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LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Um pas da CPLP Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal ISSN 0103-9415 PAPIA LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Um pas da CPLP Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal Nmero 20, 2010 PAPIA Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares Nmero 20, 2010 ORGANIZADOR (editor) Hildo Honrio do Couto (Braslia) CO-ORGANIZADORES (co-editors) John Holm (Coimbra) Matthias Perl (Mainz) Heliana Mello (Belo Horizonte) QUADRO DE CONSULTORES Angela Bartens (Helsinque) Alan Baxter (Macau) Nicols Castillo-Matthieu (Bogot) J. Clancy Clements (Bloomington) Marta Dijkhoff (Curaao) Germn de Grande (Valladolid) Pierre Guisan (Rio de Janeiro) Tjerk Hagemeier (Lisboa) Alexandr Jarukin (So Petersburgo) Alain Kihm (Paris) Dante Lucchesi (Salvador) Philippe Maurer (Ksnacht, Sua) John M. Lipski (Albuquerque) Chrif Mbodj (Dakar) Dan Munteanu (Las Palmas) Anthony J. Naro (Rio de Janeiro) Mariana Ploae-Hanganu (Bucareste) Jean-Louis Roug (Praia, Cabo Verde) Armin Schwegler (Irvine) Petra Thiele (Berlim) Klaus Zimmermann (Berlim) SUMRIO Apresentao................................................................................... 7 Nota Editorial.................................................................................. 9 Prefrio ........................................................................................... 11 0.Introduo ............................................ ...................................... 15 I. A Situao Lingustica ........................................... ..................... 28 II. A Lngua Portuguesa .................................................................. 45 III. A Literatura .............................................................................. 60 IV. Literatura em Portugus I: Prosa ............................................... 78 V. Literatura em Portugus II: Poesia .............................................. 94 VI. Litetura em Crioulo I: Narrativas Orais ....................... ............. 116 VII. Literatura em Crioulo II: Poesia ................................ .............. 133 VIII. Os Provrbios .......................... .............................................. 160 IX. As Advinhas............................................................................... 178 X. A Antronponmia ........................................................................ 190 XI. Outras Manifestaes da Cultura Guineense ...................... ...... 205 XII. A Comunidade de Fala Guineense ........................ ................... 222 XIII. Palavras Finais ........................................................................ 234 Bibliografia ..................................................................................... 240 Apndice ......................................................................................... 245 LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU ApReSeNtAO Rara a ocasio em que uma publicao de nvel universitrio atinge 20 anos de publicao como a revista PAPIA. Quer pela escassez de recursos, quer pela inconstncia dos seus organizadores, quase todas as revistas universitrias tm uma existncia efmera. No este o caso. O professor Hildo Honrio do Couto, professor de lingustica da UnB, dedicou 20 anos da sua vida acadmica a manter nvel elevadssimo numa revista que orgulho para toda a comunidade intelectual da Pennsula Ibrica. PAPIA, durante 20 anos, deu-nos como editor, uma satisfao interior grande, pois prova que, mesmo sem ser um xito comercial (a luta por recursos foi grande), foi um xito cultural a que estamos associados como uma editora cult. Tem sido essa a nossa filosofia: no deu prejuzo, j ganhamos. Muitos acham errado, pois no se baseia nos princpios capitalistas e mercenrios. Mas, amparar um intelectual do nvel do professor Hildo, afinal um grande amigo, apaixonado pelo que faz, incentivador, persistente, modesto (at demais) foi para ns uma honra e um incentivo para que continuemos a dar as mos por uma cultura que, ao entranhar-se em assuntos que no pertencem a um nicho muito popular, cada vez tem menos pessoas que os olhem pelo seu significado mais profundo e pela sua importncia social e lingustica. Este nmero monogrfico de PAPIA, por conter um apanhado geral da cultura da Guin-Bissau, merece uma ampla divulgao nos pases lusfonos, no apenas no pas de que trata. Portugal, como centro irradiador da lusofonia, deveria dar uma grande acolhida a Lteratura, lngua e cultura da Guin-Bissau - um pas da CPLP, que o professor Hildo escreveu em coautoria com Filomena Embal. Prova de que o nosso trabalho fincou razes o fato de a revista ter sido assumida pelos estudiosos de contato de lnguas e crioulstica da Universidade de So Paulo. Ficamos felizes que a revista tenha continuidade. Por isso afirmamos que eles podem contar com nossa colaborao no que nos for possvel. Victor Alegria Thesaurus Editora. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU NOtA eDItORIAL Aqui temos o nmero 20 de nossa revista. So duas dcadas de existncia ininterrupta. Para os padres brasileiros, um feito notvel, pois grande parte das revistas cientficas (e no cientficas) desaparecem por volta do nmero 5. Nossa inteno era coroar esses 20 anos com um nmero monogrfico, inteiramente dedicado ao sofrido povo do pequeno pas Guin-Bissau. O nmero constaria de poemas crioulos. No entanto, por razes que no dependem de nossa vontade, esse desiderato no pde ser alcanado. Por esse motivo, decidimos manter a inteno inicial, publicando como nmero 20 o que seria um suplemento a ele, sob o ttulo de Literatura, lngua e cultura na Guin-Bissau - um pas da CPLP, assinado por Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal. Com isso, o objetivo inicial de homenagear a Guin-Bissau fica mantido. O primeiro linguista, estudioso da lngua guineense h muitos anos. A segunda guineense de corao (nasceu em Angola), escritora e estudiosa da literatura do pas de adoo. Pode ser que algum ache que no se deveria publicar literatura em portugus em PAPIA. No entanto, trata-se da literatura guineense, to pouco conhecida ainda. Esperamos que nossos colegas crioulistas nos compreendam. Este o ltimo nmero organizado por Hildo do Couto. A partir do prximo, a organizao estar a cargo de Gabriel Antunes Arajo, da Universidade de So Paulo. J a partir de 2008, ele fora eleito presidente da ABECS -Associao Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, entidade ligada revista, criada em Braslia por ocasio do Primeiro Encontro de Estudos Crioulos e Similares. No momento em que estamos redigindo estas linhas, acaba de se realizar o VI Encontro da ABECS em Salvador. Enfim, agora que a revista entrou no perodo de maioridade, entra em nova fase, nas mos de gente jovem e idealista. A ideia de contato de lnguas, contexto maior em que se insere a crioulstica, certamente vai ter guarida nos nmeros vindouros, que desejamos que sejam muitos. No pintcha LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU pReFCIO A confeco deste livro apresenta duas etapas. Na primeira, Hildo Couto elaborou um esboo geral da obra. Mas, como ele linguista, no especialista de literatura, convidou a estudiosa da literatura guineense Filomena Embal para colaborar na empreitada. Ela aceitou o desafio e nos pusemos a colaborar assiduamente e com afinco pela internet at chegar ao presente formato. bem verdade que j existe um livro publicado no Brasil sobre a literatura guineense (Augel 2007). No entanto, seu objetivo mais terico e interpretativo, o que, alis, altamente meritrio. Ele se atm literatura em prosa e verso em portugus e poesia crioula. O nosso mais abrangente. Ele inclui no apenas esses aspectos, mas procura dar uma viso de conjunto da lngua e da cultura da Guin-Bissau. claro que aqui e ali tentamos fazer interpretaes tambm. At onde sabemos, a primeira obra que rene e abrange, de uma forma mais ampla, diferentes aspetos da cultura guineense, com a preocupao de fornecer o maior nmero de informaes, sem, no entanto, se pretender exaustiva. Uma limitao que a obra apresenta justamente no ter sido possvel abordar todas as manifestaes culturais prprias e especficas das diferentes etnias, tais como as cerimnias de iniciao, cerimnias fnebres e crenas religiosas, por necessitar de um trabalho de terreno e de recolha mais detalhado e a longo prazo, o que no nos foi possvel fazer. Apesar dessas limitaes, acreditamos que o livro possa ser de interesse, pois ele apresenta e discute perfunctoriamente pelo menos a literatura em portugus (poesia e prosa), de que d um apanhado geral, e a literatura em crioulo, que compreende a poesia e as narrativas orais. Fala tambm dos provrbios e das adivinhas, duas facetas muito importantes da cultura guineense, alm da antroponmia, que apresenta padres de denominao muito interessantes. Sob a rubrica de Outras manifestaes da cultura guineense, o livro discute sucintamente as revistas em quadrinho, o teatro, o cinema, a msica, a questo das manjuandades (sociedades ldicas de coetneos), os gs (parecidos com cls), o tchur (cerimnias fnebres), os rumores (boaHildo Honrio do Couto e Filomena Embal tos) e a questo religiosa do ir. Alm disso, temos a parte mais lingustica. Primeiro, a situao lingustica do pas (captulos I e XII), com suas mais de dezesseis lnguas, alm do crioulo e o portugus. Segundo, falamos sobre a questo da lngua portuguesa no pas. Nossa inteno no foi publicar algo melhor do que o que j existe, mas complet-lo, entrando em reas que ainda no tinham sido apresentadas ao pblico de lngua portuguesa. Pelas informaes que presta sobre a cultura da Guin-Bissau, devido s dificuldades encontradas para recolher dados nesta rea, cremos que trazemos informaes teis a quem pretenda conhecer o maravilhoso mundo da literatura, da lngua e da cultura desse pequeno e sofrido pas pertencente CPLP. Como se sabe, h muito pouca produo existente nesse domnio. Nossa inteno foi remediar, pelo menos em parte, essa escassez. O livro foi escrito tendo em vista as pessoas que tm interesse pela Guin-Bissau e pela frica em Geral, no para aquelas que pem o dernier cri da crtica literria em primeiro lugar. Ele bem mais modesto. Visamos a apresentar um conspecto da literatura, da lngua e da cultura guineenses ao leitor de lngua portuguesa. Se as pessoas que se interessam por essas reas, e/ou pela Guin-Bissau em geral, virem alguma coisa de interesse no livro, dar-nos-emos por satisfeitos, nosso objetivo foi atingido. O leitor e a leitora notaro que, nas poucas tentativas de interpretao que fizemos, h uma certa tendncia a encarar os fatos em estudo da perspectiva da crtica literria ecolgica, mais conhecida como ecocrtica (ecocriticism). Isso se deve formao de um dos autores, estudioso das relaes entre lngua e meio ambiente, mediante a disciplina ecolingustica (Couto 2007), cujo ltimo captulo se intitula justamente Ecocrtica. Sobre a ecocrtica em geral, baseamo-nos em Garrard (2006) e Glotfelty & Fromm (1996). Temos conscincia de que o vis ecolgico nem sempre bem-vindo no meio acadmico. No entanto, estamos convictos de sua validade. Gostaramos de agradecer a algumas pessoas que nos ajudaram de alguma forma. Algumas enviaram publicaes de difcil acesso. Outras fizeram comentrios a tpicos pontuais, evitando assim que o livro contenha muitas falhas. A seguir, apresentamos uma lista dessas pessoas, desculpando-nos por eventuais esquecimentos. Nenhuma delas tem qualquer responsabilidade pelo contedo do livro. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Alfeu Sparemberger (Pelotas) Cludia Gomes (Braslia) Incanha Intumbo (Coimbra) Joo Ferreira (Braslia) Luigi Scantamburlo (Guin-Bissau) Moema Parente Augel (Bielefeld) Odete Semedo (Bissau/Belo Horizonte) Rui Jorge Semedo (Bissau/So Carlos) Teresa Montenegro (Bissau, Guin-Bissau) Waldir Arajo (Lisboa) Wilson Trajano Filho (Braslia). LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU 0. INtRODUO Uma boa maneira de preparar o terreno para a discusso sobre a cultura, as lnguas e as literaturas da Guin-Bissau apresentando um esboo histrico do pas. Para dar apenas uma justificativa, a periodizao sugerida para a histria da sua produo literria a de sua histria poltica. Alm do mais, a despeito de ser uma das primeiras regies da frica, e do mundo, a que os portugueses chegaram na arrancada martima que recebeu o nome de Grandes Navegaes, a antiga Costa da Guin, a Guin Portuguesa ou a atual Guin-Bissau um dos pases menos conhecidos entre todos que resultaram dessa aventura. Esse desconhecimento existe em todos os nveis, no s no lingustico-cultural, mas tambm no nvel poltico. Ouve-se falar muito mais em Angola, Moambique e Cabo Verde do que em Guin-Bissau. Intelectuais e escritores como Jos Craveirinha, Mia Couto, Luandino Vieira, Jos Eduardo Agualusa, Baltazar Lopes e Germano Almeida so frequentemente lembrados no Brasil. No entanto, muito pouca gente j ouviu falar em Tony Tcheka, Abdulai Sila, Pascoal DArtagnan Aurigemma, Carlos Lopes e Odete Semedo. Assim sendo, dedicamos essa introduo basicamente a um perfil histrico do atual pas Guin-Bissau. Antes, porm, gostaramos de fornecer alguns dados importantes para se compreender o pas como tal. A Guin-Bissau um pequeno pas situado na costa ocidental africana que se classifica entre os mais pobres do mundo. Emergindo de uma luta armada de libertao nacional, que durou 11 anos e que ps fim a um longo perodo colonial, os desafios para a nova nao eram enormes. Com efeito, a incipiente economia colonial, com uma base exclusivamente agrcola, assentava num sistema de monoplio comercial dominado por empresas portuguesas. Os pequenos produtores locais eram obrigados a produzir e a vender a essas empresas determinados produtos agrcolas destinados exportao. Nenhuma evoluo tecnolgica fora introduzida no meio rural, continuando as populaes a produzir segundo as suas tradies ancestrais. Na rea industrial, apenas uma unidade fabril foi deixada pelos portugueses: uma fbrica de cerveja destinada a abastecer o exrcito colonial que combatia o movimento de libertao. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal Se as capacidades do movimento de libertao permitiram gerir com certo sucesso as regies libertadas do pas durante a luta armada, o mesmo j no aconteceu com a gesto do pas totalmente independente. Os novos dirigentes encontraram os cofres do Estado vazios, uma administrao abandonada pela maior parte dos seus agentes, em sua maioria caboverdianos que deixaram o pas no momento da independncia, uma falta de quadros preparados em todos os domnios e em todos os nveis e uma populao que contava com cerca de 99% de analfabetos. Nessas condies, cometeram-se erros na deciso das estratgias de desenvolvimento: nacionalizao das empresas comerciais portuguesas, quando o Estado no tinha capacidades financeiras nem humanas para geri-las; realizao de empreendimentos industriais sobredimensionados com tecnologia avanada e muitas vezes sem responder s necessidades bsicas da populao, sem dispor de mo de obra preparada para faz-los funcionar e meios para adquirir as matrias primas. Por outro lado as infraestruturas rodovirias favoreceram as ligaes entre os centros urbanos em detrimento das ligaes com os centros de produo agrcola, isolando-os do resto do pas com consequncias graves para o escoamento da produo, que, no sendo vendida, acabava por apodrecer. Pouca ateno foi dada ao incentivo produo agrcola, com a falta de fornecimento de bens de produo, sementes melhoradas e introduo de novas tcnicas. Essa falta de incentivo e as dificuldades de escoamento dos produtos provocaram uma diminuio da produo agrcola, reduzindo-a a uma produo de subsistncia. Num contexto de baixo nvel de produo, o aprovisionamento dos cofres pblicos no podendo ser feito pelo sistema fiscal, o Estado recorria emisso de moeda para o pagamento das suas despesas, principalmente os salrios dos seus funcionrios, o que tinha como consequncia a desvalorizao da moeda. Uma das causas apontadas para o golpe de estado de 1980 foi essa poltica econmica considerada desastrosa. No entanto as polticas econmicas e financeiras levadas a cabo depois disso tambm no surtiram os efeitos esperados por tambm elas no terem sido realistas. O Programa de Ajustamento Estrutural dos primeiros anos da dcada de oitenta agravou ainda mais a precariedade econmica do pas. Articulando-se volta da abertura da economia ao mercado mundial, da liberalizao interna e da austeridade, a aplicao do programa pressupunha um tecido socioeconmico capaz de absorver os instrumentos da sua poltica. Vale dizer, a existncia de um mercado nacional organizado e de concorrncia perfeita, LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU cujas leis deveriam proporcionar os grandes equilbrios macroeconmicos. No era o caso da Guin-Bissau, que possua uma classe empresarial muito embrionria (composta por alguns comerciantes que tinham conseguido se instalar na poca colonial e que conseguiram sobreviver ao perodo do centralismo econmico); falta de poupana interna; uma base de produo reduzida; desconhecimento dos mecanismos do mercado internacional; um dficit estrutural da balana comercial; um setor informal urbano crescente, caracterizado em pocas de crise de abastecimento por trocas diretas de produtos; uma prtica de antecipao precoce dos agentes econmicos s desvalorizaes da moeda, provocando subidas especulativas dos preos quer dos produtos nacionais quer importados, para citar os mais importantes. Foi assim que, em 1997, a Guin-Bissau aderiu Unio Econmica e Monetria da frica Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA, numa tentativa de conseguir uma maior integrao regional, de sair do seu isolamento econmico-financeiro e de criar novas bases para o alavancamento de sua economia. Mas a crise poltico-militar que surgiu em 1998, opondo o Chefe de Estado Maior das Foras Armadas ao Presidente da Repblica terminou em guerra civil, quando este ltimo decidiu, por iniciativa prpria e sem a autorizao da Assemblia Nacional Popular (como prev a Constituio) pedir a interveno das foras armadas do Senegal e da Guin-Conacri. Os 11 meses de guerra civil que se seguiram pioraram ainda mais a difcil situao do pas e inauguraram um perodo de total instabilidade poltica que dura at os nossos dias, instabilidade essa que teve enormes consequncias para o setor econmico que, na ausncia de investimentos devido falta de confiana por parte dos investidores e parceiros, no consegue desenvolver-se. Do ponto de vista do regime poltico, a Guin-Bissau viveu, desde a independncia at 1991, data em que foi aprovado o multipartidarismo, num sistema de partido nico com o PAIGC (Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde), o partido libertador. Em 1994 foi esse mesmo partido que ganhou as primeiras eleies multipartidrias e que presidiu os destinos da nao at a destituio, em 1999, do Presidente Nino Vieira, o que ps fim guerra civil. Foi ento que se pde falar em alternncia no poder, com a vitria do Partido da Renovao Social (PRS) nas eleies gerais de 2000. Mas em 2003 o presidente eleito, Kumba Yala, foi destitudo por um novo golpe de estado militar. Seguiu-se um perodo de transio com a nomeao de um presidente da repblica interino. As eleies legislativas, realizadas Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal em 2004, levaram novamente o PAIGC ao poder e as eleies que tiveram lugar em 2005, trouxeram de volta ao poder o antigo presidente Nino Vieira, que ganhou o escrutnio como candidato independente. Crises polticas, permanentes mudanas de governo, alegadas tentativas de golpes de estado, uma crescente desestruturao das instituies estatais e uma constante ingerncia das foras armadas na vida poltica do pas caracterizaram os quatro anos que se seguiram at aos assassinatos em 2009, com algumas horas de intervalo, do Chefe de Estado Maior das Foras Armadas (Tagme na Waie) e do Presidente da Repblica (Nino Vieira). Quanto s liberdades individuais, o sistema de segurana implantado no pas, logo depois da independncia, foi um sistema autoritrio, fato que prevaleceu mesmo depois da instituio do multipartidarismo. H que ter em conta que a represso e a violncia sempre estiveram presentes na histria do pas: a represso colonial, a violncia da luta de libertao e a represso ps-independncia contra os adversrios do partido no poder. Tudo isso fez com que se tenha criado uma cultura de violncia praticada pelos partidos e pelas foras armadas e a consequente instalao de um sistema de impunidade que aniquilou totalmente o poder judicial. O enfraquecimento das instituies do Estado, o marasmo econmico em que a Guin-Bissau mergulhou e a porosidade das suas fronteiras pela falta de meios de controle tornaram o pas num alvo atraente para o narcotrfico internacional, que o elegeu como uma das suas placas giratrias do comrcio entre as Amricas e a Europa. Enquanto isso a populao, cada vez mais empobrecida, vai lutando dia a dia para a sua sobrevivncia. O acesso s condies bsicas de sade no lhe so garantidas, devido falta de meios e condies para o exerccio da medicina nos hospitais pblicos. O ensino, que vive permanentes perodos de greve do corpo docente por falta de pagamento dos salrios, confronta-se tambm com o problema da baixa de qualidade. Perante tal situao h numa rejeio ao resignado djitu ka ten (no h outra soluo) ou do otimista, mas no menos resignado, i ka ten problema (no tem problema), to denunciado pelo falecido intelectual Jorge Ampa (1950-1993) que dizia que o grande problema da Guin-Bissau i ka ten problema. A sociedade civil tem dado provas de dinamismo e de iniciativas positivas, quer em termos de realizaes de projetos de natureza socioeconmica, quer no nvel poltico, servindo de elemento catalisador num combate permanente em favor do desenvolvimento, democracia e paz, o que demonstra que o pas vivel. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Depois desta breve apresentao do pas, situemos os fatos no seu contexto histrico desde os primrdios da aventura martima portuguesa que resultou no que passou a ser chamado de As Grandes Navegaes e que tiveram como objetivo se desvencilharem de intermedirios no comrcio com o Oriente. O primeiro fato histrico importante foi a tomada da ilha de Ceuta em 1415 por Nuno lvares Pereira. Localizada entrada do mar Mediterrneo, sua conquista significou a morte do reino muulmano de Granada e a defesa da costa ocidental da frica. Sua posse era garantia contra ataques dos mouros, os quais tinham que passar por ali nas suas investidas em direo Europa. Alm do mais, significava tambm o primeiro passo na tentativa de chegar ndia pelo Ocidente. A conquista dessa ilha era to importante que dela participou o prprio infante D. Henrique, o navegador. Conquistada Ceuta e transposto o cabo No, do qual se dizia que quem o passar voltar ou no, os portugueses chegaram logo em seguida a outro temido limiar, o cabo Bojador. Desse cabo diz Gomes Eanes de Zurara: despois deste cabo nom ha hi gente nem povoraom algua. Em 1434 ele foi finalmente transposto por Gil Eanes. Segundo Zurara, Eanes voltou regio com Afonso Gonalves Baldaia, avanando at o rio do Ouro. Tinham a incumbncia do infante D. Henrique de aprisionar mouros para lnguas, interpretadores, cholonas ou turgimos, como viriam a ser chamados mais tarde. No entanto, no o conseguiram desta vez. S mais tarde, em outras das sucessivas incurses regio, conseguiram aprisionar os primeiros mouros. O aprisionamento continuou com o avano em direo ao sul, chegando terra dos negros, logo em seguida chamada de Costa da Guin. Vrias caravelas foram enviadas pelo infante com ordens de avanar cada vez mais em direo ao sul, e sempre aprisionando nativos. Nuno Tristo descobriu o cabo Branco em 1441 e Arguim em 1443, onde construiu uma fortaleza. Nela se celebrou missa pela primeira vez. Gonalo de Sintra foi Guin que, segundo ele o mesmo que terra dos negros, j levando consigo huu moo azenegue por torgimam, o qual j de nossa linguagem sabya grande parte. Ainda segundo Zurara, Dias Dinis tambm chegou aa terra dos negros, que som chamados guinus, aprisionando vrios deles. Em 1444 chegou ao cabo Verde, onde atualmente se localiza Dakar, no o prximo arquiplago homnimo. Em 1445 mais trs caravelas foram ao rio do Ouro. Mas, o mais importante para o que aqui nos interessa o fato de o escudeiro Joo Fernandes que, de sua voontade lhe prouve ficar em aquella terra, soomente polla veer, Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal e trazer novas ao Iffante, quando quer que se acertasse de tornar. Ele ficou entre os mouros sete meses e fez amizade com eles. E ... quando se partira daquelles com que nos passados sete meses conversara, muytos delles chora-rom (Gomes Eanes de Zurara, Crnica dos feitos da Guin, 1455). Essa estada de Joo Fernandes entre os africanos (azenegues?) de suma importncia histrica. Com efeito, trata-se da primeira vez que um portugus convive pacificamente com os mouros (at aqui no se distinguia bem entre africanos negros e mouros). Esse homem o primeiro que se lanou, na costa ocidental africana, entre os nativos, e com eles conviveu. Se no pode ser considerado como o primeiro lanado, como o termo passou a ser entendido entre historiadores e crioulistas, ele com certeza um precursor deste tipo de aventureiro que logo em seguida se tornaria a personagem principal no processo de colonizao da frica em geral. Em incurses posteriores, outras caravelas entram em contato com wolofs (jalofos, geloffas), srres (serreos), mandingas, beafadas, bijags, fulas etc. Diogo Gomes, por exemplo, fez amizade com Niumi Mansa (Nome Mains), depois com Abubakar (Bucker), pedindo a ele que lhe mostrasse o caminho para Cantor. Mandou mensagens para Uli Mansa e Ani Mansa. No caminho de volta estabeleceu contato com o chefe Batimansa, do baixo Gmbia, que lhe deu trs negros. No entanto, o fato mais importante que Nomi Mansa adotou o Deus cristo e quis que Diogo Gomes o batizasse bem como a seus nobres. Adota o nome Henrique, por causa da admirao que passou a ter pelo infante. Seus nobres passaram a se chamar Jac, Nuno etc. Pelo menos o que asseveram os cronistas. Se Joo Fernandes pode ser considerado o precursor dos lanados, do contato de Diogo Gomes com Nomimansa e seu povo bem como dos lnguas (chalonas, turgimos) nativos que os portugueses j traziam consigo de Portugal (aprisionados anteriormente), surgiriam os grumetes. Estes seriam mais tarde os nativos aculturados pelo contato com os europeus, exercendo o papel de seus ajudantes. bem verdade que os lanados eram traficantes clandestinos, ilegais. Consequentemente, eram-no tambm os grumetes. No entanto, isto s se configurou mais tarde, quando os portugueses tentaram explorar a regio mais intensamente. Ainda no sculo XV os portugueses estabeleceram feitorias no rio So Domingos e no rio Grande. Os espanhis comearam a aparecer na regio e se iniciaram as disputas sobre o direito de se estabelecer nela e de praticar o comrcio. Com a ajuda do papa, assinou-se um acordo em 1494, chamado LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Tratado das Tordesilhas, que ps fim aos desentendimentos entre as duas naes. No entanto, comearam a aparecer tambm os franceses e os ingleses. Assim, a fim de assegurar o monoplio portugus sobre o comrcio nas terras descobertas por navegantes portugueses, edificou-se uma fortaleza em Cachu em 1588. Logo chegaram tambm os holandeses regio da costa ocidental africana e o exclusivo do comrcio portugus desrespeitado abertamente. Com a Compagnie van Verre (1595), a Companhia das ndias Orientais (1602), da Holanda, e a Company of Merchants of London (1600), da Inglaterra, tem-se o fim do predomnio portugus na regio. A presena dessas trs naes explorando o trfico de escravos e de mercadorias que vai reforar a presena dos lanados, pois elas em geral mantinham seus contatos com os nativos atravs deles. Com isso, a ilegalidade, a clandestinidade, o contrabando passaram a ser a norma. Portugal no conseguiu manter sob controle oficial todas as terras descobertas pelos seus primeiros navegadores. O texto de Andr lvares de Almada abaixo transcrito bastante significativo, uma vez que mostra que os portugueses que se estabeleciam na costa da Guin tinham que se arranjar sem a ajuda da metrpole: ...mas haver como cinco anos que esto os nossos em aldeia separada dos negros, e to fortes que, antes querendo eles, podem fazer muito dano aos negros. E esto ao longo do rio entre a aldeia dos negros e ele, e ali fizeram uma fora sem a ajuda de S. Magestade, e a fortificaram com alguma artilharia que para isso buscaram... [sublinhado nosso] (Andr lvares dAlmada, 1594, Tratato breve dos rios da Guin). As primeiras organizaes administrativas na Guin eram as praas (povoaes fortificadas e armadas) e os presdios (praas de pequenas dimenses e escassos meios defensivos). Nessa poca, havia duas praas: Cachu e Bissau. Quanto a Farim, Ziguinchor, Geba e Lugar do Rio Nuno, eram presdios. Vejamos uma pequena cronologia dos principais acontecimentos do sculo XVII at a atualidade: -1607: o rgulo de Guinlia cede aos portugueses a ilha de Bolama para eles se defenderem dos bijags. -1640: abandonam-se as feitorias do rio So Domingos e do rio Grande. Funda-se a povoao de Farim. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal -1641: D. Joo IV constri uma fortaleza em Cachu e passa a escolher os capites-mores (administradores). O primeiro foi Gonalo de Gamboa de Aiala. -1675: Cria-se a Companhia de Cachu, para explorar o comrcio; ela no exerce ao notvel. - 1687: Funda-se a Companhia de Bissau. -1690: Funda-se a segunda Companhia de Cachu, que toma conta da administrao e do comrcio local. - 1766: Transferncia da capital para Bissau. -1792: Ingleses e franceses tentam ocupar a ilha de Bolama. -1832: Passa a haver uma subprefeitura em Bissau e uma provedoria em Cachu. -1863-1866: secas em Cabo Verde provocam a emigrao de Cabo-verdianos para a Guin, que vo desenvolver, ao longo do rio Farim, pontas destinadas produo da cana de acar para o fabrico de aguardente e de acar. Essa populao caboverdiana, isolada nas plantaes afastadas dos centros populacionais vai viver margem da comunidade europeia instalada na Guin. -1879: separao administrativa de Cabo Verde e Guin; Bolama passa a ser capital. H tambm aparecimento da imprensa, enquanto que nas demais colnias ela foi instalada entre 1842 e 1857. Entre 1943 e 1879, a Guin e Cabo Verde tinham o mesmo Boletim Oficial que era editado na Praia, em Cabo Verde. -1884-1885: Conferncia de Berlim, em que 14 potncias europias e Estados Unidos dividiram a frica. -1886: Portugal cede a regio da Casamansa (sul do Senegal) para a Frana e esta cede a Portugal a regio de Cacine (norte da Guin francesa) -1913-1915: Teixeira Pinto consegue uma pacificao, para evitar ataques dos nativos. -1919: declnio das pontas e da produo da cana de acar e seus derivados, devido a uma legislao que regulava o fabrico de aguardente, de modo a privilegiar a introduo e expanso de aguardentes e conhaques da metrpole. Os descendentes dos primeiros caboverdianos veem-se assim obrigados a procurar outras formas de rendimento, passando a ocupar cargos pblicos de pequena e mdia categoria ou de empregados e caixeiros de empresas comerciais. Entre 1920 e 1940, mais de 70% dos funcionrios pblicos eram caboverdianos ou seus descendentes, nascidos na Guin. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU -1936: at aqui, os portugueses tinham que pagar uma taxa (daxa) ao rgulo de Bissau. -1940: transferncia da capital de Bolama para Bissau. -1949: criao, por iniciativa de cinco pessoas privadas, dos cursosexplicaes que vieram a ser o embrio do futuro liceu de Bissau que, mais tarde, deu lugar ao Colgio-Liceu, ao qual se deslocavam professores de Portugal para examinar os alunos. -1954: incio do Movimento pela Independncia da Guin e Cabo Verde (MINGC). -1956: fundao do Partido Africano da Independncia da Guin e Cabo Verde (PAIGC), em 19 setembro, em Bissau. Reunindo Guineenses e Caboverdianos, o partido, baseando-se nas ligaes histricas entre os dois povos, defendia o princpio da unidade Guin-Cabo Verde. Foi graas a essa conjugao de foras que o PAIGC conseguiu conquistar as independncias dos dois pases. -1958: Abertura do primeiro Liceu oficial em Bissau, Liceu Honrio Barreto. -1959: insurgncia dos estivadores do porto de Pindjiguiti (Bissau). 50 trabalhadores desarmados so fuzilados. O PAIGC, que at ento tentava pela via da negociao a conquista da independncia. Diante da resposta negativa das autoridades coloniais s reivindicaes dos estivadores, decide organizar-se para passar ao armada. - 1962: incio da luta armada, em 23 de novembro. -1964: realizao do Congresso de Cassac, o primeiro do PAIGC, organizado em Cassac, regio libertada da Guin, de 13 a 17 de fevereiro. Inicialmente convocado como uma simples reunio para pr termo a desmandos de certos responsveis militares da frente Sul, revelou-se um encontro de suma importncia em que foram tomadas decises determinantes para o prosseguimento da luta armada: criao das FARP, Foras Armadas Revolucionrias do Povo (um verdadeiro exrcito estruturado); criao dos rgos embrionrios do futuro estado (que passaram a gerir os setores da sade, educao, economia, finanas e justia); criao dos Armazns do Povo (que se ocuparam da distribuio dos produtos de primeira necessidades) e, no nvel do Partido, criao do Bureau Poltico e, no seio deste, do Comit Executivo da Luta . -1973: Amlcar Cabral assassinado em 20 de janeiro em Conakry, por militantes guineenses do PAICG. As causas deste assassinato e o seu Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal autor intelectual nunca foram determinados. Embora a PIDE (Polcia Internacional de Defesa do Estado de Portugal) tenha sido apontada por certas fontes como sendo a autora intelectual do assassinato, o certo que havia no seio do PAIGC um mal estar entre guineenses e caboverdianos por causa da questo da unidade Guin-Cabo Verde, o que pode ter tornado possvel a utilizao dos guineenses descontentes para a realizao do assassinato. Com o assassinato de Cabral, ruiu a primeira pedra do edifcio da Unidade Guin-Cabo Verde. 1973: Proclamao do Estado da Guin-Bissau em 24 de setembro, pela Assemblia Nacional Popular, reunida pela primeira vez em Madina do Bo, regio libertada. Lus Cabral assume a presidncia do Conselho de Estado. -1974: Portugal reconhece em 10 de setembro a independncia, no ano da Revoluo dos Cravos (25 de abril). Partida das autoridades administrativas portuguesas e com ela a maior parte dos quadros da funo pblica, caboverdianos na sua maioria. Instalao do governo guineense na capital, Bissau. -1980: Joo Bernardo Vieira (Nino Vieira) lidera um golpe militar, localmente designado por Movimento Reajustador, e assume a presidncia do ento criado Conselho da Revoluo. Entre as causas apontadas: a descoberta de valas comuns com ossadas de fuzilados durante os primeiros anos de independncia; o anteprojeto da constituio que apresentava diferenas com a de Cabo Verde, entre elas a conservao da pena de morte na Guin-Bissau, quando em Cabo Verde ela no existia; a aguda crise econmica que o pas atravessava, considerada como consequncia da poltica econmica seguida depois da independncia. -1981: Em Cabo Verde, em reao ao golpe na Guin-Bissau, criado o PAICV (Partido Africano para a Independncia de Cabo Verde), consumando assim o fim da unidade Guin-Cabo Verde. -1984: o Primeiro Ministro, Victor Sade Maria acusado de preparar um golpe de estado e afastado do poder. -1985: Grande crise poltica. Vrias pessoas foram julgadas e fuziladas, entre as quais Paulo Correia, Primeiro Vice-Presidente do Conselho de Estado e Ministro da Justia, militares e lderes contrrios ao governo de Nino Vieira acusados de tentativa de golpe de estado. -1987: Incio do Programa de Reajustamento Estrutural, distanciando-se do modelo centralizado de inspirao socialista iniciado nas guerras LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU de independncia. Abertura da primeira editora pblica (Nimba) de durao efmera. -1991: Introduo do multipartidarismo, abertura poltica (pelo menos nominal), revalorizao dos regulados (poder tradicional). -1994: Eleies multipartidrias. Nino Vieira reeleito. criada a primeira editora privada do pas, pelo escritor Adulai Sila. -1997: A Guin-Bissau adere Unio Econmica e Monetria da frica Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA. -1998: Revolta de alguns militares, comandada por Ansumane Man. Nino Vieira pede socorro ao Senegal e Guin-Conacri, que enviam tropas. O pas entra em guerra civil que dura 11 meses. Os senegaleses passam a cometer as maiores barbaridades contra os guineenses, muitas delas retratadas na literatura produzida da para frente. Milhares de pessoas morrem. Bissau, que j tinha uma infraestrutura precria, praticamente destruda. Os soldados senegaleses se instalaram no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), um dos melhores da frica, e chegaram a usar folhas de livros para fazer fogo. Grande parte da populao de Bissau foge para o interior e para o exterior. -1999: Forma-se um Governo de Unio Nacional. Deposio do presidente eleito. o fim do longo poder absoluto de Nino Vieira e da liderana exclusiva do PAIGC. Nino vai para o exterior (Portugal). Malam Bacai Sanh, Presidente da Assemblia Nacional Popular assume a presidncia interinamente. -1999-2000: Realizao de eleies legislativas e presidenciais, saindo vencedor das primeiras o PRS (Partido da Renovao Social) e tendo o seu lider, Kumba Yala, sido eleito presidente da Repblica. -2000: o chefe da Junta Militar, Ansumane Mane, assassinado. -2003: Koumba Yal destitudo do poder pelo chefe de estado maior, Verssimo Seabra, acusado de corrupo, uso arbitrrio do poder e promoo de dissenses tnicas no seio das foras armadas. Henrique Rosa assume a presidncia interinamente. -2004: Novas eleies legislativas, voltando ao poder o PAIGC (maro). Carlos Gomes Jnior, presidente do PAIGC nomeado Primeiro Ministro. O general Verssimo Seabra, chefe do Estado Maior das Foras Armadas, assassinado por um grupo de militares que tinham participado de uma misso de paz das ONU na Libria, acusado de corrupo e promoes arbitrrias no seio das foras armadas. Tagme Na Waie foi escolhido para as Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal chefias das foras armadas (outubro). -2005: novas eleies presidenciais. Nino Vieira retorna ao pas e reeleito. Esse senhor, ldimo representante de tudo de ruim que atormenta a Guin-Bissau, continua no poder. Criao do Forum de Convergncia para o Desenvolvimento que rene a grande maioria da oposio parlamentar. Deposio do governo de Carlos Gomes Jnior pelo presidente Nino Vieira, pretextando a existncia de instabilidade poltica. Nomeao de um governo de iniciativa presidencial. - 2006: Assassinato do Comodoro Lamine Sanha, que foi prximo de Ansumane Man. -2007: Instituio do Pacto de Estabilidade Poltica pelos principais partidos: PAIGC, PRS e PUSD e nomeao de um governo de consenso nacional. -2008: O Chefe de Estado Maior da Marinha, almirante Bubo Nachut, acusado de tentativa de golpe de estado e de utilizar as foras armadas e uma parte do territrio para o trfico internacional de droga. Em priso domiciliar, foge para a Gmbia. Cai o governo do Pacto de Estabilidade, trs meses antes das eleies legislativas que levam novamente ao poder, em novembro, o PAIGC. Carlos Gomes Jnior de novo Primeiro Ministro. -2009: em primeiro de maro, o general Tagm Na Waie, Chefe de Estado-Maior das Foras Armadas, morre em um atentado bomba ao quartel-general. No dia seguinte, algumas horas depois, o prprio Nino Vieira assassinado por militares. Raimundo Pereira, presidente da Assemblia Nacional Popular, assume interinamente a presidncia da Repblica. O capito de fragata, Zamora Induta, nomeado, a ttulo provisrio e revelia das disposies da Constituio, Chefe de Estado Maior das Foras Armadas. A 26 de Julho, Malam Bacai Sanh, candidato do PAIGC, ganha as eleies presidenciais antecipadas, organizadas na sequncia do assassinato de Nino Vieira. Zamora Induta confirmado nas suas funes de Chefe de Estado maior das Foras Armadas. Essa longa cronologia pode parecer enfadonha, mas ela necessria para se entender o que existe na Guin-Bissau. Um observador superficial poderia chegar concluso de que o pas ingovernvel, que os guineenses (e os africanos em geral) no conseguem viver em uma democracia e, por fim, que eles no esto preparados para viver no mundo capitalista e globalizado atual. Eles s conseguiriam viver sob o regime tribal, na forma de regulados. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Trata-se de uma concluso falaciosa. Na verdade, a situao tem que ser encarada de uma outra perspectiva. Se os africanos tivessem tido uma continuidade em sua histria, sem a invaso dos europeus, certamente teriam encontrado o prprio caminho. Teria havido muitas guerras, como as houve na Europa (cf. as Guerras Napolenicas, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Guerra dos Blcs etc.), mas haveria uma soluo africana para os problemas africanos. A invaso dos europeus imps uma ruptura nessa histria, que fez com que a contradio colonizadores-colonizados se sobrepusesse s contradies internas a esses povos, que tiveram que se unir para fazer face dominao colonial. Uma vez adquiridas as independncias e retomados os receptivos processos histricos, normal que as contradies internas ressurgissem, somando-se aos problemas africanos normais os trazidos pelos invasores. Por outro lado, catapultados para um modelo poltico-econmico totalmente diferente das suas realidades, por ser um produto de um processo evolutivo que no foi o seu, as sociedades africanas tm dificuldades em assimilar o modelo da democracia ocidental, baseado na diviso dos poderes institucionais e numa democracia participativa. Isso significa que os invasores europeus no levaram solues para os africanos, mas problemas: desestruturao dos sistemas poltico-socio-econmicos, discriminao, escravido, enfim, conflitos. A busca de soluo para a resoluo desses conflitos tem-se revelado difcil, com o surgimento de diferentes focos de conflito por todo o continente africano. No entanto aos africanos que compete a busca dessas solues pela escolha de modelos polticos e econmicos consentneos com as suas realidades, com base num verdadeiro desenvolvimento do fator humano, condio indispensvel para um desenvolvimento sustentado. No caso especfico dos guineenses, pelo menos para os conflitos lingusticos, eles encontraram uma soluo. Diante do dilema de se usar uma lngua africana (que, alis, so muitas) ou o portugus, eles criaram uma terceira via, o crioulo, que justamente uma soluo de compromisso entre as duas realidades. Agora falta encontrarem soluo tambm para os conflitos polticos. O que veremos nos captulos seguintes reflete, direta ou indiretamente, tudo isso. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal I. A SItUAO LINGStICA A Guin-Bissau um pequeno pas de apenas 36.125km2, com uma populao de cerca de um milho e quinhentos mil habitantes1. Ela est situada no noroeste africano, entre o Senegal (ao norte), a Repblica da Guin, comumente designada por Guin-Conacri (a leste e ao sul) e o Oceano Atlntico a oeste. o que restou da colonizao portuguesa na costa ocidental africana desde meados do sculo XV. No final do sculo XIX, as fronteiras foram definitivamente delimitadas. Em 1884-1885, a Conferncia de Berlim estabeleceu que fatia do bolo africano ficaria com qual potncia colonizadora. Em 1886, o Acordo Franco-Portugus estabeleceu definitivamente as fronteiras da Guin-Bissau, pelo qual a chamada regio da Casamansa passou para o domnio da Frana e a regio de Cacine para o de Portugal. No pequeno territrio da atual Guin-Bissau, so faladas cerca de 20 lnguas, muitas delas pertencentes a famlias diferentes, outras to aparentadas que poderiam ser classificadas como dialetos de uma mesma lngua, como veremos logo abaixo. Estas lnguas coabitam com o crioulo, lngua veicular e de unidade nacional, e com o portugus, lngua oficial, ambas resultantes da colonizao portuguesa. As principais lnguas tnicas so as seguintes, com porcentagem aproximada do nmero de falantes: fula 16% balanta 14% mandinga 7% manjaco 5% papel 3% felupe 1% beafada 0,7% 1. A obteno de dados estatsticos populacionais precisos bastante dificultada por dois fatos: o recenseamento, que no tempo colonial era associado ao pagamento dos impostos, foi sempre mal aceito pela populao que em perodos de recenseamento evitam-no refugiando-se nos pases vizinhos. Por outro lado, as emigraes sazonais para os pases vizinhos tambm tm repercusses na coleta da informao. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU bijag 0,5% mancanha 0,3% nalu 0,1% difcil encontrarem-se dados oficiais sobre a distribuio tnica depois de 1991. No sabemos se houve uma deciso deliberada de no se determinarem as percentagens dos grupos tnicos, talvez para evitar a utilizao do fator tnico com fins polticos e/ou eleitorais. Pelo menos a um dado momento essa questo foi levantada. De qualquer forma, essas estatsticas so de final da dcada de 70. Uma outra estatstica, com base no recenseamento feito em 1991, apresenta o seguinte quadro: fulas 25% balantas 24% mandingas 14% manjacos 9% papis 9% brames 4% beafadas 3% outros 12% Segundo dados extrados do Ethnologue2, em 2002 a situao seria, para uma populao total ento estimada em 1 200 000 habitantes: fula 20,4% (245 130 falantes) balanta 30,5% (367 000 falantes) mandinga 12,9% (154 200 falantes) manjaco 14,1% (170 230 falantes) papel 10,4% (125 550 falantes) felupe 1,8% (22 000 falantes) beafada 3,4% (41 420 falantes) bijag 2,3% (27 575 falantes) mancanha 3,4% (40855 falantes) nalu 0,6% (8 50 falantes) 2. Gordon, Raymond G., Jr. (ed.), 2005. Ethnologue: Languages of the World, Fifteenth edition. Dallas, Tex.: SIL International. Online version: http://www.ethnologue.com/. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal No presente contexto, vale a pena dar uma olhada tambm na distribuio das religies pela populao a fim de entender a cultura guineense (ver Onofre dos Santos, Um sorriso para a democracia na Guin-Bissau, Lisboa: PAC, 1996). Rosa (1993) apresenta um quadro ligeiramente diferente, para uma populao de aproximadamente 1.500.000 habitantes. Onofre (1993) Rosa (1993) muulmanos 46% muulmanos 30% animistas 36% animistas 45% catlicos 13% cristos 25% outros cristos 2% outros 3% Segundo os dados extrados da pgina oficial do governo da GuinBissau3 a distribuio das religies pela populao apresenta-se atualmente como segue: mulumanos 50% animistas 40% cristos 10% As dez lnguas recm-mencionadas no so as nicas que se fazem presentes na Guin-Bissau. Com um nmero pouco significativo de falantes, poderamos acrescentar ainda o bayote, o banhum, o badyara (pajadinca), o cobiana, o nalu, o cunante (sem porcentagem de falantes), o cassanga (j praticamente desaparecido), o wolof, o francs, o ingls etc. O francs se faz presente devido s intensas relaes que os guineenses mantm com os vizinhos Senegal e Guin-Conacri, nos quais ele a lngua oficial. Com efeito, esses pases so tambm multilngues, sendo que no Senegal o wolof a lngua de unio nacional e o francs a lngua do Estado. Voltando Guin-Bissau, o crioulo falado por uns 75% a 80% da populao. Para complicar o quadro, a lngua oficial o portugus, conhecido por cerca de 13% da populao. A despeito disso, a lngua da escola, dos meios de comunicao, da documentao oficial, do governo em atos oficiais e assim por diante. 3. http://www.republica-da-guine-bissau.org LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU preciso ressaltar que muitas variedades lingusticas tidas como lnguas diferentes no passam de nomes diferentes para dialetos de uma mesma lngua. Por exemplo, Mane (2001) defende a tese de que manjaco, mancanha e pepel podem ser considerados como trs dialetos de uma mesma lngua, com base no fato de que a fonologia dos trs idntica, exceto algumas variantes alofnicas, o que para a sociolingustica variacionista, e para a fonologia, no seria nenhum problema. Porm, os linguistas j admitem que a distino entre lngua e dialeto meramente poltica. De salientar que estas lnguas no esto ainda codificadas e, por conseguinte, no so ensinadas e muito menos ainda constituem lnguas de ensino. Como essas lnguas convivem em um pequeno territrio, necessariamente h um contato relativamente intenso entre seus falantes. Diante desse contato e dos resqucios da colonizao portuguesa, ou seja, o crioulo e o portugus, resulta uma espcie de continuum que vai desde variedades do portugus lusitano, passando por variedades de crioulo aportuguesado e crioulo tradicional, basiletal, at as lnguas nativas, tnicas, como se pode ver no quadro a seguir. portugus lusitano qQ portugus acrioulado qQcrioulo aportuguesado qQcrioulo tradicional qQcrioulo nativizado qQlnguas nativas Como a lngua portuguesa ser objeto de outro captulo, gostaramos de examinar aqui mais detalhadamente a situao do crioulo no pas. claro que ele se alterou muito desde sua formao nos sculos XV, XVI e XVII at hoje. Infelizmente, porm, os colonizadores no nos deixaram registros dele em forma de texto. De sua fase de formao no temos nada a no ser uma que outra observao indireta dos cronistas da poca. MesHildo Honrio do Couto e Filomena Embal mo os rarssimos casos de meno ao que pode ter sido o crioulo no so dignos de confiana, dado o preconceito que os portugueses nutriam em relao a ele (consideravam-no uma deformao do portugus, portugus errado, mal falado). No que tange a descries da lngua, a primeira de que dispomos a do cnego Marcelino Marques de Barros, de final do sculo XIX e comeo do XX (Barros 1897-1902). Ele apresentou uma descrio minuciosa, embora catica, do crioulo, com uma grande quantidade de exemplos. Esse mesmo autor j transcrevera um texto em 1883, intitulado Lobo co gara, o mais antigo por ns conhecido. um texto bastante curto, mas mostra que o crioulo da poca apresentava vrias diferenas relativamente ao atual, at onde podemos confiar em sua transcrio lusocntrica e no seu amadorismo em questes lingusticas. No entanto, no momento no dispomos de opo melhor. Uma forma claramente arcaica, registrada por Barros em 1883, e hoje em vias de desaparecimento pode ser vista em (1)-(3), em que a forma atual vem aps a barra oblqua. Como se v, houve uma sncope da oclusiva sonora intervoclica, com a consequente semivocalizao da segunda vogal. (1) (a) n disbu / n disau eu o deixei (b) nd ku bu na bai? / nd ku na bai? aonde voc vai? (c) kabu / kau lugar Em Bissau, a forma com o /b/ intervoclico opcional. portanto uma forma viva no crioulo mais conservador, sobretudo na Casamansa. No entanto, ela ocorre tambm em outras regies da Guin em pessoas mais velhas ou nos falantes do kriol fundu. No kriol lebi (mesoleto e acroleto) est enfraquecido e desapareceu no sotaque de muitos falantes. Barros menciona diversas outras formas menos comuns no crioulo atual. Elas so muito frequentes em contos tradicionais, como caso do prefixo de plural ba- para grupos de pessoas aparentadas, como em (2). (2) (a) ba-Maneles os Manuis (b) ba-quissas [cussas?] coisas, as coisas (c) ba-djob os que olham, os curiosos (d) ba-noba novidade, donde banoberu. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Como informa Incanha Inthumbo (comuniucao pessoal), a forma ba-quissas reduplicada (em ba-quissas ba-quissas) corresponde ao etcetera. Isolado, poderia ser traduzido as outras coisas, os outros fulanos. Em sntese, ba- um marcador de plural de origem africana. usado antes dos nomes prprios para designar o fulano e os seus amigos ou familiares (ba-Ntoni, por exemplo) e antes de nomes comuns para expressar o indefenido (ba-kadernus, ba-kusas). comum ouvir-se ba-kins, como em baquins ku bai luta? quais so os que foram luta? Diante da quase inexistncia de registros de fases anteriores do crioulo, para se ter alguma ideia de suas formas antigas, necessrio estudar variantes mais conservadoras da lngua atual, no caso, a variante da Casamansa. Observando as formas do crioulo tradicional, podemos fazer um pouco de reconstruo lingustica e, com isso, recuperar um pouco de formas antigas. Assim, no nvel fontico-fonolgico notamos, em primeiro lugar, que o lh de filho e velho evoluiu para dj, dando fidju e bedju. O som x de chiqueiro e chuva virou tx, como em txikeru e txuba. Como se pode ver em bedju e txuba, o v se transformou em b, fato que ocorre tambm em algumas palavras do portugus rural (sobaco, barrer, trabissero). O z portugus vira s, como em sagaya (< azagaia) e fasi [fasi] (< fazer). Essas caractersticas tendem a desaparecer no crioulo aportuguesado, e no crioulo atual em geral. No caso da estrutura silbica, h uma tendncia simplificao na direo da slaba tima CV, j exemplificada na prpria palavra que designa a lngua, ou seja, kiriol que convive com a variente kriol e at kriolu, como j ocorre hoje. So comuns palavras como sukuru (escuro) e garandi (grande), entre outras. No nvel sinttico o crioulo antigo apresentava (e o basiletal atual ainda apresenta) uma srie de especificidades. A reflexividade, por exemplo, era indicada pela construo nha cabea (minha cabea) como se pode ver em (3). H uma forma tnica do pronome (entre parnteses) e uma tona, como em francs. (3) (a) ami, N mata a kabesa eu me matei (b) ab, bu mata bu kabesa tu te mataste (c) el, i mata si kabesa ele se matou (d) a ns, n mata n kabesa ns nos matamos Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal (e) a bs, b mata b kabesa vs vos matastes (f) elis, mata s kabesa eles se mataram Um fato que deve ter chamado a ateno que a forma simples do verbo crioulo foi traduzida pelo nosso pretrito. Como veremos no captulo sobre as narrativas orais, isso tem a ver com o momento de referncia da narrativa. Para ns o momento da prpria narrao. Para o crioulo (e muitas lnguas tnicas africanas), a referncia o momento do prprio evento, para o qual se usa o verbo em sua forma simples. Como para ns o momento do evento passado em relao ao momento da narrao, a forma simples do verbo crioulo deve ser traduzida naturalmente pelo nosso pretrito. Uma outra caracterstica de um crioulo mais arcaizante so os ideofones, ou seja, formas que s ocorrem com determinado tipo de palavra, geralmente para intensificao. Em (4) temos alguns exemplos (os ideofones esto grifados). No crioulo aportuguesado, j se diz tambm muito sukuru, muitu limpu etc. (4) (a) branku fandan muito branco (b) pretu nok muito preto (c) limpu pus muito limpo (d) sukuru tip muito escuro (e) burmedju uac muito vermelho O crioulo apresenta tambm variao regional, bem mais fcil de ser descrita do que a diacrnica. No caso do crioulo portugus da costa ocidental africana, as variantes que se notam em primeiro lugar so a caboverdiana e a guineense. Alguns autores consideram-nas como pertencentes mesma lngua, dada a grande semelhana e, at certo ponto, a intercompreenso que h entre ambas. Mas, alm da questo guineense-caboverdiano, temos as duas variantes do crioulo continental faladas na Guin-Bissau e na Casamansa, como demonstrou Roug (1986). Vejamos alguns exemplos desse autor. Casamansa Bissau kebe kibi caber meste misti mister, querer sebe sibi saber LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU morde murdi morder kore kuri correr ferbe firbi ferver tese tisi trazer Tambm Barros (1897-1902) fornece alguns exemplos. Ei-los: Cachu Bissau/Bolama des deus Deus kriatuda kriatura criatura purmedu purmeru (primeiro) ka kab (acabar) genti (guenti) djenti (gente) Por fim, Wilson (1962: VII) afirmou que no interior da Guin existem trs dialetos principais do crioulo. So eles o de Bissau e Bolama, atualmente muito desenvolvido, o de Cachu e So Domingos (e Ziguinchor [Casamansa]), falado principalmente ao longo da fronteira norte at a costa, e o de Bafat e Geba, mais para o interior. Alm da variao diacrnica e da diatpica, o crioulo guineense varia tambm diastraticamente, o que em geral se chama de variao social, uma vez que tem a ver com o nvel socioeconmico e/ou cultural dos falantes. Isso a comunidade de fala guineense um continuum, que vai desde as lnguas nativas at o portugus lusitano, passando pelo crioulo nativizado, o crioulo aportuguesado e o portugus acrioulado, que o portugus guineense propriamente dito. S as extremidades do continuum so inteiramente estranhas uma outra. Mas, como o todo faz parte de uma comunidade de fala em que a interao entre falantes de diversas lnguas sempre se d de algum modo, temos que reconhecer estgios intermedirios entre as duas. Trs desses estgios so variedades do crioulo (aportuguesado, tradicional, nativizado). Os extremos so, de um lado, o portugus; do outro, as lnguas tnicas africanas. O crioulo aportuguesado contm muitos emprstimos lexicais do portugus e, s vezes, at expresses inteiras nessa lngua. Vejamos o exemplo (5). A traduo nem necessria, uma vez que qualquer falante de portugus pode entend-lo. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal (5) Ol a parentis. Al-nu li. A nos i prujetu Guin-Bissau CONTRIBUTO. A partir di aos no kumsa un novu faze na forma di komunika ku bs ke sta na tera, pabia konsiensializason, sensibilizason i muito importanti na formason dun novu mentalidadi ke no misti pa tudo gineensi. Purke, ora ke no forma homin novu pa no tera, homin sin qui vsius dantigamenti, homin konsienti de si papel na sociedadi, n pudi pensa realmenti na grandi disenvolvimento ki tudu gintes ta papia pa Gin, ma ki i difcil konsegui sin ki formason di mentalidadi. O crioulo tradicional, chamado localmente de kriol fundu, por seu turno, seria incompreensvel aos no iniciados. Vejamos um provrbio (ditu), tirado da mesma fonte: (6) Kin ku misti pis, i ta ba modja rabada na iagu Todos os morfemas provm do portugus. No entanto, sem uma traduo ou explicao, nenhum falante dessa lngua entenderia o provrbio. A etimologia de cada lexema a seguinte: kin < quem; ku < que; misti < mister (= quer); pis < peixe; i < ele (i no significa , como pode parecer em alguns textos); ta < t ( O1 (dibinha, dibinha!) O2 O3 (cabs intchi os) O4 O5 (confirmao do acerto ou no) congraamento, confraternizao, risadas (comunho) o grfico, pode-se ver o papel de cada participante no fluxo interlocucional. Em um primeiro momento, o emissor ou falante (F) prope a adivinha, e o receptor ou ouvinte (O) a recebe. Nesse momento, o ouvinte passa a exercer o papel de F, s que F de nvel 2, ou seja, F2, ao passo que quem tinha sido falante no primeiro nvel, passa a ser ouvinte, de nvel 2, ou seja, O2. E assim sucessivamente, at o desfecho final do jogo ou do dilogo. Uma outra vantagem da representao grfica supra que deixa bem claro que a adivinha um ato de interao comunicativa, embora um ato de interao comunicativa sui generis. No se trata de uma sequncia de perHildo Honrio do Couto e Filomena Embal guntas e respostas, no sentido da fala teleolgica, mas de um falar por falar, no importando o contedo do que se fala, uma vez que se trata de fala comunial. O que interessa que a adivinha se sobressai entre as manifestaes da literatura oral guineense (e africana em geral) pelo fato de, como elas, ter por objetivo reafirmar laos de solidariedade comunial, mas, diferentemente delas, por envolver o interlocutor ativamente. Talvez seja por isso que so justamente as crianas que gostam mais do jogo da adivinhao, isto , por ser ele claramente de natureza ldica. Observaes finais importante observar que a base de tudo a terra, no sentido de globo terrestre, como ecossistema maior, viso contemplada pela adivinha (8). Nesse ecossistema global, temos que procurar ecossistemas menores, como o guineense, por exemplo. o espao, o territrio (que serve como habitat para as diversas espcies de animais) que permite a convivncia entre membros de cada uma delas. Nesse meio ambiente, todos os seres vivos tm direito vida. No existe a priori superioridade de nenhum deles sobre os demais. A viso ecolgica do mundo holstica e de longo prazo. Pelo holismo, fica claro que no legtimo mantermos o antropocentrismo. Afinal, ns dependemos de muitas outras espcies vivas, tanto plantas como animais. Sem elas ns prprios podemos desaparecer. Pela viso de longo prazo, somos levados a ver que devemos preservar o mximo de espcies vivas possveis, no agredir a natureza. Do contrrio, estaremos criando buracos no casco do barco em que singramos o mar da vida. A existncia de relaes desarmnicas inevitvel. No entanto, devemos procurar sempre a harmonia com a natureza, mesmo porque no temos outra alternativa. Os resultados viro de qualquer modo, quer queiramos quer no. No correto afirmar que preciso proteger a natureza, atitude que, em si mesma, j revela antropocentrismo. Ela no precisa de nossa proteo, uma vez seguir seu curso conosco ou sem ns. A verdade que no devemos destruir no meio ambiente aquilo que fonte de nossa subsistncia, embora o estejamos fazendo em uma atitude suicida. Enfim, a natureza ir sempre em frente. Pelo menos por enquanto, est em nossas mos a deciso de seguir com ela (permanecer nela). Do contrrio, desaparecemos como espcie. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU As adivinhas crioulo-guineenses mostram esse inter-relacionamento entre seres e meio ambiente de modo exemplar. O que mais, um relacionamento muito mais harmonioso do que o que a civilizao capitalista ocidental tem com ele. A perturbao foi levada ao ecossistema guineense, em particular, e ao africano, em geral, justamente pela expanso desse sistema capitalista. O que havia antes de sua chegada era uma perfeita harmonia entre organismos e meio ambiente. Justamente por isso o jogo de adivinhas tende a desaparecer da ecologia guineense, no bojo da globalizao, juntamente com tudo que representa a cultura legitimamente africana. O problema que para os africanos sobram apenas migalhas, quando no pura e simplesmente misria e lixo. De qualquer forma, a vida continua. Como o africano em geral um seguidor da filosofia do carpe diem (Alleyne 1989) valoriza muito atividades ldicas. A brincadeira da adivinhao uma delas. Tudo isso porque a vida continua. Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal X. A ANtROpONMIA Certa feita, uma professora do Centro de Estudos Brasileiros de Bissau notou que era comum os alunos no responderem chamada com o esperado presente, mesmo estando presentes. Quando ela perguntava por que no respondiam, diziam que no tinham sido chamados. Na verdade, ela os chamara pelo nome oficial, aquele que consta nos documentos. O problema que eles eram conhecidos na comunidade s pelo que, entre ns, denominado apelido. Isso mostra que os nomes que valem efetivamente nas tabancas (bairros tipicamente africanos, aldeias etc.) so esses apelidos, no os nomes oficiais, geralmente portugueses. Existe uma espcie de clssico da antroponmia da Guin-Bissau, ou seja, Carreira; Quintino (1964), que ser citado mais abaixo. Couto (2000) j tratou de questes antroponmicas guineenses, sobretudo a hipocorstica, embora de uma perspectiva eminentemente formal. A finalidade era examinar a estrutura fonolgica dos hipocorsticos que, como veremos, so basicamente disslabos e, em geral, com slaba simples do tipo CV (consoante + vogal), lembrando a linguagem infantil. Alis, isso parece ser uma tendncia geral nas lnguas do mundo. No portugus, por exemplo, poderamos dar exemplos como os seguintes, entre inmeros outros: Cac < Carlos, Caco < Carlos, Dudu < Edu < Eduardo, Isa Djoca), Dino = Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Cato = Joo Carlos Freitas de Barros (via Carlito), Sid = Sidnio Pais Para alguns apelidos/hipocorsticos de nosso corpus, no dispomos do nome completo correspondente. No entanto, o princpio de formao deles aproximadamente o mesmo dos imediatamente anteriores. Tchiku ( Pedinho. Partindo da, teramos uma evoluo normal, ou seja, tomando-se a slaba tnica e reduplicadando-a. Quanto a Kin, ocorreu tambm sob as variantes Kinkin e Kinzinhu. Alguns apelidos/hipocorsticos so curiosos, uma vez que tm a ver com partes de algum componente do nome completo. No entanto, difcil estabelecer uma regra fontica de derivao, como nos demais casos mostrados at aqui e no que vem logo depois. LITERATURA, LNGUA E CULTURA NA GUIN-BISSAU Petras = Pedro Mendes, Jos Bacar = Jos Carlos Cocamro, Maio Coop = Mrio Silva, Mrio Djibol = Mrio Silva Suculuma Barbosa, N Barreto = Manuel Barreto da Costa Como se v, Petras parecer ser derivado mais da forma latina de que provm Pedro, ou seja, petra (pedra). Jos Bacar toma o primeiro nome, Jos, na ntegra, seguido de apenas a primeira slaba do segundo. Maio Coop parte do primeiro componente do nome completo, enfraquecendo a consoante medial, mediante uma semivocalizao. Quanto a Coop abreviao de Cooperante, tanto que ele conhecido tambm domo Maio Cooperante. Mrio Djibol tambm resulta da adjuno de um nome arbitrrio (Djibol) ao primeiro componente (Mrio). Em N Barreto temos um processo semelhante ao de Maio Coop, ou seja, alterao no primeiro componente do nome completo. A diferena est em que o segundo componente do apelido (Barreto) aparece como existe no portugus padro, no alterado. Alguns apelidos so formados de partes de mais de um dos componentes do nome completo, em geral a primeira slaba. No entanto, pode-se form-los combinando outras partes desses componentes. A seguir, temos alguns exemplos. Aldena = Alberto Dena, Budja = Bubacar Djal, Cabar = Carlos Barroso, Cadogo = Carlos Domingos Gomes, Carbar = Carlos Alberto Teixeira de Barros, Nifeco = Nicolau Ferreira da Costa, SKA = Samper Katomuar Isso no gratuito. Os guineenses apreciam bastante esse tipo de abreviao. Na verdade, esses nomes lembram as siglas que, em outros contextos, sobretudo no mbito administrativo e comercial, ocorrem em grande quantidade. CICER = Companhia Nacional de Cervejas e Refrigerantes INDE = Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educao INEP = Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Jovale = Joo Mota + Valdir Medina + Leopoldo Amado (grupo literrio de 1979) Ku Si Mon = Fafali Koudawao + Abdulai Sil + Teresa Montenegro (nome de editora) Hildo Honrio do Couto e Filomena Embal SOCOTRAM = Sociedade Comercial de Transformao da Madeira UNAE = Unio Nacional de Artistas e Escritores da Guin-Bissau As siglas so to comuns no pas que Jean-Michel Massa incluiu vrias dezenas delas em seu Dictionnaire bilingue portugais-franais Guine-Bissau vol. I (Rennes: GDR 817 - EDPAL / UHB, 1996). Quando conversamos com os guineenses, temos a impresso de que eles consideram essas abreviaes como verdadeiras palavras, o que daria uma certa razo a Massa. Voltando aos apelidos propriamente ditos, existem tambm aqueles que parecem hipocorsticos na forma fonolgica, mas que no so tirados do nome prprio, portanto, no so hipocorsticos propriamente ditos. Kote = Norberto Tavares Carvalho, Huco = Joo Jos Silva Monteiro (var.: Huco Monteiro), Itchiana = Maria Marques Ribeiro, Pantcho = Rui Borges, Didinho = Fernando Casimiro, Beto = Carlos Vaz, Tundu = Adriano Fonseca, Sandor = Armando Salvaterra, Tchuda = Herculano Costa, Ticha = Antnio Aly Silva, Samaty = Diamantino Barbosa Monteiro, Lilison = Janurio Toms Sousa Cordeiro, Yachine = Bacar Banora, Cancan = Antnio Oscar Barbosa Como j foi avanado acima, existem ainda os nomi di torosa, entre outros. Entre os alinhados por Jorge Ampa (1991), contam-se os seguintes (infelizmente, no temos nomes de manjuandade): Manomi = vtima de uma difamao (< mau nome), Kumpridu = pessoa muito alta e magra (< comprido), Nkurbadu = corcunda (