalho do luto, ainda que haja uma resistência à constatação da perda e, assim, à aniquilação do objeto, o sujeito não escapa a essa perda e, mesmo em meio à dor, ainda consegue percebê-la e constatar que a vida não é dominada em nada por suas forças.10

Ao fim do processo de luto, o ego intui, dolorosamente, não poder controlar o rumo de sua existência. Nesse momento, o sujeito depara com a tarefa de se de-frontar com o objeto perdido e analisar suas relações com esse – é o tempo mais difícil e complexo da reelaboração, pois deixa o campo estritamente narcísico e entra no terreno da ética, de modo que é a responsabilidade do sujeito diante do objeto perdido que está agora em causa.11

No conto de Carone, o viúvo parece estar em um momento anterior a esse: ele está no momento da dor mais profunda em que o trabalho do luto ainda não che-gou à sua etapa final. A voz narrativa, pelas várias aproximações que faz, parece tentar compreender a situação do viúvo, mas pelo modo como essa voz se confi-gura, essa compreensão não é possível, visto estar atrelada apenas à pessoa que sofre. A dor é compreendida apenas pelo sujeito do trabalho do luto, já que a rea-lidade psíquica que ele vive não se deixa apreender para fora de sua intimidade psíquica e de sua fantasmagoria. Durante todo o conto, o narrador se afasta e se aproxima, em um movimento que apenas consegue flagrar a suspensão solitária do ritmo dos dias, aparentemente porque sabe ou pelo menos pressente nada po-der fazer para alterar ou minimizar essa situação.

À maneira das narrativas de Beckett, como aparece na epígrafe do conto,12 o viúvo é um homem sozinho, confinado a um espaço de recolhimento e cuja

10 “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: nosso próprio corpo, condenado à deca-dência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro” (Sigmund Freud, “O mal-estar da civilização”, in Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1974, v. XXI, p. 95).

11 Sigmund Freud, “Luto e melancolia”, trad. Marilene Carone, Novos Estudos Cebrap, n. 32, p. 128-42, mar. 1992.

12 A epígrafe é: “à maneira de Molloy de Beckett”. Comentando a respeito desse conto, Modes-to Carone afirma: “Escrevi um conto que me foi inspirado por Beckett. [...] Chama-se ‘O Natal do viúvo’. Há duas frases de Beckett que realmente me deram o conto: ‘Era noite. Estava chovendo.’

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devastação interior o impede de agir, paralisando-o, sem que vise a uma transfor-mação do presente, permanecendo fixo ao passado. Não há rememoração, no que essa se aproxima de uma memória ativa que gere modificações, mas, ao contrário, percebemos a ruminação do passado ao qual ele imovelmente se ata.

Na narrativa de Samuel Beckett, Molloy (1947-1948), há um trajeto que é per-corrido pela personagem em busca de sua história e que leva à sua crescente de-gradação física – no início a perna problemática da personagem incomoda, mas não a impede de andar de bicicleta, indo sempre de um espaço aberto para um fechado e vice-versa; no decorrer da narrativa, porém, ela passa a usar muletas e depois a rastejar, terminando na imobilidade, dentro de um quarto que acha ser o de sua falecida mãe, com a qual não possuiu nenhum laço afetivo. O trajeto per-corrido, portanto, é o da busca da mãe, do passado e da difícil recuperação da memória e das experiências que constituem o próprio eu, que, ao fim, acabam na incapacidade do narrador – em primeira pessoa – de construir uma narrativa ca-paz de dar conta da realidade precariamente recuperada, da sua própria história e do próprio processo de lembrar.

A linguagem que o livro de Samuel Beckett nos apresenta é toda pautada pelas incertezas e dificuldades. Mesmo a impossibilidade de construção da própria lin-guagem está presente na narrativa, uma vez que mesmo a memória do protagonista pode enganar. Logo no início de Molloy podemos encontrar uma atmosfera bas-tante parecida com a do conto de Modesto Carone:

Tudo se esfuma. Mais um pouco e você fica cego. Está na cabeça. Ela não funciona mais, ela diz, Eu não funciono mais. Você fica mudo também e os ruídos enfraquecem. Mal se atraves-sa o limiar é assim. É a cabeça que deve estar cheia. De modo que você diz a si mesmo, Chegarei bem desta vez, depois mais uma, depois será tudo. É difícil formular este pensamento, pois é um pensamento, num certo sentido.13

Percebemos a tentativa de atravessar o limiar, depois do qual tudo se esfuma, uma fronteira mental, para aproximar-se da vida que deseja narrar, no caso de Molloy, ou da vida que é narrada, no caso do viúvo de Carone. No conto do autor brasileiro, o narrador em terceira pessoa tenta a aproximação, sempre frustrada, como acompanhamos anteriormente. O recurso linguístico da imprecisão está, nas duas narrativas, presente principalmente no grande número de advérbios de dúvida que caracterizam a linguagem e na oscilação do foco narrativo, no caso do texto caroniano.

No conto de Carone há uma insistência do narrador em descrever a posição imóvel da personagem. Por toda a extensão do conto são inúmeras as referências à imobilidade física do viúvo, que não deixa a sua posição inerte em nenhum mo-mento. Como vimos, em muitas situações, o trabalho do luto gera uma tendência

E depois, no final: ‘Não era noite. Não estava chovendo’”. (Ana Paula Pacheco; Priscilla Figueiredo, “Mimese e contradição. Entrevista com Modesto Carone”, Rodapé. Crítica de literatura brasileira contemporânea, São Paulo, n. 1, p. 206, nov. 2001.

13 Samuel Beckett, Molloy, São Paulo, Globo, 2007, p. 24.

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ao isolamento e ao silêncio provocando, pelo consumo de suas energias, uma pa-ralisia do sujeito. O viúvo do conto caroniano permanece ao longo de toda a nar-rativa imóvel em sua poltrona, seus gestos são mínimos e muitas vezes eles são apenas uma sugestão do narrador, a descrição se prende somente a uma intenção da personagem ou, mais remotamente, a uma suposição de movimento somada às possíveis conseqüências, caso tal movimento ocorresse.

Talvez apóie o rosto numa das mãos ou cruze as pernas mas não se percebe nenhum movi-mento. A obscuridade é maior porque as cortinas estão descidas e a luz só filtra por algumas frestas.14

[...] ele está parado ou parece parado na poltrona do canto da sala. Provavelmente os olhos permanecem fechados e se as pálpebras se abrem a vista acusa tonalidades de cor na quina de um móvel.15

Ele não fixa o olhar na mesa pois conserva a cabeça baixa ou apoiada na mão direita, talvez na esquerda. Se olhasse não veria nada porque lá também não há luz.16

[...] agora é possível que ele se mova no assento da poltrona, faça menção de ir até a janela para abrir as cortinas.17

[...] ele quer dizer alguma coisa e emudece, talvez ele chore.18

Talvez apóie o rosto nas mãos ou cruze as pernas mas não se nota nenhum movimento.19

Ele está sentado num canto da sala, quem sabe estique a cabeça e os braços no escuro.20

Essa conjuntura física de paralisação pode aproximar a personagem, metafori-camente, da situação da própria esposa, em sua imobilidade de morte. Nesse caso, o viúvo está psiquicamente desvitalizado também, pois não esboça nenhum mo-vimento que possa trazê-lo mais próximo da vida que do depauperamento físico e mental em que se encontra um cadáver. A dor da perda é tamanha que o viúvo contamina-se com a morte e deixa-se ficar inerte e abúlico em sua poltrona no canto da sala, em um ambiente escuro e sem ligação direta com o presente. Seu corpo, contaminado e vencido pela perda, permanece paralisado como se estives-se não só destroçado pela dor, como falecido, uma falência psíquica que exaure todas as suas forças vitais.

Nessa condição, existe uma contraposição entre a imobilidade da personagem e o movimento do narrador que percorre um tempo e um espaço diferentes. Para a personagem existe uma presentificação fantasmagórica de um tempo anterior e já morto em razão da impossibilidade de retorno. Esse tempo, entretanto, contra-põe-se ao momento da narrativa, pois o narrador busca o tempo presente, descre-vendo o aqui e o agora, mas fica sempre sem poder ir muito além ou se aprofundar na narrativa (ou escavar o outro, para lembrar Drummond), já que as temporali-

14 Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 11.15 Idem, ibidem.16 Idem, ibidem, p. 11-12.17 Idem, ibidem, p. 12. 18 Idem, ibidem, p. 13. 19 Idem, ibidem.20 Idem, ibidem.

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dades são extremamente diversas. Há o presente do narrador e o passado da per-sonagem, temporalidades que se opõem por todo o conto.

Essa dificuldade do narrador na apreensão de sentido do conto ou da própria personagem fica evidente para o leitor, pois esse percebe a limitação da voz narra-tiva em alcançar o que se passa com esse viúvo. Mesmo no momento em que o tempo passado assume o primeiro plano do conto, com a presentificação de outro natal, a voz narrativa parece apenas acompanhar ou permitir a entrevisão do im-palpável, daquilo que se passa no interior dessa personagem.

A campainha toca, toca, o chiado das rodas no asfalto abafa o toque remoto, ela toca outra vez, sobrevém o silêncio. Os passos se aproximam, o salto dos sapatos bate nos tacos, a esposa abre a porta, introduz a filha na casa com um beijo, as duas passam pela poltrona falando em surdina, agora é possível que ele se mova no assento da poltrona, faça menção de ir até a jane-la para abrir as cortinas. No centro da sala iluminada a filha está conversando com a mãe, elas mantêm os dedos enlaçados, o filho desce a escada em caracol e abraça as duas mulheres de perfil idêntico. A mesa foi posta, as velas vermelhas ardem nos castiçais, a moça de avental entra sorrindo com uma travessa nos braços. Os filhos chegam à poltrona do canto da sala, erguem as taças, pelo meio dos dois a mulher espia para ele, sorri, os dentes são brancos, as maças do rosto coradas e da linha alva do pescoço emerge um clarão. A cera começa a derreter, não se refaz, as figuras balançam como recortes de papelão no vento, o sino da igreja está ba-tendo alto e uma rajada abre as vidraças sobre a praça. As árvores decoradas estão molhadas de chuva, os canteiros floridos, ele vê a família abraçada junto à janela, a mulher ainda se volta para a poltrona, faz um gesto com as mãos, insiste, insiste, ele quer dizer alguma coisa e emu-dece, talvez ele chore.21

Nesse trecho do conto e em outros,22 podemos perceber, aliada às temporali-dades distintas, dois espaços que igualmente se contrapõem – o espaço do viúvo, preso em seus pensamentos e na sua interioridade, e o espaço percorrido pelo narrador que vaga pela sala e pelos arredores da casa, mas sempre se movimentan-do por recintos abertos se comparados ao quase encarceramento da personagem em sua sala, em sua poltrona e em si mesmo devido à angústia e à dor. Tanto o espaço habitado pela personagem ao recordar o passado quanto o espaço percor-rido pelo narrador são descritos com riqueza de detalhes e mostram que há, nessa narrativa, dois mundos incomunicáveis e igualmente precisos, embora a persona-gem e tudo o que gira em torno dela não se deixem apreender pelo narrador ou por ninguém, inclusive pelo leitor.

21 Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 12-13.22 Podemos ainda apresentar as seguintes passagens do conto como exemplos do espaço percor-

rido pelo narrador, todos evidenciando grande detalhamento: “Os carros passam pela rua da frente chiando os pneus no asfalto e alguma coisa estremece na casa, um ruído de folhas, o tinido de um cristal” (Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 11); “o sino da igreja está batendo alto e uma rajada abre as vidraças sobre a praça. As árvores decoradas estão molhadas de chuva, os canteiros flori-dos...” (idem, ibidem, p. 13); “Pelas cortinas fechadas percebe-se que a noite avança...” (idem, ibidem); “O sobrado se destaca num halo de luz que vem de cima e tinge as nuvens de rosa, talvez um sopro as leve logo para longe. A porta lateral da casa está trancada, a campainha muda, o portão de ferro coberto pela hera, as vidraças vazias” (idem, ibidem).

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A descrição de um natal passado poderia atestar a presença de um narrador onisciente, mas essa possibilidade é negada por todo o restante do conto em que as descrições temporais e espaciais, pelo menos em tese mais fáceis de serem con-firmadas, são uma a uma desmentidas. Assim, no início do conto as afirmações “É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto da sala” são repetidas e negadas no fim do conto: “É tarde e a chuva bate nos vidros. Não era tarde. Não estava chovendo”.

Como essas, outras afirmações do conto são negadas durante a progressão da narrativa. A afirmação

Os copos estão enfileirados sobre a toalha ao lado dos pratos e talheres e dos guardanapos dobrados como um par de asas na penumbra.23

é desmentida pelo período seguinte

Os vidros e os metais não cintilam, as velas vermelhas dormem nos castiçais, o mais pro-vável é que não tenham saído dos armários e da cristaleira.24

O sino da igreja e a campainha que antes tocavam, estão agora mudos; as ja-nelas antes cobertas pelas cortinas e abertas pelo vento estão agora vazias:

O sino não soa, não há sinos por perto, a sombra desliza sobre as mesas e os armários. [...] A porta lateral da casa está trancada, a campainha muda, o portão de ferro coberto pela hera, as vidraças vazias.25

Verifica-se, assim, a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de distinguir temporalidades que sejam plenamente identificáveis tanto para a personagem quanto para o próprio narrador. Para a primeira, possivelmente pelo próprio pro-cesso de trabalho de luto, os tempos do passado e do presente estão embaralhados em sua consciência, na medida em que o mundo como ele se apresenta não possui nenhum atrativo, visto não ter mais a esposa ao seu lado. Para o narrador, as tem-poralidades estão também pouco definidas, ele não possui segurança em seu tra-balho, como ele mesmo afirma em alguns momentos do conto:

Não é possível registrar nada com nitidez, ele está parado ou permanece parado no canto da sala.26

As lágrimas devem rolar no escuro, escorrer pelo peito, pingar no tapete; não é exato des-crever o que acontece.27

Há um respeito pela dor por parte desse narrador que não se impõe como onisciente, uma vez que ele não conhece nem sabe nada, como dissemos. O que

23 Carone, “O natal do viúvo”, op. cit., p. 11.24 Idem,ibidem.25 Idem, ibidem, p. 13.26 Idem, ibidem, p. 11.27 Idem, ibidem, p. 13.

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está sendo problematizado no conto, portanto, é o fato de não apenas a interiori-dade, mesmo se apresentando em circunstâncias detalhadas, ser indevassável, como aquilo em que o narrador depositava sua confiança – isto é, o detalhamento da cena, em seus elementos espaciais, também não poder servir de base para seu trabalho, já que a precisão lhe escapa e a temporalidade e a espacialidade, bem como as circunstâncias, deixam de ser algo definitivo e certo. A narrativa assume um aspecto de circularidade em que nada pode ser objetivamente confirmado ou sancionado como verdadeiro.

A preferência pelo tempo verbal do presente do indicativo, nessa e em muitas outras narrativas do autor, pode apontar para a continuidade de um estado de coisas que avança sem nenhuma possibilidade de mudança, configurando-se em uma presença durativa da alienação, da violência e da morte. Temas esses que permeiam a obra de Modesto Carone como um todo. Segundo o próprio autor,

a presença da morte em Por trás dos vidros talvez tenha uma explicação. Em primeiro lugar, ela é o estágio terminal da violência urbana, em segundo porque de acordo com a psicanálise, que entende do assunto, o homem tem três noivas: a mãe, a esposa e a morte. É possível que eu esteja noivando pela última vez, mas isso não significa que esse noivado seja breve. Montaigne dizia que filosofar é aprender a morrer.28

As diversas nuanças da alienação, com que deparam ou em que se encontram as personagens de Carone, mostram a falta de consciência e a reificação a que to-dos os homens estão sujeitos. Os restos da subjetividade, tão celebrada em séculos anteriores, são o foco desses textos em que a vida se encontra cercada e fragmen-tada, em que nada é seguro, senão o incerto. A realidade deste mundo torna-se, por extensão, um processo de aderir, de colar-se ao que já não existe mais na so-ciedade, ou seja, algo que possa transmitir alguma segurança. Nesse sentido, tudo se torna trabalho de luto, ou, ao menos, objeto de suspeita desse narrador, de que o próprio tempo é a marca da morte permanente.

A obra de arte, ao formalizar aspectos sociais, salienta para o leitor a comple-xidade das relações sociais, em que o mundo, administrado e regulamentado por instâncias desconhecidas, faz de cada um nós um títere e uma engrenagem que pode ser facilmente substituída. A obra literária de Modesto Carone não facilita ou edulcora a leitura, mas aponta um caminho que pode ser o da percepção, mes-mo que mínima, de nossa realidade. Ao utilizar-se da linguagem como instrumen-to, trabalhando-a com mestria, traz em seu cerne a marca das obras de arte que permanecem e apresenta o selo daquelas que podem ajudar a quebrar o gelo que há dentro de nós, como disse Kafka, e nos mostrar, por meio da forma conciliada da obra literária, o seu duplo dialético: que a sociedade é fragmentada, dividida, violenta e sem sentido.

28 Modesto Carone, “Diante do vazio, a fabulação”. Entrevista cedida por e-mail a Rogério Pereira para o jornal literário Rascunho [online] Disponível em: <http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras =secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0&subsecao=0&ordem=1801> Acessado em: 8 nov. 2009.

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ONDE FOI PARAR O SUJEITO? – EXPERIÊNCIAS DA SUBJETIVIDADE NA FICÇÃO DO SÉCULO XX

REGINA PONTIERI

Universidade de São Paulo

Resumo Este ensaio compara duas ficções curtas: a primeira, “A marca na parede”, foi escrita por Virgínia Woolf nos inícios do sécu-lo XX (1917); a segunda, “Célula de identidade”, de Bruno Zeni, foi publicada quase um século depois, numa antologia brasileira de novos ficcionistas. Considerando algumas seme-lhanças estruturais básicas, sobretudo a perspectiva narrativa e a construção da subjetividade, apontam-se diferenças a fim de enfatizar as mudanças históricas no modo como os ficcio-nistas tratam os problemas de seu tempo.

Abstract This essay makes a comparison between two short fictions: the first, “The Mark on the wall”, was written by Virginia Wool in the early twentieth century (1917). The second, “Cell of identi-ty”, by Bruno Zeni, was published almost one century after, in a Brazilian anthology of new fictionists. Considering some basic structural similarities, mostly the narrative perspective and the construction of the subjectivity, differences are pointed out, in order to emphasize the historical changes in the way fictionists deal with their time’s problems.

Palavras-chave Literatura comparada; ficção curta; formas da subjetividade.

Keywords Comparative literature; short fiction; forms of subjectivity.

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No conhecido ensaio em que sintetiza a situação do romance contemporâ-neo, Adorno escolhe destacar a posição do narrador como momento significativo do paradoxo constituinte dessa forma. Diz ele: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”.1 Diferentemente do romance tradicional, ao qual o realismo era imanente, o romance moderno solaparia o preceito épico da objetividade, graças a uma subjetividade narrativa que transmuta para seus pró-prios termos a matéria narrável. Disso, a obra de Proust seria exemplar, já que, caudatária da tradição do realismo psicológico, leva ao extremo a dissolução sub-jetivista do romance, ao transformar a objetividade do mundo em vivência imagi-nária. Assim,

O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranhe-za do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço in-terior – atribui-se à técnica o nome de monologue intérieur – e qualquer coisa que se desenrole no exterior é apresentada da mesma maneira como, na primeira página, Proust descreve o instante do adormecer: como um pedaço do mundo interior, um momento do fluxo de cons-ciência, protegido da refutação pela ordem espaciotemporal objetiva, que a obra proustiana mobiliza-se para suspender.2

Proust é apenas um dentre os romancistas contemporâneos que se posicionam contra a “mentira da representação”, que caracterizava o romance clássico, desde Cervantes, na medida em que esse romance se propunha a “provocar a sugestão do real”.3 Adorno cita, ainda, o Gide dos Moedeiros falsos, o último Thomas Mann,

1 Theodor W. Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Notas de Literatu-ra I, trad. apres. Jorge de Almeida, São Paulo, Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 55.

2 Idem, ibidem, p. 59.3 Idem, ibidem, p. 55.

A ficção moderna e a hipertrofia da subjetividade

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Musil, Kafka. Aqueles que, no século XX, são testemunhas de um processo de hipertrofia da subjetividade narrativa correlato da desintegração da “identidade da experiência, a vida articulada e contínua”.4 Evidentemente, outros escritores poderiam ainda ser mencionados. Mas, em se tratando da “dissolução subjetivista” como um dos traços definidores do romance do século XX, um nome é de citação obrigatória: o de Virgínia Woolf.

De fato, a escritora garantiu seu lugar no círculo dos revolucionários da forma, graças a romances como Mrs. Dalloway, To the lighthouse, The waves, entre outros, em que a mimese do real se faz através de um ponto de vista sempre móvel e múl-tiplo, colado à experiência interna da personagem, a partir da qual o mundo exte-rior se configura, por isso mesmo, de modo fortemente impressionista. Seus dois primeiros romances publicados – The voyage out, de 1915, e Night and Day, de 1918 – possuem ainda vínculos claros com o romance inglês tradicional, embora em alguns momentos do primeiro livro já seja possível entrever a originalidade futura. Isso aconteceria a partir de 1922, com a publicação do romance Jacob´s room. Antes dele, entretanto, foi fundamental a experiência de construção de um texto curto, intitulado “The mark on the wall” (“A marca na parede”) que, desde sua publicação em 1917, foi considerado por contemporâneos de Woolf, como T.S. Eliot, por exemplo, como o “ponto de virada” de sua ficção em direção à re-novação da forma.

“A marca na parede”

No que se refere ao mencionado processo de hipertrofia da subjetividade, “A marca na parede” é emblemático. A situação de base é a de um narrador em pri-meira pessoa, um eu isolado no ambiente doméstico, inteiramente fechado em si, entregue à própria consciência divagante que, movida pela visão de uma marca na parede, rememora e reflete sobre as questões mais diversas. Ao longo do texto, a subjetividade tentará descobrir a natureza da marca, aparecendo-lhe como possi-bilidade mais forte a de se tratar de um prego. No início se registra a recordação de um momento no passado em que pela primeira vez a existência da marca fora percebida. Antes mesmo que se tenham maiores informações sobre o eu ou sobre o espaço circundante, o que se enfatiza, desde as primeiras linhas, é a relação entre presente e passado dando suporte ao exercício da memória:

É provável que tenha sido em meados de janeiro deste ano quando pela primeira vez, olhei e vi a marca na parede. Mas para precisar a data é necessário relembrar o que vi. Assim, penso agora no fogo; na estável película de luz amarelada sobre a página do livro; nos três crisântemos no jarro de vidro redondo sobre a cornija da lareira. Sim, deve ter sido no inverno, e apenas terminávamos o chá, pois me lembro de que fumava quando olhei e vi a marca na parede pela primeira vez.5

4 Idem, ibidem, p. 56.5 Virgínia Wolf, Uma casa assombrada, trad. José A. Arantes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,

1984, p. 49. De agora em diante, farei referência sempre a essa tradução. No original: “Perhaps it was

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E esse exercício é tão central para a experiência relatada que o presente da enunciação, que inicialmente ainda aparece destacado do momento passado de vi-são da marca, aos poucos vai se fundindo a ele, a ponto de, ao final do texto, o ad-vérbio “agora” sinalizar os dois tempos.

A partir da recuperação desse primeiro momento de visão, que é um tempo ainda relativamente próximo ao da enunciação (trata-se de “janeiro deste ano”), outros tempos, ora mais próximos, ora mais remotos, irão sendo recuperados, graças ao curso de um imaginário que passeia por vários assuntos: das ninharias do cotidiano às questões existenciais, passando pelos aspectos da vida sociale cultural da Inglaterra. No exemplo a seguir, observe-se o deslizamento entre a des crição pretensamente objetiva das características da marca e a construção ima-ginária capaz de levar para muito longe do ponto de partida:

Sob certo ângulo de luz, a marca parece realmente projetar-se para fora da parede. Também não é inteiramente circular. Não tenho certeza, mas parece lançar uma sombra perceptível, suge rindo que, caso eu corresse o dedo pela faixa da parede, em determinado ponto encontra-ria a saliência de um tumulozinho, um macio túmulo como os sepulcros de South Downs, que, segundo dizem, podem tanto ser tumbas como campos. Preferiria que fossem tumbas, aspirando assim à melancolia, tal como a maioria dos ingleses; e acharia natural, ao final de um passeio, pensar nos ossos estirados debaixo do gramado... Deve haver algum livro sobre o assunto. Provavelmente algum arqueólogo desenterrou aqueles ossos e os classificou... Que espécie de homem é o arqueólogo? pergunto-me. E atrevo-me a afirmar: na maioria coronéis reformados, que conduzem grupos de trabalhadores idosos até o sítio, que examinam os torrões de terra e as pedras, e que trocam correspondência com o pároco da redondeza, a qual, aberta logo de manhãzinha, dá-lhes um sentimento de importância [...] e têm todas as razões para desejarem manter a questão da tumba ou do campo em perpétua suspensão...6

Mas essa viagem do eu em direção a camadas cada vez mais recônditas de si mesmo, camadas que, entretanto, se constituem pela matéria da vida exterior transformada pela visão, essa vertiginosa viagem vai sendo, a cada vez, pontuada

the middle of January in the present year that I first looked up and saw the mark on the wall. In order to fix a date it is necessary to remember what one saw. So now I think of the fire; the steady film of yellow light upon the page of my book; the three chrysanthemums in the round glass bowl on the mantelpiece. Yes, it must have been the winter time, and we had just finished our tea, for I remember that I was smok-ing a cigarette when I looked up and saw the mark on the wall for the first time” (Virginia Wolf, A Haunted House and other short stories, London, Harcourt, Inc., s. d., p. 37).

6 “In certain lights that mark on the wall seems actually to project from the wall. Nor is it entirely circular. I cannot be sure, but it seems to cast a perceptible shadow, suggesting that if I ran my finger down that strip of the wall it would, at a certain point, mount and descend a small tumulus, a smooth tumulus like those barrows on the South Downs which are, they say, either tombs or camps. Of the two I should prefer them to be tombs, desiring melancholy like most English people, and finding it natural at the end of a walk to think of the bones stretched beneath the turf…. There must be some book about it. Some an-tiquary must have dug up those bones and given them a name…What sort of a man is an antiquary, I wonder? Retired Colonels for the most part, I daresay, leading parties of aged labourers to the top here, examining clods of earth and stone, and getting into correspondence with the neighbouring clergy, which being opened at breakfast time, gives them a feeling of importance […] and have every reason for keeping that great question of the camp or the tomb in perpetual suspension…” (Wolf, A Haunted House and other short stories, op. cit., p. 42-3).

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pelos retornos do olhar ao exterior, sinalizado pela marca na parede. Num primei-ro momento, dando-se ainda conta da forte tendência a afundar em si mesma, a subjetividade se reconforta com a volta ao mundo externo. Referindo-se a uma fantasia de infância, diz: “Para meu alívio, a visão da marca veio interromper a fantasia, pois trata-se de antiga fantasia, uma fantasia automática”.7 Aos poucos, entretanto, serão cada vez mais longos os trechos de mergulho no imaginário e cada vez mais difícil o retorno à marca. Até o ponto em que, ao final do texto, a perda é total:

Onde estava eu? Falava a respeito de que? Uma árvore? Um rio? Os Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos de asfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo se move, tomba, escorrega, desaparece...Há uma mudança notável de assunto.8

Desde o início, o texto sinaliza, mesmo que de modo sutil, que a subjetividade divagante é a de uma mulher. O que se pode ver, por exemplo, quando ela se re-fere ironicamente ao

ponto de vista masculino que governa nossas vidas, que determina o padrão [...], o qual a partir da guerra, suponho, converteu-se num meio fantasma para muitos homens e mulheres, e o qual em breve, sob zombaria, espera-se, irá para dentro da lata de lixo, que é para onde vão os fantasmas...9

Confortavelmente instalada no reduto doméstico, graças ao qual se entrega ao devaneio, sem preocupações imediatas, essa mulher tem, na parede onde se loca-liza a marca, o ponto exato de articulação entre o espaço privado do lar e o espaço público. Não por acaso a lareira é imagem importante: a visão do fogo que ela abriga é o elemento desencadeante da fantasia, sendo a marca, que lhe fica ligeira-mente acima, o elemento interruptor dessa fantasia. Sinalizando a realidade exte-rior à consciência, a marca, além disso, localiza-se nos confins do espaço protegido, sendo, assim, a porta de entrada para o árido mundo lá fora, ao qual a divagante se referira, indiretamente, ao mencionar a guerra. E aqui não custa relembrar que esse texto foi publicado no ano de 1917.

Aparecendo assim como símbolo da realidade objetiva, exterior à consciência, a marca acaba podendo significar também o espaço público ocupado, naquele mo-mento, pela guerra. Não parece casual, portanto, que a divagante tenha tanta difi-culdade em concentrar sua atenção na marca, sendo sempre fortemente atraída para dentro de si. O que vem, entretanto, interromper, de vez, essas fugas pelo devaneio

7 “Rather to my relief the sight of the mark interrupted the fancy, for it is an old fancy, an automatic fancy…” (Idem, ibidem, p. 37).

8 “Where was I? What has it all been about? A tree? A river? The Downs? Whitaker’s Almanack? The fields of asphodel? I can’t remember a thing. Everything’s moving, falling, slipping, vanishing.… There is a vast upheaval of matter” (Idem, ibidem, p. 46).

9 “the masculine point of view which governs our lives,which sets the standard [...] which has be-come, I suppose, since the war, half a phantom to many men and women, which soon, one may hope, will be laughed into the dustbin where the phantoms go…” (Idem, ibidem, p. 42).

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é um acontecimento que encerra, ao mesmo tempo, o isolamento do eu e o próprio texto. Surge uma segunda pessoa que, finalmente, esclarece o que é a marca:

Alguém se inclina sobre mim e diz:

– Vou sair para comprar jornal.

– Sim?

– Apesar de não ser uma boa coisa comprar jornais...Nada acontece, nunca. Essa droga de guerra. Deus amaldiçoe esta guerra...Ainda assim, não vejo porque deva haver um caracol na nossa parede.

Ah, a marca na parede! De fato, era um caracol.10

O jogo de palavras que, em inglês, aproxima “prego” (nail) de “caracol” (snail) pode sinalizar, entre outras coisas e de modo irônico, que o que se julgava como um objeto sólido o suficiente para iconizar a rigidez do mundo externo, isto é, o prego, revela-se como tão pouco firme e seguro quanto outro ser vivo. Além disso, a autossuficiência do caracol, carregando consigo a própria casa, alude fortemen-te ao autocentramento da divagadora, em busca de proteção na clausura doméstica. O jornal trazido de fora poderá destruir de vez qualquer segurança, testemunhando por escrito o horror da guerra ali instalada.

Referindo-se à experiência da ausência como constitutiva da ficção de Woolf, Gillian Beer chama a atenção para a importância do tema da morte nessa ficção, tema fortemente ligado à vida familiar da escritora, mas também vinculado à ex-periência de sua geração, no contexto da Primeira Guerra Mundial:

A morte era o seu conhecimento especial: sua mãe, sua irmã Stella e seu irmão Thoby, to-dos morreram prematuramente. Mas a morte era também o conhecimento especial de toda a sua geração, através da experiência obliteradora da Primeira Guerra Mundial. A longa sucessão da família e da geração, tão tipicamente o material do roman fleuve do século XIX, tais como Pendennis e The Virginians, de Thackeray, ou a série dos Rougon-Macquart, de Zola, torna-se o lugar de uma ruptura.11

Se, então, a guerra vem romper a continuidade temporal inscrita na sequência das gerações, parece claro o motivo pelo qual a divagante interrompe seu texto-devaneio antes que a chegada do jornal traga a guerra, para o espaço protegido do lar. O único lugar onde, pela rememoração, é ainda possível recuperar e reatar relações com as gerações anteriores, mesmo que o olhar lançado ao passado seja, muitas vezes, de crítica a ele.

10 Idem, ibidem, p. 59-60. No original: “Someone is standing over me and saying: / ‘I’m going out to buy a newspaper.’ / ‘Yes?’ / ‘Though it’s no good buying newspaper…Nothing ever happens. Curse this war; God damn this war!... All the same, I don’t see why we should have a snail on our wall’. / Ah, the mark on the wall! It was a snail”.

11 Gillian Beer, “Hume, Stephen and Elegy in To the Lighthouse”, in Virginia Woolf: the common ground, Edinburgh University Press, 1996, p. 31 (a tradução é minha).

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Como mostra Adorno, a ênfase no sujeito é marca forte do desequilíbrio entre eu e mundo operado pelo século XX. Entretanto, se a subjetividade woolfiana procura manter os laços com as gerações passadas, parece ser também para indi-retamente apontar o antepassado ilustre a quem a escritora frequentemente ho-menagearia, não só por referências mais ou menos diretas em suas ficções, mas também nos ensaios que se ocuparam dele.12 Trata-se de Lawrence Sterne, “o mais genial e o mais radical” dos precursores da ficção do século XX, no dizer de José Paulo Paes, que considera Joyce, Beckett, Butor, além da própria Woolf, al-guns dos que lhe sofreram o influxo.13 Parece então que o desequilíbrio entre eu e mundo, apontado por Adorno na ficção do século XX, havia sido preparado dois séculos antes pelo Tristram Shandy, que dava a ver esse processo ao encenar as vertiginosas divagações de um narrador todo-poderoso, subordinando o mundo a sua tirânica vontade.

Estudando esse romance como matriz do que conceituou como “forma shan-dyana”, Sérgio Paulo Rouanet aponta-lhe como primeiro traço definidor a “hiper-trofia da subjetividade [que] se manifesta na soberania do capricho, na volubilidade, no constante rodízio de posições e pontos de vista”.14 A ele se acrescentam, como corolário, a digressividade que resulta na fragmentação do discurso, a subjetivação de espaço e tempo, além da mistura de riso e melancolia. No que se refere a Woolf, embora seja clara a presença de Sterne em seu horizonte cultural, nem por isso o diálogo com o antepassado se faz sem que a herdeira modifique o legado, impri-mindo-lhe marcas próprias. De tal modo que as violentas alterações na ordem es-pacial e temporal, produzindo um discurso fortemente fragmentário, em decorrência da subjetividade voluntariosa do narrador shandyano, ficam em Woolf reduzidas a proporções compatíveis com os “novos” tempos. Afinal, se no século XVIII o indi-víduo burguês ascendia gloriosamente à cena social, não parece mais ser tão glorio-so o destino a ele reservado por um século que se abre com uma conflagração como a da Primeira Grande Guerra. De todo modo, parece claro o vulto do Tristram por detrás do narrador imaginoso e divagante de “A marca na parede”. E não só porque nele Woolf inclui até uma referência à melancolia, como traço distintivo do caráter inglês. Mas, sobretudo, porque imprime a suas muitas opiniões um tom de ironia muito próximo ao do modelo.

12 Ver Virginia Wolf, “The ‘Sentimental Journey’”, in The Common Reader – first and second se-ries. New York, Harcourt, Brace and Company, 1948. E também “Sterne” e “Eliza and Sterne”, em Virginia Wolf, Granite and rainbow, London, The Hogart Press, 1958.

13 L. Sterne, A vida e as opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, trad. introd. e notas José Paulo Paes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 8. Paes menciona a avaliação do estudioso do Tristram Shandy, Wayne Booth, que vê na obra o ponto de partida da “grande efusão dos narradores auto-conscientes do século XX”, entre os quais Thomas Mann, Joyce, Hesse, Hemingway, Sartre, Butor, Durrell e outros (cf. op. cit., p. 35).

14 Sérgio P. Rouanet, Riso e melancolia, São Paulo, Cia. das Letras, 2007, p. 35. Rouanet aponta quatro herdeiros da forma shandyana: o Diderot, de Jacques le fataliste, o Garrett, das Viagens na minha terra, o Xavier de Maistre, de Voyage autour de ma chambre, e o Machado, das Memórias pós-tumas de Brás Cubas.

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“Célula de identidade”

Em 1917, Virginia Woolf e sua geração estavam vivendo a primeira das duas conflagrações que atingiram e destruíram boa parte da Europa. A escritora não chegou a ver o fim da segunda dessas guerras: suicidou-se em 1942. Embora sua fragilidade psíquica já tivesse se manifestado na forma de surtos psicóticos desde os 13 anos, com a morte da mãe, não se pode menosprezar o peso de mais uma guerra nos motivos que a levaram a uma nova tentativa, desta vez bem sucedida, de tirar a própria vida.

Vista de hoje, a geopolítica mundial que se desenhou a partir do fim da Segunda Guerra gerou uma situação qualificável como de guerra permanente. De modo su-maríssimo poderíamos dizer que, primeiro, no contexto da guerra fria, as duas gran-des potências produziram conflitos de várias ordens nos seus círculos de influência. Com a extinção da União Soviética, assistiu-se, no Leste Europeu, a um pipocar de guerras localizadas, nas quais os Estados Unidos tiveram presença significativa. E mais recentemente, as incursões do imperialismo norte-americano nos territórios árabes, na tentativa de proteger seus interesses econômicos, têm perpetuado o esta-do de guerra, fazendo dele o pão nosso de cada dia. E se assim é para os países do centro do sistema capitalista, não poderia ser melhor nas periferias. Na América Latina, onde a perversidade da exploração é secular, o desmonte do aparelho de Estado, tão caro ao triunfante projeto neoliberal, tem deixado áreas inteiras em mãos de facções criminosas, que aí impõem sua lei. De modo que, hoje, a sobrevi-vência diária em qualquer metrópole desta parte do mundo requer o domínio de um sem número de pequenas táticas de autodefesa. Numa avaliação muito aguda da situação atual de guerra “cosmopolita” permanente, Paulo Arantes observa que

já não é mais possível distinguir a economia de guerra de economia de tempos de paz: vão se consolidando assim zonas formalmente em paz nas quais, todavia, grassam a violência e a cri-minalidade. Ao contrário da guerra clausewitziana, limitada no tempo e perseguindo dramatica-mente seu desfecho fatal, as novas guerras se arrastam indefinidamente, nada é conclusivo: mais uma vez, et pour cause, a começar pela indistinção, que tende a se perenizar, entre a guerra e a paz [...] uma inovação crucial para a compreensão dos novos tempos.15

Nesse contexto, não parece casual que um representante da novíssima ficção brasileira, Bruno Zeni, tenha produzido um texto curto, intitulado “Célula de identidade” que, guardando significativas semelhanças com o de Woolf, dele se distingue em aspectos também significativos. O texto foi publicado em 2003, na antologia coletiva PS:SP. Como no de Woolf, encena-se nele o movimento de uma consciência perceptiva, num dado momento. Como ponto de referência que anco-ra esse movimento, no exterior, encontra-se também uma marca. Só que agora recuada para o próprio corpo: trata-se de um corte na mão. Essa imagem, cujas contínuas retomadas escandem o texto do início ao fim, está presente desde as primeiras linhas:

15 Paulo Arantes, “Notícias de uma guerra cosmopolita”, in Extinção, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 50.

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Cortei as costas da mão. Não sei como. O corte apareceu, vermelho, sangrando pouco, ar-dendo. Eu estava em casa, então foi em casa mesmo, em alguma quina de mesa, tampo da pia ou raspando a borda de alguma folha de papel, afiada como lâmina. Não dei muita importância, continuei fazendo o que tinha para fazer. Isso já faz uns dias, na real. Hoje olhei a mão direita e o corte, cicatrizado, me chamou a atenção.16

Como se vê, há mais semelhanças com “A marca na parede”, além da presença da marca/corte. A partir do “hoje” da enunciação, a subjetividade recua a um pas-sado próximo, em que pela primeira vez percebera o corte. Da mesma maneira, a casa é o local dessa experiência passada. Na sequência, outra semelhança aparece-rá, agora com uma modificação substantiva: a subjetividade também se concentra na elaboração mental de sua experiência; só que essa se resume de modo quase obsessivo, aos episódios da guerra urbana vivida diariamente em São Paulo. De-pois de, com alguma minúcia, descrever o aspecto do corte, o eu se refere à pri-meira matança de que se ocupará:

Faz frio finalmente, depois de um outono quente. Chove também. Na TV, vi uma reporta-gem sobre um homicídio na periferia de Guarulhos. Periferia da periferia. O cara apagou um outro cara por causa de 50 reais.

E o que segue são desdobramentos desses primeiros registros de violência, que se concentra pela superposição e fusão das imagens iniciais: a casualidade do apa-recimento do corte ecoando na total banalidade da eliminação de uma vida huma-na. Diferentemente de “A marca na parede”, que conseguira confinar o horror da guerra no lado de fora da consciência, da casa e do texto, encontrando desse modo amplo espaço mental para se mover por vários e amenos assuntos; agora esse hor-ror a tal ponto constitui a vida subjetiva que tomou conta de tudo, erigindo-se em assunto único.

A essa diferença se acrescentam outras, correlatas. Assim, a casa já não prote-ge. Nela se destacam só os possíveis instrumentos de agressão ao corpo: a quina da mesa, o tampo da pia e a borda da folha de papel, “afiada como lâmina”, metá-fora que também sinaliza a contundente experiência registrada, no papel-texto, justamente pela mão direita, que está cortada. Além de não proteger, a casa nem parece lugar onde se mora; nela, nem o texto se demora. O ambiente principal agora é o de uma padaria, a “padoca”, espaço ao qual o “hoje”, da enunciação, parece estar mais vinculado. Inclusive por ser ele o que tem maior presença no texto que, sem quebra de continuidade, passa da referência ao assassinato, à coxi-nha comida na padaria:

A TV botou na tela a 3x4 do morto: meia-idade, quarenta, por aí, mulato, bigode. Tava de terno na foto. O que matou tá foragido. Terminei a coxinha e o refri, pedi um café pro mano da padoca. Olhei de novo o corte. Às vezes esqueço dele, mas hoje, duas vezes, me peguei olhando a mão demoradamente, acho que admirando a cicatriz, o corte se refazendo, a forma.

16 VV.AA, PS: SP, São Paulo, Ateliê, 2003. Zeni nasceu em 1975, em Curitiba. Formado em jornalismo, publicou O fluxo silencioso das máquinas, pela Ateliê, em 2002.

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O deslizamento que, da casa, desloca o foco até colocá-lo na padaria é tão su-til que não é possível saber exatamente onde acontece a passagem. Até porque o que se encontra na juntura entre os dois espaços é a TV que, como sabemos, tem hoje um lugar tão central na vida de todos que muito verossimilmente está pre-sente tanto na casa como na padaria. E aqui surge nova e significativa diferença com relação ao texto de Woolf. Enquanto no ambiente protegido do lar tudo se concentra em torno do calor e aconchego da lareira, nessa terra de ninguém por onde transita a personagem de Zeni, a TV é o signo maior da anulação da antiga esfera privada, invadida e subjugada por uma ordem pública impessoal que não dá mais nenhuma garantia. A seqüência de matanças que a TV escancara diante da personagem (cita-se um conhecido programa, “Cidade Alerta”), tirando-lhe qual-quer distância que possibilite alguma reflexão, serve somente para reforçar a sen-sação de que todos estão, igualmente, à mercê da barbárie. Além disso, o modo implacável como a TV impõe sua ordem impessoal diante de uma subjetividade indefesa, agora inteiramente à mercê dessa nova configuração do espaço público, não deixa dúvidas quanto ao encolhimento do espaço reservado ao eu.

Outra mudança significativa: no texto de Woolf, a possibilidade de criar um círculo de proteção permitia até mesmo a exclusão de qualquer outra pessoa, do âmbito da intimidade do eu. Agora, o sujeito inteiramente entregue à ordem do mundo terá no seu outro uma simples repetição daquilo em que se tornaram todas as subjetividades: átomos aglutinados na massa anônima, por isso mesmo só iden-tificáveis pelos uniformes que usam:

Olhei de novo os funcionários da padaria. Todos de uniforme. Na padoca da esquina da minha casa também é assim – todo mundo de uniforme. Teve um dia que estranhei ver um dos funcionários sem uniforme, de roupa normal. Parecia outro.

Todos bovinamente esperando sua vez de serem as vítimas do próximo morti-cínio. Nesse sentido, o último resquício de uma antiga e agora irreconhecível tábua de valores se mostra no rápido diálogo travado entre a personagem e o “mano da padoca”, sobre o preço de uma vida humana, ou sobre o que signifique bem e mal:

O garçom pôs o café na minha frente.

– Vê se pode. O cara mata por 50 reais... Tem cara que assalta ônibus, padaria. É fraco, num pode.

Depois do intervalo, outra reportagem sobre um cara baleado no assalto de um ônibus. A TV mostrou a mancha de sangue no asfalto, as viaturas em torno, as pessoas saindo dos ônibus. [...]

– Aí, não falei? Neguinho assalta ônibus. Num pode. Tem que assaltar banco, carro forte, num é? – ele falou enquanto lavava os copos na pia atrás do balcão. [...]

– Cê mora onde? perguntei pro cara da padoca.

– Vila Selma. Atrás do shopping Interlagos. Zona Sul. [...]

– Embaçado lá?

– Não, tranqüilo. Lá não tem tiroteio, assalto a ônibus. É bom. Uma vez só, uma vez mata-ram três. Uns três que tentaram assaltar uma padaria.

Com relação ao texto de 1917, o de 2003 mostra, sobretudo, carência de pers-pectiva temporal, resultado da destruição do espaço que antes permitia a reflexão.

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Em “A marca na parede”, o exercício da crítica respondia não só pelo tom de ironia das observações de um sujeito que, decidida e claramente, usava seu direito de avaliar; respondia também por um estilo feito de frases complexas, dominadas, sobretudo, pela subordinação. Em “Célula de identidade”, um acúmulo de frases curtas, que quase só descrevem e constatam, apenas longinquamente apontam para um arremedo de avaliação, às vezes na forma de uma nostalgia empalidecida:

Daqui da minha janela, vejo a paisagem histórica de São Paulo lá fora, pensei. A Serra da Cantareira ainda está ao fundo, de um verde denso e intacto – dizem que é de lá que vem a água que a gente bebe. Espalhadas à esquerda e à direita, vejo algumas chaminés de fábricas. Desati-vadas, a maioria, mas uma ainda expele fumaça. Os carros correm na marginal, pra cá e pra lá do rio – dá para ver quando se fixa o olhar. O trânsito aéreo também é grande: aviões e helicóp-teros percorrem o céu, dia a dia, o dia todo. [...] Há as casas mais antigas, para os lados da Lapa, mas fizeram também umas torres de escritórios novas – o capital avança – na Barra Funda.

Significativamente, a dimensão temporal histórica se espacializa, transfor-mando-se em paisagem; e se naturaliza, confundindo-se com o verde da serra. O universo onde vive o anti-herói de Zeni sofreu um gigantesco encolhimento. Des-truiu-se o passado e com ele a visão em perspectiva e o manancial onde buscar as formas de organizar a experiência. Resta um presente achatado que se descortina à janela como pura superfície. E mais: se a marca/corte, como fronteira entre dois espaços, recuou para o corpo, agora transformado em parede, onde teria ido parar o eu em fuga? Entrincheirou-se, talvez, no microespaço da célula, último reduto da identidade?

As metamorfoses do sujeito (à guisa de conclusão)

Também no Tristram Shandy a guerra comparece como contraponto, no espa-ço público, da esfera privada de Shandy Hall, a casa do pai de Tristram, a partir da qual o narrador desenrola as inúmeras histórias encartadas na história principal, a de seu nascimento. Uma delas é a de Toby, seu tio, cujos lances acompanham sua participação em alguns episódios da Guerra de Sucessão da Espanha. Ferido, Toby é obrigado a se afastar dos campos de batalha, com o que muito se entristece, for-temente dedicado que é às atividades bélicas. Para confortá-lo, seu criado de quar-to constrói-lhe uma réplica daqueles campos, passando Toby a “brincar” de fazer guerra. Como consequência de tal redução da importância da guerra, Rouanet aponta a desmaterialização da história real que se torna abstrata e vazia: “concre-tas são apenas as maquetes com que Toby a representa. Ela é miniaturizada, ca-bendo no fundo de um quintal. Impossível desvalorização mais contundente”.17 Tão grande é a força da esfera da subjetividade que, correlata à hipertrofia do pla-no individual, ocorre uma espécie de atrofia do âmbito público da guerra, trans-formada em simples brincadeira de adultos.

O sujeito de “A marca na parede”, embora ainda hipertrofiado, deve entretan-to disputar com o mundo um espaço que a presença incontornável de uma parede

17 Rouanet, Riso e melancolia, op. cit., p. 122.

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diante dos olhos revela já estar francamente tomado pela guerra. No final do pro-cesso, o texto de Zeni encena uma subjetividade em estado de atrofia que apenas espelha a realidade da guerra, incapaz de refletir sobre ela. Aqui, como no Tristram Shandy, só que por motivos opostos, esvazia-se a história real, agora transformada em paisagem.

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Comentando a alteração sofrida pelo romance a partir de Proust, no que se refere à distância estética, Adorno observa que enquanto no romance tradicional essa distância era fixa, será agora variável “como as posições da câmara no cine-ma”. Nesse processo, ele reserva a Kafka um papel especial:

O procedimento de Kafka, que encolhe completamente a distância, pode ser incluído entre os casos extremos... [...]. Por meio de choques ele destrói no leitor a tranqüilidade contempla-tiva diante da coisa lida. Seus romances [...] são a resposta antecipada a uma constituição do mundo na qual a atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação estéti-ca dessa situação.18

Em “A marca na parede”, o sujeito em guarda contra o mundo encontra no caracol o modelo para sua busca de proteção, redobrando-se para dentro de si mesmo. Em “Célula de identidade”, não há mais proteção possível, nem mesmo no nível da pele, pois a marca/corte aí instalada tem, como diz o texto, “a forma de um escorpião”, o corpo sendo, ele próprio, o lugar da violação do eu.

Entre o caracol, criatura que a alguns talvez repugne mas que não apresenta perigo, e a clara ameaça de um escorpião, não há como não lembrar o inseto cla-ramente repugnante, embora ainda também não ameaçador, em que se vira trans-formado Gregor Samsa, ao acordar, uma bela manhã. Parece que o processo de reificação, que em Woolf, Kafka e Zeni responde pela aproximação do humano a formas animais cada vez mais ameaçadoras, vai num crescendo. A personagem de Zeni é fruto de uma época em que, no dizer de Christopher Lash

a preocupação com o indivíduo [...] assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro. [...] Desde o término da Segunda Guerra Mundial, o fim do mundo assomou como uma possibilidade hipotética, mas nos últimos vinte anos, a sen-sação de perigo cresceu ainda mais... [...] O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é “soberano” ou “narcisista”, mas simplesmente sitiado.19

Assim, do texto da escritora inglesa, ao do brasileiro, parece possível ler o processo já concluso de instalação da barbárie, deixando para trás o tempo em que a catástrofe era apenas uma ameaça.

18 Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, op. cit., p. 61.19 Christopher Lash, O mínimo eu, trad. João Roberto Martins Filho, São Paulo, Brasiliense,

1986, p. 9-10. Fazendo de William Burroughs um de seus exemplos, Lash diz que esse escritor “toma como tema não o eu soberano de uma tradição literária anterior, mas o eu sitiado, programado e sob controle” (Idem, ibidem, p. 123).

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* Este artigo é uma adaptação do capítulo sobre Maria José Dupré de minha dissertação de Mestrado, defendida em 2008, pela área de Literatura Brasileira do DLCV-FFLCH-USP, sob orienta-ção do Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes.

O REALISMO DOMÉSTICO DE MARIA JOSÉ DUPRÉ*

BIANCA RIBEIRO

Universidade de São Paulo

ResumoO objetivo deste artigo é a análise de dois romances de Maria José Dupré, escritora da década de 1940. Em Éramos seis e Gina, procuramos articular o contexto social da época à for-ma das narrativas, preenchendo lacunas deixadas pela crítica nacional, ciosa dos grandes nomes do panteão modernista – o que não constitui propriamente um problema, mas por vezes deixa passar aspectos da relação entre literatura e so-ciedade que somente os escritores ditos “medianos” são ca-pazes de revelar.

AbstractThe aim of our essay is the analysis of two novels by Maria José Dupré, a 1940’s Brazilian writer. In Éramos seis and Gina, we try to articulate the social context of the time to the formal as-pects of the narrative, filling up spaces that were left by the Bra-zilian literary critics, always worried about the great modernist writers – not that this constitutes itself a problem, but sometimes leaves untouched aspects of the relation between literature and society that only the average writers are able to reveal.

Palavras-chaveMaria José Dupré; São Paulo; modernidade; literatura e sociedade; anos 40.

KeywordsMaria José Dupré; São Paulo; modernity; literature and society; 1940’s.

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No dia em que vende a casa da Avenida Angélica onde morou por muitos anos, para com o dinheiro ajudar Julinho, seu filho comerciante, a dona de casa Lola olha, pela última vez, para o seu lar:

Depois que Carlos se fechou no quarto, fui então dizer adeus à casa. Reparei que quase todos os trincos estavam quebrados e muitas janelas sem vidraças. A pintura também estava descascada; sentei-me num caixão cheio de livros e recapitulei toda a minha vida. Olhei tudo: ali havíamos passado horas e horas todas as noites depois do jantar. Cada um contava o que tinha feito; ali conversávamos, e fazíamos nossos planos. Havia tanto de nós mesmos naquela sala; parece que um pedacinho de cada um ficava enterrado entre aquelas paredes. Passei as mãos por elas, mansamente. Por que ser sentimental?1

Esse trecho de Éramos seis, publicado em 1943, consubstancia, no momento da lembrança da personagem-narradora, a casa e seus habitantes. Por um momento, os dois são uma coisa só, e as paredes falam sobre quem ali viveu; como mortos sepultados na terra, seus moradores estão enterrados dentro delas, e só a evocação é capaz de os fazer reviver. O olhar de Lola é marcado pela ruína. Ao perceber os trincos e pintura desgastados, ela já está se distanciando do espaço com o qual possuía tanta intimidade, pois normalmente não reparamos nos detalhes externos das coisas com as quais convivemos, marcadas pelo nosso uso. Esse afastamento permite que ela note os sinais do tempo, a aproximação da morte; não é à toa que ela se senta num caixão, e não num caixote, e evoca a imagem dos pedaços de cada um contidos nas paredes. A casa custou sacrifícios enormes, e quem a descreve é uma mulher pequeno-burguesa, interiorana, que pagou as suas últimas prestações fazendo doces por encomenda, ofício aprendido com sua mãe, pois enviuvou cedo, com quatro filhos para criar. Esse é o momento da derrota dela e de Júlio,

1 Maria José Dupré, Éramos seis, São Paulo, Ática, 1987, p. 179.

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seu marido, pois a perda da casa significa uma ascensão social malograda: não é mais possível morar na Av. Angélica, localização “fina”,2 próxima dos parentes ricos, como a tia Emília, a quem devem tantos favores. Hoje, o trecho da avenida no qual o romance foi provavelmente ambientado ainda possui uma e outra casa antiga, com jardim na frente, frontão de arcada circular e portão baixo; mas elas são, agora, estabelecimentos comerciais. O Elevado Costa e Silva esconde a bele-za que a Praça Marechal Deodoro provavelmente um dia teve, e nas lojas de mó-veis antigos da Avenida São João é possível ver armários e espelhos velhos cheios de marcas e lembranças da imagem de quem um dia neles se mirou, e provavel-mente já morreu.

O trecho também evoca os planos feitos em família, num tempo em que o grupo familiar acreditava poder prosperar como núcleo fechado frente às forças dissolventes da cidade,3 que tende a isolar os indivíduos. Mas sabemos que a vitó-ria, no romance, cabe à última: a família aos poucos se desfaz, numa derrocada que começa com a viuvez de Lola e termina com a partida de Julinho para o Rio de Janeiro, em busca de um futuro melhor, como empregado do mesmo patrão de seu pai, além do casamento de Isabel com um homem desquitado e a sentida mor-te de Carlos. As mãos que tocam as paredes selam também a queda simbólica delas. Lola vai viver o desterro após sair dali. Vai para uma casinha na Barra Fun-da, onde perde Carlos, e depois para um pequeno e sombrio quarto numa pensão de freiras, próximo a um jardim que traz sutis alegrias à sua velhice. Seus anos de sacrifício como dona de casa, até então raramente percebidos, irrompem com for-ça justamente nessa passagem, que sintetiza o modo de o romance lidar com a memória. É quando o trabalho cessa que as lembranças surgem, como se o sentido das coisas, a percepção mais ampla e profunda do tempo e da vida, fossem abafa-dos pelas mãos grossas e já pintalgadas de velhice da doceira Lola, que não para-vam de trabalhar. A sala encerra as vozes, os rostos, as esperanças, assim como o espelho do armário na loja de móveis velhos fala, em voz cifrada, da juventude esperançosa que em frente a ele se arrumou. O espaço doméstico e a luta da pe-quena burguesia para manter-se, talvez pela primeira vez em nossa literatura,4

2 Segundo o Sr. Amadeu, “Na minha infância o bairro fino mesmo era a avenida Paulista, avenida Angélica e imediações. Higienópolis nesse tempo ainda não era. Pra esse lado do Brás, Cambuci, Belenzinho, Moóca, Pari, aqui tudo era uma pobreza, ruas sem calçadas, casas antigas, bairros po-bres, bem pobres”. A infância do Sr. Amadeu se passou nos anos 1920, a mesma época em que é ambientado Éramos seis. Note-se a pobreza dos bairros mais periféricos: é no Cambuci que Lola vai morar na continuação do romance de 1943, Dona Lola, o que demonstra bem a falência do seu pla-no de ascensão social. Para o depoimento, ver o livro de Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 132.

3 É por isso que, ao perceber a desagregação da família, Lola usa um termo de guerra: “Já não éramos seis, como um ano antes. Dois tinham desertado!” [grifo meu] (Dupré, Éramos seis, op. cit., p. 115).

4 Segundo Luís Bueno, o que marca o romance de 30 é um “gesto de abertura para outros mun-dos marginalizados de nossa ficção”; isso ocorre principalmente através da investigação geral da vida proletária realizada na época, predominantemente masculina. A personagem feminina mais recorrente do romance de 30 é a da prostituta; uma figura como a Conceição de O Quinze, por

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adquirem uma profundidade trágica que brota do mais cotidiano, do mais sim-ples: vidraças de janela, pintura descascada.5 Em outro trecho, é o abrir e fechar das janelas, na pequena copa onde a família se reunia para as refeições, que vai marcar o ritmo de uma rememoração que lamenta a perda dos filhos, quando só Lola e Carlos moram na casa:

E à noite, quando ele [Carlos] voltou, ficamos nós dois em silêncio, um na frente do outro, na pequena copa que durante anos e anos tinha reunido toda a família à hora do jantar. No verão, um dizia: “Abra as janelas, está fazendo calor!”. E no inverno outro pedia: “Feche a jane-la, está fazendo frio!”.6

Os filhos eram a razão de ser de Lola, que viveu em estado de fusão e harmo-nia com eles enquanto eram pequenos. Sua vida toda se desenrolou entre as qua-tro paredes da casa, ao contrário da de Júlio, muito mais ligado à rua, ao mundo dos negócios. Só uma mulher como ela poderia conferir tamanho grau de profun-didade aos detalhes da casa; é sua imanência7 aprofundada, seu “tom humilde” condizente com sua condição, muito notado pela crítica,8 que confere ao romance a pungência e a forte verossimilhança. Esse “olhar míope”9 vai ser explorado de

exemplo, é exceção ao fugir da dicotomia namorada-prostituta que marca as obras dessa década. Éramos seis não se enquadra nem no romance intimista de uma Lúcia Miguel Pereira, por exemplo, preocupado com os rumos existenciais da mulher no fim da década de 1930 (uma mulher que ousa-va rejeitar, como no romance Em surdina, a obrigação do casamento e assumia sua solteirice enfren-tando a pressão familiar), nem na preocupação regional dessa mesma época; é antes uma investigação da vida e do trabalho da dona de casa, algo inédito até então. Ver, sobre o romance de 30, Rachel de Queiroz e Lúcia Miguel Pereira, o livro de Luís Bueno, Uma história do romance de 30, São Paulo, Edusp, Editora Unicamp, 2006, p. 283.

5 Creio que é nesse sentido que Otto Maria Carpeaux diz que “com impaciência estou esperando que um crítico da novíssima geração dedique trabalho de análise estilística às imagens da vida do-méstica nos romances da Sra. Leandro Dupré”. Ver o ensaio “O crítico Augusto Meyer”, em Otto Maria Carpeaux, Ensaios reunidos 1942-1978, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, v. 1, p. 852.

6 Dupré, Éramos seis, op. cit., p. 169. 7 Para Simone de Beauvoir, “o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sen-

do, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. [...] O drama da mulher é esse conflito entre a reivin-dicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial”. Essa “inessencialidade” constitui a imanência, ou seja, a vida feminina limitada por seu caráter não autônomo (ver Simone de Beauvoir, O segundo sexo, trad. Sérgio Milliet, São Paulo, Círculo do Livro, s. d., p. 27).

8 Enquanto Valdemar Cavalcanti nota que não há “nada de grandioso na estrutura de seu ro-mance; nada de excepcional na fisionomia de seus personagens; nada de enfático na narrativa, feita em primeira pessoa”, Oliveira Neto assinala que Éramos seis “nada tem de profundo. É banal como a vida cotidiana”, mas “nunca se torna monótono porque possui o calor da vida e a vida sempre interessa profundamente”. A maioria dos críticos percebe sempre a adequação entre o tom da narra-dora e o material narrado. Para uma pequena seleta de trechos críticos sobre o romance, ver as pá-ginas finais de Maria José Dupré, Dona Lola, São Paulo, Brasiliense, 1949.

9 O termo é de Gilda de Mello e Souza, e aparece no ensaio “O vertiginoso relance”, sobre A maçã no escuro, de Clarice Lispector (ver Gilda de Mello e Souza, Exercícios de leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1980, p. 79).

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forma diversa em uma escritora como Clarice Lispector, que no mesmo ano da publicação de Éramos seis estreia com Perto do coração selvagem, e vai fazer mais adiante reflexões profundas que partem do método de uma dona de casa para matar baratas, por exemplo.

“Por que ser sentimental?” O tom de forte saudosismo, que marca o ponto de origem da narrativa, iniciada a partir da Lola exilada na pensão de freiras e que, num passeio pela avenida, vê da rua a casa antiga e nela penetra com os olhos da imaginação e da lembrança, se relaciona não só à velhice, mas a uma nostalgia já contida na jovem Lola do passado, a que é rememorada e atua na maior parte do romance. Além desses dois tempos, na narrativa das lembranças dois espaços se articulam: o da São Paulo dos anos 1920, que crescia intensamente em meio aos bombardeios de 1924 e à Revolução Constitucionalista, e Itapetininga, a província natal de Lola e sua família, que de tempos em tempos lhe envia doces, além das visitas recíprocas. Os doces, por sua vez, são a nostalgia materializada. Feitos em grandes tachos, em porções generosas, tradicionais, remetem ao Brasil pré-indus-trial. É por meio da contagem dos tijolos de doce que são enviados a São Paulo que Lola vai tomando consciência clara da diminuição de sua família, até que, no desfecho do romance, ela recebe um pacote com apenas um pedaço de cada doce. Éramos seis: o saudosismo já está colocado na forma verbal do título. Em Itapeti-ninga, todos se conhecem e a rede de parentesco é ampla; na capital, a família nuclear numerosa, meio-termo entre a grande família provinciana e a família ur-bana de classe média, com no máximo três filhos, se forma e se desmembra aos poucos, dando a dimensão de sua fragilidade. A cidade é ameaçadora, e uma noite faz desaparecer Alfredo, o filho mais rebelde, que fugiu de casa porque apanhou do pai, fazendo Júlio e Lola passarem a noite em claro. Nas praças, para o desgosto de Lola, passeiam homens “absurdamente” desquitados, entre os quais o futuro noivo de Isabel, Felício. Não será possível a Lola, como foi possível para sua mãe, viver perto dos filhos durante toda a vida, encontrá-los na vizinhança, contar com sua ajuda. Na Av. Angélica, os vizinhos são anônimos, com exceção da dona Genu, figura inconformada com as diferenças sociais – o que vai levar os filhos de Lola a chamarem-na de “comunista” – e resquício de um tempo de sociabilidade mais ampla. Com o tempo, o anonimato da grande cidade ganha proporções enormes; a Lola já velha, ao andar pelo quarteirão da antiga casa, observa prédios novos que foram construídos ali. Os monstros de concreto sepultam e abafam, com sua sombra, a memória.

A dificuldade para manter-se em Higienópolis relaciona-se, também, com a condição de primos pobres de Lola e Júlio, principalmente de Lola. Quando vão ao casamento de uma das filhas da chique tia Emília, as botinas de Júlio rin-cham, a maquiagem de Lola derrete, as barbatanas do espartilho torturam sua corpulência maternal. Para eles, é o ambiente pequeno-burguês, com meia e chinelo, roupão, jornal e tricô, a verdadeira delícia do estar à vontade. O roman-ce não deixa de ser a história da luta para a manutenção desse ambiente, esforço que fracassa: no Brasil, ele parece não se constituir com a mesma estabilidade

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dos países centrais;10 num romance como Os Buddenbrooks, o mal irrompe de forças internas da própria família, desagregando-a através da doença; por mais que a ação fale de uma transição histórica, o cotidiano doméstico em si nunca é ameaçado de fora, mas degenerado por dentro; a mesma inviolabilidade do lar burguês vai participar dos tormentos de Emma Bovary, e o Une vie, de Maupas-sant, citado por Monteiro Lobato em seu prefácio sobre Éramos seis,11 embora fale também de uma derrocada social – a nobre Jeanne vai morar numa casinha burguesa por causa das imprudências de seu filho bon vivant – é um romance centrado na investigação da psicologia feminina, na realização da mulher insatis-feita através da maternidade, no tédio e nos enganos do casamento. Mesmo con-tando com a possibilidade dos empréstimos de tia Emília – afinal, vêm dela mui-tas das encomendas de doces que ajudam Lola a pagar a casa – a situação social não se sustenta. Os sonhos de Carlos, que queria cursar medicina, fracassam. Ele vira bancário e morre, como o pai, de uma úlcera no estômago, como se não ti-vesse conseguido resistir à frustração e às pressões da vida urbana. Isabel se forma professora, pela Escola Normal, graças a grandes sacrifícios da família; mas escolhe trabalhar como secretária, isso só até o casamento (em Dona Lola, temos a continuação de sua história, como veremos adiante); Alfredo, sempre tão atraído pelo mar e pela liberdade, deixa o serviço de mecânico, envolve-se com o comunismo, é perseguido pela polícia (na única alusão, bastante velada, ao Estado Novo, na narrativa) e foge, num navio, para os Estados Unidos.

Lutando para não cair na situação proletária e, ao mesmo tempo, almejando alcançar uma estabilidade plena (materializada geralmente na posse de um imóvel) que esconjure a ameaça do rebaixamento social, a classe média que surge no ro-mance justifica seu sacrifício através do moralismo cristão de Lola que, como mulher, põe tudo e todos antes e acima dela mesma, vivendo devotada à família; de outra forma, esse equilíbrio delicado da pequena burguesia também surge no rancor de classe de Júlio, que sempre reclama do egoísmo de tia Emília e dos ricos em geral, todos maus pagadores, segundo ele. Embora por vezes sustente o tipo do “pai soturno”, com mulher submissa e filhos aterrados, impondo sua tirania por qualquer motivo e chegando bêbado em casa, Júlio é, como Carlos, um ho-mem consumido pelo trabalho; diferentemente do filho, é incapaz de se realizar no ambiente doméstico, chegando em casa de madrugada, com os bolsos cheios

10 Embora trate de uma outra classe social, Os Corumbas, de Amando Fontes, narra também um fracasso familiar: unida no sertão, a família sergipana vive em Aracaju sua derrocada. As filhas ope-rárias caem na prostituição, os filhos homens somem pelo mundo. De forma e em graus diferentes, é a mesma instabilidade que está presente em Éramos seis (ver Amando Fontes. Dois romances: Os Corumbas e Rua do Siriri, Rio de Janeiro, José Olympio, 1961).

11 “Espécie de UNE VIE, de Maupassant – mas que encanto de livro! Que riqueza de vitaminas! Não chega a ser um romance. É um borrão, um croquis, um esboço de romance, feito ao galope da inspiração, para depois ser aperfeiçoado, descascado, despeliculado, repolido até ficar nacarino e beribérico – mas a autora, em vez disso, mandou-o ao prelo tal qual lhe saiu. Não teve paciência para estragá-lo, nem deixou que nenhum abelhudo o estragasse” (ver Monteiro Lobato. “Prefácio”, em Maria José Dupré, Éramos seis, São Paulo, Saraiva, 1966, p. 10).

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de notas de bebidas que pagou para os amigos. Como uma camisa de força, a famí-lia o prende, o constrange; isso não acontece com Lola, que se realiza nos filhos12 – e o desgaste dela ocorre de outra forma. A perda da família é a razão de ser da narrativa, que pode ser lida como uma longa queixa. Essa mulher mansa, traço no qual a crítica viu uma virtude,13 está, também, reclamando a seu modo, ao não omitir os sofrimentos pelos quais passou. Fica implícita, no livro, sua dor em re-lação à ingratidão de Isabel, ao abandono de Alfredo, às grosserias de Júlio.

O potencial folhetinesco da trama não é novidade;14 adaptado para telenovelas diversas vezes,15 a última versão televisiva do romance foi ao ar pelo Sistema Bra-sileiro de Televisão (SBT), nos idos de 1994. Nela, uma Irene Ravache de olhos meigos e vestidos recatados contracenava, na mesa de refeições da família, com um aterrorizante e mal-humorado Júlio, interpretado por Othon Bastos, tudo isso no horário das seis, enquanto as espectadoras saudosas preparavam o jantar, entre uma e outra olhadela em direção à TV. É que, por sob os recortes de memória da trama, que são espantosamente lineares (no que alguns podem ver uma falha de verossimilhança) e de fácil leitura – Lola recorda com sequência cronológica clara, nomeando os anos com fatos significativos da família, como formaturas e casa-mentos –, está um tema folhetinesco de grande apelo: o da “desgraça pouca é bobagem”,16 que, além de entreter com a sequência sem fim de tristezas, ameniza

12 Aqui, a comparação já mencionada de Éramos seis com Une vie, feita por Lobato, é certeira: assim como Lola, Jeanne, a protagonista do romance, é submissa, sofre com o egoísmo e a mesquinhez do marido, vive em prol do filho e, mulher do campo, sente-se perdida em meio à cidade. O episódio em que ela, arruinada pelo filho, se despede da casa onde sempre viveu, lembra bastante a cena de Lola despedindo-se de sua casa (ver Guy de Maupassant, Une vie, Paris, Librio, 2005, p. 164).

13 O crítico sueco Thorsten Nunstedt refere-se a “Dona Lola, cuja imagem se grava em nossa memória, como o protótipo de milhões de mães, que lutaram, choraram, trabalharam e sofreram até morrer para o bem do lar e da família. Por isso se pode dizer com razão que Vi Sex é um roman-ce épico das mães altruístas, um livro do lar e do amor”. Para Roberto Lyra, “ela é tudo, porque é mãe pobre, extremosa e resignada” (ver a já citada seleta crítica em Dupré, Dona Lola, São Paulo, Brasiliense, 1949).

14 Ao ser perguntada sobre o que causou emoção num livro lido ultimamente, uma das operárias entrevistadas por Ecléa Bosi (op. cit.) responde: “Éramos seis: era uma família, quatro filhos, o pai e a mãe. O pai morreu, o mais novo deu para ladrão, a mãe ficava desesperada. Era uma história triste. Era uma história que aconteceu mesmo, uma história comum, por isso gostei” [grifo meu]. Note-se o apelo interclassista do fracasso social contido no romance, uma das razões de seu sucesso – tanto a classe média como a classe operária passam pelas dificuldades vividas por Lola, de forma e em in-tensidades diversas (ver Ecléa Bosi, Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias, Petró-polis, Vozes, 1973, p. 113).

15 Éramos seis é a novela mais regravada da TV brasileira nos últimos cinquenta anos. Entre suas adaptações, podemos mencionar a de 1958, na TV Tupi, a de 1967, na Record, outra de 1977, na Tupi, e a de 1994, pelo SBT.

16 Para Marlyse Meyer, o sucesso do folhetim na América Latina, especialmente sob o gênero “desgraça pouca é bobagem”, bastante presente em um autor como Pérez Escrich, relaciona-se ao fato de que ele “tematizava sub-condições de vida e exacerbadas relações pessoais e familiares. De-senvolvia um paroxismo de situações e sentimentos mal e mal canalizados por uma mensagem conservadora que se desejava conciliadora mas não apagava totalmente seu valor de denúncia e cultivava uma forma de sobressalto narrativo a mimetizar o sobressalto do vivido, amenizando-o

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a dor de nossas desgraças reais e cria a figura do herói martirizado, um exemplo socialmente conveniente a ser seguido, além de cair como uma luva à trajetória social da maioria dos brasileiros, pobres ou remediados. Assim, junto a uma forma linear, que possibilita inclusive a “quebra” e o suspense entre os episódios (daí o sucesso das adaptações para telenovela), está o tema folhetinesco “atenuado”, mesclado ao ponto de vista inovador da narradora. O próprio nome de Lola – Ele-onora – veio de um “romance empolgante”, como ela diz, um folhetim lido por sua mãe (quem sabe da autoria do espanhol Pérez Escrich?). Ao contrário da apa-gada Lola, a moça do romance seria uma exuberante espanhola, que Lola imagina ao ver cartazes coloridos na rua. O toque folhetinesco, além de discreto, é impres-sionante, pois, ao não descambar nos exageros do gênero, torna-se extremamente verossímil. Temos, assim, uma espécie de híbrido bem sucedido entre o romance e o folhetim, sem deixar de lado o melodrama, como veremos adiante; em sua publicação pela Brasiliense (sempre em edições sucessivas, mostrando o sucesso da escritora na época), os romances de Dupré apresentavam capas com desenhos dramáticos, bastante folhetinescos; a capa de A casa do ódio, na segunda edição, de 1951, é toda em tons de preto, roxo e amarelo, com uma casinha ao centro, cerca-da por montanhas e árvores fantasmais, que parecem ameaçá-la; as cercas e o portão estão tortos, as janelas parecem quebradas, sugerindo abandono, desunião e derrocada; a capa de Dona Lola (em sua primeira edição, de 1949), assinada pelo mesmo artista, o Lewy, mostra uma mulher sentada à sombra, no interior de uma casa, observando pela janela crianças que brincam de ciranda em torno de uma árvore; seu olhar transmite a nostalgia e a sensação de tempo perdido da protago-nista da obra; na capa de Os Rodriguez, o tom dramático de Lewy dá lugar a um interior burguês com lareira e retrato na parede, da autoria de Dorca.

Essa forma literária um tanto convencional parece ter agradado bastante Mon-teiro Lobato, que, num prefácio pago17 a Éramos seis, elogia em Dupré sua escrita próxima da fala, ignorando (ou desprezando), em plenos anos 1940, as conquistas de 1922 e o romance de 1930, como se a escritora inaugurasse uma nova linguagem em meio a um contexto de beletristas reincidentes, o que talvez fosse verdade para o panorama de escritores médios da época; mas Lobato, nesse caso, generaliza sem meios-termos. Mesmo assim, o autor de Cidades mortas enfatiza com acerto o caráter envolvente do romance (sem nunca tocar no termo “folhetim”), elogia o tom da fala de Lola e intui o novo olhar que ela contém: a obra, para ele, tem pita-das de gênio, intenso realismo e “ligeiros ‘close-ups’ da cor, do sabor e dos cheiros ambientes, pegados ainda vivinhos”.18

pela magia da ficção”. Além disso, a crítica dá a chave para entendermos a grande influência do fo-lhetim em nossa literatura: “Brasileiro estômago de avestruz. Tudo é indistintamente consumido sob a etiqueta ‘melhores autores franceses’. É tudo novidade de Paris e, como tal, uniforme padrão de qualidade. ‘Altos e baixos’ de lá ficam erodidos ao atravessar os mares, dão aqui um igual que, devi-damente absorvido, também levará à constituição de um outro que é nosso” (ver Marlyse Neyer, Folhetim: uma história, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 382-3).

17 O prefácio da obra foi pago por Leandro Dupré. Ver a autobiografia de Maria José Dupré, Os caminhos, São Paulo, Ática, 1978.

18 Monteiro Lobato, “Prefácio”, op. cit.

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O esquecimento sofrido por Lola, depois de velha, no quartinho da pensão, é a solidão de tantos velhos que trabalharam e, como coisas, “não servem mais”. Tudo, no romance, se aproveita da despretensão da autora para se enraizar no real, sem perder a atualidade, pois fala de uma estabilidade burguesa que fracassa ao tentar se constituir. De fato, o que se estabelece como padrão de vida e habitação para a maioria das pessoas, no Brasil, está bem longe da privacidade, da segurança e do conforto da casa na Avenida Angélica. O sacrifício familiar, engolido pelo ritmo diverso da sociedade ao redor, também se relaciona a um modelo de socia-bilidade privada que não é mais possível; no meio urbano, o modo de vida da fa-mília patriarcal entra em colapso. Num autor como Nelson Rodrigues, ele mesmo marcado pela transição da vasta parentela à família nuclear,19 essa crise toma pro-porções folhetinescas e trágicas. Seus personagens agem através de um código moral que não possui mais o respaldo social de antes, obcecados pela pureza, pela virgindade, e isso amplifica suas ações até o patético; basta pensar nas mortes e desejos incestuosos de obras como o romance O casamento ou então o drama Álbum de família, de 1946; nessas obras, a família implode, como se os incestos cometi-dos no mundo patriarcal (os casamentos consanguíneos, por exemplo) irrompes-sem no seio da família nuclear, pondo a nu a perversão sobre a qual se baseia a formação da família no Brasil, ligada, como sabemos, à concentração da proprie-dade em mãos de muito poucos. O ponto de vista nostálgico, conservador, é por vezes capaz de perceber com maior nitidez o impacto das mudanças históricas no plano individual e social do que o progressista; daí que o problema de Dupré é o de uma “intuição artística que se torna mais forte que as convicções conscientes do artista”,20 e isso parece se aplicar também ao autor de Vestido de noiva: nele a não consideração da situação histórica, a ênfase na individualidade dos persona-gens, é o que permite a irrupção da tragédia; mas essa nos atinge e emociona justamente por tratar (não somente) da história, de algo comum a todos, de forma mediada; ela revela mudanças na estrutura da família brasileira, e não só no inte-rior psicológico, supostamente isolado, das figuras.21

O olhar nostálgico de Lola, limitado à doença das crianças, ao tricô, à arruma-ção da casa, desenha, através do pouco que vê, um movimento de desaparição gradual de toda uma forma de viver, mais lenta, com vizinhas trocando bolos re-cém-assados por entre os muros, o que certamente ainda existe nos subúrbios e

19 Ver Ruy Castro, O anjo pornográfico, São Paulo, Companhia das Letras, 1992. 20 Ver o ensaio “O segredo de Balzac” in Otto Maria Carpeaux, Ensaios reunidos 1946-1971, Rio

de Janeiro, Topbooks, 2005, v. 2, p. 109. 21 Baseio-me aqui nas observações que Eric Auerbach formula sobre o drama clássico francês

em “O santarrão”. No drama de Racine, por exemplo, a “pureza” dos sentimentos dos personagens, distante do realismo cotidiano e aparentemente dissociada da política, é, no fundo, política, pois indica uma separação de público e de gênero relacionada a um determinado momento histórico – o absolutismo. Embora não encontre paralelo social com o drama de Nelson Rodrigues, o capítulo nos ensina que mesmo a arte mais aparentemente isolada de seu meio social traz, dentro de si, a história sedimentada, como diria Adorno (ver Erich Auerbach, Mímesis: a representação da realidade na lite-ratura ocidental, São Paulo, Perspectiva, 2001).

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periferias, mas desapareceu da Av. Angélica. Seu “realismo doméstico”, lento, gra-dual e minucioso, apreende por contraste o movimento da história e, de forma ambivalente, prega a resignação ao mesmo tempo em que registra as queixas, como já mencionamos. Era hábito de Dupré pôr dedicatórias em seus romances; Os Rodriguez, por exemplo, é dedicado a membros de nossa família real, o que faz pensar não só numa romancista entre o campo e a cidade, mas entre dois séculos. Éramos seis é dedicado por sua vez às mulheres que trabalham, empenhado em mostrar o valor do trabalho feminino, menos visível que o masculino por não ser remunerado e se confundir, na ideologia dominante da época,22 com a própria essência da mulher. Nesse sentido, é uma homenagem não somente às donas de casa, mas ainda às doceiras, cozinheiras, às mulheres que sustentam a família com o obscuro esforço de suas mãos: comida para encomendas, artesanato, porcelanas com flores, caixinhas, panos de prato, roupas de tricô, todas essas coisas que en-contramos nos mercados e bingos de subúrbio. Em meio à cidade do “progresso assustador”, como diz Lola, com automóveis aparecendo por todos os lados, é o tra balho das mãos que sabem o ponto das claras em neve, que costuram o pano e fazem o crochê, que se refugiam dentro de casa, trabalho sacrificado mas cheio do olhar de quem o fez, diverso do serviço alienado nas linhas de telemarketing atuais. A pintura do prato guarda o movimento das mãos do artista; os doces de Lola pos-suem o gosto de seu aprendizado em Itapetininga.

A casa é um lugar social; é porque pensa que a casa já pertence à família que o chefe de Júlio na loja de tecidos onde ele trabalha (a indústria têxtil foi o carro--chefe da industrialização brasileira, não custa lembrar) vai fazer-lhe a proposta de sociedade, que fracassa porque tia Emília nega o empréstimo necessário. O “capital social”23 dos parentes pobres não funciona aqui; a família nuclear, no seu início de autonomização, se vê desamparada pela parentela; talvez, se o empréstimo tivesse acontecido, os Lemos tivessem prosperado, como acontece mais tarde a Julinho, que o faz, no entanto, ao preço da casa: a perda do lugar social de toda a família vai garantir a ascensão isolada de um único membro, e todos os outros permanecem na mesma classe (ou decaem sutilmente) e Lola fica abandonada à caridade das freiras. Ela sonhava com os bules de prata da rica tia Emília: nos so-nhos, eles criam pernas e correm, fogem da prima pobretona que acredita na ideo-logia do esforço pessoal deformada por uma moralidade que associa a pobreza ao

22 Segundo Susan K. Besse, “Salientava-se que somente no casamento a mulher poderia encon-trar a verdadeira auto-realização; mas era exatamente no casamento que suas necessidades e ambi-ções pessoais eram subordinadas”. Além disso, ela era vista como a principal responsável pela harmonia do lar e pela criação dos filhos, e caso trabalhasse fora seu serviço não podia entrar em conflito com suas obrigações domésticas; idéias essas muito presentes no poema “Noivas de maio”, de Carolina Maria de Jesus, como veremos adiante (ver Susan S. Besse, Modernizando a desigualda-de: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, trad. Lólio Lourenço de Oliveira, São Paulo, Edusp, 1999, p. 87).

23 O termo é de Sérgio Miceli, muito usado para se referir à parentela pobre das famílias latifun-diárias decadentes após a Revolução de 1930 e suas relações sociais, capazes de remediarem sua situa-ção marginal (ver Sérgio Miceli, Intelectuais à brasileira, São Paulo, Companhia das Letras, 2001).

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caráter das pessoas. Lola compreende o comunismo de forma equivocada, e, à maneira dos boatos que correriam, muito depois, durante as eleições de 1990, acha um absurdo dividir a casa que conquistou com tanto esforço com gentalha como o genro “biscateiro” de dona Genu, caso o socialismo acontecesse. Trata-se de uma narradora que defende a teoria do “pequeno mundo”, tão cara à classe média, e que costuma vir à tona em situações nas quais a mesma se vê obrigada a dividir locais públicos. Ênfase na segurança, pânico do rebaixamento de classe, moralismo mais filisteu do que realmente cristão: está tudo aí, formando outra viga de sustentação da atualidade do romance.

Os conflitos entre irmãos, dentro de casa, ganham uma ressonância dramática que só o olhar da mãe pode captar. Apesar dos momentos de intensa profundidade trágica, como no exemplo em que a casa, ao falar da vida que se foi, propicia tam-bém uma reflexão sobre a morte, Dupré narra o cotidiano doméstico em forma de folhetim; em sua ficção, os acontecimentos exteriores predominam até na interio-ridade dos personagens, numa espécie de inversão curiosa da tendência esboçada, por exemplo, pelo romance de Virginia Woolf, no qual é a interioridade que toma conta da descrição – e já presente, de forma incipiente, no Une vie de Maupassant, preocupado com a psicologia da protagonista. Enquanto os escritores realistas sabiam claramente tudo sobre seus personagens, o escritor moderno perde a segu-rança objetiva de seus antecessores, e tenta se aproximar da realidade através de variadas impressões subjetivas de diferentes personagens. Para Eric Auerbach, essa atenção intensificada a acontecimentos insignificantes e casuais, típica do ro-mance moderno, valorizando o instante comum do homem comum, indica um processo de equalização econômica e cultural da sociedade, que começa a se tor-nar visível já no início do século XX. É interessante notar que a atenção à vida cotidiana ocorre, em Dupré, sem a correspondente virada de ponto de vista: sua narração, conciliando a atenção moderna ao detalhe e o modo realista de narrar, permanece presa ao modelo narrativo do século XIX, que só será rompido por Clarice Lispector, mas, mesmo assim, numa perspectiva sempre preocupada com o outro – culminando em A hora da estrela, romance que mostra que a ficção mo-derna, no Brasil, não pode se esquivar do fato de que a uniformização social a que Auerbach faz menção em “A meia marrom”24 aqui não se realizou de forma plena, ou sequer semelhante à que ocorreu nos países centrais.

Assim, discussões sem maior importância e brigas sérias aparecem na forma de diálogos tensos, nos quais a passagem da irmã por trás da cadeira de Alfredo, para pegar água, tem o valor de um gesto teatral, pleno de substância de memória, assim como o abrir e fechar das vidraças da janela evocava todo um ambiente que desapareceu junto com as pessoas que faziam as coisas se movimentarem. A des-pedida de Alfredo tem uma grandeza dramática capaz de revelar um pouco da intensidade poética de Lola, abafada pela vida que leva. O rosto do filho, visto no quintal por entre os muros de dona Genu, é “pálido com os reflexos do luar”.25

24 Erich Auerbach, Mímesis, op. cit. 25 Dupré, Éramos seis, op. cit., p. 144.

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Como acredita que essa é a última vez que vai falar com ele, Lola diz: “senti um silêncio de morte e ouvi só as pancadas fortes do meu coração”. Para se resignar, ela volta para o quarto e vai olhar para a imagem do Cristo de marfim, deixada por Júlio. No momento da morte de Carlos, no hospital, a dor irrompe em pro-messas de nunca mais beber café para que o filho sobreviva, inserindo no ato mais banal e cotidiano – tomar café – o incomensurável das situações-limite. O ritmo folhetinesco privilegia a ação e é dela, da ação exterior, que brotam as re-flexões contidas na obra; a mão que toca a parede, o sentar-se no caixão cheio de livros aparentemente inertes como a mulher velha mas que, ao serem abertos, reconstroem seu próprio mundo, como o poder da fala dos mais velhos. Não há aprofundamento psicológico, pois se trata de uma narradora que, analogamente porém de maneira mais atenuada que os personagens de Parque industrial, foi constrangida pelo trabalho; Lola sofre de insônias e nelas ocorre uma espécie de monólogo interior, todo voltado, no entanto, para suas preocupações exteriores, que a oprimem até no momento de descanso. Enquanto ouve o incansável galo de dona Genu cantar, pensa nas contas da casa e em se deve ou não deixar Juli-nho ir para o Rio de Janeiro. Lola não possui vida interior consistente, e a narra-tiva elabora isso de forma coerente.

“Construa seu próprio mundo”, aconselha Carlos, fazendo eco aos conselhos da mãe ao conversar com o revolucionário Alfredo, que corre mundo sonhando com a construção de uma igualdade coletiva. Os sonhos de Alfredo se chocam com o pragmatismo de Lola que, enquanto se esfalfa fazendo seus doces, o acon-selha a trabalhar e ser esforçado, defendendo a paz da “vida caseira e pacata”, as-sim como Carlos, que ergue trincheiras em torno de seu “bom sono burguês” e se alista em 1932, retornando da Revolução sem falar de política em nenhum instante. Alfredo, antes de seu envolvimento com os comunistas, vivia do dinheiro da mãe, almofadinha e perfumado; fazia castelos no ar, sonhando com a ascensão social que seu pai fracassou em alcançar, prometendo carros de luxo com choferes ne-gros para Lola. Isabel, a outra filha rebelde, abandona a família e casa-se com Felí-cio sem o consentimento da mãe. Como não podia deixar de ser, esse livro sobre a classe média é também profundamente moralista: aqueles que não dormem o “bom sono burguês” – que é, na verdade, as amargas insônias de Lola e a úlcera galopante de Júlio e Carlos – são egoístas, vaidosos, ingratos, como Alfredo e Isa-bel. O próprio romance é, ele mesmo, a tentativa de reconstrução desse pequeno mundo, em um equilíbrio formal que ocorre à custa de seu fechamento para a realidade ao redor da família, e tem força porque nele a nostalgia não encobre to-talmente o sofrimento. Por mais que os “ingratos” surjam complexos em Éramos seis, é em Dona Lola, continuação da trama publicada em 1949, que o “narrador providencial”, à maneira do folhetim, vai “fazer justiça” e selar seus destinos: Isa-bel sofrerá a violência do marido, Felício; Alfredo voltará enlouquecido da guerra, e Lola fracassa em sua última tentativa de unir a família, pedindo para que Julinho arranje um emprego para Alfredo, que foge para sempre. Carlos, o bom filho, está morto. Lola reconhece que ele, entre todos, ao menos não sofre mais.

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Uma romancista entre o campo e a cidade

Paulista da região da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, a família de Maria José Dupré pertencia ao ramo pobre dos tradicionais e quatrocentões Barros (daí venha, quem sabe, a mania de árvores genealógicas paulistas da tia Emília, de Éramos seis, que não cessa nem à beira da morte). No ir e vir da decadência de sua família, a escritora nasce na pobre tapera de uma fazenda recém-adquirida por seu pai no Paraná, onde ele vai plantar café e ser uma espécie de protetor dos caboclos que moram ali por perto, muitos deles foragidos da lei que marcam as mortes rea-lizadas por eles no cabo de suas armas. O “tempo do sertão”, pouco vivido pela pequena Dupré mas bem conhecido através das histórias dos pais, vira uma época mítica para ela, e certamente idealizada pela família, pois, nesse momento, recu-peram parte de seu prestígio social perdido, prestando favores para a vizinhança. Grandes leitores, envolvendo no cotidiano personagens e episódios de romances e folhetins,26 o gosto literário de seus pais explica a forma convencional de sua obra: os preferidos da casa eram Camilo e Eça, acompanhando o gosto do tio Da-mião, personagem de Dona Lola. A metáfora da água, importante em sua obra, parece nascer da visão de um tanque de águas escuras e represadas da propriedade da família, no qual eram jogados os antigos instrumentos de suplício dos escra-vos, isso ainda na época do proprietário anterior daquelas terras; por isso a “água parada” Rosa, narradora de Luz e sombra, tida como modelo de conduta e equilí-brio, e o inquieto Alfredo, louco pelo mar, depõem contra o próprio tom mora-lizador de seus romances e deixam escapar, por entre a riqueza de sugestões das imagens, uma sede de liberdade positivada e subterrânea em seus romances, dis-tante do que o narrador parece apoiar explicitamente. Mas essa liberdade tem sempre um preço alto: ou a loucura, como acontece com Alfredo, ou a derrocada, ou então a “lição” que ensina humildade para os personagens orgulhosos.

Nascida em uma casa com duas criadas negras e muitos irmãos, Dupré foi a filha temporã da família, e essa solidão parece ter propiciado o desenvolvimento de sua imaginação; boa parte de suas narradoras é de mulheres solitárias. Com um quê de desbravamento bandeirante em seu título, a obra autobiográfica Os cami-nhos mostra que a parte mais interessante da obra de Dupré é justamente aquela que se liga à realidade de sua família decadente, situada entre o século XIX e o XX,

26 O folhetim fazia parte da vida cotidiana da família. Dupré conta com saudades sobre as leitu-ras noturnas realizadas em grupo, que lhe causavam sonhos com os personagens de Dumas. Na sua autobiografia, o folhetim também surge como leitura de “gente importante”, corroborando aquilo que Marlyse Meyer diz sobre a mistura que ocorre, aqui no Brasil, entre os escritores europeus de segundo escalão e os grandes nomes do romance da época: “o folhetim que vinha diariamente num dos jornais da capital era de Dumas: chamava-se ‘Vinte Anos Depois’. Meu pai lembrava: ‘O Colar da Rainha’ também fora escrito por ele. [...] Os Lopes de Sorocaba tinham biblioteca com livros do Alexandre. Gente importante, tinham brasão” (ver Dupré, Os caminhos, op. cit., p. 76). Em relação à influência da forma folhetinesca em sua obra, ela se encontra antes na linearidade da narração dos fatos, sempre clara e fluente, privilegiando a ação, do que no “suspense” e no extraordinário folhe-tinescos, pouco presentes em seus romances.

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entre o gosto por procissões e o casamento com um engenheiro de estradas de ferro, elemento propulsor da modernização. A proteção pelo favor também não está ausente; a avó da escritora, calada e seca como sói ser uma matriarca paulis-ta, é sustentada e protegida por tio Chico, o barão de Tatuí, e Maria José, por meio desse parentesco, consegue a transferência como professora primária de uma cidade na qual a única pousada é uma pensão cheia de ratos que a apavora-vam; em suas memórias, ao contrário do que acontece em Éramos seis, o “capital social” dos parentes pobres funciona, afastando os percevejos e as crianças po-bres trazidos por uma decadência que a professora primária, apesar de gargan tear coragem, não enfrentou.

A ascendência de Dupré inclui o barão de Tatuí, os Barros; são nomes presen-tes nas ruas próximas à Av. Angélica de Éramos seis, sendo a tal Angélica também uma Barros. Educada em casa, Maria José completa seus estudos na Escola Nor-mal da Praça da República, e exerce o magistério por pouco tempo: o casamento com o engenheiro Leandro Dupré é o que vai garantir sua vida como romancista; aliás, sem o apoio inicial do marido, talvez ela não se tornasse escritora. Ao notar na esposa a boa contadora de histórias, Leandro faz a sugestão de que ela escreva contos e romances, aceita timidamente por Maria José, ainda incerta quanto a seus dotes literários; seu primeiro conto, “Meninas tristes”, que fala justamente da re-lação entre a província e a cidade grande, sai sob pseudônimo, em 1939, no jornal O Estado de S. Paulo. Dupré se insere no contexto da produção intensa de roman-ces que se inicia na década de 1930, na qual um novo público começa a se formar, com gosto mediano,27 longe das pequenas rodas modernistas e sua sofisticação literária. Se agora quem dita as ordens é a oligarquia dissidente, acompanhada pela burguesia industrial, resta à antiga oligarquia latifundiária, à qual Dupré per-tence, postos burocráticos no governo e profissões intelectuais; aí residem tam-bém os motivos da grande leva de romances da “decadência” nas décadas de 1930 e 1940. Apesar de ligada aos ramos tradicionais, Dupré oscila em seu ponto de vista, por vezes adotando um certo progressismo mal definido no retrato de mu-lheres contemporâneas e desorientadas de alguns de seus romances. A presença do folhetim em sua obra, por sua vez, fala da formação de um público leitor que toma a literatura de massa da Europa como alta literatura, plasmando formas po-pulares de além-mar a conquistas no campo da linguagem herdadas do modernis-mo, como o coloquialismo que Lobato aponta no romance.28 Tudo isso forma uma mistura palatável e altamente vendável. Leandro era sócio de Monteiro Lobato na

27 Segundo Sergio Miceli, “O primeiro posto da literatura de ficção – e, nessa categoria, a predo-minância dos romances de amor, de histórias policiais e de livros de aventuras – deve-se em ampla medida à expansão da parcela de leitores recrutada nas novas camadas médias, que redundou no aumento da demanda por obras de mero entretenimento” (ver Miceli, Intelectuais à brasileira, op. cit., p. 155).

28 No prefácio ao romance, encontramos a seguinte passagem: “Ah, se toda a gente escrevesse como fala, a literatura seria uma coisa gostosa como um curau que comi domingo no Tremembé. Esse Manoel de Almeida foi dos pouquíssimos entre nós que escrevia como falava... [...]– Pois a Sra. Dupré é assim, disse Artur, radiante. Talvez esteja nisso o segredo de sua atração” (ver Lobato, “Pre-fácio”, op. cit., p. 8).

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Brasiliense, e isso facilitou muito a publicação dos romances de sua esposa; seu reconhecimento literário vai se dar através de Guilherme de Almeida e Sérgio Milliet, o primeiro um modernista de tendências estéticas mais moderadas. É Leandro quem deixa os contos na casa de Guilherme, é ele quem paga as despesas da publicação, é seu nome que vai para as capas dos livros, como chamariz publicitário;29 Maria José era a escritora “mulher do engenheiro”, e é assim que vai ser apresentada nas tacanhas rodas de nossa burguesia, pouco chegada a auto-res nacionais.30 Lobato, o grande incentivador do livro como mercadoria e da profissionalização do escritor em nosso meio,31 acolhe Dupré, e aí reside outro paradoxo dessa escritora entre dois tempos: ela, que escreve muito, num ritmo de mercado, não o faz, pelo menos no início de sua carreira, como profissional: ve-mos em sua autobiografia como para ela a literatura era mais fruto de um acaso, uma distração para a esposa do engenheiro, do que uma profissão. A boa conta-dora de histórias, relacionada ao meio rural, se realiza através das incansáveis rotativas da empresa de Lobato, pioneira na modernização do comércio e publi-cação de livros no Brasil.

Amiga de Yolanda Penteado, a quem dedica seu volume autobiográfico, Dupré, no entanto, não comete o fiasco de Tudo em cor-de-rosa em Os caminhos. Se as lem-branças de Yolanda carecem de consistência literária e são um cortejo de gente boa e bonita, entremeado a fotos da autora em todos os cantos do mundo e dando o testemunho de uma vida perfeita que só a mediocridade tem o privilégio de alcan-çar, as memórias, assim como toda a obra de Dupré, também se ressentem de mediania, mas essa é ao mesmo tempo uma qualidade. Se ela é incapaz de se aba-lar profundamente com os momentos e questões cruciais da vida – vide o exemplo da morte lenta e dolorosa de tia Augusta, que enche sua casa de cheiro de remédio e é amputada aos poucos, dando ocasião ao alívio indisfarçável de Maria José quando ela morre, sendo rapidamente esquecida –, essa espécie de placidez egoísta de seu olhar apreende com amplidão os ambientes e suas linhas sociais gerais. Escritora intuitiva, como ela mesma reconhecia, sua obra possui um grau baixo de elaboração crítica e consciência de propósitos artísticos, mas as falhas que surgem daí são também significativas. Se a intuição de Dupré se afinava com a pequena burguesia de Éramos seis e Dona Lola, dando forma a esses mundos de maneira inovadora ao lançar mão do “realismo doméstico”, quando se trata da crônica de

29 Tudo leva a crer que a passagem da assinatura de “Sra. Leandro Dupré” para “Maria José Du-pré” foi tardia, ocorrendo após a morte de Leandro Dupré e o fim do grande estouro literário da escritora, durante os anos 1940 e 1950. Assim, as primeiras edições, pela Brasiliense e Saraiva, tra-zem escrito na capa “Sra. Leandro Dupré”, enquanto as memórias, as edições recentes e os livros de literatura infantil (a série Cachorrinho Samba) são assinados com o nome completo.

30 Em Os caminhos, Dupré relata suas observações de uma festa grã-fina, onde foi apresentada como escritora: “ouvi muitas pessoas dizerem que nunca tinham lido livro de escritor brasileiro, o meu era o primeiro. Liam os livros franceses, alguns ingleses, mas brasileiros?” (ver Dupré, Os ca-minhos, op. cit., p. 243-4).

31 Ver Marisa Lajolo; Regina Zilberman, A formação da leitura no Brasil, São Paulo, Ática, 1996, p. 108-9.

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costumes da grande burguesia ela derrapa facilmente no moralismo esquemático que não está ausente dessa dupla de romances, mas neles não predomina. Parece que a escritora sentia-se mais confortável dentro do roupão e dos chinelos de Lola do que nos vestidos europeus de Teresa Bernard, a heroína de seu romance de estreia. Essas duas tendências de sua obra vão se encontrar em Gina, romance que mistura o realismo folhetinesco bem dosado de Éramos seis à pobreza de valores dos romances da “alta”.

Da lama das ruas à glória do lar

Gina (1947) é, entre os romances de Dupré, o único a tratar detidamente do tema da prostituição, que só surgiu de forma episódica, maniqueísta e pouco de-senvolvida em suas obras, embora sempre marcando presença na vida das mulheres pobres. A epígrafe inicial do romance, um trecho do Evangelho de Mateus sobre o bom e o mau caminhos, dá o argumento central da obra. Gina, a protagonista, andou pelos dois caminhos – o da prostituição, mau, e o da família, bom, e teve a chance de mudar de lado durante sua vida. E esses dois caminhos estão estreita-mente ligados no romance, e a passagem de um a outro ocorre de forma natural, pois Gina, apesar de seu passado, é uma mulher virtuosa, uma escolhida de Deus, grande em sua generosidade.

O romance é organizado em três partes, que dividem as fases de sua vida entre a prostituição e a “vida honesta”. Na primeira parte, acompanhamos sua infância pobre no bairro do Bom Retiro, a prostituição de sua mãe, os sonhos e o trabalho do pai, um italiano que dá aulas de escultura no Liceu de Artes e Ofícios. A vida familiar de Pasquale e Julica, seus pais, é irregular. Julica tem como amante Giaco-mo, o melhor amigo do marido, e não se importa em esconder isso das filhas; ela chega a fugir com ele e as meninas, que presenciam as brigas violentas entre os dois, mas depois acaba retornando para Pasquale que, 25 anos mais velho que ela, logo morre, após uma internação num hospício, causada pelo abandono que so-freu. Pasquale é um daqueles sofridos artistas anônimos, homem de caráter a quem Gina sempre admirou; com relação a Julica, a filha tem sempre certa desconfiança, pois a mãe prefere Zelinda, filha de seu primeiro casamento. Implicitamente, o narrador censura a “imoralidade” com que Gina teve de conviver desde cedo: além do relacionamento com Giacomo, depois do internamento do marido Julica come-ça a receber sistematicamente homens em sua casa, para cobrir o orça mento e criar as meninas. Nessa primeira parte do romance a prostituição surge como tra-balho paralelo, fonte de renda adicional para algumas mulheres pobres, uma espé-cie de último recurso antes da queda na miséria. Mas o ponto de vista do narrador é sutilmente moralista em sua onisciência que desvenda as mentiras e artimanhas de Julica, mulher leviana e pouco preocupada com Gina e Zelinda – a última, a irmã de pouca beleza, invejosa e egoísta. Julica não está disposta a se sacrificar realmente por sua família, trabalhando honestamente; é esse o julgamento sutil do narrador, ao desvelar seus segredos e retratá-la como mulher pérfida.

Ao mesmo tempo, na primeira parte, o processo que leva à prostituição é re-presentado como algo independente do caráter da mulher. O trabalho feminino não é levado a sério pelos empregadores, ainda mais quando se trata de moça de

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boa aparência. Gina e a irmã conseguem serviço na Companhia Telefônica e ga-nham muito pouco. Lá, Gina conhece Pascoalina, moça pobre como ela mas que lhe paga sorvetes e chocolates-quentes, pois ganha um “dinheirinho extra”, ou seja, se prostitui para não amargar uma pobreza cheia de privações. Ingênua, Gina acaba sendo demitida da Companhia, pois brincava muito em serviço. E aí começa o seu périplo por vários empregos: vendedora de produtos de beleza, de cabides, de pudins em pó. Em todos esses serviços, é ostensivamente assediada pelos pa-trões, que perguntam a ela por que uma moça tão bonita insiste em trabalhar por tão pouco dinheiro. É a própria ordem legalizada do trabalho, assim, que a em-purra para a prostituição, como se simplesmente sugerisse a Gina uma mudança de ramo, onde todos poderiam lucrar mais; também é interessante observar como ela, filha de imigrante, não se insere no esquema da prosperidade, tão apregoado pela ideologia do progresso paulistano. O dinheiro começa a faltar, pois ela foge dos assédios e não se fixa nos empregos. Para piorar, a decadência física de Julica traz ainda mais miséria para o quartinho da Rua Livre. Gina se vê entre o despejo, a fome e a venda de seu corpo, que pode trazer conforto para si e sua família. Dona Julica, mesmo na maior pobreza, insiste em manter certo orgulho decadente, fa-lando de sua ascendência tradicional e escravocrata; moralista no discurso, é pragmática nas atitudes, e tem a mentalidade de quem perdeu os privilégios do passado mas não admite, embora tenha se adaptado à ordem urbana. Personagem relativamente plana, nela o passado é apenas pose, mais uma característica de sua maldade falastrona; ele não altera de forma decisiva sua visão da cidade, como ocorre com o saudosismo interiorano da Lola de Éramos seis.

É no fim da primeira parte que Gina decide procurar Pascoalina, a do “dinhei-rinho extra”, que agora mora numa pequena casa com uma criada negra e é sus-tentada por um homem casado que “não gosta da mulher”. Impressionada com o conforto da amiga, Gina é apresentada a uma cafetina, o dinheiro logo aparece, e sua mãe e irmã, sempre grosseiras com ela, começam a tratá-la como amiga. Gina principia a ter o gosto do tipo de felicidade que o dinheiro pode proporcionar.

A segunda parte do romance é toda dedicada à sua bem sucedida carreira no mundo da prostituição, no qual ela entra com apenas dezessete anos. Jovem e bonita, não encontra dificuldade para viver na fartura, sustentada por homens ricos. Ela é uma “mulher do mundo”, ou seja, uma “mundana”, expressão que, como sabemos, possui pesos bem diferentes para homens e mulheres. Quanto mais Gina ganha dinheiro, maiores são seus gastos. Sua família se transforma num grupo de parasitas insaciáveis. O intuito é mostrar que ela se prostitui por sacrifí-cio aos outros, por pura generosidade; e é por isso que será perdoada, pois, em nenhum momento, pensou em si ou em vingança (como a Nana de Zola, por exemplo) ao vender seu corpo.

Se o relato da pobreza e dos caminhos que levam à prostituição é bastante rico e complexo, depois que Gina passa a ter dinheiro parece que o mundo se torna mais suave; há um certo edulcoramento em torno de sua prostituição. Apesar das brigas ocasionais com os amantes, a impressão que temos é a de que ela passa por muito menos humilhações como cortesã de luxo do que como mulher pobre. Pen-sando melhor, o retrato da situação pode não ser tão inverossímil quanto parece.

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É ainda na segunda parte que começa a despontar a ironia contida no roman-ce, da qual provavelmente a autora não estava consciente: a única forma disponível para Gina ascender socialmente, tornando-se uma respeitável mãe de família, é a entrada no mundo da prostituição. É num jantar oferecido por seu amante, um maestro ilustre, que ela conhece Fred, moço de família por quem se apaixona e quase se casa.

O namoro de Gina e Fred reproduz, no interior do romance, o enredo de A Dama das Camélias, de Dumas Filho. Mesmo muito apaixonada pelo rapaz, que é de família importante, e tendo a oportunidade de casar-se com ele (a contragosto da família dele, que a despreza), Gina renuncia ao amor de Fred, após uma discus-são com o pai dele na qual se faz referência à obra de Dumas. Quando o pai de Fred lhe oferece dinheiro para que ela se afaste de seu filho, Gina se sente humi-lhada, decidindo-se a abandonar a prostituição e viver como moça pobre nova-mente. Matricula-se num curso de datilografia, aluga um quarto numa pensão barata e passa os domingos nas praças do centro de São Paulo, entre velhos e men-digos. Ela está purgando o erro de sua ousadia. Gina, que se autodenomina “a flor dos charcos”,32 respeita a instituição familiar, como faz a Margarida de Dumas. São os valores da família que ela coloca entre ela e Fred. Ela é, como a heroína român-tica, “uma cortesã sofrida, dócil e triste”,33 capaz de renunciar ao amor por amor, mas sem morrer, pois é salva pela ética cristã da romancista, que quase sempre põe o mundo nos eixos, de forma conciliadora.

O mérito do romance de Dupré, porém, está no fato de que ele não cai total-mente na falácia moralizante de Lucíola, de Alencar, o nosso grande romance do século XIX sobre a prostituição, e nem derrapa no fatalismo um tanto esquemático do romance de 30, no qual, em geral, não há meio-termo entre a esposa e a prosti-tuta.34 Dupré deslinda, mesmo que seja para depois moralizar, as relações estreitas entre o trabalho feminino e a prostituição, bem como a imprecisão das fronteiras entre a família e o mundo das cortesãs. Ela não “denuncia a prostituição como trajetória individual e acidental, ocultando sua relação com o trabalho”,35 como faz Alencar, mas recai na mesma resignação e recato da Lúcia que tenta se redimir, ou na generosidade e abnegação de Margarida Gautier. É como se o romance revelasse, por um instante, o funcionamento real dos mecanismos sociais que levam à pros-tituição, para logo em seguida ocultá-la com véus e arminhos de dama recatada.

Depois de sofrer a decadência novamente, numa jornada pelo lago do Cambuci, Praça da República e quartinho de pensão, Gina finalmente encontra a felicidade, pois já pagou o preço de seu atrevimento. Casa-se com o Dr. Fernando, homem mais velho, desquitado e com dois filhos, com quem vai viver um idílio in-teriorano. O casamento marca o início da terceira parte do romance, a maior e me nos movimentada de todas. Se a segunda parte foi dedicada à ascensão e queda

32 Maria José Dupré, Gina, São Paulo, Brasiliense, 1947, p. 166. 33 Valéria de Marco, O império da cortesã, São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 131.34 Bueno, Uma história do romance de 30, op. cit. 35 De Marco, O império da cortesã, op. cit., p. 188.

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de sua vida como prostituta, na terceira parte ela finalmente envereda pelo “cami-nho que guia para a vida” mencionado na epígrafe da obra. O casamento é o des-tino “último, definitivo, o melhor de todos”;36 ele traz alívio e segurança, pois é o índice de sua entrada definitiva na sociedade, ainda mais aos braços de um “dou-tor”. E Gina tem todo direito a ele, pois, de acordo com a ética do narrador, a pureza ou a impureza das pessoas está no coração, e é inabalável – não se altera nem com o dinheiro, nem por causa de um passado fora dos valores morais fami-liares. Os caminhos que Gina percorreu não a contaminaram, pois ela sempre foi generosa. E parece que ela foi feita, mesmo, para a vida doméstica. Rapidamente se transforma numa mulher madura e serena, que se envergonha com os modos “vulgares” (leia-se de mulher pobre) da irmã, que nunca perde a oportunidade de atormentá-la com seu “olho gordo”, e com as inconveniências da mãe, que gosta de beber. Além disso, Zelinda e Julica são incômodas, pois trazem de volta um passado que ela quer esquecer.

Zelinda, além de irmã invejosa e pessoa indiscreta nas rodas familiares de Pi-nheiral (a pequena cidade onde Gina e o marido se instalaram), é uma mãe des-leixada. Ela, que sempre foi a antagonista de Gina, tem um destino trágico: adoece de câncer, e se suicida (não custa lembrar que, para o cristão, o suicídio é tido como uma verdadeira afronta a Deus), deixando a filha, Gracinha, desamparada. A menina acaba sendo protegida por Gina e, diversamente do que aconteceu a Ze linda, consegue bom casamento, com moço de família distinta, pois não tem os modos espalhafatosos da mãe.

O narrador dos romances de Dupré está, como vimos até agora, de terço na mão e braços dados com a justiça divina, que atinge infalivelmente aqueles que não se adaptam a seus padrões de conduta. Se não, vejamos. Zelinda gostava de provocar o padre de Pinheiral com perguntas inconvenientes, e não se conforma-va com o tédio da vidinha pacata da irmã. Em certo momento, diz o seguinte so-bre as amigas de Gina (as mesmas que, futuramente, ao saberem de seu passado como prostituta, cortarão relações com ela):

– São todas umas idiotinhas assanhadas, umas burguesinhas. Portam-se bem porque não têm remédio. Não podem. Águas paradas. Mas se pudessem...

– Gina ficou vermelha de raiva:

Não diga bobagens. E você o que é? Grande dama?37

Não é por acaso que Zelinda morre de câncer no seio: é como se, nela, a mater-nidade se degradasse – exatamente como acontece com a prostituta, para os valo-res cristãos e conservadores de Dupré. Mas aqui as fronteiras são mais fluidas: há perdão para a prostituição, que é parte do trajeto para a vida familiar, que não apa-rece como sonho distante ou irrealizável. E enquanto Zelinda apodrece por den-tro, consumida por seu egoísmo tal como uma Nana tupiniquim, Gina tem filhos,

36 Dupré, Gina, op. cit., p. 188.37 Idem, ibidem, p. 221.

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está no auge de sua fertilidade. A vingança é divina e, por que não dizer, ginecoló-gica. Nesse ponto do romance a justiça é feita e cada irmã recebe o que o narrador acha que merecia. Mas o tormento de Gina, o castigo pelos seus pecados, ainda não terminou. Pinheiral toda fica sabendo de seu passado e as famílias passam a evitá-la com medo de serem contaminadas pela “lama”. Depois de serem despre-zados, ela e o marido, homem influente que conhece o presidente do Estado, re-cebem um pedido de ajuda para que o esposo de uma das vizinhas que a evitou não seja demitido: aí Gina tem a chance de demonstrar sua superioridade e seu perdão, saindo da cidade um pouco menos humilhada. O episódio lembra um pouco aquela canção de Chico Buarque, “Geni e o Zepelim”, que, aliás, também recorre à generosidade para redimir a prostituta, assim como acontece, por sua vez, no conto “Bola de sebo”, de Maupassant; o procedimento parece ser uma es-pécie de lugar-comum artístico quando o tema é a redenção moral da prostituta.

A única carreira plenamente aceitável para a mulher é a maternidade;38 até as brincadeiras das meninas envolvem sempre esse assunto. E a vida em família e a religião andam de braços dados, como Gina explica à filha Helena:

Pela primeira vez na minha vida, me senti com firmeza, como se visse diante de mim uma estrada plena e limpa, sem atalhos, sem pedras, sem tormentos. E nessa estou até hoje graças a Fernando. Fiquei conhecendo Deus e contei aos meus filhos a história de Jesus. Dei-lhes o que nunca tive; um lar sólido, carinho, religião, amor. Dei tudo. Vivi para eles e para meu marido desde o primeiro dia e posso dizer que acertei. Venci! [...] E foi porque Deus entrou tarde no meu coração que escolhi o caminho mais fácil, minha filha. Foi por isso. Naquele tempo, só sabia que aquele que lutasse mais arduamente, venceria. E de que forma lutar? Pobre de mim! Não tinha ninguém a não ser eu mesma.39

Esse diálogo, bem como toda a terceira parte, anula boa parcela do peso da parte inicial do romance, na qual ficam claros os motivos concretos que levam Gina à prostituição. Ao atribuir os acontecimentos de sua vida pregressa à ausên-cia de Deus em seu coração, ela ratifica mais uma vez a epígrafe do romance e põe a nu seu desequilíbrio de forma, pois a explicação religiosa da terceira parte não dá conta da concretude social da primeira – afinal, o leitor se pergunta: estava longe do Deus de Dupré a moça que se prostituiu para sustentar a família? A narração de sua vida naquele momento, na primeira parte, destaca, pelo contrário, sua genero-

38 Toda a apologia da maternidade presente na obra de Dupré não é gratuita. Os anos 1940 e 1950 foram marcados pela diminuição da força de trabalho feminina empregada. A ideia da mulher como um ser exclusivamente destinado à família era um forte auxiliar para o equilíbrio do mercado de trabalho, ocupado por um grande contingente de mulheres no início do século XX, por serem mão de obra barata num período de grande acumulação e investimento industrial, e reocupada pelos homens em meados do século, quando a indústria se estabiliza. O trabalho feminino remunerado na sociedade de classes tem sempre a natureza de mão de obra de reserva, força secundária nos casos de investimento e acumulação inicial de capital ou quando os homens estão ausentes, durante uma guerra, por exemplo. Ver, sobre o assunto, Maria Valéria Junho Pena, Mulheres e trabalhadoras, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

39 Dupré, Gina, op. cit., p. 296-7.

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sidade, o caráter que permanece “puro” mesmo em meio às piores dificuldades. Narrador beato, sim, mas com um olho no altar e outro espiando curioso a porta da igreja, interessado no movimento da rua. O moralismo de Dupré colide, nesse romance, frontalmente com seu realismo, comprometendo-o, mas também entre-gando a dualidade que marca sua ficção. Se em Éramos seis e Dona Lola, centrados no drama de uma única classe social, o realismo impera, equilibrando a composi-ção e se abrindo a um novo modo de representação do ambiente doméstico, em Gina o problemático trânsito entre classes revela a contradição da própria autora, dividida entre a velharia da pregação moral e a novidade de um olhar desprevenido e atento aos meandros da vida feminina. Aqui, o melodrama40 quase perde o pru-mo, e põe a nu o esqueleto da obra de Dupré: ela representa uma modernização negociada. Dupré, ao escrever uma ficção de forte apelo comercial, escamoteia a realidade e cede à ideologia conservadora de sua época, discreta em Éramos seis mas capaz de datar o romance em Gina. A sua “modernidade” é menos rompi-mento ou re-elaboração crítica de formas antigas – o folhetim e o melodrama, no caso – do que contemporização com essas formas, ou seja, ela cede na superfície, pois toma como assunto os dilemas das mulheres de seu tempo, mas conserva a estrutura moralizante de explicação do mundo, cuja incapacidade de dar conta da realidade é escamoteada pela sedução do falatório moralista de suas narradoras. Essa precedência do moralismo sobre a representação das contradições sociais – um pouco o inverso do que ocorre em Balzac, por exemplo, no qual a complexa movimentação social dos personagens surge à revelia do conservadorismo do autor – desequilibra o conjunto da obra de Dupré. Se formos pensá-la em compa-ração com modernistas como Mário e Oswald de Andrade, não se trata de “dois tipos” de literatura, uma moderna e de público restrito, a outra regressiva e com maior número de leitores; trata-se de dois momentos da mesma literatura, um com capacidade de revelação sobre o outro; a representação conciliadora de nossa modernidade tem, afinal, maior alcance de público e, consequentemente, maior impacto representativo do que os experimentalismos dos moços de 1922, mos-trando bem que o processo histórico também escolhe para si os testemunhos mais convenientes disponíveis: a forma contemporânea da telenovela é um exem-plo disso. Parece que há uma certa tendência a considerar tudo o que tenha uma certa amplitude de público como “não literatura” ou literatura de segundo esca-lão. Não interessa aqui questionar a utilidade da existência de um cânone e sua importância, inclusive como parâmetro de hierarquização estética, mas de mos-trar que, no estudo da literatura, os, digamos assim, “momentos não decisivos”,

40 Para Ismail Xavier, o maniqueísta melodrama, tão limitado, é no entanto presença imbatível na ficção moderna, constituindo sua modalidade mais popular. Sua função é a de oferecer matrizes sólidas da avaliação da experiência num mundo instável, papel que, como vimos, ele realiza com muita eficácia nos romances de Dupré. Gênero irmão do folhetim, existem melodramas de vários espectros políticos: ambos são simplificadores, apelam para os sentimentos e opõem autênticos a hipócritas. Esse “teatro da moralidade” é, segundo Xavier, o lugar ideal das representações negociadas. Ver, do autor, “Melodrama ou a sedução da moral negociada” (ver Ismail Xavier, O olhar e a cena – Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues, São Paulo, Cosac & Naify, 2003).

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desprivilegiados, têm o que dizer sobre os momentos centrais e também demons-tram, a seu modo, sua formação. A própria alergia da crítica à “literatura de mas-sa” isolando-a num compartimento estanque e negando-se a analisar com cuidado cada uma de suas manifestações, como se o rótulo homogeneizasse as mais va ria-das formas de expressão literária, parece se ligar mais, em nosso contexto, a um desprezo por formas de cultura que bem ou mal se democratizaram, aliado a um incontestável fascínio por teorias do estrangeiro, para as quais talvez essas categorias, em seu contexto, façam sentido, do que a qualquer outro problema justificável. Rotuladas e separadas, essas obras (assim como a categoria da “his-tória das mulheres” mencionada na introdução de nosso trabalho) perdem muito de seu poder de revelação sobre alguns aspectos do processo de formação de nosso sistema literário, no qual predomina uma visão conciliadora do processo histó rico da qual nem a crítica está imune: cultiva-se um “cânone” estudado ad infinitum, no qual a linearidade criada entre os grandes nomes pode acabar por negligenciar aspectos importantes da relação entre literatura e sociedade, muito mais dinâmica do que a calma das alturas em que pairam os grandes gênios da literatura, e inclusive capaz de revelar que essa altura não é tão imune assim aos movimentos aqui da terra.

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* Parte dessa pesquisa foi realizada durante um estágio de pesquisador-visitante na Universidade de Manchester, graças a uma bolsa de Pós-Doutorado concedida pela CAPES.

IAN WATT E A FIGURAÇÃO DO REAL

(ANOTAÇÕES DE LEITURA)*

SANDRA GUARDINI T. VASCONCELOS

Universidade de São Paulo

Resumo Este artigo tem como objetivo discutir a apropriação, por par-te do autor de A ascensão do romance, de formulações teóricas fundamentais no âmbito da Teoria Crítica, que possibilitaram a Ian Watt, formado na tradição da crítica prática inglesa, in-corporar, no estudo dos temas e autores que elegeu ao longo de sua carreira como historiador e crítico literário, a preocu-pação com os processos sócio-históricos que lhes deram ori-gem. Aqui, toma-se como exemplo paradigmático Robinson Crusoe, romance de Daniel Defoe publicado em 1719.

Abstract This article aims to discuss the appropriation by Ian Watt of some crucial theoretical contributions from Critical Theory, which enabled the author of A ascensão do romance to incorpo-rate to the tradition of Practical Criticism a concern with the sociohistorical processes which are formalised by the novelists he privileged in this work as a literary historian and critic. Here, Robinson Crusoe, the novel published by Daniel Defoe in 1719 is taken as a paradigmatic example.

Palavras-chave Ian Watt; Adorno; romance; Robinson Crusoe; mito; esclarecimento; realismo.

Keywords Ian Watt; Adorno; novel; Robinson Crusoe; myth; Aufklärung; realism.

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“Your studies on the interconnection of modern mass culture and the origins of the English novel, and your extraordinary essay

on Robinson, belong to the most productive writings in this field which have come to my knowledge in a long time.”

(Carta de T. W. Adorno a Ian Watt, 19 de novembro de 1953)1

Em meio aos vários estudiosos a quem Ian Watt agradece pela leitura e pelas críticas às diferentes versões que resultaram no seu A ascensão do romance (1957), a inclusão do nome de Theodor Adorno dá o que pensar,2 pois, cumprido o costumeiro ritual dos agradecimentos em publicações acadêmicas, o leitor pro-curará inutilmente outras menções ao pensador alemão ao longo das mais de 300 páginas daquela obra. A explicação, na verdade, vamos encontrá-la em outra par-te, em uma conferência proferida por Watt em 1978, em que ele, procedendo a uma espécie de arqueologia do trabalho apresentado inicialmente como tese de doutorado no St. John’s College, Cambridge, em 1947, lança um autoirônico olhar retrospectivo sobre esse livro que fez história na crítica de língua inglesa e atraiu adesões e divergências em relação aos seus argumentos quase em igual medida.3 Ali, depois de descrever o longo processo de composição de A ascensão do roman-ce4 e explicitar seus fundamentos, Watt explica o livro como

1 Arquivo pessoal do Prof. Ian Watt, sob os cuidados de Stanford University (Special Collections and University Archives).

2 Ian Watt, Preface, in The Rise of the Novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding, Har-mondsworth: Penguin, 1983. O prefácio é datado de fevereiro de 1956 e foi escrito já quando o autor era professor da University of California, Berkeley.

3 “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, conferência proferida por Ian Watt em 1978 mas publicada apenas no ano de 2000, em um número especial de Eigtheenth-Century Studies (Reconsidering the Rise of the Novel. Special Issue of Eighteenth-Century Fiction, v. 12, n. 2-3, p. 147-67, January-April 2000) que se propunha inicialmente a fazer uma reavaliação de The Rise of the Novel (1957) e acabou por se transformar numa espécie de homenagem póstuma ao autor, em razão de sua morte em dezembro de 1999. Foi mais tarde reunida a uma coletânea de ensaios do autor: Bruce Thompson (ed.), The Literal Imagination, Palo Alto, Ca., The Society for the Promotion of Science and Scholarship; Stanford, Ca., Stanford University, 2002, p. 70-91.

4 Segundo Watt, o período de gestação do livro foi de 1938 a 1956. Ver Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 77.

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uma síntese parcial, e em muitos aspectos amadora, de duas grandes, porém bastante distintas tradições de pensamento: em primeiro lugar, os elementos empíricos, históricos e morais de minha formação em Cambridge; em segundo, os muitos outros elementos teóricos da tradição européia – o formalismo e a fenomenologia, em menor escala; e o marxismo, Freud e a Escola de Frankfurt, em uma escala de certo modo mais ampla.5

Para todos aqueles minimamente informados sobre a crítica inglesa desse pe ríodo, o recurso a essa verdadeira artilharia alemã, à qual é preciso acrescentar ainda Georg Lukács, Erich Auerbach e Max Weber, surge como uma novidade, pois, desde pelo menos 1870, com Matthew Arnold, até aproximadamente o decênio de 1960, em que os Leavis ainda eram a principal referência, os “English Studies” haviam sido dominados por uma posição idealista e elitista, que se via como uma minoria culta e seleta cuja missão era a defesa da literatura contra o declínio do gosto, e que considerava a literatura (leia-se aqui poesia) como um instrumento de salvação do mundo contra os filisteus e contra aqueles que eram desdenhosamente descritos como “the herd” (a manada).6 O exercício dessa mis-são teve como uma de suas mais acabadas expressões o periódico Scrutiny, fun-dado por F. R. Leavis em 1932, e por duas décadas a ponta de lança de um projeto intelectual e crítico que visava investigar o mundo contemporâneo e in-tervir no debate cultural corrente, não apenas redefinindo os rumos da crítica literária inglesa mas debruçando-se sobre “o movimento da civilização moder-na” como um todo.7

Poucos ensaios resumem tão bem os princípios que iriam nortear o grupo de intelectuais reunido em torno dessa revista quanto o panfleto Mass Civilization and Minority Culture, publicado por Leavis em 1930, em que o influente professor de Literatura Inglesa de Cambridge expunha seu ponto de vista a respeito da cul-tura como um território exclusivo de uma minoria e fazia uma firme defesa de privilégios e, sobretudo, de seu próprio papel como guardiães de bens culturais. A citação é longa, mas vale pelo que traz à luz. Nela ficam evidentes o tom de supe-rioridade e a autoatribuição do encargo de preservar a alta cultura dos perigos do mundo do entretenimento, da literatura popular ou comercial, e dos best-sellers.

Em qualquer período, é de uma minoria muito pequena que depende a apreciação perspi-caz da arte e da literatura: apenas alguns são (com exceção de casos de tipo simples e familiar) capazes de um juízo espontâneo, de primeira-mão. Embora maior, é ainda uma pequena mino-ria que é capaz de endossar esse juízo de primeira-mão por meio de uma reação pessoal genuí-na [...] A minoria capaz não apenas de apreciar Dante, Shakespeare, Baudelaire, Hardy (para citar importantes exemplos), mas de reconhecer que seus sucessores mais recentes constituem a consciência da raça (ou um ramo dela) em um dado momento. [...] Dessa minoria depende nosso poder de tirar proveito da melhor experiência humana do passado; ela mantém vivas as parcelas mais sutis e perecíveis da tradição. Dela dependem os padrões implícitos que ordenam

5 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 77. 6 Ver Chris Baldick, The Social Mission of English Criticism, Oxford, Clarendon Press, 1983. 7 Francis Mulhern, The Moment of “Scrutiny”, London, New Left Books, 1979, p. 47. Para um es-

tudo em profundidade a respeito do projeto dessa revista, remeto o leitor a esse estudo de Mulhern.

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o modo de vida mais refinado de nossa época, a percepção de que esse vale mais que aquele, de que essa e não aquela é a direção que tomamos. Sob sua guarda, para usar uma metáfora que é também metonímia e admite bastante reflexão, está a língua, o idioma cambiante do qual depende o modo de vida refinado e sem o qual a distinção do espírito é frustra e incoerente. Por “cultura” eu me refiro ao uso de tal língua.8

A esse manifesto viria se somar, dois anos mais tarde, o relatório de Q. D. Leavis,9 Fiction and the Reading Public (1932),10 que visava “confirmar, por meio de uma análise sistemática e documentada, o diagnóstico do trabalho anterior [Mass Civilization and Minority Culture] e elucidar a etiologia do mal-estar”.11 Com o ob-jetivo geral de estabelecer uma rigorosa distinção entre “literatura” e “ficção”,12 a autora empreendia um estudo dos hábitos de leitura do povo britânico para, em razão do que julgava ser uma deterioração geral do gosto, postular a necessidade de um programa de reeducação contra o entretenimento popular. Com base em dados estatísticos inclusive, terminava por propor, contra o que descrevia como um cenário de desintegração dos valores da “cultura”, uma série de ações, tais como a criação de uma editora não comercial e de um órgão crítico de amplo es-pectro, justamente algo na linha de Scrutiny, que seria lançado logo depois.

Esse contexto é importante para compreender o passo dado por Ian Watt no estudo que viria a se tornar A ascensão do romance, um projeto que se pode avaliar melhor em comparação com esse pano de fundo representado por esse livro de Q. D. Leavis e por um outro trabalho de F. R. Leavis, The Great Tradition (1948). Em um ambiente crítico que privilegiava sobretudo o estudo da poesia, F. R. Lea-vis foi pioneiro na atenção que dedicou ao romance, gênero que ele pretendia “redimir [...] de seu status comum como uma diversão cultivada (ou narcótica)” com o intuito de “estabelecer sua paridade com as artes canônicas da linguagem”. Longe de tratar do romance em seus próprios termos, o crítico inglês buscava elevar sua condição redefinindo-o como um poema dramático, isto é, “como uma combinação dos dois tipos dos quais ele se distinguia classicamente, o lírico e o

8 F. R. Leavis, Mass Civilization and Minority Culture, Cambridge, The Minority Press, 1930, p. 3-5. [In any period it is upon a very small minority that the discerning appreciation of art and litera-ture depends: it is (apart from cases of the simple and familiar) only a few who are capable of unprompt-ed, first-hand judgement. They are still a small minority, though a larger one, who are capable of endors-ing such first-hand judgement by genuine personal response [...] The minority capable not only of appreciating Dante, Shakespeare, Baudelaire, Hardy (to take major instances) but of recognising their latest successors constitute the consciousness of the race (or a branch of it) at a given time. [...] Upon this minority depends our power of profiting by the finest human experience of the past; they keep alive the subtlest and most perishable parts of the tradition. Upon them depend the implicit standards that order the finer living of an age, the sense that it is worth more than that, this rather than that is the direction in which to go. In their keeping, to use a metaphor that is metonymy also and will bear a good deal of pon-dering is the language, the changing idiom upon which fine living depends, and without which distinction of spirit is thwarted and incoherent. By “culture” I mean the use of such language.]

9 Queeney Dorothy (Q. D.) Leavis era casada com Frank Raymond (F. R.) Leavis.10 Q. D. Leavis, Fiction and the Reading Public, London, Chatto & Windus, 1965. 11 Mulhern, The Moment of “Scrutiny”, op. cit., p. 38. 12 Leavis. Fiction and the Reading Public, op. cit., p. xiv.

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dramático”.13 Ainda, com base na expectativa de que os romancistas exibissem uma atitude moral em relação à vida, lançava um olhar retrospectivo sobre a his-tória do romance inglês para declarar, olimpicamente, que sua grande tradição consistia, de fato, de três autores, anunciados desde o subtítulo: George Eliot, Henry James e Joseph Conrad.14

Pelos autores que estuda, pelas teses que defende e pelas ideias e concepções que põe em movimento, A ascensão do romance pode ser lido como uma resposta a essas duas obras de crítica de autoria dos dois professores de Ian Watt na Univer-sidade de Cambridge.15 Watt não apenas retrocede ao século XVIII para investigar as condições históricas, filosóficas e literárias que deram origem ao novo gênero na Inglaterra e explicam sua ascensão, como explora os condicionantes para a forma-ção de um novo público leitor, para a democratização da leitura e para a ampliação do acesso de uma nova classe social ao universo do livro. Por outro lado, se, na esteira de F. R. Leavis, Watt retém a dimensão moral da literatura ao valer-se do conceito de “realismo de avaliação” [realism of assessment] para tratar de certos tipos de romance, ele propõe que é o “realismo formal” [formal realism] – um con-junto de procedimentos narrativos que encarna uma visão circunstancial da vida – o fator determinante que distingue o novo gênero e lhe confere a prerrogativa de “tentar retratar todas as variedades da experiência humana”.16

De seus mestres ingleses, Ian Watt incorpora e revisa muitos dos pressupostos que lhes orientaram os projetos, dialogando diretamente com as ideias e concep-ções ali apresentadas. Deles, Ian Watt herdou a consciência da importância da forma literária e um significativo pendor empirista, que nos Leavis se traduzia em aversão à teoria e no culto da experiência em estado puro.17 Porém, e aqui vai uma diferença fundamental, Watt distanciou-se da posição idealista que os caracteri-zava e definia, graças à sua exposição à sociologia e à antropologia, por um lado,

13 As citações são de Francis Mulhern, “English Reading”, in Homi K. Bhabha (ed.), Nation and Narration, London, Routledge, 1990, p. 250-64 (p. 255).

14 F. R. Leavis, The Great Tradition. George Eliot, Henry James, Joseph Conrad, London, Chatto & Windus, 1948. Como lembra, divertido, um crítico, a grande tradição do romance inglês deveria se reduzir a George Eliot, uma vez que Henry James era norte-americano e Joseph Conrad era polonês. Na realidade, Leavis também dá algum espaço para Jane Austen e Charles Dickens, mas aqui a ênfase recai de fato em Eliot, James e Conrad, pois ele está interessado em “distinguir os poucos realmente grandes – os principais romancistas que contam da mesma maneira que os principais poetas, no sentido de que não apenas mudam as possibilidades da arte para os praticantes e leitores, mas tam-bém são significativos em termos da sensibilização humana que promovem; sensibilização das pos-sibilidades da vida”. [No original: “distinguish the few really great – the major novelists who count in the same way as the major poets, in the sense that they not only change the possibilities of the art for practitioners and readers, but that they are significant in terms of the human awareness they promote; awareness of the possibilities of life.” (cf. p. 2)]

15 Sobre o livro de Q. D. Leavis há uma menção de Ian Watt ao “grande estímulo” que represen-tou a leitura de Fiction and the Reading Public no início de sua pesquisa. Ver Prefácio, The Rise of the Novel, op. cit., p. 8.

16 Watt, The Rise of the Novel, op. cit., p. 11.17 Ver Baldick, The Social Mission of English Criticism, op. cit.

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e, por outro, à incorporação de uma proveitosa leitura de A teoria do romance (G. Lukács) e de Mimesis (E. Auerbach), realizada no imediato pós-guerra. Em suas próprias palavras:

Aparentemente forcejei nos dois meses seguintes pelas páginas de Die Theorie des Romans (1920), de Georg Lukács, e de Mimesis (1946), de Erich Auerbach. Eu digo que forcejei sobre-tudo porque isso significa que tive de aprender alemão pela terceira vez. Tanto Lukács quanto Auerbach na realidade contribuíram muito mais para A ascensão do romance do que sugerem as poucas referências no texto.18

A combinação de seu “Cambridge training” com essa tradição, portanto, lhe permitiu integrar à sua investigação a preocupação com as forças sócio-históricas que possibilitaram uma mudança de paradigma na prosa de ficção do século XVIII.19 Ian Watt não esteve só nessa opção crítica, pois esse foi o caminho dessa geração do pós-guerra, que se caracterizou pela resistência contra a separação entre texto e contexto e se responsabilizou por um notável florescimento do inte-resse crítico pelo romance.

A década de 1950, portanto, marcou um momento importante de transição e contradição na crítica. No caso da Inglaterra, a posição representada pelos Leavis, embora ainda muito influente, começava a sofrer contestação, que se traduziu nessa atenção cada vez maior às ligações entre a literatura e seu contexto social. Nesse novo ambiente, saíram à luz obras hoje canônicas sobre o romance, fugindo assim à tradição estabelecida desde Matthew Arnolds, que elegera a poesia como o “novo centro ‘humano’ da cultura moderna”20 e transformara os estudos literá-rios em “um agente indispensável de coesão social” e em substituto do mundo perdido da comunidade orgânica.21 A nova geração, sem abrir mão dos preceitos da crítica prática, de I. A. Richards e do Cambridge English, posições atentas ao estudo da forma literária, incorporou a consciência do processo sócio-histórico, quase sempre ausente na reflexão dos seus antecessores, notadamente antimarxis-tas. Esse o passo significativo dado por Ian Watt, a quem poderíamos igualmente juntar Arnold Kettle, com An Introduction to the English Novel (1951-53), e Ray-mond Williams, com Culture and Society (1958).

18 No original: “I apparently made my painful way in the next couple of months through Georg Lukács’s Die Theorie des Romans (1920) and Erich Auerbach’s Mimesis (1946). I say painful mainly because it meant learning German for the third time. Both Lukács and Auerbach actually contributed much more to The Rise of the Novel than the few references in the text suggest”. Ver Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 73.

19 A essa altura, de qualquer modo, o “New Criticism” dava sinais de esgotamento e essa guinada logo se iria sentir através do trabalho de outros intelectuais ingleses, como Raymond Williams, que contribuíram muitíssimo para incluir a história social no arco de suas reflexões sobre literatura e cultura.

20 Chris Baldick, Criticism and Literary Theory, 1890 to the Present, London, New York, Long-man, 1996, p. 17.

21 Baldick, The Social Mission of English Criticism, op. cit., p. 225.

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Chris Baldick sugere que a experiência da guerra explicaria essa mudança de rumo, em que o interesse da crítica se desloca “do poeta antissocial para o roman-cista socialmente responsável” como um meio de manter viva a discussão a respei-to das dimensões sociais e históricas da literatura.22 Contudo, caberia acrescentar que, no caso de Watt, também foi crucial o contato com as ciências sociais na UCLA em 1947, ocasião em que conheceu um emigrado alemão fugido do regime nazista que iria, segundo palavras do próprio autor, conformar A ascensão do ro-mance intelectualmente:

o resultado mais significativo desse desvio pelas ciências sociais foi pôr-me em contato com alguém que certamente seria mais responsável do que qualquer outra pessoa pela configuração intelectual de A Ascensão do Romance e pelo longo atraso em sua conclusão, o falecido Theodor Adorno, hoje famoso como um líder da Escola de Frankfurt, naquela época situada na área em torno dos Pacific Palisades.23

Esse encontro em 1947 dá início ao que aparenta ter sido um relacionamento longo e uma troca frutífera, pelo menos para Watt, que ganha um leitor e um in-terlocutor, uma vez que Adorno manifesta interesse em ler o que ainda era àquela altura apenas um manuscrito, uma obra em fase de elaboração. Embora a citação seja longa, vale a pena ouvir o que Watt tem a dizer sobre esse encontro:

Depois vim a conhecer Adorno razoavelmente bem, [...] dada a sua visão assustadoramen-te ampla do que estava à disposição de qualquer pessoa culta, percebi que eu tinha um longo caminho pela frente; e, por fim, passei a entender que o que ele mais apreciava em minha tese eram na realidade os paralelos independentes ou as ampliações de algumas das ideias gerais da Escola de Frankfurt, em especial algumas das idéias veiculadas numa obra que surgiu naquele ano, A dialética do esclarecimento (1947). A discussão, ali, da “astúcia da razão tecnocrática” tem alguma semelhança com partes de A ascensão do romance: o que eu havia dito sobre Robinson Crusoé; o que sugeri sobre as potencialidades da exploração de massa contida na identificação mais estreita entre a obra literária e o leitor, que se tornou possível graças à imprensa e àquilo que já chamei de “realismo formal”; e, de modo mais abrangente, o que disse sobre as ligações maiores entre cidade e privatização burguesa, contidos no capítulo que trata da imprensa e da experiência privada.24

O regresso de Adorno à Alemanha não interrompeu esse diálogo. Ainda se-gundo Watt, sua influência se fará também sentir no artigo “Robinson as a myth”, publicado em Essays in Criticism em 1951,25 e seu papel terá sido o de ajudá-lo a

22 Baldick. Criticism and Literary Theory, 1890 to the Present, op. cit., p. 120. 23 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 73. 24 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 73-4. Só um cotejo

entre o manuscrito e a versão final do livro pode indicar se esse capítulo é o que corresponde a “Pri-vate Experience and the Novel”.

25 Ian Watt, “Robinson Crusoe as a Myth”, Essays on Criticism, v. I, n. 2 p. 95-119, 1951. Segundo informa o autor em outra parte, foi no ano de 1951 que ele retomou o estudo do romance do século XVIII, tendo sido a 6ª versão revisada do livro a que foi finalmente aceita para publicação, em 1956.

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ir além do senso comum, embora, paradoxalmente, o principal objetivo de Watt fosse “transcender o que havia aprendido com as modalidades idealistas do pen-samento alemão traduzindo-o em categorias empíricas e linguagem de senso comum”.26

Esse paradoxo parece estar contido nesse relato, que ilustra o argumento de Watt em defesa da importância da filosofia para “promover nossa compreensão da experiência literária, estética e histórica”, porém contra “as abstrações desne-cessárias”, o que explicaria, a meu ver, o arrepio a que ele se refere a seguir:

Lembro-me de uma conversa com Theodor Adorno quando, depois de eu ter contado o que havia feito aquela manhã (retirado alguns livros da biblioteca, ido à lavanderia etc.) e per-guntado sobre seus afazeres, senti um ligeiro arrepio quando ele respondeu: “Tenho meditado sobre problemas eróticos e musicológicos”.27

Se o temperamento empírico que valoriza sobretudo a experiência humana e a natureza imaginativa da literatura parece falar mais alto, sugerindo um certo desencanto com todo tipo de teoria e um “ceticismo com os métodos filosóficos em geral”,28 Watt não deixa de reconhecer o significado que teve para ele essa re-lação intelectual:

Adorno foi uma pessoa muitíssimo fértil e generosa; havia uma pureza, quase uma inocên-cia infantil, em seu entusiasmo pela vida do espírito; ele me pôs em contato com toda a tradição do pensamento alemão na história, na literatura, na sociologia e na psicologia; e fez isso do único modo que isso poderia ter sido feito para mim, porque eu nunca teria acreditado que as pessoas de fato pensavam assim até que vi Adorno em ação, dia após dia.29

Um exame detido de A ascensão do romance expõe as diferentes linhas de força que o estruturam: desde o interesse pela relação entre o romance e seu público, num evidente acerto de contas com seus predecessores na crítica inglesa, o com-promisso com o que ele denomina “a imaginação literal”, isto é, a atenção às “particularidades concretas”, à experiência humana, até a disposição de, por meio de um vocabulário analítico claro e destituído de arrogância intelectual, incorpo-rar o que de melhor as tradições críticas inglesa e alemã foram capazes de produzir.

Ver “Serious Reflection on The Rise of the Novel”. Novel: A Forum on Fiction, v. 1, n. 3, Spring 1968, um exame das reações ao livro, que resulta em um irônico exercício de anatomia do ato de resenhar e da atividade do resenhista.

26 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 76. Observe-se que Watt usa “idealistas” aqui num sentido muito particular, referindo-se à esfera das ideias em oposição ao mundo concreto da experiência sensível.

27 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 90-1. 28 Tzvetan Todorov, “Realist Criticism: Correspondence with Ian Watt”, in Literature and Its

Theorists. A personal view of twentieth-century criticism, trans. Catherine Porter, London, Routledge & Kegan Paul, 1988, p. 106-21 [p. 119].

29 Watt, “Flat-Footed and Fly-Blown: The Realities of Realism”, op. cit., p. 74.

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Seu tratamento do realismo, o qual deveu principalmente à leitura de Lukács30 e Auerbach, a articulação entre forma e processo histórico e a disposição hegeliana dos pressupostos teóricos e dos argumentos em termos de tese, antítese e síntese – perceptível inclusive no modo como propõe a obra de Jane Austen como uma síntese feliz dos modos narrativos de Richardson e Fielding, ou na tensão tácita ou explícita entre “realismo de apresentação” e “realismo de avaliação”31 – tudo pare-ce autorizar a caracterização de Watt como um crítico dialético, a seu modo.32

Em resposta a uma carta de Todorov, Watt questiona em que medida, ou sen-tido, sua “posição crítica” é “realista” (as aspas são dele), recusando, por um lado, o título de “crítico mimético” à maneira de Auerbach, mas reafirmando, por outro, sua crença de que grande parte da melhor crítica literária se ocupa da “re-lação entre a obra e o mundo, ou entre a obra e as palavras que usamos para descrevê-la”.33 Como resposta às imputações de empirismo ingênuo por parte de alguns de seus pares, Watt assevera não ter convicções fechadas a respeito do sentido de “realismo” como termo literário. No esforço de esclarecer sua posição, declara não acreditar na existência de uma doutrina crítica completamente for-mada do realismo enquanto categoria aplicada ao romance, rejeitar a ideia de que o único objetivo do romancista seja uma imitação fotográfica da realidade, e du-vidar que algum escritor decente desde Duranty a tenha sustentado. Acrescenta, por outro lado, que não vê nenhum sentido na noção de que os romances não sejam, de certa forma, sobre a “vida real”.34 Sua insistência, compreensível, em explicitar qual o significado que atribui a esses conceitos tão conflagrados, visa corrigir apreensões errôneas ou parciais do uso que fez deles, serve igualmente para reafirmar os vínculos entre literatura e sociedade como um programa crítico

30 De Lukács Watt leria ainda Studies in European Realism e “Narrar ou descrever”, referido in-diretamente no ensaio “Flat-Footed and Fly-Blown”. Watt: “quanto a Lukács, eu havia lido e, até certo ponto aceitado, algumas de suas posições hegelianas e marxistas.”; “Assim, a admiração de Lukács pelos realistas – de Scott e Balzac a Tolstoi – e sua rejeição aos naturalistas, baseia-se em seus próprios valores filosóficos, políticos e estéticos, que o fizeram rejeitar qualquer atitude mecânica, conformista ou passiva com relação ao mundo material e social” [No original: “as to Lukács, I had read, and to some extent accepted, some of his ideas, both Hegelian and Marxist”; “Thus Lukács’s admira-tion for the realists –from Scott and Balzac to Tolstoy – and his rejection of the naturalists, is based upon his own philosophical, political, and aesthetic values, which lead him to reject any mechanical, conform-ist, or passive attitude to the material and social world”. Ver p. 78 e 82, respectivamente.]

31 A primeira expressão se refere às técnicas narrativas que produzem a impressão de realidade no romance, sendo portanto um sinônimo de “realismo formal”; a segunda, às normas sociais e morais a partir das quais julgamos a vida dos indivíduos e suas ações.

32 Ian Watt procedeu a uma espécie de radiografia e autocrítica do livro em “Serious Reflections on The Rise of the Novel”, publicado originalmente em NOVEL: A Forum in Fiction, v. 1, n. 3, Spring 1968 e republicado em Bruce Thompson (ed.), The Literal Imagination, Palo Alto, Ca., The Society for the Promotion of Science and Scholarship; Stanford, Ca., Stanford University, 2002, p. 1-19. Nesse e em outros textos do autor, não passam despercebidas sua ironia e autoironia.

33 Todorov, “Realist Criticism: Correspondence with Ian Watt”, op. cit., p. 115. 34 Ian Watt, “Realism and Modern Criticism of the Novel”, Stanford Humanities Review, v. 8,

n. 1, p. 70-85, 2000 (versão digitada, generosamente cedida por Bruce Thompson, editor da revista, a quem agradeço agora publicamente).

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de quem acredita que “a literatura é o meio mais sutil e duradouro que o homem criou para se comunicar com seus iguais”.35 No exercício crítico, Watt ressalta o valor moral da literatura, assumindo um ponto de vista ético no tratamento das obras literárias, mas nem por isso descarta seu valor social e a crença na particu-laridade realista com seu amplo arco de significados. Para ele, a realidade tem um componente social muito importante, o que a meu ver explica, por exemplo, seu aproveitamento da concepção lukacsiana segundo a qual as forças históricas se manifestam num destino individual, tipificando nas vidas particulares dos indiví-duos questões sociais e padrões históricos. Esse é, sem dúvida, um traço inequívo-co das leituras que empreendeu dos diferentes autores e obras que privilegiou.

Nesse mesmo diapasão, e ainda que em caráter absolutamente exploratório, cabe seguir a trilha sugerida pelo próprio crítico, quando ele estabelece paralelos entre alguns aspectos de sua obra mais conhecida (mas não apenas dela) e alguns aportes da Dialética do esclarecimento.36 As referências de Adorno e Horkheimer a Robinson Crusoe no Excurso I, “Ulisses ou mito e esclarecimento”, com sua apro-ximação ao Ulisses homérico, sem dúvida alimentaram a reflexão de Watt sobre a personagem que ele iria discutir em diversas ocasiões: no artigo publicado em Es-says in Criticism em 1951,37 em “Defoe as novelist”, de 1957,38 em um capítulo de A ascensão do romance (1957) e no ensaio Mitos do individualismo moderno (1994),39 que retoma e revisa em certa medida algumas ideias do primeiro. Para além da er-rância e da vida aventuresca de ambos os heróis, a associação entre eles que, a in-tervalos, Adorno e Horkheimer sugerem diz respeito ao problema da constituição do indivíduo e do custo da dominação de si mesmo em um mundo adverso e inu-mano, governado por forças míticas e/ou naturais. Não é o caso de tentar reproduzir aqui a argumentação dos dois pensadores alemães sobre o entrelaçamento do escla-recimento e do mito. Para sondar as possíveis conexões pressentidas por Watt, penso que é produtivo ter como baliza o seguinte apontamento de Jeanne Marie Gagnebin sobre a leitura que fizeram Adorno e Horkheimer da viagem de Ulisses:

Adorno e Horkheimer encontraram na Odisséia a descrição da construção exemplar do sujeito racional que, para se construir a si mesmo como “eu” soberano, deve escapar das tenta-ções e das seduções do mito, assegurando seu domínio sobre a natureza externa e, também, sobre a natureza interna, sobre si mesmo.40

35 Todorov, “Realist Criticism: Correspondence with Ian Watt” op. cit., p. 117. 36 Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos,

trad. Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985. 37 Watt, “Robinson Crusoe as a myth”, op. cit., ver nota 25. 38 Ensaio publicado originalmente em The Penguin Guide to English Literature, depois em The New

Pelican Guide to English Literature (v. 4) e finalmente recolhido em Bruce Thompson (ed.), The Literal Imagination, op. cit., p. 92-105.

39 Ian Watt, Mitos do individualismo moderno, trad. Mario Pontes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

40 Jeanne Marie Gagnebin, “A memória dos mortais: notas para uma definição de cultura a par-tir de uma leitura da Odisséia”, in Lembrar escrever esquecer, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 13-27 [p. 13].

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Se, conforme sumaria Gagnebin, na perspectiva dos autores da Dialética a saga de Ulisses “representa [...] a formação do sujeito pela dominação da nature-za e pe la auto-repressão”,41 as ressonâncias com a história de Robinson Crusoe logo se fazem ouvir. Não só essa é uma questão que está no âmago do romance moderno, como Daniel Defoe a encena de modo exemplar na narrativa do jovem que abandona a casa paterna e enfrenta o desconhecido em busca de aventura e de ascensão social. Os deuses já não regem seu destino, ainda que a Providência, invocada inúmeras vezes, seja responsabilizada pelo sucesso e também pelos in-fortúnios da empresa, bem de acordo com a tradição puritana de interpretar os incidentes da vida como sinais da intenção ou da intervenção divina.42

Para enfrentar o desamparo e manter sua condição humana em situações de risco, o náufrago faz uso do controle racional e da astúcia, na difícil tarefa de so-brevivência e superação dos perigos e desafios a que é submetido no curso de suas aventuras. Para tanto, tal qual Ulisses, num estado de “solidão absoluta” (a ex-pressão é de Adorno e Horkheimer), Crusoe se vale da razão instrumental para domar a natureza e construir uma estrutura mínima de subsistência na ilha deser-ta. Para conquistar o meio ambiente, o marinheiro inglês depende do planejamento racional e do cálculo, assim como de ações pragmáticas e utilitárias que acabam por recriar nesse novo espaço, a partir de destroços, uma pequena Inglaterra, onde ele é rei e senhor. O instinto de autopreservação aciona e mobiliza todas as habilidades do náufrago e o faz raciocinar, ponderar sobre cada passo que dá e ca da providência que toma – a razão o orienta e conduz nas tarefas cotidianas de reprodução da vida:

Da mesma forma como a razão é a substância e origem da matemática, ao afirmar e esqua-drinhar cada coisa com a razão e fazer julgamentos mais racionais das coisas, todo homem pode dominar qualquer arte mecânica. Eu nunca havia manejado uma ferramenta em toda a minha vida; mas, com o tempo, com labor, aplicação e engenho, descobri por fim que eu não desejava nada que não pudesse fazer, especialmente se dispusesse de ferramentas.43

Dessa maneira, as mais diversas operações necessárias à sua sobrevivência (o preparo de alimentos, confecção de vestimentas, plantio, colheita etc.) e os seus resultados passam a ser descritos em detalhes – Crusoe contabiliza, descreve, explica, anota e preenche a narrativa com aquelas particularidades que incor-poram ao romance “a visão circunstancial da vida” que Watt denominou “realis-mo formal”.

41 Idem, ibidem, p. 13. 42 Watt, “Defoe as novelist”, op. cit., p. 97. 43 Defoe, Robinson Crusoe, p. 64. [No original: “as reason is the substance and original of the

mathematicks, so by stating and squaring everything by reason, and by making the most rational judg-ment of things, every man may be in time master of every mechanick art. I had never handled a tool in my life, and yet in time, by labour, application, and contrivance, I found at last that I wanted nothing but I could have made it, especially if I had had tools...” (p. 85)].

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Esse processo de produção das condições mínimas de existência reproduz, conforme pontua Watt, as diferentes etapas da história humana – coleta, caça, pesca, pastoreio e agricultura44 – e introduz nessa ilha deserta a “racionalidade dos processos da vida econômica”.45 O empenho e a perseverança de Crusoe em con-ferir alguma ordem a seu cotidiano, administrar seu tempo, organizar sua existência e, sobretudo, virar as condições adversas a seu favor acabam por fazer dele “um triunfo da façanha e da iniciativa humanas”.46 O objetivo primordial do lucro, o utilitarismo, a comodificação das relações humanas – tudo justifica a expressão homo economicus que se atribuiu a ele. Epítome do empreendedor capitalista, en-carnação do individualismo econômico, como quer que o descrevamos, Crusoe se transformou numa figura mítica, na medida em que simbolizou/simboliza alguns dos valores fundamentais de uma sociedade em mudança e de uma classe em as-censão, assumindo um papel central na construção do significado do individua-lismo moderno.

Sua formação como indivíduo tem como preço, por um lado, o enfrentamento de grandes provações e, por outro, a separação dos outros homens. À ruptura dos laços familiares, com a saída de casa, segue-se uma sucessão de episódios em que Crusoe sistematicamente descarta todos os vínculos que a vida lhe oferece em favor do domínio sobre aqueles que cruzam seu caminho. Assim, trata Xuri como uma mercadoria, vendendo-o ao capitão português, depois de o pequeno mouro tê-lo ajudado na fuga e na travessia marítima. Com o nativo que encontra após 25 anos de isolamento na ilha, não é diferente: em vez de amigo, prefere fazer de Sexta-Feira seu escravo. Crusoe lhe dá um nome, ensina-lhe inglês e o recruta em seu serviço. O sujeito colonial fala, mas a língua que ouvimos é a do colonizador. O inglês fluente, porém rudimentar, de Sexta-Feira é a manifestação oral de sua escravidão voluntária. “Amo” é a palavra que ele aprende para designar Crusoe. Peter Hulme descreveu esse como “o encontro colonial paradigmático, aquela cena-chave da literatura colonial em que o caribenho-americano recentemente resgatado, que logo será chamado de Sexta-Feira, põe a cabeça embaixo do pé de um europeu desconcertado”.47 Os “sinais [“signs”] [...] de sujeição, servidão e submissão”48 de Sexta-Feira se convertem em mais do que gestos e movimentos corporais; ao contrário, sugerem que sua adoção da língua do “civilizador” inscre-ve o signo (“sign”) linguístico (significado e significante) nos processos de do-mesticação e dominação social que fizeram parte do empreendimento colonial no Novo Mundo. A educação do nativo e a “dádiva” de Crusoe da língua do conquis-

44 Watt, “Robinson Crusoe”, in Mitos do individualismo moderno, op. cit., p. 158. 45 Watt, “Robinson Crusoe as a myth”, op. cit., p. 100. 46 Idem, ibidem, p. 99.47 Peter Hulme, Colonial Encounters. Europe and the Native Caribbean 1492-1797, London,

Routledge, 1992, p. 176 (tradução minha). 48 Defoe, Robinson Crusoe, op. cit., p. 173. [No original: “signs of [...] subjection, servitude, and

submission” (p. 209)].

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tador concretizam o grande sistema de subjugação que constitui a Aufklärung e o exercício de formas de controle e poder que ela implica. O esclarecimento, como Adorno e Horkheimer demonstraram com clareza, contém dialeticamente sua ne-gação, revelando o lado sombrio do projeto de emancipação humana. Robinson Crusoe está no âmago dessa problemática.

“Commerce” – que significa comércio, negócios, trocas, mas também relações pessoais – parece ser o termo realmente sob medida para descrever a natureza dos “vínculos” que Crusoe estabelece com seus semelhantes. A sua é uma existência essencialmente solitária, que exclui as relações familiares, de amizade ou mesmo amorosas, pois até o casamento e os filhos se reduzem a algumas linhas de seu relato, como se fossem acidentes de percurso e não acontecimentos importantes na esfera privada. Refletindo em retrospecto sobre sua vida na ilha, no último livro da trilogia, Crusoe nos oferece um ensaio sobre a solidão. Ali, deixa registrados alguns apontamentos sobre essa condição humana, que experimentou por tanto tempo e de modo tão inescapável:

O que significam para nós as tristezas dos outros homens? E sua alegria? Algo que pode nos comover de fato, pela força da compaixão e por uma secreta reviravolta das afeições; mas toda a reflexão genuína é dirigida a nós mesmos. Nossas meditações são todas perfeita solidão; nossas paixões são todas exercidas em recolhimento; amamos, odiamos, cobiçamos, desfruta-mos, privada e solitariamente. Tudo o que comunicamos disso a outrem o é para auxiliá-los na persecução de nossos desejos; a finalidade é caseira; o gozo, a contemplação, é tudo solidão e recolhimento; é para nós mesmos que desfrutamos, e para nós mesmos que sofremos.49

Não parece difícil compreender por que Robinson Crusoe se tornou um dos mitos do individualismo moderno e sua epopeia pessoal ganhou o status de nar-rativa emblemática de um momento crucial na história da constituição do mundo burguês. Sua odisseia encarnou os dilemas e valores de uma sociedade em vias de erigi-la em modelo e ideal para seus cidadãos.

Em resposta ao romancista vitoriano Walter Besant, que havia alegado que sem aventura a ficção era impossível, Henry James manifestou certa feita sua discordância:

49 Daniel Defoe, “Of solitude”, in Serious Reflections during the life and surprising adventures of Robinson Crusoe: with his vision of the angelick world. Written by Himself, London, Printed for W. Taylor, 1720, p. 2-3 [No original: “What are the Sorrows of other Men to us? And what their Joy? Some-thing we may be touch’d indeed with, by the Power of Sympathy, and a secret Turn of the Affections; but all the solid Reflection is directed to our selves. Our Meditations are all Solitude in Perfection; our Pas-sions are all exercised in Retirement; we love, we hate, we covet, we enjoy, all in Privacy and Solitude: All that we communicate of those Things to any other, is but for their Assistance in the Pursuit of our Desires; the End is at Home; the Enjoyment, the Contemplation, is all Solitude and Retirement; ‘ts for our selves we enjoy, and for our selves we suffer”].

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Por que sem aventura, mais do que sem matrimônio, celibato, parturição, cólera, hidropa-tia, ou jansenismo? Por que devolver ao romance o miserável e pequeno papel de ser uma coisa artificial, engenhosa – rebaixá-lo de sua grande e livre condição de uma imensa e extraordinária correspondência com a vida?50

Robinson Crusoe é um romance de aventuras e não contém a maioria dos temas (entre eles os que James sugere) que o gênero incorporou ao longo de sua história. Contudo, dele não se pode dizer que não tenha uma “imensa e extraordinária correspondência com a vida”.

50 Citado por Ian Watt em “Realism and Modern Criticism of the Novel”. op. cit., p. 70-85 (ver-são digitada, generosamente cedida por Bruce Thompson, editor da revista). Watt parece citar de memória, pois o texto original é: “Why without adventure, more than without matrimony, or celibacy, or parturition, or cholera, or hydropathy, or Jansenism? This seems to me to bring the novel back to the hapless little rôle of being an artificial, ingenious thing – bring it down from its large, free character of an immense and exquisite correspondence with life?” [Cf. Henry James, The art of fiction, in Literary Criticism, New York, The Library of America, 1984, v. I, p. 61].

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Sinto-me, é claro, muito lisonjeado com o convite para vir aqui, e por diversos motivos.1 Como disse Horace Walpole sobre o sucesso inesperado de O castelo de Otranto, “É delicioso entrar na moda” (carta para George Augustus Selwyn, 2 de dezembro de 1765).2 É particularmente delicioso porque empresta credibilidade à hipótese de minha contínua sobrevivência, de modo nenhum universalmente aceita: há pouco tempo encetei uma conversa com um aluno de Berkeley e quando, ao ir embora, revelei meu nome, ele respondeu, perplexo: “Oh, achei que o senhor tivesse morrido”. Uma terceira razão, sem dúvida, é que eu não posso alegar que desconheça o que Johnson disse sobre Richardson: que ele “não se contentava em navegar tranquilamente pelas águas da fama sem querer provar o gosto da espuma produzida a cada remada”.3 Minha dificuldade inicial em decidir se devia vir e, se viesse, sobre o que falaria, em parte derivou de um sentimento de decoro que me dizia que eu mesmo não deveria ser visto agitando as águas da reputação; e, contudo, foi justamente isso o que Paul Hunter me pediu

1 Watt pronunciou esta palestra em uma sessão plenária durante o quarto encontro anual da Southeastern American Society for Eighteenth-Century Studies, da University of Alabama, em Tuscaloosa, em 12 de março de 1978. Foi publicada em conjunto pela Stanford Humanities Review e pela Eighteenth-Century Fiction, com permissão do Department of Special Collections, das Stan-ford University Libraries. (N. do E.)

2 Letters of Horace Walpole, ed. Mrs Paget Toynbee, Oxford, Clarendon Press, 1904, 15v., v.6, p. 367.

3 Ian Watt, A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, São Paulo, Com-panhia das Letras, 1996, p. 226. Aqui e em outras referências ao livro, vali-me dessa edição, cuja tradução é de Hildegard Feist. O original de Watt, no entanto, é The Rise of the Novel: Studies in Defoe, Richardson, and Fielding, Berkeley, University of California Press, 1957, p. 260. (N. do T.)

* Como costuma ocorrer com os títulos de Watt, a tradução de “Flat-footed and Fly-blown: The Realities of Realism” é complicada. Os termos “flat-footed” (canhestro) e “fly-blown” (deteriorado) não encontram um equivalente satisfatório em nossa língua; respectivamente, ao pé da letra querem dizer “pé chato” e, portanto, algo desajeitado, gauche, e “infestado de vermes ou lêndeas”, ou seja, corrompido ou bichado. Optei pelos termos ao mesmo tempo fiéis e que permitem os vários empre-gos que eles assumem no decorrer no texto. A tradução deste artigo recebeu o valioso préstimo da professora Sandra Guardini T. Vasconcelos, que contribuiu com inúmeras sugestões. Sugiro a leitura do artigo da autora, “Ian Watt e a figuração do real”, que está neste número da Literatura e sociedade. (N. do T.) Tradução de Marcelo Pen Parreira (DTLLC – USP)

CANHESTRO E DETERIORADO: AS REALIDADES DO REALISMO*

IAN WATT

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para fazer. A dificuldade c ombina com o fato de que não queria repetir uma trans-gressão anteriormente aceita nessa linha da autoadulação, um ensaio chamado “Serious Reflections on The Rise of the Novel”.4

Títulos que começam com “na direção a” sempre me fizeram perguntar: “Por que ele não espera chegar lá? Quem sabe assim saberia se há algo ali que valha a pena apresentar”. Em todo caso os senhores não devem esperar nenhuma apre-sentação minha sobre essa vasta abstração, a “Poética da ficção”. Pois o prosaico “canhestro” de meu título decerto sou eu mesmo; e eu continuo a percorrer os caminhos “deteriorados” do “realismo”. Imaginei que um meio razoavelmente decoroso de cumprir meu dever seria evitar os rumos já tomados, ou muito trilha-dos por outras pessoas, e fornecer um relato biográfico de como nasceram alguns dos elementos menos obviamente prosaicos de A ascensão do romance, sobretudo pela influência da tradição intelectual alemã, a menos mundana de todas as for-mas de pensamento. Assim, ainda permanecendo no exterior, quero examinar rapidamente como as diversas traduções estrangeiras e subsequentes recepções do que eu normalmente imagino ser A ascensão do romance chamaram a atenção para algumas de suas implicações ideológicas mais amplas e menos observadas. Enfim, após uma escala em Paris, tomaremos o rumo de casa para que eu dê minha opi-nião sobre o status representacional da ficção e, com maior ênfase, sobre a neces-sidade do realismo na crítica literária.

Os três períodos da composição: tese

Ao relembrar o processo de composição de A ascensão do romance, exultei quando descobri um padrão verdadeiramente hegeliano de tese, antítese e síntese.

Em 1938, o tópico registrado de minha tese de doutorado era “O romance e seu leitor: 1719-1754”. O título reflete algo da atmosfera intelectual de Cambridge no final dos anos 1930. Havia o positivismo lógico. Alguns de meus amigos pas-savam um bom tempo esperando alguém usar a palavra “por quê?” para poder retrucar: “Mas você deveria saber: as únicas perguntas verdadeiras começam com como”. Meu tópico de pesquisa desconsiderava por completo os porquês, admitia o fenômeno mais ou menos publicamente reconhecido do “nascimento do ro-mance” e procurava estudar apenas o “como”. Por trás de minha abordagem ha-via o empirismo e o moralismo arraigado da tradição inglesa – especialmente a de Cambridge. Em especial, havia a crítica do leitor do Practical Criticism (1929), de I. A. Richards, certamente o texto mais influente no que dizia respeito à facul-dade de Inglês de Cambridge; e, não menos importante, a combinação da perspec-tiva histórica e moral dos dois Leavis: F. R. Leavis havia escrito uma tese histórica sobre o meio cultural de Addison e Q. D. Leavis publicado Fiction and the Reading Public em 1932. O principal pressuposto era o de que o passado constituíra uma longa idade de ouro, com uma harmoniosa e frutífera relação entre autor e público;

4 Ian Watt, “Serious Reflections on The Rise of the Novel”, The Novel: A Forum on Fiction 1 (1968), p. 205-18; reeditada em Towards a Poetics of Fiction: Essays from “Novel: A Forum on Fic-tion 1967-1976”, ed. Mark Spilka, Bloomington, Indiana University Press, 1977, p. 90-103.

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mas, em seguida, a indústria, os meios de comunicação de massa, o mercantilis-mo filisteu e a decadência metropolitana produziram a situação da “civilização de massa e da civilização da minoria”, contra a qual apenas Cambridge e a Scrutiny se insurgiram. O marxismo foi outra influência primordial sobre o meu pensa-mento em 1938; e essa influência representou de várias maneiras um surpreen-dente complemento às outras. A visão materialista do marxismo se ajustou com grande parte da tradição empírica e positivista da academia; e, como ela relacio-nava literatura e sociedade e via como um declínio catastrófico a situação cultural contemporânea, havia um entendimento substancial entre a crítica comunista e a posição dos dois Leavis. Isso fica bastante claro na obra de meu amigo e contem-porâneo Arnold Kettle. O misto de orientação marxista e dos Leavis de sua ines-timável Introduction to the English Novel (1951), por exemplo, hoje parece extraor-dinariamente peculiar.

Antítese: 1946-1948

Meu próprio tema constituía uma vergonhosa exceção no que se referia aos Leavis e aos marxistas, já que era razoavelmente óbvio que o romance era uma forma literária que não havia ficado pior à medida que nos aproximávamos do presente. Mas, naquela época – 1939 –, eu estava um pouco preocupado com es-sas dificuldades; obviamente havia problemas muito mais graves pela frente. A guerra começou em setembro. Quando ela terminou e eu fui dispensado sete anos mais tarde na primavera de 1946, me vi sem nenhuma ideia definitiva sobre o que fazer em seguida. Por ter ficado prisioneiro por três anos e meio, eu havia acumu-lado a maior parte do soldo e mais de meio ano de licença e, quando pensava se-riamente no que iria fazer quando tudo terminasse, hoje recordo que a ideia mais conclusiva que eu tinha era a de entrar para o ramo dos vinhos. Mas fui poupado para um destino pior do que o da riqueza e de uma cirrose do fígado. Lembro-me de um dia ter ido sem nenhum propósito claro ao Museu Britânico e vasculhado os catálogos para ver o que acontecera durante minha longa ausência; as datas em minhas anotações mostram com nitidez que, por um acaso que não posso expli-car, aparentemente forcejei nos dois meses seguintes pelas páginas de A teoria do romance (1920), de Georg Lukács, e de Mimesis (1946), de Erich Auerbach. Eu digo que forcejei sobretudo porque isso significa que tive de aprender alemão pela terceira vez. Tanto Lukács quanto Auerbach na realidade contribuíram muito mais para A ascensão do romance do que sugerem as poucas referências no texto.

Na primavera de 1946 me inscrevi para a Commonwealth Fund Fellowship – hoje denominada bolsa Harkness – para dois anos de pesquisa nos Estados Uni-dos; e, em setembro, dei por mim na Universidade da Califórnia (Ucla). Naquele inverno, num arroubo furioso de energia, escrevi um rascunho de 500 páginas, consegui que as datilografassem e ganhei uma bolsa de pesquisa no St John’s Col-lege, em Cambridge. Mas, antes de iniciá-la, ainda tinha – se desejasse – um ano e meio para estudar o que quisesse nos Estados Unidos. Em 1947, fiz algumas pesquisas na Ucla em antropologia e sociologia no que era então um democrático e animado grupo de docentes e alunos; mas o resultado mais significativo desse

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desvio pelas ciências sociais foi pôr-me em contato com alguém que certamente seria mais responsável do que qualquer outra pessoa pela configuração intelectual da Ascensão, e pelo longo atraso em sua conclusão, o falecido Theodor Adorno, hoje famoso como líder da Escola de Frankfurt, naquela época situada na área em torno dos Pacific Palisades. Mal havíamos nos conhecido quando ele disse com genuíno interesse que gostaria de ler meu manuscrito. Quando voltei à casa dele poucos dias depois, Adorno me manteve nos degraus da porta explicando sua opinião sobre as dificuldades que envolviam o uso da palavra “gênio”; então, pas-sou a dizer como nunca usava o termo de forma leviana; por fim, bem, a modéstia me proíbe de continuar, mas os elogios que ele empregou me convenceram de que se referia ao manuscrito errado. Mais tarde vim a conhecer Adorno razoavelmen -te bem, e isso causou três tipos de atraso. Primeiro, não queria ser descoberto, de modo que, por algum tempo, não pude escrever quase nada; segundo, dada a sua visão assustadoramente ampla do que estava à disposição de qualquer pessoa cul-ta, percebi que eu tinha um longo caminho pela frente; e, por fim, passei a enten-der que o que ele mais apreciava em minha tese eram na realidade os paralelos independentes ou as ampliações de algumas das ideias gerais da Escola de Frank-furt, em especial algumas das ideias veiculadas numa obra que surgiu naquele ano, A dialética do esclarecimento (1947). A discussão, ali, da “astúcia da razão tecnocrática” tem alguma semelhança com partes de A ascensão do romance: o que eu havia dito sobre Robinson Crusoe; o que sugeri sobre as potencialidades da ex-ploração de massa contida na identificação mais estreita entre a obra literária e o leitor, que se tornou possível graças à imprensa e àquilo que já chamei de “realis-mo formal”; e, de modo mais abrangente, o que disse sobre as ligações maiores entre cidade e privatização burguesa, contidos no capítulo que trata da imprensa e da experiência privada.

Adorno foi uma pessoa muitíssimo fértil e generosa; havia uma pureza, quase uma inocência infantil em seu entusiasmo pela vida do espírito; ele me pôs em contato com toda a tradição do pensamento alemão na história, na literatura, na sociologia e na psicologia; e o fez do único modo que isso poderia ter sido feito para mim, porque eu nunca teria acreditado que as pessoas de fato pensavam as-sim até que vi Adorno em ação, dia após dia.

O efeito mais imediato que ele exerceu sobre A ascensão foi obrigar-me a pôr de lado o manuscrito até sentir que estava pronto para novos voos; nesse meio--tempo comecei a escrever um livro bem diferente, que tratava, no contexto teórico mais amplo possível, de literatura, leitura, memória e tecnologia. Se tivesse con-cluído esse livro – então chamado de “Printed Man” –, eu poderia ter-me tornado o São João Batista de Marshall McLuhan. Tudo o que apareceu dessa versão foi um longo artigo escrito em colaboração com um amigo antropólogo, Jack Goody, in-titulado “The Consequences of Literacy”.5

5 Jack Goody; Ian Watt, “The Consequences of Literacy”, Comparative Studies in Society and History, v. 5, p. 304-45, 1963. Reimpresso em Literacy in Traditional Societies, ed. Jack Goody, Cam-bridge, Cambridge University Press, 1968, p. 27-68.

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No segundo ano da bolsa, 1947-1948, segui para Harvard; e ali, entre outras coisas, continuei exposto ao pensamento alemão. Assisti ao seminário de Talcott Parson sobre teoria social, e aprendi alguma coisa sobre Max Weber. Isso se refle-tiu, creio eu, não apenas no tratamento das forças econômicas e institucionais na Ascensão do romance, mas também em algumas de suas ideias norteadoras mais abstratas – a noção, por exemplo, do desencanto do mundo sob o impulso do racionalismo científico e econômico (Entzauberung der Welt), associado ao Ilumi-nismo. Também aprendi com Parson – embora resistindo o tempo todo – a ver a sociedade em termos estruturais e funcionais; ou seja, a ver a sociedade não como algo incapaz de ser o que eu gostaria que fosse, como algo que foi no passado ou que poderá ser no futuro, mas sim como algo que existe e que se manifesta atra-vés de um equilíbrio de forças institucionais e culturais dominadas pela tensão e em constante mudança. Esse tipo de pensamento me fez enxergar a dubiedade de muitos pressupostos incontestes que mais ou menos colhi de todo tipo de fonte – Platão, Matthew Arnold, os Leavis, o marxismo e a Escola de Frankfurt, por exemplo. Eu, é claro, não sufoquei todos os meus impulsos pessoais de crítica ou repulsa social, mas me tornei muito mais consciente deles; um resultado, creio, foi dar um grau muito maior de objetividade aos aspectos sociológicos e históri-cos de A ascensão do romance.

Um impulso correlato – na direção de uma penetração mais direta e imediata dos autores que vinha estudando e de uma compreensão mais ampla das ativida-des de minha própria consciência durante o processo – foi fortalecido por outro encontro casual. Aron Gurwitsch, então estudando matemática em uma pequena escola local, embora já fosse editor do Journal of Philosophy and Phenomenological Research, apresentou-me ao pensamento de Brentano, Husserl e Merleau-Ponty. O que ficou de modo mais nítido foi a estimulante vitalidade de seu desprezo sardô-nico pela maioria dos assuntos que surgiam durante a conversa; mas também aprendi algumas maneiras de superar o positivismo em meu tratamento da inten-ção, da expectativa cotidiana e da projeção imaginativa.

Síntese: 1950-1956

De volta a Cambridge, na Inglaterra, em 1948, a dificuldade de terminar o li-vro sobre o letramento, somada à necessidade claramente relacionada de ganhar a vida, enfim me fez regressar ao amarfanhado manuscrito sobre o romance do sé-culo XVIII. Foi primeiramente usado como fonte de artigos isolados. O primeiro foi “A designação dos personagens em Defoe, Richardson e Fielding” (1949); os vestígios fenomenológicos talvez expliquem por que só foram republicados na Alemanha. O segundo artigo, “Robinson Crusoe as a Myth” (1951), teve tamanha influência de Adorno, e mais diretamente de Weber e de Stamm, que um crítico americano, talvez perturbado com meu afastamento da então assentada tendência de ver o século XVIII inteiramente nos termos do século XVIII, parece ter pre-sumido que eu era alemão. (Os outros dois, um sobre uma atribuição equivocada a Defoe e o outro sobre o ponto de vista de Defoe e Richardson sobre Homero, revelam de forma mais ou menos direta as diversas influências do positivismo e de Georg Lukács.)

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Quando comecei a trabalhar no manuscrito como um todo, me dei conta de que minha nova compreensão do assunto, e até mesmo meu senso ora iniciado do que poderia ser uma completa compreensão, estava me levando para uma empresa muito mais ambiciosa do que aquela que eu em princípio concebera, uma empre-sa ainda mais impossivelmente demorada.

Como poderia combinar todas as informações que havia reunido com as ideias que as dotavam, eu agora imaginava, de um significado mais amplo? A resolução que dei ao problema foi draconiana, tanto em termos de substância quanto de for-ma. Quanto à substância, expressei minhas ideias mais largas, filosóficas e históri-cas, apenas quando elas pareciam diretamente relacionadas com o tema à disposição, e geralmente apenas quando havia evidência suficiente para ilustrá-las a partir das fontes primárias. Por outro lado, reduzi drasticamente as informações empíricas, e deixei poucas que não iluminassem as perspectivas intelectuais mais dilatadas. Quanto à minha estratégia retórica, foi fundamentalmente de estilo, no sentido de que queria evitar tudo o que pudesse ser indigesto, no tocante tanto a uma exces-siva documentação empírica quanto a desmedidas abstrações filosóficas.

De certo modo, meu método geral inverteu o de Adorno. No prefácio à edição inglesa de Prismas, o filósofo rende homenagem ao que “aprendeu com as normas anglo-saxãs de pensamento e apresentação”. Ocorre, porém, que isso é puramente “como um controle, por receio de rejeitar o senso comum sem tê-lo antes domi-nado”; e então Adorno paradoxalmente conclui que “é somente pelo uso de suas próprias categorias que se pode transcender o senso comum”.6 De algum modo, ele me ajudou a superar o senso comum; mas meu principal objetivo pode ser expresso nos termos do paradoxo oposto: o de transcender o que eu havia apren-dido com as modalidades idealistas do pensamento alemão traduzindo-o em cate-gorias empíricas e linguagem de senso comum.

Essa síntese final foi amplamente intuitiva; até onde me acode qualquer influên-cia específica sobre minha estratégia de composição, essa deve ser eco da lembrança daquilo que I. A. Richards me disse com sua sutileza caracteristicamente cordial depois de ter lido meu manuscrito: “Se eu fosse você, Ian, me manteria afastado das grandes empresas transportadoras”.

Em retrospecto, portanto, espero enxergar sob a modesta superfície de A as-censão do romance as perturbadas subcorrentes de um conjunto bastante represen-tativo das principais tendências intelectuais de seu período de gestação – 1938 a 1956. É essencialmente uma síntese parcial, e em muitos aspectos amadora, de duas grandes, mas bastante distintas tradições de pensamento: em primeiro lugar, os elementos empíricos, históricos e morais de minha formação em Cambridge; em segundo, os muitos outros elementos teóricos da tradição europeia – o forma-lismo e a fenomenologia, em menor escala; e o marxismo, freudismo e a Escola de Frankfurt, em uma escala de certo modo mais ampla.

6 Theodor Adorno, Prisms, trans. Samuel and Shierry Weber, London, Spearman, 1967, p. 7 [ed. bras. Adorno, T. W. Prismas. Crítica cultural e sociedade, São Paulo, Ática, 2001].

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Eu demoraria muito tempo para ilustrar essa síntese; e ela também me obri-garia a reler o livro. Mas ao olhar para o primeiro parágrafo já noto um certo in-dício prefigurativo dessa união entre o empírico e o não empírico; o parágrafo vai de uma pergunta com como, para uma pergunta com por quê: de “como a (prosa de ficção do século XVIII) se difere (daquela) do passado” até “há algum motivo para essas diferenças terem aparecido em determinada época e em determinado local?” (p. 11).

Que A ascensão do romance tenha tirado proveito dessas várias presenças filo-sóficas, embora elas tenham sido no máximo rapidamente mencionadas em notas de rodapé ou no prefácio, parece-me bastante evidente; entre outras razões, talvez seja essa a que provavelmente responde pela crescente atenção que o livro recebeu nos últimos anos; suponho que a base de sua atualidade quase póstuma em parte deve residir no fato de que sua substância e que sua ênfase estiveram bem mais em contato com um vasto espectro da ideologia moderna do que parecia, à primeira vista. O esquema de sua recepção, creio, é a prova disso.

Traduções e reações na Europa

As duas primeiras traduções vieram à luz em 1974: na Alemanha, como Der Bürgerliche Roman, e na Polônia, como Narodziny Powiesci (O nascimento do roman-ce). Esses dois títulos não são, creio, casos de tradução equivocada. A mera ausên-cia – não só no alemão, mas também no polonês e em várias outras línguas – da distinção que se faz em inglês entre novel e romance torna impossível a tradução literal de A ascensão do romance.7 Chamá-lo, ao contrário, de “O romance burguês” é chamar primordialmente a atenção ao aspecto histórico-social do livro de uma perspectiva marxista; e essa mesma ênfase ocorre na tradução italiana – Le origini del romanzo borghese (1976). Essa versão inclui um longo ensaio do tradutor, Luigi del Grosso Destreri, “Cultura burguesa e cultura popular”. Destreri lamenta que os “assim chamados sociólogos da literatura” não “refletiram com seriedade” sobre “il Watt”, em parte por causa das “posições lógico-positivistas” do livro; ele então propõe um “segundo nascimento” para a obra aproveitando a ocasião para uma “discussão mais ampla sobre as condições de produção dos modelos culturais”.

O ensaio é interessante, mas só tenho tempo para discutir uma questão, pe-quena em si mesma, mas que ilustra tanto as vantagens quanto as desvantagens do meu método de composição empírica. Destreri me censura por ter “descrito, mas deixado de nomear” o fenômeno da alienação e anomia, mas me elogia por ter-me “inadvertidamente inserido na tradição crítica de Lukács e Lucien Goldmann”. Na verdade, eu não tinha, nos anos 1950, ouvido falar de Goldmann, embora ele por sua vez refletisse as ideias de algumas das figuras de Frankfurt cujas obras eu conhecia, como Franz Borkenau, Walter Benjamin e Bernard Groethuysen; quanto

7 Watt refere-se à distinção entre romance, relato ou novela de caráter fantástico ou romântico, e novel, o romance propriamente dito. Tanto o termo alemão Roman quanto o polonês powiesc tra-duzir-se-iam com mais propriedade como romance (novel). (N. do T.)

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a Lukács, eu havia lido e, até certo ponto aceitado, algumas de suas posições he-gelianas e marxistas. Mas eu dificilmente poderia ter explicitado quer minha dívi-da, quer minha discordância com Lukács ou com a Escola de Frankfurt na Ascensão do romance sem introduzir grandes questões conceituais que teriam desviado mi-nha atenção, e a dos meus leitores, das proximidades concretas de meu assunto. Foi por motivos semelhantes que até mesmo evitei o uso da palavra “burguês” (exceto em citações). Assim, da mesma forma que o termo “alienação”, usado por Hegel, Marx ou pensadores posteriores, implica um estado anterior de harmonia espiritual, econômica e social cuja verdadeira existência histórica eu questiono, também o sentido marxista de “burguesia” implica uma vasta teoria histórica e política. Eu empreguei vários aspectos concretos dessa teoria, mas evitei o termo em si, porque ele invocava ideias metafísicas que eu rejeitava. Por outro lado, se não mencionei minha discordância, foi por não ter razões para acreditar que meus argumentos teriam algum interesse particular para outras pessoas, já que fazia tempo que eles deixaram de ser interessantes para mim.

Esse repúdio ao interesse ideológico teve, para mim, a ampla vantagem de afinar o foco do assunto em pauta; mas eu tenho razão para acreditar que, no caso, a recusa não diminuiu a pertinência do que eu tinha para dizer. Eu soube, por ensaios, conversas e cartas, que os leitores de A ascensão do romance na Polônia, na Hungria e na Romênia, por exemplo, acharam na obra uma relevância hodier-na, até mesmo um menor interesse polêmico, que certamente não foi intencional; e essa pertinência está diretamente relacionada às mesmas questões que me fi-zeram evitar os termos “burguês”, “alienação” e “anomia”. A questão, dizendo simplesmente, é se os valores burgueses e toda gama de descontentamentos da sociedade, representados pelos conceitos de “alienação” e “anomia” são, como presumem Marx e Durkheim, o resultado temporário de uma fase específica no desenvolvimento da produção capitalista. Para os escritores nos países socialistas, a questão – diametralmente oposta aos pressupostos do ali predominante “realis-mo socialista” – é se as manifestações sociais, espirituais e literárias do individua-lismo alienado podem não ter de fato muito pouco a ver com quem detém os meios de produção. Quem sabe não seja, muito mais, parte do processo evolucio-nário de mudança das pequenas sociedades tribais para aquelas do moderno estilo de vida urbano, de larga escala industrial. Quem sabe todo o ciclo do que cos-tumava ser intitulado “individualismo burguês” – e o tipo de romance a ele asso-ciado – não seja um estágio histórico necessário no desenvolvimento literário e intelectual de todas as sociedades industriais desenvolvidas?

Alguns aspectos do termo “realismo”

Chego enfim um pouco mais perto do tópico sugerido pelo meu título. Se eu tivesse de usar um rótulo crítico, não tenho nenhuma objeção especial ao de “re-alista sociológico”, que me foi recentemente imputado por Mark Spilka,8 embora

8 Spilka, p. viii.

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minha reação básica seja de um bocejo acompanhado por um apelo de nolo con-tendere. Minha impaciência tem menos a ver com o “pressuposto geral de que o “realismo” é uma postura metafísica pedestre e canhestra do que com o fato de que no uso crítico o termo implica controvérsias que, após cerca de um século, claramente se deterioraram. Mas creio que pode ser produtivo tentar examinar dois aspectos gerais do problema a que se ligam as questões do realismo. Antes, porém, algumas poucas palavras sobre o sentido subjacente aos termos que em-preguei, “realismo de apresentação” e “realismo de avaliação”, com respeito às ideias filosóficas que forneceram a segunda, e antitética, etapa da gestação de A ascensão do romance.

Realismo de apresentação

Em A ascensão do romance, o “realismo de apresentação” ou “realismo formal” foi uma maneira de estabelecer uma distinção entre o aspecto puramente técnico da representação narrativa do mundo real e a verdade ou a substância da obra li-terária. Percebi que três obras recentes fazem uma distinção similar. Assim, Ernst Fischer, em The Necessity of Art (1967), fala de um aspecto do realismo como “um método específico” dos romances e peças oitocentistas. Damian Grant usa a cate-goria “realismo consciente”; e em seu arguto estudo, On Realism (1973), J. Peter Stern descreve o realismo na literatura como “um meio de retratar, descrevendo a situação de uma maneira fiel, acurada, ‘semelhante à vida’”, e acredita que a qua-lidade especial da “ficção do século XIX” contém “mais elementos realistas do que na literatura anterior”.9 E, A ascensão do romance, estive ocupado com a pré-his-tória desse processo; e se fiz algum progresso em relação a considerações ante-riores foi em associar o realismo formal ou de apresentação a dois tipos diversos de causas, tipos que, por sua própria natureza, expuseram-nas de modo bastante desigual às vicissitudes históricas.

Havia, em primeiro lugar, as causas que atribuí a transformações filosóficas, sociais, econômicas e educacionais que afetaram tanto os autores como o público leitor, transformações que conduziram a uma ênfase sobre o indivíduo, sobre a particularidade do tempo e do espaço, sobre o universo material e a vida cotidia-na: todos esses, entre outros fatores históricos, criaram uma versão substancial-mente nova da antiga preocupação da literatura com a verossimilhança; mas, como algumas dessas mudanças foram essencialmente sociais, supus que não ape-nas o conteúdo específico da ficção setecentista, mas ainda alguns aspectos de seu notável idioma particular provavelmente não sobreviveriam ao período. Mas exis-tiam outras espécies de causas muito menos sujeitas à contingência histórica: em primeiro lugar, havia a autoridade do pseudorrealismo da imprensa, que atribuí ao meio tecnológico; e, em segundo, a correspondente instauração do silêncio e da

9 Ernst Fischer, The Necessity of Art: A Marxist Approach, trans. Anna Bostock, Harmondsworth, Penguin, c. 1963, p. 106; Damian Grant, Realism, London, Methuen, 1970; J. Peter Stern, On Realism, London and Boston, Routledge and Kegan Paul, 1973, p. 40, 41.

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leitura privada como modo característico de desempenho romanesco. Esses fato-res, supus, derivavam da própria modalidade da produção literária, e haviam as-sim contribuído para mudanças qualitativas permanentes no idioma expressivo da ficção; o efeito objetivo e, contudo, privado da página impressa possibilitou uma espécie de apresentação realística capaz de durar muito mais tempo.

Meu tratamento do realismo formal, portanto, deveria mostrar-se bastante independente do tipo de consideração envolvida com o realismo como nome de uma de terminada escola literária; interessava-me menos ainda o realismo como uma dou trina crítica consciente que supostamente professa que a ficção é ou deveria ser uma reprodução fotográfica verbal da realidade, ou uma imitação direta, não mediada, da vida.

A dificuldade semântica relacionada com o realismo parece ser aqui insuperá-vel, em grande medida porque somos todos – e de forma idêntica – especialistas em “realidade”; e, portanto, sentimo-nos autorizados a usar a terminologia do modo que nos apraz. Como resultado, o debate atual, ou melhor, a ausência de debate, sobre o realismo é, em essência, um tipo de luta de boxe com um oponente imaginário, onde os golpes nunca acertam porque o ringue é amplo demais: com efeito, não há cordas. A esmagadora vitória de facto dos antirrealistas na atual are-na crítica depende de dois pressupostos básicos: o de que, como houve uma escola literária francesa em meados do século XIX que usava o termo “réalisme”, e como o rótulo se ampliou a ponto de abarcar todo um percurso ficcional desde Balzac e Stendhal até Zola e o bom Dean Howells, o realismo, em todos os seus aspectos, deve por conseguinte ser algo “não moderno” e, portanto, liquidado. Quando o crítico antirrealista vai além desse uso implicitamente histórico do termo, o mo-delo analítico do realismo permanece sendo o da ingênua reprodução fotográfica da realidade. Albert Guerard, por exemplo, em seu excelente livro The Triumph of the Novel (1977), caracteriza Dickens, Dostoiévsky e Faulkner como “não realis-tas”, porque evidentemente não fingiam ser espelhos ou câmaras fotográficas do cotidiano. Entretanto, independentemente do que Stendhal ou, com efeito, Hamlet e outros possam ocasionalmente ter dito, nenhum escritor jamais pensou seria-mente em ser somente um espelho; mas o pressuposto de que o realismo somente pode significar a imitação fotográfica do mundo exterior fornece aos críticos um alvo fácil demais para que eles deixem passar. Em todo caso, meu conceito de rea-lismo formal ou de apresentação não pretendeu implicar nenhuma restrição de uso; sua maneira específica, detalhada, de representar o mundo interior ou exte-rior pode ser aplicada com a idêntica facilidade ao melodrama, ao divertimento, à involução ou ao que Guerard chama de “distorção iluminadora”. As possibilida-des técnicas do realismo de apresentação são, em si, bastante neutras; podem servir a vários propósitos: de fato, nos três romancistas de que trata Guerard per-cebem-se com clareza muitas técnicas de ficção de cuja pré-história e base analítica eu me ocupei em A ascensão do romance. Todos os três, para dar um exemplo ób-vio, conjugam uma preocupação quase obsessiva com os objetos e aspectos físicos do ambiente a um cuidado idêntico em mostrar que a vida interior do indivíduo é em ampla medida separada e autônoma – um efeito atingido de modo diverso por

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aquilo que eu disse sobre Robinson Crusoé e Pamela, mas que dificilmente poderia ser alcançado sem que a ilusão da página impressa fizesse que o mundo interior e exterior parecessem igualmente “reais”.

Realismo de avaliação

Em A ascensão do romance procurei estabelecer outra categoria de naipe bem di ferente, o realismo de avaliação, que deveria levar em conta todas as diversas maneiras pelas quais o romance, como todos os gêneros literários, contém elemen-tos estruturantes diversos daqueles de propósito representacional. Autores que posteriormente trataram do realismo usaram termos semelhantes. Ernst Fischer fala de “realismo de atitude” (Realismus der Haltung), Damian Grant refere-se ao realismo “consciente” ou “consciencioso”, e Peter Stern distingue realismo “descri-tivo” de realismo “apreciativo”.10 Todas as três distinções levam em consideração o fato de que as predisposições intelectuais, emocionais e estéticas do autor estão inevitavelmente presentes, em vários níveis de consciência, em toda prosa de fic-ção, assim como em outros gêneros literários; e essas predisposições podem variar de simples preferências relativas à hierarquia de atenção do escritor (Ann Radcliffe usa lariços em vez de magnólias, digamos) a conjuntos muito mais amplos de prin-cípios e valores organizadores. Assim, a admiração de Lukács pelos realistas – de Scott e Balzac a Tolstoi – e sua rejeição aos naturalistas baseiam-se em seus pró-prios valores filosóficos, políticos e estéticos, que o fizeram rejeitar qualquer ati-tude mecânica, conformista ou passiva com relação ao mundo material e social.

O conceito de realismo de avaliação pretendeu, em níveis mais altos de abs-tração, incluir não apenas distinções como essas, mas outras, desde a insistência fenomenológica sobre a atividade estruturante da consciência (a “consciência es-truturante” de Jean Starobinski) até as questões supremas sobre o conhecimento e a verdade de uma obra literária.

Sinto-me, assim, devidamente envergonhado por insultar a sofisticação dos senhores com o uso de termos tão deteriorados como conhecimento e verdade; mas eles claramente fazem parte de minha manifesta preocupação em A ascensão do romance; e eu gostaria de terminar apreciando o que julgo ser um problema muito mais sério do que as atuais objeções ao realismo na ficção: a questão sobre como e por quê os atuais rumos dominantes na crítica literária tendem a negar ou negligenciar o verdadeiro status da literatura e a considerar que o realismo de avaliação crítica só interessa aos pedagogos de pés chatos.

Filosofia, realismo e crítica literária: realismo e estruturalismo

Creio que não é difícil entender por que o termo “realismo” não entusiasma os círculos filosóficos. Salvo os diversos usos históricos especializados de que

10 Fischer, op. cit., p.116-17; Grant, cap. 2 e 3; Stern, cap. 8.

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não precisamos nos ocupar aqui, ele denota, muito simplesmente, a aceitação de três noções gerais: o mundo e as pessoas ao nosso redor são reais, a linguagem permite-nos comunicar uns com os outros sobre eles e a verdade sobre eles se verifica através do assentimento dos outros observadores. Em relação a nossos procedimentos práticos, até onde sabemos que estamos no mundo real, essas noções não despertam nenhuma dificuldade especial. Não imagino que o semió-tico mais arrojado não seja obrigado a concluir que precisa comer para viver: não acredito que ele vá ao banco trêmulo e apavorado, com receio de que o significa-do das palavras escritas em seu cheque seja posto à prova pelo caixa; nem mesmo que o número de dólares em questão algum dia tenha provocado paroxismos de hesitação hermenêutica. Também creio razoável supor que a filosofia, como ins-tituição social especializada, não poderia ter começado a existir caso tivesse me-ramente sustentado os pressupostos corriqueiros sobre a realidade do mundo exterior ou a possibilidade de conversar sensatamente sobre ela com os nossos amigos; o primeiro cheque emitido a um filósofo certamente deve ter sido pago a um sofista que provou que nossas necessidades materiais são irreais, que a lin-guagem que usamos de fato não tem nenhum significado ou, se tiver, esse é de-cididamente problemático.

Assim, todo o empreendimento da filosofia ocidental desde os pré-socráticos dependeu em grande parte da negação paradoxal daquilo que todos sabemos ser, em um modo simples, verdadeiro: e essa visão essencialmente antirrealista das coisas ganhou sua decisiva formulação estética na era moderna com a Crítica do juízo (1790), de Kant, onde ele estabeleceu a oposição entre realismo e idealismo, que hoje vigora no pensamento crítico.

No fim do século XIX, quando o simbolismo e o impressionismo sucederam o realismo e o naturalismo, a posição antirrealista também passou a dominar a lite-ratura. A perspectiva crítica geral mudou em conformidade, por fim alcançando a academia em uma época em que a filosofia estava sendo substituída pela literatura como a rainha das ciências. Agora, por uma familiar inversão dialética, o que pas-sa por filosofia em ampla medida dominou a área dos estudos literários. Nas últi-mas décadas, esse processo foi materialmente amparado pelo prestígio, autocon-fiança e recompensas financeiras muito maiores das ciências naturais e, até certo ponto, das ciências sociais. Essa rivalidade levou a uma enorme compulsão para encontrar um método autônomo e semicientífico que sirva ao estudo da literatu-ra; e hoje em geral se pressupõe que algum tipo de técnica semifilosófica é pré--requisito indispensável para abordar ou discutir qualquer obra literária.

A forma mais extrema e influente dessa técnica analítica é, por certo, o es-truturalismo. Ele se ocupa das verdades eternas em um nível muito mais pro-fundo do que o das particularidades das obras literárias individuais, e rejeita como uma relíquia desacreditada (ou, de qualquer modo, bastante enfadonha) do passado a noção de que as funções referenciais da linguagem e, portanto, o status representacional da literatura ainda mereçam a atenção da mente sofisti-cada. Como disse Roland Barthes, no O grau zero da escritura (1953), com cati-vante determinação:

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Le réalisme, ici, ce ne peut donc être la copie des choses, mais la connaissance du langage; l’œu-vre la plus « réaliste » ne sera pas celle qui « peint » la réalité, mais qui, se servant du monde comme contenu (ce contenu lui-même est d’ailleurs étranger à sa structure, c’est-à-dire à son être), explo-rera le plus profondément possible la réalité irréelle du langage.11

Barthes está tratando da mudança da ficção tradicional para a engenharia ver-bal, quase filosófica, do nouveau roman; mas ele de fato parte do princípio usual de que o realismo deve ser identificado com a mera cópia das coisas. Ele assim me fornece uma desculpa para aquela breve excursão a Paris que eu prometi aos se-nhores: uma explicação sócio-histórica que algum historiador impaciente poderia ter escrito se tivesse começado a reunir anotações para um livro sobre a “ascensão do estruturalismo”.

Após a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais ocorreu um grande e contínuo êxodo de intelectuais dos países derrotados – Rússia, Hungria, Romênia, Bulgária, Áustria, Checoslováquia e Alemanha. Esses intelectuais levaram consigo hábitos de pensamento que se baseavam em sua experiência em instituições acadêmicas, que lhe havia conferido considerável prestígio social, mas nenhuma importância na vida política e nacional como um todo. As circunstâncias do exílio consolidaram a necessidade dos mesmos hábitos de pensamento. O primeiro pré-requisito era o de criar um sistema intelectual que lhes fornecesse um indiscutível status de sábio; ao mesmo tempo, esse sistema tinha de basear-se numa abordagem da verdade que desdenhava ou transcendia todas as diferenças nacionais, históricas e psicológi c as – e não atentava para o destino que recaíra sobre seus próprios países ou para as várias idiossincrasias e hostilidades que encontravam em seus países de adoção.

Depois de 1945, Paris lhes oferecia de longe o ambiente institucional e inte-lectual mais favorável de todos; um ambiente favorável em certa medida para os pensadores franceses também. A humilhação de Vichy em 1940 fez que a reafir-mação da grandeza nacional se tornasse imperativa; ao mesmo tempo, o status bastante privilegiado da alta burguesia francesa sobrevivera, quase intacto. Com efeito, no que diz respeito às elites acadêmicas, esse status logo se ampliou. Para dar um exemplo, a urgência da reconstrução levou o governo a criar uma forte política nacional de pesquisa (Centre Nationale de Recherche Scientifique); al-guns humanistas, aliás, como Todorov, se beneficiaram disso. Ao mesmo tempo, a rígida política centralizadora da tradição francesa manteve-se irredutível; assim, um grupo relativamente pequeno de gente que se destacava nos competitivos exa-mes das Grandes Écoles ocupou os principais postos. Até mesmo o efeito da nova ênfase nos negócios e na tecnologia não foi inteiramente desfavorável porque, embora tivesse liquidado a antiga aliança entre a École Normale e o poder político, o sistema permitiu que seus beneficiários combinassem cargos no governo com

11 Citado por Stern, p. 165. Em sua palestra Ian Watt traduziu essa passagem da seguinte forma: “O realismo não pode ser a cópia das coisas, mas o conhecimento da linguagem; a obra mais ‘realista’ não será a que ‘pinta’ a realidade, mas que, usando o mundo como conteúdo (um conteúdo, aliás, estranho à estrutura da obra, ou seja, à sua essência), conduz a exploração mais profunda possível sobre a realidade irreal da linguagem”. (N. do E.)

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impecáveis credenciais de esquerda; foi o caso de Althusser no ministério da Edu-cação, por exemplo.

Os principais estruturalistas operam no alto da hierarquia acadêmica parisien-se – Barthes e Foucault no Collège de France, Todorov e Genette na École des Études Pratiques. Estão quase inteiramente livres de quaisquer amarras ou respon-sabilidades educativas impositivas. Não têm de dar aulas – ou quase nenhuma –, uma dúzia de palestras sobre tópicos escolhidos por ano é a norma; não têm obri-gação de preparar os alunos para os exames ou de ater-se a um programa – isso fica a cargo da própria universidade, quando fica; para as palestras não se pres-supõe que os alunos tenham lido algum dos textos em discussão – na realidade, é bastante difícil descobrir de antemão quais serão esses textos. A essência do siste-ma é promover com brilhantismo a verbalização idiossincrática, livre de qualquer amarra controladora que não seja expressão imediata do ego cartesiano enquanto pensa: é tudo cogito, nenhum cogitamus. As únicas verdadeiras restrições externas são as que partilham com a indústria da alta costura parisiense. Aguardam-se no-vos projetos estruturais todos os invernos com a mesma regularidade com que a altura das saias sobe ou desce nos salões da moda ou com que se produzem novos modelos de automóveis em Detroit. Isso explica os livros anuais que passamos a esperar dos principais autores estruturalistas, livros que estão fadados a expressar opiniões bem diferentes dos últimos publicados, porque a obsolescência passou a fazer parte do jogo, e você só consegue participar dos programas noturnos de en-trevista da televisão nacional francesa se tiver produzido algo novo.

Crítica filosófica e literatura

Minha supersimplificação satírica não pretende, é claro, ser toda a verdade, nem mesmo acerca de minhas próprias opiniões; eu aprendi com alguns estrutu-ralistas, mantenho relações amistosas com alguns deles e até mesmo fui traduzido para um número da Poétique. Mas estou convencido de que o estruturalismo exa-cerba o que considero uma visão equivocada da natureza da crítica literária, e es-tou certo de que isso tem efeitos desastrosos no que diz respeito ao ensino da lite-ratura. O erro mais evidente está no pressuposto monstruoso de que a crítica literária, ou a filosofia da obra literária é inerentemente superior à própria literatu-ra, ou, se não for o caso, é ao menos um pré-requisito indispensável para compre-endê-la. A noção básica do papel superior do crítico é, suponho, em essência uma tentativa de resguardar numa nova roupagem as antigas reivindicações da filoso-fia. Mas não precisamos de Blake, de Kant ou de Matthew Arnold para nos dizer que aquilo que a literatura oferece de mais característico é a materialidade do caso específico imaginado, de modo que há uma diferença essencial entre discur so li-terário e discurso filosófico. Quanto mais o crítico se aproximar da generalidade das declarações filosóficas, mais ele inevitavelmente se distancia da literatura que está analisando. Parece-me igualmente equivocada a ideia de que pre cisamos de uma ontologia teórica da obra literária, ou da linguagem, para entendermos a literatura. Ela supõe que a literatura, como as formas platônicas, não é visível ao olho nu, e que precisamos de um equipamento especial para observá-la. Mas,

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ao contrário dos mistérios da metafísica, ou mesmo da fé na ciência, a obra literária está realmente ali, e só exige nossa própria experiência de vida e de linguagem para que possamos decifrar o seu sentido. Pois, para ler a literatura, como afirma Auer-bach, não precisamos de nada mais do que “confiança empírica em nossa faculda-de espontânea de entender os outros com base em nossa própria experiência”.12

Na prática, a crítica filosófica impede a aproximação com a literatura de pelo menos três maneiras. Antes de mais nada, se o leitor comum convencer-se de que necessita de um equipamento analítico especial, poderá descobrir que é incapaz de dominá-lo, ou, se for, que a técnica não o ajuda, com efeito, a entender Rei Lear ou Alice no país das maravilhas. Em seguida, se o leitor aceitar a reivindicação do crítico por um papel transcendental, poderá ser humilhado ao descobrir que suas próprias explorações são muito menos excitantes: um vidente é, por definição, alguém capaz de ver o que ninguém mais consegue; o crítico-vidente faz o mero mortal sublunar sentir-se cego diante da literatura; e assim ele desiste de maiores esforços em seu desespero de algum dia conseguir capturar sequer um vislumbre do lado obscuro da Lua, como os profetas parecem fazer o tempo todo. Eles per-tencem, basicamente, ao maior lobby dos Estados Unidos – o lobby da ansiedade – que vai dos fabricantes de armamentos bélicos e a Madison Avenue até Ralph Nader e alguns ambientalistas.

Por fim, a crítica filosófica tende a ver a literatura em termos exclusivamente cognitivos. Por causa disso, somos obrigados a esquecer que a condição da grande verdade da literatura em relação à vida é não ser exclusivamente cognitiva; que ela cobre um vasto raio de ações e sentimentos humanos, de coisas lembradas e imagi-nadas; e que tratá-la como algo cognitivo tanto no que diz respeito ao assunto quan-to ao significado implica não apenas representá-la de modo anômalo, como ainda impedi-la de cumprir a faculdade literária de ampliar afinidades imaginativas.

Essa ampliação é certamente um dos principais motivos para a literatura ocu-par o lugar que ocupa no currículo escolar: como diz Coleridge: “a imaginação é a característica distintiva do homem como ser avançado”.13

A oposição entre teoria e a experiência imaginativa direta é particularmente óbvia no caso do estruturalismo. Os enfants terribles de Paris, como os de outros lugares, são em certo aspecto inumanos: não são nem infantes nem adultos; e seu brilhante comando do aparato verbal de um adulto ao mesmo tempo mascara a ausência de outros tipos de entendimento e obsta que esse apareça na sua escrita. Suas falas versam sobre profundas estruturas universais; mas essas estruturas são produzidas por exclusões extravagantes que desafiam a experiência humana. Em todo caso é decerto pouco produtivo, em uma época em que a leitura está em baixa e se faz com menor naturalidade, alardear a mensagem “Cuidado com os

12 Erich Auerbach, Literary Language and Its Public in Late Latin Antiquity and in the Middle Ages, London, Routledge and Kegan Paul, 1965, p. 7.

13 Veja Lecture 11, Lectures 1808-1819 On Literature, ed. R.A. Foakes, Princeton, Princeton Uni-versity Press; London, Routledge and Kegan Paul, 1987, 2v. v. 2, p. 193, em The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge. (N. do E.)

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funestos binários, os dragões da profundeza”, em vez de “Entrem, a água está óti-ma”; e não ajuda mapear o mundo inteiro da literatura com marcadores que aca-bam por anunciar o advento dos mesmos monstros binários, especialmente quando os nomes deles mudam de ano a ano.

Uma objeção final. O efeito educacional atualmente promovido pela corrente da crítica filosófica em última instância prejudica mais do que ajuda a promoção de modos filosóficos de pensamento. Pois, bem à parte da assombrosa inadequa-ção lógica de escritores como Lacan, as obras dos estruturalistas em geral são lidas de segunda ou terceira mão; uma grande massa de livros escolares oferece kits de faça-você-mesmo que prometem ao usuário transformar-se magicamente naquilo que ele mais deseja ser – um filósofo que não faz filosofia.

Esse macabro fenômeno acadêmico dos dias de hoje foi bem descrito pelo contista Leonard Michaels, numa versão burlesca de Swift:

Ao fazer o inventário, o gerente de uma nova livraria de Berkeley descobriu que foram roubados milhares de dólares em livros. A maioria era de filosofia. Ele decidiu que as pessoas que estudam filosofia sempre conseguem imaginar razões que lhes permitem roubar... Mas mesmo se o gerente estiver correto em seu raciocínio de que os filósofos conseguem racionali-zar suas idiossincrasias criminais, que dizer dos outros livros furtados? Estes eram sobretudo de crítica literária e, como o gerente observa com grande amargura, a crítica literária é a filosofia da literatura.

Por acaso, o livro de crítica literária roubado com maior frequência foi Poética Estruturalista, de Jonathan Culler (treze dólares). Essa obra examina todas as novas teorias estruturalistas e semióticas vindas principalmente da França. As teorias estão deliciosamente na moda, malgrado apenas estabeleçam uma relação sistemática entre textos literários e as diferentes leituras dos críticos. Nenhuma dessas teorias, de acordo com Culler, é muito lógica.

Você poderia imaginar que não haveria muita gente querendo ler acerca de teorias ilógicas, mas Culler escreve de forma bastante inteligente e as teorias são interessantes. Assim, teorias interessantes explicadas por um crítico inteligente fizeram com que o livro se tornasse irresistí-vel para os ladrões. O detalhe realmente significativo, porém, é que o livro de Culler é o que se pode chamar de filosofia da filosofia da literatura. O livro de Culler é, portanto, o livro mais filosófico da loja! Ele aguça os instintos mais furtivos de aquisição.

Só Deus sabe quantas cópias de Poética Estruturalista foram roubados. (O gerente dessa nova loja perdeu dezessete exemplares a cada vinte, e agora mantém o livro de Culler debaixo do balcão.) Mas quantas cópias foram roubadas nas cidades universitárias do mundo todo? Quantos filósofos acomodam-se todas as noites com um Culler quentinho? Quantos não se ex-tasiam página após página através de deliciosas análises de teorias críticas que não falam de nada, salvo outras teorias críticas! (Seria demais dizer que teorias que tratam de teorias são algo semelhante a um inchaço da cabeça?)

Há uma história sobre um ladrão de livros em Cambridge que foi pego roubando um Culler. A polícia conseguiu um mandado de busca, vasculhou o apartamento e encontrou sessenta e três Cullers em seu baú de enxoval. Todos haviam sido apaixonadamente sublinhados...14

14 Leonard Michaels, “Book Thieves and Philosophy”, San Francisco Review of Books, May 1976.

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202 Literatura e Sociedade

Conclusão: A ascensão do romance como crítica realista

Os senhores sem dúvida devem estar se perguntando não apenas quando vou encerrar a palestra, mas também se vou encerrá-la usando A ascensão do romance como exemplo de como a filosofia deveria servir ao propósito dos estudos literá-rios. A resposta é, receio eu, “sim”; mas somente no espírito de uma homilia de despedida cuja principal intenção é expressar minhas velhas ideias sobre o papel da crítica literária.

O relato que fiz sobre os verdes anos de confraternização com o pensamento alemão me livrará, espero, de qualquer rejeição carrancuda da filosofia enquanto tal. Presumo, é claro, que, como professores e acadêmicos, tenhamos a obrigação de procurar entender o máximo que pudermos acerca do mundo em que vivemos, mesmo quando isso às vezes se revele uma tentativa de entender mal-entendidos. Mas não creio que precisemos listar todos os nossos pressupostos em nossos tex-tos e não vejo por que ensaiar uma defesa filosófica do velho juízo ingênuo de que todos sabemos muito bem o que é real e o que as palavras significam e como elas nos permitem falar de assuntos de interesse comum. É nesse sentido que vejo A ascensão do romance como uma obra de crítica realista; e isso, suponho, está conec-tado com quatro aspectos do livro que valem ser comentados: sua atitude diante da filosofia, diante da linguagem, diante do leitor e diante do tema.

Filosoficamente assume-se que o realismo em geral considera o raciocínio dedutivo um guia menos confiável para a verdade do que a experiência comum. Isso sem dúvida mostra por que evito a maioria das questões metodológicas. Su-ponho que a filosofia pode ajudar o crítico de três maneiras, pelo menos: ela lhe dá uma ideia de como diferentes tipos de problemas podem ser abordados; for-nece-lhe um senso de consistência conceitual e do apropriado grau de lógica em uma exposição; e, finalmente, por lhe fornecer uma noção da inter-relação entre diferentes corpora de conhecimento, o esforço, na expressão de Robert Louis Stevenson, de “circunavegar a metafísica” pode influenciar todo nosso modo de enxergar um determinado assunto. Enquanto examinava alguns ensaios antigos, interessei-me em saber o que Irving Howe escreveu sobre meu método em A as-censão do romance: “As várias escolas críticas das últimas décadas... vieram a unir-se... como elementos que foram assimilados pela sensibilidade do crítico... por exemplo... os insights emprestados a Marx tornaram-se coisa própria dele, inseparáveis de sua percepção como um todo”.15

Sempre somos incomensuravelmente gratos aos críticos que nos ajudam a entender o que estávamos tentando fazer. A noção de Howe acerca da gestalt da percepção expressa perfeitamente o que eu senti, de modo intuitivo, naquela épo-ca, e hoje vejo com maior clareza, com relação ao valor básico da filosofia no en-riquecimento da crítica literária; e esse valor, estou convencido, depende direta-mente da capacidade das ideias envolvidas na promoção de nosso entendimento da experiência literária, estética e histórica.

15 Irving Howe, “Criticism at Its Best”, Partisan Review, v. 25, p. 145, 1958. (N. do E.)

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IAN WATT Canhestro e deteriorado: as realidades do realismo 203

A questão do apropriado decoro linguístico na crítica literária está intimamen-te associada a isso. Eu não diria que a terminologia filosófica tem nenhum status superior. É claro que todas as investigações mais ou menos especializadas têm seu próprio jargão; os encanadores fazem uma bela distinção entre junta e encadea-mento; mas o vocabulário da crítica deve estar o mais próximo possível do senso comum em sua tentativa de produzir afirmações claras e acessíveis. Também deve evitar a abstração desnecessária como gentileza ao leitor e ao tema tratado. Lem-bro-me de uma conversa com Theodor Adorno quando, depois de eu ter contado o que havia feito aquela manhã (retirado alguns livros da biblioteca, ido à lavan-deria etc.) e perguntado sobre seus afazeres, senti um ligeiro arrepio quando ele respondeu: “Tenho meditado sobre problemas eróticos e musicológicos”.

O efeito dos vocábulos longos funciona um pouco como a impressão atribuída por Fowler à exata pronúncia das palavras francesas em inglês: “quanto maior o sucesso como tour de force, maior o fracasso para o andamento da conversa; pois seu interlocutor, ciente do fato de que ele próprio não teria conseguido atingir essa perfeição, se distrai pensando se deve ficar admirado ou sentir-se humilhado”.16

Qualquer crítica literária cujo efeito é a humilhação do leitor (já vi casos em que esse parece ter sido o único intuito) a mim parece frustrar seu propósito pri-mário, que é, penso, o de ser parte de uma conversa entre amantes da literatura. Nesse sentido, o cuidado do crítico por uma orientação comum com seu leitor no campo literário deve produzir um estilo de discurso fraterno; ou seja, um discurso cuja retórica implica uma posse equânime e comum de interesses e sentimentos compartilhados. Eu prezo algumas cartas e encontros casuais, aliás, que indica-ram que minhas intenções a esse respeito não passaram despercebidas a certos leitores de A ascensão do romance.

Wittgenstein disse certa feita que não jantava nas mesas dos professores por-que “as conversas não falavam nem ao coração nem ao cérebro”. É delicado saber como o coração pode ser representado no texto crítico; mas certamente deve ha-ver algum sinal de que a experiência do autor com a literatura perpassa as palavras que ele emprega e a maneira como as emprega. E a atitude “realista” para com a literatura também deve refletir, creio, o fato de que muitas gerações de seres hu-manos concederam à literatura, e às artes em geral, um lugar especial em seu co-ração, um lugar que os fez olhar com reverência, admiração ou um senso de dever pessoal na direção daqueles que tanto contribuíram para suas vidas e seu entendi-mento. Não é por acaso, suponho que posso dizer, que A ascensão do romance termine, se não estou enganado, com as palavras: “Defoe, Richardson e Fielding…[expressaram] sua própria visão da vida com uma plenitude e uma convicção muito rara e pela qual lhe somos gratos”.

Como sou grato aos senhores por sua presença e sua paciência.

16 Modern English Usage, v. French words. (N. do E.)

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204 Literatura e Sociedade

31/7/2009 O boom do documentário

Nas auroras do realismo literário inglês, Samuel Richardson escreveu um ro-mance epistolar: PAMELA (1740). Essa forma permitiria chegar mais perto do vivido, permitiria reproduzir a realidade, permitiria que o personagem-missivista escrevesse suas cartas ainda no calor das situações e dos sentimentos vivencia-dos. Richardson escrevia depois da publicação de ROBINSON CRUSOE (1719) em que Defoe tinha adotado a forma autobiográfica para ficar o mais perto pos-sível da realidade vivida pelo personagem. Mas, evidentemente, a forma autobio-gráfica pressupunha um personagem dotado de memória fenomenal, no fundo pouco verossímil.

A forma epistolar superaria esse obstáculo, possibilitando maior fidelidade à vivência do personagem. Mas eis que a forma epistolar também se revela uma convenção literária, e fica patente que se confunde verossimilhança e reprodução da realidade.

O equilíbrio entre um projeto que se consolida no sentido de uma fidelidade cada vez maior à realidade e a consciência cada vez mais aguda dos artifícios e convenções que o sustentam se rompem. E tudo desmorona, o que era “a arte do real” vira uma teia de artifícios.

Empresto essas reflexões ao segundo volume da obra de Paul Ricoeur TEMPS ET RÉCIT (Tempo e narrativa). Ricoeur aponta aqui o que eu chamaria o CICLO INFERNAL, que assola a narrativa literária e depois cinematográfica faz uns três séculos: assola a narrativa desde que passamos a usar dramaturgia e narrativa para retratar “a vida como ela é”: uma “bobagem”, no dizer acertado de Jorge Furtado no seu livro sobre Shakespeare (é bom que se diga: Aristóteles e sua POÉ TICA nada têm a ver com essa bobagem). No ciclo infernal um projeto se elabora para se aproximar mais e mais da “vida real”; pouco a pouco ele deixa transparecer os artifícios, convenções, procedimentos etc. Que o sustentam. E aí

* Estes textos foram originalmente veiculados no Blog do Jean-Claude Bernardet, que o autor mantém no site da UOL e cujo endereço é http://jcbernardet.blog.uol.com.br/. Embora venham re-produzidos na íntegra, os textos invertem aqui a lógica seqüencial dos blogs, da entrada mais recen-te para a mais antiga. A idéia foi recuperar a marcha do pensamento, como as anotações sucessivas de um diário. (N. do E.)

ANOTAÇÕES DE UM BLOG*

JEAN-CLAUDE BERNARDET

Universidade de São Paulo

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JEAN-CLAUDE BERNARDET Anotações de um blog 205

explode um ULYSSES (James Joyce). E uma nova onda de naturalismo ou rea-lismo vai se formar, literária, fotográfica, cinematográfica, televisiva. E depois desmoronar.

E, como Prometeu, um novo projeto vai se erguer que, desta vez sim, vai re-produzir a realidade.

O “boom” do filme documentário, que já dura umas duas décadas, é uma nova onda de naturalismo. Citemos filmes como o WILSON SIMONAL ou LOKI no meio de uma extensa filmografia. Seus artifícios e convenções já estão transpare-cendo, a entrevista por exemplo. E o ULYSSES do filme documentário já explodiu. Seu título é: JOGO DE CENA, que não deixou muitos sobreviventes.

Penso que é necessário perceber as dimensões de JOGO DE CENA. Não é um filme importante e transformador no quadro do cinema documentário brasileiro, é um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no cinema documentário em ge-ral, ou, mais precisamente, no documentário baseado na fala. JOGO DE CENA é uma explosão transformadora da magnitude que tiveram no passado filmes de Eisenstein ou Godard. Talvez se possa dizer que JOGO DE CENA anuncia o encer-ramento de um ciclo de cinema que Jean Rouch iniciava há meio século com EU, UM NEGRO.

Pode-se superar JOGO DE CENA? Sim, mas como?

3/8/2009Eduardo Coutinho & Sophie Calle

Pode-se superar JOGO DE CENA? Se ficamos no quadro dessa modalidade de cinema documentário, não se veem muitas luzes no fim do túnel.

MOSCOU – o filme da palavra encenada ou da encenação da palavra – que Eduardo Coutinho realizou após JOGO DE CENA, mais atesta, me parece, um impasse do que uma superação. Talvez não haja possibilidade atual, ficando no cinema da fala, de ultrapassar o filme de Coutinho. A impressão (que eu tenho) de beco sem saída é intensa (da mesma forma que ULYSSES colocou o realismo num beco sem saída). A não ser que a fala se torne debochada, grotesca, irônica, e neste sentido iríamos na direção de JESUS NO MUNDO MARAVILHA que me parece ser atualmente o único filme brasileiro que consegue dialogar com JOGO DE CENA (imagino que Coutinho, caso o tenha visto, deve detestar o filme de Newton Cannito).

JOGO DE CENA pertence ao mesmo universo estético e cultural que a mag-nífica instalação de Sophie Calle no Sesc Pompéia: CUIDE DE VOCÊ. Há inclusive um lugar e um momento em que vemos uma multiplicidade de fotografias de mulheres lendo a carta que está no centro da exposição, e ouvimos vozes sem identificar a que corpos elas pertencem. Neste conjunto há um espaço maior onde passam vídeos; um deles mostra uma mulher interpretando a carta ao violão; ela está sentada sozinha numa sala de teatro com poltronas vermelhas vazias. Essa articulação: muitas mulheres, um discurso referente a uma história de vida, cor-pos e vozes desvinculadas dos corpos, uma sala de teatro: é a síntese do dispositi-vo de JOGO DE CENA.

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206 Literatura e Sociedade

Mas CUIDE DE VOCÊ não me deu a impressão de impasse provocada pelo filme: e depois, o que vai ser?

Ao contrário, a exposição de Sophie Calle deixa uma sensação de abertura, de respiração, dá para retomar o fôlego.

Há um contraste sensorial entre o filme e a exposição que já pode fornecer um primeiro elemento de compreensão: o filme é claustrofóbico (no dispositivo mini-malista construído por Coutinho, todas as mulheres, por mais diversas que sejam, convergem para o mesmo espaço e ficam na mesma disposição espacial em relação ao cineasta e à sala), enquanto as paredes brancas e o necessário deslocamento do observador na sala de exposição deixam circular o ar.

Ocorre que o filme adota uma dinâmica centrípeta, enquanto a exposição é centrífuga. Diferença essencial. A disposição dos textos e fotos na parte alta de al-gumas paredes, e portanto de acesso mais difícil para a vista, como que expande os limites do espaço, sugere um espaço em expansão.

E acredito que este seja um dos aspectos fundamentais da exposição. O ponto de partida é uma pequena célula – a carta de ruptura – que reverbera numa mul-tiplicidade de mulheres que a leem e a interpretam. Estas mulheres são filmadas, imagem e som, em diversos ambientes, o que provoca uma multiplicação dos es-paços. O espaço onde está o observador se abre, ao limite, indefinidamente.

Além das mulheres que interpretam a carta (interpretar em dois sentidos: a simples leitura já é uma interpretação, além dos comentários que podem ser acres-centados), outras, juristas, tradutoras, linguistas etc., teorizam (digamos assim) sobre a carta, o que multiplica as abordagens e as facetas. Mesmo que não haja nenhuma paleontóloga, esta é potencialmente possível nesse universo em expan-são. Mesmo que a exposição não apresente uma tradução da carta para o grego, ela está em potencial no universo em expansão.

Contribui à construção dessa dinâmica a multiplicidade das mídias e meios de expressão que interpretam e refletem sobre a carta: a fotografia fixa, a imagem animada, o texto escrito, a sobreposição de texto e grafismo, a música, o canto, a dança, a performance, o origami etc.

A partir de uma pequena célula, de uma situação de vida documentada por uma carta de ruptura, abre-se um universo em expansão: é uma dinâmica da liberdade.

6/8/2009Moscou

Concordo plenamente com o comentário de Eduardo Escorel (Piauí, 35, 3/8/2009) sobre o último filme de Eduardo Coutinho: MOSCOU é uma catástrofe e um impasse.

A catástrofe, acredito que Escorel a tenha analisado com fina sensibilidade. Quanto ao impasse, penso que ele deve ser colocado em outra perspectiva que

não apenas a carreira de Coutinho ou sua filmografia: ele realizou filmes notáveis, este último infelizmente não é tão bom. Penso que o impasse não é só do Couti-nho, mas é coletivo.

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JEAN-CLAUDE BERNARDET Anotações de um blog 207

JOGO DE CENA põe em dúvida toda a filmografia de Coutinho desde SANTO FORTE (uma coragem excepcional). JOGO DE CENA põe em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o corpo falante e a fala da sub-jetividade (quem emite esta fala? essa fala fala do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade.

Após a projeção de JOGO DE CENA falei e estranhei (isto é verdade): quem fala? eu? eu quem? O filme desestabiliza a noção de sujeito. Ou eu estou a ver fantasminhas, ou JOGO DE CENA é de uma trágica radicalidade. O problema não é de Coutinho, mas de todos aqueles que se sentem atingidos por essa trági-ca radicalidade.

Filmes de que participei, gravados antes de JOGO DE CENA, me parecem hoje pueris. Estou atualmente trabalhando num documentário que envolve dis-curso da subjetividade e relatos de histórias de vida: simplesmente eu não consigo entrar neste filme. JOGO DE CENA foi longe demais.

A frase de Escorel – “Coutinho é o grande ausente de MOSCOU” – é de uma grande beleza e de uma extraordinária precisão. Coutinho não poderia “ser” pre-sente porque o sujeito está desestabilizado. Quando voltaremos a ser presentes?

Fantasiei que, para quebrar o impasse em que JOGO DE CENA nos meteu, Coutinho poderia/deveria sentar diante de uma câmera, em primeiro plano, per-manecer em SILÊNCIO, por tempo indeterminado.

13/8/2009Eduardo Coutinho & Sophie Calle – 2

Foi escrevendo sobre Sophie Calle (Coutinho & Sophie Calle, de 3.8.09) que pela primeira vez pensei em JOGO DE CENA como um filme centrípeto.

Aconteceu o seguinte: num momento do percurso na exposição vi uma conden-sação do dispositivo do filme de Coutinho, o que aproximou fortemente CUIDE DE VOCÊ de JOGO DE CENA. E logo a seguir, senti uma enorme diferença, quase uma oposição entre as duas obras.

Quando escrevi, me vieram os dois adjetivos centrípeto/centrífugo. De certa forma, usei o filme como interpretante da exposição e vice-versa.

Isto me permitiu abordar o filme sob um ângulo novo para mim. A identidade/oposição entre filme e exposição repercutiu na compreensão da trajetória da obra de Coutinho.

Em JOGO DE CENA, todas as mulheres convidadas convergem, através de uma estreita passagem (a escada), para o ponto onde encontrarão o cineasta, se sentarão e falarão. Isto é uma novidade nos dispositivos dos filmes de Coutinho.

Coutinho, até então, se deslocava, ia ao encontro das pessoas que entrevista-ria, fosse a favela de SANTO FORTE ou a multiplicidade dos apartamentos do EDIFÍCIO MASTER.

Se pensarmos em CABRA MARCADO PARA MORRER, percebemos que é es-sencialmente um filme de deslocamento. Coutinho volta à região onde começou a filmar o primeiro CABRA em 1964. Sai à procura das pessoas que participaram

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208 Literatura e Sociedade

do filme, encontra algumas. As informações colhidas lhe permitem chegar a Eli-sabeth Teixeira, e daí sai à procura dos filhos espalhados pelo Brasil. Do ponto de vista do espaço, o segundo CABRA é um filme sem centro. Coutinho não é um centro, é um articulador cujo constante movimento interliga fragmentos de uma história despedaçada.

Não tiro conclusão nem significação. Simplesmente constato que de CABRA MARCADO PARA MORRER a JOGO DE CENA, Coutinho passou de um disposi-tivo acêntrico (não no sentido de excêntrico, mas no de: desprovido de centro) baseado no deslocamento, para um dispositivo fortemente cêntrico.

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FICÇÃO

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210 Literatura e Sociedade

O = Ouvinte.L = Leitor.Tão parecidos fisicamente quanto possível.Luz sobre a mesa no centro do palco. O resto do palco no escuro.Mesa simples de pinho branco de mais ou menos 2,5 m x 1,2 m. Duas cadeiras simples de pinho branco, sem braços.O sentado, de frente, perto do canto do lado comprido da mesa, à direita do público. Cabeça baixa, apoiada na mão direita. Rosto escondido. Mão esquerda sobre a me-sa. Longo casaco preto. Longos cabelos brancos.L sentado à mesa, de perfil, no meio do lado curto, à direita do público. Cabeça baixa, apoiada na mão direita. Mão esquerda sobre a mesa. Livro sobre a mesa, à sua frente, aberto nas últimas páginas. Longo casaco preto. Longos cabelos brancos. Chapéu preto de abas largas no centro da mesa.Fade hot.Dez segundos.L vira a página.Pausa.

L: (Lendo.) Pouco resta a dizer. Numa última –(O bate com a mão na mesa.)Pouco resta a dizer.

(Pausa. Batida.)

Numa última tentativa de obter alívio, ele se mudou de onde tinham estado juntos por tanto tempo para um quarto na margem distante. Da única janela ele podia ver correnteza abaixo a ponta da Ilha dos Cisnes.

(Pausa.)

* © Samuel Beckett, 1982 (Samuel Beckett’s OHIO IMPROMPTU reproduced by kind permis-sion of the Estate of Samuel Beckett c/o Rosica Colin Limited, London).

Samuel Beckett, “Ohio Impromptu”, in the Complete Dramatic Works, London, Faber and Faber, 2006, p. 443-448. Tradução de Ana Paula Pacheco e Edu Teruki Otsuka.

IMPROVISO DE OHIO*

SAMUEL BECKETT

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SAMUEL BECKETT Improviso de Ohio 211

Alívio ele esperou que fluísse da estranheza. Quarto estranho. Cena estranha. Sair para onde nada nunca compartilhado. Voltar para onde nada nunca compar-tilhado. Disso uma vez quase esperou que alguma dose de alívio talvez fluísse.

(Pausa.)

Dia após dia ele podia ser visto palmilhando à ilhota. Hora após hora. Em seu longo casaco preto não importava o clima e o surrado chapéu do Quartéis Latim. Na ponta da ilha ele sempre parava para contemplar o refluxo da correnteza. Como seus dois braços confluíam e fluíam unindo-se em alegres redemoinhos. Então voltar e retraçar seus passos lentos.

(Pausa.)

Em seus sonhos –

(Batida.)

Então voltar e retraçar seus passos lentos.

(Pausa. Batida.)

Em seus sonhos ele tinha sido alertado contra essa mudança. Visto o rosto querido e escutado as palavras não ditas, Fique onde nós estivemos tanto tempo sozinhos juntos, minha sombra irá confortá-lo.

(Pausa.)

Não poderia ele –

(Batida.)

Visto o rosto querido e escutado as palavras não ditas, Fique onde nós estive-mos tanto tempo sozinhos juntos, minha sombra irá confortá-lo.

(Pausa. Batida.)

Não poderia ele voltar atrás agora? Reconhecer seu erro e voltar para onde uma vez estiveram tanto tempo sozinhos juntos. Sozinhos juntos tantas coisas compar-tilhadas. Não. O que ele tinha feito sozinho não poderia ser desfeito. Nada do que tinha feito sozinho jamais poderia ser desfeito. Por ele sozinho.

(Pausa.)

Neste extremo seu velho terror da noite tomou-o novamente. Depois de tão longo intervalo como se nunca tivesse sido. (Pausa. Olha mais de perto.) Sim, de-pois de tão longo intervalo como se nunca tivesse sido. Agora com força redobrada os terríveis sintomas descritos em detalhe na página quarenta, quarto parágrafo. (Começa a virar as páginas. Detido pela mão esquerda de O. Retoma a página aban-donada.) Noites em claro agora de novo a sua cota. Como quando seu coração era jovem. Sem dormir sem enfrentar o sono até –

(Vira a página.) – o amanhecer.

(Pausa.)

Pouco resta a dizer. Uma noite –

(Batida.)

Pouco resta a dizer.

(Pausa. Batida.)

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212 Literatura e Sociedade

Uma noite enquanto ele estava sentado à cabeça nas mãos tremendo da cabeça aos pés um homem apareceu e disse, Fui enviado por – e aqui pronunciou o nome querido – para confortá-lo. Então, tirando do bolso do seu longo casaco preto um livro velho, ele se sentou e leu até o amanhecer. Depois desapareceu sem dizer palavra.

(Pausa.)

Algum tempo depois ele apareceu novamente à mesma hora com o mesmo livro e desta vez sem preâmbulos sentou-se e o releu inteiro pela longa noite intei-ra. Depois desapareceu sem dizer palavra.

(Pausa.)

Então de tempos em tempos sem aviso ele aparecia para reler a triste história inteira até o fim da longa noite. Depois desaparecia sem dizer palavra.

(Pausa.)

Sem nunca trocar uma palavra, eles se tornaram um só.

(Pausa.)

Até que por fim chegou à noite em que fechado o livro perto do amanhecer ele não desapareceu mas continuou sentado sem dizer palavra.

(Pausa.)

Finalmente ele disse, Recebi uma ordem de – e aqui pronunciou o nome queri-do – dizendo que não devo vir novamente. Vi o rosto querido e ouvi as palavras não ditas, Não será preciso ir até ele novamente, mesmo que estivesse ao seu alcance.

(Pausa.)

Então a triste –

(Batida.)

Vi o rosto querido e ouvi as palavras não ditas, Não será preciso ir até ele no-vamente, mesmo que estivesse ao seu alcance.

(Pausa. Batida.)

Então a triste história pela última vez contada continuaram sentados como se fossem de pedra. Através da única janela o amanhecer não espalhava nenhuma luz. Da rua nenhum som de redespertar. Ou enterrados sabe-se lá em que pensamentos eles não prestaram atenção. À luz do dia. Ao som do redespertar. Sabe-se lá em que pensamentos. Pensamentos, não, não pensamentos. Profundezas da mente. Enter-rados sabe-se lá em que profundezas da mente. Do alheamento. Onde nenhuma luz pode chegar. Nenhum som. Então continuaram sentados como se fossem de pedra. A triste história contada uma última vez.

(Pausa.)

Nada resta a dizer. (Pausa.) L começa a fechar o livro. Batida. (Livro meio fechado.)Nada resta a dizer.(Pausa.) L fecha o livro.

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SAMUEL BECKETT Improviso de Ohio 213

Batida.Silêncio. Cinco segundos.Simultaneamente eles abaixam as mãos direitas sobre a mesa, levantam as cabe-

ças e se olham. Sem piscar. Sem expressão.Dez segundos.

(Fade out.)

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214 Literatura e Sociedade

A dificuldade reside na oração seguinte. Mas pode, pode ser boa, sem dúvi-da. Sem dúvida que pode trair suspeita a adversativa. Mas a alusão pode pôr o pingo nos is. Ilusão? Tem apenas um i. Mas pode. Pode ser. Fica até mais fácil, sem dúvida. Sem dúvida que tem pingos sem is. Mas são pingos... pingos sem is? E pingos com is — pingüins? Não trema, é piada. Mas pode. Pode ser boa. A dos pingüins pelo menos. Pelo menos. Mas pingüim pode ter pelo? Pode. Pingüim pode. Menos ovo. Ovo não. A adversativa pode chocar. E a descrição ser fatal.

AIRTON PASCHOA

A VIDA DOS PINGÜINS

A VIDA DOS PINGÜINS II

Não é que o frio não incomoda. Incomoda. Mas a gente se acostuma. Depois, tem as rodas... Não é pra isso que servem as rodas? Calorosas como são, confor-tam. Francamente, até demais. A ponto de, queimado, buscar abrigo no frio. Não que o frio não incomoda. Incomoda. Mas conforta. Quase tanto quanto incomoda. E conforta. Francamente.

A VIDA DOS PINGÜINS III

Na beirada para, ave, azul profundo. Abobada da abóbada, estufa o peito, abre as asas e — escorrega de barriga. Levanta, bate a roupa e sai andando que nem o Carlitos. Tem graça desgraça? Quando é um só, pode ter. Mas pingüim é um? Hum... Que nem no cheque? Pode ser — hum bilhão de pingüins reais! E pin-güim é real? Por que não? Que nem falcão? É, que nem falcão. É só estufar o peito, peregrino, abrir as asas e — pingüim tem asa?

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AIRTON PASCHOA A vida dos pingüins 215

A VIDA DOS PINGÜINS III I/II

Ter, ter, não tem, mas avoa também. Que nem falcão? Que nem pato. Pato? É, que nem pato, pato, sim, quando não quer espatifar o patife.

A VIDA DOS PINGÜINS IV

E se de repente cai um aqui e ali também não é o fim do mundo. Cá a fila — cáfila? Mas cáfila não é fila de camelo? A vida dos camelos? Camelo tem poesia? Tem corcova... E corcova tem poesia? Pode ter. Tem cor, tem cova... Cor de co -va? Cinza, preto, branco... A cor dos pingüins? Pode ser — corcova. Pingüim tem corcova? Pode, pode ter. Mas uma só. Só uma? Só. Senão não é pingüim. E tem que sair da fila.

A VIDA DOS PINGÜINS V

Impossível. Elevar as asas, sem tirar os pés do chão, até a altura do cocuruto e ainda por cima, como se dotadas de garra, agarrá-lo pelas raízes, como quem quer se erguer pelo próprio escalpo, só que sem a impulsão natural, e passar apenas a arranhá-lo, de lá pra cá, daqui pra lá, de cima pra baixo, de baixo pra cima, da esquerda pra direita, da direita pra esquerda, pra frente e pra trás, em círculos, em todos os sentidos, enfim. Impossível. Quase tanto quanto deixar de tentá-lo. Co-çar a cabeça exige uma revolução.

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216 Literatura e Sociedade

A VIDA DOS PINGÜINS VI

Abraçar o mundo? Oferecer-se ao sacrifício? Parar o trânsito? Pedir por socor-ro? O que significa abri-los? Não digo assim, que não consigo escrever, mas abrir os braços é, sim, confesso, nossa grande dificuldade, a maior aliás dentre as tantas que enfrentamos. E quando conseguimos finalmente operar o milagre, avulta tão prodigiosamente nosso embaraço que logo aborrecemos o impulso equívoco. Te-nho por vezes que pode não ser, Deus me perdoe, senão expressão de espreguiçar sem fim...

A VIDA DOS PINGÜINS VI I/II

Manter quiçá o equilíbrio? O desconjunto vive por um fio, quem não sabe? desde o primeiro bracejar. Mas depende de fato, meu receio, de abrir assim os braços?

A VIDA DOS PINGÜINS VII

Mas quando damos sorte, mercê do piso liso, e não aterrizamos de barriga, quando finalmente estatelamos de costas, receio que nubla a vista o susto, ou o instinto de conservação, sei lá, e voltamos voando a rastejar de pé. E no entanto existe, o azul existe, visto que o acusa o pálido reflexo no gelo. Um mortal pra trás, fico pensando, permitia quem sabe entrevê-lo de relance, mas e a coragem? Um torcicolo podia ajudar também, de esguelha que fosse, mas, postulado o pes-coço, quantos já não perderam a cabeça? Metê-la entre as pernas e do fundo dos fundilhos... Mantê-la no lugar, preciso, nem que seja a martelo.

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BIBLIOTECA

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218 Literatura e Sociedade

PUBLICAÇÕES DO DEPARTAMENTO

AGUIAR, Joaquim Alves de. Dois em um (notas sobre Tese e antítese e O discurso e a cidade). Literatura e Sociedade, n. 12, p. 152-163, 2009.

ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang. (Org.). Pensamento alemão no século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2009. v. 1. 309p.

ALMEIDA, Jorge de. O sobrinho e o doutor: cenas da dialética da formação. In: PUCCI, Bruno; ALMEIDA, Jorge de; LASTÓRIA, Luiz Calmon Nabuco. (Org.). Experiência for-mativa e emancipação. São Paulo: Nankin, 2009. v. 1, p. 187-202.

ALMEIDA, Jorge de; PUCCI, Bruno; ALMEIDA, Jorge de; LASTÓRIA, Luiz Calmon Nabuco. (Org.). Experiência formativa e emancipação. São Paulo: Nankin, 2009. v. 1, 303p.

ALMEIDA, Jorge de. Uma empreitada épica. Jornal de Resenhas, p. 6-7, 1º dez. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Rilke e o silêncio de Orfeu. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E3-E3, 18 jul. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. O Brasil de Blaise a Bense. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E6-E6, 4 jul. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. A vida em desordem alfabética (Armando Freitas Filho). Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E6-E6, 20 jun. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. A babel de Manguel. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E8-E8, 6 jun. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Mareado em terra firme (Conrad). Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E6-E6, 23 maio 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Peckett, o boeta. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E4-E4, 9 maio 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Dupla exposição do Brasil (M. Hatoum e B. Carvalho). Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E6-E6, 25 abr. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Peixes na Pampulha. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E4-E4, 11 abr. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Sófocles, Sófocles, Sófocles. Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E4-E4, 28 mar. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. A vez de Eurídice (Claudio Magris). Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E6-E6, 14 mar. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Todorov e a verdade dos livros. Folha de S.Paulo, Ilustra-da, p. E5-E5, 28 fev. 2009.

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BIBLIOTECA Publicações do Departamento 219

ANDRADE, Fábio de Souza. O sertão e o mundo (Galiléia). Folha de S.Paulo, Ilustra-da, p. E5-E5, 14 fev. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. São Paulo, acordes dissonantes. Folha de S.Paulo, Ilus-trada, p. E5-E5, 31 jan. 2009.

ANDRADE, Fábio de Souza. Poesia de olhos vazados (Pádua Fernandes). Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E4-E4, 17 jan. 2009.

BISCHOF, Betina. O aspecto da (des)formação de uma ilha/país em Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Terceira Margem, v. 21, p. 159-175, 2009.

BOSI, Viviana. Subjetividades em devir. Estudos sobre poesia moderna e contem-porânea. Revista Colóquio Letras, Lisboa, n. 172, p. 283-286, 2009.

BOSI, Viviana. Poésie auto-mobile. Publicado em PDF no site do GIS Réseau Amé-rique Latine, correspondendo a texto lido no seu Congresso de 2007 na Universi-dade de Rennes, França.

BOSI, Viviana. Tradução de Poemas de John Ashbery. Revista Modo de Usar & Co., Rio de Janeiro, n. 2, p. 22-25 e 94, 2009.

FONSECA, Maria Augusta. Batuque – cultura e sociabilidade. Literatura e Sociedade, v. 11, p. 220-237, 2009.

FONSECA, Maria Augusta. (Org.). Revista Literatura e Sociedade, n. 11. Antonio Candido – Teoria. Crítica. São Paulo, DTLLC, FFLCH, USP, 2009-I.

FONSECA, Maria Augusta. (Org.). Revista Literatura e Sociedade, n. 12. Antonio Candido – Teoria. Crítica. São Paulo, DTLLC, FFLCH, USP, 2009-II.

KAWANO, Marta. Gérard de Nerval: a escrita em trânsito. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. v. 1. 254p.

KAWANO, Marta; SUZUKI, Márcio. (Org.). Os deuses no exílio, de Heinnich Heine. São Paulo: Iluminuras, 2009. v. 1, 165p.

KAWANO, Marta. Dioniso em Paris. São Paulo, 2009. (Prefácio, Pósfacio/Posfácio).

KAWANO, Marta; HEINE, Heinnich. Os deuses no exílio. São Paulo: Iluminuras, 2009. (Tradução/Livro).

MAZZARI, Marcus Vinicius. Dinheiro e violência. Jornal de Resenhas, Discurso Edi-torial, 10 agosto de 2009.

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220 Literatura e Sociedade

MAZZARI, Marcus Vinicius. Texto de orelha, notas e supervisão de tradução do vo-lume Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe, de Walter Benjamin. São Paulo: Edi-tora 34; Duas Cidades, 2009.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Texto de orelha para o romance Vidas novas, de Ingo Schulze. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Tradução do livro infantil Todos os patinhos, de Chris-tian Duda e Julia Friese. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Tradução, notas e prefácio do volume O Rabi de Bach-erach e três textos sobre o ódio racial, de Heinrich Heine. São Paulo: Hedra, 2009.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Terra devastada. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, p. 3-3, 7 mar. 2010.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Hoffmann e as primícias da arte de enxergar: Prefácio ao volume A janela de esquina do meu primo, de E. T. A. Hoffmann. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

NATALI, Marcos Piason. Beyond the Right to Literature. Comparative Literature Studies, v. 46, p. 177-192, 2009.

NATALI, Marcos Piason. Bolaño y las muertes de la literatura. Revista Crítica, v. 132, p. 171-182, 2009.

NATALI, Marcos Piason. José María Arguedas e o aquém da literatura. In: GALLE, Helmut; OLMOS, Ana Cecilia; KANZEPOLSKY, Adriana; IZARRA, Laura Zuntini. (Org.). Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo: Anna-blume, 2009. v. 1, p. 303-312.

OTSUKA, Edu Teruki. Literatura e sociedade hoje. Literatura e Sociedade, São Paulo, n. 12, p. 104-115, 2009.

OTSUKA, Edu Teruki. Conflito e interrupção: sobre um artifício narrativo em O cortiço. Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 21, p. 177-186, ago.-dez. 2009.

PACHECO, Ana Paula. Astúcia de classe: “Famigerado”, de Guimarães Rosa, e o lu-gar do escritor. Terceira Margem, v. 21, p. 131-139, 2009.

PACHECO, Ana Paula. De fora do presente: a atualidade de O Louco do Cati, de Dyonelio Machado. In: ARAÚJO, Humberto Hermenegildo; OLIVEIRA, Irenísia Torres de. (Org.). Regionalismo, modernização e crítica social na literatura brasileira. São Paulo: Nankin Editorial, 2010. v. 1.

PACHECO, Ana Paula. Três relatos. Revista Piauí, São Paulo, p. 56-57, 1º jul. 2009.

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BIBLIOTECA Publicações do Departamento 221

PARREIRA, Marcelo Pen; BOLANO, R. Bolaño atesta vigor latino-americano. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. E6-E, 12 dez. 2009.

PARREIRA, Marcelo Pen; COE, J. Em tom triste, Jonathan Coe cria narrativas em camadas. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. E8-E8, 6 jun. 2009.

PARREIRA, Marcelo Pen; BEGLEY, L. Em obra sutil, Begley retrata desajustes na elite dos EUA. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. E4-E4, 11 abr. 2009.

PASSOS, Cleusa Rios Passos. As armadilhas do saber. Relações entre Literatura e Psicanálise. São Paulo: Edusp, 2009.

PASSOS, Cleusa Rios. Vozes femininas na obra de G. Rosa. In: CHIAPINI, Ligia; VEJMEL-KA, Marcel. (Org.). Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa: dimensões regio-nais e universalidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. v.1, p. 1-431.

PONTIERI, Regina Lúcia. Deux histoires à la manière de Marcel Aymé et de Clarice Lispector. Cahier Marcel Aymé, v. 27, p. 119-128, 2009.

PONTIERI, Regina Lúcia. Virgínia Woolf e a tradição da ghost story. In: I COLÓ-QUIO “VERTENTES DO FANTÁSTICO NA LITERATURA”, 2009, Araraquara. Anais do I Colóquio “Vertentes do fantástico na literatura”, 2009.

SIMON, Iumna Maria; DANTAS, Vinicius. Consistência de Corola. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 85, p. 215-238, nov. 2009.

TITAN JUNIOR, Samuel Vasconcelos. O romance e a revista. As Memórias póstumas de Brás Cubas na Revista Brasileira. Serrote, v. 1, p. 144-149, 2009.

TITAN JUNIOR, Samuel Vasconcelos. Temor, tremor, metrô. Serrote, v. 3, p. 169-178, 2009.

TITAN JUNIOR, Samuel Vasconcelos; BURGI, S. (Org.). Marcel Gautherot, Building Brasilia. Londres; Nova York: Thames & Hudson, 2010. v. 1. 192p.

TITAN JUNIOR, Samuel Vasconcelos; HATOUM, M. (Org.). Marcel Gautherot, Norte. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. v. 1, 136p.

TITAN JUNIOR, Samuel Vasconcelos. A memória, essa ferida que não fecha. Resenha de Leite derramado, de Chico Buarque. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. D4-D4, 28 mar. 2009.

VIDAL, Ariovaldo José. Leitura da obra de Cony. Revista USP, São Paulo, 2010.

ZULAR, Roberto. Las Algarabías de Waly Salomão. Taller de Letras, Santiago, v. 44, p. 163-175, 2009.

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APÊNDICE

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224 Literatura e Sociedade

ARTIGOS PUBLICADOS

ABDALA Jr, Benjamin. Desenhos do crítico, inclinações da crítica. A educação pela noite & Outros ensaios / The Critic’s Sketches, Criticism’s Inclinations”: A educação pela noite & Outros ensaios, n. 11, 2009-1, p. 142-155.

AGUIAR, Joaquim Alves de. Anotações à margem de um belo livro / Notes on the edge of a beautiful book, n. 4, 1999, p. 129-140.

AGUIAR, Joaquim Alves de. Dois em um (notas sobre Tese e antítese e O discurso e a cidade) / Two in one (notes on Tese and antítese and o discurso e a cidade), n. 12, 2009-2, p. 152-163.

AGUILAR, Gonzalo. Antonio Candido and David Viñas: Antonio Candido y David Viñas: la crítica literaria y el cierre del pasado histórico / Literary Criticism and the Closing of the Historical Past, n. 11, 2009-1. p. 186-195.

ALMEIDA, Teresa de. Murilo Mendes e Bernanos: diálogos na memória/Murilo Men-des and Bernanos: dialogues in memory, n. 9, 2006, p. 356-361.

ALMEIDA. Jorge de. Sobre os sonhos e o surrealismo: Theodor Adorno e André Bre-ton / On dreams and surrealism: Theodor Adorno and André Breton, n. 10, 2007-2008, p.148-161.

AMANTE, Adriana. Esquema argentino de Antonio Candido / Antonio Candido’s Argentine Scheme. n. 11, 2009-1. p. 112-127.

AMARAL, Glória Carneiro do. Bastide vê Bernanos/Bastide sees Bernanos, n. 9, 2006, p. 320-327.

ANDRADE, Fábio de Souza. Leilão divino, tribunal jagunço, duelo de bravos: rito, lei, ordem e costume em Guimarães Rosa / Divine auction, “jagunço” court of justice, brave men’s duel: rite, law, order and custom in Guimarães Rosa, n. 6, 2001-2002, p. 148-157.

ANDRADE, Homero Freitas de. O realismo socialista e suas (in)definições / The so-cialist realism and its (in)definitions, n. 13, 2010-1, p. 152-165.

ANDRADE, Mário de. A dona ausente / The absent lady, n. 10, 2007-2008, p. 272-277.

ANDRADE, Oswald de. Análise de dois tipos de ficção / Analysis of two types of fic-tion, n. 10, 2007-2008, p. 266-271.

ANTELO, Raul. A hibris e o híbrido na crítica cultural brasileira / The hybris and the hybrid in Brasilian cultural criticism, n. 12, 2009-2, p. 128-151.

ANTELO, Raul. Lixeratura: a carta e o destino / Litter-ature: letters and fate, n. 3, 1998, p. 34-42.

ANTELO, Raul. Modernismo, repurificação e lembrança do presente / Modernism, repurification, and the memory of the present, n. 7, 2003-2004, p. 146-165.

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APÊNDICE Artigos publicados 225

ANTELO, Raul.Os objetos da sublimação / The objects of sublimation, n. 10, 2007-2008, p. 212-231.

ARANTES, Paulo. O recado dos livros / The message from books, n.12, 2009-2, p. 116-119.

ARÊAS, Vilma. Narrativas in extremis / Narratives in extremis, n. 8, p. 104-111.

ARÊAS, Vilma. Sister 1982 / Sister 1982, n. 12, p. 272-273.

ARRIGUCCI Jr., Davi. Depoimento / Testimony, n. 10, 2007-2008, p. 312-323.

ARRIGUCCI Jr., Davi. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido´s work, n. 11, 2009-1. p. 46-51.

ARRIGUCCI Jr., Davi. O sertão em surdina (Ensaio sobre O Quinze) / The backlands on the sly (An essay about O Quinze [The Year’ 15]), n. 5, 2000, p. 108-118.

AUBERT, Francis Henrik. Em busca das refrações na literatura brasileira traduzida – revendo a ferramenta de análise / In search of refractions in Brazilian literature in translation – reviewing the tools of analysis, n. 9, 2006, p. 60-69.

AYALA, Maria Ignez Novais. Riqueza de pobre / The wealth of the poor, n. 2, 1997, p. 160-169.

AZENHA Jr., João. Goethe e a tradução: a construção da identidade na dinâmica da diferença / Goethe and translation: the construction of identity in the dynamics of difference, n. 9, 2006, p. 44-59.

BARBOSA, João Alexandre. José Veríssimo, leitor de estrangeiros / José Veríssimo, a reader of foreigners, n.5, 2000, p. 56-84.

BASTIDE, Roger. Sociologia e literatura comparada / Sociology and comparative li-terature, n. 9, 2006, p. 264-269.

BEIL, Ulrich Johannes. “Nobody can translate”: a obra enigmática de John Ashbery no contexto internacional / “Nobody can translate”: the enigmatic work of John Ashberry in an international context, n. 9, 2006, p. 248-262.

BERNARDINI, Aurora Fornoni. Formalismo russo, uma revisitação / Russian Forma-lism, a revisiting, n.5, 2000, p. 30-42.

BERNARDINI, Aurora Fornoni. Passeio pelos “seis passeios” / Walk through “six walks”, n.1, 1996, p. 133-135

BERND, Zilá. Identidades compósitas, escrituras híbridas: Brasil, Quebec e Antilhas / Composite identities, hybrid writing: Brazil, Quebec and the Antilles, n. 9, 2006, p. 82-87.

BETTI, Maria Sílvia. Antonio Candido e “A culpa dos reis” / Antonio Candido and “The king’s fault”, n. 12, 2009-2, p. 120-127.

BETTI, Maria Sílvia. Apontamentos sobre Prólogo Inédito para “Rasga Coração” (Fragmentos) de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) / Notes on Prólogo para “Rasga Coração” (fragmentos) by Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), n. 8, p. 14-27.

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226 Literatura e Sociedade

BICUDO, Virginia Leone. Introdução aos comentários sobre a peça Èdipo rei / Intro-duction to the criticism on the play King Oedipus, n. 10, 2007-2008, p. 242-259.

BISCHOF, Betina. Um improvável precursor: Tchecov e Kafka / An unlikely precur-sor: Tchecov and Kafka, n. 9, 2006, p. 112-123.

BOSI, Alfredo. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Anto-nio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 30-41.

BOSI, Alfredo. O cemitério dos vivos.Testemunha e ficção / O cemitério dos vivos. Testimony and fiction, n. 10, 2007-2008, p. 18-33.

BOSI, Alfredo. O Movimento Modernista de Mário de Andrade / Mário de Andrade’s Modernist movement, n. 7, 2003-2004, p. 296-301.

BOSI, Viviana. Contradição e unidade em Baudelaire / Contradiction an unity in Baudelaire, n. 6, 2001-2002, p. 106-126.

BRANCO, Lucia Castello. Surrealismo e psicanálise: em que real se entra? / Surreal-ism and psychoanalysis: in wich reality does one get into?, n. 10, 2007-2008, p. 162-169.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. Oralidade, escrita e literatura: Havelock e os gregos / Orality, writing and literature: Havelock and the Greeks, n. 2, 1997, p. 222-231.

BRITO, Mário da Silva. Marinetti em São Paulo / Marinetti in São Paulo, n. 7, 2003-2004, p. 332-336.

BROTHERSTON, Gordon. Traduzindo a linguagem visível da escrita / Translating the visible language of script, n. 4, 1999, p. 78-91.

CAMPOS, Cláudia de Arruda & RABELLO, Ivone Daré. Décio de Almeida Prado fala de Paulo Emílio Salles Gomes / Décio de Almeida Prado on Paulo Emílio Sales Gomes, n. 2, 1997, p. 188.

CAMPOS, Haroldo de. A evolução da crítica oswaldiana / The evolution of Oswald de Andrade’s criticism, n.7, 2003-2004, p. 46-55.

CAMPOS, Regina Salgado. Georges Bernanos e Sérgio Milliet / Georges Bernanos and Sérgio Milliet, n. 9, 2006, p. 336-345.

CANDIDO, Antonio. Notas de Crítica Literária / Critical notes on literature, n. 5, 2000, p.167-247.

CANDIDO, Antonio. Notas de Crítica Literária / Critical notes on literature, n. 6, 2001-2002, p. 284-320.

CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante/ The traveling poet, n. 7, 2003-2004, p. 302-315.

CANDIDO, Antonio. Paixão dos valores / The passion of values, n. 9, 2006, p. 270-275.

CARA, Salete de Almeida. A reflexão literária e política como acumulação. O obser-vador literário / Literary and Political Reflection as Accumulation: O observador literário, n. 11, 2009-1, p. 128-141.

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APÊNDICE Artigos publicados 227

CARONE, André Medina. A fronteira da interpretação / The frontier of interpreta-tion, n. 10, 2007-2008, p. 34-45.

CARONE, Modesto. Nas garras de Praga / In the claws of Prague, n.1, 1996, p.10-14.

CARONE, Modesto. O discurso e a cidade: quatro esperas / O discurso e a cidade: four delays, n. 12, 2009-2, p. 164-175.

CARONE, Modesto. O parasita da família: sobre A metamorfose de Kafka / The para-site of the family: on Kafka´s Metamorphosis, n. 10, 2007-2008, p. 302-309.

CARONE, Modesto.Avalovara: precisão e fantasia / Avalovara; precision and fantasy, n. 6, 2001-2002, p. 276-281.

CARPEAUX, Otto Maria. Formas do romance / Forms of novel, n.1, 1996, p. 114-118.

CARVALHAL, Tania Franco. Encontros na travessia / Encounters along the road, n. 9, 2006, p. 70-81.

CARVALHO, Sérgio.“A dialética de Ricardo II” / “Richard II’s Dialectic”, n. 11, 2009-1, p. 156-161.

CASTELLO, José Aderaldo. Parceria crítica: Presença da Literatura Brasileira / Criti-cal Partnership: Presença da Literatura Brasileira, n. 11, 2009-1.

CAVALIERE, Arlete Orlando. Meyerhold e a biomecânica: uma poética do corpo / Meyerhold and biomechanics: poetics of the body, n. 2, 1997, p. 119-125.

CAVALIERI, Ruth Villela. O Rio de Janeiro nas obras de Macedo e Alencar / Rio de Janeiro in Macedo’s and Alencar’s works, n.1, 1996, p. 22-29.

CHALMERS, Vera Maria. Seis capítulos de Oswald de Andrade / Six chapters by Oswald de Andrade, n. 7, 2003-2004, p.178-194.

CHAVES, Rita Natal. Colonialismo e vida operária no império português / Colonia-lism na literary life in the Portuguese Empire, n. 6, 2001-2002, p. 200-211.

CHIAPPINI, Ligia e Vejmelka, Marcel. Antonio Candido na Alemanha / Antonio Candido in Germany, n.12, 2009-2, p. 240-270.

CHIAPPINI, Ligia. Apresentação aos mais jovens, relembranças para os mais velhos / Presentation to youngers, memories to the olders, n.1, 1996, p. 97-110.

CHIAPPINI, Ligia. De Fausto a Fausto: o gaúcho na ópera / From Fausto to Faust: the gaucho at the opera, n. 9, 2006, p. 138-163.

CHIAPPINI, Ligia. Literatura e História. Notas sobre as relações entre os estudos li-terários e os estudos historiográficos / Literature and History. Notes on the rela-tions between literary and historiographic studies, n.5, 2000, p. 18-28.

CHIAPPINI, Ligia. O modernismo no Rio Grande do Sul: revisitando uma pesquisa dos anos 70 / Rio Grande do Sul’s Modernism: revisiting research from in 1970s, n. 7, 2003-2004, p. 256-265.

18_Apendice 14.indd 22718_Apendice 14.indd 227 7/11/2010 22:23:037/11/2010 22:23:03

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228 Literatura e Sociedade

CHIAPPINI, Ligia. Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar: leitura de Clarice Lispector / Around the streets a woman needs to walk: a reading on Clarice Lis-pector, n.1, 1996, p. 60-80.

CITELLI, Adilson Odair. Correspondência de Euclides da Cunha / Euclides da Cunha’s correspondence, n. 3, 1998, p. 103-107.

CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos / Interarts studies: on concepts, terms, objectives, trad. Claus Clüver e Samuel Titan Jr., n. 2, 1997, p. 37-55.

COELHO, Nelly Novaes. Bibliotecas infantis: um novo espaço de sedução / Libraries for children: a new seducing space, n.1, 1996, p. 129-132.

COELHO, Ruy. Marcel Proust e nossa época / Marcel Proust and our time, n. 6, 2001-2002, p. 351-384.

COMITTI, Leopoldo. Anjo mutante: o espaço urbano na obra de Dalton Trevisan / Mutant angel: urban space in the works of Dalton Trevisan, n.1, 1996, p. 81-87.

CORREDOR, Eva L. Entrevista com Roberto Schwarz / Interview with Roberto Schwarz. Trad. Iná Camargo Costa. n. 6, 2001-2002, p. 14-37.

CORVACHO, Suely. Em busca da unidade perdida / In search of the lost unity, n. 10, 2007-2008, p. 122-135.

COSTA, Iná Camargo. Dramaturgia modernista em 22 / Modernist dramaturgy in 22, n. 7, 2003-2004, p. 242-254.

COSTA, Iná Camargo. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 42-45.

COSTA, Iná Camargo. Na confusão de Santa Cecília / Mess at Santa Cecília, n. 6, 2001-2002, p. 186-198.

COSTA, Iná Camargo. Uma dívida que o tempo não esmorece / A debt time will not fade, n. 3, 1998, p. 108-111.

COSTA, Iná Camargo. Brechet e o teatro épico / Brecht and the epic theatre, n. 13, 2010-1, p. 214-233.

CURY, Maria Zilda Ferreira. O avesso do cartão-postal: João do Rio perambula pela capital da República / The backside of the postcard: João do Rio wanders by the capital of the Republic, n.1, 1996, p. 44-53.

DALCASTAGNÈ, Regina. Vivendo a ilusão biográfica. A personagem e o tempo na narrativa brasileira contemporânea / Living the biographical ilusion. Character and time in contemporary Brazilian narrative, n. 8, p. 112-125.

DEMARCHI, Ademir. O colecionador: fetiches, pilhagens e vitrines / The collector: fetishes, pillages and vitrines, n. 1, 1996, p. 54-59.

DIMAS, Antonio. Papel da aula/ A lesson to be learned, n.12, 2009-2, p. 218-223.

FARIA, Zênia de. Sobre Mallarmé e as artes / On Mallarmé and the arts, n. 2, 1997, p. 100-108.

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APÊNDICE Artigos publicados 229

FERREIRA, Jerusa Pires, Antonio Candido em letra, voz e história / Antonio Candi-do in letter, voice and history, n. 12, 2009-2, p. 176-181.

FIGUEIREDO, Vera Follain de. A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca / The city and crime geography in Rubem Fonseca’s fiction, n.1, 1996, p. 88-93.

FISCHER, Luís Augusto. “Formação, hoje – Uma hipótese analítica, alguns pontos cegos e seu vigor” Formação da Literatura Brasileira / The Formação, Today – An Analytic Hypothesis, Some Blind Spots, and Its Strength, n. 11, 2009-1, p. 164-184.

FISCHER, Luís Augusto. Entrevista com Antonio Candido / Interview with Antonio Candido, n. 12, 2009-2, p. 28-37.

FONSECA, Maria Augusta. Batuque: cultura e sociabilidade / Batuque: culture and sociability, n. 11, 2009-1, p. 220-237.

FONSECA, Maria Augusta. Inconfidências poéticas de Elefante / Poetical conspiracy in Elefante, n. 6, 2001-2002, p. 84-104.

FONSECA, Maria Augusta. Taí: é não é – Cancioneiro Paul Brasil / It is and it isn’t – Paul Brasil, n. 7, 2003-2004, p. 120-145.

FRAGELLI, Pedro. As formas e os dias / Forms and days, n. 13, 2010-1, p. 46-65.

FRAYZE-PEREIRA, João A. Da Palavra Encarnada: questões de psicanálise e literatura / On the Incarnate Word: questions of psychoanalysis and literature, n. 2, 1997, p. 232-236.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Anotações à margem do regionalismo / Notes on the edge of regionalism, n. 5, 2000, p. 44-55.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Entrevista com José Mindlin e Antonio Candido / In-terview with José Mindlin and Antonio Candido, n. 12, 2009 -2, p. 38-60.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Perfis / Profiles, n. 12, 2009 -2, p. 204-209.

GÁRATE, Miriam V. Notas de trabalho sobre Horacio Quiroga. Literatura, cinema, psicanálise: projeções e intersecções de campo / Notes from a study on Horacio Quiroga. Literature, film, psychoanalysis: field projections and intersections, n. 10, 2007-2008, p. 170-183.

GIL, Fernando C. O caráter pendular do herói brasileiro / The pendular character of the Brazilian hero, n. 13, 2010-1, p. 132-151.

GINZBURG, Jaime. Exílio, Memória e História: Notas sobre “Lixo e purpurina” e “Os sobreviventes” de Caio Fernando Abreu / Exile, memory and history: notes on Caio Fernando Abreu’s “Lixo e purpurina” and “Os sobreviventes”, n. 8, p. 36-45.

GLEDSON, John. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about An-tonio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 28-29.

GOLDFEDER, André. Entre mim e o que vejo: uma leitura de O filantropo / Between myself and what I see. A reading of O filantropo, n. 13, 2010-1, p. 166-185.

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230 Literatura e Sociedade

GOMES, Paulo Emílio Sales. Ensaios sobre Eisenstein / Essays about Eisenstein, n. 6, 2001-2002, p. 325-350.

GOMES, Renato Cordeiro. A saga das cidades na literatura dos 30 / The saga of the cities in 1930s literature, n. 7, 2003-2004, p. 146-177.

GONÇALVES, Aguinaldo José. Relações homológicas entre literatura e artes plásticas: algumas considerações / Homological relations between literature and the plastic arts: some considerations, n. 2, 1997, p. 56-68.

GOSSELIN, Monique. Bernanos e o Brasil / Bernanos and Brazil, n. 9, 2006, p. 308-319.

GOSSELIN, Monique. História e ficção: tentativa de interpretação a partir de Mon-sieur Ouine / History and fiction: na attempt at interpretation based on Monsieur Ouine, n. 4, 1999, p. 25-38.

HELENA, Lucia. A vocação para o abismo / The vocation for the abyss, n. 4, 1999, p. 60-67.

HERRMANN, Fabio. A ficção freudiana. Nota introdutória / The Freudian fiction. Introductory note, n. 10, 2007-2008, p. 278-285.

HIRSCHBRUCH, Anita & Lispector, Clarice. Composição: o ovo e a galinha / Compo-sition: the egg and the hen, n. 2, 1997, p. 1-16.

HOSSNE, Andrea Saad. À margem: notas sobre Desabrigo de Antônio Fraga / On the margin: notes on Desabrigo by Antônio Fraga, n. 6, 2001-2002, p. 128-146.

HOSSNE, Andrea Saad. Autores na prisão, presidiários autores. Anotações preli-minares à análise de Memórias de um sobrevivente / Authors in prision, prisoners as authors: preliminary notes to analyze on Memórias de um sobrevivente, n. 8, p. 126-139.

HOSSNE, Andrea Saad. Em busca de Emma Bovary / In search of Emma Bovary, n. 4, 1999, p. 10-24.

HOSSNE, Andrea Saad. Leitura em tom menor / Reading in minor key, n. 9, 2006, p. 98-111.

JACKSON, K. David. Uma enorme risada: o espírito cômico na literatura modernista brasileira / An enourmous laugh: the comic spirit in Brazilian Modernist Literature, n. 7, 2003-2004, p. 78-101.

JACKSON, Luiz Carlos. O Brasil dos caipiras / The Brazil of the caipiras, n. 12, 2009-2, p. 74-87.

JAMESON, Fredric. Reflexões para concluir / Reflections in conclusion, n. 13, 2010-1, p. 248-262.

KEHL, Maria Rita. Bovarismo e modernidade / Bovarism and modernity, n. 10, 2007-2008, p. 286-301.

LAFER, Celso. Antonio Candido e a Faculdade de Direito / Antonio Candido Anto-nio Candido and the Law School, n. 11, 2009-1, p. 62-79.

18_Apendice 14.indd 23018_Apendice 14.indd 230 7/11/2010 22:23:037/11/2010 22:23:03

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APÊNDICE Artigos publicados 231

LAFETÁ, J oão Luiz. Uma fotografia na parede / A photograph on the wall, n. 2, 1997, p. 26-36.

LAFETÁ, João Luiz. Memorial acadêmico / Academic autobiography, n. 3, 1998, p. 85-99.

LAFETÁ, João Luiz. Rubem Fonseca, do lirismo à violência / Rubem Fonseca, from lyricism to violence, n. 5, 2000, p. 120-134.

LEENHARDT, Jacques. Uma poética da fronteira / Une poétique de la zone, trad. Aír-ton Dantas de Araújo e Denise Hadanovic Vieira, n.1, 1996, p. 15-21.

LEMOS, Carlos Cerqueira. A arquitetura dos modernistas / The Architecture of the modernists, n. 7, 2003-2004, p. 234-240.

LIENHARD, Martin. Etnografia e ficção na América Latina: o horizonte de 1930 / Ethnography and fiction in Latin America: the horizon in 1930, n. 4, 1999, p. 103-115.

LIMA, Aldo de. Crítica do esclarecimento / Criticism of the Enlightenment, n. 11, 2009-1, p. 274-278.

LIMA, Beatriz de Mendonça. Guilhermina ou a arte de escutar as aves / Guilhermina or the art of listening to birds, n. 2, 1997, p. 149-159.

LISPECTOR, Clarice & HIRSCHBRUCH, Anita. Composição: o ovo e a galinha / Compo-sition: the egg and the hen, n. 2, 1997, p. 1-16.

LOBO, Danilo. “O sentimento dum ocidental”: uma leitura intersemiótica / “O sen-timento dum ocidental”: an intersemiotic reading, n. 2, 1997, p. 89-99.

LONGO, Mirella Márcia. Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes / Memories of the quay: Caymmi, songs and souces, n. 4, 1999, p. 68-77.

LOPEZ, Telê Ancona. A literatura como direito / Literature as Right, n. 11, 2009-1.

LOPEZ, Telê Ancona.Mário de Andrade cronista do Modernismo: 1920-1921 / Mário de Andrade, chronicler of Modernism: 1920-1921, n. 7, 2003-2004, p. 266-294.

LÖWY, Michael. De Mendel Beiliss, o judeu paria, a Joseph K., a vítima universal. Uma interpretação de O processo de Kafka / From Mendel Beiliss, the jew pariah, to Joseph K., the universal victim: an interpretation of Kafka’s The Trial, n. 9, 2006, p. 216-227.

MAFRA, Johnny José. A fala, o recitativo e o canto: estrutura da ação na comédia romana / The spoken word, the recitative, and the sung word: the structure of ac-tion in the Roman comedy, n. 2, 1997, p. 109-118.

MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. A pintura na literatura / The art of painting in literature, n. 2, 1997, p. 69-88.

MARCO, Valeria de. Max Aub, leitor de Cervantes, n. 9, 2006, p. 204-215.

MARCONDES, Durval. Um sonho de exame: considerações sobre Casa de pensão, de Aluísio de Azevedo / Dreaming about exam, n. 10, 2007-2008, p. 243-241.

MARIUTTI, Francisco Roberto P. L. Bibliografia de Paulo Emílio / Bibliography of Paulo Emílio, n. 2, 1997, p. 200-207.

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232 Literatura e Sociedade

MARTINS, Luiz Renato. O esquema genealógico e o mal-estar na história / The ge-nealogical scheme and discontentment in History, n. 13, 2010-1, p. 186-211.

MATOS, Olgária. Willi Bolle por Olgária Matos / Willi Bolle by Olgária Matos, n. 1, 1996, p. 119-128.

MAUGÜÉ, Jean. Sigmund Freud / Sigmund Freud, n. 10, 2007-2008, p. 260-265.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Lírica e dialética na amizade entre Walter Benjamin e Bertold Brecht / Lyric poetry and dialectic in Walter Benjamin’s and Bertold Brecht’s friendship, n. 6, 2001-2002, p. 64-82.

MENESES, Adélia Bezerra de. A hora e vez de Augusto Matraga ou “de como alguém se torna o que é” / A hora e vez de Augusto Matraga or “about how someone be-comes who he is”, n. 10, 2007-2008, p. 80-97.

MENESES, Adélia Bezerra de. A Paixão na literatura: do Cântico dos cânticos e dos gregos à poesia contemporânea / Passion in literature: from the Song of songs and Greeks to contemporary poetry, n. 6, 2001-2002, p. 40-62.

MENESES, Adélia Bezerra de.O “eterno feminino”: modulações (a propósito das le-tras de Chico Buarque) / The “eternal feminine”: modulations (on the lyrics of Chico Buarque’s songs), n. 2, 1997, p. 170-185.

MEYER, Marlyse. Machado de Assis lê Saint-Clair das Ilhas / Machado de Assis reads Saint-Clair of the Islands, n. 3, 1998, p. 17-33.

MEYER, Marlyse. O imaginário dos trilhos / The imaginary of rails, n.6, 2001-2002, p. 262-274.

MEYER, Marlyse. Uma tradução e as suas circunstâncias / A translation and its cir-cumstances, n. 9, 2006, p. 278-290.

MORAES, Marcos Antonio de. 124 erros de revisão / 124 mistakes in the revision, n. 12, 2009-2, p. 224-239.

MORAES, Marcos Antonio de. Coelho Netto entre modernistas / Coelho Netto among modernists, n. 7, 2003-2004, p. 102-119.

MORAIS, Márcia Marques de. Fantasmas (in) tangíveis nos contos de Murilo Ru-bião / (In) tangible phantoms on Murilo Rubião´s short stories, n. 10, 2007-2008, p. 108-121.

MOREIRA, Luiza Franco. A lua e o domador: símbolos literários e divisões sociais na poesia nacionalista de Cassiano Ricardo e Leopoldo Marechal / The moon and horse tamer: literary symbols and social divisions in the nationalist poetry of Cas-siano Ricardo and Leopoldo Marechal, n. 4, 1999, p. 39-49.

MOSER, Walter. Estudos literários, estudos culturais: reposicionamentos / Literary studies, cultural studies: repositioning, n. 3, 1998, p. 62-76.

NATALI, Marcos Piason. Além da literatura / Beyond literature, n. 9, 2006, p. 30-43.

NESTROVSKI, Arthur. Dois brasileiros / Two Brazilians, n. 2, 1997, p. 239-243.

NITRINI, Sandra. A biblioteca brasileira de Bernanos / Bernanos’ Brazilian library, n. 9, 2006, p. 346-355.

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APÊNDICE Artigos publicados 233

NITRINI, Sandra. Da sedução à saudade literária: Literatura de viagem na Belle Épo-que / From seduction to literary longing: Travel literature in the Belle Époque, n. 6, 2001-2002, p. 224-238.

NITRINI, Sandra. Viagens reais, viagens literárias: escritores brasileiros na França / Real trips, literary trips: Brazilian writers in France, n. 3, 1998, p. 51-61.

NUNES, Benedito. Antropofagia e vanguarda – acerca do canibalismo literário / Antropofagy na Avant-garde: regarding literary cannibalism, n. 7, 2003-2004, p. 316-327.

NUNES, Benedito. Carlos Drummond: a morte absoluta / Carlos Drummond: abso-lute death, n. 5, 2000, p. 136-154.

OEHLER, Dolf. “Loucura do povo e loucura da burguesia” – Baudelaire: ator, poeta e juiz da revolução de 1848 / “The madness of the people and the madness of the bourgeoisie” – Baudelaire: actor, poet, and judge of the 1848 Revolution, n. 13, 2010-1, p. 26-35.

OEHLER, Dolf. 1848: realismo, satã, política, alegoria / 1848: realism, Satan, politic, allegory, n. 13, 2010-1, p. 16-24.

OHATA, Milton. Ascensão à brasileira / Rise, Brasilian-style, n.12, 2009-2, p. 210-217.

OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. Dever de Caça: a poesia de Cacaso / Hunt-work: Cacaso’s poetry, n. 8, p. 28-35.

OLIVEIRA, Vera Lúcia. Diástole e sístole, movimentos de uma experiência poética / Diastole and systole: movements of a poetic experience, n. 9, 2006, p. 291-306.

OLIVIERI-GODET, Rita. Vila Real de João Ubaldo Ribeiro: errância e combate / Vila Real by João Ubaldo Ribeiro: errancy and struggle, n. 8, p. 158-171.

OTSUKA, Edu Teruki. Literatura e sociedade hoje / Literature and society today, n. 12, 2009-2, p. 104-115.

PACHECO, Ana Paula.Duas lobas, n. 9, 2006, p. 88-97.

PACHECO, Ana Paula. Jardim estranho / An uncanny garden, n. 10, 2007-2008, p. 98-107.

PACHECO, Ana Paula. A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo) /The subjectiv-ity of the Werewolf (São Bernardo), n. 13, 2010-1, p. 66-83.

PAES, José Paulo. Por direito de conquista / By right of conquest, n. 6, 2001-2002, p. 254-261.

PARREIRA, Marcelo Pen. Entre o quadro e o sepulcro: Strether, Aires e o cerco ao real / Between the picture and the grave: Strether, Aires, and the framing of the real, n. 13, 2010-1, p. 84-103.

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. “Cosas de Espana” em Murilo Mendes / ”Things of Spain” in Murilo Mendes, n. 9, 2006, p. 124-137.

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234 Literatura e Sociedade

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. A idade do serrote: esquecimento, lapsos e enganos / A idade do serrote: forgetings, slips of the tongue and mistakes, n. 10, 2007-2008, p. 46-57.

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. Crítica Literária e Psicanálise: contribuições e limi-tes / Literary criticism na Psychoanalysis: contributions na limits, n. 6, 2001-2002, p. 166-185.

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro.O arrenego e a letra: notas sobre “Esses Lopes” de Guimarães Rsa / Refusal and letters: notes on Guimarães Rosa’s “Those Lopes”, n. 4, 1999, p. 50-59.

PEDROSA, Célia. Poéticas do olhar na contemporaneidade / The poetics of the gaze in contemporaneity, n. 8, p. 82-103.

PERLOFF, Marjorie. Depois da poesia da linguagem: a inovação e seus descontentes teóricos / After language poetry: innovation and its theoretical discontents, n. 8, p. 190-211.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A fala esvaziada em Nelson Rodrigues / The empty speech in Nelson Rodrigues, n. 10, 2007-2008, p. 58-69.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura para todos / Literature for all, n. 9, 2006, p. 16-29.

PINTO, Maria Cecília de Moraes. Alceu Amoroso Lima e Bernanos / Alceu Amoroso Lima and Bernanos, n. 9, 2006, p. 328-335.

PONTES, Heloísa. Ar de família: a turma de Clima / A family resemblance: the Clima crowd, n. 12, 2009-2, p. 62-73.

PONTIERI, Regina Lúcia. Duas histórias a modo de Marcel Aymé e Clarice Lispector / Two stories in Marcel Aymé’s and Clarice Lispector’s fashion, n. 6, 2001-2002, p. 158-164.

PONTIERI, Regina Lúcia. Peru versus galinha: aspectos do feminino em Mário de Andrade e Clarice Lispector / Turkey versus hen: aspects of the feminine in Mário de Andrade and Clarice Lispector, n. 3, 1998, p. 43-50.

PONTIERI, Regina Lúcia. Virgínia Woolf, leitora de ficção russa / Virginia Woolf, reader of Russian fiction, n. 9, 2006, p. 164-177.

PRADO, Antonio Arnoni. Sílvio Romero (A crítica e o método) O Método Crítico de Sílvio Romero / Sílvio Romero (Criticism and Method): O Método Crítico de Sílvio Romero n. 11, 2009-1

PRADO, Antonio Arnoni.Três imagens da utopia / Three images of utopia, n. 5, 2000, p. 86-107.

PRADO, Decio de Almeida. Circo acrobático chinês / The Chinese acrobatic circus, n. 7, 2003-2004, p. 328-330.

PRADO, Decio de Almeida. Hoje tem goiabada... / There’s goiabada today..., n. 7, 2003-2004, p. 330-331.

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APÊNDICE Artigos publicados 235

PRADO, Decio de Almeida. Sobre Paulo Emilio / On Paulo Emilio, n. 2, 1997, p. 189-199.

RABELLO, Ivone Daré & CAMPOS, Cláudia de Arruda. Decio de Almeida Prado fala de Paulo Emilio Sales Gomes / Decio de Almeida Prado on Paulo Emilio Sales Gomes, n. 2, 1997, p. 188.

RABELLO, Ivone Daré. O agudo olhar para as figurações da barbárie: perspectivas do presente em O discurso e a cidade / A keen gaze into the figurations of barbarism: Perspectives of the present in O discurso e a cidade, n. 12, 2009-2, p. 182-199.

RAMASSOTE, Rodrigo. Na sala de aula: Antonio Candido e a crítica literária acadê-mica (1961-1970) / In the classroom: Antonio Candido and academic literary criticism, p. 88-102.

REIS, Zenir Campos. Um ensaio quase perdido / An almost lost essay, n.1, 1996, p. 112-113.

Riaudel, Michel. “Cartas de Paris”: ao pé da letra... / “Letter from Paris”, literally..., n. 9, 2006, 228-241.

RIVAS, Pierre. O Brasil no imaginário francês: tentações ideológicas e recorrências míticas (1880-1980) / Brazil in the French imaginary: ideological temptations and mythical recurrences (1880-1980), n. 9, 2006, p. 242-247.

ROCCA, Pablo. Entrevista com Antonio Candido sobre a experiência hispano-ame-ricana de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido’s Spanish-Ameri-can experience. n. 12, 2009-2, p. 18-27.

ROCHA, João Cezar de Castro. O homem cordial e seus precursores: os vanguarda-sista europeus / The cordial man and his precursors: the European avant-garde, n. 8, 2003-2004, p. 56-77.

RODRIGUES, André Luis. A casca e a gema: reunião. O anseio pelo absoluto em La-voura Arcaica, de Raduan Nassar / The shell and the yolk: reunion. Yearning for the absolute in Raduan Nassar’s Lavoura arcaica, n. 8, p. 140-157.

ROSENBAUM, Yudith, A batalha final: Riobaldo na encruzilhada / The final battle: Riobaldo on the crossroad, n. 10, 2007-2008, p. 136-147.

SANSEVERINO, Antônio Marcos Vieira. “O espelho”: metafísica da escravidão mo-derna / “O espelho”: the metaphysics of the modern slavery, n. 13, 2010-1, p. 104-131.

SANTIAGO, Silviano. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 52-53.

SARLO, Beatriz. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about An-tonio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 16-21.

SCHNAIDERMAN, Boris. A sedução das “confluências” / The seduction of the “conflu-ences”, n. 2, 1997, p. 237-238.

SCHNAIDERMAN, Boris. Tempo. Literatura. História. Algumas variações / Time. Lite-rature. History. Some variations, n. 5, 2000, p. 12-1738.

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236 Literatura e Sociedade

SCHNAIDERMAN, Boris. Uma novela de emigração? / A novel of emigration? , n. 12, 2009-2, p. 200-203.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introdução ou sobre segundos escalões – Um funcionário da monarquia. Ensaio sobre o segundo escalão / Introduction or about Second Echelons: Um funcionário da monarquia, n. 11, 2009-1, p. 80-95.

SCHWARTZ, Jorge. Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário afro-lati-no-americano nos anos 20 / Lasar Segall: confluence point of na Afro-Latin Ame-rican itinerary in the 1920s, n. 7, 2003-2004, p. 196-222.

SCHWARZ, Roberto. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido´s work, n. 11, 2009-1, p. 54-57.

SCHWARZ, Roberto. Um avanço literário / A literary breakthrough, n. 13, 2010-1, p. 234-247.

SEBE, José Carlos. Cancioneiro de um brasilambulante – NYC como destino / Songbook of a traveling Brazil – NYC as destiny, n. 9, 2006, p. 178-189.

SILVA, Franklin Leopoldo e. A liberdade de imaginar / The freedom to imagine, n. 6, 2001-2002, p. 240-253.

SIMON, Marisa. “Retábulo de Santa Joana Carolina”: a dimensão da humanidade / “Retábulo de Santa Joana Carolina”: the dimensions of humanity, n. 10, 2007-2008, p. 198-211.

SLATER, Candace. Entrevista sobre a obra de Antonio Candido / Interview about Antonio Candido´s work. Trad. Samuel Titan Jr., n. 11, 2009-1, p. 22-27.

SOUSA, Carlos Mendes de. A coroação das vísceras. Representações do avesso na poesia de Luís Miguel Nava / The crowning of entrails. The representation of the reverse in Luís Miguel Nava’s poetry, n. 8, p. 172-189.

SOUZA, Eneida Maria de. Construção de um Brasil moderno / The construction of a modern Brazil, n. 7, 2003-2004, p. 36-45.

SOUZA, Gilda de Mello e. As três irmãs / The three sisters, n. 6, 2001-2002, p. 321-324.

SQUEFF, Enio. Música e literatura: entre o som da letra e a letra do som / Music and literature: the tune and the lyrics, n. 2, 1997, p. 139-148.

SÜSSEKIND, Flora. Desterritorialização e forma literária. Literatura brasileira contem-porânea e experiência urbana / Deterritorialization and literary form. Contempo-rary Brazilian literature and urban experience, n. 8, p. 60-81.

SÜSSEKIND, Flora. O sobrinho pelo tio / Nephew by uncle, n. 1, 1996, p. 30-43.

SÜSSEKIND, Flora. Recorte e minúcia / Segmentation and detail, n. 3, 1998, p. 112-114.

SVCENKO, Nicolau. Dérivé poética e objeção cultural: da boemia parisiense a Má-rio de Andrade / Poetic dérivé and cultural objection: from Parisian bohemia to Mário de Andrade, n. 7, 2003-2004, p. 16-34.

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APÊNDICE Artigos publicados 237

TERUKI, Edu Otsuka. Lukács, realismo, experiência periférica (anotações de lei-tura) / Lukács, realism, peripheral experience (reading notes), n. 13, 2010-1, p. 36-45.

TONI, Flávia Camargo. Lições de harmonia / Lessons in harmony, n. 7, 2003-2004, p. 224-232.

VARA, Teresa Pires. A cena interrompida / The interrupted scene, n. 5, 2000, p. 156-166.

VARA, Teresa Pires. Pano pra manga / “Pano pra manga”, n. 2, 1997, p. 208-220.

VASCONCELLOS, Maria Elizabeth Graça de. O livro de Esopo e a lição das fábulas: a li-teratura didática na Baixa Idade Média em Portugal / Esop’s Book and the lesson of fables: didactic literature in the Late Middle Ages in Portugal, n. 3, 1998, p. 11-16.

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. A terceira menina / The third girl, n. 9, 2006, p. 190-203.

VECCHI, Roberto. Formation and Fractured History: a Double Approach [trad. dos autores], n. 11, 2009-1, p. 196-213.

VENTURA, Roberto. Sexo na senzala: Casa Grande & senzala entre o ensaio e auto-biografia / Sex in the slave quarters: Casa Grande & senzala between essay and autobiography, n. 6, 2001-2002, p. 212-222.

VENTURA, Roberto. Somos todos migrantes: entrevista com Martin Lienhard / We are all migrants: interview with Martin Lienhard, n. 4, 1999, p. 94-102.

VOGT, Carlos. Depoimento sobre a formação do Instituto de Estudos da Lingua-gem da UNICAMP / Testimony about the Creation of UNICAMP’s Institute for Language Studies, n. 11, 2009-1, p. 264-273.

WAIZBORT, Leopoldo. Para uma sociologia do memorial acadêmico: um fragmento / For a sociology of academic autobiographies: a fragment, n. 3, 1998, p. 77-82.

WILLEMART, Philippe. O tecer da arte com a psicanálise / The interlacing of art with psychoanalysis, n. 10, 2007-2008, p. 70-79.

XAVIER, Ismail. O olhar e a voz: a narração multifocal do cinema e a cifra da História em São Bernardo / The gaze and the voice: the multifocal narration in film and the import of History in São Bernardo, n. 2, 1997, p. 126-138.

ZULAR, Roberto. Lírica e clínica: os Cadernos de Paul Valéry e o Projeto de Sigmund Freud / Lyric and clinic: Paul Valéry´s Cahiers and Sigmund Freud´s Project, n. 10, 2007-2008, p. 184-197.

ZULAR, Roberto.O que fazer com o que fazer? Algumas questões sobre o Me segura qu’eu vou dar um troço de Waly Salomão / What is to be done about Waly Salomão’s Me segura qu’eu vou dar um troço, n. 8, p. 46-59.

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AOS COLABORADORES

A revista Literatura e Sociedade está aberta a colaboração na área dos estudos literários, teoria literária, literatura comparada, ensaios de caráter teórico ou vol-tados para a interpretação de autores e obras.

Os ensaios não precisam ter limite definido de páginas, nem seguir normas es pecíficas de apresentação. Pede-se, entretanto, que os colaboradores procurem, na medida do possível, reproduzir algumas poucas normas comuns aos textos da revista, como as notas de rodapé, as indicações bibliográficas em itálico e comple-tas, o nome do autor com a instituição a que está ligado, quando for o caso, além de uma boa revisão do texto, antes de enviá-lo à Comissão Editorial.

Junto com o texto, o autor deverá enviar um resumo em português de 3 a 5 linhas e 3 palavras-chave. É aconselhável que os textos tragam, ao final, a data de redação. Recebido o texto, a referida Comissão o submeterá a um parecer externo à revista, informando posteriormente ao autor o resultado da avaliação. A Comis-são reserva-se o direito de não publicá-lo no número imediatamente posterior ao parecer, caso entenda que por critérios editoriais o texto se tornaria inadequado para aquele número.

Endereço para correspondência

Literatura e Sociedade (USP-FFLCH-DTLLC)Av. Prof. Luciano Gualberto, 403Cidade Universitária - São Paulo (SP)05508-010fone: (11) 3091 4312fax: (11) 3091 4865e-mail: [email protected]@usp.br

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ONDE ENCONTRAR A REVISTA

Departamento de Teoria Literária e Literatura ComparadaDTLLC-FFLCH-USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 403Cidade Universitária - São Paulo (SP)05508-010tel.: (11) 3091.4312fax.: (11) 3091.4865email: [email protected]: www.usp.br/dtllcUSP/FFLCH

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Projeto original de Literatura e Sociedade

CARLITO CARVALHOSA

Projeto de capa e adaptação de miolo para os números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14

MARIA AUGUSTA FONSECA

Secretaria

MARIA ÂNGELA AIELLO BRESSAN SCHMIDT

LUIZ DE MATTOS ALVES

VANESSA DOS SANTOS MARQUES

Preparação e Revisão

NELSON LUÍS BARBOSA

Diagramação

ESTELA MLEETCHOL

Literatura e Sociedade, n.14

São Paulo, 2010.2

ISSN 1413-2982

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