178
Literatura Fantástica e Orientalismo André de Sena (Org.)

Literatura Fantástica e Orientalismo

  • Upload
    others

  • View
    9

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Literatura Fantástica e Orientalismo

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Andreacute de Sena (Org)

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Andreacute de Sena (Org)

Recife 2013

ASSOCIACcedilAtildeO BRASILEIRADAS EDITORAS UNIVERSITAacuteRIAS

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio ou pro cesso especialmente por sistemas graacuteficos microfiacutelmicos fotograacuteficos reprograacuteficos fonograacuteficos e viacutedeograacute ficos Vedada a memorizaccedilatildeo eou a recuperaccedilatildeo total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusatildeo de qualquer parte da obra em qualquer programa jusciberneacutetico Essas proibiccedilotildees aplicam- se tambeacutem agraves caracteriacutesticas graacuteficas da obra e agrave sua editoraccedilatildeo

Creacuteditos

Diagramaccedilatildeo e capa Tamyres Siqueira

Ilustraccedilatildeo da orelha (escolha do organizadorautor Andreacute de Sena) ldquoSheacuteheacuterazade continua son histoirerdquo de 1928 por Virginia Frances Sterrett

Impressatildeo e acabamento EDUFPE

Prefaacutecio

Os artigos que compotildeem este Literatura fantaacutestica e orientalismo foram gerados para apresentaccedilatildeo durante o 2ordm Congresso de Literatura Fantaacutestica de Pernambuco (2ordm CLIF-PE) ocorrido entre os dias 05 e 08 de marccedilo de 2013 na Universidade Federal de Pernambuco organizado pelo Belvidera ndash Nuacutecleo de Estudos Oitocentistas do Departamento de Letras da referida instituiccedilatildeo por mim coordenado

O evento teve como tema principal ldquoA influecircncia do Livro das mil e uma noites e do imaginaacuterio orientalista na construccedilatildeo do conto fantaacutesti-co ocidentalrdquo e mobilizou centenas de estudiosos e interessados de todo o paiacutes nos miniauditoacuterios do Centro de Artes e Comunicaccedilatildeo (CAC) no auditoacuterio do Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas e no Hall do CAC (onde aconteceu mais uma ediccedilatildeo do movimentado Salatildeo de Arte Fantaacutestica de Pernambuco) Em quatro dias de atividades intensas o 2ordm CLIF-PE contou com trecircs conferecircncias 50 palestras e comunicaccedilotildees mostras de arte lanccedilamentos de livros aleacutem de dois minicursos

Entre os conferencistas o Prof Dr Mamede Mustafa Jarouche res-ponsaacutevel pela primeira traduccedilatildeo direta do aacuterabe ao portuguecircs do Livro das mil e uma noites que discutiu os inuacutemeros aspectos ligados ao so-brenatural e ao sobre-humano nesta milenar obra a corroborar com o surgimento de toda uma literatura de cunho imaginativo do seacuteculo XVIII aos dias atuais em acircmbito ocidental aleacutem do Prof Dr Alberto Miranda Poza medievalista espanhol que discutiu o acircmbito do mara-vilhoso na concepccedilatildeo do Libro de Apolonio e do miacutestico sufi Sheikh Muhammad Ragip (SP) que tratou de temas como a religiosidade do Islatilde e a literatura miacutestica sufi

A perspectiva interdisciplinar foi outro foco do 2ordm CLIF-PE desde a abertura do evento comandada pelo alauacutede aacuterabe do Prof Dr Oussama Naouar e pela expressiva interpretaccedilatildeo teatral da atriz pernambucana Vanessa Sueidy (como Sherazade) de trechos das Mil e uma noites O

evento contou ainda com a mostra competitiva de artes plaacutesticas de seu Salatildeo de Arte Fantaacutestica (pintura e escultura) aleacutem das mostras de fo-tografia e curtas-metragens com a participaccedilatildeo de dezenas de artistas de outros cursos da UFPE e da cidade Os dois minicursos trabalha-ram perspectivas ligadas ao fantaacutestico e ao orientalismo ldquoCurso-oficina de aacuterabe claacutessico para iniciantes sons letras e signos leitura da surata de abertura do Alcoratildeordquo (ministrado pelos Profs Drs Vicente Masip e Fatiha Dechicha) e ldquoO burro de ouro e o fantaacutestico As metamorfoses de Apuleiordquo (ministrado pelo Prof Ms Everton Natividade)

Para a realizaccedilatildeo do evento e publicaccedilatildeo deste livro mais uma con-tribuiccedilatildeo do Departamento de Letras da UFPE e do Nuacutecleo Belvidera ao estudo do fantaacutestico e temas afins no Brasil agradecemos todo o apoio recebido do proacuteprio Departamento aleacutem da Editora da UFPE da FACEPE que possibilitou a vinda dos conferencistas Mamede Mustafa Jarouche e Sheikh Muhammad Ragip ao Recife pela ampla cobertura da imprensa nos quatro dias do 2ordm CLIF-PE e a todos os participan-tes palestrantes artistas puacuteblico em geral e membros da Comissatildeo Organizadora

Prof Dr Andreacute de SenaRecife agosto de 2013

Breves consideraccedilotildees sobre os conceitoslsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites

Mamede Mustafa Jarouche(Prof Dr Departamento de liacutengua e literatura aacuterabe ndash

FFLCH ndash Universidade de Satildeo Paulo)

Eacute sobejamente reconhecido que o Livro das mil e uma noites em aacuterabe Kitaacuteb Alf Layla wa Layla eacute composto de camadas narrativas que somente a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica baseada nos manuscritos hoje dis-poniacuteveis da obra pode devassar e mesmo assim de maneira insatisfatoacute-ria pois satildeo consabidas conforme tem acentuado a criacutetica mais recente as limitaccedilotildees impostas de um lado pela proacutepria forma ldquomanuscritardquo a narrativas cuja produccedilatildeo natildeo visava prioritariamente a leitura (ou pelo menos natildeo a leitura conforme eacute hoje concebida) e de outro lado pela configuraccedilatildeo de sentido especiacutefica de cada conjunto narrativo tomado isoladamente em seu tempo e espaccedilo de funcionamento

Aqui a proposta eacute a partir do que a criacutetica filoloacutegica convencionou chamar de ldquoramo siacuteriordquo desse livro pensar o funcionamento em seu interior dos conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb traduziacuteveis como ldquoespantosordquo ldquoinsoacutelitordquo ldquoestranhordquo ldquoassombrosordquo Evitemos cuidadosamente por ora o termo ldquofantaacutesticordquo ao qual a criacutetica prestigiosa de Tzvetan Todorov conferiu um sentido plenamente consolidado em nossos dias e que natildeo se aplica agraves narrativas do Livro das mil e uma noites pois pressupotildee na verdade textos e leitores que soacute existem a partir do seacuteculo XIX

Conveacutem de iniacutecio ressaltar que ao propor o ramo siacuterio estaacute-se pro-pondo simultaneamente as narrativas mais antigas desse livro e as que em geral constam dos seus mais diversos e desencontrados manuscri-tos Embora contestada aqui e acolaacute ela ainda eacute bastante funcional para referir tais narrativas

Retomando os conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb com toda a sua gama de possibilidades tradutoacuterias seria conveniente neste ponto citar um au-tor aacuterabe do seacuteculo XIII Zakariyya Alqazwiacuteni Trata-se de um trecho do seu notoacuterio tratado cosmogocircnico intitulado lsquoAjaacutersquoib Almakhluqaacutet wa

Gharaacutersquoib Almawjudaacutet traduziacutevel como As mais espantosas criaturas e os mais assombrosos existentes e comumente conhecido a partir de sua versatildeo francesa como Maravilhas da Criaccedilatildeo Eacute um trecho da abertura da obra quando ele disserta sobre os propoacutesitos do seu trabalho

Quando Deus altiacutessimo determinou que eu me distanciasse de minha casa e terra natal e me separasse de meus familiares e de meu lar entreguei-me agrave leitura de livros seguindo o parecer de quem dissera ldquoo melhor companheiro em todos os tempos eacute o meu livrordquo Assim estava eu mergulhado na obser-vaccedilatildeo das coisas espantosas (lsquoajaacutersquoib) da accedilatildeo de Deus altiacutessimo sobre as suas criaturas e as coisas assombrosas (gharaacutersquoib) de suas invenccedilotildees sobre o que inventou tal como ele orientou quando disse [no Alcoratildeo] ldquoAcaso natildeo veem o ceacuteu sobre eles como o construiacutemos e adornamosrdquo O que se pretende aiacute natildeo eacute o revolver das pupilas ou algo que o valha pois isso os quadruacutepedes tambeacutem fazem Aqueles que do ceacuteu natildeo enxergam senatildeo o azul e da terra senatildeo o poacute satildeo semelhantes aos quadruacutepedes e ateacute mesmo inferiores a eles e mais estuacutepidos pois tal como disse Deus [no Alcoratildeo] ldquoeles tecircm coraccedilotildees com os quais natildeo compreendem e tecircm olhosrdquo e completou ldquoesses satildeo como gado e ainda mais extraviadosrdquo O que se pretende com o ldquoolharrdquo eacute a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis a observaccedilatildeo dos sensiacuteveis e a indagaccedilatildeo acerca da sabedoria [que os rege] bem como o que lhes sucede a fim de chegar agrave sua verdade pois eles satildeo o motivo dos prazeres mundanos e das venturas do aleacutem Foi por isso que o profeta [Muhammad] disse ldquoOacute Deus mostre-me as coisas tais como satildeordquo e toda vez que nelas prestava atenccedilatildeo se tornava mais iluminado inspirado e protegido por Deus Foi por isso que ele tambeacutem disse ldquoReflitam sobre a criaccedilatildeo de Deusrdquo E a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis natildeo eacute proporcionada senatildeo a quem tenha experiecircncia com os saberes e as matemaacuteticas e apoacutes o aperfeiccediloamento do caraacuteter e o polimento da alma Nesse momento entatildeo se lhe abre a clarividecircncia e ele enxerga em meio agrave totalidade do que eacute espantoso aquilo que visto parcialmente seria incompreensiacutevel e que se fosse narrado a outrem o deixaria desconfiado Como eacute excelente quem disse

ldquoOuvi algo espantoso que eu considerava um espectro do sono ou deliacuterio de um contomas quando o analisei percebi sua verdade e desde entatildeo jaacute vi milhares destas liccedilotildeesrdquo

Tais reflexotildees servem logo de saiacuteda para uma indagaccedilatildeo seria ra-zoaacutevel falar em elementos ldquosobrenaturaisrdquo nas Noites Sobrenatural sa-bemo-lo eacute ldquomaacutegicordquo estaacute fora das leis naturais ou a elas se impotildee E as ldquoleis naturaisrdquo pertencem obviamente ao domiacutenio da ciecircncia Estamos diante portanto de um conceito historicamente mutaacutevel Quando numa histoacuteria qualquer das Noites (ou de qualquer outro conjunto narrativo da

eacutepoca) aparece um gecircnio aprisionado haacute seacuteculos pelo rei Salomatildeo uma ponderaccedilatildeo a se fazer eacute como reagiria um leitor ou ouvinte do seacuteculo XIV por exemplo a isso Embora o fato certamente lhe fosse espantoso e admiraacutevel isso natildeo o tornaria em absoluto ldquosobrenaturalrdquo dado que semelhante ocorrecircncia fazia parte do horizonte de expectativas e possi-bilidades de entatildeo Era possiacutevel ponto Logo natildeo era sobrenatural Mas claro tratava-se de criaturas por assim dizer ldquosobre-humanasrdquo isto eacute cuja forccedila superava em muito a do ser humano Em todo caso a expressatildeo ldquosobrenaturalrdquo deve aqui ser tomada cum grano salis

Mas retomemos o processo de deflagraccedilatildeo das Noites eacute uma nar-rativa que constitui os seus receptores preferenciais como que os tipifi-cando o rei Shahriyar e a menina Dunyazad um molde pronto e outro inacabado De um lado a recepccedilatildeo experiente que extrai liccedilotildees cuida-dosa prevenida moldada pelo muito que vivenciou previamente (natildeo se deve olvidar que o grau zero de psicologia das Noites faz com que os seus personagens sejam constituiacutedos por suas experiecircncias apenas) do outro a recepccedilatildeo descuidada quase inconsequente (ldquoque histoacuteria diver-tidardquo afirma ela a todo instante mesmo quando se narram as maiores atrocidades) e em certo sentido ldquopurardquo pois livre de prevenccedilotildees

A propoacutesito a narrativa tambeacutem constitui a sua narradora Para aleacutem de sua mera articulaccedilatildeo oral ela possui uma histoacuteria que excluin-do-lhe o proacuteprio corpo e em certa medida lhe ocultando a feminilidade daacute-lhe todos os contornos de saacutebia descrevendo os livros que lera e a forma como os entendeu

Contudo do ponto de vista estrito da loacutegica que se impotildee agrave narra-dora Shahrazad sua irmatilde Dunyazad natildeo passa de um simulacro de re-cepccedilatildeo uma vez que o receptor preferencial eacute o rei Shahriyar seu marido de cuja boa vontade em uacuteltima instacircncia depende a continuaccedilatildeo da sua vida Com isso tem-se um receptor que rei e marido se relaciona conco-mitantemente agrave arte de governar de um lado e agrave arte de amar de outro lado e em cujos acircmbitos ele se vecirc em maus lenccediloacuteis sua presumiacutevel defi-ciecircncia na arte de amar aqui entendida em sentido lato torna-o viacutetima de adulteacuterio (que ele tambeacutem praticaraacute a seguir vitimando outra criatura igualmente eacute o que se supotildee inaacutebil nessa arte) e como consequecircncia as-sassino de mulheres o que evidencia uma outra deficiecircncia sua agora na arte de governar Estamos portanto diante de uma personagem deficien-te nesses dois quesitos fundamentais para a sua constituiccedilatildeo enquanto tal

Descobrir-se viacutetima de adulteacuterio faz o rei Shahriyar sair vagando pelo mundo acompanhado de seu irmatildeo mais novo e menos poderoso Shahzaman tambeacutem vitimado pela mesma desdita Ambos se encontram com a mulher de um gecircnio a qual os obriga a possuiacute-la sexualmente De uma soacute tacada colaboram para aumentar o nuacutemero de viacutetimas da mesma infacircmia que os atingira descobrindo na proacutepria carne o que a proacutepria mulher do gecircnio lhes enuncia os desejos femininos satildeo tatildeo inevitaacuteveis quanto o destino Essa amarga revelaccedilatildeo os espanta e assombra mais do que a presenccedila do gecircnio que simplesmente os assusta pois se trata de criatura sobre-humana cujo poder era imensamente superior ao deles

A primeira histoacuteria contada por Shahrazad para a sua dupla de ouvin-tes conteacutem em seu bojo mais trecircs histoacuterias Em resumo eacute a histoacuteria de um mercador inocente ameaccedilado por um ser monstruososobrenaturalsobre-humano e que acaba salvo por trecircs velhos que lhe contam histoacuterias sobre seres tambeacutem monstruosossobrenaturaissobre-humanos Tais histoacuterias satildeo consideradas ldquodivertidasrdquo por Dunyazad ao passo que o rei Shahriyar demonstra preocupaccedilatildeo com o seu desfecho o que se deve agrave analogia dessa histoacuteria com a situaccedilatildeo vivida por ele por Shahrazad e pelas mulheres que ele jaacute mandou matar E a analogia esse jogo de espelhamento das realidades do mundo eacute em si mesmo muito mais espantosa e assombrosa do que a existecircncia de seres sobre-humanos e a ocorrecircncia de eventos sobrenaturais

Outra histoacuteria significativa para os propoacutesitos desta breve explana-ccedilatildeo eacute a do carregador e das trecircs damas de Bagdaacute situada entre as noites 28 e 69 do ramo siacuterio Nela se acumulam os temas da obscenidade e do sobrenatural Um humilde carregador do mercado de Bagdaacute vai parar na mansatildeo de trecircs irmatildes beliacutessimas jovens e pelo visto solteiras Apoacutes a ocorrecircncia de praacuteticas obscenas de grau vaacuterio entre eles surgem agrave porta da casa trecircs dervixes caolhos e logo em seguida o califa Harun Arrashid em pessoa com seu vizir Jaacutelsquofar e seu escravo Masrur todos os trecircs disfar-ccedilados de mercadores Como seria de se esperar cada um dos dervixes tem a sua histoacuteria para narrar Natildeo vou resumi-las aqui mas direi que na histoacuteria do primeiro dervixe os elementos sobrenaturais aparecem mas natildeo satildeo determinantes para o desfecho Na histoacuteria do segundo dervixe o sobrenatural se mostra fundamental para o desfecho E na histoacuteria do terceiro dervixe a accedilatildeo humana eacute mais determinante do que o sobrenatural Em seguida das trecircs irmatildes duas contam suas histoacuterias a primeira das quais natildeo conteacutem elementos sobrenaturais ao passo que

na segunda o sobrenatural estaacute na metamorfose No final o califa inter-veacutem investido da sua funccedilatildeo de califa propriamente dita e natildeo mais sob disfarce e entatildeo todas as coisas satildeo repostas em seus devidos lugares ficando aiacute evidente que o texto o constitui como o governante ideal que exerce com a mesma eficaacutecia o domiacutenio sobre o mundo material e sobre o mundo sobrenatural ou seja das coisas sobre-humanas

Em seguida narra-se a histoacuteria das trecircs maccedilatildes que natildeo apresen-ta nenhum elemento sobrenatural limitando-se a mostrar a extrema crueldade e injusticcedila de que os homens satildeo capazes quando agem sob o domiacutenio da paixatildeo desenfreada A vida do elemento deflagrador disso tudo um escravo eacute trocada por uma narrativa a dos vizires Nuruddin e Badruddin noites 72-101 na qual o sobrenatural conquanto ocorra com intensidade tem importacircncia secundaacuteria quando comparado com as analogias que ndash estas sim ndash satildeo fundamentais e das quais decorre todo o ldquoespantosordquo e ldquoassombrosordquo dessa histoacuteria

Em seguida tem-se a histoacuteria do corcunda do rei da China noites 102-170 cujas peripeacutecias satildeo notaacuteveis O corcunda eacute morto aparente-mente pela accedilatildeo de um alfaiate que incrimina um meacutedico judeu que por sua vez incrimina um despenseiro muccedilulmano que por sua vez in-crimina um corretor cristatildeo Uma porccedilatildeo de eventos que seria ocioso narrar coloca todos esses homens diante do sultatildeo o qual encolerizado com a perda do seu bufatildeo predileto exige que lhe contem histoacuterias tatildeo espantosas quanto a da sua morte Seguidamente o corretor cristatildeo de-pois o despenseiro muccedilulmano e finalmente o meacutedico judeu contam as suas histoacuterias as quais satildeo consideradas insuficientes e rejeitadas pelo sultatildeo que se limita a dizer a cada um ldquoNatildeo essa sua histoacuteria natildeo eacute es-pantosa como a do corcundardquo Nenhuma das trecircs narrativas observe-se conteacutem nem sobrenatural nem analogias Eacute somente a uacuteltima narrativa do alfaiate ndash que com efeito fora o verdadeiro responsaacutevel pela morte do corcunda ndash repleta de peripeacutecias e de subhistoacuterias que agrada ao sultatildeo e o leva a perdoaacute-los pela suposta morte do corcunda

A avaliaccedilatildeo do sultatildeo pode ser tambeacutem tomada como um guia dos princiacutepios que em uacuteltima instacircncia regiam a valorizaccedilatildeo ou natildeo de uma dada narrativa no contexto das Noites Natildeo seraacute aqui possiacutevel nem se-ria razoaacutevel resumir tais histoacuterias e nos limitaremos a observar que no caso das trecircs narrativas rejeitadas pelo sultatildeo ndash e consequentemente por ele consideradas sem qualidade ndash todas consistem naquilo que hoje

podemos chamar grosso modo de narrativa ldquorealistardquo na qual os eventos se datildeo numa pura relaccedilatildeo de sucessividade natildeo mais Essa pura sucessivi-dade era entatildeo considerada banal e insossa incapaz de levar a surpresa do espantoso e do assombroso ao espiacuterito dos ouvintes Como comparaccedilatildeo seraacute uacutetil pensar na narrativa que antecede a histoacuteria do corcunda a supra-citada histoacuteria dos dois vizires irmatildeo Nuruddin e Badruddin bem como na narrativa que sucede as trecircs fracassadas contada pelo alfaiate

A qualidade da narrativa dos dois vizires reside na incidecircncia ao lado da sucessividade que se espera de qualquer narrativa da simultaneidade Os eventos se datildeo de maneira sucessiva e simultacircnea e tal simultaneidade se reveste de dois aspectos a planejada fruto da urdidura humana e a aleatoacuteria fruto da accedilatildeo do destino Eacute preciso de qualquer modo ler essa histoacuteria em sua totalidade para perceber tal relaccedilatildeo E na histoacuteria narrada pelo alfaiate no interior da qual estaacute a do barbeiro e dos seus seis irmatildeos o que sobressai para aleacutem da simultaneidade verificaacutevel na sucessivida-de dos eventos narrados eacute tambeacutem a repeticcedilatildeo e a acumulaccedilatildeo freneacuteti-ca das peripeacutecias Disso resulta que da perspectiva das Noites o melhor rendimento narrativo estaraacute na exploraccedilatildeo da sucessividade temporal previsiacutevel em qualquer narraccedilatildeo de eventos acompanhada da simulta-neidade (sempre posta em analogia) desses eventos tudo isso na maior quantidade possiacutevel para gerar os efeitos de acumulaccedilatildeo e de repeticcedilatildeo que parecem ser tatildeo apreciados pelos ouvintes e leitores da eacutepoca Tem-se entatildeo que o espantoso e o assombroso de tais narrativas natildeo se encon-tram exatamente nos eventos narrados mas sim na sua disposiccedilatildeo o que faz da proacutepria teacutecnica narrativa a fonte de todos os espantos e de todos os assombros os quais por sua vez satildeo a mateacuteria mesma das reflexotildees do homem sobre a sua condiccedilatildeo e seu mundo consistindo enfim naquilo que nos faz humanos e nas palavras de Alqazwiacuteni vai aleacutem do azul do ceacuteu e da poeira da terra diferenciando-nos dos quadruacutepedes e de outras bestas que infestam nas mais variadas formas o planeta

Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford

Alfredo Cordiviola(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Em uma discreta rua do bairro de Kensington em Londres uma discreta casa conserva a memoacuteria de Frederick Leighton Membro de uma famiacutelia favorecida por sua riqueza e por seus viacutenculos com a aris-tocracia britacircnica Leighton chegou a ser um dos pintores mais consa-grados da eacutepoca vitoriana Honrado com o tiacutetulo de Lord pela rainha e com vaacuterios precircmios nos salotildees anuais de pintura presidente da Royal Academy of Arts Leighton passou longas temporadas de formaccedilatildeo em Roma e em Paris e fez numerosas viagens particularmente pelos pa-iacuteses aacuterabes Esteve na Argeacutelia no Marrocos em Egito no Liacutebano na Turquia da sua viagem a Siacuteria em 1873 trouxe uma magniacutefica coleccedilatildeo de azulejos dos seacuteculos XV e XVI que poucos anos depois serviriam para transformar uma das partes da sua casa em um espaccedilo encantado fruto de outras dimensotildees e de outros mundos

A casa de Kensington foi sua residecircncia e seu estuacutedio tambeacutem um lugar de reclusatildeo para um homem solitaacuterio que cultivava a privacidade e o recato Nesse espaccedilo em 1877 Leighton manda construir o Arab Hall um suntuoso recinto pensado para albergar sua vasta coleccedilatildeo de objetos de arte e curiosidades acumulados em mais de vinte anos de excursotildees por terras distantes Com seus azulejos de Damasco e outras peccedilas tra-zidas de longe (algumas delas aportadas por seu amigo Richard Burton o explorador e tradutor das Mil e uma noites) o Hall foi desenhado pelo arquiteto George Aitchison Tatildeo consagrado pelas instacircncias oficiais como seu cliente Aitchison seria um professor conceituado e presidente do Royal Institute of British Architects mas natildeo se dedicava aos projetos domeacutesticos era especialista em construir os grandes templos que o enge-nho vitoriano e a circulaccedilatildeo do capital demandavam como estaccedilotildees de trem cais de embarque e armazeacutens Neste caso contou com a colaboraccedilatildeo

de destacados ceramistas escultores e artesatildeos que se encarregaram das colunas dos capiteacuteis dos frisos das gelosias e das luminaacuterias que com-punham o cenaacuterio O modelo a ser seguido e livremente adaptado na construccedilatildeo do pavilhatildeo era a Sala della fontana de La Zisa um palaacutecio do seacuteculo XII situado em Palermo na Siciacutelia No sul italiano La Zisa era um produto das muacuteltiplas influecircncias (gregas bizantinas aacuterabes normandas longobardas) que atravessaram o espaccedilo mediterracircneo ao longo dos seacute-culos Na Inglaterra o Hall imaginado por Leighton era uma fantasia ar-quitetural que revelava um gosto de eacutepoca e a evocaccedilatildeo de um lugar de muitos lugares de nenhum lugar denominado ldquoOrienterdquo

Leighton passou os uacuteltimos trinta anos da sua vida na casa rodea-do pela disciplinada beleza das reminiscecircncias chinesas japonesas in-dianas e principalmente aacuterabes que se multiplicavam pelos cocircmodos Objetos moacuteveis e decoraccedilotildees naturalizavam o exotismo e criavam rea-lidades que estavam igualmente distantes do Cairo ou de Sind como da densa atmosfera da industrializaccedilatildeo vitoriana Iacutentimas e privadas essas realidades natildeo eram muito diferentes daquelas que em grande escala eram criadas por essa espetacular invenccedilatildeo do seacuteculo XIX a Exposiccedilatildeo Universal Paraiacutesos da fantasmagoria lugares de peregrinaccedilatildeo para a mercadoria fetiche como definia Walter Benjamin as Exposiccedilotildees Universais constituem a partir do grandioso evento celebrado no Crystal Palace de Londres em 1851 o magno teatro onde se articulam os modos do progresso e da teacutecnica As Exposiccedilotildees reuacutenem o exoacutetico e o visionaacuterio a invenccedilatildeo e a ciecircncia o cataacutelogo das riquezas naturais a serem exploradas pela astuacutecia humana e os curiosos ornamentos e sin-gularidades que as periferias proporcionam Satildeo as vitrines do Impeacuterio onde o Impeacuterio se reconhece e se legitima como motor da Histoacuteria e como garante da ordem mundial Uma casa como a de Leighton pode ser vista como uma versatildeo em miniatura para consumo privado e se-leto desses grandes espetaacuteculos O espaccedilo domeacutestico exclui por defini-ccedilatildeo a participaccedilatildeo das massas e natildeo estaacute pautado pelas maravilhas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica como as feacuterias universais mas pelos usos da arte determinados pelo criteacuterio esteacutetico do colecionador Obedece contudo a um mesmo princiacutepio importar o Outro que eacute trazido de longe como passado convertido em reliacutequia Importar para resignificar o tempo pre-sente e para convalidar assim em acircmbitos amplos ou restritos as hie-rarquias geopoliacuteticas que regem a produccedilatildeo de sentidos na metroacutepole

Essas apropriaccedilotildees de um Oriente transido pela convenccedilatildeo e trans-formado em Outro natildeo obedecem por certo a uma invenccedilatildeo de Leighton e distam muito de ser exclusividade da expansatildeo vitoriana Pelo contraacute-rio o Arab Hall pode ser visto como um exemplo emblemaacutetico de um vasto processo que tinha comeccedilado muito antes e que nesse momento da segunda metade do seacuteculo XIX jaacute estava plenamente consolidado no imaginaacuterio ocidental Com a expansatildeo imperial (inglesa e francesa em particular) e com os fluxos econocircmicos e culturais mobilizados pelo co-lonialismo essa profusa porccedilatildeo do globo que se estende de Tanger ateacute Damasco jaacute vinha despertando ao longo do seacuteculo anterior todo tipo de fasciacutenios e de espantos na cosmovisatildeo europeia Esse incerto Oriente (que podia comeccedilar tambeacutem em Veneza na Espanha na Greacutecia) jaacute fora e con-tinuaria sendo incessantemente descrito por discursos imagens e pres-supostos para consumo domeacutestico das esferas metropolitanas Discursos e imagens que enquanto ampliavam o nuacutemero de informaccedilotildees dados e referecircncias impunham tambeacutem um prisma que delimitava e confirmava as perspectivas e fantasias preestabelecidas Cada vez mais esse Oriente setecentista significava barbaacuterie primitivismo misteacuterio sensualidade in-dolecircncia Nessa trama de postulados e de intervenccedilotildees (que serviriam de antecedentes precisos para a devoccedilatildeo romacircntica e para a imaginaccedilatildeo vitoriana) estatildeo inseridos acontecimentos muito diversos que por sua vez emitem intensas reverberaccedilotildees que seratildeo outra vez recicladas e reinven-tadas em outros domiacutenios Acontecimentos mais ou menos transcenden-tais mais ou menos influentes e tatildeo diversos entre si como a traduccedilatildeo das Mil e uma noites feita a partir de diversos manuscritos antigos e de narra-tivas provavelmente inventadas ou apoacutecrifas por Antoine Galland entre 1704 e 1707 ou as teorias sobre a Histoacuteria de Hegel as escavaccedilotildees arque-oloacutegicas em Palmyra as maquinaccedilotildees de Voltaire as peccedilas de porcelana ilustradas com reminiscecircncias turcas e as pinturas de Van Mour sobre a vida no Impeacuterio Otomano as elucubraccedilotildees dos savants que participaram nas campanhas napoleocircnicas no Egito a odalisca de Ingres E tambeacutem o Vathek de William Beckford

Nascido em Wiltshire em 1760 no seio de uma aristocraacutetica famiacutelia que gerenciava vastas plantaccedilotildees de accediluacutecar na Jamaica Beckford cumpre as etapas caracteriacutesticas da sua classe (educaccedilatildeo esmerada fluecircncia em liacutenguas breve incursatildeo pela poliacutetica participaccedilatildeo no Grand Tour) poreacutem eacute mais conhecido por suas excentricidades que definiam tanto sua vida

privada como tambeacutem sua trajetoacuteria de colecionador literato compositor musical e propulsor de curiosos projetos arquitetocircnicos Destes o mais curioso foi a construccedilatildeo na propriedade familiar da Fonthill Abbey uma fantasia neogoacutetica desenhada pelo arquiteto James Wyatt Construiacuteda com extrema celeridade e inapropriados materiais durante os primeiros anos do seacuteculo XIX a imponente abadia da qual soacute resta uma miacutenima parte foi um monumento de fragilidade que apenas resistiu alguns anos antes de colapsar definitivamente Mais duradoura foi uma torre neoclaacutes-sica em Bath a Landsdown Tower erigida como refuacutegio para si e para suas copiosas coleccedilotildees A torre eacute o uacutenico exemplo dos devaneios ediliacutecios de Beckford que ainda sobrevive Hoje alberga um museu no cemiteacuterio anexo se encontra o tuacutemulo de granito do autor

Heterodoxo e cosmopolita Beckford faleceu em 1844 O obituaacuterio do Bath and Cheltenham Gazette informa que ldquofor more than 40 years he has relinquished Parliamentary honours and other public duties devoting him-self to retirement but not unprofitablyrdquo1 Poderia quiccedilaacute ter sido somente lembrado como um dos tantos diletantes de uma eacutepoca propiacutecia para ex-travagacircncias e hedonismos Mas escreveu o Vathek uma obra lida durante deacutecadas com avidez (entre muitos outros por Byron Keats Swinburne e Mallarmeacute) que aprimorou definitivamente sua fama Foi redigida em pou-cos dias e em francecircs no ano de 1782 e traduzida ao inglecircs em 1786 por Samuel Henley como An Arabian Tale from a Unpublished Manuscript ndash um manuscrito tatildeo imaginaacuterio como as aventuras narradas no romance que ficou rapidamente conhecido pelo tiacutetulo do seu protagonista Como Al-Whatiq o califa dos abaacutessidas do seacuteculo IX em que a personagem estaacute livremente inspirada o califa Vathek estava possuiacutedo por uma vontade ab-soluta de conhecimento que foi como para Fausto primeiro uma virtude e depois sua perdiccedilatildeo Movido por esse afatilde insaciaacutevel o califa renega do Islatilde constroacutei uma torre para adivinhar os segredos do ceacuteu pratica toda classe de maldades e excessos Horrores indefinidos prodiacutegios artes maacutegicas enti-dades malignas e paisagens abissais se multiplicam no seu caminho Viaja procurando algo que natildeo haveraacute de achar por lugares fantaacutesticos e sinistros Apesar de tudo ainda recebe uma uacuteltima chance de se redimir que desper-diccedila A histoacuteria chega assim a um final inevitaacutevel como o narrador informa

1 Bath and Cheltenham Gazette May 8 1844 p 3 Disponiacutevel em Beckfordiana The William Beckford Website (httpbeckfordc18netbeckfordianahtml)

Thus the Caliph Vathek who for the sake of empty pomp and forbidden power had sullied himself with a thousand crimes became a prey to grief without end and remorse without mitigation2

Vathek acaba no inferno nesse inferno subterracircneo que Borges con-siderou o mais atroz de toda a literatura escrita ateacute entatildeo Lembremos que o autor argentino evoca infernos onde acontecem fatos atrozes como o de Dante mas os distingue de infernos que satildeo em si mesmos atrozes como este imaginado por Beckford Nesse sentido o compara com aquelas peculiares gravuras que Piranesi tinha elaborado alguns anos antes a seacuterie das Carceri dacuteinvenzione proacutedigas em estranhos ins-trumentos que parecem maacutequinas de torturas em corredores e esca-darias que natildeo levam a parte alguma em salas labiriacutenticas e em seres fantasmais que deambulam sem propoacutesito pelas sombras3

O breve e pobre resumo do romance que apresentamos no paraacute-grafo anterior omite os esplendores e surpresas as ironias e o erotis-mo que tanto cativaram os leitores mas pelo menos ajuda a instalar o Vathek na encruzilhada de duas tradiccedilotildees a goacutetica e a ldquoorientalistardquo O romance interpela ambas as mitologias e precisamente no modo em que as perpassa reside sua singularidade Passagens subterracircneas seres macabros tensotildees sexuais eventos sobrenaturais e horrores variados conformam a base da literatura goacutetica que se consagra no seacuteculo XVIII a partir da tremenda popularidade atingida pela obra de Horace Walpole O Castelo de Otranto (1764) O revival medievalista jaacute vinha se manifes-tando no paisagismo e na arquitetura em poucas deacutecadas particular-mente na Inglaterra mas tambeacutem na Franccedila na Alemanha e em outras partes da Europa o ldquogoacuteticordquo forneceria durante grande parte do XIX um mecanismo exemplar de reapropriaccedilatildeo e reinvenccedilatildeo de passados e de imaginaacuterias continuidades com o tempo presente Dos apoacutecrifos poemas de Ossian a Tennyson e Walter Scott de Ruskin aos preacute-rafa-elitas atraveacutes do goacutetico e seus apelos se invocava um tempo imutaacutevel em que prevaleciam a espiritualidade e os valores constantes os laccedilos de sangue e a prosaacutepia O goacutetico tambeacutem era um antiacutedoto que protegia

2 Beckford William Vathek Fourth Edition Revised and Corrected London Clarke 1824 p 227

3 Borges Jorge Luis ldquoSobre o Vathek de William Beckfordrdquo em Obras completas Buenos Aires Emeceacute 1986 (p 729-732)

tanto da insensiacutevel frieza das linhas retas cultivadas pelo neoclassicismo quanto das incertezas da industrializaccedilatildeo com suas obscuras paisagens urbanas dominadas pela maacutequina e o carvatildeo Tradiccedilatildeo monarquia na-cionalismo eram evidenciados em forma fantasmaacutetica pelas aboacutebadas pelas torres e agulhas pelos vitrais e pelos interiores altos e luminosos que obrigavam a elevar a visatildeo Natildeo eacute casual que o neogoacutetico passasse a adquirir um estatuto quase hegemocircnico na arquitetura da eacutepoca Nisto Walpole tambeacutem seria pioneiro ao dotar sua mansatildeo de Strawberry Hill com as caracteriacutesticas de outros tempos propiciando um estilo que iria se repetir ateacute a saciedade nas construccedilotildees civis do periacuteodo vitoriano Das Houses of Parliament desenhadas por Augustus Pugin um dos princi-pais expoentes do movimento ateacute os museus estaccedilotildees de trem igrejas e residecircncias particulares cada cidade parecia obrigada a ter seus mo-numentos neogoacuteticos Paradoxalmente essa invocaccedilatildeo do passado era a forma de ser modernos de estar plena e cabalmente inseridos no tempo que correspondia viver o tempo do impeacuterio e da naccedilatildeo triunfantes

Com sua fugaz abadia Beckford tambeacutem pratica esse gesto devocio-nal para o passado Essa construccedilatildeo fazia parte do theatrum mundi insta-lado nos seus domiacutenios de Fonthill A extensa propriedade servia como palco ideal para criar uma aura de privacidade que fomentava os rumores e as censuras da sociedade e para reunir uma das coleccedilotildees de obras de arte mobiacutelia e livros raros mais importantes da sua eacutepoca A abadia livre-mente influenciada pelas catedrais que tanto admirara nas suas estadias em Portugal pode ser vista tambeacutem como uma peccedila de ficccedilatildeo como um reservatoacuterio de tesouros e suntuosidades que concretizava e tornava vi-siacuteveis as incontaacuteveis maravilhas do palaacutecio do califa Vathek A simbiose entre as fantasias goacuteticas e orientais que constituiacuteam o arcabouccedilo do ro-mance se materializava assim mais uma vez aquela simbiose de palavras agora estava feita de pedras ornamentos e ostentaccedilotildees em fim

Eacute evidente que se Vathek incorpora e prefigura a vocaccedilatildeo pelo goacutetico por sua temaacutetica sua atmosfera e seus personagens manifesta tambeacutem um iacutempar fasciacutenio pelo Oriente Um fasciacutenio que se refletia no modo de vida e nas preferecircncias esteacuteticas do seu autor mas que natildeo obedecia ape-nas a um gosto iacutentimo nem a uma mera extravaganza Pelo contraacuterio do seacuteculo XVIII ao XIX esse interesse pelos orientes da imaginaccedilatildeo fa-zia parte do Zeitgeist e teria tatildeo longas repercussotildees como as produzidas pela redescoberta do goacutetico Se o Arab Hall de Leighton era um exemplo

concreto e superabundante desse interesse eacute tambeacutem a prova de que o Oriente evocado pelas andanccedilas e o traacutegico final de Vathek continuava mais vivo do que nunca vaacuterias deacutecadas depois da apariccedilatildeo do romance Mas seria um erro pensar que se tratava simplesmente de uma moda ou de uma frivolidade passageira Se neogoacuteticos e orientalismos deixam sua marca na literatura nos edifiacutecios nos haacutebitos nos artefatos e nas artes visuais eacute porque fornecem o mais apropriado dos espelhos onde a eacutepoca se vecirc a si mesma do modo em que precisa se ver hierarquizando passados legitimando presentes e subalternizando o Outro

Nessas composiccedilotildees de identidades e de diferenccedilas cabe ao ldquoOrienterdquo cumprir um papel fundamental Os escritos de Edward Said4 muito tecircm contribuiacutedo para mapear e desmontar os fundamentos epistemoloacutegicos que sustentam essas composiccedilotildees Criticado por enfatizar dicotomias e praticar reducionismos natildeo haacute como negar que Said constitui referecircncia inevitaacutevel quando se trata de reelaborar a mecacircnica do mesmo e do outro que define saberes e praacuteticas emanadas na oacuterbita dos imperialismos Uma mecacircnica que adquire conotaccedilotildees peculiares no contexto da modernidade iluminista quando a ldquoEuropardquo se consagra a si mesma como estaacutegio mais avanccedilado da evoluccedilatildeo uniacutevoca e linear da espeacutecie humana e a globalizaccedilatildeo depende do comeacutercio escravagista o racismo comeccedila a ser legitimado pelo discurso cientiacutefico e expediccedilotildees como a de Cook e Bouganville parecem completar a inspeccedilatildeo e o ldquodescobrimentordquo de todo o planeta Uma mecacircnica contudo que remete a tempos conflitos e dominaccedilotildees anteriores e que no seacuteculo XVIII jaacute contava com uma longa histoacuteria

A partir dos desdobramentos dessa longa histoacuteria (que eacute a histoacuteria da expansatildeo do ldquoOcidenterdquo pelo Mediterracircneo e pelo mundo) certas ideias sobre outras regiotildees e outras culturas do planeta vatildeo lentamente se legitimando mediante as mais diversas descriccedilotildees e representaccedilotildees Versotildees oferecidas pelos relatos dos viajantes pelos desenhos dos car-toacutegrafos pelas definiccedilotildees dos historiadores e teoacutelogos pelas paraacutebolas e ficccedilotildees contribuem para forjar diversas imagens homogecircneas das terras e das populaccedilotildees situadas nos antiacutepodas de locais de enunciaccedilatildeo que se concebem a si mesmos por mandato divino por dominacircncia militar ou por ambas as coisas como expressatildeo de uma superioridade civilizatoacuteria

4 Em particular Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001) e Cultura e imperialismo (Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995) O primeiro foi originalmente publicado em 1978 e o segundo em 1993

Essas imagens que traccedilam fronteiras e estabelecem oposiccedilotildees e anti-nomias haveratildeo de adquirir uma dimensatildeo muito mais hegemocircnica e de alcance global quando a partir do seacuteculo XV a ocidentalizaccedilatildeo passa a ser o motor central da geopoliacutetica planetaacuteria A expansatildeo europeia e a con-solidaccedilatildeo de uma modernidade capitalista intimamente vinculada com o colonialismo redefinem mais uma vez e com profundas consequecircncias ulteriores as hierarquias entre as partes do mundo Seraacute esse um mun-do definido e naturalizado como assimeacutetrico e marcadamente dicotocircmi-co pelo conjunto de discursos e praacuteticas que configuram isso que Aniacutebal Quijano denomina colonialidade Enquanto o colonialismo (o efetivo do-miacutenio poliacutetico e econocircmico) eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da colonialida-de esta garante a produccedilatildeo e a perduraccedilatildeo dos pressupostos simboacutelicos e epistemoloacutegicos que asseguram e consolidam a dominaccedilatildeo A coloniali-dade estabelece matrizes de poder relativas agrave produccedilatildeo de conhecimento agraves relaccedilotildees de trabalho e aos viacutenculos intersubjetivos que excedem a de-finiccedilatildeo de soberania de uma naccedilatildeo sobre outra e que perduram mesmo depois dos processos de independecircncia que marcam a histoacuteria das antigas colocircnias durante os seacuteculos XIX e XX Assim o colonialismo antecede agrave colonialidade e propicia sua disseminaccedilatildeo pelas sociedades mas a colo-nialidade natildeo desaparece com a ruptura da ordem imperial nem com a emergecircncia do estado-naccedilatildeo autocircnomo Desta forma uma noccedilatildeo como a de ldquopureza de sanguerdquo que subalterniza os indiviacuteduos e lhes impotildee um lugar determinado na trama social e a ideia de ldquoeurocentrismordquo que ex-pande a subordinaccedilatildeo no plano global satildeo dois dos instrumentos que a colonialidade inserta no sistema-mundo O racismo impotildee um criteacuterio de classificaccedilatildeo universal cujo fundamento uacuteltimo eacute o eurocentrismo Como afirma Quijano

El eurocentrismo por lo tanto no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o soacutelo de los dominantes del capitalismo mundial sino del conjunto de los educados bajo su hegemoniacutea Se trata de la perspectiva cog-nitiva producida en el largo tiempo del conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonialmoderno y que naturaliza la experiencia de las gentes en este patroacuten de poder5

5 Quijano Anibal ldquoColonialidad del Poder y Clasificacioacuten Socialrdquo em Castro-Goacutemez Santiago Grosfoguel Ramoacuten (eds) El Giro Decolonial reflexiones para una di-versidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo global Bogotaacute Pontificia Universidad Javeriana 2007 (p93-126 p 94)

O revivalismo goacutetico e o deslumbramento orientalista natildeo podem ser percebidos fora desses paracircmetros culturais impostos pelo eurocen-trismo e a expansatildeo do ldquoOcidenterdquo Os impeacuterios consolidados e emer-gentes se deixam seduzir por outros lugares e outros tempos enquan-to postulam um padratildeo de universalidade que atende a seus proacuteprios interesses O ldquoOrienterdquo as chinoiseries a seda o chaacute e a porcelana os enigmas e o algodatildeo da Iacutendia as estampas japonesas satildeo incorporados assim a um fluxo de apreciaccedilotildees e de demandas Seria injusto contudo supor que essas apropriaccedilotildees se reduzem agrave perpeacutetua fetichizaccedilatildeo da di-ferenccedila ou que satildeo uma simples consequecircncia da necessidade capitalista de abrir novos mercados Como em todo tracircnsito promovido pelas di-versas e progressivas mundializaccedilotildees da histoacuteria a operacionalizaccedilatildeo do perifeacuterico dentro das oacuterbitas centrais por um lado confirma o estereoacuteti-po e impotildee o recurso da miacutemica mas pode acabar tambeacutem provocando uma ampliaccedilatildeo das fronteiras do cognosciacutevel um elogio da margem e um questionamento do monologismo

Algo disto haacute no Vathek poderia ter sido um de tantos romances previsiacuteveis e acaba sendo um exemplo de heterotopia que parece implo-dir desde dentro mesmo das convenccedilotildees goacuteticas e orientalistas os luga-res comuns de toda enunciaccedilatildeo Talvez seja um exerciacutecio feito por um excecircntrico ocioso e libertino uma obra quiccedilaacute menor que na histoacuteria das letras represente como escreve Borges ldquothe perfume and suppliance of a minuterdquo Mas com sua cornucoacutepia de dicccedilotildees imagens e mitologias eacute tambeacutem um texto que foi replicado transformado e dissolvido em outras obras e por outros autores que no seacuteculo XIX ampliaram as pos-sibilidades da literatura e as possibilidades que a literatura dispotildee para inventar e descrever o real Algo do Vathek estaacute em Coleridge em de Quincey em Baudelaire em Burton em Wells Algo do Vathek perdura nos umbrosos neogoacuteticos de proviacutencia e no refinado sossego da casa de Leighton Ou nas vozes e expectativas que parecem ecoar diante de cada novo leitor das Mil e uma noites E tambeacutem nas conotaccedilotildees cer-tamente mais complexas e mais polissecircmicas que a palavra ldquoOrienterdquo foi adquirindo no mundo Natildeo eacute pouco para um mero romance que foi escrito em um lugar chamado Fonthill em trecircs dias e duas noites daquele remoto ano de 1782

O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente

Andreacute de Sena(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco Belvidera)

De maneira ostensiva ou praesentia in absentia eacute fato que o Oriente veio revelando vaacuterios de seus prismas jaacute nas pioneiras manifestaccedilotildees literaacuterias em acircmbito ocidental natildeo raras vezes fomentando incoacutegnitas O personagem Dioniso de As bacantes (406 aC) de Euriacutepides ndash apenas um dentre os vaacuterios exemplos que se poderia enumerar no espectro do mais puro aticismo ndash nos serviria de iacutecone para este precursor fasciacutenio que o meacutedio Oriente suscitou ainda nos tempos claacutessicos carnalizan-do os misteacuterios e belezas ora sedutores ora aterrorizantes da ldquoditosa Araacutebiardquo (Euriacutepedes 2004 p 220) Natildeo agrave toa eacute Dioniso ndash filho de Zeus mas educado por ninfas asiaacuteticas ndash o conhecido potencializador de ele-mentos maacutegicos e estranhos da fase heroica dos Hinos homeacutericos aos palcos traacutegicos da era de Peacutericles sem contar com sua presenccedila como motivo plaacutestico nos famosos vasos negros de figurinhas vermelhas A trageacutedia euripidiana apesar de propalar a noccedilatildeo de meacutetron de respei-to humano agraves hierarquias divinas estaacute repleta de acontecimentos que ensaiam a ruptura da propalada verossimilhanccedila associada agrave miacutemese aristoteacutelica veras fantasmagorias que vatildeo do controle telepaacutetico do deus em relaccedilatildeo ao coro das bacantes passando pelas sugestotildees do insoacutelito (terremotos incecircndios mutaccedilotildees fiacutesicas e efeitos oacuteticos que confundem os outros personagens) ateacute o elogio da licantropia

Se Pembroke (1998 p 356) afirma que as dinastias que precederam Zeus na Teogonia hesioacutedica teriam como provaacuteveis modelos mitos me-sopotacircmicos e anatoacutelicos por sua vez Momigliano (1998 p 184) argu-menta que foram os contatos com naccedilotildees orientais que deram impulso ao proacuteprio surgimento da historiografia grega Assim a ponte que vai do mythos ao logos na mundivisatildeo ocidental tem no Oriente um de seus encraves Natildeo eacute por outro motivo que Platatildeo nrsquoA repuacuteblica em meio agraves

discussotildees filosoacuteficas referentes agrave origem e essecircncia da Justiccedila vista como um bem em si natildeo prescindiraacute da utilizaccedilatildeo do mito ndash no caso um que tem a Liacutedia como cenaacuterio principal caminho atraveacutes do qual os gregos entraram em contato com o Oriente proacuteximo sua tirania riquezas e ma-gia ndash para ilustrar sua argumentaccedilatildeo repleto de elementos maravilhosos

A permissatildeo a que me refiro seria especialmente significativa se eles [o justo e o injusto] recebessem o poder que teve outrora segundo se conta o antepas-sado de Giges o Liacutedio Este homem era pastor a serviccedilo do rei que naquela eacutepoca governava a Liacutedia Certo dia durante uma violenta tempestade acom-panhada de um terremoto o solo fendeu-se e formou-se um precipiacutecio perto do lugar onde o seu rebanho pastava Tomado de assombro desceu ao fundo do abismo e entre outras maravilhas que a lenda enumera viu um cavalo de bronze oco cheio de pequenas aberturas debruccedilando-se para o interior viu um cadaacutever que parecia maior do que o de um homem e que tinha na matildeo um anel de ouro de que se apoderou depois partiu sem levar mais nada Com esse anel no dedo foi assistir agrave assembleacuteia habitual dos pastores que se reali-zava todos os meses para informar ao rei o estado dos seus rebanhos Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros virou sem querer o engaste do anel para o interior da matildeo imediatamente se tornou invisiacutevel aos seus vizinhos que falaram dele como se natildeo encontrasse ali Assustado apalpou novamen-te o anel virou o engaste para fora e tornou-se visiacutevel Tendo-se apercebido disso repetiu a experiecircncia para ver se o anel tinha realmente esse poder reproduziu-se o mesmo prodiacutegio virando o engaste para dentro tornava-se invisiacutevel para fora visiacutevel [] (Platatildeo 1999 p 44-45)

O mesmo fasciacutenio que jamais se desobrigou da atraccedilatildeo pelo estra-nho se aprofundaraacute ainda mais durante o culto periacuteodo alexandrino em que se conjugaram como nunca Ocidente e Oriente ateacute desembocar no fausto das cortes romanas o imperador Filipe (244-249 dC) era aacutera-be e como lembra Irwin (2008 p 26) uma das Saacutetiras de Juvenal acusa ironicamente esta influecircncia do Oriente no Ocidente na etapa latina ao afirmar que ldquoo rio Orontes [um rio na Siacuteria] veio desaguar no Tibrerdquo

Na Idade Meacutedia por exemplo os textos teoacutericos de Dante acusam a leitura e a influecircncia de Averroacuteis (um dos maiores comentadores de Aristoacuteteles) e Avicena As obras deste uacuteltimo comeccedilaram a ser traduzidas do aacuterabe ao latim em Toledo e refletiram-se em inuacutemeros outros livros gerados nas universidades de Oxford e Paris com o detalhe de que boa parte da ciecircncia islacircmica conforme Irwin (p 41) natildeo configuraria exata-mente lsquociecircnciarsquo como hoje a compreendemos muitos textos originais aacutera-bes eram dedicados agrave ldquoastrologia alquimia numerologia omplatoscopia

(adivinhaccedilatildeo a partir das rachaduras nos ossos calcinados de carneiros) geomancia (adivinhaccedilatildeo a partir de marcas na areia) haruspicaccedilatildeo (adi-vinhaccedilatildeo a partir de entranhas) e praacuteticas obscuras de natureza semelhan-terdquo O estudo da matemaacutetica aacuterabe servia para a arquitetura baliacutestica e engenharia mas tambeacutem como auxiliar da astrologia e todo um pensa-mento maacutegico ligado a uma natureza fantaacutestica que aceitava a existecircncia de talismatildes maacutegicos e receitas para venenos que podiam atuar a grandes distacircncias Segundo Irwin (p 42) o poliacutemata Abu Yusuf Yaqub ibn Ishaq Al-Kindi que viveu em Bagdaacute no seacuteculo IX era um dos autores mais lidos e admirados no periacuteodo medieval pelos saacutebios europeus e boa parte de sua obra se baseava em princiacutepios maacutegicos

Em De Radiis (ldquoSobre os raiosrdquo) tratado que sobreviveu [nos dias atuais] somente em sua traduccedilatildeo latina do seacuteculo XII Al-Kindi expocircs uma visatildeo essencialmente maacutegica do universo na qual radiaccedilotildees ocultas provenientes dos astros influenciavam os assuntos humanos Cada astro exercia uma in-fluecircncia sobre um grupo especiacutefico de objetos Embora os raios estelares fos-sem de suma importacircncia tudo no universo emitia raios Do mesmo modo segundo De Radiis as palavras possuiacuteam poderes maacutegicos especialmente se fossem proferidas sob conjunccedilotildees estelares particularmente favoraacuteveis e associadas ao uso de imagens talismacircnicas e ao sacrifiacutecio de animais com finalidade maacutegica [] Outras obras de al-Kindi que foram traduzidas trata-vam da astrologia e do poder de previsatildeo dos sonhos (p 42)

Tais prospecccedilotildees haveriam de influenciar o pensamento miacutestico e a sabedoria hermeacutetica de autores europeus da dimensatildeo de um Nicolau de Cusa (1401-1464) e um Pico della Mirandola (1463-1494) funda-mentais para a filosofia renascentista Do universo da teacutecnica ao plano das ideias a influecircncia aacuterabe foi decisiva e natildeo se pode perder de vista ainda a possibilidade de que a ciecircncia lsquomaacutegicarsquo registrada pela erudiccedilatildeo aacuterabe do medievo tambeacutem tenha se infiltrado em suas produccedilotildees liga-das ao orbe ficcional ndash ao menos tal como hoje o compreendemos

As tentativas proto-renascentistas de Toledo ndash mais proacuteximas do uni-verso da liacutengua portuguesa ndash plasmadas nas traduccedilotildees e difusatildeo da ciecircn-cia e alquimia aacuterabes na passagem da Alta para a Baixa Idade Meacutedia tive-ram ampla repercussatildeo no Ocidente Ainda segundo o orientalista Irwin (p 43) dada a quantidade de material ocultista sendo traduzida e estuda-da em Toledo a cidade acabou adquirindo uma reputaccedilatildeo para a feiticcedilaria e a magia negra (fato aludido por exemplo em liacutengua portuguesa no

teatro de Gil Vicente vide o Auto das fadas uma das peccedilas mais lsquofantaacutes-ticasrsquo da produccedilatildeo vicentina de 1511) E natildeo eram apenas textos ocultis-tas que vinham sendo decodificados em Toledo sabe-se que na corte de Afonso X o Saacutebio havia uma traduccedilatildeo de contos orientais maravilhosos pertencentes ao ciclo hindu do Panchatantra (200 aC) que provava a existecircncia naquele lugar de um puacuteblico aacutevido natildeo apenas pela poesia galaico-portuguesa especialmente a de cunho marianista mas tambeacutem pela fantasia orientalista Muitos autores do Ocidente influenciar-se-atildeo pelos estilos narrativos do Oriente a exemplo do catalatildeo Raimundo Luacutelio (1232-1315) autor de Blanquerna segundo Irwin (p 58) obra composta numa narrativa ldquodivaganterdquo ldquojuncada de faacutebulas e contos a maior parte dos quais parece derivar de originais aacuterabesrdquo conhecidos pelo ldquoencaixe de histoacuteriasrdquo e Bocaccio (1331-1375) cujo Decameratildeo apresenta diversos intertextos com o Livro das mil e uma noites

As contaminaccedilotildees intertextuais natildeo param por aiacute Eacute conheci-da a pletora miacutetica que a obra de viajantes como Sir John Mandeville Ludovico Varthema Marco Polo (que levou o Oriente para aleacutem do Oriente) e outros trouxe agrave luz do dia ainda no periacuteodo medievo cor-roborando mutatis mutandis na criaccedilatildeo de um Oriente maravilhoso gerador de outras regras naturais

Tais maravilhas descritivas chegavam inclusive a ser atestadas com as memorabilia coletadas durante as viagens e trazidas agrave Europa para cons-tituir as primeiras vitrines de maravilhas ou gabinetes de curiosidades precursores dos museus modernos nos seacuteculos XVII e XVIII ldquocoleccedilotildees de artefatos raros antiguidades e simulaccedilotildees de monstros pela arte da ta-xidermiardquo (Irwin p 66) O imaginaacuterio miacutetico orientalista tambeacutem estava presente na literatura em liacutengua portuguesa como eacute prova novamente a obra de Gil Vicente que situa seu monstro Monderigon da Comeacutedia sobre a divisa da cidade de Coimbra (1527) como oriundo dos ldquodesertos da Armecircniardquo e a estranha taccedila que D Duardos exibe e atraveacutes da qual en-canta Fleacuterida em Dom Duardos (1522) como vinda da Turquia

Somando-se outras inuacutemeras obras que constituiacuteram gecircneros hiacute-bridos entre as narrativas informativas de viagem e a ficccedilatildeo fantaacutesti-ca escritas por aventureiros (aventura no melhor sentido da palavra incluindo o literaacuterio) da eacutepoca renascentista que insistiam em revelar as espantosas maravilhas do Oriente (Giambattista Ramusio Samuel Purchas Jean Thenaud Pierre Belon Ogier Ghiselin de Busbecq Nicolas

de Nicolay Guillaume Postel etc) observa-se a gradual constataccedilatildeo da existecircncia concreta de um espaccedilo fiacutesico que parecia natildeo se submeter agraves leis naturais vigentes na banda ocidental Segundo Irwin (p 86)

O Oriente era superior ao Ocidente porque o paraiacuteso terrestre tinha se lo-calizado laacute [Postel] citava comprovaccedilotildees da excelecircncia oriental como por exemplo o borametz um arbusto oriental que dava cordeiros como frutos ou outra aacutervore oriental que produzia patildeo vinho seda vinagre e oacuteleo (Pico della Mirandola abrigava noccedilotildees vagamente semelhantes acerca do Oriente pois acreditava que o sol era mais forte na parte leste do mundo onde pro-duzia pedras preciosas perfumes leotildees tigres e elefantes)

Natildeo custa lembrar que os proacuteprios aacuterabes desenvolviam suas nar-rativas de viagem repletas de elementos sobrenaturais e maacutegicos tam-beacutem compondo gecircneros hiacutebridos e assegurando uma visatildeo e um anseio mais utoacutepicos (sendo a utopia atemporal mesmo que empiricamente localizaacutevel no tempo e no universo das ideias) do que propriamente a configuraccedilatildeo de um zeitgeist medievalrenascentista numa relaccedilatildeo de ontologia No tratado geograacutefico Peacuterola de espantos e singularidades de assombros observa-se a possibilidade de um oriente maacutegico aos proacute-prios aacuterabes associado agrave China Segundo Jarouche (2010 p 40) texto de autoria duvidosa cuja elaboraccedilatildeo se situa entre os seacuteculos XIV e XV traz a expressatildeo ldquoChina da Chinardquo semelhante a outra que aparece no Livro das mil e uma noites (ldquoNas peniacutensulas da Iacutendia e da Indochinardquo) revelando todo um imaginaacuterio ligado agraves regiotildees extremas do globo O proacuteprio Jarouche (2010 p 40) traduz trechos deste tratado numa nota de sua ediccedilatildeo das Noites nos quais podemos observar esta percepccedilatildeo de lsquoorientalismo dos orientaisrsquo tambeacutem eivado de histoacuterias maravilhosas

Quanto agrave China da China ela fica no fim do mundo a Oriente natildeo existindo depois dela senatildeo o mar oceano A capital da Grande China se chama Assilagrave As notiacutecias desse povo natildeo nos chegam devido agrave grande distacircncia e conta-se que o rei deles caso natildeo tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas natildeo eacute considerado rei E se o rei deles tiver muitos filhos e morrer seu reino natildeo seraacute herdado senatildeo por aquele que for o mais haacutebil na pintura e no desenho

Em seu excelente estudo intitulado Pelo amor ao saber (2006) que visou revelar um orientalismo diverso do olhar negativista sobre o tema a exemplo do proposto por Edward Said na obra Orientalismo (1978)

Robert Irwin analisou vaacuterias etapas histoacutericas e as leituras distintas que as mesmas propuseram em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves realidades poliacutetica soacutecio-econocircmica e antropoloacutegica dos povos aacuterabes mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave sua literatura Por exemplo a par de um crescente domiacutenio da liacutengua aacuterabe por parte dos filoacutelogos renascentistas e posteriormente iluministas observou-se tambeacutem a necessidade de compreender a rica literatura oriental (incluindo-se a persa) num amaacutelgama com os gecircne-ros e formas claacutessicas que vinham sendo retomados atraveacutes da imitatio classicista num momento em que as proacuteprias liacutenguas vernaacuteculas euro-peacuteias eram confrangidas pela superioridade cientiacutefica do latim

Quando nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XVIII William Jones traduziu obras aacuterabes e persas com o objetivo de apresentaacute-las a um puacuteblico inglecircs era inevitaacutevel que tentasse adequar as estrofes orientais aos gecircneros claacutessicos e assim ele se entusiasmava com ldquopastoraisrdquo ldquoeacuteclogasrdquo persas e assim por diante [] Por outro lado quem estava entediado com as grandes obras da antiguidade e achava que as artes e os conhecimentos dos antigos gregos e romanos tinham sido supervalorizados (e esses eram uma minoria vocife-rante) agarrava-se agrave literatura oriental como algo que fornecia um tesouro de novas imagens modos de expressatildeo e heroacuteis que poderiam proporcionar uma fuga agraves restriccedilotildees dos precedentes claacutessicos (Irwin p 103)

Contudo aos poucos e apesar da normatividade tiacutepica destas eacutepocas uma nova percepccedilatildeo de que outros gecircneros e formas literaacuterias poderiam ampliar a visatildeo artiacutestica foi se consolidando entre o puacuteblico leitor culto Na fase iluminista a descoberta do Livro das mil e uma noi-tes pelo Ocidente associou-se entre outros exemplos agrave assimilaccedilatildeo de Shakespeare por Lessing e de Rousseau por Herder fazendo brotar os primeiros veios das correntes preacute-romacircnticas Isso eacute corroborado por Kidson (p 418) quando afirma

Essa mudanccedila de fidelidade coincidiu com uma alteraccedilatildeo resoluta nas refle-xotildees sobre o que eacute ou natildeo eacute arte e sobre seu lugar no espectro da experiecircncia humana Ateacute o seacuteculo XVIII a teoria artiacutestica preocupara-se de modo mais ou menos exclusivo com a noccedilatildeo do ideal que em certo sentido se traduzi-ria como a pretensatildeo de conhecimento do mundo

Foi entatildeo com o despertar do que este criacutetico chama de ldquoo ele-mento subjetivo da experiecircncia esteacuteticardquo que o maravilhosofantaacutes-tico oriental veio se consolidar peremptoriamente no imaginaacuterio

artiacutestico do Ocidente Daacute-se uma aparente contradiccedilatildeo apoacutes o livro de Winckelmann sobre a cultura claacutessica ldquoa curiosidade que jaacute esta-va levando os europeus a se lanccedilarem em busca da arte grega genuiacutena tambeacutem os levou a outros lugares e logo os colocou diante de obras de imaginaccedilatildeo agraves quais simplesmente natildeo se aplicava o acervo de ideias criacuteticas que haviam herdadordquo (Kidson p 437)

Nesta busca muito contribuiacuteram dois autores franceses que no iniacutecio do seacuteculo XVIII realizaram duas grandes experiecircncias ligadas agrave literatura oriental admiradas pelos leitores da eacutepoca O primeiro foi Bartheacuteleacutemy drsquoHerbelot (1625-1695) com sua Bibliothegraveque orientale uma das maiores coletacircneas de textos em prosa e poesia vertidas do aacuterabe no Ocidente O segundo ainda mais importante (mas cuja obra teve o terreno preparado pela Bibliothegraveque) foi Antoine Galland (1646-1715) com sua famosa traduccedilatildeo do Livro das mil e uma noites em tomos publicados de 1704 a 1707 Pode-se dizer que a traduccedilatildeo de Galland ndash a que se somaram outras como a capitaneada em liacutengua inglesa por sir William Hay Macnaghten entre 1814 e 1818 a ediccedilatildeo alematilde de Breslau em doze volumes organizada por Maximilian Habicht e Heinrich Fleischer (entre 1825 e 1843) a de Edward William Lane que saiu entre 1838 e 1841 a do aventureiro e diplomata sir Richard Burton (1885) ndash inspiraraacute todo o preacute-romantismo e romantismo europeus e serviraacute como uma das fontes para o surgimento tanto da novela goacutetica como do fantaacutestico setecentista e oitocentista Como afirma Irwin (p 141) DrsquoHerbelot e Galland foram os primeiros orientalistas a se dedicar com seriedade agrave literatura secular do Oriente Meacutedio e a traduccedilatildeo de Galland das Noites tornou-se rapidamente um enorme sucesso de vendas sendo logo convertida para outros idiomas europeus O mais interessante eacute que Galland acalentava uma certa visatildeo antropoloacutegica em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites indiretamente corroborando (ou quando muito sugerindo) aquela naturalidade da sobrenaturalidade delegada ao Oriente pelos autores ocidentais do medievo e do Renascimento em pleno contexto racionalista Segundo Irwin (p 141)

[Galland] pretendia que sua traduccedilatildeo da coleccedilatildeo de histoacuterias medievais [das Noites] fosse natildeo apenas uma diversatildeo literaacuteria mas tambeacutem uma obra de instruccedilatildeo que informaria aos leitores como era o modo de vida dos povos orientais e com esse objetivo inseriu numerosos comentaacuterios explicativos em sua traduccedilatildeo Na introduccedilatildeo ao primeiro volume ele escreveu que parte

do prazer de ler essas histoacuterias estava em tomar conhecimento ldquodos costu-mes e maneiras dos orientais bem como das cerimocircnias tanto pagatildes como maometanas pois essas coisas estatildeo mais bem descritas nesses contos que nos relatos de escritores e viajantesrdquo

Eacute bem conhecida a influecircncia que o Livro das mil e uma noites operaraacute nas primeiras narrativas goacuteticas sendo o caso de Vathek de William Beckford o mais paradigmaacutetico (Beckford por sinal estudava o aacuterabe e chegou a traduzir alguns trechos das Noites sendo por algum tempo detentor de um dos mais importantes manuscritos deste livro atualmente guardado na Biblioteca Bodleiana de Oxford) Teoacutericos des-tacados do primeiro romantismo alematildeo (ciacuterculo de Jena) a exemplo de Friedrich Schlegel que definiram pioneiramente o proacuteprio movimento eram grandes conhecedores da obra e a liam no original aacuterabe A lis-ta de autores romacircnticos e fantaacutesticos que buscaram atraveacutes da visatildeo libertaacuteria proporcionada pela literatura aacuterabe e mais especificamente o Livro das mil e uma noites a possibilidade de criaccedilatildeo de seus proacute-prios temas personagens e enredos mirabolantes eacute infinita Potocki Byron Chateaubriand Coleridge Gautier Nerval Tieck Jean-Paul Hoffmann Poe Carvalhal Borges eacute mais difiacutecil encontrar quem natildeo tenha homenageado o Oriente em suas obras ligadas ao fantaacutestico do que o contraacuterio e mais de uma tese jaacute deve ter sido escrita sobre o tema Essa influecircncia eacute em grande parte citada literalmente ou entatildeo traba-lhada na forma de intertextos reescrituras e ateacute paroacutedias

Todorov na Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica se mostra inquieto di-versas vezes em relaccedilatildeo agrave classificaccedilatildeo das Noites tratando-as como ldquocontos maravilhosos mais do que contos de fadasrdquo (2007 p 60) ressaltando-lhes os aspectos de ldquomaravilhoso hiperboacutelicordquo (em que ldquofenocircmenos satildeo sobrenatu-rais soacute por suas dimensotildees superiores agraves que nos resultam familiaresrdquo ndash p 60) ldquomaravilhoso exoacuteticordquo (nos ldquoacontecimentos sobrenaturais [que apare-cemsatildeo descritos] sem apresentaacute-los como taisrdquo ndash p 61) ldquomaravilhoso ins-trumentalrdquo (na existecircncia de ldquoadiantamentos teacutecnicos irrealizaacuteveis na eacutepoca descrita mas depois de tudo perfeitamente possiacuteveisrdquo ndash p 62) e assim por diante O criacutetico buacutelgaro analisa ainda a linguagem e os procedimentos nar-rativos das Noites prenhes de sugestotildees fantaacutesticas e maravilhosas (efetiva-mente mais maravilhosas do que fantaacutesticas segundo sua teoria) e por fim chega agrave constataccedilatildeo de que exigiriam ldquoum estudo especialrdquo (p 60) que seria hipoteticamente escrito noutra ocasiatildeo

A associaccedilatildeo de Todorov das Noites a um princiacutepio maravilhoso estaacute a meu ver correta Mas ndash poderiacuteamos acrescentar ndash um maravilhoso que por sua vez fecundou o fantaacutestico se nos reportarmos novamente agraves cha-ves de leitura deste autor Como dito a influecircncia que as Noites exerceram na imaginaccedilatildeo literaacuteria setecentista e oitocentista chegando agrave contempo-raneidade eacute clara visto que a maior parte dos procedimentos narrativos e de um imaginaacuterio desconstrutor da noccedilatildeo cartesiana de real ndash apesar da jaacute propalada naturalidade da sobrenaturalidade (ldquosobre-humanidaderdquo na boa expressatildeo cunhada pelo tradutor brasileiro das Noites Mamede Mustafa Jarouche durante sua conferecircncia no 2ordm CLIF-PE noccedilatildeo de uma medida acima do humano mas dentro da natureza) existente no contexto do original aacuterabe que aparece natildeo raro sob a forma chistosa ndash tiacutepicos do modo fantaacutestico jaacute estatildeo presentes na obra Em suma o Livro das mil e uma noites antecipa padrotildees e caracteriacutesticas caros ao discurso fantaacutestico dentre os quais poderiacuteamos enumerar alguns

bullcerta visatildeo associada a um estranhamento pela repeticcedilatildeo de acontecimentos

bullo inesperado o inusitado

bulla completa quebra da verossimilhanccedila e decoro classicistas funda-mentais para a compreensatildeo de uma lsquonovarsquo verossimilhanccedila imanen-te agrave obra literaacuteria

bullo chiste a metalinguagem o prazer da e pela narrativa (lembremo-nos do caso do xeique que tendo poupada sua vida por um agressivo ifrit opta em permanecer no local em que seria morto apenas pelo pra-zer de ouvir novas histoacuterias de outros condenados que tambeacutem tenta-vam pela narrativa de suas proacuteprias aventuras delirantes se salvar)

bullas relaccedilotildees inusuais (infinitas bastando-nos lembrar do caso dos peixes coloridos que toda vez que eram postos numa panela inicia-vam a falar ao tempo que se abria uma fenda na parede e dela saiacutea uma estranha mulher repetidamente mas sem elos causais explici-tados no texto gerando-se percepccedilotildees e sugestotildees aleatoacuterias) tais re-laccedilotildees tambeacutem adentram o territoacuterio das metaacuteforas poeacuteticas ainda mais evidenciadas pelas traduccedilotildees em outros idiomas que custam a chegar ao sentido original do aacuterabe (veja-se a descriccedilatildeo de uma per-sonagem atraveacutes de siacutemiles aparentemente esdruacutexulos mas capazes

de despertar novas imagens poeacuteticas ldquoEla fazia o sol iluminado se envergonhar e parecia uma estrela brilhando no alto ou um pavilhatildeo de ouro ou uma noiva desvelada ou um peixe egiacutepcio na fonte ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite []rdquo ndash 2010 p 113)

bulla mistura de reinos (lembremo-nos do priacutencipe que era metade hu-mano metade pedra negra) o grotesco

bullreinvenccedilotildees e relativizaccedilotildees do tempo (num dos melhores episoacute-dios das Noites tenta-se recriar perfeitamente em todos os detalhes um dia completo do passado ocorrido 12 anos antes) quebras tem-porais e de espaccedilo nonsense exaltaccedilatildeo do novo e do excecircntrico pela viagem o inquietante familiar (no sentido do unheimlich freudiano a exemplo da descoberta de novas e insuspeitas paisagens numa geo-grafia ateacute entatildeo considerada familiar e totalmente apreendida nova-mente no caso do lago dos peixes coloridos)

bullexerciacutecio do coloquialismo cultura popular possiacuteveis leituras textu-ais moralistas e alegoacutericas que contudo natildeo eclipsam o sentimento do estranho e do fantaacutestico sentimento de infinito atraveacutes de uma histoacuteria infinita gerada pelo gecircnio imaginativo de Sahrazad (noccedilatildeo de partes distintas relatos diversos ndash incluindo a mistura de gecircneros poesia e prosa bem como prosa poeacutetica ndash enfeixados num todo que eacute coeso a seu modo aparentemente uma estrutura lsquoem abertorsquo progressiva)

A partir destas e de outras caracteriacutesticas presentes ao texto das Noites cuja liccedilatildeo a literatura fantaacutestica ulterior saberaacute aprender po-deremos analisar elementos intertextuais em uma infinidade de casos Muito longe de tentar esgotar o assunto elencarei a tiacutetulo ilustrativo trecircs exemplos ou maneiras baacutesicas pelos quais alguns autores reescre-veram o Livro das mil e uma noites primeiramente irei explorar proce-dimentos e sugestotildees intertextuais a partir de alguns vislumbres da obra do contista alematildeo E T A Hoffmann (1776-1822) depois um exemplo de recorte e reconstituiccedilatildeo utilizando excertos de um conto do escritor portuguecircs Aacutelvaro do Carvalhal (1844-1868) e por uacuteltimo um caso de escritura completa re-modalizada num conto do escritor norte-ameri-cano Edward Lucas White (1866-1934) A escolha destes autores e sua ordem natildeo satildeo aleatoacuterias e revelam neste recorte cronoloacutegico como a influecircncia do orientalismo maacutegico natildeo cessa de fins do seacuteculo XVIII ateacute chegarmos ao seacuteculo XX (e obviamente tambeacutem nos dias atuais)

Assim em meio agrave apologia do grotesco evidenciada pelas Noites seria possiacutevel antever naquele curioso corcunda do episoacutedio do casamento de Dadruddin Hasan de Basra o precursor duma longa linhagem de perso-nagens bufotildees que seraacute trabalhada pelo fantaacutestico autoconsciente a exem-plo do famoso Pequeno Zacarias vulgo Cinaacutebrio de E T A Hoffmann A pergunta natildeo eacute descabida e a leitura atenta das Noites sugeriraacute mais de um intertexto em relaccedilatildeo agraves obras do genial contista alematildeo Por exemplo em meio agrave aventura do cristatildeo com o rei da China (episoacutedio narrado nas Noites) descreve-se um aposento composto por um jardim maacutegico que tambeacutem poderia antecipar o jardim das serpentinas hoffmannianas

O almocreve me conduziu ateacute a casa paguei-lhe um quarto de dinar ele re-cebeu e foi-se embora Bati agrave porta e fui recebido por duas pequenas meni-nas brancas que me disseram ldquoEm nome de Deus entre pois nossa patroa natildeo dormiu esta noite tal a alegria por sua vindardquo Adentrei o paacutetio e me vi diante de uma casa agrave qual se acessava subindo sete degraus e que tinha por toda a sua circunferecircncia janelas dando para um jardim com todos os gecircne-ros de frutas e aves com coacuterregos abundantes que eram uma diversatildeo para os olhos no centro havia uma fonte e em cada um de seus quatro acircngulos uma cobra de ouro vermelho tranccedilado da boca das quatro cobras fluiacutea uma aacutegua que parecia ser peacuterola e gema (2010 p 283)

Compare-se agora este excerto do Livro das mil e uma noites com outro presente na ldquoSexta vigiacuteliardquo do conto O vaso de ouro de Hoffmann

Quando Anselmo olhou para as plantas e aacutervores pareceu-lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente Agrave sombra densa dos ciprestes reluziam ba-cias de maacutermore de onde afloravam estranhas estaacutetuas que salpicavam raios cristalinos que caiacuteam sobre brilhantes corolas de liacuterios vozes singulares ressoa-vam e sussurravam atraveacutes do bosque de plantas extraordinaacuterias e um esplecircn-dido perfume espalhava-se como ondas O arquivista desaparecera e Anselmo soacute avistava uma enorme corbelha de ardentes liacuterios cor de puacuterpura e de fogo Extasiado pela visatildeo pelo doce perfume do jardim encantado Anselmo esta-cou completamente enfeiticcedilado (Hoffmann 1993 p 40)

Tais anaacutelises satildeo importantes para observarmos ateacute que ponto a ima-ginaccedilatildeo romacircntica recriou ndash obviamente com criatividade autoral ndash o Livro das mil e uma noites Ao falar em procedimentos e sugestotildees inter-textuais refiro-me aos intertextos que satildeo sugeridos em relaccedilatildeo agraves Noites pelos textos fantaacutesticos posteriores sem que haja uma clara marcaccedilatildeo de que delas proviriam A influecircncia estaacute laacute mas soacute podemos cogitaacute-la nas

entrelinhas O mais proacuteximo que observamos dessa marca inicial ou iacutendi-ce no conto O vaso de ouro se encontra num excerto da ldquoTerceira vigiacuteliardquo Apoacutes a narraccedilatildeo de histoacuterias delirantes referentes a liacuterios maacutegicos e perso-nificaccedilotildees alquiacutemicas como a do ldquojovem Phosphorusrdquo efetivada pelo es-tudante Anselmo responde-lhe o escrivatildeo Heerbrand ldquolsquoPermita-me caro senhor arquivista mas isto natildeo passa de frivolidades orientaisrsquordquo (p 21) as-sociando chistosamente a narrativa fantaacutestica descrita anteriormente aos desbordamentos imaginativos da escrita aacuterabe (a influecircncia das Noites na obra de Hoffmann estaacute diluiacuteda das mais diversas maneiras relatei apenas um breve exemplo para ilustrar a noccedilatildeo de sugestatildeo intertextual)

A influecircncia das Noites se torna mais evidente quando as obras fantaacutes-ticas citam-nas nominalmente Em liacutengua portuguesa poderemos explo-rar alguns trechos do conto oitocentista A febre do jogo em que Aacutelvaro do Carvalhal ndash o autor que mais se aproximou em Portugal do romantismo imaginativo e espectral tiacutepico das culturas germacircnica e anglo-saxatilde ndash natildeo soacute acusa nominalmente tal intertexto mas tambeacutem retira um trecho completo das Noites e o adapta a sua proacutepria histoacuteria Observemos alguns elementos e a dicccedilatildeo goacutetica do conto hauridos tambeacutem de outras leituras romacircnticas

Laacute fora desprendia a tempestade as borrascosas asas pelo entenebrecido espaccedilo Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas vidraccedilas O ceacuteu abrasava-se em clarotildees efeacutemeros E a terra revolvia-se accediloitada pelos iacutempe-tos recrudescentes de sucessivos furacotildees A imobilidade sombria das cate-drais antigas dos torreotildees cocircnicos de mourisca faacutebrica dos zimboacuterios dos edifiacutecios circulares e colossais iluminada a espaccedilos pelas fosforescecircncias paacutelidas dos relacircmpagos dava ao espectaacuteculo um luacutegubre caraacutecter Dir-se-ia que o abismo vomitara legiotildees de democircnios que ameaccedilavam este nosso acanhado canto do mundo com um formidaacutevel torvelinho reduzindo-o a arena de vertiginosas coreias (Carvalhal 2004 p 23)

A febre do jogo configura o tiacutepico conto influenciado pela peccedila no-turna (Nachtstuumlck) alematilde a explorar os desvatildeos psicoloacutegicos dos per-sonagens juntamente agraves descriccedilotildees distoacutepicas dos loci horrendi A certa altura Mariano seu atormentado protagonista afirma ldquopintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas grandezas de um conto das mil e uma noitesrdquo (p 28) associando nomeadamente as excentri-cidades luacutegubres da diegese ao universo ficcional das Noites inclusive como afirmado reconstituindo-as em vaacuterios momentos de sua proacutepria trama narrativa Quando Mariano segue o espectro do pai que acabara de

assassinar ndash numa lsquocatabase goacuteticarsquo que por sinal jaacute fora sugerida entre outras por algumas ldquonoitesrdquo (capiacutetulos) do ramo siacuterio do Livro das mil e uma noites (narrativas do primeiro e terceiro dervixes) ndash adentra um antigo templo aacuterabe remodelado pelo cristianismo e eacute tomado por visotildees extaacuteticas e aterrorizantes soacute finalizadas quando aparentemente eacute trazido de volta a si (sugerindo-se fantasticamente que toda a experiecircncia preacutevia natildeo passara de deliacuterio) estando agora na cidade de Naacutepoles Daacute-se entatildeo o que chamei de reconstituiccedilatildeo ou seja a recriaccedilatildeo de um trecho original das Noites (somente um trecho ou trechos ndash eacute bom destacar) numa outra diegese autoral e ineacutedita que em todo o caso acusa textualmente esta influecircncia Leiamos o excerto do conto de Carvalhal

De repente paro esmagado num ciacuterculo de ferro Ergue-se um brado solu-ccedilante e comprimido Vozes confusas troavam de cada lado Olhei Caiacuteam sobre mim os raios tisnadores de um sol brilhante Estava no zeacutenite o sol De todas as partes acelerada se ajuntava a populaccedila Alguns homens natildeo poucos cheios de suor e de cansaccedilo reprimiam-me nos braccedilos atleacuteticos Entre esses homens descobri minha matildee que desalinhada e lacrimosa cla-mava estorcendo os braccedilos em veemente dor- Louco loucoCravei nela os olhos estupefactoAquele brado de uma afliccedilatildeo de matildee arrefeceu-me ateacute agrave ponta dos cabelosTentei reflectir mas faltaram-me ideias Tentei recordar mas natildeo tive me-moacuteria O que eu tinha era o vaacutecuo na cabeccedila Poreacutem natildeo sei como compe-netrei-me da medonha verdadeEnvergonhado quis furtar-me agraves vistas dos curiosos E soacute nesse instante reparei que estava nu Eu Nu de dia numa praccedila puacuteblica Como acreditaacute-lo Estava nu Mas trazia pendente dos ombros a coberta esfarrapada do meu leito como um manto real- Louco louco repeti entatildeo num choro coleacuterico de desespero atroz E espumando de raiva rolei de chofre exacircnime nos braccedilos que me prendiam- Luacutecio foi a minha primeira exclamaccedilatildeo ao volver agrave existecircncia - Onde estou eu foi a minha primeira perguntaLuacutecio de peacute agrave cabeceira da minha cama estava embevecido em minuciosa anaacutelise Parecia determinado a natildeo perder uma soacute das fases por que ia pas-sando a doenccedila nem algum novo sintoma que acaso se revelasse- Desconheccedilo esta casa Onde estamos prossegui- Em Naacutepoles- Naacutepoles- Justamente [] (p 45-46)

A modalizaccedilatildeo fantaacutestica do conto de Carvalhal transforma agora pelo aparente vieacutes da loucura e do deliacuterio o personagem Luacutecio Durante todo o conto agira e fora descrito agrave semelhanccedila do Mefistoacutefeles goethia-no sendo o responsaacutevel por toda a sorte de horrores que se abateu sobre Mariano A partir deste momento sugere-se um amigo fiel que ao lado da matildee do protagonista teme pela sauacutede mental do mesmo Fica no ar a duacutevida seraacute toda esta cena mais um dos ardis do diaboacutelico Luacutecio O que importa eacute a presenccedila da recriaccedilatildeo das Noites jaacute que na narraccedilatildeo de um dos capiacutetulos da obra ldquoOs vizires Nuruddin Ali do Cairo e seu filho Badruddin Hasan de Basrardquo aparece a mesma cena

[] O dia se iluminou a alvorada irrompeu e os portotildees de Damasco fo-ram abertos As pessoas saiacuteram e viram Badruddin Hasan jovem gracioso com roupas miacutenimas barrete descoberto e tuacutenica sem os calccedilotildees Exausto devido agrave noite em claro agrave procissatildeo com os ciacuterios e ao peso que carregara o jovem dormia estirado e roncava [] Disse um outro [popular] ldquoCoitados dos filhos do povo Vejam o que aconteceu a esse rapaz Estava bebendo talvez e quis parar e ir cuidar da vida mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu assim pelado Ou quem sabe talvez tenha confundido a porta de sua casa com o portatildeo da cidade e encontrando-o trancado dormiu aqui mesmordquo [] Badruddin Hasan acordou e vendo-se diante dos portotildees de uma cidade cercado por homens de toda espeacutecie ficou atarantado e per-guntou ldquoOnde estou minha gente O que tecircm vocecircsrdquo Responderam ldquoNoacutes encontramos vocecirc aqui deitado na hora da chamada para a oraccedilatildeo da alvo-rada Eacute soacute o que sabemos a seu respeito Onde vocecirc dormiu esta noiterdquo Ele respondeu ldquoPor Deus minha gente que esta noite eu estava dormindo do Cairordquo Algueacutem disse ldquoOuccedilam soacuterdquo Outro disse ldquoDeem-lhe um tapa com forccedilardquo E todos lhe disseram ldquoMeu filho vocecirc estaacute doido Dormir no Cairo em acordar em Damascordquo [] Outro disse ldquoEle estaacute loucordquo e todos grita-ram ldquoloucordquo e agrave forccedila resolveram que ele enlouquecera [] (p 239)

O leitor das Noites sabe que Hasan fora transportado pelos ares por ifrits de uma cidade a outra dentro da perspectiva maravilhosa mas o personagem natildeo tem ideia disso pois estava dormindo no momento do rapto e chega a cogitar posteriormente que realmente sonhara es-tando em Damasco todo o dia e a vida anterior no Cairo gerando-se o nonsense Jaacute o texto de Carvalhal natildeo apresenta iacutendice preacutevio algum sugerindo que a brusca passagem de uma cidade a outra poderia ser uma ilusatildeo gerada pela alienaccedilatildeo de Mariano sem maiores explicaccedilotildees A bricolagem intertextual corrobora os aspectos delirantes e fantaacutesti-cos (pela indefiniccedilatildeo do que realmente ocorreu com o protagonista) do

conto de Carvalhal mas como afirmado compotildee apenas uma passa-gem episoacutedica de A febre do jogo da maior importacircncia eacute verdade con-tudo sem assegurar a totalidade da diegese

Passemos agora a explorar por fim um caso em que a escritura comple-ta re-modalizada em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites ocorre a partir de um conto de Edgar Lucas White intitulado Amina que apesar de escrito na primeira deacutecada do seacuteculo XX faz uso de procedimentos tiacutepicos do horror e fantaacutestico oitocentistas tomando ainda como base o exotismo orientalista que existiu sob as mais diversas faces em todo o seacuteculo XIX

Amina eacute totalmente baseada em uma das histoacuterias das Noites em que se narra o aparecimento de um suposto ente sobrenatural em meio ao caravanccedilarai e agraves ruiacutenas de cidades antigas intitulada ldquoO filho de rei e a ogrardquo Cumpre transcrevecirc-la integralmente na voz do pescador que a conta ao rei Yunan

Conta-se oacute rei venturoso que certo rei tinha um filho que era grande aman-te de caccediladas Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai o qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz Certo dia saiacuteram ambos e cavalgaram ateacute o deserto O jovem descortinou uma presa e o vizir lhe disse ldquoPegue-a corra atraacutes dessa caccedilardquo O jovem foi atraacutes do animal mas perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto sem saber para que lado ir nem que rumo tomar Entatildeo eis que viu uma jovem chorando no caminho Perguntou-lhe ldquoDe onde vocecirc eacuterdquo Ela respondeu ldquoSou filha de um dos reis da Iacutendia Estava neste deserto cavalgando minha montaria quando fui dominada pelo sono e distraiacuteda caiacute do animal Agora estou longe de todos e assustadardquo Ouvindo as palavras da moccedila o filho do rei lamentou-lhe a situaccedilatildeo e colocou-a na garupa de seu cavalo avanccedilando ateacute topar com umas ruiacutenas A moccedila entatildeo lhe disse ldquoMeu senhor eu pre-ciso satisfazer uma necessidade logo alirdquo e o rapaz a ajudou a descavalgar Ela entrou nas ruiacutenas e o filho do rei foi atraacutes sem saber o que ela era Observando-a poreacutem descobriu tratar-se de uma ogra que fora dizer aos seus filhotes ldquoEu lhes trouxe um jovem bonito e gordinhordquo Os filhotes dis-seram ldquoTraga-o logo mamatildeezinha para que pastemos em seu ventrerdquo Disse o vizir ao ouvir o diaacutelogo deles o rapaz ficou apavorado seus mem-bros se contraiacuteram e temendo por sua vida ele retornouDisse o vizir a ogra saiu atraacutes dele e lhe perguntou ldquoO que vocecirc tem Por que estaacute com medordquo Entatildeo ele se queixou da situaccedilatildeo que estava enfrentan-do e concluiu ldquoIrei sofrer uma injusticcedilardquo Ela lhe disse ldquoSe estaacute para sofrer uma injusticcedila entatildeo peccedila ajuda a Deus altiacutessimo e ele o livraraacute do mal que vocecirc temerdquoDisse o vizir o jovem ergueu as matildeos para o ceacuteu [] e disse ldquoOacute Deus faccedila-me triunfar contra o meu inimigo lsquopois voacutes de tudo sois capazrsquordquo

Disse o vizir quando a ogra ouviu a suacuteplica deixou-o em paz O jovem che-gou satildeo e salvo ateacute o pai e lhe contou a histoacuteria do vizir isto eacute que fora ele que lhe ordenara correr atraacutes da caccedila sucedendo-lhe entatildeo tudo aquilo com a ogra O rei mandou convocar o vizir e executou-o (p 84-85)

Destarte o que constitui um breve episoacutedio narrativa dentro de ou-tra na 15ordf e 16ordf noites do Livro das mil e uma noites (ramo siacuterio) seraacute utilizado para enformar a diegese completa do conto de White consubs-tanciando a diferenccedilagradaccedilatildeo que parte do universo oral e folcloacuterico das ldquoformas simplesrdquo (segundo a terminologia do criacutetico literaacuterio Andreacute Jolles [1976]) passando pelo pioneiro registro literaacuterio das Noites ateacute culminar numa reescritura re-modalizada e autoral no caso o conto Amina

Publicado originalmente na revista The Bellman em 1ordm de junho de 1907 Amina conta a histoacuteria do personagem Waldo um ocidental que se encontra numa pesquisa de campo no deserto em meio agraves milenaacuterias ruiacutenas de civilizaccedilotildees antigas Jaacute na primeira frase da narrativa perce-be-se a atmosfera de pesadelo que entretece a diegese a revelar que a realidade pode assumir graus fantaacutesticos ldquoWaldo cara a cara com a re-alidade do inacreditaacutevel ndash como ele mesmo teria dito ndash estava comple-tamente estupefato Em silecircncio ele deixou-se conduzir pelo cocircnsul do teacutepido escuro do interior pela porta em ruiacutenas ateacute o calor e a claridade ofuscante do desertordquo (White 2007 p 147)

O leitor eacute apresentado in media res a este cenaacuterio desolado que atinge a extensatildeo dos sonhos Trecircs personagens principais Waldo o cocircnsul e Hassan parecem perdidos ao tempo que buscam se defender ou mesmo extirpar certos animais estranhos que aparentemente Waldo observara algum tempo antes

- Hassan ndash [disse o cocircnsul] observe aquiHassan disse algo em persa- Quantos filhotes havia ndash o cocircnsul perguntou a WaldoWaldo nada respondeu- Quantos pequenos vocecirc viu ndash o cocircnsul voltou a perguntar- Vinte ou mais ndash Waldo conseguiu responder- Isso eacute impossiacutevel ndash o cocircnsul retrucou- Parecia haver 16 ou 18 ndash Waldo corrigiu-se Hassan sorriu e resmungou O cocircnsul pegou duas armas das matildeos do guia entregou a Waldo a dele e os dois caminharam ao redor da tumba [] (p 147)

Logo em seguida o aspecto sobrenatural destes seres eacute posto em evidecircncia no momento em que os personagens decidem se separar para caccedilaacute-los O atocircnito Waldo diferentemente do cocircnsul e de Hassan ainda insiste em natildeo acreditar que a experiecircncia anterior poderia ser fruto de sua imaginaccedilatildeo sendo repreendido pelo referido cocircnsul por esta atitude

[] Fique atento ao seu redor Existe a chance quase remota de o macho retor-nar durante o dia ndash eles costumam ser notiacutevagos mas esse covil eacute excepcional [] Vocecirc natildeo deve ter nenhum tipo de sentimentalismo tolo em relaccedilatildeo agrave se-melhanccedila que esses animais possam ter com os seres humanos Atire e atire para matar Natildeo apenas eacute nosso dever exterminaacute-los mas seraacute muito perigoso para noacutes se natildeo o fizermos

Uma gradaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao sobrenatural existe se atentarmos agraves ca-racteriacutesticas destes trecircs personagens que de certa forma iconizam alguns gecircnerossubgecircneros propostos pela teoria todoroviana Hassan o nativo de fala persa poderia representar o olhar do Maravilhoso puro a aceita-ccedilatildeo completa da existecircncia de leis outras talvez desacreditadas em situa-ccedilotildees e topografias distintas O cocircnsul poderia ter refletido inicialmente o olhar do Estranho do ocidental que precisou encontrar certas soluccedilotildees ou respostas para que a existecircncia do insoacutelito fosse explicada de maneira racional e dentro das leis naturais posteriormente abandonadas com a presentificaccedilatildeo efetiva do sobrenatural e o consequente aparecimento do Fantaacutestico-maravilhoso (em que haacute primeiro a hesitaccedilatildeo fantaacutestica se-guida pela aceitaccedilatildeo do Maravilhoso) E por fim na maior parte do texto a experiecircncia do olhar do Fantaacutestico pela ambiguidadeduacutevida instigadas pelo personagem Waldo Contudo eacute importante observar o sobrenatural aceito por Hassan e pelo cocircnsul eacute trabalhado numa via de negatividade que eacute bem diversa por exemplo do Maravilhoso puro dos contos de fa-das aproximando Amina das tiacutepicas narrativas de horror A associaccedilatildeo que o cocircnsul faz dos animais-monstros com a suposta aparecircncia humana revela que o sobrenatural permanece de maneira disfoacuterica e atraveacutes de uma inquietaccedilatildeo trabalhada pela experienciaccedilatildeo do medo Eacute o medo que faz com que ocidentais e orientais se unam em prol do total extermiacutenio destes seres ainda segundo a visatildeo do cocircnsul

Haacute pouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanas po-reacutem nos poucos pontos em que a opiniatildeo puacuteblica existe ela atua com pron-tidatildeo e vigor Se haacute um assunto sobre o qual natildeo haacute discordacircncia eacute que eacute

incumbecircncia de todos os homens ajudar a erradicar essas criaturas O velho costume biacuteblico de apedrejar ateacute a morte eacute o modo de linchar os nativos por aqui Esses asiaacuteticos modernos satildeo capazes de aplicaacute-lo a qualquer pessoa considerada negligente no combate a esses monstros Se deixarmos um de-les escapar e as pessoas ficarem sabendo podemos dar iniacutecio a um surto de preconceito racial que vai ser difiacutecil enfrentar Portanto atire sem hesitaccedilatildeo ou piedade - Entendi- Natildeo me importa se vocecirc entende ou natildeo ndash disse o cocircnsul ndash Quero que vocecirc aja Atire se for preciso e de modo certeiro ndash E partiu (p 148-149)

Eacute interessante como se pode observar nas entrelinhas deste excerto a discussatildeo da outridade OcidenteOriente pela modalizaccedilatildeo fantaacutesti-ca O olhar colonial se adensa no momento em que se fala da ldquopouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanasrdquo e trata do tema do preconceito racial entrevisto nas possiacuteveis sublevaccedilotildees dos coloni-zados inserindo-se ainda o ritual do apedrejamento dentro do contexto especiacutefico do conto Ateacute que ponto aquela insistente frase a corroborar com as usuais toacutepicas do discurso imperialista ldquoatire sem hesitaccedilatildeo ou piedaderdquo poderia ser associada a essa relaccedilatildeo de outridade De fato a sabedoria do sobrenatural de Hassan e o olhar de simpatia que o narra-dor tem para com este personagem subalterno natildeo chega a desconstruir o discurso da superioridade europeia Mas o que importa para a presen-te anaacutelise eacute o fato de que o cocircnsul pede a Waldo um pragmatismo que continua por via oposta a endossar o olhar fantaacutestico deste uacuteltimo eacute preciso agir e natildeo compreender Destarte continuamos no territoacuterio do insoacutelito potencializado pelas novas marcaccedilotildees que o texto ofereceraacute relativas agrave passagem do Ocidente para o Oriente

Na manhatilde de sua aventura inesqueciacutevel Waldo acordou cedo As experiecircn-cias de suas viagens ao mar as visotildees de Gibraltar em Port Said no canal em Suez em Aden em Muscat e em Basrah propiciaram uma transiccedilatildeo ina-dequada entre a regularidade decorosa da vida escolar e domeacutestica na Nova Inglaterra e a maravilha daquelas imensidotildees deseacuterticas e suas paisagens de tirar o focirclego Tudo parecia irreal mas a veracidade daquela estranheza o perturbava tanto que ele natildeo conseguia sentir-se agrave vontade nem dormir profundamente em uma barraca Depois de deitar-se passava muito tempo acordado e levanta-va cedo como naquela manhatilde no iniacutecio do falso alvorecer (p 149)

A teacutecnica do sfumato das artes plaacutesticas mistura sutil de matizes e gra-dientes sem transiccedilotildees abruptas natildeo poderia ser associada a esta passagem A movecircncia Ocidente-Oriente eacute acompanhada por uma seacuterie de fenocircme-nos estranhos que gera uma quebra ontoloacutegica em relaccedilatildeo ao real atraveacutes de choques inesperados que acabam inserindo o personagem Waldo num estado quase delirante corroborado pelo sol ostensivo falta de sono esgo-tamento nervoso ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas (costuma beber ldquoconhaque purordquo ndash p 147) procedimentos caros ao gecircneromodo fantaacutestico

Durante a noite em meio ao acampamento Waldo sente necessida-de de passear e contemplar pessoalmente no deserto as constelaccedilotildees e o famoso pleniluacutenio tatildeo decantado pelo Livro das mil e uma noites em me-taacuteforas liacutericas geralmente associadas agrave beleza feminina Sua relaccedilatildeo com o deserto eacute um tanto contraditoacuteria ansiava uma experiecircncia de libertaccedilatildeo e a realidade se mostrava contraacuteria opressora Pensava que o perigo maior da viagem de exploraccedilatildeo seriam os soldados curdos logo desmistificados como paciacuteficos Na realidade os perigos eram outros como deu a enten-der Hassan o personagem mediador entre o visiacutevel e o invisiacutevel

Hassan falava um pouco de inglecircs e contava-lhe histoacuterias sobre espiacuteritos ma-lignos espectros e outros estranhos seres lendaacuterios sobre o democircnio das ruiacute-nas surgindo como ser humano falando todos os idiomas sempre agrave procura de infieacuteis sobre a mulher cujos peacutes eram virados com os calcanhares para a frente levando os imprudentes a um poccedilo onde os afogava sobre os fan-tasmas malignos dos salteadores mortos mais terriacuteveis que os vivos sobre o espiacuterito incorporado em um burro ou em uma gazela levando seus persegui-dores agrave beira do precipiacutecio parecendo continuar a correr sobre uma areia que natildeo passava de uma simples miragem que se dissolvia [] (p 151)

O sobrenatural aparece aqui numa de suas facetas literaacuterias mais carac-teriacutesticas ligada agrave oralidade A cultura lsquoprimitivarsquo a ele associada eivada de crendices antiteacuteticas ao logos natildeo raras vezes na experiecircncia do insoacutelito in-verte a polaridade e passa a funcionar justamente como logos dentro do so-brenatural toacutepica relativamente comum das histoacuterias de horror Os perigos iniciais ldquovagos e imaginaacuteriosrdquo (p 151) acabaratildeo ganhando concretude em meio ao deserto locus geralmente propiacutecio ao intervalo que vai da imagi-naccedilatildeo agrave miragem um natildeo-lugar ou espaccedilo com outra dinacircmica de tempo

Olhou ao redor contemplando aquela vasta desolaccedilatildeo e o ceacuteu de um azul-turquesa uniforme arqueando-se sobre o deserto Montanhas avermelhadas e

distantes pareciam amontoar-se sobre colinas mais proacuteximas que enchiam a paisagem amarela sem diminuir-lhe a monotonia Areia e rochas com poucos galhos finos formavam a paisagem em volta alterada aqui e ali pela presenccedila de ruiacutenas brancas ou acinzentadas Natildeo fazia muito tempo que o sol nascera mas a superfiacutecie toda do deserto tremulava com o calor [] (p 152)

Eacute nesta fronteira cronotoacutepica cuja luminosidade excessiva mais con-funde do que refrata mimeticamente o aspecto das coisas que lhe apa-receraacute entatildeo a figura esquisita de uma mulher em meio agraves ruiacutenas com-postas por ldquotumbas preacute-histoacutericas asiaacuteticas persas partas sassacircnidas e muccedilulmanasrdquo (p 151) Novamente observamos as modalizaccedilotildees tiacutepicas do fantaacutestico e do horror que intentam causar estranhamento no leitor

Todas as mulheres do vilarejo que ele jaacute vira usavam ldquoyashmaksrdquo ou alguma espeacutecie de pano ou veacuteu para cobrir o rosto Aquela mulher estava sem veacuteu e sem qualquer pano na cabeccedila Usava um tipo de veste marrom-amarelada que cobria seu corpo do pescoccedilo aos calcanhares sem marcar-lhe a cintura Seus peacutes apesar da areia escaldante estavam descalccedilosAo perceber a presenccedila de Waldo ela parou e olhou para ele que lhe de-volveu o olhar Ele notou que a posiccedilatildeo dos peacutes da mulher natildeo parecia com a dos europeus natildeo se voltavam para fora mas com os lados de dentro paralelos Ela natildeo usava tornozeleiras e pulseiras nem colar ou brincos Ele achou que os braccedilos dela eram os mais musculosos que jaacute tinha visto em um ser humano As unhas eram pontudas e longas tanto nas matildeos quanto nos peacutes Seu cabelo era preto curto e desgrenhado mas mesmo assim ela natildeo parecia selvagem Seus olhos sorriam e seus laacutebios esboccedilavam um sorriso apesar de natildeo se separarem sem mostrar os dentes por traacutes deles (p 152)

Nestas descriccedilotildees meticulosas das caracteriacutesticas inquietantes da personagem observamos como White reescreveu amiudadamente o epi-soacutedio do Livro das mil e uma noites contudo sem lhe alterar substancial-mente o enredo O priacutencipe aacuterabe se transformou em Waldo um ator-mentado ocidental perdido em meio agraves vastidotildees dos desertos do Oriente acompanhado por personagens secundaacuterios que natildeo existiam no texto original O encontro com uma mulher solitaacuteria se daacute no mesmo locus en-quanto ambos estatildeo perdidos (lembremos tambeacutem que a personagem da mulher solitaacuteria em meio aos bosques a se revelar ulteriormente como o diabo a um nobre eacute comum nas novelas medievais de cavalaria europeia) A oraccedilatildeo do priacutencipe aacuterabe que repele a ogra seraacute em Amina substituiacuteda por um tiro certeiro do personagem cocircnsul que abateraacute a mulher-mons-tro no justo momento em que teria matado Waldo juntamente aos filhos

Entatildeo como se daraacute a re-modalizaccedilatildeo anunciada anteriormente que o conto de White operaraacute em relaccedilatildeo ao texto original Ela estaacute configu-rada basicamente na maneira como o maravilhoso do episoacutedio do Livro das mil e uma noites se converteraacute em horror autoconsciente em Amina pelo modus operandi do estranhamento a gerar um sem-nuacutemero de en-trechos A mulher-monstro de White por exemplo conversa com Waldo em inglecircs contudo ldquoenquanto ela falava seus laacutebios natildeo se abriamrdquo (p 152) Ela se comunica ldquocantarolando as palavrasrdquo (p 153) e eacute descrita no ato de se mover em todo o potencial de uma escritura de estranhamento

Ela se locomovia sem fazer barulho e com rapidez Waldo mal conseguia acompanhaacute-la No percurso Waldo por vezes seguia atraacutes e notava como suas vestes cobriam suas costas a cintura estreita e os quadris bem forma-dos Sempre que se apressava e conseguia alcanccedilaacute-la ele a olhava com curio-sidade um tanto confuso por sua cintura tatildeo bem definida atraacutes natildeo ter uma forma definida na frente por seu contorno do pescoccedilo aos joelhos totalmente sem forma sob as roupas natildeo marcar sua cintura natildeo sugerir firmeza ou flacidez Da mesma maneira observava o brilho em seus olhos e os laacutebios extremamente vermelhos e finos (p 153)

Este monstro sai das classificaccedilotildees e dualismos tiacutepicos natildeo eacute nem ldquocristatildeordquo nem ldquomuccedilulmanordquo como diz o texto mas uma terceira coisa inominada Se diz pertencente ao ldquopovo livrerdquo e tal expressatildeo natildeo seraacute explicada a posteriori fazendo com que permaneccedilamos em leituras po-lissecircmicas A carga de horror criada pela narrativa eacute excepcional fazendo com que Amina se constitua em paradigma do gecircnero ainda mais pela vertente do orientalismo A certa altura a personagem homocircnima afirma conhecer a localizaccedilatildeo do acampamento de Waldo que este ansiava reen-contrar sugerindo tambeacutem nas elipses das modalizaccedilotildees do horror que andava rondando suas cercanias e observando os protagonistas de manei-ra incoacutegnita O texto eacute eliacuteptico por natildeo explicitar nada sempre sugerindo possibilidades Ao adentrar a caverna em que a mulher parecia habitar na realidade uma antiga tumba profanada coisas estranhas embora pos-siacuteveis (dentro das medidas do real empiacuterico) passam a ocorrer (Waldo a seguira antes de retornar ao acampamento no intuito de beber aacutegua)

Por um momento ficou cego pela transiccedilatildeo do brilho insistente do deserto para a sombra do interior da tumba []Agrave medida que seus olhos se acostumaram com a falta de luz ele teve um tal susto que ficou em peacute Parecia que por todos os lados aquele espaccedilo estava

fervilhante de crianccedilas nuas Levando em conta sua inexperiecircncia avaliou que elas tinham 2 anos de idade mas moviam-se com a destreza de garotos de 8 ou 10 anos - De quem satildeo essas crianccedilas ndash ele perguntou- Minhas- Todas suas- Todas minhas ndash ela respondeu de modo curioso- Mas haacute vinte delas ndash ele gritou- Vocecirc conta mal no escuro ndash ela disse ndash Haacute menos do que isso- Mas com certeza haacute uma duacutezia ndash ele disse rodando sobre si cercado pelas crianccedilas que danccedilavam e saltavam agrave sua volta- O povo livre tem famiacutelias grandes ndash ela explicou- Mas todos parecem ter a mesma idade ndash Waldo exclamou com a liacutengua seca em contato com o ceacuteu da bocaEla riu um riso desagradaacutevel batendo as matildeos Ela estava entre ele e a por-ta e como a maior parte da luz vinha da porta ele natildeo conseguia ver seus laacutebios []Waldo estava confuso e sentou-se novamente As crianccedilas circularam a seu redor conversando rindo brincando fazendo ruiacutedos que mostravam sua alegria [] (p 154-155)

Eacute esta a modalizaccedilatildeo a que me refiro relativa agrave escritura de estra-nhamento Poderemos observar simples crianccedilas entrevistas no ato de brincar nesta atmosfera de estranhamento criada pela linguagem Num determinado trecho acusa-se textualmente a influecircncia das Noites

- Qual eacute o seu nome ndash ele perguntou- Amina ndash ela respondeu - Eacute um nome da histoacuteria das ldquoMil e uma noitesrdquo ndash ele disse- Das histoacuterias tolas dos crentes ndash disse ela com desdeacutem ndash O povo livre natildeo sabe nada a respeito dessas bobagens ndash Seus laacutebios fechados e o murmuacuterio entre as siacutelabas proferidas o deixaram ainda mais surpreso quando ela cur-vou os laacutebios sem abri-los (p 154)

Edgar Lucas White segundo Tavares (2007 p 146) se inspirava nos proacuteprios pesadelos para compor muitos de seus contos fantaacutesticos reuni-dos nas obras The song of the sirens and other stories (1919) e Lukundoo and other stories (1927) A citaccedilatildeo nominal das Noites homenageia o texto original e ficamos tentados a encontrar em Amina um princiacutepio de recep-ccedilatildeo de leitor posteriormente potencializado pelo inconsciente durante o sono Segundo a nota do tradutor Jarouche (2010 p 85) a palavra ldquoogrardquo por ele utilizada em sua versatildeo das Noites traduziria imperfeitamente

o termo aacuterabe ldquogulardquo que designa na mitologia beduiacutena ldquoum ser sobre-humano capaz de mudar de figura e que se alimenta de carne huma-na Segundo uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao profeta Muhammad a simples menccedilatildeo a Deus bastaria para afugentaacute-lordquo sendo para isso invocado um excerto do Alcoratildeo (668) pelo personagem do priacutencipe aacuterabe como vis-to anteriormente no excerto das Noites O sentido de maravilhoso desta obra possibilita a inserccedilatildeo paciacutefica de uma ldquogulardquo (natildeo haacute aqui associaccedilatildeo agrave palavra lsquogularsquo em liacutengua portuguesa no sentido de fome desmesurada) agrave realidade diegeacutetica Jaacute o texto de White quebra esta possibilidade ao acrescentar toda a disforia de uma ontologia natildeo pacificada mesmo com a morte e revelaccedilatildeo final do monstro Waldo oscila ateacute o fim da narrativa a respeito da natureza teriomorfa e sobrenatural de Amina

- Bem na hora meu garoto ndash disse [o cocircnsul] ndash Ela estava prestes a atacarEle levantou o cano da arma e com ela mexeu no corpo- Bem morta ndash ele disse ndash Que sorte Geralmente satildeo precisos trecircs ou quatro balas para abater um deles Eu jaacute vi uma delas matar um homem mesmo tendo levado dois tiros nos pulmotildees - Vocecirc assassinou esta mulher ndash Waldo perguntou irado - Assassinar ndash o cocircnsul perguntou ndash Assassinar Olhe para istoEle ajoelhou-se e abriu os laacutebios fechados deixando agrave mostra natildeo dentes humanos mas pequenos incisivos dentes afiados bem separados e caninos longos e sobrepostos como os de um galgo uma denticcedilatildeo carniacutevora ame-accediladora e perigosa Ele sentiu medo mas mesmo assim a forma e a aparecircncia da mulher ainda o deixavam horrorizado tocado por sua semelhanccedila humana- Vocecirc atira em mulheres que tecircm dentes longos ndash Waldo insistiu revoltado com a morte terriacutevel que presenciara- Eacute difiacutecil convencecirc-lo ndash o cocircnsul disse ndash Vocecirc chama isto de mulherEle arrancou as roupas do cadaacuteverWaldo ficou aterrorizado O que ele viu natildeo foi a parte da frente do corpo de uma mulher mas sim o lado de baixo de uma loba prenhe ou de uma porca branca em sua segunda gestaccedilatildeo do pescoccedilo agrave genitaacutelia dez ubres em duas fileiras machucados grossos e flaacutecidos- Que tipo de criatura eacute essa ndash ele perguntou increacutedulo- Um ldquoghoulrdquo [gula] um espiacuterito maligno meu filho ndash o cocircnsul respondeu calmamente quase sussurrando - Pensei que eles natildeo existissem ndash Waldo disse ndash Achei que fossem lendas que natildeo houvesse nenhum deles- Posso acreditar que natildeo exista nenhum em Rhode Island ndash o cocircnsul disse ndash Estamos na Peacutersia e a Peacutersia fica na Aacutesia (p 156)

Como afirmado a ambiguidade fantaacutestica eacute levada ateacute o final com a revelaccedilatildeo do monstro e a aceitaccedilatildeo do sobrenatural Em todo o caso a meu ver em Amina esta aceitaccedilatildeo eacute distinta do Fantaacutestico-maravilhoso todoroviano pois se buscou ateacute este momento a criaccedilatildeo de uma atmos-fera em que a experiecircncia do medo se faz tocircnica e mesmo a explicaccedilatildeo do sobrenatural ligada em uacuteltima instacircncia agrave extinccedilatildeo do monstro natildeo possibilitou sua diluiccedilatildeo antes se obteacutem aquela antevisatildeo negativa do cos-mos e da vida analisada pelas teorias lovecraftianas a respeito do horror autoconsciente Lembro por uacuteltimo que os referidos procedimentos e su-gestotildees intertextuais os recortes e reconstituiccedilotildees e as escrituras completas e re-modalizadas ligadas ao Livro das mil e uma noites entre vaacuterios outros processos de intertextualidade poderatildeo ser encontrados em todas as eacutepo-cas autores e literaturas e colhi apenas trecircs exemplos (teoacutericos e ficcionais) para ilustrar tal fato Concluo com o adoraacutevel bordatildeoleitmotiv da irmatilde de Sahrazad Dinarzad (tatildeo importante quanto a contadora de histoacuterias eacute aquela que fomenta sua continuidade e corrobora no processo atraveacutes de uma recepccedilatildeo embevecida) em homenagem agraves Noites ldquoPor Deus ma-ninha se acaso vocecirc natildeo estiver dormindo conte-me uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar acordados esta noiterdquo []

REFEREcircNCIAS

CARVALHAL Aacutelvaro do Contos Fixaccedilatildeo do texto e posfaacutecio de Gianluca Miraglia Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2004

EURIacutePIDES ldquoLas bacantesrdquo In EacuteSQUILO SOacuteFOCLES EURIacutePIDES Obras completas Trad Joseacute Alsina [et al] Madrid Catedra 2004 (p 215-254)

HOFFMANN E T A Contos fantaacutesticos Trad Claudia Cavalcanti Rio de Janeiro Imago 1993

IRWIN Robert Pelo amor ao saber os orientalistas e seus inimigos Trad Waldeacutea Barcellos Satildeo Paulo Record 2008

JOLLES Andreacute Formas simples Trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Cultrix 1976

KIDSON Peter ldquoArtes plaacutesticasrdquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 435-463)

Livro das mil e uma noites Trad Mamede Mustafa Jarouche 4 volumes Satildeo Paulo Editora Globo 2010 (6ordf reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo de 2006 ndash volume 01) 2006 (2ordf ed ndash volume 02) 2007 (volume 03) 2012 (volume 04)

LOVECRAFT H P O horror sobrenatural em literatura Trad Celson M Paciornik Satildeo Paulo Iluminuras 2008

MOMIGLIANO Arnaldo ldquoHistoacuteria e biografiardquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 181-210)

PLATAtildeO A repuacuteblica Trad Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

PEMBROKE S G ldquoMitordquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 335-358)

TAVARES Braulio ldquoAminardquo In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 146)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 1ordf reimp da 3ordf ed de 2004 Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2007

WHITE Edgar Lucas Amina Trad Carolina Caires Coelho In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 147-156)

Borges leitor de As mil e uma noites

Dariacuteo Sanchez(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

ldquoese libro capaz de tantas metamorfosisrdquo

Jorge Luis Borges eacute talvez o mais universal dos escritores hispa-no-americanos como fica demonstrado natildeo soacute pela importacircncia de sua obra mas tambeacutem pela singularidade de sua pessoa que tem inspirado desde a introduccedilatildeo a um tratado antropoloacutegico de Michel Foucault ateacute o personagem central num romance de Umberto Eco Eacute fato que no caso deste portentoso escritor obra e homem se confundem na sua impor-tacircncia e originalidade

Borges escreveu poemas contos e ensaios muitos dos quais satildeo hoje ndash apenas 27 anos depois de sua morte ndash verdadeiros claacutessicos da literatura universal bastando mencionar tiacutetulos como El Aleph ou Pierre Menard autor del Quijote Mas natildeo eacute soacute pela sua liacutempida prosa e seu verso reflexivo que esse autor argentino eacute mundialmente reconhecido tambeacutem sua original concepccedilatildeo da literatura tem despertado o interesse de especialistas e neoacutefitos concepccedilatildeo que vai muito aleacutem do cacircnone ocidental ao abranger outras literaturas ndash com lugar de destaque para a literatura oriental ndash e especialmente vai aleacutem da obra literaacuteria incor-porando nela o processo de leitura o exerciacutecio da traduccedilatildeo a praacutetica da escritura e o transcorrer da vida

Para Borges a literatura estaacute nos leitores e natildeo nas obras ou seus autores Longe de ser um objeto de conhecimento (como tanto gostam de pensaacute-la os teoacutericos e especialistas) a literatura eacute um processo uma praacutetica que acontece cada vez que um leitor percorre reconta traduz ou relembra um livro lido Eacute na (re)leitura onde radica o valor da obra literaacuteria releitura que permite novas criaccedilotildees novas versotildees novas his-toacuterias novas vidas ou mortes ateacute

Essa importacircncia da leitura por cima da obra fica demonstrada em afirmaccedilotildees como as seguintes ldquoClaacutesico no es un libro que necesaria-mente posee tales o cuales meacuteritos es un libro que las generaciones de los hombres urgidas por diversas razones leen con previo fervor y con una misteriosa lealtadrdquo (Borges 1993I p 151) ou ldquoUn libro es maacutes que una estructura verbal es el diaacutelogo que entabla con su lector y la intencioacuten que impone a su voz y las cambiantes y durables imaacutegenes que deja en su memoria (Borges 1993I p 125) Ou ainda ldquoUna literatura difiere de otra menos por el texto que por la manera de ser leiacutedardquo (Borges 1993I p 125) Ler com fervor e lealdade ou armazenar imagens na memoacuteria eis definiccedilotildees da literatura segundo Borges E como os leitores das obras satildeo muacuteltiplos e muacuteltiplas suas lembranccedilas e fervores a literatura eacute uma mateacuteria muacuteltipla infinita ldquoPor el hecho de que el poema es inagotable Y se confunde con la suma de las criaturas Y no llegaraacute jamaacutes al uacuteltimo verso Y variacutea seguacuten los hombresrdquo (Borges 1993II p 315)

Desde tal concepccedilatildeo as frequentes referecircncias de Borges agrave compilaccedilatildeo de relatos orientais conhecida como As mil e uma noites (ou ldquoAs mil noites e uma noiterdquo como ele preferia) natildeo eacute soacute mais uma mostra de sua exoacutetica erudiccedilatildeo mas uma confirmaccedilatildeo ancestral de sua teoria da literatura como processo interminaacutevel de leitura De fato ainda que no espaccedilo da oralidade (e a oralidade eacute tatildeo literaacuteria para Borges quanto a escrita bastando-nos lem-brar de suas histoacuterias de ldquocompadritosrdquo) Sherazade eacute uma leitora que conta suas leituras ao sultatildeo que por sua vez eacute outro leitor Como tambeacutem satildeo leitores os histoacutericos compiladores da lenda original que foram agregando novos relatos e os tradutores ocidentais que natildeo soacute agregaram ou retiraram elementos mas que enriqueceram a obra com os estilos de sua liacutengua e de sua eacutepoca As mil e uma noites eacute a obra interminaacutevel por antonomaacutesia (a Never ending story como eacute o tiacutetulo do romance de Michael Ende) e por isso fascinou Borges por ser a soma do que eacute a literatura na sua concepccedilatildeo uma prolongaccedilatildeo infinita de leituras e escrituras

A paixatildeo de Borges por As mil e uma noites fica evidente em vaacuterios de seus escritos e na sua obsessiva comparaccedilatildeo das diversas versotildees para descobrir aquilo que os compiladores e tradutores tinham agregado ou extraiacutedo do texto original Genotexto intertexto subtexto (para usar palavras tatildeo caras aos especialistas) a compilaccedilatildeo oriental aparece na obra do autor argentino de maneira expliacutecita como inspiraccedilatildeo objeto de estudo eou referecircncia bibliograacutefica e de maneira impliacutecita na estrutura

ou elaboraccedilatildeo de alguns relatos Bem no comeccedilo de seu ofiacutecio como escritor publica um artigo sobre Los traductores de Las mil y una noches e pelo menos cinco relatos fazem referecircncia direta ao livro Alguien El sur Historia de los dos que sontildearon El libro de arena e Historia de los dos reyes y los dos laberintos aleacutem do poema Metaacuteforas de las mil y una noches Mas seraacute no luacutecido ensaio intitulado Las mil y una noches que Borges sintetizaraacute melhor seu sentir sobre a referida obra

O texto foi lido pelo seu autor no Teatro Coliseo de Buenos Aires em junho de 1977 dentro de um ciclo de conferencias que foram publicadas em 1980 sob o tiacutetulo de Siete noches Nele Borges susteacutem que para falar desse livro eacute necessaacuterio fazer referecircncia a alguns antecedentes do acontecimento da consciecircncia de Oriente em Ocidente tais como a conquista da Peacutersia e Iacutendia por Alexandre Magno (que deixou de ser grego para se converter em persa) e as narraccedilotildees de Marco Polo sobre Kublai Khan entre outros vaacuterios

Falando concretamente da obra aacuterabe Borges nos lembra de que no seacuteculo XV foi reunida em Alexandria uma seacuterie de faacutebulas de origem hindu persa e asiaacutetica as quais jaacute escritas em aacuterabe foram compiladas no Cairo A matriz ou nuacutecleo central eacute a Iacutendia depois na Peacutersia satildeo modificadas e arabizadas e passam ao Egito em finais do seacuteculo XV onde eacute realizada a primeira compilaccedilatildeo sob o tiacutetulo de As mil e uma noi-tes tiacutetulo que remete ao infinito e semelhante segundo ele agrave expressatildeo inglesa ldquoforever and a dayrdquo Para Borges a origem do livro eacute comparaacutevel agraves catedrais goacuteticas que satildeo obras de geraccedilotildees de homens Milhares de autores provavelmente ldquoconfabulatores nocturnirdquo (contadores noturnos de histoacuterias) escreveram As mil e uma noites mas nenhum deles pensou que estava conformando um livro tatildeo valioso para a humanidade

A primeira versatildeo europeia eacute de 1704 na traduccedilatildeo francesa de Antoine Galland o que foi um acontecimento capital para as literaturas europeias regidas entatildeo pelos preceitos neoclaacutessicos E aqui expressa Borges uma afirmaccedilatildeo de vital importacircncia se natildeo para nossa tese da li-teratura como processo para a motivaccedilatildeo de um Congresso de literatura fantaacutestica que trata da influecircncia de literatura do Oriente no Ocidente Diz Borges que ldquocon el movimiento romaacutentico el Oriente entra plenamente en la conciencia de Europardquo E mais para frente agrega ldquoPodriacuteamos decir que el movimiento romaacutentico empieza en aquel instante en que alguien en Normandiacutea o Pariacutes lee Las mil y una noches Estaacute saliendo del mundo legislado por Boileau estaacute entrando en el mundo de la libertad romaacutenticardquo

(Borges 1993III p 234 e 240) Ou seja que o Romantismo produz e se produz pela influecircncia do Oriente e se temos presente que o Romantismo eacute a grande revoluccedilatildeo da arte ocidental e origem de toda a arte moderna poderiacuteamos inferir que a presenccedila de Oriente eacute uma caracteriacutestica da arte moderna Uma evidecircncia disso seria precisamente aquilo que chama-mos de fantaacutestico que se faz um traccedilo presente e constante na literatura ocidental a partir do Romantismo ou em outras palavras a partir da pre-senccedila do Oriente da leitura de As mil e uma noites

No ensaio sobre Os tradutores das mil e uma noites Borges compara as diversas versotildees ocidentais do texto aacuterabe Adverte que aquela primei-ra traduccedilatildeo de Galland realizada nos albores do seacuteculo XVIII apesar de ter eliminado o conteuacutedo eroacutetico deu um destaque suficiente agrave dimensatildeo maacutegica da histoacuteria cativando os franceses da eacutepoca limitados pela pre-ceptiva poeacutetica Mais de um seacuteculo depois a traduccedilatildeo inglesa de Lane ainda que sendo mais literal tambeacutem suspende os elementos eroacuteticos pois sua intenccedilatildeo era fazer um livro familiar e soacute a versatildeo de Burton nessa liacutengua vai-se ocupar de incorporar o erotismo proacuteprio do texto original A versatildeo alematilde de Littmann destacada como a melhor pela Enciclopeacutedia Britacircnica eacute descartada porque nela falta a subjetividade presente nas tra-duccedilotildees anteriores subjetividade que eacute mais importante que uma suposta literalidade Diz Borges ldquolas versiones de Burton e de Mardrus e incluso de Galland soacutelo se dejan concebir despueacutes de una literatura Cualesquiera que sean sus lacras o sus meacuteritos esas obras caracteriacutesticas presuponen un rico proceso interiorrdquo (Borges 1993I p 412) Ou seja que agrave traduccedilatildeo (assim como agrave leitura) natildeo importa a literalidade ou fidelidade mas o seu valor literaacuterio pela subjetividade entendida como presenccedila do leitor Natildeo vamos falar aqui das consequecircncias que tal afirmaccedilatildeo tem para os estudos de traduccedilatildeo (outros jaacute tem feito isso com amplitude) soacute queremos desta-car que as traduccedilotildees de As mil e uma noites interessam a Borges pela no-vidade pela variaccedilatildeo pela recriaccedilatildeo da obra original daiacute que a traduccedilatildeo seja literatura no sentido de processo de leitura

No mesmo ensaio de Sete noites Borges conta que a histoacuteria de Aladim natildeo aparece no texto aacuterabe-persa soacute na traduccedilatildeo francesa e agrega a anedota da ldquoadmiraacutevel memoacuteria inventivardquo de De Quincey que parte de Galland para se referir a uma histoacuteria diferente Mas natildeo soacute foram os tradutores com sua literatura Galland com seu relato de Aladim De Quincey com sua ldquomemoacuteria inventivardquo ou Stevenson com

suas New Arabian Nights os que acrescentaram elementos ao texto ori-ginal tambeacutem o mesmo Borges fez isso escrevendo um dos relatos de As mil e uma noites confirmando assim natildeo soacute a fascinaccedilatildeo do portenho pela obra aacuterabe mas a maacutegica que envolve essa compilaccedilatildeo

Em 1939 Borges realiza uma resenha da traduccedilatildeo do livro aacuterabe de Richard Burton para a revista El hogar na qual escreve ldquoDe las notas que Burton agregoacute a su famosa traduccioacuten del libro Las mil y una noches traslado esta curiosa leyenda Se intitula Historia de los dos reyes y los dos laberintosrdquo (Borges apud Sardegna 2005 sp) E a continuaccedilatildeo se refere agrave histoacuteria de um rei da Babilocircnia que encerra um rei aacuterabe num confuso labirinto do qual este consegue escapar e depois leva preso agravequele rei e o abandona no deserto um labirinto sem corredores e sem portas Soacute que como conta Miguel Sardegna a histoacuteria natildeo tinha sido omitida da traduccedilatildeo francesa de Galland e resgatada posteriormente na traduccedilatildeo inglesa de Burton como disse Borges aos leitores da revista na realidade a histoacuteria foi a contribuiccedilatildeo de Borges ao livro oriental A citaccedilatildeo de obras e autores supostamente apoacutecrifos seraacute recorrente na obra do escritor argentino soacute que nesse caso particular permite-lhe contribuir com a obra convertendo-lhe numa nova Sherazade No final o referido conto aparece anos depois como ldquoLos dos reyes y los dos la-berintosrdquo na compilaccedilatildeo de contos titulada El Aleph

E em Historia universal de la infacircmia aparece o conto ldquoHistoria de los dos que sontildearonrdquo com uma anotaccedilatildeo final que diz ldquo(Del Libro de las 1001 Noches noche 351)rdquo (Borges 1993I p 339) Com efeito trata-se da citaccedilatildeo completa de um dos contos do livro aacuterabe que trata de um homem que depois de um sonho decide ir a Peacutersia procurando for-tuna mas ali eacute detido e interrogado por um capitatildeo que apoacutes ouvir o relato do sonho e da fortuna ri do homem e conta-lhe que ele tambeacutem sonha com um quintal no Cairo onde supostamente acharaacute uma for-tuna Eacute bom lembrar que eacute essa mesma histoacuteria a base do best-seller de Paulo Coelho O Alquimista Mas o interessante em todas essas novas versotildees e reescrituras eacute a confirmaccedilatildeo do que diz o mesmo Borges ldquoLas mil y una noches no han muerto El infinito tiempo de Las mil y una noches prosigue su camino [] Casi podriacuteamos hablar de muchos libros titulados Las mil y una nochesrdquo (Borges 1993III p 241)

Mas a ficccedilatildeo borgiana a fantaacutestica ficccedilatildeo borgiana vai aleacutem da citaccedilatildeo e da invenccedilatildeo de mais um relato para se ocupar de ficcionalizar a origem

do livro esse momento no qual o primeiro contador o primeiro ldquoconfa-bulator nocturnirdquo comeccedila essa catedral goacutetica esse livro interminaacutevel Em ldquoAlguienrdquo escrito em finais da deacutecada de 1980 encontramos o relato dessa origem primeira Por sua brevidade vamos citar o conto inteiro

Balkh Nishapur Alejandriacutea no importa el nombre Podemos imaginar un zoco una taberna un patio de altos miradores velados un riacuteo que ha repetido los rostros de las generaciones Podemos imaginar asimismo un jardiacuten polvo-riento porque el desierto no estaacute lejos Se ha formado una rueda y un hombre habla No nos es dado descifrar (los reinos y los siglos son muchos) el vago turbante los ojos aacutegiles la piel cetrina y la voz aacutespera que articula prodigios Tampoco eacutel nos ve somos demasiados Narra la historia del primer jeque y de la gacela o la de aquel Ulises que se apodoacute Es-Sindibad del Mar El hombre habla y gesticula No sabe (otros lo sabraacuten) que es del linaje de los confabulalores nocturni de los rapsodas de la noche que Alejandro Bicorne congregaba para solaz de sus vigilias No sabe (nunca lo sabraacute) que es nues-tro bienhechor Cree hablar para unos pocos y unas monedas y en un perdi-do ayer entreteje el Libro de las Mil y Una Noches (Borges 1991III p 171)

A histoacuteria eacute de uma siacutentese maravilhosa Mas quero chamar a aten-ccedilatildeo para quando diz ldquoTampoco eacutel nos ve somos demasiadosrdquo referecircncia necessaacuteria aos leitores que como os autores do livro aacuterabe satildeo presentes e anocircnimos De novo a literatura soacute acontece com as duas presenccedilas que apesar dos muitos reinos e seacuteculos se encontram no momento da leitura aquele momento em que ocorre aquilo que eacute chamado de Literatura

Voltando agrave conferecircncia em Buenos Aires ao tentar definir o Oriente Borges descarta o criteacuterio geograacutefico e diz que as conotaccedilotildees dessa palavra satildeo devidas agrave compilaccedilatildeo oriental a ideia de As mil e uma noites eacute a ideia de Oriente e vice-versa Diz que para o Oriente natildeo eacute importante a histoacuteria como sucessatildeo de fatos e agrega ldquoSe piensa que la literatura y la poesiacutea son procesos eternos Creo que en lo esencial tienen razoacutenrdquo (Borges 1991III p 237) Ou seja a literatura eacute uma construccedilatildeo de muacuteltiplos autoresleitores uma prolongaccedilatildeo infinita ou interminaacutevel como satildeo o Oriente e As mil e uma noites mundos construiacutedos de ldquoumas quantas figuras arquetiacutepicasrdquo

O arqueacutetipo outra ideia fundamental do universo borgiano presente na obra oriental e relacionada com essa nossa inferecircncia de que natildeo satildeo os autores (com nome proacuteprio) mas os leitores anocircnimos os que fazem a literatura E essas ideias de infinito de eternidade de prolongamento in-terminaacutevel de arqueacutetipos estatildeo todas refletidas ainda na estrutura do texto

aacuterabe na qual temos um relato dentro de outro relato que pela sua vez nos leva a outro relato e tudo isso incluiacutedo num relato maior Labirintos ver-bais dos quais tanto gostava Borges E para abranger este prolongamento infinito de versotildees e relatos eacute possiacutevel usar uma metaacutefora dele mesmo ldquoSe llamaba el Libro de Arena porque ni el libro ni la arena tienen ni principio ni finrdquo (Borges 1991III p 69) As mil e uma noites seria o livro de areia E a analogia entre ambas as histoacuterias natildeo eacute forccedilada pois o personagem do rela-to esconde o livro de areia atraacutes dos seus exemplares de As mil e uma noites

Para Borges no referido ensaio a maacutegica e os sonhos satildeo inerentes agrave nossa ideia de Oriente e de As mil e uma noites a maacutegica entendi-da como uma causalidade diferente devida a objetos ou situaccedilotildees com poder particular (como no caso da famosa lacircmpada e seu gecircnio) e os sonhos pensados como uma revelaccedilatildeo de outra realidade outra reali-dade que pode ser a literaacuteria que pode ser a realidade (como no caso jaacute referido de ldquoLos dos que sontildearonrdquo) E nessas afirmaccedilotildees sobre a maacutegica e os sonhos parecem estar as dicas para a leitura de um dos seus relatos mais importantes no qual aparece bem presente a compilaccedilatildeo aacuterabe

El sur conta a histoacuteria de Juan Dahlmann um homem culto bibliote-caacuterio que sofre um acidente enquanto estaacute lendo um raro exemplar de As mil e uma noites e deve ser internado num sanatoacuterio Estando ali ou depois de sair dali (o relato permite as duas leituras sonho ou realidade) ele vai ateacute seu siacutetio no interior da Argentina onde eacute forccedilado a entrar numa briga com faca com um homem ruacutestico que interrompe sua leitura da recopilaccedilatildeo oriental No desenlace o protagonista opta pela morte nessa briga ao estilo dos valentes gauacutechos O texto pode ser lido como uma alegoria da oposiccedilatildeo entre as letras e as armas ou entre a famiacutelia paterna alematilde e a famiacutelia mater-na argentina do personagem principal Mas o que me interessa natildeo eacute esse tipo de anaacutelise mas o fato de que o agir do personagem estaacute determinado de vaacuterias maneiras pela literatura ou seja pela leitura como ato fiacutesico e mental Ou em outras palavras pela magia e o sonho

Satildeo vaacuterios os momentos nos quais o relato anuncia este prolonga-mento ou transformaccedilatildeo da vida em literatura ndash fazendo da literatura um processo uma coisa viva uma atividade No niacutevel do fiacutesico (e do maacutegico) o primeiro personagem sofre o acidente que o leva ao sana-toacuterio e mais tarde eacute convidado agrave briga na taverna enquanto se encontra lendo As mil e uma noites Sua concentraccedilatildeo na leitura do texto aacuterabe eacute interrompida duas vezes pelo acidente e pelos homens na taverna e

nos dois casos a interrupccedilatildeo tem desenlace traacutegico Jaacute no plano mental (e do sonho) a leitura influencia a visatildeo de mundo do personagem com os pesadelos da convalescenccedila ateacute o ponto de permitir-lhe prolongar a vida (na realidade ou no sonho) como se fosse um relato Ou seja no final da vida o leitor decide ser personagem literaacuterio prolongando ou concretizando suas diversas leituras num ato A literatura a leitura aparecem como um prolongamento da vida de Juan Dalhmann assim como Sherazade prolongou sua vida contando relatos Eacute verdade que em El sur esse prolongamento acaba com a morte e que o modelo dessa morte eacute a literatura gauchesca mas soacute pela maacutegica ou pelo sonho da lei-tura eacute possiacutevel fazer essa escolha final Entatildeo esse leitor de As mil e uma noites decide se fazer relato ou em outras palavras dar vida agrave literatura

Satildeo vaacuterios os relatos borgianos nos quais a literatura eacute a origem da realidade como Tloumln Uqbar Orbis Tertius que conta a histoacuteria de um planeta criado partindo das descriccedilotildees de uma enciclopeacutedia Obviamente a ideia de El sur eacute mais modesta um homem decide morrer de maneira literaacuteria sua morte pode ser um sonho ou uma realidade tanto faz por-que os sonhos diz Borges satildeo mais reais que a vida E o mesmo entatildeo poderia ser dito da literatura Natildeo eacute casual que o personagem esteja len-do As mil e uma noites (nada na literatura de Borges ndash nem na vida ndash eacute casualidade) El Sur seria um novo relato da literatura gauchesca ou um conto sul-americano na compilaccedilatildeo oriental De qualquer jeito mais um paraacutegrafo dessa narrativa interminaacutevel e infinita que eacute a vida

No final noacutes somos uma narraccedilatildeo e nossa vida eacute soacute mais um re-lato das mil e uma noites das infinitas noites que satildeo a mesma noite Porque a literatura natildeo estaacute nas obras mas nos leitores nas lembranccedilas e projeccedilotildees com que vivemos dia apoacutes dia nas incontaacuteveis versotildees que satildeo feitas de relatos anteriores no relato que fazemos de noacutes mesmos chamado vida Somos a paacutegina de um livro de infinitos autores

REFEREcircNCIAS

BORGES Jorge Luis Obras completas Volumen I II III Buenos Aires Emeceacute Editores 1993

SARDEGNA Miguel ldquoLas mil y una noches de Robert Luis Stevensonrdquo In Revista Axololt Antildeo 3 nordm 18 Buenos Aires 2007 httprevistaaxolotlcomarotrassent18htm (Acesso em 21 de abril de 2013)

O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio

europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas

Joseacute Alberto Miranda Poza(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Apresentaccedilatildeo do Libro de Apolonio

Conforme Pablo Cabantildeas o Libro de Apolonio eacute uma das obras mais belas da literatura medieval espanhola constituindo ldquoun poema que sorprende al lector tanto por su teacutecnica casi perfecta como por su subyugante plasticidad narrativardquo (1998 p 9) Aproximar-se hoje agrave leitura do Libro de Apolonio supotildee intentar valorar as circunstacircncias histoacutericas em que foi escrito os coacutedigos culturais da eacutepoca em que seu autor se movia e mostrar o tipo de leitor-ouvinte para quem o poema foi composto (Corbella 1992)

Para comeccedilar do autor do texto natildeo sabemos nada embora exis-tam as informaccedilotildees que podem ser deduzidas a partir do proacuteprio texto Como afirma Uriacutea (2000 p 27) ldquoestamos ante un caso de anonimia absolutardquo Aleacutem disso natildeo devemos confundir em ecdoacutetica autor (do texto) com copista amanuense (do manuscrito) Nesse sentido o ma-nuscrito uacutenico conservado do Libro de Apolonio ndash Coacutedice Escurialense III-K-4 ndash eacute uma coacutepia com muitos erros e diferentes rasuras que afetam letras siacutelabas e palavras Pela grafia e algumas caracteriacutesticas linguiacutesti-cas a coacutepia eacute datada como sendo de 1390 e a liacutengua foi modernizada pelo copista Apresenta traccedilos do catalatildeo e do aragonecircs que comprome-tem o cocircmputo silaacutebico e o ritmo o que indica que esses traccedilos seriam do copista e natildeo do autor originaacuterio que escreveu em castelhano do seacuteculo XIII (Giroacuten Alconchel 2002)

Considerando as influecircncias latinas e gregas do texto podemos chegar agrave conclusatildeo conforme Alvar (1976 p 66) de que o autor era homem que possuiacutea uma grande cultura De fato numa passagem da obra ele caracteriza a figura de Apolocircnio como homem de letras

como intelectual com referecircncias a fontes culturais e literaacuterias da eacutepoca (Cabantildeas 1998 p 45)

Encerroacutese Apolonio en sus salas privadasdonde teniacutea escritos e historias comentadasleyoacute sus argumentos las hazantildeas pasadascaldeas y latinas tres veces repasadas

Conhecia a tradiccedilatildeo da Odisseia que comeccedila com Homero e vai ree-laborar-se nas novelas de viagens e aventuras da eacutepoca bizantina mas tam-beacutem conhecia a literatura em liacutengua latina que imitava alguns autores egreacute-gios Com todos esses elementos tatildeo variados o autor anocircnimo conseguiu criar sua obra original muito aleacutem da contingecircncia de um empreacutestimo

Pero nada surge de la nada la cultura es un lento quehacer Y la serie innu-merable de coautores del relato nos manifiesta la personalidad de cada uno de ellos [hellip] Al final tenemos un texto que es el resultado de otros muchos (Alvar 1976 p 67)

O autor portanto era homem de letras o que vale tanto como di-zer na eacutepoca cleacuterigo O cristianismo teve um papel essencial em todo Ocidente ao longo do medievo em especial para o que agora nos inte-ressa cabe ressaltar sua relevacircncia na transmissatildeo cultural conformou ndash para bem ou para mal ndash o pensamento e a vida social de toda a Europa Ocidental Por isso natildeo eacute estranho que a geografia arquitetocircnica nos ofe-reccedila inclusive atualmente a presenccedila constante de uma igreja em cada cidade ou aldeia cuja origem se encontra na inveterada tradiccedilatildeo que se deu ao longo de todo o medievo todas as cidades medievais possuiacuteam sua igreja e ao redor dela distribuiacutea-se o resto da populaccedilatildeo de onde surge por sua vez o conceito de paroacutequia Mas natildeo soacute as igrejas como lugar de culto e siacutembolo ideoloacutegico e aglutinador que presidia a vida social no incipiente meio urbano mas tambeacutem no campo no acircmbito rural os mos-teiros desenvolveram uma funccedilatildeo absolutamente primordial na histoacuteria da cultura Porque neles natildeo se ensinava apenas doutrina mas tambeacutem se conservavam e elaboravam (copiavam traduziam) textos de obras lite-raacuterias da Antiguidade (Miranda Poza 2011 p 163)

Os monges que conviviam no seio dos mosteiros eram submeti-dos a diversas regras como observar as horas destinadas agrave oraccedilatildeo agrave leitura e ao estudo das Sagradas Escrituras o cultivo do horto cuidar

dos doentes mas muito em especial desenvolviam o ingente labor de copiar no scriptorium da biblioteca do mosteiro manuscritos em latim e no percurso do tempo tambeacutem em liacutenguas romacircnicas A conhecida obra de Umberto Eco O nome da rosa constitui um magniacutefico exemplo de reconstruccedilatildeo da vida daqueles monges naqueles mosteiros medie-vais Contudo como jaacute indicamos em outro lugar (Miranda Poza 2007 p 124) o vocaacutebulo ldquoclereciacuteardquo nem sempre designava de forma exclusiva o acircmbito religioso Cleacuterigo no medievo designava o homem letrado estudioso embora a maior parte entre os que estudavam fosse efetiva-mente religiosa

Nesse sentido duas anotaccedilotildees devem ser feitas A primeira com re-laccedilatildeo ao tiacutetulo do livro Como a maior parte dos escritos dos seacuteculos XIII e XIV no tiacutetulo aparece o termo ldquolivrordquo cujo sentido natildeo era apenas ldquovo-lume formado por folhas de papel ou vitelardquo mas tambeacutem apresentava o significado de ldquomarco ordenador de certo conteuacutedo textualrdquo O poeta ainda diz que quer componer un romance de nueva maestria (Cabantildeas 1998 p 41) onde ldquoromancerdquo significaria natildeo soacute ldquopoema natildeo latinordquo mas ldquotexto de verossimilitude natildeo histoacuterica com desenvolvimento argumen-tativo e literaacuteriordquo em outras palavras de ficccedilatildeo (Michael 1986 p 510) A segunda das anotaccedilotildees faz referecircncia agrave expressatildeo ldquonueva maestriacuteardquo Com efeito o texto pertence a um novo gecircnero na poesia peninsular medieval em liacutengua neolatina o Mester de Clereciacutea Aproximadamente desde comeccedilos do seacuteculo XIII ateacute finais do seacuteculo XIV surgiram em Castela uma seacuterie de obras escritas total ou parcialmente em estrofes de quatro versos alexandrinos (de 14 siacutelabas no cocircmputo hispacircnico e 12 no cocircmputo portuguecircs-francecircs) com rima consoante e uma cesura ou pausa na metade do verso (respectivamente na seacutetima ou sexta siacutela-ba conforme o cocircmputo meacutetrico de referecircncia)6 Uma nova forma que caracteriza uma nova poesia A primeira obra que apresenta esta nova forma de poesia este novo ofiacutecio esta nova arte (ou mester) foi a versatildeo

6 Haacute uma diferenccedila como podemos apreciar na meacutetrica das tradiccedilotildees espanhola e por-tuguesa Na tradiccedilatildeo espanhola todo verso que termina em palavra oxiacutetona acrescenta uma siacutelaba no cocircmputo Destarte natildeo haacute por exemplo versos monossiacutelabos na meacutetrica espanhola porque todo monossiacutelabo eacute forccedilosamente tocircnico oxiacutetono com valor meacutetri-co duplo (Masip 2002 p 58) Por sua vez a meacutetrica portuguesa apenas toma em conta na uacuteltima palavra do verso a uacuteltima siacutelaba tocircnica de forma que um verso acabado em voz paroxiacutetona contaria com uma siacutelaba a menos do que na tradiccedilatildeo meacutetrica espanhola

castelhana do Libro de Alexandre obra anocircnima do seacuteculo XIII anterior ao Libro de Apolonio que copiava reproduzia ou recriava o Roman de Alexandre francecircs Para Goacutemez Moreno (1984) confrontando o proacutelogo do Libro de Alexandre com os de outras obras principalmente francesas clereciacutea significava entre os poetas do seacuteculo XIII ldquomoralidaderdquo mais ldquoverdade histoacutericardquo mais ldquocapacidade de traduccedilatildeordquo mais ldquoconhecimento das artes meacutetricasrdquo Os primeiros versos do texto que fundava o novo gecircnero contecircm a definiccedilatildeo formal da cuaderna viacutea que caracterizaraacute o movimento (Cantildeas Murillo 1983 p 85)

Mester traygo fermoso non es de joglariacuteaMester es sen pecado ca es de clereciacuteaFablar curso rimado por la quaderna viaA siacutellabas cunctadas ca es grand maestria

A estrofe eacute composta por versos alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas conforme o tipo de contagem) que se repetem regularmente na estro-fe de quatro versos divididos em duas partes simeacutetricas denominadas hemistiacutequios que constam de 7 (ou 6) siacutelabas cada um7 No primeiro hemistiacutequio para manter o ritmo do verso aparece um acento secundaacute-rio na sexta siacutelaba (uacuteltima na contagem portuguesa) de forma paralela ao que ocorre no segundo hemistiacutequio (Masip 2002 p 88) A cesura se manifesta na declamaccedilatildeo por uma breve pausa e nas ediccedilotildees criacuteticas ou filoloacutegicas eacute comum o costume de reproduzir um espaccedilo em branco en-tre os dois hemistiacutequios apoacutes a cesura conforme se mostra no esquema a seguir (Miranda Poza 2007 p 125)

7 O professor Vicente Masip (2002 p 65-66) define os versos alexandrinos dentro da epiacutegrafe correspondente aos tetradecassiacutelabos espanhoacuteis (tridecassiacutelabos portu-gueses) com estas palavras ldquoPoseen catorce siacutelabas meacutetricas en espantildeol y doce en portugueacutes distribuidas en dos hemistiquios de siete (seis en portugueacutes) Se llaman asiacute debido al Roman dacuteAlexandre poema franceacutes de la segunda mitad del siglo XIII usado por el autor del Libro de Alexandre espantildeol del siglo XIII El verso alejandrino fue usado por los poetas cultos del ldquoMester de Clereciacuteardquo durante los siglos XIII y XIV con el objetivo de oponer una forma regular de ldquosiacutelabas contadasrdquo a la irregularidad meacutetrica de los trovadores populares del ldquoMester de Juglariacuteardquo Este tipo de verso fue abandonado a partir del siglo XVI (exceptuando el famoso soneto a la Santiacutesima Virgen Mariacutea de Pedro Espinosa [1578-1650]) y soacutelo fue retomado en el siglo XVIII convirtieacutendose raacutepidamente en metro preferido de los romaacutenticos junto con el ende-casiacutelabo (decassiacutelabo portuguecircs)rdquo

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute acuteMes ter tray go fer mo so non es de jo gla riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteMes ter es sen pe ca do ca es de cle re ciacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteFa blar cur so ri ma do por la qua der na viacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteA siacute lla bas cunc ta das ca es grand ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Observemos como as estrofes de ldquonueva maestriardquo do Libro de Apolonio reproduzem exatamente o mesmo esquema formal8

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute (+ 1) acuteEn el nom bre de Dios τ de San ta Ma riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutesi e llos me gui a ssen es tu di ar que rriacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutecon po ner hun ro man ccedile de nue ua ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutedel Buen rey A po lo nio τ de su cor te siacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

8 Aos efeitos de contagem de siacutelabas tomamos como referecircncia na ocasiatildeo a ediccedilatildeo filoloacutegica mais fiel ao original de Dolores Corbella (1992 p 71)

Cabe perguntar-se agora uma vez abordada a caracterizaccedilatildeo do texto no que tange aos aspectos formais sobre a originalidade do autor no con-texto medieval descrito acima A intertextualidade eacute inevitaacutevel Primeiro em termos gerais como indicam Todorov (1972 p 28) ldquotodo lo nuevo en literatura no es sino material antiguo vuelto a forjarrdquo ou Claudio Guilleacuten (1985 p 220) ldquono hay literatura sin aceptacioacuten realizacioacuten transforma-cioacuten o transgresioacuten de unos modelos arquetiacutepicosrdquo Com efeito aleacutem do recurso retoacuterico agrave verossimilitude que faz o proacuteprio autor ao longo do texto ndash miradlo en la historia si a miacute no me creeacuteis (Cabantildeas 1998 p 94) ndash na literatura medieval se parte de outro conceito de literalidade diferente do que hoje temos De fato De Bruyne (1988 p 15) afirma

No se debe esperar que la Edad Media aporte definiciones nuevas u origi-nales los medievales [hellip] se dan por satisfechos con lo que encuentran en los textos antiguos pues [hellip] eacutestos no soacutelo transmiten el pensamiento de los Antiguos sino que son la evidencia del sentido comuacuten que es tambieacuten el buen sentido

Na Idade Meacutedia o texto singular responde a uma alteridade o que faz que ele esteja sempre definido em relaccedilatildeo aos demais onde eacute tatildeo importan-te a assimilaccedilatildeo quanto a transformaccedilatildeo a imitaccedilatildeo quanto a originalidade (Corbella 1992) Nesse contexto histoacuterico-cultural o medievo eacute uma ldquocul-tura textualizadardquo (Lotman 1979 p 26-27) onde eacute tatildeo real o mundo das coisas como o mundo dos signos a realidade vivida como a lida

2 Conteuacutedo do Livro de Apolonio A histoacuteria de Apolocircnio rei de Tiro

O professor Pablo Cabantildeas (1998 p 15-30) descreve de forma cer-teira o prolixo argumento do Libro de Apolonio estabelecendo ateacute sete partes diferenciadas entrelaccediladas atraveacutes de haacutebeis estrofes de transi-ccedilatildeo que conduzem o leitor-ouvinte pela conturbada histoacuteria dos prota-gonistas da trama embora no corpo do texto natildeo exista nenhuma divi-satildeo formal da primeira linha do manuscrito ateacute a uacuteltima Natildeo em vatildeo o argumento da obra responde a uma estrutura semelhante agrave novela bizantina gecircnero equivalente durante as centuacuterias medievais ao que em nossos dias poderia representar uma novela de aventuras cujo remoto precedente se encontra naquela (Alborg 1997 p132) Essas estrofes de

transiccedilatildeo asseguram a coerecircncia textual e ajudam o leitor no acompa-nhamento da trama Apenas dois exemplos

Pero del Rey Antioco quiero dejar de hablarquiero la narracioacuten a Apolonio tornarEn Tarso lo dejamos debemos recordar (Cabantildeas 1998 p 50)

Dejemos a la dama guarde su monasteriosirva su iglesia y rece los salmos del salterioVolvamos a Apolonio con nuestro ministeriollevoacute en las aventuras un infortunio serio (Cabantildeas 1998 p 88)

O resumo do argumento poderia ser o seguinte

[I] Antiacuteoco rei da Antioquia fica viuacutevo e acaba dormindo com sua proacutepria filha Uma mulher aconselha agrave filha que oculte o pecado Procurada como futura esposa por priacutencipes vizinhos o rei consegue manter a situaccedilatildeo sem ser revelada mediante um ardil (ldquodo diabordquo) pro-potildee aos postulantes a resoluccedilatildeo de um enigma Se natildeo adivinhassem a resposta certa seriam decapitados como de fato aconteceu com alguns pretendentes Ateacute que chegou Apolocircnio rei de Tiro que daacute com a res-posta certa que esconde a vergonha mas o rei Antiacuteoco diz que essa res-posta eacute uma grande afronta poreacutem lhe outorga alguns dias para buscar uma nova soluccedilatildeo Apolocircnio sabendo que ele estaacute certo foge com medo de ser executado e em natildeo havendo outra resposta possiacutevel ao enigma comeccedila assim o peacuteriplo aventureiro

[II] Antiacuteoco fica irado com a fugida de Apolocircnio e envia a Tiro um criado para assassinaacute-lo mas Apolocircnio jaacute tinha fugido a Tarso com criados e provisotildees

[III] Apolocircnio se estabelece em Tarso salvando a cidade da pobre-za com o que consegue a gratidatildeo dos moradores Mas temeroso de Antiacuteoco parte para Pentapolin Ocorre um temporal Apenas ele conse-gue se salvar chegando agarrado a uma tabua ateacute a praia onde eacute resgata-do por um pescador que o acolhe compartilhando o pouco que ele tem Recuperado Apolocircnio vai ateacute a cidade e joga bola com outros jovens

destacando-se no jogo pela sua classe e habilidade no que eacute advertido pelo rei Architrastes o qual o convida a jantar No jantar conhece a filha do rei Luciana que toca admiravelmente para ele Apolocircnio seraacute o fu-turo mestre da filha e pouco depois seu marido Com Luciana graacutevida chegam notiacutecias da morte de Antiacuteoco e da filha dele pelo qual Apolocircnio prepara uma viagem para recuperar o reino de Antioquia Luciana o acompanha apesar de seu estado O parto se adianta por causa da via-gem e morre (aparentemente) no parto O corpo eacute jogado ao mar apesar da oposiccedilatildeo de Apolocircnio pela supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo conveniente e ricamente disposto num caixatildeo com instruccedilotildees para seu enterro caso chegasse porventura ateacute terra firme

[IV] Com efeito o caixatildeo chega ateacute Eacutefeso descoberto na praia por um meacutedico que com a ajuda do seu assistente consegue reviver a dama Uma vez de volta agrave vida Luciana manda construir um mosteiro onde serviraacute a Deus

[V] Apolocircnio abalado pela perda da sua esposa volta a Tarso Natildeo se daacute a conhecer Pede a Estrangilo que cuide da sua filha Tarsiana pois ele vai morar no Egito

[VI] Morto Estrangilo Dioniacutesia a esposa dele manda matar Tarsiana para favorecer a proacutepria filha Fracassa porque no momento da tentativa de execuccedilatildeo chegam uns ladrotildees que raptam Tarsiana e a levam para ser vendida no mercado Eacute vendida a um proxeneta mas o primeiro cliente Antinaacutegona o senhor da cidade eacute convencido pelo rogo da donzela para natildeo maculaacute-la Posteriormente isso mesmo acon-teceraacute com os sucessivos clientes que seratildeo convencidos pela beleza do seu canto tendo sempre a proteccedilatildeo de Antiacutegona que juraraacute amor pater-no por ela

[VII] Volta Apolocircnio para ter notiacutecias da sua filha Dioniacutesia lhe diz que ela morreu mas as laacutegrimas do heroacutei natildeo brotam diante do falso tuacutemulo Embarca em direccedilatildeo a Tiro na sua busca Antinaacutegora visita o navio de Apolocircnio que natildeo participa da festa de recepccedilatildeo e fica isola-do no seu camarote Para tentar consolar Apolocircnio Antinaacutegora chama Tarsiana Depois de longa conversa entre os dois Apolocircnio descobre

que se trata realmente da sua filha Felicidade Consente o casamento dela com Antinaacutegora Feito o casoacuterio Apolocircnio planeja visitar Tarso e voltar a Tiro mas uma apariccedilatildeo em sonhos lhe aconselha ir ateacute Eacutefeso no templo que dizem de Diana A abadessa eacute realmente Luciana Apolocircnio recupera seu reino e mostra sua generosidade com quem lhe ajudou O final do texto eacute de teor claramente moralizante fugacidade das coisas do mundo terrestre caducidade da vida e solicitaccedilatildeo da graccedila e da miseri-coacuterdia de Deus

3 Fontes primaacuterias do Libro de Apolonio

Cerca de 100 manuscritos satildeo os textos conservados sobre a his-toacuteria de Apolocircnio alguns deles de tradiccedilatildeo claacutessica latina nos quais se falava da incineraccedilatildeo praacutetica abandonada paulatinamente no mundo ocidental a partir do seacuteculo IV quando o Cristianismo se converteu em religiatildeo oficial Aparecem tambeacutem contiacutenuos elementos pagatildeos como invocaccedilotildees a Netuno alusotildees a Apolo e a esposa de Apolocircnio aguarda sua chegada no templo de Diana Fala-se entatildeo em ecdoacutetica da exis-tecircncia do hipertexto datado no seacuteculo V ou VI a partir do qual se for-maram cinco ramos ou versotildees gerais

bullA Historia Apollonii Regis Tyri

bullA Gesta Apollonii Regis Tyri metrica

bullO Phanteon de Godofredo de Viterbo em versos latinos escrito entre 1186 e 1191 espeacutecie de histoacuteria universal na qual se inclui ao lado de outros relatos a histoacuteria de Apolocircnio

bullA Gesta Romanorum que inclui no capiacutetulo 153 a histoacuteria de Apolocircnio De tribulatione temporali que in gaudium sempiternum postremo commutabitur

bullOs Carmina Burana breve texto poeacutetico latino de comeccedilos do seacuteculo XIII onde Apolocircnio narra sumariamente em seis estrofes as aventuras da sua vida

Mas natildeo soacute devemos tomar em conta suas origens latinas A per-meabilidade da cultura claacutessica permite supor a existecircncia preacutevia de

um texto ainda mais antigo que remontaria agrave eacutepoca helecircnica (Corbella 1992 p 27) Com efeito foram achados paralelismos entre a histoacuteria de Apolocircnio e algumas obras de Xenofonte aleacutem claro eacute do inequiacutevoco caraacuteter odisseico acima evocado tanto pela estrutura do poema quanto pelos numerosos topoi que depois seratildeo conservados e repetidos ao lon-go dos seacuteculos Poreacutem a histoacuteria natildeo copia a Odisseia mas tem temas que satildeo dela situaccedilotildees que procedem de velhos peacuteriplos a caminho de Iacutetaca e isso cria um clima que eacute impossiacutevel negar

Contudo pense-se na caracterizaccedilatildeo que no Libro de Apolonio eacute dada ao protagonista tratado como um heroacutei mas ao mesmo tempo como um perfeito cavaleiro que em palavras de Manuel Alvar (1989 p 51 63) ldquoparticipa de una postura espiritual que es goacuteticardquo ldquoApolonio presenta esa otra faz del siglo XIII en la que el hombre se preocupa por el hombre en la que se siente atraiacutedo por los problemas de su realidad y su tiempordquo

Portanto quanto agrave originalidade do texto podemos dizer que o fato da trama novelesca natildeo ser outra coisa do que uma seacuterie de possiacuteveis lugares comuns natildeo afeta a proacutepria existecircncia do relato Certo eacute que cada um dos episoacutedios do texto pode ter um antecedente ou uma rela-ccedilatildeo com motivos mais ou menos difundidos mas o que temos diante dos nossos olhos eacute uma criatura iacutempar e singular Um caso egreacutegio da literatura espanhola o Lazarillo de Tormes tambeacutem natildeo apareceu do nada contos proveacuterbios tipos situaccedilotildees Mas Alvar pergunta eacute apenas isso o Lazarillo

En verdad que puede parecer postiza la historia de Antioco que los temas del incesto abundan por doquier que la compra de doncellas por rufianes explotadores no es nunca novedad [hellip] pero nada de ello sirve para explicar la Historia Apollonii mucho menos para entender la naturaleza poeacutetica del Libro espantildeol y su encanto (Alvar 1976 p 47)

4 A intertextualidade no Libro de Apolonio

41 A tradiccedilatildeo grega

Artiles (1976 p 15) como outros criacuteticos jaacute mencionados como Alborg (1997) afirmava que o Libro de Apolonio ldquoes una novela bizan-tina versificada metida en caacutenones de cuaderna viacuteardquo E efetivamente como ocorre nas novelas gregas deste gecircnero o poema mistura elemen-tos da literatura sentimental e novelesca amores impossiacuteveis e viagens tempestuosas perdas e reencontros

O mar seraacute a evasatildeo de previsiacuteveis males ou representaraacute o senti-mento de vontade de aventuras Assim raciocina Apolocircnio quando de-cide sair de Tiro e adentrar o mar aventurando-se no desconhecido nos misteacuterios e expondo-se a eventuais perigos longe da tranquilidade que lhe proporcionava seu reino (Cabantildeas 1998 p 59)

Viviacutea en mi reino regalado y honradono conociacutea penas viviacutea descansadoteniacuteame por torpe y por menoscabadoporque por muchas tierras no habiacutea viajado

No diaacutelogo platocircnico Feacutedon fala-se dos misteacuterios que os heroacuteis dos relatos lendaacuterios natildeo souberam acatar e por isso seguiram os caminhos da dor (Alvar 1976 p 49)

oὐ μέντοι rsquoαλλὰ τόδε γέ τίς μοι δοκεῖ ὡ Κέβης εὖ λέγεσθαι τὸ θεους εἰναι ἡμῶν τοὺς ἐπιμελουμενους καὶ ἡμας τοὺς ἀνθρώπους ἐν τῶν κτημάτων τοὶς θεοῖς εἶναι [Aquilo dos misteacuterios de que noacutes homens nos encontra-mos numa espeacutecie de caacutercere que nos eacute vedado abrir para escapar Uma coisa pelo menos Cebete me parece bem enunciada que os deuses satildeo nos-sos guardiotildees e noacutes homens propriedade deles]9

Agrave tradiccedilatildeo da Odisseia responde o relato autobiograacutefico dos heroacuteis Surgem as aventuras e desventuras dos protagonistas tanto no Libro como nas novelas gregas Haacute muito tempo que foi dito que as nove-las gregas satildeo uma espeacutecie de sequecircncias cinematograacuteficas (Rattenbury 1935 pp XXII e XCII) que nos conduzem de um cenaacuterio para outro de

9 Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico Feacutedon Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia)

aventura em aventura e noacutes ndash simples espectadores ndash corremos atraacutes da dor dos heroacuteis Mas aleacutem disso a vida dos protagonistas eacute a muacutesica ambiente que faz vibrar as estrofes do Libro ou move a compaixatildeo dos leitores natildeo eacute a vida como peripeacutecia mas a autobiografia contemplada como passado remoto que move o leitor numa identificaccedilatildeo de simpa-tia ateacute aqueles heroacuteis golpeados pelo destino

Tambeacutem como na Odisseia no Libro de Apolonio os companheiros do heroacutei morrem e apenas ele se salva e consegue chegar agrave praia agarra-do numa tabua

Libro de Apolonio Odisseia

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echarDe vestido y calzado pobre estaba al llegara Pentapolin tierra donde hubo de arribar

ἧος ὁ ταῦθ᾽ ὣρμαινε κατὰ φρέναα καὶ κατὰ θυμὁνὧρσε δ᾽ ἐπὶ μέγα κῦμα Ποσειδάων ἐνοχθωνδεινόν τ᾽ ἀργαλέον τε κατηρεφές ἤλασε δ᾽ αὐτόνὡς δ᾽ ἄνεμος ζαης ἠἲων θημῶνα τινάξῃκαρφαλέων τὰ μὲν ἂρ τε διεσκέδασ᾽ ἂλλυδις ἂλλῃὥς τῆς δούρατα μακρὰ διεσκέδασ᾽ αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςἀμφ᾽ ένὶ δούρατι βαῖνε κέληθ᾽ ώς ἵππον ἐλαύνων

Fez surgir logo Posido que a terra sa-code uma vaga cheia de grandes peri-gos que se arca e sobre ele desaba Bem como vento impetuoso que monte de palha desmancha para levaacute-lo em re-moinho de um lado para outro desfeito dessa maneira o mar forte os pranchotildees espalhou Odisseu monta num deles tal como se fosse cavalo de pista

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 57) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 V vv 365-372) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 108)

Como Apolocircnio quando natildeo tem roupas adequadas para entrar no palaacutecio de Archistrastes Ulisses ataviado pobremente tambeacutem fica no umbral da sua proacutepria casa

Libro de Apolonio Odisseia

Apolonio por miedo de la Corte enojarno teniacutea vestido nada con que adornarno quiso de verguumlenza en el palacio entrarretornoacute hasta la puerta y comenzoacute a llorar

ἀγχίμολον δὲ μετ᾽ αὐτὸν ἐδύσετο δώματ᾽ [Ὀδυσσεύςπτωχῷ λευγαλέω ἐναλίκιος ἠδὲ γέροντισκηπτόμενος τὰ δὲ λυγρὰ περὶ εἴματα ἓστοἷζε δ᾽ ἐπὶ μελίνου οὐδοῦ ἔντοσθε θυράωνκλινάμενος σταθμω κυπαρισσίνω ὃν ποτε τέκτωνξέσσεν ἐπισταμένως καὶ ἐπὶ στάθμην ἴθυνην

[Entra na sala depois do porqueiro o divino Odisseu desfigurado num velho pedinte de miacutesero aspecto num pau firmado cobrindo-lhe o corpo uns andrajos trazia Sobre a soleira de freixo da porta de dentro assentando-se no umbral o corpo encostou de cipreste que o artiacutefice outrora com muito engenho lavrara tomando as medidas com fio]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 63) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XVII vv 336-341) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 297)

Como na Odisseia a muacutesica serve para envolver o relato das aven-turas dos heroacuteis Assim Demoacutedoco o aedo movido por um impulso di-vino faz chorar a Ulisses pelo qual Alciacutenoo decide suspender seu can-to para natildeo perturbar o convidado Paralelamente no Libro Apolocircnio chora de pena e natildeo se deleita diferentemente dos presentes com os cantos de Luciana filha de Architrastes

Libro de Apolonio Odisseia

Comenzoacute Apolonio de suspiros cargadodijo toda su pena por lo que hubo pasadodoacutende estaacuten tierra y reino coacutemo era llamadobien lo escuchoacute la dama teniendo gran agrado

Los altos y los bajos todos de ella deciacuteanLa dama y la vihuela tan bien se sucediacuteanque lo tienen a hazantildea todos los que lo oiacuteanHizo otros ejercicios que mucho maacutes valiacutean

Alabaacutendola todos Apolonio callabaPensando estuvo el rey por queacute eacutel no hablabaLe preguntoacute y le dijo que se maravillabaque con todos los otros tan mal de acuerdo [estaba

ταῦτ᾿ ἂρ᾿ ἀοιδὸς ἂειδε περικλυτός αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςτήκετο δάκρυ δ᾿ ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάςὡς δὲ γυνή κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσαὁς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσινἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἧμαρ

ldquoκέκλυτε Φαιήκων ἡμήτορες ἠδὲ μέδοντεςΔημόδοκος δ᾿ ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειανοὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ᾿ ἀείδει

[Isso narrava o famoso cantor Odisseu entrementes liquefa-zia-se em laacutegrimas tendo ba-nhadas as faces como mulher abraccedilada no corpo do caro ma-rido que sucumbisse a lutar jun-to aos muros e seus moradores a defendecirc-la e a seus filhos da sorte do dia impiedoso [] Pare portanto o cantor porque ale-gres fiquemos noacutes todos]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 66-67) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 521-525) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 536-538) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 150-151)

Apolocircnio enfim comeccedila sua peregrinaccedilatildeo por terras de Egito da mesma forma que no relato eacutepico de Homero tambeacutem Ulisses dirige suas naves ateacute o Egito

Libro de Apolonio Odisseia

laquoTe encomiendo la hija te la doy a criarcon su ama Licoacuterides que la sabraacute guardarno quiero los cabellos ni las untildeas cortarhasta que casamiento bueno le pueda dar

laquoHasta que yo esto pueda cumplir y prepararel reino de Antioco yo le quiero dejarAhora ni en Pentapolin ni en Tiro quiero entrarIreacute hasta Egipto donde quiero mientras estarraquo

μῆνα γὰρ οἷον ἔμεινα τεταρπόμενος τεκέεσσινκουριδίῃ τ᾽ ἀλόχω καὶ κτήμασιν αὐτὰρ ἔπειταΑἴγυπτὸνδε με θυμὸς ἀνώγει ναυτίλλεσθαι

[Um mecircs somente fiquei deleitando-me ao lado dos filhos da que esposei quando virgem pois logo depois de algum tempo me manda o peito viajar outra vez para o Egito distante]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 91) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XIV vv 244-246) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 244)

42 A tradiccedilatildeo latina

Como no caso da grega a tradiccedilatildeo latina se faz presente em diversas pas-sagens do Libro de Apolonio Jaacute foi dito que a muacutesica e quem a interpreta o vate as habilidades musicais em geral satildeo traccedilos positivos caracterizadores do heroacutei Isso mesmo se narra na tradiccedilatildeo claacutessica latina dentre outros na fi-gura de Oviacutedio Nas Tristia ele mesmo se apresenta para a posteridade como poeta relevante na introduccedilatildeo agrave sua obra (Oviacutedio 1997 p 66) Ille ego qui fuerim tenerorum lusor amorum Quem legis ut noris accipe posteritas10

Natildeo resulta estranho portanto que Apolocircnio chegue a ser compa-rado pelo autor do Libro com o poeta Orfeu um dos grandes mitos da tradiccedilatildeo claacutessica (Cabantildeas 1998 p 68)

Todos por una boca deciacutean y afirmabanque ni Apolo ni Orfeo mejor que eacuteste tocabanel cantar de la dama al que mucho alababanante eacuteste de Apolonio en nada lo apreciaban

Com efeito nas Metamorfoses Oviacutedio narra a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Receacutem-casada a jovem Euriacutedice eacute mordida por uma cobra

10 ldquoVem conhecer posteridade o poeta que fui De amores ternos o poeta que ora lecircsrdquo (Oviacutedio 1997 p 67) ldquoSabei oacute Posteridade para que me conheccedilas que sou aquele que fui cantor dos ternos amores que lecircsrdquo (Naso 1952 p173)

e morre Nam nupta per herbas dum noua Naiadum turba comitata uagatur occidit im talum serpentis dente recepto (Ovidio Nasoacuten 1994 p171)11 Depois de chorar a morte da amada no mundo terreno o excel-so poeta decide descer ao Estige e consegue convencer Perseacutefone atra-veacutes do seu belo canto e suas doces palavras para devolver Euriacutedice ao mundo dos mortais Quem satis ad superas postquam Rhodopeiumlus auras defleuit uates ne non temptaret et umbras ad Styga Taenaria est ausus descendere porta (Ovidio Nasoacuten 1994 p 171)12 Comovidos os deuses das trevas concedem o pedido do vate

Talia dicentem neruosque ad uerba mouentemexsangues flebant animae []Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama estEumenidum maduisse genas nec regia coniuxsustinet oranti nec qui regit ima negareEurydicenque uocant13

(Ovidio Nasoacuten 1994 p173)

Poreacutem a libertaccedilatildeo eacute concedida sob uma condiccedilatildeo natildeo voltar os olhos para a amada ateacute sair do Averno Hanc simul et legem Rhodopeiumlus accipit Orpheus ne flectat retro sua lumina donet Auernas exierit ual-les aut irrita dona futura (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)14 Quando che-gavam no limite dos dois mundos temeroso de que ela pudesse enfra-quecer Orfeu voltou seu rosto para Euriacutedice e no mesmo instante ela caiu no abismo Nec procul afuerunt telluris margine summae hic ne deficeret metuens auidusque uidendi flexit amans oacuteculos et protinus illa relapsa est (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)15 Portanto o canto de Apolocircnio

11 ldquoEuriacutedice pouco depois do casamento quando passeava com as ninfas suas compa-nheiras [] pisou em uma cobra foi mordida no peacute e morreurdquo (Bulfinch 2001 p 224)

12 ldquoOrfeu cantou seu pesar para todos quantos respiram na atmosfera superior deuses e homens e nada conseguindo resolveu procurar a esposa na regiatildeo dos mortos Desceu por uma gruta situada ao lado do promontoacuterio de Teacutenaro e chegou ao reino do Estigerdquo (Bulfinch 2001 p 224-226)

13 ldquoEnquanto cantava estas ternas palavras os proacuteprios fantasmas derramavam laacutegri-mas [] Entatildeo pela primeira vez segundo se diz as faces das Fuacuterias umedeceram-se de laacutegrimas Proseacuterpina natildeo pocircde resistir e o proacuteprio Plutatildeo cedeu Euriacutedice foi cha-madardquo (Bulfinch 2001 p 226)

14 ldquoOrfeu teve permissatildeo de levaacute-la consigo com uma condiccedilatildeo a de que natildeo se voltaria para olhaacute-la enquanto natildeo tivessem chegado agrave atmosfera superiorrdquo (Bulfinch 2001 p 226)

15 ldquoateacute quase atingirem as risonhas regiotildees do mundo superior quando Orfeu num momento de esquecimento para certificar-se de que Euriacutedice o estava seguindo olhou para traacutes e Euriacutedice foi entatildeo arrebatadardquo (Bulfinch 2001 p 226)

eacute aqui comparado com a excelecircncia do famoso poeta que foi capaz de comover ateacute as divindades das trevas

Outro episoacutedio do Libro nos aproxima da mitologia claacutessica Quando viacutetima do naufraacutegio pobre e exausto Apolocircnio eacute hospedado por um hu-milde pescador que vai compartilhar com ele o pouco que tem o heroacutei pro-mete recompensaacute-lo no futuro pela sua boa accedilatildeo (Cabantildeas 1998 p 58-59)

El rey con gran verguumlenza porque pobre estuvierafue hacia el pescador salioacutele a la esperalaquomdashiexclDios te salve mdashle dijo como cosa primeraRespondioacute el pescador de sabrosa maneralaquomdashAmigo mdashdijo el reymdash tuacute bien lo puedes verPobre y necesitado estoy no traigo haberAsiacute Dios te bendiga que te pueda placerque comprendas mi pena y la quieras saberlaquoTan pobre cual tuacute ves desnudo y desdichadode un buen reino soy rey muy rico y potentadode la ciudad de Tiro donde era muy amadodiacutecenme Apolonio por nombre sentildealadoraquoSu vestido partioacute maacutes tarde con su espadadio al rey la mitad lo llevoacute a su posadaLe dio de cenar cuanto pudo no escondioacute nadaPor un hueacutesped ninguna cena fue mejor dada

Tambeacutem nas Metamorfoses a histoacuteria de Filecircmon e Baucis pode re-presentar perfeitamente um antecedente textual deste episoacutedio Filecircmon eacute um velho camponecircs marido de Baucis que recebeu junto com esta a visita de Juacutepiter que se apresentou de incoacutegnito na casa deles

Iuppiter hunc specie mortali cumque parenteuenit Atlantiades positis caduficer alis mille domos adiere locum requiemque petentesmille domos clausere serae tamen una recepitparua quidem stipulis et canna tecta palustrised pia Baucis anus parilique aetate Philemonilla sunt annis iuncti iuuenalibus16

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 120-121)

16 ldquoCerta vez Juacutepiter sob forma humana visitou a regiatildeo em companhia de Mercuacuterio (o do caduceu) sem suas asas Apresentaram-se como viajantes fatigados a muitas portas pro-curando abrigo e reposo mas encontraram todas fechadas Afinal uma moradia humil-de acolheu-os uma pequena choupana onde uma piedosa velha Baucis e seu marido Filecircmon unidos quando jovens haviam envelhecido juntosrdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

Uma vez revelada a sua verdadeira identidade ndash lsquodirsquo que lsquosumus meritasque luet uicina poenas inpiarsquo dixerunt lsquouobis inmunibus huius esse mali dabiturrsquo (Ovidio Nasoacuten 1994 p 123)17 o casal foi recom-pensado pelos deuses da mesma forma que aqueles que natildeo os recebe-ram adequadamente foram punidos e morreram afogados O pedido do casal aos deuses foi morrer no mesmo dia para nunca eles sentirem respectivamente falta do outro

lsquoDicite iuste senex et femina coniuge iustodigna quid optetisrsquo []lsquoet quoniam concordes egimus annosauferat hora duos eadem nec coniugis umquambusta meae uideam neu sim tumulandus ab illarsquo18

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 124)

No Libro de Apolonio por sua vez na parte final do poema o protago-nista tambeacutem recompensaraacute seu hoacutespede ricamente (Cabantildeas 1998 p 132)

Por todos los trabajos que le habiacutean venidono olvidoacute el convenio que habiacutea prometidorecordoacute al pescador que lo habiacutea acogidoel que hubo con eacutel el mantillo partidoDios que vive y reina tres y uno llamadodepare un tal hueacutesped a todo hombre cuitadobien haya tal hueacutesped cuerpo tan acordadoque tan buen galardoacuten da a un hospedado

43 Orientalismo

Vaacuterios satildeo os traccedilos que denunciam a influecircncia oriental no Libro de Apolonio Jaacute foi comentada acima a proximidade temaacutetica com rela-ccedilatildeo agrave literatura de aventuras os livros de viagens e a novela bizantina (Artiles 1976 Alborg 1997) Contudo algumas outras caracteriacutesticas acrescentam seu grau de intertextualidade com o mundo oriental

17 ldquondash Somos deuses Esta aldeia inospitaleira sofreraacute a pena de sua impiedaderdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

18 ldquomdash Excelente velho e tu mulher digna de tal marido dizei-me quais satildeo os vosso desejos Que favor quereis de noacutes [] E como passamos toda a nossa vida com amor e concoacuterdia desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida e que eu natildeo viva para ver o tuacutemulo de Baucis nem ela para ver o meurdquo (Bulfinch 2001 p 64)

O primeiro aspecto que merece destaque eacute sem duacutevida no arran-que da histoacuteria de Apolocircnio o enigma como ardil que os pretenden-tes devem resolver para desposarem a filha do rei Antiacuteoco (Cabantildeas 1998 p 43-44)

La verdura del ramo es como la raiacutezde carne de mi madre engrueso mi cervizAquel que adivinase este enigma felizeacutese tendriacutea la hija del rey emperatrizldquoTuacute eres la raiacutez tu hija el ramaltuacute pereces por ella en pecado mortalpues hereda la hija toda deuda carnalla cual tuacute y su madre teniacuteais comunalrdquo

Natildeo eacute contudo o uacutenico exemplo de adivinhaccedilatildeo ou enigma ao longo do poema De fato em outro momento destacado da obra quando o heroacutei descobre que Tarsiana eacute sua filha esta para entretecirc-lo traccedila uma seacuterie de adivinhaccedilotildees que Apolocircnio haveria de resolver (Cabantildeas 1998 p 113)

ldquomdashUnas pocas preguntas te quiero preguntarSi tuacute me las supieses en razoacuten contestarllevareacute la ganancia que me mandaste darsi no me respondieres quieacuterotela dejarldquoDime cuaacutel es la casa ndashpreguntoacute la criadandashque nunca se estaacute queda siempre anda laceradalos hueacutespedes son mudos da voces la posadaSi esto adivinases te quedareacute obligadardquoldquomdashEsto ndashdijo Apoloniondash yo lo voy ideandoel riacuteo es la casa que corre murmurandolos peces son los hueacutespedes que siempre estaacuten callandoEacutesta estaacute terminada ve otra preguntandordquo

As adivinhaccedilotildees satildeo conhecidas por todos os povos desde os pri-moacuterdios e no geral referem coisas comuns de faacutecil compreensatildeo pelo que apresentam um caraacuteter essencialmente popular Contudo sua ori-gem eacute oriental onde muitas vezes expressavam os mais elevados pen-samentos ldquolas maacutes antiguas que se conocen pertenecen a la eacutepoca ba-biloacutenica y aparecen escritas en tablillasrdquo (Rasero Chacoacuten 2004 p 227) Exemplos de adivinhaccedilotildees ou enigmas aparecem em textos biacuteblicos no Alcoratildeo na mitologia grega e nos manuscritos sacircnscritos

Capiacutetulo agrave parte merece a referecircncia sobre a lapidaccedilatildeo como cas-tigo imposto ao proxeneta ndash vino un hombre malo sentildeor de soldaderas pensoacute en ganar con eacutesta ganancias tan sentildeeras (Cabantildeas 1998 p 98) ndash que explorava Tarsiana

No quisieron el ruego poner en otro plazoremovioacutese el concejo como un santildeudo mazobuscaron al traidor echaacuteronle el lazomataacuteronlo con piedras cual rapaz de mal trazo (Cabantildeas 1998 p 122)

A praacutetica da lapidaccedilatildeo era habitual nas tradiccedilotildees preacutevias ao Alcoratildeo no Oriente e de comum aplicaccedilatildeo O primeiro maacutertir cristatildeo Satildeo Estevatildeo morreu lapidado Saulo de Tarso o futuro Satildeo Paulo dedicado na eacutepoca agrave perseguiccedilatildeo dos cristatildeos participou passivamente da lapi-daccedilatildeo observando a cena De fato na Biacuteblia as referecircncias a lapidaccedilotildees satildeo numerosas envolvendo quase sempre assuntos relacionados com atitudes haacutebitos e atividades sexuais

Se um homem se casa com uma mulher e apoacutes coabitar com ela comeccedila a detestaacute-la imputando-lhe atos vergonhosos e difamando-a publicamente dizendo ldquoCasei-me com esta mulher mas quando me aproximei dela natildeo encontrei os sinais da sua virgindaderdquo [] se a denuacutencia for verdadeira se natildeo acharem as provas da virgindade da jovem levaratildeo a jovem ateacute a por-ta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejaratildeo ateacute que morra (Deuteronocircmio 22 13-21)

Se houver uma jovem virgem prometida a um homem e um homem a encontra na cidade e se deita com ela trareis ambos agrave porta da cidade e os apedrejareis ateacute que morram a jovem por natildeo ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher do seu proacuteximo (Deuteronocircmio 22 23-24)

Iahweh falou a Moiseacutes e disse Tira fora do acampamento aquele que pronun-ciou a maldiccedilatildeo Todos aqueles que o ouviram poratildeo suas matildeos sobre a cabeccedila dele e toda a comunidade o apedrejaraacute (Leviacutetico 24 13-14)

Mais conhecido eacute o episoacutedio da mulher aduacuteltera (Joatildeo 8 3-11)

Os escribas e os fariseus trazem entatildeo uma mulher surpreendida em adul-teacuterio e colocando-a no meio dizem-lhe ldquoMestre esta mulher foi surpre-endida em flagrante delito de adulteacuterio Na Lei Moiseacutes nos ordena apedre-jar tais mulheres Tu pois que dizesrdquo [] Quem dentre voacutes estiver sem

pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra Eles ouvindo isso saiacuteram um apoacutes do outro a comeccedilar pelos mais velhos [] Entatildeo erguendo-se Jesus lhe disse ldquoMulher onde estatildeo eles Ningueacutem te condenourdquo Disse ela ldquoNingueacutem Senhorrdquo Disse entatildeo Jesus ldquoNem eu te condeno Vai e de agora em diante natildeo peques maisrdquo

Por fim um uacuteltimo traccedilo de orientalismo no texto de caraacuteter aber-tamente literaacuterio e muito mais claro e direto as referecircncias inequiacutevocas agraves Mil e uma noites Com efeito como Sherazade Tarsiana consegue no caso continuar virgem atraveacutes de suas habilidades musicais que con-vencem os homens que pagam para passar a noite com ela No texto oriental Sherazade contaraacute a seu marido o sultatildeo Shariar graccedilas a sua imaginaccedilatildeo desbordante a histoacuteria de Ali Babaacute e depois viratildeo outras igualmente fantaacutesticas durante mil e uma noites histoacuterias que ela deixa interrompidas quando amanhece para continuar na noite seguinte atre-lando-as a novas histoacuterias O sultatildeo absolutamente fascinado suspen-deraacute a execuccedilatildeo prevista ndash para evitar uma eventual traiccedilatildeo que tinha sofrido com outra mulher ndash jaacute que planejava a morte de uma virgem do seu hareacutem por dia (Riquer amp Valverde 1991 vol 3 p 65-66) No Libro de Apolonio satildeo narradas as habilidades de Tarsiana com os sucessivos clientes do bordel comeccedilando pelo primeiro deles que foi o senhor da cidade Antinaacutegora o qual pagou um alto preccedilo em troca da virgindade e que no final da obra acabaraacute sendo seu esposo

ldquoYo puedo por tu hecho perder ventura y hadocaeraacutes por mal cuerpo tuacute en mortal pecadoHombre eres de valor que estaacutes siempre encumbradosobre hueacuterfana pobre no hagas desaguisadordquo

ldquomdashDama bien entiendo esto que me deciacutesde buena parte sois de linaje veniacutesesta peticioacuten que vos a miacute pediacutesveacuteolo por derecho pues bien lo concluiacutes

ldquoEl precio que dariacutea para con vos pecaros lo quiero de gracia ofrecer y donarque si vos no pudiereis por el ruego escaparal que con vos entrare dadlo para apartar

ldquoSi vos con esta mantildea os podeacuteis defendermientras lo miacuteo durare no os faltaraacute haberrdquo (Cabantildeas 1998 p 100-101)

Tarsiana com o dinheiro de Antinaacutegora consegue convencer o proxeneta para ela aprender outro ofiacutecio de cantora trovadora e assim ele ficaria mais rico e ela honrada

ldquoSentildeor si de ti fuese lo que pido otorgadootro mester sabiacutea que es maacutes sin pecadoque es maacutes ganancioso y es maacutes honrado

ldquoSi tuacute me lo otorgas por la tu cortesiacuteaque me ponga en estudio de esa maestriacuteacuanto tuacute me pidieses yo tanto te dariacuteatuacute tendriacuteas ganancia y yo no pecariacuteardquo

Luego al otro diacutea casi de madrugadalevantoacutese la dama ricamente adornadatomoacute la viola buena y bien templaday salioacute al mercado a tocar por soldada

Tan bien supo la dama su cosa prepararque sabiacutea a su amo la ganancia aumentarRiendo y bromeando con el su buen mirarsuacutepose aunque nintildea del pecado apartar (Cabantildeas 1998 p 102-103)

Eis aqui portanto um exemplo de adaptaccedilatildeo medieval de um velho motivo oriental o que vai nos conduzir ateacute a seguinte epiacutegrafe os traccedilos de medievalismo no processo de recepccedilatildeo e transmissatildeo dos textos pagatildeos

5 O medievalismo do Libro de Apolonio originalidade imitaccedilatildeo adaptaccedilatildeo

Toda obra eacute filha do seu tempo O Libro de Apolonio como dito natildeo seraacute uma exceccedilatildeo A Idade Meacutedia foi um periacuteodo longo e conturbado es-pecialmente se considerarmos a encruzilhada representada pelo Ocidente frente ao Oriente no acircmbito da espiritualidade o Cristianismo frente ao Islam Mas antes de tudo havia uma forte cultura pagatilde de tradiccedilatildeo gre-co-romana aleacutem de muitas outras que depois com a volta do olhar para o homem no Renascimento ndash e ainda muito depois no Romantismo ndash retornaratildeo agraves versotildees originais longe de qualquer adaptaccedilatildeo

Nesse sentido a originalidade do texto radica em apresentar-nos uma tensatildeo entre o local a adaptaccedilatildeo agrave cultura castelhana e o universal a cultura e a lenda de tradiccedilatildeo claacutessica que inclui inequiacutevocos traccedilos orientais e pagatildeos Em outras palavras o medievo realizou uma adap-taccedilatildeo e imitaccedilatildeo de foacutermulas tipos e motivos que se repetiram por toda Europa e que representaram a reatualizaccedilatildeo de registros claacutessicos

O primeiro elemento caracterizador dessa adaptaccedilatildeo medieval como foi jaacute parcialmente apontado vem da matildeo da religiosidade e do imaginaacuterio cristatildeo Em palavras de Le Goff (1983 p 57)

Toda toma de conciencia en la Edad Media se hace por y a traveacutes de la religioacuten ndashen el plano de la espiritualidadndash Podriacutea definirse casi una mentalidad me-dieval por la imposibilidad de expresarse al margen de referencias religiosas

Assim por exemplo uma reinterpretaccedilatildeo das contiacutenuas viagens de Apolocircnio desde esta perspectiva do leitor medieval pode ser aleacutem do arqueacutetipo da dinacircmica da vida do exiacutelio voluntaacuterio a de entender a vida como um percurso ateacute a outra vida o Aleacutem Nesse sentido a pere-grinatio vitae eacute siacutembolo do cristianismo que potildee em evidecircncia o caraacuteter transitoacuterio de toda situaccedilatildeo

Mas jaacute em referecircncia direta ao texto se compararmos o poema es-panhol com a fonte latina que lhe serve como base a Historia Apollonii Regis Tyri surpreende de imediato a grande quantidade de referecircncias religiosas que observamos Com efeito o poema castelhano modifica o espiacuterito pagatildeo da Historia latina Manuel Alvar (1976 p 142) elaborou na sua ediccedilatildeo criacutetica um documentado estudo contendo de um lado as vozes que fazem referecircncia a costumes deuses festas ou crenccedilas pagatildeos (soacute como amostra ampulla uini Apollo Diana Neptunus sepulcrum templa) e do outro as vozes cristatildes correspondentes ndash natildeo necessaria-mente equivalentes das anteriores ermitantildeo santo cleacuterigos monasterio descomulgado pecado nintildea en pecado rayo del diablo etc

Sem entrar nos aspectos puramente leacutexicos jaacute estudados pelo pres-tigioso filoacutelogo espanhol seria bom mergulharmos nessas adaptaccedilotildees de caraacuteter religioso para uma melhor compreensatildeo da dimensatildeo ide-oloacutegica que este tipo de obra representava A primeira e mais eviden-te resulta da cristianizaccedilatildeo dos primeiros versos do poema (Cabantildeas 1998 p 41)

En el nombre de Dios y de Santa Mariacuteasi ellos me guiasen estudiar querriacuteacomponer un romance de nueva maestriacuteadel buen rey Apolonio y su cortesiacutea

Esses primeiros versos satildeo precisamente os que os poetas claacutessicos de-dicavam como invocaccedilatildeo agrave Musa fonte inspiradora como por exemplo para natildeo perder o fio de Homero na Iliacuteada (1965 p 59) Μῆνιν ἂειδε θεά Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος ουλομένην19 ou tambeacutem na Odisseia (1965 p 131) Ἀνδρα μοι ἔννεπε Μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ πλάγχθη20 E para concluir soacute neste primeiro instante podemos ir do Alfa ao Ocircmega isto eacute do iniacutecio ao teacutermino do Libro Laacute encontramos um final moralizante dentro da mais genuiacutena doutrina cristatilde (Cabantildeas 1998 p 135)

Muerto estaacute Apolonio todos morir debemospor aquello que amamos el final no olvidemosPor lo que aquiacute hicieacuteremos allaacute recibiremosallaacute iremos todos siempre de aquiacute saldremos

Dejemos la palabra la razoacuten no alarguemospocos seraacuten los diacuteas que aquiacute moraremosCuando de aquiacute salgamos iquestqueacute ropa llevaremossi no al festiacuten de Dios de Aqueacutel en que creemos

El Sentildeor que gobierna los vientos y la marEacutel nos deacute la su gracia y Eacutel se digne guiary asiacute nos deje tales cosas pensar y obrarque por la su merced podamos escaparEl que tuviere seso responda y diga ameacuten

E ainda para completar natildeo falta o momento de moralizaccedilatildeo no meio da obra cumprindo com o princiacutepio de exemplaridade medieval modelo de conduta e comportamento para aprendizado de todos os exempla21 O esquema eacute simples parte-se do caso particular narrado e se generaliza em termos de moral cristatilde modelo de comportamento

19 ldquoCanta-me oacute deusa do Peleio Aquiles A ira tenazrdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portu-guesa de Manuel Odorico Mendes [2004 p 25])

20 ldquoMusa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito peregrinourdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes [2000 p 28])

21 No proacutelogo do Conde Lucanor Don Juan Manuel explica o intuito da sua obra Et porque cada home aprende mejor aquello de que se maacutes paga por ende el que alguna cosa quiere

Confunda Dios tal rey de tan mala mesuraviviacutea en pecado e ideaba locuramatar queriacutea al hombre que dijera corduraa aqueacutel que resolvioacute la adivinanza oscura

Esto mismo acontece con todos los pecadoslos unos con los otros van todos enlazadosSi no fueren aprisa los unos enmendadosotros muchos mayores son luego acumulados (Cabantildeas 1998 p 48-49)

Nada de novo portanto no panorama que poderia entatildeo oferecer o contexto medieval Em palavras de Blanco Aguinaga (2000 I p 75) rdquoEl Libro de Apolonio [hellip] se relaciona con los esquemas de la vieja novela bizan-tina de aventuras y viajes de final feliz y con las habituales moralizacionesrdquo

Os fenoacutemenos meteoroloacutegicos que governam o mar eram na eacutepica claacutessica atribuiacutedos a divindades pagatildes Como eacute loacutegico o anocircnimo autor do Libro de Apolonio atribui ao Deus cristatildeo esses avatares e a Ele se encomenda para pedir a proteccedilatildeo do heroacutei e de todos noacutes

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echar (Cabantildeas 1998 p 57)

Soacute nesse contexto de adaptaccedilatildeo cristatilde da mitologia pagatilde que vimos apontando pode justificar-se a suposta crueldade do Deus misericordioso e justo cristatildeo frente agrave arbitrariedade das deidades greco-latinas muitas

mostrar a otro deacutebegelo mostrar en la manera que entendiere que seraacute maacutes pagado el que la ha de aprender Et porque muchos homes las cosas sotiles non les caben en los entendimien-tos nin las entienden bien [hellip] yo don Juan fijo del infante don Manuel [hellip] compuesto de las maacutes fermosas palabras que yo pude et entre las palabras entremetiacute algunos ejem-plos de que se podriacutean aprovechar los que los oyeren (Don Juan Manuel 1977 p 13-14)

vezes interessadas apenas em resolver seus proacuteprios confrontos tomando como refeacutens de suas accedilotildees os homens mortais Afora eacute claro a evidente contradiccedilatildeo que se produz em relaccedilatildeo agrave dupla atitude de Deus atribuiacuteda pelo autor do texto agrave sorte de Apolocircnio nos versos destacados da passa-gem acima Outras vezes as tempestades convenientemente guiadas por Deus provocam o acaso que permite o reencontro dos personagens

La tempestad cogioacutelos y el mal temporalsacoacutelos de camino la borrasca mortalechoacutelos su ventura y el Rey espiritualen la villa que pasa Tarsiana mucho mal (Cabantildeas 1998 p 106)

Contudo agraves vezes os fenocircmenos adversos da natureza satildeo atribuiacute-dos ao diabo e natildeo a Deus

laquoDile que muerto estaacute Antioco y enterradoCon eacutel murioacute la hija que lo llevoacute al pecadodestruyoacutelos a ambos un rayo del diabloraquo (Cabantildeas 1998 p76)

A adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio religioso cristatildeo do medievo obriga a forccedilar situaccedilotildees como aquela em que Architrastes rei de Pentapolin daacute sua benccedilatildeo a Apolocircnio e sua filha Luciana quando partem para Antioquia uma vez mortos o rei Antiacuteoco e sua filha Bendiacutejolos a en-trambos con su derecha mano rogoacute al Creador que estaacute en lo maacutes alto que Eacutel guiase a su hija en invierno y veranohellip (Cabantildeas 1998 p 78)

Contudo como vaacuterios seacuteculos depois vai acontecer de novo no per-curso da historia da literatura universal a mistura de influecircncias deixa notar sua presenccedila nesta encruzilhada de culturas e imaginaacuterios Assim no aacutepice do teatro barroco espanhol pode parecer surpreendente a for-ma como Calderoacuten de la Barca em La vida es suentildeo conjuga o fatalismo do horoacutescopo e a providecircncia cristatilde (Alborg 1997 p 690) Lapesa amp Ruiz Ramoacuten falam nesse sentido de ldquooposiciones de contrastesrdquo (1983 p 430) Com efeito Calderoacuten nos apresenta horoacutescopos pressaacutegios e vaticiacutenios que prognosticam os futuros contingentes os astroacutelogos ou judiciaacuterios sabedores de matemaacuteticas sutis julgando signos astrais pre-dizem os influxos de estrelas e planetas Mas as previsotildees dos homens por saacutebios que eles sejam resultam inuacuteteis para preservar-se do ditado

por poderes supremos que regem o acontecer ndash embora nem sempre seja assim como confessa Victor Hugo no prefaacutecio de Notre-Dame de Paris22 ndash onde emerge a grande oposiccedilatildeo ceacuteu fado No Libro de Apolonio o fado o ἀναγκή citado por Victor Hugo caracterizador dos heroacuteis eacutepicos e de outros futuros convive diretamente com o Espiacuterito Santo (Cabantildeas 1998 p 88)

La gente desolada y su rey descasadopasaron su trayecto maldiciendo del hadoEl Espiacuteritu Santo los guioacute sosegadoasiacute el mar arribaron a Tarso sitio amado

Essa mesma oposiccedilatildeo de contrastes ou encruzilhada cultural justifica enfim o episoacutedio que narra a supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo do navio que obriga a desova no mar do corpo de Luciana aparentemente morto o que configu-ra por sua vez um novo foco na trama aventureira do protagonista

ldquoAntes de pocas horas si el cuerpo retenemoshabremos muerto todos librarnos no podremossi la madre perdemos buena hija tenemosmal haces Apolonio que asiacute permanecemosrdquo (Cabantildeas 1998 p 81)

Mas ainda como texto medieval participa de referecircncias desenvol-vidas na sua proacutepria eacutepoca isto eacute autenticamente contemporacircneas e que seratildeo evocadas e imortalizadas pouco tempo depois nas recopilaccedilotildees de romances populares agrupados sob a comum denominaccedilatildeo de Romancero Viejo Entendam-se aqui as expressotildees ldquoromancerdquo e ldquoRomancero Viejordquo exatamente nos termos como as define Masip (2002 pp 112 e 134) ldquopo-emas de tipo narrativo o liacuterico populares producidos entre la seguntad mitad del siglo XIV y todo el siglo XV [] Pueden dividirse en tradi-cionales que evocan los cantares de gesta [] y juglarescosrdquo Nestes ro-mances aparecem motivos e referecircncias intertextuais correspondentes a certos costumes e usos da eacutepoca dos cavaleiros medievais Nesse sentido compare-se o castigo que Apolocircnio ameaccedila infligir na pessoa que ousasse 22 ldquoIl y a quelques anneacutees quacuteen visitant ou pour mieux dire en furetent Notre-Dame

lacuteauteur de ce livre trouva dans un recoin obscur de lacuteune des tours ce mot graveacute agrave la main sur le mur ANAacuteΓKH Ces majuscules grecques () e surtout le sens lugrube et fatal quacuteelles renferment frappegraverent vivement lacuteauteur () Cacuteest sur ce mot quacuteon a fait ce livrerdquo (Hugo 1904 sp)

incomodaacute-lo quando se encontrava atribulado apoacutes receber a falsa notiacute-cia da morte da sua filha com o castigo que por vinganccedila pessoal rece-beu Don Galvaacuten quando foi morto e que aparece descrito em detalhes no Romance de Gaiferos y Galvaacuten datado de 1547

Libro de Apolonio Romance de Gaiferos y Galvaacuten

Al fondo de la nave en rincoacuten apartadoechoacutese en un lecho el rey tan desgraciadojuroacute que quien le hablase seriacutea mal pagadode uno de sus pies seriacutea mutilado

La muerte que eacutel les dijera mancilla es de la [escucharmdashCoacutertenle el pie del estribo la mano del [gavilaacutensaacutequenle ambos los ojos por maacutes segu-ro andary el dedo y el corazoacuten traeacutedmelo por sentildeal

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 107) Citamos pela ediccedilatildeo de Wolf amp Hofmann (1856 II p 222-225)

6 O Libro de Apolonio intertextualidade e literatura comparada Ontem e hoje

A anaacutelise do Libro de Apolonio nos conduz ateacute a conclusatildeo de que ele constitui um claro exemplo do que representou o medievo do ponto de vista literaacuterio e cultural natildeo apenas na Peniacutensula Ibeacuterica mas tam-beacutem no resto da Europa O imaginaacuterio europeu medieval foi consti-tuindo-se sustentado sim na ideologia do cristianismo mas ao mesmo tempo adaptando toda uma tradiccedilatildeo claacutessica pagatilde que na sua versatildeo greco-latina trazia ecos inequiacutevocos do Oriente De um lado Bizacircncio e o antigo impeacuterio oriental romano de outro as influecircncias da cultura semiacutetica aacuterabe e hebraica que chegaram agrave Peniacutensula Ibeacuterica a partir do seacuteculo VIII e que ainda permaneciam em pleno apogeu no seacuteculo XIII eacutepoca da elaboraccedilatildeo do Libro Traziam como consequecircncia uma mistura de motivos e toacutepicos que hoje devemos ser capazes de apreciar e valorar na justa medida em especial quando abordamos a sempre difiacutecil tarefa de compreender um texto antigo

Ao longo das paacuteginas acima foram levantados vaacuterios elementos diferentes entre si de origens tambeacutem bem diversas mas que o anocircni-mo autor ndash homem culto cleacuterigo que inaugurava um novo gecircnero ou

mester de clereciacutea em liacutengua romacircnica e natildeo em latim ndash soube mesclar de forma admiraacutevel e que noacutes hoje desde nosso imaginaacuterio e nossa concepccedilatildeo do mundo devemos saber interpretar sob os coacutedigos da eacutepo-ca na qual foi escrito o poema

A imediata influecircncia de uma histoacuteria sobre o rei Apolocircnio escrita em latim e que circulava pelas bibliotecas dos mosteiros medievais da eacutepoca Historia Apollonii Regis Tyri natildeo compromete a originalidade do texto que nos oferece o autor A Iliacuteada e a Odisseia se fazem presentes em numerosas passagens do Libro e ainda achamos traccedilos que vinculam o texto com os livros de viagens e aventuras e com toda a rica tradiccedilatildeo da novela bizantina Os ecos do conto fantaacutestico oriental representados aqui pelo episoacutedio de Tarsiana trovadora quando eacute vendida ao proxene-ta ndash cujo nome natildeo eacute revelado em momento nenhum como tampouco o nome da filha de Antiacuteoco maculada pelo incesto ndash que eacute capaz com a doccedilura de suas palavras primeiro e a graccedila de seu canto depois de preservar sua virgindade ainda nesse contexto tatildeo adverso remetem agraves habilidades de Sherazade nas Mil e uma noites

Contudo a obra natildeo deixa de ser filha do seu tempo e como tal natildeo faltam caracteriacutesticas e traccedilos puramente medievais como a religiosidade cristianizando as divindades greco-latinas que regem os fenocircmenos at-mosfeacutericos as tempestades e os destinos dos protagonistas quando nave-gam pelo traiccediloeiro mar seja punindo na trama do texto aos pecadores ndash inclusive infligindo-lhes castigos que ora nos levam ateacute episoacutedios biacuteblicos ora nos revelam costumes dos cavaleiros medievais que depois ilustraratildeo o Romancero viejo ndash e beneficiando os que se comportam conforme a mo-ral cristatilde seja enfim atraveacutes das dicas moralizantes que o autor espalha ao longo do texto em primeira pessoa oferecidas ao leitor-ouvinte o que por sua vez nos conduz ateacute a literatura dos exempla medievais

Mas ainda a contribuiccedilatildeo do texto natildeo olha apenas para a histoacute-ria ou a sua contemporaneidade Com efeito algumas personagens do Libro mesmo secundaacuterias podem ser consideradas como a semente de outras futuras estas de indubitaacutevel relevacircncia para a literatura hispacircnica e universal Assim a velha ama que criou a filha de Antiacuteoco e que lhe recomenda natildeo acusar o pai pelo incesto cometido encontra-se na base da Trotaconventos do Libro de buen amor de Juan Ruiz (seacuteculo XIV) e sobretudo representa um esboccedilo do que haveraacute de ser a Celestina de Fernando de Rojas nos albores do Humanismo espanhol (1499)

Por fim muito depois da eacutepoca na qual foi escrito o Libro a gra-ccedila a personalidade e a inteligecircncia que enfeitam Tarsiana tecircm muito a ver com a personagem da gitanilla das Novelas ejemplares de Miguel de Cervantes e sem duacutevida jaacute no acircmbito universal aleacutem da literatura escrita em liacutengua espanhola com a cigana Esmeralda de Notre-Dame de Paris de Victor Hugo

REFEREcircNCIAS

A Biacuteblia de Jerusaleacutem Traduccedilatildeo do texto em liacutengua portuguesa diretamente dos originais Satildeo Paulo Ediccedilotildees Paulinas 1989

ALBORG JL Historia de la Literatura Espantildeola Tomo I Edad Media y Renacimiento 2ordf edicioacuten ampliada Madrid Gredos 1997

ALVAR M Apolonio cleacuterigo entendido In Symposium in honorem prof M de Riquer Barcelona Edicions del Quaderns Crema 1989 (p 51-73)

ARTILES J El ldquoLibro de Apoloniordquo poema espantildeol del siglo XIII Madrid Gredos 1976

BLANCO AGUINAGA C RODRIacuteGUEZ PUEacuteRTOLAS J ZAVALA IM Historia social de la literatura espantildeola (en lengua castellana) 3ordf ed Madrid Akal 2000

BRUYNE E de La esteacutetica de la Edad Media Madrid Visor 1988

BULFINCH Th O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Faacutebula) Histoacuterias de Deuses e Heroacuteis 13ordf ed Trad David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Ediouro 2001

CALDEROacuteN DE LA BARCA P La vida es suentildeo Ed de Antonio Rey Hazas Barcelona Vicens Vives 2000

CERVANTES M de El Licenciado Vidriera y otras novelas ejemplares Madrid Salvat Editores Alianza Editorial 1969

DON JUAN MANUEL El Libro de Patronio e por otro nombre El Conde Lucanor 13ordf ed Madrid Espasa-Calpe 1977

GIROacuteN ALCONCHEL JL Comentario de textos de clereciacutea Alexandre y Apolonio Madrid Arco Libros 2002

GOacuteMEZ MORENO Aacute Notas al proacutelogo del Libro de Alexandre Revista de Literatura XLVI 1984 (p 117-127)

GUILLEacuteN C Entre lo uno y lo diverso Barcelona Criacutetica 1985

HODOI ELEKTRONIKAI Du texte agrave lacutehypertexte Homegravere Odysseacutee Traduction franccedilaise Paris E Flammarion 1937 Disponiacutevel no endereccedilo da Internet mercurefltruclacbeHodoiconcordancesintrohtmHomere (Acessado em 21 de fevereiro de 2013)

HOMERO Iliacuteada Texto integral Trad Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Martin Claret 2004

_____ Odisseia Trad Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2000

_____ Nueva Antologiacutea de la Iliacuteada y la Odisea Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos 1965

LAPESA R RUIZ RAMOacuteN F Calderoacuten traacutegico In RICO F (org) Historia y Criacutetica de la Literatura Espantildeola Vol 31 Primer Suplemento Siglo de Oro Barroco Ed Aurora Egido Barcelona Criacutetica 1983 (p 430-435)

LE GOFF J Tiempo trabajo y cultura en el occidente medieval Madrid Taurus 1983

Libro de Alexandre Edicioacuten preparada por Jesuacutes Cantildeas Murillo Madrid Editora Nacional 1983

Libro de Apolonio Texto iacutentegro en versioacuten del Dr D Pablo Cabantildeas Madrid Castalia 1998

Libro de Apolonio Edicioacuten de Dolores Corbella Madrid Caacutetedra 1992

Libro de Apolonio Edicioacuten de Manuel Alvar Madrid Fundacioacuten Juan March Castalia 1976

LOTMAN Y ESCUELA DE TARTUacute Semioacutetica de la cultura Madrid Caacutetedra 1979

MASIP V Manual de poesiacutea espantildeola y portuguesa Recife AECI Bagaccedilo 2002

MICHAEL I Epic to Romance to Novel Problems of the Genre Identification Bulletin of the John Rylandacutes University Library of Manchester nordm 68 1986 (p 498-527)

MIRANDA POZA JA La Edad Media en Europa como marco para el estudio de la eacutepoca literaria medieval In MIRANDA POZA JA (org) Estudios Hispaacutenicos Recife Editora Universitaacuteria da UFPE 2011 (p 159-169)

_____ Poesiacutea Espantildeola Medieval (II) El Mester de Clereciacutea In MIRANDA POZA JA RODRIGUES JPM (orgs) Estudios de Lengua y Literatura Espantildeola Recife APEEPE PROEXT Departamento de Letras ndash UFPE 2007 (p 123-140)

NASO PO Tristium 2ordf ed Trad literal de Augusto Velloso Rio de Janeiro Ediccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Simotildees 1952

OVIacuteDIO Poemas da carne e do exiacutelio Seleccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Joseacute Paulo Paes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

OVIDIO NASOacuteN P Metamorfosis Texto revisado y traducido por Antonio Ruiz de Elvira 3 vols Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientiacuteficas 1994

RASERO CHACOacuteN J Adivinanzas y trabalenguas Posibilidades didaacutecticas In BARCIA MENDO E (coord) La tradicioacuten oral en Extremadura Meacuterida Junta de Extremadura ndash Consejeriacutea de Educacioacuten Ciencia y Tecnologiacutea 2004 (p 221-247)

RATTENBURY RM Prologue a Les Eacutethiopiques de Heliodore Texte eacutetabli par RM Rattenbury ET TW Lumb et traduit par J Maillon Paris Collection decircs Universiteacutes de France 1935

RIQUER M VALVERDE JM Historia de la Literatura Universal Barcelona Planeta 1991

ROJAS F de La CelestinaTragicomedia de Calisto y Melibea 4ordf ed Introduccioacuten de Stephen Gilman Edicioacuten y notas de Dorothy S Severin Madrid Alianza Editorial 2003

RUIZ J El libro de buen amor Madrid Edimat Libros 1999

TODOROV Tz Introduccioacuten a la literatura fantaacutestica Buenos Aires Tiempo Contemporaacuteneo 1972

URIacuteA I Panorama criacutetico del mester de clereciacutea Madrid Castalia 2000

Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico ldquoFedatildeordquo Trad Carlos Alberto Nunes Creacuteditos Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia) Disponiacutevel no endereccedilo da Internet HTTPbregroupscomgroupacropolis (Acessado em 20 de fevereiro de 2013)

WOLF FJ HOFMANN C Primavera y flor de romances o Coleccioacuten de los maacutes viejos y maacutes populares romances castellanos 2 vols Berlin A Asher amp Co 1856 Disponiacutevel na Internet no endereccedilohttpdeptswashingtoneduhispromoptionalballadactionphpigrh=0087amppublisher=Wolf201856b (Acessado em 24 de fevereiro de 2013)

Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e

a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites

Oussama Naouar(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Consideraccedilotildees epistemoloacutegicas introdutoacuterias das evidecircncias obscuras das Mil e uma noites

As Mil e uma e noites assombram nosso imaginaacuterio relativo ao Oriente como para nos lembrar que eacute necessaacuterio guardar uma certa acuidade associada aos objetos muito evidentes Pois com efeito exis-tem duas sortes de objetos delicados para o pesquisador De uma parte os objetos desconhecidos totalmente novos pelo menos segundo acre-ditamos de outra os muito evidentes e ceacutelebres

Os primeiros tecircm que ser buscados continuamente Se trata para noacutes de natildeo somente os achar mas tambeacutem de lhes tirar sua aparente virginda-de sobretudo relativa como temos de admitir Portanto esta concepccedilatildeo de objeto novo eacute na maioria das vezes epistemologicamente confusa Ela atende ao olhar de um pesquisador que se debruccedila a partir de uma eacutepoca particular sobre um elemento que atrai nossa atenccedilatildeo Esta virgindade eacute ainda uma propriedade construiacuteda sobre o objeto de pesquisa pois de fato ela se elabora a partir do cruzamento de uma ou mais articulaccedilotildees definidas como novas num momento histoacuterico particular no quadro de uma episteme Sabemos a partir de Foucault que a episteme faz referecircncia agrave sistematizaccedilatildeo das regras de construccedilatildeo dos objetos sujeitos e concei-tos postulando que haacute um elemento dos saberes (no sentido de elemento aquaacutetico por exemplo) que impotildee aos objetos do saber o modo de ser determinado (cf Foucault 1990 p 13) Portanto esta construccedilatildeo mesma implica uma ruptura desconstruccedilatildeo para tornar novamente inteligiacutevel esta formalizaccedilatildeo do objeto de pesquisa

A outra categoria eacute composta destes objetos do cotidiano comuns que natildeo brilham mais por sua novidade tanto que natildeo se deixam mais

interrogar Aqui o esclarecimento foucaultiano continua pertinen-te Mas pode ser necessaacuterio conjugaacute-lo agraves meditaccedilotildees de um Gaston Bachelard recordando esta ceacutelebre frase de La formation de lrsquoesprit scientifique que precisa ldquonoacutes conhecemos contra um conhecimento an-teriorrdquo (Bachelard 1971 p 14) Nessa perspectiva o conhecimento soacute eacute possiacutevel a partir da superaccedilatildeo de um conhecimento anterior o qual nesta aproximaccedilatildeo epistemoloacutegica aparece necessariamente como um limite um oposto um obstaacuteculo As mil e uma noites fazem parte destes uacuteltimos objetos Pois este texto que natildeo cessa de nos fascinar noacutes o apreendemos somente pelas tramas do passado Esta constataccedilatildeo natildeo deixa de nos lembrar que ao encontro do conhecimento o espiacuterito se revela sob o peso da idade pois nunca eacute jovem mas sempre velho pelos seus preconceitos e nessas circunstacircncias acessar o conhecimento ldquoeacute espiritualmente rejuvenescer eacute aceitar uma mutaccedilatildeo brusca que deve contradizer o passadordquo (Bachelard 1971 p 14) Ora noacutes sabemos a que ponto as Mil e uma noites satildeo um objeto eterno sempre revisitado sempre fascinante mas que pode esconder atraacutes de suas evidecircncias uma parte profunda de obscuridade As Mil e uma noites uma vez que o efeito exoacutetico tenha passado nos enseja a perguntar sobre suas evidecircn-cias obscuras Acalentado sob uma apreensatildeo ingecircnua e reconfortante este questionamento chama o espiacuterito ceacutetico agrave desconstruccedilatildeo

Com efeito muitas ideias preconcebidas englobam indistintamente Sherazade Oriente Mil e uma noites hareacutens e outros objetos de nossa imaginaccedilatildeo Em relaccedilatildeo a estas ideias Bergson indica pertinentemen-te que nosso espiacuterito possui uma irresistiacutevel tendecircncia a considerar como mais clara a ideacuteia que lhe serve continuamente Esta forma de ldquoeconomia mentalrdquo explica em parte porque se constitui num conjunto de ideacuteias preconceitos e opiniotildees que acabam escondendo a comple-xidade e a singularidade de uma produccedilatildeo literaacuteria Uma exigecircncia de superaccedilatildeo de questionamento se configura ao reacutes de nossas opiniotildees pois ldquoa opiniatildeo pensa mal ela natildeo pensa ela traduz necessidades em conhecimentos Designando os objetos pela utilidade ela se proiacutebe de os conhecer Natildeo se pode fundar nada sobre a opiniatildeo temos antes de tudo que a destruir Ela eacute o primeiro obstaacuteculo a superarrdquo (Bachelard 1971 p 14) Um olhar filosoacutefico ao texto eacute sobretudo pertinente se acei-tarmos que a filosofia pode se referendar como remeacutedio agrave opiniatildeo pois da opiniatildeo agrave asneira haacute um pequeno passo um breve resvalar Opiniatildeo

e asneira entreteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima conivente e profunda tambeacutem como bem dizia Gilles Deleuze em seu Abeacuteceacutedaire ldquoa filosofia impede a asneira de ser tatildeo grande como poderia ser se natildeo houvesse a filosofiardquo (in Boutang 1988) Eis um argumento de peso

Portanto estes enviesamentos epistemoloacutegicos natildeo satildeo proacuteprios so-mente agraves Mil e uma noites bem ao contraacuterio Tal constataccedilatildeo em torno da obra literaacuteria ilustra uma problemaacutetica bem mais ampla proacutepria ao orientalismo Edward Saiumld teoacuterico da literatura e figura importante dos estudos poacutes-coloniais cuja pena nos deu Orientalisme lrsquoOrient creacutee par lrsquoOccident funda esta corrente a partir da concepccedilatildeo do Oriente como objeto de uma criaccedilatildeo ldquoO Oriente como uma criaccedilatildeo do Ocidente seu duplo seu contraacuterio a encarnaccedilatildeo dos seus medos e de seu sentimento de superioridade a um soacute tempo a carne de um corpo do qual aspiraria a ser o espiacuteritordquo (Saiumld 1980 p 23)

Agrave luz desta citaccedilatildeo natildeo podemos deixar de repensar os quadros dos trecircs ceacutelebres Eugegravenes ndash Delacroix Girardet e Fromentin ndash ou ainda a inspiraccedilatildeo que atravessa as obras picturais do brasileiro Oscar Pereira da Silva Nelas vemos se materializar esta carne certamente oriental que traz ao contraacuterio e por traacutes dessas personagens figuradas um es-piacuterito fundamentalmente ocidental tudo participa dessa constataccedilatildeo as posturas as cenas e a distribuiccedilatildeo dos papeis Mas a grande contri-buiccedilatildeo de Saiumld continua na re-inscriccedilatildeo destes liames como construtos epistemologicamente falando A literatura a arte e mais largamente a esteacutetica no sentido de partage du sensible como a nomeia Jacques Ranciegravere (2000) se tornam reveladores da relaccedilatildeo complexa que rege esta geografia de um imaginaacuterio proacuteprio agrave oposiccedilatildeo Oriente-Ocidente

Pois eacute necessaacuterio admitir que o orientalismo natildeo se limita somen-te a uma corrente esteacutetica nem mesmo artiacutestica ou literaacuteria mas a ldquoum cacircmbio dinacircmico entre autores individuais e vastos empreendimentos poliacuteticos formados pelos impeacuterios britacircnico francecircs e americano sobre o territoacuterio intelectual e imaginaacuteriordquo (Saiumld 1980 p 27) Dito de outra for-ma as obras e produccedilotildees esteacuteticas do orientalismo vatildeo a par com projetos poliacuteticos e geopoliacuteticos proacuteprios ao colonialismo Intelectual e imaginaacuterio eis certamente o coraccedilatildeo da confrontaccedilatildeo que poderia se prolongar em Razatildeo e Emoccedilatildeo racionalidade e misticismo Estas oposiccedilotildees natildeo conti-nuam menos ideoloacutegicas como nos indica Jacques Derrida (1967) Jaacute que inscritas no prolongamento da dicotomia Oriente-Ocidente e agrave imagem

do exemplo Carne-Espiacuterito evocada anteriormente estas oposiccedilotildees teste-munham um limite da histoacuteria do pensamento que consistiu em conceber o mundo como um sistema de oposiccedilatildeo a declinar ao infinito em que um dos elementos eacute sempre pensado como um ldquoparasitardquo um ldquoacidenterdquo um ldquoexcrementordquo (Derrida 1967 p 415)

Este movimento pendular entre poetizaccedilatildeo e desilusatildeo se ilustra entre os escritores franceses que realizaram a experiecircncia concreta do Oriente Pensemos na decepccedilatildeo de um Chateaubriand que escrevia em descobrindo a Alexandria ldquoAlexandria me pareceu o lugar mais triste e desolado da terrardquo (1969 p 63) Ele diraacute de Jerusaleacutem

A paisagem ao redor da cidade eacute medonha quanta desolaccedilatildeo e quanta mi-seacuteria Nesta pilha de escombros que chamam uma cidade a gente do paiacutes se deu ao prazer de dar nomes de ruas a passagens desertas As casas parecem presiacutedios ou sepulcros Agrave vista destas casas de pedras nos perguntamos se natildeo constituem monumentos confusos de um cemiteacuterio no meio do deserto Entre na cidade nada vos consolaraacute da tristeza exterior voacutes vos perdereis nas pequenas ruas natildeo pavimentadas que sobem e descem sobre um solo desigual e voacutes andareis entre ondas de poeira ou entre pedras que rolam (Chateaubriand 1969 p 87)

Estamos bem longe do Oriente sonhado e os golpes da realidade pa-recem dolorosos Da mesma forma eacute faacutecil pensar que Jerusaleacutem cidade sagrada por excelecircncia ilustra este espiacuterito ocidental dentro de uma car-ne oriental elevada agrave escala de uma cidade Mais que em outro lugar o imaginaacuterio interfere com o intelectual ao ponto de poder distinguir no orientalismo uma forma desviada de cruzada esteacutetica onde o territoacuterio cobiccedilado escapa sempre em meio a todas as brechas a todas as incursotildees

Mas eacute talvez Flaubert que se demarca mais deste grupo de escritores viajantes ele que numa carta escrita a sua matildee revela uma decepccedilatildeo toda paradoxal que busca o autecircntico passando pelo crivo do imaginaacuterio ldquoEacute no Cairo que o Oriente comeccedila Alexandria eacute muito mesclada de euro-peus para que a cor local seja bem purardquo (1973 p 182) Notemos aqui como desta frase curta emana uma tensatildeo fundamental e proacutepria do oci-dente colonial que opotildee autenticidade e alteridade Quanto agrave Jerusaleacutem sua decepccedilatildeo soacute cresceria Em outra correspondecircncia Flaubert indica

Jerusaleacutem eacute uma vala cercada por muralhas Tudo aiacute apodrece Os ca-chorros mortos nas ruas as religiotildees nas igrejas Haacute muita quantidade de

excremento e ruiacutenas O Santo Sepulcro eacute uma aglomeraccedilatildeo em meio a todas as maldiccedilotildees possiacuteveis Num pequeno espaccedilo haacute uma igreja armecircnia uma grega uma latina e uma copta Tudo isso se injuriando se maldizendo do fundo da alma e calccedilando o vizinho a propoacutesito de candelabros tapetes e quadros ndash que quadros (Flaubert 1973 p 227)

Uma cidade caoticamente ldquosantardquo ao menos na aparecircncia onde o odor da morte nos pega pela garganta Onde estatildeo os perfumes do Oriente neste cenaacuterio meio fuacutenebre meio maldito Este Oriente que deveria revitalizar o ldquocorpordquo entorpecido do Ocidente parece deslizar agraves avessas da realidade em direccedilatildeo a um imaginaacuterio que de fato natildeo mais existe Geacuterard de Nerval escreve em 1867 depois de sua viagem de 1843

O Egito eacute uma vasta tumba eacute a impressatildeo que me passou ao aportar nesta praia de Alexandria que com suas ruiacutenas e seus montiacuteculos oferece aos olhos tuacutemulos espalhados sobre uma terra de cinzas [] Eu teria amado mais as lembranccedilas da antiguidade grega mas tudo isso foi destruiacutedo arra-sado e se tornou irreconheciacutevel (Nerval 1980 p 83)

Satildeo provavelmente os tuacutemulos de suas proacuteprias ilusotildees que expli-cam esta persistecircncia de uma apreciaccedilatildeo lsquomoacuterbidarsquo do Oriente de uma funesta decepccedilatildeo Tais citaccedilotildees satildeo esclarecedoras por nos fazerem ob-servar a maneira como intelectual e imaginaacuterio se imbricam quando se trata do Oriente Tambeacutem cremos que para noacutes estudiosos de literatu-ra eacute importante apreender o Oriente assumindo esta tensatildeo constituti-va Eacute soacute se perguntando fundamentalmente sobre este paradoxo que faz da imagem do Oriente a realizaccedilatildeo muitas vezes mais ldquofictiacuteciardquo de uma busca intelectual e imaginaacuteria que pode se esboccedilar as premissas de uma apreciaccedilatildeo mais justa do Oriente Ter em mente que este imaginaacuterio eacute um dos elementos constitutivos de nossa episteme integrando suas dimensotildees religiosa e miacutestica satildeo ambas posturas que nos permitem natildeo perder de vista os desvios de nossa apreensatildeo Pois olhar o Oriente caminha a par de uma vontade de dobrar o mundo numa ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo para retomar a expressatildeo de Martine Geronimi (2006)

Na admiraccedilatildeo e no elogio ldquoda suntuosidade das cores e dos perfu-mes do Orienterdquo clichecirc tiacutepico se faz necessaacuterio perceber os murmuacuterios de uma nostalgia profunda aquela dos valores perdidos da Europa Em sua obra Orient-Occident La fracture imaginaire Georges Corm (2005) nos lembra que ldquoa imagem de uma Europa que perdeu sua alma em

busca do progresso material vai comeccedilar a se cristalizar A idealizaccedilatildeo do Oriente de sua miacutestica de seu senso de honra de seu desprezo su-posto aos valores materiais vai se estabelecerrdquo Mas paradoxalmente a superioridade ocidental colonial ressurge continuamente Eacute de certa maneira um fenocircmeno que se encontra algures entre os exilados por exemplo nesta idealizaccedilatildeo perpeacutetua do paiacutes de origem Como fascina-ccedilatildeo assimeacutetrica feita de admiraccedilatildeo e recusa o orientalismo soacute podia coincidir sob mais de um aspecto agrave empresa colonial aquela mesma que se apropriava ldquocivilizandordquo

2 Do universal vindo de algures as Mil e uma noites em partilha

Mas esta ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo natildeo tem soacute desvantagens Ela parece dar mesmo que de maneira meio desviada creacutedito ao Oriente Apesar de todas as duacutevidas que levanta atualmente a humanidade sobre o mun-do aacuterabe sobre esta ferida narciacutesica que ele arrasta durante seacuteculos ferida de uma grande civilizaccedilatildeo passada que desaprendeu a se reno-var as Mil e uma noites ao lado da espiritualidade sufi soube guardar os favores do Ocidente E aqui temos outro dos grandes paradoxos do Oriente se invertermos o sentido da relaccedilatildeo em sua ligaccedilatildeo consigo proacuteprio e com o Ocidente Pois parece que o divino que trouxe um eacutelan civilizador importante agraves sociedades araacutebico-mulccedilumanas tornou-se um fardo deixando mais atuais estas linhas do filoacutesofo andaluz Averroacuteis (1126-1198) conhecido no mundo aacuterabe como Ibn el Rushd

Natildeo existe nenhuma contradiccedilatildeo entre verdade religiosa e verdade racional pois todas as duas vecircm de Deus qualquer um que interditar os fieacuteis dotados de razatildeo a iniciaccedilatildeo aos escritos filosoacuteficos da Antiguidade os teraacute distan-ciado de uma porta a qual o Islatilde chama e de um meio de permitir melhor conhecer a Deus (2000 p 99)

Desde o seacuteculo XII portanto o divoacutercio entre espiritualidade e pen-samento entre a doutrina e as artes entre a crenccedila e o saber soacute se dilatou no Oriente As diferentes tentativas para redourar o brasatildeo do mundo aacuterabe se tornaram letra morta se o julgarmos por sua atualidade As mais recentes sendo aquelas da Nahda literalmente o renascimento empresa cujas figuras mais conhecidas satildeo Tahtacircwi Jamacircl al-Dicircn al-Afghacircni ou

ainda Muhammad Abduh (cf Issa 2008) Estes uacuteltimos tiveram o meacute-rito de tentar reformar o mundo aacuterabe se negando em se inscrever num orientalismo caricatural No que ele comporta de caricatura o orienta-lismo se apresenta como a resultante de uma empresa de elaboraccedilatildeo de fronteiras tanto a fascinaccedilatildeo do Oriente se fundamenta tambeacutem numa ideologia da diferenciaccedilatildeo a basear-se principalmente sobre a superiori-dade ocidental e indo-europeacuteia A polecircmica que opocircs violentamente Al-Afghacircni a Renan ilustra paradigmaticamente esta confusatildeo dos registros da eacutepoca oitocentista (cf Lorcerie 2007 p 509-536)

E portanto se o mundo de hoje como o de ontem adula esta li-teratura deve se basear em algumas razotildees Eacute na viagem e na recepccedilatildeo que as Mil e uma noites conquistaram as suas credenciais E se podemos por um lado criticar um apelo exotista sobre o texto por outro a obra se enriqueceu do ponto de vista aacuterabe por conta deste interesse ocidental A histoacuteria nos ensina que a circulaccedilatildeo dos textos das representaccedilotildees e das ideias participa da promoccedilatildeo destas ao tempo que lhe recorta de sua historicidade do fato de ldquoa neutralizaccedilatildeo do contexto histoacuterico que resul-ta da circulaccedilatildeo internacional dos textos e do esquecimento correlativo das condiccedilotildees histoacutericas de origemrdquo (Bourdieu Wacquant 1998 p 17) Eacute necessaacuterio lembrar que as Mil e uma noites eram consideradas como pertencentes a uma literatura secundaacuteria e eacute de maneira paradoxal ao prisma do Ocidente que a obra se valorou E se ela eacute apresentada como a obra que ilustra a sensibilidade e o imaginaacuterio do mundo aacuterabe por ex-celecircncia continua pertencendo a um patrimocircnio de literatura lsquoprofanarsquo tambeacutem correntemente chamado no mundo aacuterabe de ldquomedianardquo ou seja intermediaacuteria entre as obras-primas literaacuterias e as obras mais populares a exemplo dos contos orais Inicialmente os contos que circulavam no mundo aacuterabe natildeo continham ainda os acreacutescimos trazidos por Antoine Galland que eram de fato contos siacuterios relatados por informantes anocirc-nimos como eacute exemplo a histoacuteria de Ali Baba et les quarante voleurs ou ainda Aladin Entatildeo foi necessaacuterio posteriormente traduzir do francecircs ao aacuterabe estes acreacutescimos para disponibilizaccedilatildeo dos leitores aacuterabes Da mesma maneira sabemos que a histoacuteria de Sherazade eacute de origem india-na e a composiccedilatildeo das Mil e uma noites da forma como as conhecemos hoje corresponde mais ou menos segundo as versotildees agravequela em circu-laccedilatildeo durante o seacuteculo XV e natildeo durante o seacuteculo X

Este interesse persistente pelas Mil e uma noites se exprime igual-mente na Franccedila como testemunha a mais recente exposiccedilatildeo organiza-da pelo Institut du Monde Arabe de Paris O cataacutelogo da exposiccedilatildeo ape-sar de uma vontade perceptiacutevel de superar as representaccedilotildees comuns convoca os argumentos habituais em favor da obra extraordinaire sur-prenant faisant le lien entre lrsquoOrient et lrsquoOccident Universelle ou ainda veacutehicule de mythologies et des croyances propres agrave lrsquoOrient Aqui por-tanto seremos tentados a dizer veiacuteculo das mitologias e crenccedilas igual-mente proacuteprias ao Ocidente Pois de fato esta obra que parece se erigir numa lsquoliteratura de reconciliaccedilatildeorsquo foi escolhida como tal por uma soacute das partes segundo criteacuterios esteacuteticos certo colorido bem distantes do que poderiam ser os gostos orientais

Portanto as Mil e uma noites satildeo continuamente objeto de uma redescoberta como eacute testemunha mesmo o assunto deste evento (2ordm CLIF-PE) Por quecirc Porque esse texto eacute de certa maneira viacutetima de sua celebridade um dos maiores da literatura mundial e eacute preciso reconhececirc-lo resguardando a problemaacutetica de sua inscriccedilatildeo na heranccedila orientalista como um texto fundador natildeo sendo o uacutenico ndash pois haacute muitos outros a Eneida de Virgiacutelio a Epopeia de Gilgamesh Nassr Eddin Juhah este bufatildeo sufi o Kalevala a Iliacuteada e a Odisseia o Ramayana e o Mahabarata E cre-mos ainda que esta dimensatildeo universal emancipada dos particularismos do Oriente e do Ocidente revela todo o interesse do texto

3 As Mil e uma noites entre a forccedila moralizadora e a tentaccedilatildeo desmoralizadora

Mas o que satildeo ao final as Mil e uma noites Onde buscar sua uni-dade Seria difiacutecil definir claramente o que satildeo elas tanto difere sua tonalidade de um texto a outro Das narrativas de viagem agraves pequenas histoacuterias lendaacuterias passando por contos em que se sobressaem aspec-tos fesceninos elas representam uma soma de gecircneros diferentes sob um quadro que sumariza um conjunto sobretudo disparatado epopeia conto histoacuteria blagues faacutebulas proveacuterbios etc As primeiras leituras dos contos das Mil e uma noites no seacuteculo X as classificavam entre os con-tos morais do gecircnero mediano destinados agrave populaccedilatildeo geral inferiores a outras obras a exemplo de Kalicircla wa Dimna que pertenciam ao gecircnero

do espelho de priacutencipes destinado agrave educaccedilatildeo moral e poliacutetica dos per-sonagens da alta nobreza sobre os passos do Roman drsquoAlexandre 23

Este paralelo entre Kalicircla wa Dimna eacute pertinente pois nela se en-contra tambeacutem um contador o conselheiro e filoacutesofo Bilpaiuml que ilustra as consequecircncias de um comportamento numa histoacuteria cujos prota-gonistas satildeo animais especialmente os chacais que datildeo nome ao livro Estas histoacuterias acabam numa liccedilatildeo moral e natildeo deixaram de inspirar moralistas como La Fontaine no seacuteculo XVII Todavia pensar as Mil e uma noites como um texto unicamente de educaccedilatildeo moral parece difiacute-cil jaacute que nem todas as histoacuterias se concluem numa proposta de mora-lismo mesmo que olhando amiuacutede se constate rapidamente que o bem sempre triunfa do mal e mesmo quando o fraco perde no momento em que o mal parece triunfar

Por conseguinte um contorno etimoloacutegico fortalece a pertinecircncia desta perspectiva A literatura eacute chamada Adab em aacuterabe termo que designa o prolongamento da educaccedilatildeo no sentido de dececircncia Haacute uma continuidade entre literatura e educaccedilatildeo estebelecida em torno de uma ideia de conveniecircncia do que eacute decente e conveniente A pessoa edu-cada eacute qualificada de Mutaadab ou seja aquele que tem Adab A par-tir disso se desenha claramente aqui o ideal filosoacutefico do Antropos que cabe ao homem letrado o homem conveniente eacute aquele que harmoniza seu ser com o mundo e os outros Ele alcanccedila por sua dececircncia educa-ccedilatildeo e cultura literaacuteria uma forma de harmonizaccedilatildeo do exterior com o interior e vice-versa

Esta virtude educativa das letras e da cultura literaacuteria se encontra reivindicada em outras obras E isso pode ser associado mais largamen-te a uma das caracteriacutesticas do conto o que explica tambeacutem a atraccedilatildeo por esta forma no seacuteculo XIX Pensamos em Pierre Capelle que em seu Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature cujo subtiacutetulo expliacutecito nos diz Choix de penseacutees ingeacutenieuses et sublimes de dissertations et de deacutefinitions extraites des plus ceacutelegravebres moralistes poegravetes et savants pour

23 A obra Kalila wa Dimma era destinada agrave educaccedilatildeo moral e agrave iniciaccedilatildeo poliacutetica da no-breza Cada capiacutetulo eacute aberto com um diaacutelogo entre o rei Dablishim e seu conselheiro-filoacutesofo Bilpai Tais perguntas discutem essencialmente as consequecircncias de um com-portamento que em seguida eacute ilustrado atraveacutes de uma histoacuteria com dois protagonistas os chacais Kalila e Dimna A influecircncia desta obra foi grande tanto nas Noites como sobre os livros de Shhname de Firdusi do miacutestico Rumi e tambeacutem dos moralistas

servir de deacutelassement aux eacutetudes former le cœur orner lrsquoesprit et nourrir la meacutemoire des jeunes gens Nada mais Pierre Capelle nos diz

De todos os gecircneros de poesia o conto eacute sem contradiccedilotildees aquele que mais se aproxima da natureza ele eacute a expressatildeo ingecircnua ele deve tomar de empreacutestimo todos os ornamentos [] Os contos podem tambeacutem ter os seus tanto eles pin-tam nossos ridiacuteculos com o fim de nos corrigir tal eacute o objeto dos contos morais que atacam nossos erros com o intuito de nos curar ndash eacute o desejo dos contos filosoacuteficos [] Nos perguntamos que paiacutes foi o berccedilo dos contos uns dizem que teria sido a Greacutecia dando como provas as faacutebulas milesianas e as Noites Aacuteticas outros nomeiam a Araacutebia citando como testemunhos os contos aacuterabes outros tambeacutem os fazem vir da Peacutersia e reclamam em favor de sua opiniatildeo as Mil e uma noites Erudiccedilatildeo mal aplicada os contos nasceram deles mesmos sobretu-do onde existiram homens ociosos (1824 p 3-4)

Mas as Mil e uma noites natildeo satildeo simples contos eacute a literatura de to-dos os possiacuteveis que se encontra aiacute reunida Tambeacutem esta perspectiva de re-inscriccedilatildeo do texto em sua finalidade educativa e moral se revela heu-riacutestica Eacute necessaacuterio compreender as Noites como uma criaccedilatildeo literaacuteria que evolui no seio de uma tensatildeo constitutiva entre uma forccedila moraliza-dora do texto e uma tentaccedilatildeo desmoralizadora tantas vezes explicitada Esta hipoacutetese permite retomar todo o aporte ldquoeducativordquo da obra pois com efeito deste ponto de vista haacute um duplo movimento paradoxal que potildee a seu serviccedilo o fantaacutestico O fantaacutestico se torna o instrumento que permite a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora numa obra que serve por fim a finalidades altamente morais

4 O fantaacutestico ou a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora

Falta-nos definir delimitar o fantaacutestico Para isso a convocaccedilatildeo de Tzvetan Todorov (1970) se tornou um pedaacutegio conceitual uma passa-gem quase inevitaacutevel Vamos apresentar esta referecircncia para depois nos distanciarmos para um importante reajuste que consistiraacute inicialmente em apreender o fantaacutestico sem cair num dos riscos acima delimitados especialmente o do anacronismo

De fato hoje num mundo que eacute o nosso e que natildeo comporta em absoluto djins lacircmpadas maacutegicas nem tapetes voadores se formos expostos a percebecirc-los teremos duas alternativas ou se trata de uma

ilusatildeo dos sentidos produto da imaginaccedilatildeo e as leis do mundo continu-am intactas ou o evento aconteceu realmente como parte integrante da realidade mas esta realidade nos revela paradoxalmente leis desconhe-cidas Pensemos por exemplo na ilha flutuante de Simbad Ela eacute ilusoacute-ria ou existe realmente Segundo Todorov o fantaacutestico ocupa o espaccedilo da incerteza desde que escolhamos uma ou outra dessas possibilidades para entrar em gecircneros vizinhos o estranho ou o maravilhoso

O fantaacutestico segundo Todorov eacute assim esta hesitaccedilatildeo que expe-rimenta um sujeito em relaccedilatildeo agraves leis naturais frente a um evento de aparecircncia sobrenatural Pertence a este gecircnero toda obra fundada ldquosobre uma hesitaccedilatildeo do leitor um leitor que se identifica agrave personagem prin-cipal quanto agrave natureza de um evento estranho Esta hesitaccedilatildeo pode se resolver seja ao se admitir que o evento pertence agrave realidade seja porque se decide que eacute fruto da imaginaccedilatildeo ou o resultado de uma ilusatildeo dito de outra maneira pode-se decidir que o evento aconteceu ou natildeordquo (p 165) Estamos frente a um verdadeiro trabalho conceitual jaacute que (a) a definiccedilatildeo discrimina o real e (b) delimita claramente sua descriccedilatildeo tendo-se em vista ainda o esclarecimento das condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do gecircnero (o leitor deve acreditar na concretude dos fatos e na realidade dos personagens a hesitaccedilatildeo tambeacutem deve ser vivenciada por um dos personagens e enfim o leitor tem que recusar interpretaccedilotildees alegoacutericas e poeacuteticas acerca dos acontecimentos) Noacutes reteremos aqui uma dimen-satildeo subversiva que potildee o real e a razatildeo em suspensatildeo

As Mil e uma noites estatildeo situadas numa encruzilhada entre o ma-ravilhoso o estranho e o fantaacutestico De fato se tentarmos superar os dois obstaacuteculos do etnocentrismo e do anacronismo temos que admitir que a concepccedilatildeo do fantaacutestico contemporacircnea natildeo eacute a mesma da eacutepoca e das regiotildees de produccedilatildeo dos textos que compotildeem as Noites Por outro lado ainda hoje eacute admitido pela maioria das pessoas de expressatildeo muccedilul-mana que Deus criou de uma parte homens e de outra djins Os djins satildeo assim realidades ontologicamente subjetivas mas julgados como intriacutensecos ao mundo (cf Toufy 1972 pp 154-213) Esta anaacutelise se apoacuteia sobre os numerosos exemplos no texto Tomemos um caso seme-lhante para ilustrar esta tensatildeo anacrocircnica no episoacutedio da ilha flutuante de Simbad Na eacutepoca este tipo de ilha eacute possibilitada por uma crenccedila partilhada ou seja apoiada pela realidade noacutes encontramos descriccedilotildees nos bestiaacuterios medievais de lugares como este O episoacutedio de Simbad eacute

fantaacutestico natildeo pela ilha em si mas pelas experiecircncias que ocorrem nela Da mesma forma as exegeses do Ocidente segundo a ciecircncia da eacutepoca descrevem a existecircncia de uma ilha flutuante Mas nunca se trata de um fantaacutestico puro ou austero que se daacute a ver no texto e isso pode ser repercutido como um dos traccedilos caracteriacutesticos das Mil e uma noites uma obra que sabe associar o fantaacutestico e o bom senso de uma parte o maravilhoso e o humor de outra

5 Quando o inuacutetil eacute fantaacutestico

Na ordem de nosso cotidiano o que nos liga agrave existecircncia agrave vida satildeo as coisas ldquoditasrdquo uacuteteis O que relatamos transmitimos para a preserva-ccedilatildeo da vida natildeo satildeo a priori pequenas histoacuterias Mas aqui o que eacute rela-tado nas Noites satildeo coisas que pertencem ao passional ao divertimento e ao fantaacutestico O grande paradoxo eacute que satildeo coisas fuacuteteis que valem uma vida Aqui reside uma articulaccedilatildeo importante e um entrecruza-mento do fantaacutestico com a educaccedilatildeo

Pois para muitos de noacutes o que nos move eacute uma certa razatildeo instru-mental Muitos poderiam se perguntar sobre a utilidade de um tal congres-so para falar ainda mais de literatura fantaacutestica Eacute preciso para alimentar aqui nosso percurso reflexivo trazer dois elementos capazes de esclare-cer esta problemaacutetica Inicialmente uma anedota relatada por Philippe Meirieu numa palestra consagrada agraves praacuteticas artiacutesticas no ensino puacutebli-co (CFMI 2000) Ele cita um episoacutedio histoacuterico descoberto por Patrick Mendelsohn nos arquivos da Universidade de Berna ndash que natildeo tem nada a ver com as Mil e uma noites Estamos entre 1940 e 1941 num inverno particularmente rigoroso na fronteira entre a Suiacuteccedila e a Alemanha Uma patrulha de soldados suiacuteccedilos estaacute perdida nesta fronteira no frio na neve e em meio agrave tempestade Natildeo haacute comida e os celulares ainda natildeo tinham sido inventados Na verdade pressentem com ansiedade a presenccedila da morte A situaccedilatildeo eacute traacutegica ateacute que um dos soldados acha nos bolsos um pedaccedilo de mapa e graccedilas a ele reencontram o caminho e retornam ao quartel Ali satildeo interrogados e dizem como conseguiram sair da situaccedilatildeo graccedilas agravequele pedaccedilo de mapa e como suas vidas estavam por um fio Ao se examinar atentamente o pedaccedilo haacute a descoberta se tratava de um mapa de outra cadeia montanhosa distante os Pirineus

Continuando a ilustrar este paradoxo penso ainda nas pinturas ru-pestres do Brejo da Madre de Deus e laacute o que se acha agarrado ao cume das pedras Pinturas rupestres Assim o que nossos questionamentos captam eacute o que explica que pessoas que tinham de enfrentar muitas difi-culdades frio fome sede ausecircncia de um conforto que qualificariacuteamos de miacutenimo hoje pudessem encontrar tempo e igualmente inspiraccedilatildeo ne-cessaacuterios para perder tempo em pintar natildeo os planos da futura cidade nem um recenseamento mas cenas da vida altamente estetizadas

Para compreender isto temos de lembrar das primeiras paacuteginas criadas pela pena de Leacutevi-Strauss em sua ceacutelebre Introduction agrave la penseacutee sauvage em que se pergunta sobre as razotildees pelas quais os iacuten-dios deixavam frutas e plantas uacuteteis preferindo plantas nauseabundas chegando agrave seguinte conclusatildeo ldquoas espeacutecies animais e vegetais natildeo satildeo conhecidas tanto por sua utilidade elas satildeo decretadas uacuteteis ou interes-santes porque satildeo de antematildeo conhecidasrdquo (Leacutevi-Strauss 1962 p 21) O que nos faz viver o que nos determina natildeo eacute contrariamente ao que cremos a eficaacutecia imediata Eacute a ordem simboacutelica pela qual inscrevemos os objetos comportamentos e situaccedilotildees que vivemos

Uma das explicaccedilotildees que podemos trazer em relaccedilatildeo ao grande su-cesso da figura de Sherazade reside no fato de que para salvar sua vida como ela proacutepria afirma relata coisas espantosas e surpreendentes Que coisas As que natildeo se destinam agrave nossa razatildeo mas agraves paixotildees e afetos Histoacuterias fantaacutesticas que ligam Sherazade agrave vida histoacuterias inuacuteteis eacute ne-cessaacuterio guardar no espiacuterito para perceber aqui uma articulaccedilatildeo muitas vezes insuspeita entre as Mil e uma noites e a educaccedilatildeo Esta tomada de consciecircncia materializa como o uacutetil se cindiu do fantaacutestico na educa-ccedilatildeo pensemos no que fizemos a geraccedilotildees de crianccedilas espontaneamente apaixonadas por mapas de tesouros o sonho de ilhas misteriosas conti-nentes desconhecidos e cidades submersas transformadas em geraccedilotildees que odeiam a Geografia

Sherazade cuja vida eacute ameccedilada natildeo encontra outra estrateacutegia que a de arriscaacute-la com coisas divertidas ela potildee sua vida ao risco da compo-siccedilatildeo literaacuteria A figura de Sherazade se constitui assim em uma cativa paradoxalmente ldquonocircmaderdquo em sentido deleuziano Eacute aquela que passa o tempo a fugir dos ldquoagenciamentos territorializadosrdquo Natildeo nos conta uma histoacuteria natildeo realiza uma viagem uacutenica Natildeo vai de um soacute iniacutecio a um soacute fim Sherazade ilustra um caminho em que os pontos satildeo sempre

submetidos ao proacuteprio trajeto E pode ser neste sentido que Sherazade conforma a desterritorializaccedilatildeo por excelecircncia a de uma nocircmade que cativa natildeo para de movimentar as fronteiras Ela navega pela vista mos-trando ao mesmo tempo as qualidades de uma inteligecircncia que evo-lui numa multiplicidade qualitativa nos lembrando que ldquoa navegaccedilatildeo nocircmade empiacuterica e complexa faz intervir os ventos barulhos cores e sons do marrdquo (Deleuze Guattari 1980 p 599) Noacutes sabemos tambeacutem que o que verdadeiramente seduziu desde o seacuteculo XIX os autores e criadores dos diferentes campos artiacutesticos foi certamente a metaacutefora do autor frente o imperativo da criaccedilatildeo O escritor o compositor o autor eacute aquele que deve encontrar diariamente um tema uma histoacuteria para viver e para sobreviver Dito de outra forma o inuacutetil vale igualmente a vida do autor

6 Da tentaccedilatildeo desmoralizadora

Se expressa nas Mil e uma noites uma tentaccedilatildeo desmoralizadora de superar as barreiras e delimitaccedilotildees estabelecidas pela sociedade igualmente no registro da hierarquia social Pensemos na 9ordf noite por exemplo onde vemos se realizar o impensaacutevel numa sociedade em que o estatuto social eacute fortemente delimitado O que se trata aqui eacute o cotidia-no aspectos que poderemos classificar de lsquoordinaacuteriosrsquo Estamos em um mercado aacuterabe (souk) qualquer pessoa hoje ainda pode imaginar uma atmosfera tiacutepica se identificando com o carregador O que nos faz mer-gulhar nas Noites Qual a mensagem aqui O livro sob muitos aspectos nos fala de coisas cotidianas

1) elas reconfiguram o cotidiano jogando com as barreiras morais e sociais estabelecidas superando as lsquolimitaccedilotildeesrsquo do real a ficccedilatildeo nos faz sair de noacutes mesmos e de nossas vidas

2) Mas as Noites nos dizem tambeacutem que precisamos prestar aten-ccedilatildeo a este cotidiano de aparecircncia comum Eacute necessaacuteria atenccedilatildeo agraves coisas ordinaacuterias pode ser que se encontre nelas coisas extraordinaacuterias Este eacute um fato particularmente moderno para um texto tatildeo antigo Mas isso natildeo se limita especificamente agraves Mil e uma noites o mesmo pode ser encontrado na literatura dita de maneira geral como lsquomedianarsquo

Pois as pessoas simples tecircm um papel consideraacutevel nas Noites pen-samos tambeacutem no personagem do empregado do matadouro de Bagdaacute arpoado por uma adoraacutevel jovem que decidiu jaacute que era traiacuteda pelo marido dormir com o mais sujo e abjeto homem da cidade A obra cria uma sociedade sonhada cujas fronteiras indevassaacuteveis satildeo constan-temente perpassadas uma sociedade em que escravos africanos fazem amor com lindas princesas sultanas onde carregadores satildeo seduzidos por jovens distintas e empregados de matadouros copulam com lindas mulheres Assim a tentaccedilatildeo desmoralizadora se exprime como uma fuga uma improvisaccedilatildeo literaacuteria entre a sentenccedila religiosa de abertura ldquoem nome de Deus o todo misericordioso o muito misericordiosordquo e a conclusatildeo das narrativas curtas sempre moral E Deus estaacute aqui sempre posto como testemunha e invocado para nos lembrar talvez que o di-vino se materializa tanto no excesso de moralidade quanto na tentaccedilatildeo desmoralizadora que o rosto de Deus se encontra tambeacutem no deboche na decadecircncia e na orgia Esta ideia eacute ainda mais fortalecida quando se restitui as experiecircncias conduzidas pelos Majdhucircb literalmente os ldquoaspirados em Deusrdquo tambeacutem chamados repreendidos que procuravam o seu Senhor bem amado dentro de experiecircncias que superavam todos os quadros morais estabelecidos (cf Bentounegraves Solt 1996 p 154-158) Repensemos neste quarteto de Omar Khayyam

Cada gosto de vinho que o Saki derramaNegligentemente para apagar os fogos de penaEm qualquer coraccedilatildeo doloroso Louvaccedilotildees agravequele que ofereceUm tal remeacutedio para consolo de sua melancolia (2005 p 69)

Interpretamos sobretudo este vinho como uma metaacutefora miacutestica ou como praacutetica voluntaacuteria de embriaguez tendo em vista uma aproxima-ccedilatildeo de Deus O ecircxtase estaacute assim natildeo muito longe da surpresa do des-lumbramento e espanto Jogar com uma ordem estabelecida que eacute res-peitada interiorizada e as Mil e uma maneiras de transgredi-las pois a transgressatildeo eacute um dos ingredientes essenciais ao drama e um dos aspec-tos que mais datildeo interesse ao texto Ela natildeo eacute proacutepria agraves Noites tambeacutem estaacute presente no romance de Ariosto no qual a traiccedilatildeo se daacute com um anatildeo disforme O fantaacutestico e o sobrenatural satildeo caminhos para a supe-raccedilatildeo do real o transgredir a lei tais funccedilotildees se aproximando daquelas apontadas por Torodov Noacutes podemos ver no fantaacutestico na forma como

ele se expressa nas Noites uma linha de fuga no sentido deleuziano do termo que permite escapar no espaccedilo de um instante literaacuterio agrave censu-ra se jogando sutilmente contra as interdiccedilotildees das autoridades

7 Agrave guisa de conclusatildeo a submissatildeo moralizadora ou quando a literatura marcha obediente

De fato ao fim eacute bem a moral que daacute a tocircnica nas Noites e a cons-tante e breve reconquista dos territoacuterios do imaginaacuterio do fantaacutestico do maravilhoso Eacute necessaacuterio repensar continuamente esta literatura como Adab no duplo sentido de educadora e moralizadora De harmonizar o ser com o mundo e os outros Se repensarmos por exemplo Simbad do mar24 que encontra um outro Simbad carregador Aquele conta a este que um dia perdeu sua fortuna e decidiu abandonar tudo para partir apoacutes lembrar-se da sentenccedila do rei Salomatildeo ldquotrecircs coisas satildeo preferiacuteveis a trecircs outras o dia da morte ao dia do nascimento um cachorro vivo a um leatildeo morto e a tumba agrave miseacuteriardquo Eis uma amarga liccedilatildeo de moral ao outro Simbad o simples carregador acabrunhado pela vida e pelo ardor de sua tarefa Uma liccedilatildeo ainda mais amarga se pensarmos no esquema narrativo invariaacutevel ao qual obedecem as aventuras de Simbad do mar ele nasce em meio agrave fortuna para depois perdecirc-la embarca para encon-trar uma tempestade ou uma agressatildeo naufraga e perde todas as suas mercadorias mas a sorte estaacute sempre a seu favor pois ele se arrisca Eacute Simbad do mar que embarca ou o Simbad simples carregador que sonha em fazecirc-lo Natildeo seria uma mensagem agraves pessoas humildes de Bagdaacute sobre a aceitaccedilatildeo de sua sorte e de natildeo se perder a esperanccedila de trabalhar e abraccedilar os riscos ldquoUns tecircm o cansaccedilo por lote e outros o repouso Uns satildeo felizes outros como eu mesmo vocacionados agrave maior pena e ao aviltamentordquo (Bencheikh Miquel 2007 p 354) E poucas paacute-ginas nos bastam para trazer esta liccedilatildeo

Eacute pelas provas que se atinge as honras pois ao se visar o que estaacute muito alto quantas noites sem sonho Deve mergulhar profundamente o que deseja encon-trar peacuterolas e merecer assim o poder e a riqueza Quem sonha a gloacuteria sem mer-gulhar na pena consome a existecircncia a buscar o impossiacutevel (p 356 ndash 539ordf noite)

24 A traduccedilatildeo literal do aacuterabe natildeo faz de Simbad um marinheiro mas um homem do mar no sentido de que ele usa o mar como um comerciante o mar nunca eacute um fim em si

Simbad ilustra se eacute necessaacuteria uma concepccedilatildeo da moral em terras do Islatilde em que a fortuna deve se conjugar com a salvaccedilatildeo a tal pon-to que quando a ilha se movimenta o capitatildeo do barco comeccedila a gri-tar a quem quiser ouvir ldquoabandonem seus bens e salvem suas almas Primeiro suas vidas Esta ilha na qual vocecircs estatildeo natildeo eacute uma ilhardquo (p 357) A ambivalecircncia da ilha entre imagem paradisiacuteaca e simulaccedilatildeo diaboacutelica eacute um motivo antigo Estamos face a uma alegoria a ilha eacute tambeacutem o diabo que simula o paraiacuteso Eacute preciso se referir agraves primei-ras linhas da Icircle deserte et autres textes de Deleuze sobre a persistecircncia desta imagem na literatura das diferenccedilas entre ilha continental e ilha oceacircnica esclarecendo esta geografia imaginaacuteria que tanto se aproxima como se distancia de noacutes mesmos

Os geoacutegrafos dizem que haacute dois tipos de ilhas Eacute uma informaccedilatildeo preciosa para a imaginaccedilatildeo pois se encontra aqui uma confirmaccedilatildeo do que ela sabia de outra parte [] As ilhas continentais satildeo ilhas acidentais ilhas derivadas elas estatildeo separadas do continente nascidas de uma desarticulaccedilatildeo erosatildeo fratura e sobrevivem ao afundamento do que as mantinha As ilhas oceacircnicas satildeo ilhas originaacuterias essenciais de uma parte satildeo constituiacutedas de corais se nos apresen-ta como um verdadeiro organismo de outra surge de erupccedilotildees submarinas trazendo para o ar livre um movimento das profundezas umas emergem lenta-mente outras desaparecem e retornam sem que tenhamos tempo de anexaacute-las [] Essa atraccedilatildeo que o homem tem pelas ilhas retoma este duplo movimento que as produz Sonhar as ilhas com anguacutestia ou alegria pouco importa eacute so-nhar que noacutes nos separamos que jaacute estamos separados longe dos continentes que estamos soacutes e perdidos ndash ou eacute sonhar que reiniciamos a partir do zero que recriamos e recomeccedilamos (Deleuze 2002 p 11)

Enfim eacute preciso entender que os grandes episoacutedios que compotildeem as Mil e uma noites satildeo construiacutedos sobre um modelo elaborado que tecircm em vista finalidades altamente morais Pensamos no tintureiro desonesto da 930ordf noite Este personagem velhaco mentiroso na alma e que nunca se envergonha das vilezas que faz aos outros exige o pagamento antes do trabalho gasta o dinheiro e pede aos clientes que retornem para pegar seus pertences no outro dia em dias consecutivos pretextando o nascimento do filho ou a visita de convidados Depois quando natildeo tem mais argumentos diz que a roupa fora roubada quando estava estendida Se o cliente eacute bom diz um ldquoDeus providenciaraacute a sua substituiccedilatildeordquo se eacute menos influenciaacutevel causa um escacircndalo mas sem obter nada mesmo se queixando ao juiz Pouco a pouco o ruiacutedo se expande em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas desonestas do tintureiro atraindo a atenccedilatildeo sobre ele Pouco a pouco vai sendo posto de lado seus negoacutecios declinam e por fim seraacute simultaneamente queimado e afogado Mais que uma liccedilatildeo de moral vinculada aos negoacutecios comerciais vemos aqui como as Noites aspiram a esta liccedilatildeo de conseacutequentialisme demonstrando sequencialmente os efeitos gerados por uma accedilatildeo e a partir dela o valor moral da mesma O fantaacutes-tico eacute ornamento mas igualmente uma fuga salutar diante de um neces-saacuterio retorno a uma realidade que pedia moralidade e Adab

REFEREcircNCIAS

AMIROU Rachid Imaginaire touristique et sociabiliteacute du voyage Paris PUF 1995

BACHELARD Gaston La formation de lrsquoesprit scientifique Paris Vrin 1971

AVERROES LrsquoIslam et la raison Trad Marc Geoffroy Paris Garnier-Flammarion 2000

BERCHET Jean-Claude Le Voyage en Orient anthologie des voyageurs franccedilais au XIXe siegravecle Paris Robert Laffont 1985

BOURDIEU Pierre WACQUANT Loiumlc ldquoSur les ruses de la raison impeacuterialisterdquo in Actes de la recherche en sciences sociales Vol 121-122 mars 1998 (p109-118)

BOUTANG Pierre-Andreacute LrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuze (teacuteleacutefilm documentaire) Paris Arte (1988) 1996

CAILLOIS Roger Au cœur du fantastique Paris Gallimard 1965

CAPELLE Pierre Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature (tome 1) Paris Haut-coeur et Gayet Jeune 1824

CFMI - Centre de Formation des Musiciens Intevenants agrave lrsquoEacutecole Actes de colloque La musique un enseignement obligatoire Pourquoi comment Paris Lrsquoharmattan 2000

CHATEAUBRIAND Reneacute Itineacuteraire de Paris agrave Jeacuterusalem Paris Gallimard 1969

CORM Georges Orient-Occident La fracture imaginaire Paris La deacutecouverte 2005

DELEUZE Gilles Mille Plateaux ndash Capitalisme et schizophreacutenie 2 en collaboration avec GUATTARI Felix Paris Les eacuteditions de Minuit 1980

_________ Diffeacuterence et reacutepeacutetition Presses Universitaires de France Paris 1968

DERRIDA Jacques Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Paris Seuil 1967

FOUCAULT Michel Les mots et les choses Paris Gallimard 1990

FLAUBERT Gustave Correspondance 1 1830-1851 Paris Gallimard 1973

__________ Correspondances ressource en ligne de lrsquoUniversiteacute de Rouen URL httpflaubertuniv-rouenfrcorrespondanceconardlettres49bhtml (acessado em 14 de fevereiro de 2013)

__________Voyage en Eacutegypte Paris Grasset 1991

GERONIMI Martine ldquoLrsquoOrient geacuteographie imaginaire les eacutecrivains franccedilais et les villes de deacutesirrdquo in Teacuteoros 25-2 | 2006 13-18

HENTSCH Thierry LrsquoOrient imaginaire Paris Eacuteditions de Minuit 1988

ISSA Hossam ldquoLa Nahda ou le recircve de na nation eacutegyptienne de Muhammad Ali agrave Gamal Abdel Nasserrdquo in EacutegypteMonde arabe Premiegravere seacuterie Mutations [En ligne] mis en ligne le 08 juillet 2008 httpemarevuesorgindex1480html (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

LORCERIE Franccediloise ldquoLrsquoislam comme contre-identification franccedilaise trois momentsrdquo in LrsquoAnneacutee du Maghreb vol II 2007

LOVECRAFT Howard Phillips Eacutepouvante et surnaturel en litteacuterature Paris Bourgeois 1969

MOUSSA Sarga Le Voyage en Eacutegypte Anthologie des voyageurs europeacuteens de Bonaparte agrave lrsquooccupation anglaise Paris Robert Laffont 2004

NERVAL Geacuterard de Voyage en Orient Paris Flammarion 1980

RANCIERE Jacques Le partage du sensible Paris La fabrique 2000

SAIumlD Edward LrsquoOrientalisme LrsquoOrient creacuteeacute par lrsquoOccident Paris Seuil 1980

TOUALBI-THAALIBI Issam ldquoRegards sur la socieacuteteacute musulmane du ixe siegraveclerdquo in Revue europeacuteenne des sciences sociales [En ligne] 50-1 | 2012 mis en ligne le 15 juin 2015 httpressrevuesorg1208 (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

TOUFY Fahd ldquoAnges deacutemons et djinns en Islamrdquo in Geacutenies Anges et Deacutemons Paris Seuil 1972 (p 154-213)

Voyage en Orient Exposition de la Bibliothegraveque nationale de France (BNF) [httpexpositionsbnffrveoindexhtm] (acessado nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2013)

A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro(Doutoranda em Linguiacutestica ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Priscilla de Moraes Batista(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Luiacutes Nicolau Fagundes Varela (1871-1845) eacute considerado um dos grandes nomes do Romantismo brasileiro Poeta ambientado pela criacutetica entre a segunda e terceira geraccedilotildees suas obras versavam sobre temas como morte patriotismo religiatildeo e misticismo Em meio a esta produccedilatildeo haacute um conto especial que abarca elementos oniacutericos fantaacutesticos ora em tom gro-tesco ora sublime retomando o mito paradisiacuteaco de um Oriente perdido quase metafiacutesico imagem esteacutetica que percorre a histoacuteria da literatura por-tuguesa desde a eacutepoca dos Descobrimentos (Machado 1983) Encontrado por Batalha (2011) e publicado no livro O fantaacutestico brasileiro contos esque-cidos o conto As Bruxas de Fagundes Varela introduz o leitor do seacuteculo XIX no universo da bruxaria e feiticcedilaria do folclore europeu a partir da his-toacuteria de um grupo de argonautas portugueses que aportados em um cais satildeo surpreendidos pela presenccedila de mulheres velhas e medonhas no conveacutes de seu navio sendo estas referidas posteriormente como feiticeiras Eacute nesse momento que os personagens iniciam uma jornada lendaacuteria culminando com a constataccedilatildeo do capitatildeo da ida dos seus tripulantes agraves Iacutendias

Apoacutes essa breve introduccedilatildeo ao conto passemos agrave discussatildeo dos aspectos linguiacutesticos e literaacuterios responsaacuteveis por construir a diegese Logo no iniacutecio da narrativa deparamo-nos com o diaacutelogo que Fagundes Varela estabelece com importantes obras da literatura fantaacutestica Baseando-nos no dialogismo de Bakhtin (2005) conceito desenvolvi-do em Problemas da poeacutetica de Dostoievski observamos que o autor ao referenciaacute-las explicitamente para a dimensatildeo ficcional da histoacuteria de-marca quais satildeo os discursos esteacuteticos e literaacuterios que vatildeo se constituir como base para a construccedilatildeo do (seu) universo da bruxaria

Na Alemanha e na Escoacutecia elas [as bruxas] andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura e desprendem funeacutereas monodias ao ermo e aos venda-vais Foi assim que Fausto e Mefistoacutefeles as encontraram a subir a montanha na medonha noite dos Walpurgis que Shakespeare as pintou na desvairada trageacutedia do Macbeth que Hoffmann as apresentou a desoras entre a chuva e a tempestade aos lacrimosos olhos da triste amante de Anselmo o louco no conto doentio que denominou o - vaso de ouro eacute assim que Walter Scott coxo as fez aparecer em seus belos romances Na Franccedila poreacutem segundo as tradiccedilotildees coligidas por Emiacutelio Souvestre no ndash Foyer Breton ndash e Paulo Feval em suas lendas elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar lavar o sudaacuterio dos finados nas aacuteguas do rio ou ir danccedilar ao Sabbath o baile infernal alumiado pelo claratildeo sinistro das fosforescecircncias tendo por orquestra ndash o bramido das torrentes ndash o ronco de trovoada e os silvos da ventania (Varela 2011 p 53)

Entatildeo Fagundes Varela ao oferecer exemplos literaacuterios para basear a realidade da sua histoacuteria dialoga com o fundo aperceptivo (Bakhtin 1993) do universo dantesco de histoacuterias de bruxaria e feiticcedilaria pre-sentes em diversas obras da Alemanha EscoacuteciaInglaterra Franccedila e Portugal Uma vez que o autor faz referecircncia a esse imaginaacuterio esteacutetico de grande influecircncia na construccedilatildeo do arqueacutetipo coletivo da bruxaria mencionaremos algumas das vozes que ressoam e se entrelaccedilam de for-ma mais contundente com o enunciado total do conto

Iniciaremos pela Alemanha Entre as vozes que convoca tais como Hoffmann em Vaso de ouro ldquotriste amante de Anselmo o loucordquo Gottfried Burger o pai da poesia narrativa fantaacutestica neste paiacutes e Achim von Arnim escritor romacircntico de espectros destacaremos a de Goethe Em sua obra Fausto haacute referecircncia agrave noite dos Walpurgis a qual eacute comemorada entre 30 de abril e 1deg de Maio celebrada por cristatildeos e pagatildeos em vaacuterios paiacuteses aleacutem da Alemanha como Inglaterra Beacutelgica Holanda e Franccedila Essa referecircncia pode ser ilustrada na cena III do quadro XXI da parte inicial do livro inti-tulada Noite de Santa Walpurga na qual Mefistoacutefeles obriga Fausto a passar uma noite no monte de Brocken para assistir agrave celebraccedilatildeo dos Walpurgis

De Brocken ao rochedocorrer correr bruxedoOnde a cana jaacute loirejamas a espiga inda verdejatodo o bando unido sejaPosto de alto e todo manoeacute o senhor Dom Fulano

quem preside ao nosso arcanoPor cima da folha mais do pedregulhofestanccedila rasgada com todo o barulhoO bode tresanda fartum que enfeiticcedilae a bruxa casticcedila casticcedila e casticcedila (Goethe 2003 grifo nosso)

Passemos agora agraves vozes literaacuterias da Escoacutecia e Inglaterra Entre elas as de Walter Scott romancista histoacuterico Anna Radcliffe escritora de histoacuterias de fantasmas o corcel de Giaour25 tambeacutem trabalhado pela de Byron e a de Shakespeare em especial na sua obra Macbeth (1606) A referecircncia a esse livro eacute particularmente importante tendo em vista o universo da bruxaria nele trabalhado muito a fim ao conto de Varela Isso pode ser ilustrado neste excerto da peccedila shakespeariana em que Banquo ao conversar com Macbeth afirma

A que distacircncia em sua avaliaccedilatildeo senhor estamos de Forres O que satildeo essas figuras tatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fantaacutesticas e desvairadas em seus trajes a ponto de natildeo parecerem habitantes da terra e no entanto podemos ver que estatildeo sobre a terra Vivem vocecircs Ou seriam vocecircs alguma coisa que natildeo admi-te perguntas humanas Vocecircs parecem entender-me logo levando como fazem cada uma por sua vez seu dedo encarquilhado aos laacutebios emaciados Vocecircs tecircm toda a aparecircncia de mulheres e no entanto suas barbas proiacutebem-me de inter-pretar suas figuras como tal (Shakespeare 2012 p 18-9 grifos nossos)

Ao definir as trecircs bruxas como ldquotatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fan-taacutesticas e desvairadasrdquo de ldquodedo encarquilhadordquo ldquocom aparecircncia de mulhe-resrdquo figuras que ldquonatildeo admite[m] perguntas humanasrdquo Shakespeare atraveacutes de Banquo caracteriza essas criaturas como seres que oscilam entre o hu-mano e o natildeo-humano pois mesmo vivendo e habitando a terra haacute algo na natureza dessas criaturas que se afasta do natural Esses traccedilos podem ser tambeacutem visualizados no iniacutecio do conto quando Fagundes Varela afirma ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa suas palavras e accedilotildees cunhadas do torvo caraacuteter de uma sombria monomaniardquo (p 53 ndash grifos nossos) Esta uacuteltima expressatildeo ldquosombria mo-nomaniardquo ainda destaca a fixaccedilatildeo irracional doentia e grotesca desses seres

Varela ainda dialoga com outras vozes literaacuterias da Franccedila a saber Emiacutelio Souvestre ao mencionar o poema Foyer Breton que reuacutene vaacuterias

25 Eacute interessante notar que o nome ldquoGiaeurrdquo caracterizava o desprezo que os turcos tinham agravequeles que natildeo seguiam sua religiatildeo particularmente os cristatildeos

histoacuterias do folclore e da literatura popular da Bretanha e Paulo Feacuteval romancista mais conhecido no final do seacuteculo XIX A partir dessas refe-recircncias observamos que Fagundes Varela eacute um romacircntico que dialoga atraveacutes da retomada no seu texto com os grandes nomes do movimen-to em se utilizando por exemplo de temas populares e folcloacutericos mais proacuteximos do fantaacutestico e contraacuterios ao universo classicista tradicional

Haacute ainda outra voz de grande importacircncia para a elaboraccedilatildeo do fundo aperceptivo do conto Logo apoacutes ambientar o leitor quanto ao tema a ser abordado evoca-se uma lenda folcloacuterica da eacutepoca das Grandes Navegaccedilotildees divulgada nas terras portuguesas A referecircncia geograacutefica eacute oferecida quan-do o autor cita alguns locais de Portugal ndash Minho e Extremadura ndash onde tais supersticcedilotildees se encontram mais arraigadas ao folclore local ldquoentretanto em nossas tradiccedilotildees filhas quase todas das geacutelidas supersticcedilotildees do Minho e da Extremadura as bruxas natildeo satildeo revestidas desse caraacuteter de sublimes horrores que as faz tatildeo temidas nas campinas da Bretanha nas montanhas da Escoacutecia ou nas planiacutecies da Alemanhardquo (Varela 2011 p 53) Aqui o ter-mo entretanto delimita o imaginaacuterio das bruxas portuguesas das Grandes Navegaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves figuras diaboacutelicas citadas anteriormente

Apoacutes delimitar o fundo dialoacutegico do conto passemos para a anaacutelise do narrador e dos personagens Em relaccedilatildeo ao primeiro observamos a presenccedila do narrador heterodiegeacutetico (Batalha 2011) que natildeo participa da accedilatildeo (de grau zero) mas que conhece os fatos ao seu redor (oniscien-te) Por outro lado notamos que o autor abre um lsquoespaccedilorsquo no texto para se posicionar sobre o que estaacute relatando a saber as lendas que dispotildee para o leitor ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas [eacute estranho] contam que agrave noite elas rolam pela correnteza sentadas em alguiacutedares e coro-adas de floresrdquo (Varela 2011 p 54) Baseando-nos em Bakhtin (1993) observamos que nesse trecho Fagundes Varela mostra explicitamente a sua voz a partir da expressatildeo deslocada entre colchetes ldquoeacute estranhordquo re-velando sua visatildeo sobre a histoacuteria de dentro e fora do conto Nos dizeres da autora francesa Authier-Revuz (1982) estariacuteamos nos deparando com um comentaacuterio metoniacutemico isto eacute um entrelaccedilamento da enunciaccedilatildeo pois o autor alude a si e ao outro dentro do seu proacuteprio discurso abrindo uma brecha no seu enunciado quando emprega o verbo no plural contam (quem conta eles isto eacute os ditos mitos e folclores populares)

Eacute interessante notar que apoacutes essa demarcaccedilatildeo pontual da voz do autor na narrativa referindo-se ao imaginaacuterio dessas lendas oralizadas

ele relata ldquoeis uma das lendas mais conhecidasrdquo Aqui a diegese eacute tra-balhada de maneira antropoloacutegica mas com criatividade literaacuteria Isso significa que o leitor percebe que eacute lenda e por isso a teoria de Todorov sobre o fantaacutestico puro falha ao menos pontualmente Contudo eacute im-portante mencionarmos que no primeiro paraacutegrafo do conto haacute uma focalizaccedilatildeo mais proacutexima do maravilhoso todoroviano quando Varela descreve as bruxas como ldquomulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 2011 p 53) aceitando de antematildeo a presenccedila de leis distintas do real

Voltemos agora para os personagens A esse respeito o enredo eacute constituiacutedo por cinco marinheiros ndash Pedro Guilherme Teodoro Jacques e Gabriel ndash e uma quantidade indefinida de bruxas Sob a perspectiva bakhtiniana (1993) observamos que haacute uma uacutenica visatildeo de mundo co-letivizando as vozes do grupo dos marinheiros ldquoo marinheiro eacute um tipo estoico por natureza nada haacute que os aflija como tambeacutem nada haacute que os amedronterdquo (Varela 2011 p 55 grifo nosso) Nessa citaccedilatildeo relacionada a uma discussatildeo relativa ao sobrenatural saiacutemos do horror propriamen-te dito no momento em que estes marinheiros apresentam caracteriacutesti-cas dos heroacuteis mitoloacutegicos claacutessicos impassiacuteveis inabalaacuteveis em suma incapazes da experiecircncia do medo

Por outro lado as bruxas satildeo caracterizadas ora como grotescas ora sublimes Hugo (2007) na obra Do grotesco e do sublime permite-nos compreender esses polos como parte da dinacircmica do pensamento esteacute-tico romacircntico pois a sua junccedilatildeo ofereceria novo iacutempeto agrave arte Para ele o grotesco o disforme e o horriacutevel datildeo descanso ao que eacute belo e para se admirar esse ldquobelordquo seria preciso um contraste uma comparaccedilatildeo

Nesse conto observamos que o grotesco e o sublime satildeo elementos predominantes na caracterizaccedilatildeo das bruxas os quais por sua vez intensificam o universo fantaacutestico-maravilhoso assim o trabalho de Varela com o grotesco se configura a partir de uma mescla de elementos heterogecircneos que daacute vazatildeo a uma experiecircncia abismal (Kayser 2008) como ilustram os excertos abaixo

As bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernal (Varela 2011 p 53 grifos nossos)

Os aspectos destas taacutertareas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa [] (p 53 grifo nosso)

Pedro subiu e chegando agrave escotilha viu uma multidatildeo de mulheres velhas e medonhas que entravam umas atraacutes das outras pulando e saltando a cavalo em cabos de vassouras (p 54 grifo nosso)

Entatildeo ele olhou para aquela turba invasora de sinistras personagens [] (p 54 grifo nosso)

As moccedilas transformaram-se logo em hediondas velhas sem contudo perder as riquezas que lhes tinham dado sem duacutevida seus misteriosos amantes e cavalgando o claacutessico cabo de vassoura lanccedilaram-se ao mar e desaparece-ram (p 57 grifo nosso)

Desse modo o grotesco eacute configurado como um traccedilo marcante da obra se inserindo especialmente no tratamento que eacute dado agraves invasoras Contudo em um determinado ponto da histoacuteria no momento em que as bruxas invadem a embarcaccedilatildeo modifica-se sua aparecircncia horriacutevel e grotesca e elas tornam-se belas criaturas Segundo Hugo (2007) o gro-tesco pode ser visto como um ponto de partida para se chegar ao belo Logo esse movimento ndash do feio para o belo ndash proporciona uma expansatildeo vivacidade e emoccedilatildeo ao objeto artiacutestico Nessa perspectiva observamos a passagem do grotesco para o sublime no universo do insoacutelito a partir de algumas descriccedilotildees tais como em ldquoos marinheiros correram para a proa e viram em vez das megeras que Pedro enxergara um bando de moccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo (p 55 grifo nosso)

Eacute interessante notarmos que esse aspecto sublime da beleza pode se constituir como um simulacro funcionando atraveacutes de uma falsa aparecircncia Ora as bruxas possuem uma ldquosombria monomaniardquo (Varela 2011 p 53) ou seja predomina entre elas o desejo doentio de serem eternamente jovens e belas ldquoas bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e ventu-ras da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 194 p 53 grifo nosso) Essa beleza eacute portanto estranha e grotes-ca porque eacute sedutora e ilusoacuteria artifiacutecio do sobrenatural para ldquoenganarrdquo os marinheiros Logo o grotesco e sublime satildeo aspectos que funcionam na diegese como iacutendices que potencializam o caraacuteter insoacutelito da obra

Antes de concluirmos a anaacutelise da caracterizaccedilatildeo dessas bruxas observemos que elas satildeo construiacutedas no conto como seres livres e

independentes sexualmente detentoras de um grande poder sensual e de encanto eroacutetico como se vecirc nas seguintes imagens

[] elas andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura [] (p 53 gri-fos nossos)

[] elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar [] (p 53 grifo nosso)

[] se transformam em belas moccedilas apossam-se dos navios erguem as acircn-coras e vatildeo por aiacute afora seduzir os rapazes entregar-se em horrenda lubri-cidade aos braccedilos deles ndash incendidos de um amor vertiginoso e funesto (p 54 grifos nossos)

Nesses trechos notamos a presenccedila da liberdade via erotismo re-lacionada tambeacutem ao imaginaacuterio romacircntico de quebra do decoro e das femmes fatales oitocentistas Ademais o universo dessas bruxas osci-la em torno de um movimento entre o sagrado e o profano26 (Priore 1994) evocando mulheres proacuteximas a uma pureza quase casta e virginal ndash ldquomoccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo ndash mas ao mesmo tempo envoltas em uma atmosfera misteriosa e erotizada

Ainda a respeito da polarizaccedilatildeo grotesco x sublime observamos que esse movimento de expansatildeo do disforme para o que estaacute na forma do belo destaca-se na configuraccedilatildeo peculiar do tempo e espaccedilo narrativos O cronotopo eacute diluiacutedo por alguns processos narrativos tiacutepicos do fantaacutestico

Entretanto o navio natildeo perdia tempo - corria corria corria e na desabrida carreira como o luacutegubre cavaleiro de Burger deixava atraacutes de si a terra as ilhas as aacutervores e as nuvens como um bando de aves fugitivas A cada porccedilatildeo de espaccedilo que rompia ndash o ar tornava-se mais azul e carregado as estrelas maiores e mais viacutevidas No zimboacuterio imenso do firmamento a lua se equilibrava como uma lacircmpada de prata inundada de nardo na cuacutepula dos templos orientais As ondas erguiam-se como Leviathans em cujo dorso escamoso brincavam os raios de uma luz fosforescente e a embarcaccedilatildeo de-senhava-se raacutepida e fugaz nas aacuteguas como a sombra do corcel de Giaeur nas plantas do ervaccedilal (Varela 2011 p 55 grifos nossos)

Nesse excerto observamos que o tempo passa raacutepido e o navio li-teralmente ldquovoardquo O espaccedilo e tempo satildeo assim expandidos atraveacutes do

26 O movimento de oscilaccedilatildeo do sagrado e do profano estaacute ligado tambeacutem agrave dinacircmica do grotesco e do sublime

processo de repeticcedilatildeo de palavras ndash corria corria corria ndash e por meio do paralelo do navio com o ldquocorcel de Giaourrdquo (dialogismo mostrado com o poema de Byron) A referecircncia agrave ldquocuacutepula dos templos orientaisrdquo sina-liza a viagem ateacute a Iacutendia e representa a passagem da razatildeo europeia ao maravilhoso desconhecido do Oriente Potencializando o universo fan-taacutestico do conto esta regiatildeo eacute descrita com termos que evocam o lon-giacutenquo o metafiacutesico o abstrato um sonho que ldquoparecerdquo nunca ter se re-alizado mas que se presentifica efetivamente como se eacute revelado ao final do conto a partir do diaacutelogo entre o capitatildeo e o grupo de marinheiros

Machado (1983) em sua obra O mito do Oriente na literatura por-tuguesa explica que este espaccedilo geograacutefico tambeacutem em liacutengua portu-guesa veio sendo apropriado literariamente como um mito ao longo dos seacuteculos por autores do passado como Joatildeo de Barros Camotildees Diogo do Couto entre outros ateacute a contemporaneidade (Antero de Quental Eccedila de Queiroacutes etc) Segundo Machado desde a eacutepoca dos Descobrimentos haacute uma constante elaboraccedilatildeo desse tema que de tan-to circular tornou-se parte da nossa memoacuteria coletiva imprimindo-se na nossa histoacuteria como um arqueacutetipo O olhar negativo em relaccedilatildeo ao Oriente por conta da secular dominaccedilatildeo moura na peniacutensula ibeacuterica eacute mitigado por estas maravilhas comuns ao imaginaacuterio europeu poten-cializadas pela movecircncia das grandes navegaccedilotildees

No conto de Varela a chegada do navio agraves Iacutendias pelos ares eacute des-crita da seguinte forma

Depois de assim voar o navio por algum tempo parou finalmente junto de umas costas alvas e extensas coroadas de uma vegetaccedilatildeo fantaacutestica e titacirc-nia As feiticeiras pularam logo ao mar e comeccedilaram a correr para a terra com tal desembaraccedilo como se pisassem uma campina firme e segura Os ldquomarsouinsrdquo ficaram estaacuteticos e perplexos alguns minutos poreacutem como ndash marinheiro eacute capaz de desembestar ateacute o quinto inferno e palestrar com o proacuteprio Satan soltaram os escaleres e remaram para a praia Chegando sen-tiram uma como harmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e desconcertados que vinha de longe nas asas de uma aacuterea teacutepida e suave ferir-lhes o ouvido Caminharam para o lugar de onde partia o ruiacutedo agrave medida poreacutem que se adiantavam um perfume voluptuoso e sensual desconhecido embora vinha-lhes amenizar os sentidos umas aacutervores enormes gigantescas cujos fastiacutegios pareciam espanejar as nuvens levantavam-se diante deles mu-dos silenciosos como os fantasmas de Anna Radcliff como os espectros de Achim DrsquoArnim (Varela 2011 p 56 grifos nossos)

Observamos nessa descriccedilatildeo o fasciacutenio pela descoberta de um paraiacuteso o qual os marinheiros soacute depois saberatildeo tratar-se das Iacutendias Esse ambiente ndash que de certa forma torna lsquofantaacutesticarsquo a Ilha das Amores camoniana ndash revela traccedilos miacutesticos de orientalismo maacutegico e exotista uma ldquoharmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e des-concertadosrdquo sente-se o cheiro de ldquoum perfume voluptuoso e sensual desconhecidordquo haacute aacutervores ldquoenormes gigantescasrdquo etc Tais imagens se aproximam das elaboradas por Joatildeo de Barros em suas crocircnicas segun-do Machado (1983) este autor se concentra na evocaccedilatildeo da descoberta conquista e descriccedilatildeo minuciosa das terras orientais Isso se daacute porque ele eacute um ldquohumanista estaacuteticordquo ndash diferente de Damiatildeo de Goacuteis que viajou muito ao longo da vida ndash a substituir o conhecimento in loco por uma ldquoelaborada retoacuterica claacutessica evocativa do longiacutenquordquo (p 22) que ganha proporccedilotildees miacuteticas

A partir da chegada dos marinheiros a essa terra ldquodesconhecidardquo observamos que durante a descriccedilatildeo do ambiente haacute elementos que caracterizam uma ornamentaccedilatildeo de caraacuteter grotesco e a influecircncia oriental construiacuteda pelo emprego de expressotildees como ldquoedifiacutecio amplo e colossalrdquo ldquomaacutermore pretordquo ldquosacadas douradasrdquo ldquoarabescos fantaacutesticosrdquo ldquofumo do incensordquo ldquoecos rudes e selvagensrdquo ldquosolidotildeesrdquo e ldquonoiterdquo

Os nossos homens adiantavam-se mais e deram entatildeo de rosto com um edi-fiacutecio amplo e colossal todo de maacutermore preto coberto de torreotildees sacadas douradas cornijas e arabescos fantaacutesticos Pelas infinitas fileiras de janeli-nhas ou antes seteiras se pendurava uma multidatildeo de lampiotildees multicores e saiacutea em turbilhatildeo o fumo do incenso e dos alvos uma orquestra desconhe-cida expandia seus ecos rudes e selvagens que se iam morrer pelas solidotildees e pela noite (Varela p 56 ndash grifos nossos)

Em seguida os argonautas se deparam com mais um elemento po-tencializador do gecircnero fantaacutestico a saber um ritual de danccedila como espaccedilo maacutegico de grande semelhanccedila com a danccedila do ventre a qual eacute considerada por muitos a primeira danccedila da humanidade Sari (2011) traz algumas contribuiccedilotildees a esse respeito em sua Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre na qual afirma que sua origem se daacute como um ritual sagrado uma vez que as mulheres danccedilavam para a Deusa-Matildee Inana siacutembolo da reproduccedilatildeo fertilidade e em especial relacio-nada ao crescimento dos gratildeos durante o plantio Surgida no Paleoliacutetico

na regiatildeo da Sumeacuteria ndash e natildeo no Egito como muitos pensam ndash as dan-ccedilarinas como satildeo por noacutes chamadas eram as grandes sacerdotisas dos templos e uma vez que Inana era extremamente feminina seus rituais baseavam-se na sexualidade fertilidade e no ventre a partir de teacutecnicas que norteavam a danccedila sagrada como os movimentos peacutelvicos Essa movimentaccedilatildeo do corpo da sacerdotisa-danccedilarina eacute evocada pelo nar-rador do conto

Fora do edifiacutecio sobre um vasto terreiro ardia uma enorme fogueira em torno da qual homens e mulheres de olhos negros e cintilantes face redonda e bronzeada danccedilavam ao som de instrumentos estranhos e refletiam ao claratildeo da fogueira suas figuras extravagantes na fachada de maacutermore polido do palaacutecio e faziam tremular pelo ar as compridas abas de suas vestimentas vermelhas e amarelas Havia tambeacutem moccedilas belas embora excessivamente trigueiras que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmente no gesti-cular lacircnguido e voluptuoso de uma danccedila desconhecida suas grinaldas e cin-turotildees eram ornados de pequenos luzeiros palidamente azulados Uma ala de homens feios e carrancudos cercava esta exoacutetica companhia e completava o quadro (Varela 2011 p 56-57 - grifos nossos)

Notamos claramente a descriccedilatildeo da movimentaccedilatildeo do corpo da danccedilarina do ventre a partir das expressotildees ldquomoccedilas belas que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmenterdquo e ldquogesticular lacircnguido e volup-tuosordquo Aleacutem disso as caracterizaccedilotildees das vestes dessas mulheres ndash ldquosuas grinaldas e cinturotildees eram ornados de pequenos luzeirosrdquo ndash ratificam a imagem da danccedilarina oriental Todos esses elementos relacionados ao mundo oriental27 potencializam o fantaacutestico

Eacute interessante notar que o leitor eacute paulatinamente inserido no universo fantaacutestico-maravilhoso da trama construiacutedo em torno da nar-rativa oriental de Varela segundo Todorov (2008) no subgecircnero fantaacutes-tico-maravilhoso daacute-se a aceitaccedilatildeo do sobrenatural apoacutes a duacutevida e as ambiguidades fantaacutesticas

27 De acordo com Sari (2011) ldquoas primeiras guerras e consequentemente os primeiros impeacuterios formam o conjunto de fatores que difundiram o culto a deusa e a danccedila peacutelvi-ca ritualiacutestica [] [Ademais houve] seis grandes impeacuterios que participaram ativamente na divulgaccedilatildeo e expansatildeo dos rituais da danccedila impeacuterio Sumeriano Assiacuterio Persa o impeacuterio de Alexandre o grande Romano e o principal o impeacuterio Otomanordquo (p 13)

Quando ao meio dia chegou o capitatildeo os marinheiros contaram o ocorrido e como prova mostraram as plantas que tinham apanhado O comandante tomou-as e pocircs-se a examinaacute-las com atenccedilatildeo misturada de pasmo inexpri-miacutevel depois entregando-as disse - Sabeis voacutes outros onde estivestes esta noite - Natildeo meu capitatildeo responderam os marujos- Pois estivestes na Iacutendia- Na Iacutendia Na Iacutendia Gritaram os marujos estuacutepidos de espanto (Varela 2011 p 57)

Nesse trecho flagramos a presenccedila do fantaacutestico-maravilhoso no momento em que o comandante aceita a histoacuteria contada pelos seus su-bordinados como algo ocorrido de fato evidenciando assim a presenccedila de novas leis na natureza e o estranhamento dos marinheiros eacute logo posto em suspensatildeo Aleacutem disso no final do conto encontramos iacutendices que confirmam este universo de forma incontestaacutevel

Esta eacute a canela filha legiacutetima da Aacutesia esta outra o cravo esta a baunilha e fi-nalmente esta de cujo nome natildeo me recordo agora eacute um excelente remeacutedio que natildeo cresce em nenhuma outra parte do mundo a natildeo ser ali A descriccedilatildeo que me fizestes desses homens morenos e trajados de estranhas roupagens natildeo faz senatildeo confirmar o que digo Aquele edifiacutecio de maacutermores eacute um pa-laacutecio de priacutencipe aquelas moccedilas de grinaldas e cinturotildees brilhantes satildeo as virgens indianas que cozem os vaga-lumes e luciacuteolas as suas vestimentas aqueles homens armados satildeo os guardas e soldados do priacutencipe Natildeo haacute duvida por artimanhas do diabo em menos de uma noite fostes agrave Iacutendia e voltastes (Varela 2011 p 58)

Desse modo um sobrenatural que eacute aceito se apresenta como fator determinante para a narrativa Ademais nesse trecho a voz do coman-dante se mistura com a do narrador ou seja deparamo-nos com um hibridismo (Bakhtin 1993) entre essas vozes uma vez que o narrador parece tomar a posiccedilatildeo do comandante tambeacutem como o seu posiciona-mento Isso significa que haacute uma imbricaccedilatildeo entre o que o comandante e o narrador pensam sobre o universo maravilhoso ficcional

Baseando-nos em Machado (1983) notamos que a diegese se constitui como uma ficccedilatildeo miacutetica do Oriente elaborada a partir do contexto mental dos Descobrimentos em que aparentemente a proacute-pria realidade adquire conotaccedilotildees maravilhosas aos olhos de hoje Assim ainda conforme Machado (1983) haacute ldquouma certa tendecircncia da cultura oitocentista que pretende retomar a liccedilatildeo dos viajantes aacutevidos

ao mesmo tempo de exoacutetico e de conhecimento cientiacuteficordquo (p 82) Assim a junccedilatildeo entre o passado miacutetico (histoacuterico) a esteacutetica fantaacutestica oitocentista (literaacuteria) aliada agraves imagens (do ponto de vista histoacuterico e literaacuterio) de um Oriente miacutetico que eacute tanto renascentista quanto ro-macircntico configuram um conto fantaacutestico-maravilhoso importante e original dentro da literatura oitocentista brasileira

REFEREcircNCIAS

AUTHIER-REVUZ Jaqueline ldquoHeterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva elementos para uma abordagem do outro no discursordquo In Entre a transparecircncia e a opacidade um estudo enunciativo do sentido Porto Alegre EDIPUCRS [1982] 2004

BAKHTIN Mikhail ldquoO discurso no romancerdquo In BAKHTIN Mikhail Questotildees de Literatura e de esteacutetica a teoria do romance Satildeo Paulo Unesp Hucitec [1975] 1993 (p 71-163)

______ Problemas da Poeacutetica de Dostoievski Trad Paulo Bezerra 3ordf ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

GOETHE Johann Wolfgang von Fausto Trad Antoacutenio Feliciano de Castilho eBooksBrasil 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwebooksbrasilorgeLibrisfaustogoethehtml21gt (acesso em 02 de fevereiro de 2013)

HUGO Victor Do grotesco e sublime Satildeo Paulo Perspectiva 2007

KAYSER Wolfgang O grotesco Satildeo Paulo Perspectiva 2008

MACHADO Aacutelvaro Manoel O mito do Oriente na Literatura Portuguesa Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1983

PRIORE May Del A mulher na histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Contexto 1994

SARI Nassih Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre 2011 Disponiacutevel em lt httpwwwcentraldancadoventrecombr gt (acesso em 12 de julho de 2011)

SHAKESPEARE William Macbeth Trad Beatriz Vieacutegas-Faria Porto Alegre LampPM Pocket 2012

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Satildeo Paulo Perspectiva 2008

VARELA Fagundes ldquoAs Bruxasrdquo in BATALHA Maria Cristina (org) O fantaacutestico brasileiro contos esquecidos Rio de Janeiro Editora Caeteacutes 2011 (p 53-58)

O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier

Thiago Joseacute Costa Pininga(Mestrando em Teoria da Literatura ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Escrito em 1840 o conto Peacute de muacutemia narra a histoacuteria de um perso-nagem flacircneur que ao passar em uma loja de antiguidades tem a ideia de comprar um objeto para lhe servir de peso-de-papel aos seus ldquoesboccedilos de versosrdquo encontrando um verdadeiro peacute de muacutemia que se descreve como da princesa Hermonthis28 Nesta descriccedilatildeo trabalhada por um autor consi-derado um dos fundadores do parnasianismo francecircs tatildeo rica em detalhes esteacuteticos (a exemplo do que ocorre em poemas dessa escola a exemplo de Vaso chinecircs do poeta brasileiro Alberto de Oliveira) teriacuteamos o poder in-consciente e fantaacutestico de dar vida aos objetos de sua admiraccedilatildeo

Se a descriccedilatildeo minuciosa e amorosa faz com que determinado ob-jeto ganhe ldquovidardquo como dito acima isso significa que ele (o objeto) de-veria ser construiacutedo como se estivesse nas matildeos e diante dos olhos do leitor ndash natildeo apenas um texto verbal ndash mas como um fantasma29

Em outros contos fantaacutesticos deste autor encontramos caracteriacutesti-cas semelhantes entre eles A cafeteira e Ocircnfale Tais objetos sejam eles uma cafeteira uma tapeccedilaria ou um peacute mumificado satildeo considerados de grande beleza (ou menos uacuteteis que belos) e por isso tecircm ou merecem uma existecircncia proacutepria isto eacute fantasmagoacuterica natildeo fugindo assim de uma ldquoArte pela Arterdquo ndash termo cunhado por Gautier ndash na medida em que o culto agrave forma permite uma separaccedilatildeo do suporte material em termos

28 A referecircncia a uma princesa do Egito eacute indireta Hermonthis eacute o nome de uma cidade do Antigo Egito e natildeo propriamente o nome de uma princesa Contudo eacute exatamente a cidade que Cleoacutepatra tornaraacute sua capital Vale verificar que a construccedilatildeo do nome Cleoacutepatra significa ldquoGloacuteria do pairdquo ou ldquoAmada por seu pairdquo Ao longo da narrativa percebe-se entatildeo uma associaccedilatildeo de Cleoacutepatra a Hermonthis uma vez que seria esta a ldquoamada por seu pairdquo

29 De fato Theacuteophile Gautier antes de seguir a carreira literaacuteria expressava o desejo de ser pintor

pragmaacuteticos Desse modo a escolha do autor em escrever contos fan-taacutesticos natildeo foge agrave sua escolha esteacutetica pelo contraacuterio aprofunda-a Um caso exemplar eacute o conto Peacute de muacutemia em que como dito ao procurar um objeto uacutetil que servisse para peso-de-papel se constata que o peacute estaacute vivo saltitante e agrave procura da dona O fantaacutestico e suas consequecircn-cias fazem o personagem mudar de opiniatildeo sobre a utilidade do referido objeto embora continue lhe conferindo uma aura estetizada

O protagonista eacute em duas passagens do texto um possiacutevel poeta na primeira passagem pela fala do vendedor que diz ironicamente ldquoHa ha ha para um peso-de-papel ideia original ideia de artistardquo (Gautier 1999 p106 ndash grifo meu) e na segunda no momento em que o perso-nagem retorna agrave sua casa ldquoPara aproveitaacute-la imediatamente pousei o peacute da divina princesa Hermonthis sobre um maccedilo de papel esboccedilos de versos mosaico indecifraacutevel de rasurasrdquo (p 107) Um personagem poeta natildeo apenas porque escreve versos mas tambeacutem por possuir uma aura identificada pelo comerciante Eacute comum Gautier compor narrativas com personagens-artistas poetas atores pintores e ateacute mesmo escritores de contos fantaacutesticos (estes com clara intenccedilatildeo de humor) No conto Ocircnfale uma histoacuteria rococoacute o personagem assim se declara ldquoSe o bom homem pudesse ter previsto que eu abraccedilaria a [profissatildeo] de contista fantaacutesti-co sem duacutevida ter-me-ia posto pela porta afora e deserdado irrevogavel-mente []rdquo (p 51) Por sua vez a personagem feminina iconizada como muacutemia aparece como um textopoema isso porque como bem observa Ruth Silvano Brandatildeo ldquotoda ela eacute pura escritura grafada por sinais vaacuterios ou apagados como nos palimsestosrdquo (Brandatildeo 1996 p 19)

Eacute pela experiecircncia com o fantaacutestico aliada agrave esteacutetica da ldquoArte pela Arterdquo que o personagem eacute educado Jaacute natildeo trata aquele objeto da mesma maneira em primeiro lugar porque ele parece estar vivo em segundo porque a muacutemia (que eacute descrita agora sem um dos peacutes) faz a troca de seu peacute solto por uma estatueta ndash e esta constituiria a prova de que aquele acontecimento teria sido real e natildeo um sonho Entre a primeira experiecircn-cia e a uacuteltima o personagem eacute levado em uma viagem aparentemente real ateacute o Antigo Egito na qual tambeacutem aprende liccedilotildees natildeo somente artiacutesticas como espirituais (morais) a fim de constatar que somente a boa arte a arte de qualidade a arte que transcende eacute capaz de durar pela eternidade

A mudanccedila no personagem ocorre natildeo somente em um niacutevel ar-tiacutestico mas tambeacutem se gerando consequecircncias morais Muito embora

associe-se o parnasiano a um sentido amoral vemos que Gautier utiliza a moralidade ao escrever seus contos fantaacutesticos Por exemplo no conto O cavaleiro duplo em que existe um confronto entre o bem e o mal e o primeiro sai vencedor depois de uma luta de vida ou morte entre os dois personagens gecircmeos com o bom terminando vencedor no conto Dois atores para um papel onde um ator se envaidece de ser o melhor interprete da personagem de diabo para uma peccedila em cartaz ateacute que o mesmo aparece e toma seu lugar no palco quase o matando e por uacuteltimo citamos um de seus contos mais famosos A morte enamorada em que se descreve toda uma moral ligada ao catolicismo Os trecircs contos citados trabalham profundas conotaccedilotildees espirituais a noccedilatildeo de bem e mal e os castigos por soberba e arrogacircncia Todos os seus protagonistas acabam salvos e aprendendo uma liccedilatildeo

Em Peacute de muacutemia verificamos que a mudanccedila de atitude do per-sonagem eacute tambeacutem espiritual ou seja moral tendo em vista que esta acontece na perspectiva dos debates entre Oriente e Ocidente e pelo vieacutes de uma formaccedilatildeoconselho para jovens poetas sobre dar utilida-de agrave beleza30 Este conto foi escrito em 1840 periacuteodo em que a Franccedila dominava econocircmica e politicamente suas colocircnias no Oriente e jaacute ti-nha passado por importantes experiecircncias orientalizantes no norte da Aacutefrica Gautier francecircs ambienta seu conto em seu paiacutes de origem res-saltando um fantaacutestico egiacutepcio que irrompe de uma pacata atmosfera burguesa reproduzindo um imaginaacuterio comum agrave eacutepoca verificada pelo estudioso Edward Said no livro Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente

O Oriente foi orientalizado natildeo soacute porque se descobriu que ele era lsquoorien-talrsquo em todos aqueles aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu meacutedio do seacuteculo XIX mas tambeacutem porque podia ser ndash isto eacute ndash per-mitia ser feito oriental Haacute muito pouca anuecircncia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert com uma cortesatilde egiacutepcia tenha produzido um modelo amplamente influente da mulher oriental ela nunca falou de si mes-ma nunca representou suas emoccedilotildees presenccedila ou histoacuteria Ele falou por ela e a representou (Said 1990 p 17 ndash grifos do autor)

30 Sabrina Baltor nos informa que ldquoTheacuteophile Gautier torna-se um exemplo para Flaubert Baudelaire jovens escritores que nunca o viram capitular perante a arte social ou burguesa []rdquo (1997 p 22)

Longe de ser neutro Gautier ndash que influenciou Flaubert inclusive com a ideia de ldquoArte pela Arterdquo ndash vai explorar justamente o comeacutercio entre Ocidente e Oriente em um primeiro momento de modo realista Nos primeiros paraacutegrafos ele alerta para o fato de que na capital france-sa estava em moda ndash e em grande nuacutemero ndash determinados tipos de lojas locais de vendas de objetos raros onde se comprava itens de todas as culturas e civilizaccedilotildees do mundo em sua maioria antiguidades sendo o comerciante do conto identificado como um tipo oriental (ldquoA curvatura do nariz tinha uma silhueta aquilina que lembrava o tipo oriental ou judeurdquo Gautier 1999 p 104 ndash grifo meu) Desde jaacute Gautier natildeo esconde que a relaccedilatildeo seraacute mercantilista O diaacutelogo que segue entre o comercian-te e o poeta revela o misticismo do primeiro e o ceticismo do segundo

O comerciante se utiliza de argumentos fantaacutesticos sobre o possiacutevel uso desrespeitoso do objeto ressaltando que os nobres egiacutepcios ficariam zangados ao saberem que o peacute de sua amada filha poderia servir como um simples peso-de-papel ldquoele [o faraoacute] que mandava cavar uma mon-tanha de granito para colocar nela o triplo esquife pintado e dourado coberto de hieroacuteglifos com belas pinturas do julgamento das almasrdquo (Gautier p106) Contudo o poeta ceacutetico insiste na compra e consegue adquiri-la com o que tinha nos bolsos Revela-se aqui a situaccedilatildeo de su-perioridade do ocidental e a consequente inferioridade do oriental que vecirc suas crenccedilas serem rebaixadas ao niacutevel do profano utilitaacuterio estando o objeto em questatildeo disponiacutevel a qualquer um que pagasse e natildeo a al-gueacutem que pudesse compreender seu verdadeiro valor

Eacute a este tipo de superioridade e dominaccedilatildeo que Edward Said denuncia como orientalismo ldquoideia da identidade europeia como sendo superior em comparaccedilatildeo com todos os povos e culturas natildeo-europeusrdquo (Said 1990 p 19) Aqui superioridade eacute tanto uma questatildeo econocircmi-ca quanto ideoloacutegica primeiro porque a relaccedilatildeo entre Franccedila e Oriente eacute aquela entre colocircnia e colonizados pautada em relaccedilotildees comerciais desiguais Em segundo lugar para manter e sustentar esta relaccedilatildeo era necessaacuterio manter uma ideologia que dizia ser a Franccedila a representante da ciecircncia e do progresso ocidentais (basta lembrar que floresciam nesta eacutepoca as teorias do filoacutesofo francecircs Auguto Comte o Curso de filosofia positiva eacute publicado entre 1830 e 1842) sendo o Oriente apenas um lu-gar repleto de misticismo ingecircnuo e ultrapassado O proacuteprio persona-gem do comerciante natildeo se mostra como o mais respeitoso pelas coisas

do Oriente nas entrelinhas desconfia-se que estava interessando em revelando uma crenccedila e seu respeito por ela somente fazer subir o preccedilo do objeto Caso contraacuterio natildeo colocaria a peccedila em exposiccedilatildeo

Seraacute apenas no diaacutelogo travado com a muacutemia da princesa (que fala em seu idioma antigo estranhamente compreendido pelo protagonista) que veremos a presenccedila ou tentativa de uma voz que fala por si mesma a reve-lar seu ponto de vista e sua triste histoacuteria (em comparaccedilatildeo com a oriental de Flaubert que natildeo tinha voz nem histoacuteria) A partir desse diaacutelogo se inicia uma mudanccedila em relaccedilatildeo ao mundo oriental num processo gradual de saiacuteda do fantaacutestico e inserccedilatildeo no maravilhoso Ora o conceito de orien-talismo eacute definido entre outros como ldquoum estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Orienterdquo (Said p 15) contudo em Gautier vemos tratar-se menos de um domiacutenio do que uma reestruturaccedilatildeo de saldo positivo e imaginativo Por fim demonstra-se que tal domiacutenio natildeo eacute possiacutevel ndash porque natildeo haacute domiacutenio sobre a experiecircncia fantaacutestica

A noccedilatildeo de Oriente eacute entatildeo transfigurada por Gautier O conto se iniciava com um discurso que parecia apontar aos leitores a presenccedila da noccedilatildeo de superioridade do europeu moderno ateacute entrar em cena o fantaacutes-tico que potildee em duacutevida a proacutepria crenccedila na ciecircncia e na razatildeo ocidentais

A pesquisadora Sabrina Baltor (1997 p 136) nos informa que ldquona obra de Gautier nota-se certo fasciacutenio pelo povo egiacutepcio natildeo eacute agrave toa que dois contos e um romance tecircm como cenaacuterio a terra dos faraoacutes Une nuit de Cleacuteopacirctre (1838) Le pied de momie (1840) e Le roman de La momie (1857)rdquo portanto trata-se de um autor que admira os temas orientais em seu aspecto artiacutestico ou seja de um segmento capaz de ensinar-lhe a cultivar a beleza e a sua duraccedilatildeo

Historicamente depois de grande acuacutemulo de experiecircncias de expe-diccedilotildees europeias ao Oriente que natildeo eram necessariamente criadas tendo em vista objetivos artiacutesticos e sim de comeacutercio de conhecimento cientiacute-fico ou estrateacutegia militar foram as obras literaacuterias contudo que popula-rizaram de maneira mais eficiente o Oriente (o orientalismo) ao europeu segundo nos informa Said ao que acrescentamos o fato de o fantaacutestico nestas eacutepocas ter se tornado um gecircnero popular de grande apelo puacuteblico

Os motivos de Gautier no entanto para aleacutem de conquistar leitores faacuteceis buscavam a experimentaccedilatildeo ao trabalhar ideais ligados agrave pere-nidade da arte bem como a criacutetica a uma sociedade empenhada em valores utilitaacuterios e burgueses sem espiritualidade A valorizaccedilatildeo da arte

egiacutepcia especialmente a da mumificaccedilatildeo que sobreviveu por milecircnios mostrava por contraste que a arte de sua eacutepoca era de niacutevel inferior ba-seada em modismos A soluccedilatildeo era uma volta ao passado para tentar re-cuperar algo que se perdeu daiacute a escolha pelo Egito Antigo Por sua vez no niacutevel esteacutetico natildeo haveria conflitos porque as descriccedilotildees estetizadas caracteriacutesticas dos parnasianos natildeo sofriam perdas pelo contraacuterio ga-nhavam mais vida tornavam-se mais ldquoreaisrdquo

Depois que acorda (e o motivo do sonho eacute recorrente natildeo soacute fan-taacutestico mas tambeacutem neste conto tornando-o ambiacuteguo) o personagem-poeta passa sensorialmente em especial atraveacutes do olfato a descobrir que algo andava errado em sua casa A escolha deste sentido eacute signifi-cativa quando se trata de visotildees do Oriente trabalhadas por franceses lembremos dos versos de Baudelaire amigo famoso de Gautier em As flores do mal31 ldquoCom a fluidez daquilo que jamais termina Como o almiacutescar o incenso e as resinas do Oriente Que a gloacuteria exaltam dos sentidos e da menterdquo (Baudelaire 2006 p 127 ndash grifo meu) Em outra ocasiatildeo da narrativa tambeacutem se afirma sinestesicamente ldquoO sonho do Egito era a eternidade seus odores tecircm a solidez do granito e duram outro tantordquo (Gautier 1999 p 108 ndash grifo meu)

A partir destes odores diferentes o protagonista afirma ldquosentir al-guma coisa que se parecia muito com o terrorrdquo (p 109 ndash grifo meu) pois o peacute estava saltitando Ele tambeacutem observa nesta hora a proacutepria prin-cesa saltitando e teme por sua vida Apoacutes o suspense a princesa revela sua triste histoacuteria alguns ladrotildees invadiram seu sarcoacutefago e roubaram toda sua riqueza de modo que natildeo tinha dinheiro sequer para comprar seu peacute de volta As mercadorias roubadas acabariam indo parar nas lojas de antiguidades citadas anteriormente nada mais restava agrave princesa a natildeo ser a piedade do poeta Tudo que havia de valioso no Oriente fora levado por conquistadores e vendido como curiosidade exoacutetica para as diversas partes do mundo que poderiam pagar por ele32

31 As flores do mal foram dedicadas com ecircnfase a Theacuteophile Gautier ldquoAo poeta impecaacute-vel ao perfeito maacutegico das letras francesas a meu cariacutessimo e veneradiacutessimo mestre e amigo Theacuteophile Gautier com os sentimentos da mais profunda humildade dedico estas flores doentiasrdquo

32 Este tema do comeacuterciotraacutefico de produtos do Egito Antigo continua atual sendo por exemplo trabalhado por autores como o recifense Fernando Monteiro no ro-mance A muacutemia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Globo 2001)

Convencido da triste histoacuteria da princesa e por medo do que lhe aconteceria caso se negasse a ajudaacute-la acaba lhe restituindo o membro perdido Em agradecimento a princesa-muacutemia o leva como dito para uma viagem ateacute o Antigo Egito na qual conhece todas as belezas das piracircmides entre outras Ateacute chegar ao Faraoacute que tambeacutem agradecido lhe concede um desejo O poeta com uma ironia muito tiacutepica dos contos fantaacutesticos de matriz hoffmanniana escolhe a ldquomatildeordquo da princesa33 Mas ele eacute acordado por um amigo e parece descobrir que tudo natildeo foi um sonho (ldquoo fantaacutestico ocupa o tempo desta incertezardquo ndash Todorov 1970 p 15) porque a estaacutetua deixada pela princesa em troca do peacute ainda estava laacute

No final do conto a razatildeo volta ao seu estado inicial de poder ex-plicar o ocorrido de modo natural tudo efetivamente natildeo passara de um sonho (Todorov denomina de gecircnero Estranho o sobrenatural explicado por via do sonho) Por outro lado vemos que o que interessa Gautier eacute a metaacutefora da relaccedilatildeo do artista com sua produccedilatildeo criativa que se fosse perfeita ganharia vida Ora a perfeiccedilatildeo pela forma soacute poderia resultar em um fantasma que eacute pura forma sem mateacuteria A muacutemia aleacutem de ser uma bela estaacutetua eacute tambeacutem um texto ldquoA princesa eacute grafia marcada por traccedilos da ordem do resiacuteduo verbal resiacuteduo mnecircmico nunca traduzido ou recuperaacutevel porque para sempre perdido como ocorre com as primeiras experiecircncias psiacutequicasrdquo (Brandatildeo 1996 p 20) Quiccedilaacute o peacute de muacutemia natildeo fosse um poema esquecido um rascunho (natildeo seria o hieroacuteglifo neste conto um tipo de rascunho do autor) acima dos outros papeacuteis

Eacute somente pela experiecircncia fantaacutestica que haacute uma inversatildeo de va-lores inesperada diante do personagem e dos leitores O fantaacutestico estaacute aleacutem da ciecircncia e obriga a caminhar pelo desconhecido pelo que ainda natildeo eacute enquadrado em algum tipo de conhecimento seguro e explicaacute-vel pelas leis da razatildeo O orientalismo eacute reestruturado com um saldo positivo para o Oriente pois faz reconhecer ao europeu moderno que sua razatildeo natildeo eacute capaz de descobrir tudo e seu controle e domiacutenio estatildeo enfraquecidos por este meio Natildeo eacute somente ao conhecimento tradi-cional e agrave estrutura da sociedade (mercantilista x miacutestica) que Gautier faz sua criacutetica pois ao afirmar a arte egiacutepcia como arte de beleza mais duradoura que a ocidental (diz o Faraoacute ldquominha filha duraraacute mais do que uma estaacutetua de bronzerdquo [p115]) ele quer com isso dizer que o Oriente

33 ldquoA matildeo pelo peacute parecia-me uma recompensa antiteacutetica de bastante gostordquo (1999 p114)

tem mais para nos ensinar se quisermos aprender em termos de Arte e Cultura

De fato o fantaacutestico tambeacutem se liga agrave noccedilatildeo de ldquoArte pela Arterdquo numa outra espeacutecie de culto agrave forma que se daacute pela autorreferencialidade A princesa pode ser vista pelo menos de quatro maneiras Estaacutetua Muacutemia Princesa e Texto (pois estava completamente adornada de hieroacuteglifos) O modo de apresentaccedilatildeo vai do tratamento de objeto ao tratamento hu-mano natildeo esquecendo contudo a modalizaccedilatildeo fantaacutestica (Muacutemia viva)

Existe aqui portanto um ensaio de respeito pelo Outro enquanto Outro ou seja em suas diferenccedilas que natildeo satildeo as diferenccedilas criadas aprioristicamente apesar de obviamente ser Gautier um europeu que tambeacutem torna fantaacutestico o Oriente O desconhecimento eacute o que provoca medo e terror pois inibe qualquer accedilatildeo ou a interpreta desde jaacute como perigo na grande maioria das vezes sem efetivamente ser perigosa A morte eacute um exemplo de experiecircncia desconhecida Mas natildeo haacute mortes neste conto ndash embora exista no miacutenimo uma ldquonatureza-mortardquo

REFEREcircNCIAS

AMARAL Ana Carolina Bianco ldquoA moderna hesitaccedilatildeo fantaacutestica em O Peacute de Muacutemia de Gautierrdquo in Revista Travessias Interativas Ribeiratildeo Preto UNESP 2011 (p 8-18)

BALTOR Sabrina Ribeiro A opccedilatildeo de Theacuteophile Gautier pelo conto fantaacutestico In I Encontro Nacional O Insoacutelito como Questatildeo na Narrativa Ficcional UERJ 2009 Mesa Redonda Rio de Janeiro DialogartsUERJ 2009 (p 78-84)

BALTOR Sabrina Ribeiro Literatura plaacutestica e Arte pela Arte nas narrativas de Theacuteophile Gautier Tese (Doutorado) Rio de Janeiro UFRJ 1997

BAUDELAIRE Charles As Flores do Mal Trad Ivan Junqueira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2006

BRANDAtildeO Ruth Silvano Literatura e psicanaacutelise Rio Grande do Sul UFRS 1996

GAUTIER Theacuteophile Contos Fantaacutesticos Trad Geraldo Gerson de Souza Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Coleccedilatildeo Debates Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 1970

ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de

Edgar Allan Poe

Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Os homens que exercem a profissatildeo de jornalista parecem consti-tuiacutedos como os deuses de Walhalla que se cortavam em pedaccedilos todos os dias e acordavam com perfeita sauacutede todas as manhatildes

(Edgar Allan Poe Marginalia34)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) esteve durante toda sua vida profissional ligado a jornais e a revistas literaacuterias norte-americanos dentre os quais o Southern Literary Messenger de Richmond a Burtonrsquos Gentlemanrsquos Magazine a Grahamrsquos Magazine e o The pionner da Filadeacutelfia Realizando breves contribuiccedilotildees ou atuando como editor nesses perioacutedicos Poe adentrou em um domiacutenio de pro-duccedilatildeo de literatura veloz muitas vezes voltada apenas a satisfazer as exi-gecircncias do puacuteblico e que certamente atendia aos interesses comerciais dos editores Essa carreira suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros podemos dizer se fez quase apesar dele mesmo Com efei-to Poe natildeo hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofiacutecio era a poesia Assim em 1845 aos 36 anos escreve

Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar em qualquer ocasiatildeo um esforccedilo seacuterio naquilo que sob mais felizes circuns-tacircncias teria sido a carreira de minha escolha Para mim a poesia natildeo tem sido uma finalidade mas uma paixatildeo e as paixotildees deveriam merecer reverecircn-cia natildeo devem nem podem ser excitadas agrave vontade com vista agraves mesquinhas compensaccedilotildees ou louvores ainda mais mesquinhos da humanidade35

Deliberadamente Poe idealizava as formas de criaccedilatildeo artiacutestico-li-teraacuterias constituiacutedas sob a loacutegica do campo artiacutestico como um ldquomundo

34 Ver em Poe (1999c p 176 1984 p 1223 e seg) 35 Poe (1999c p 19 2004a p 715)

econocircmico invertidordquo36 como mais tarde escreveria o socioacutelogo fran-cecircs Pierre Bourdieu (2002) quer dizer o campo da arte que opera pela primordial negaccedilatildeo dos interesses econocircmicos Apesar disso no en-tanto o escritor norte-americano natildeo deixaria de reconhecer a grande transformaccedilatildeo intelectual que promoviam os jornais e as revistas lite-raacuterias permitindo a difusatildeo do conhecimento Allan Poe assim como outros homens de sua eacutepoca ndash e ateacute mais que alguns deles ndash foi sensiacutevel agraves profundas modificaccedilotildees sociais ocasionadas pela ascensatildeo da induacutes-tria e pelas formas de divisatildeo do trabalho as quais resultaram em uma diminuiccedilatildeo do tempo livre passiacutevel de ser empregado para apreciaccedilatildeo de arte em meados do seacuteculo XIX

Deste modo ainda que de sua parte pudesse haver certo constrangi-mento na adoccedilatildeo de alguma funcionalidade em seus textos ndash pelo menos eacute o que alguns dos relatos nos fazem crer ndash ainda que tal constrangimento pudesse ser percebido Poe natildeo deixaria de reconhecer a importacircncia de tais adaptaccedilotildees no plano dos procedimentos da obra articulando o cam-po de produccedilatildeo e o de recepccedilatildeo dos objetos literaacuterios Eacute o que podemos ler em um excerto de sua coluna ldquoMarginaliardquo (ldquoNotas agrave margemrdquo)

O progresso realizado em alguns anos pelas lsquorevistasrsquo e lsquomagazinesrsquo natildeo deve ser interpretado como quereriam certos criacuteticos Natildeo eacute uma decadecircncia do gosto ou das letras americanas Eacute antes um sinal dos tempos eacute o primeiro indiacutecio de uma era em que se caminharaacute para o que eacute breve condensado bem dirigido e se iraacute abandonar a bagagem volumosa eacute o advento do jornalismo e a decadecircncia da dissertaccedilatildeo Comeccedila-se a preferir a artilharia ligeira agraves gran-des peccedilas Natildeo afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que haacute um seacuteculo mas indubitavelmente eles o tecircm mais aacutegil mais raacutepido mais reto mais metoacutedico menos pesado De um lado o fundo dos pensamentos se enriqueceu Haacute mais fatos conhecidos e registrados mais coisa para refletir Somos inclinados a enfeixar o maacuteximo possiacutevel de ideias no miacutenimo de volume a espelhaacute-las o mais rapidamente que pudermos Daiacute nosso jornalismo atual daiacute tambeacutem nossa profusatildeo de magazines37

36 ldquoVerdadeiro desafio a todas as formas de economismo a ordem literaacuteria (etc) que progressivamente se instituiu ao fim de um longo e lento processo de autonomizaccedilatildeo apresenta-se como um mundo econocircmico invertido aqueles que nele entram tecircm interesse no desinteresse como a profecia e especialmente a profecia de infortuacutenio que segundo Weber prova sua autenticidade pelo fato de que natildeo proporciona ne-nhuma remuneraccedilatildeo a ruptura hereacutetica com as tradiccedilotildees artiacutesticas em vigor encon-tra seu criteacuterio de autenticidade no desinteresserdquo (Bourdieu 2002 p 245)

37 Edgar Allan Poe (1999c p 165)

Assim natildeo obstante sua inserccedilatildeo nesses magazines como jorna-lista poder ter sido ideologicamente contraacuteria agraves suas pretensotildees en-quanto escritor Edgar Allan Poe pocircde recolher desse campo natildeo soacute a renda necessaacuteria ao seu sustento mas a praacutetica de uma literatura veloz fundamental ao campo jornaliacutestico na produccedilatildeo de papers e contos Principalmente pocircde recolher dele um vasto material para suas criacuteticas sobre os maus escritores seus contemporacircneos De fato apesar de ter construiacutedo sua literatura a partir das condiccedilotildees disponiacuteveis dentro desse mesmo campo de atuaccedilatildeo Poe como assinala Braulio Tavares (2010) tinha manifesta intenccedilatildeo de superar a maneira como outros jornalistas procediam e de produzir um gecircnero literaacuterio que ainda que respondes-se agrave necessidade do puacuteblico e dos editores ndash para o funcionamento dos perioacutedicos ndash pudesse ter qualidade esteacutetica

Em muitos de seus contos a exemplo de ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo ldquoUma trapalhadardquo ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o dia-bordquo e A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o escritor trabalhou ques-totildees pertinentes agrave produccedilatildeo da literatura sobretudo a partir de uma refle-xatildeo de sua proacutepria obra e de seus procedimentos38 O uacuteltimo conto centro deste estudo A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade que data de 1845 eacute uma saacutetiraparoacutedia ao Livro das mil e uma noites construiacuteda a partir da ideia de que o mundo literaacuterio teria permanecido em ignoracircncia a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroiacutena Sherazade ndash contrariamente agrave versatildeo orientalista conhecida Nesta conforme resume Mamede Mustafa Jarouche tradutor drsquoAs mil e uma noites para o portuguecircs

Um rei chamado Sahriyar [] membro de poderosa dinastia descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo Em crise esse rei sai pelo mundo iniciando uma busca que eacute tambeacutem de fundo espiritual ele quer saber se existe neste mundo algueacutem mais infeliz do que ele A resposta eacute positiva com um agravante ningueacutem pode conter as mulheres ndash eacute o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido Entatildeo ele retorna para o seu reino deci-dido a tomar uma medida draacutestica e violenta casar-se a cada noite com uma mulher diferente mandando mataacute-la na manhatilde seguinte

38 De forma bem particular Poe trabalha o chiste ou ldquoironia autorreflexivardquo (ver a respeito Sena [2010]) aleacutem de se lanccedilar agrave criacutetica de seus adversaacuterios ficcionalmente dando-lhes emprego nas ediccedilotildees do Dial Down-Easter North American Quarterly Humdrum Seus colegas de profissatildeo vatildeo desde o editor-chefe da Blackwood aos jorna-listas que colaboram em revistas cobrando ldquoum centavo por linhardquo nos contos ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo e ldquoO anjo do bizarrordquo respectivamente

Depois de muitas mortes e pacircnico entre as famiacutelias daacute-se a intervenccedilatildeo da heroiacutena ela eacute filha do vizir mais importante do reino possui grande cultura e inteligecircncia chama-se Sahrazad [] e elaborou uma estrateacutegia infaliacutevel por meio das histoacuterias que vai sucessivamente noite apoacutes noite desfiando diante de um rei a princiacutepio assustado mas depois cada vez mais seduzido e encan-tado (Jarouche 2006 p 9)

Contrariamente em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroiacutena empe-nhando-se assim em trazer agrave tona a lsquoverdade dos fatosrsquo a partir das infor-maccedilotildees encontradas no guia fictiacutecio ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo [ldquoTellmenow Isitsoumlornotrdquo] inserido na heranccedila enciclopedista do Ocidente (enxergan-do no Oriente um ldquooutrordquo) e agrave moda da produccedilatildeo jornaliacutestica do seacuteculo XIX No conto Poe torna risiacuteveis as formas de produccedilatildeo e de recepccedilatildeo dos elementos maravilhosos e realistas a partir de um efeito de estranha-mento diegeacutetico que termina por colocar agrave prova os mesmos conceitos o realismo o maravilhoso literaacuterio a miacutemesis e sobretudo as formas de produccedilatildeo acesso e recepccedilatildeo do conhecimento em sua eacutepoca

A visatildeo criacutetica da praacutetica de contemporacircneos nos perioacutedicos lhe for-neceu certo humor em seus escritos esse sendo aqui compreendido mais como disposiccedilatildeo ou estado de espiacuterito do que realmente um caraacuteter risiacute-vel mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes Dizemos isso porque em grande parte dos contos em que Poe se serve da saacutetira ou paroacutedia em relaccedilatildeo aos seus colegas de profissatildeo encontramos mais disposiccedilatildeo a um provaacutevel riso amargo ndash possivelmente por atentar para a perfeita existecircncia desses literatos que natildeo tinham escruacutepulos em descum-prir as regras do ldquomundo econocircmico invertidordquo acima mencionado ndash do que a inegaacutevel conjuntura formal que permitiria o riso deliberado ainda que esse seja sempre factual ou neo-factualmente possiacutevel39 Sem conde-nar completamente a existecircncia desse tipo de literatura contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superaccedilatildeo natildeo soacute das obras de outros como tambeacutem das suas Edgar Allan Poe produziu textos voltados agraves possibilidades de tipificaccedilatildeo que esse domiacutenio discursivo permitia O conto curto como se sabe foi o resultado mais profiacutecuo que encontrou

39 Sobre isso admitimos sem duacutevida que o riso possui nuances sobre as quais a esteacuteti-ca ainda natildeo encontrou uma definiccedilatildeo universal sem refutaccedilatildeo se eacute que seja possiacutevel tal coisa ainda que devamos considerar os frutiacuteferos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Henri Bergson dentre outros teoacutericos

nessa inquiriccedilatildeo em muito uma tentativa de suscitar uma impressatildeo cen-tralizada no leitor ou aquilo que nomeou ldquounidade de efeitordquo40

Mas voltemos ao risiacutevel Pois ainda que Poe tenha atingido mais no-toriedade nos seacuteculos posteriores agrave sua morte pela produccedilatildeo de histoacuterias de crime misteacuterio e horror ele plasmou uma singular obra de contos sa-tiacutericos humoriacutesticos e grotescos Essa tessitura textual se configura para noacutes ldquometacomunicativardquo tendo por assunto do discurso ldquoa relaccedilatildeo entre os falantesrdquo ou os participantes de determinado evento seja ele literaacuterio ou natildeo conforme a elucidaccedilatildeo de Gregory Bateson (2002 p 87) ndash neste caso pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risiacuteveis como campo de criacutetica (e de defesa de criacuteticas) Igual estrateacutegia ocorre em ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo no qual o Poe-narrador defende-se da acusaccedilatildeo de que suas histoacuterias natildeo tenham uma ldquomoralrdquo ela estaacute laacute porque os criacute-ticos literaacuterios daratildeo um jeito de encontraacute-la ldquoQuando chegar a ocasiatildeo apropriada tudo o que o cavalheiro pretendia seraacute trazido agrave luz no Dial ou Down-Easter juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde ndash e assim tudo vai dar certo no fimrdquo (Poe 2002 p 71)

Esse caraacuteter metacomunicativo se tornou para noacutes uma importan-te interrogaccedilatildeo Pois esta noccedilatildeo natildeo abrange questotildees unicamente for-mais mas principalmente as regras do jogo linguiacutestico-literaacuterio que satildeo indispensaacuteveis ao funcionamento do texto ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que elencados a um niacutevel formal em muito se assemelham aos de seus contos ldquoseacuteriosrdquo a exemplo de sua aproximaccedilatildeo com a literatura fantaacutestica maravilho-sa ou de crimes aleacutem de seu uso particular do grotesco Sua narrativa constante em primeira pessoa uma discussatildeo em torno de alguma ideia filosoacutefica descriccedilotildees raras de espaccedilo salvo em casos necessaacuterios agrave die-gese uma possiacutevel ldquounidade de efeitordquo guiando os procedimentos estilo retoacuterico natildeo raras vezes solene Seu jogo poreacutem eacute elaborado a partir de 40 A unidade de efeito eacute um dos conceitos elaborados por Poe em ensaios como A fi-

losofia da composiccedilatildeo para traduzir a busca de um autor por abarcar dentro de uma obra uma impressatildeo escolhida desde antes de sua concepccedilatildeo com vistas a provocar no leitor um efeito caracteriacutestico Todos os procedimentos escolhidos girariam em torno desse uacutenico efeito tendo-se o desenlace em vista mas apoiando-se principal-mente sobre o aacutepice da obra A unidade de efeito eacute assim um preacute-monitoramento formal da expressividade da obra

inter-relaccedilotildees entre tais procedimentos diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de ldquoum centavo por linhardquo41 estando contudo ele mesmo inserido em um contexto em que como observa Joseacute Ribeiro (1996 p 11) ldquoa loacutegica da relaccedilatildeo empresa ver-sus consumidor na qual a imprensa perioacutedica estaacute inserida faz com que empreendimentos criativos em busca de novas fatias de mercado (natildeo garantidas de antematildeo) sejam adotados cautelosamenterdquo Esse jornalis-mo como Poe o vecirc desvirtua barateia ou mesmo vulgariza o conheci-mento e eacute tambeacutem fonte profiacutecua de erros ainda que em casos positivos possa ser de grande valia agrave difusatildeo do conhecimento Poe ndash eacute importante insistir ndash natildeo era avesso agrave ampla produccedilatildeo de publicaccedilotildees jornaliacutesticas (homens que satildeo retalhados e se levantam ilesos na outra manhatilde) mas admitia que a sua proliferaccedilatildeo tornava confuso o acesso a fontes fiaacuteveis

Em um primeiro momento a leitura drsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas dentro daquela que o autor constroacutei em forma de saacutetira drsquoAs mil e uma noites e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irocircnico Afinal propor uma narrativa maravilhosa a partir de um vieacutes risiacutevel natildeo seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista Poreacutem afastamo-nos dessa compreensatildeo por trecircs razotildees A primeira eacute o uso constante do insoacutelito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe mesmo quando nosso escritor recorria a um esclarecimento final apelando agrave ob-jetividade dos fatos42 A segunda justificativa encontra-se na epiacutegrafe de A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade ldquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeo velho ditadordquo (Poe 2010 p 156) [ldquotruth is stranger than fictionrdquo] Este ditado foi uma vez citado por Poe na coluna ldquoMarginaliardquo

lsquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeorsquo eacute de tal modo um refratildeo para sempre na boca dos desinformados que estes o citam como poderiam ci-tar qualquer outra proposiccedilatildeo que lhes parecesse paradoxal ndash pela mera propriedade de paradoxo Pessoas que leem nunca citam o ditado porque puros truiacutesmos natildeo merecem ser mencionados Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno Ele era um homem de

41 Como escreve no conto ldquoO anjo do bizarrordquo42 Ou seja quanto optava pelo estranho ou pelo maravilhoso segundo as teorias todo-

rovianas jaacute que ao fantaacutestico quase natildeo recorre salvo em raros contos como ldquoO gato pretordquo conforme observa o mesmo criacutetico

gecircnio mas suas linhas foram um fracasso eacute claro uma vez que as realidades do planeta detalhados na mais prosaica linguagem envergonham e confun-dem bastante todas as fantasias acessoacuterias do poeta43 (Poe 1984 p 1328)

Assim o ldquoparadoxordquo apresentado pelo ldquovelho ditadordquo tantas vezes repetido por pessoas desinformadas que natildeo leem natildeo levaria em conta uma das caracteriacutesticas principais da ficccedilatildeo pois como no longo poema de seu amigo sobre o planeta Saturno a necessidade de verossimilhanccedila externa (descriccedilatildeo da realidade empiacuterica) natildeo deixaria espaccedilo para a imaginaccedilatildeo para as fantasias que se tornam desta forma apenas aces-soacuterias ao poema Por fim a terceira justificativa se situa na proacutepria orga-nizaccedilatildeo narrativa do conto pela dubiedade que Poe estabelece a partir da construccedilatildeo de alguns niacuteveis na narrativa e pela proacutepria existecircncia de trecircs narradores o autor empiacuterico o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem Envolvidos na realidade empiacuterica ou insoacutelita aqueles niacuteveis satildeo construiacutedos em relaccedilatildeo ao contexto de produccedilatildeo lite-raacuteria norte-americano no seacuteculo XIX Entendemos que seraacute proveitoso compreender as regras do jogo literaacuterio que Poe estabelece com seus leitores aleacutem de observarmos como se procede a autorreflexatildeo criativa de Poe no conto A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade

O narrador deste conto embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literaacuterio ateacute entatildeo parece no entanto em mui-tos momentos natildeo ter tido acesso ao proacuteprio livro que critica As mil e uma noites pois comete ldquoenganosrdquo e supressotildees em relaccedilatildeo agrave narra-tiva oriental Assim por exemplo menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto44 e um rato azul quando na verdade aquela intitulada ldquoO mercador e o gecircniordquo inicia a sequecircn-cia de noites da heroiacutena Mas muito aleacutem de uma brincadeira com a narrativa parodiada esta eacute possivelmente uma resposta de Poe a uma paroacutedia feita de seu conto ldquoO gato pretordquo no ano de 184445 atestando em certa medida o desprezo na recepccedilatildeo pela elaboraccedilatildeo fantaacutestica do conto Uma reaccedilatildeo como essa por outro lado assinalaria ainda uma 43 (traduccedilatildeo livre)44 Mais uma vez assinalamos a ironia que Poe apresenta ao puacuteblico leitor e aos seus com-

panheiros de trabalho remetendo-se a uma obra de seu proacuteprio cunho ldquoO gato pretordquo45 De acordo com Thomas Mabbott (em POE Edgar Allan The Collected Works of

Edgar Allan Poe mdash Vol III Tales and Sketches [Org MABBOTT Thomas Ollive] 1978)

vez sua imersatildeo apesar de si mesmo no contexto supramencionado da produccedilatildeo jornaliacutestico-literaacuteria norte-americana com as suas limitaccedilotildees agrave criaccedilatildeo de novas formas literaacuterias e novas tipologias narrativas

Reconstroacutei-se desse modo a narrativa oriental a ldquoversatildeo usual da histoacuteriardquo permeando-a de ironias tanto no que diz respeito aos possiacuteveis maravilhoso ficccedilatildeo cientiacutefica ou realismo quanto na apreensatildeo formal dos acontecimentos Por exemplo as condiccedilotildees do cumprimento do voto do sultatildeo de matar suas esposas ao amanhecer satildeo descritas em termos ligados automaticamente ao contexto geneacuterico da ldquocultura orientalrdquo par-ticularmente de sua religiatildeo posta em paridade com a honra masculina traiacuteda do personagem a primeira natildeo mais sendo levada tatildeo a seacuterio

Devemos relembrar que na versatildeo usual da histoacuteria certo monarca tendo bons motivos para sentir ciuacutemes de sua rainha natildeo somente mandou ma-taacute-la mas fez um voto ndash por sua barba e pela do profeta ndash de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domiacutenios e no dia seguinte entregaacute-la agraves matildeos do carrasco Tendo cumprido esse voto durante muitos anos ao peacute da letra e com reli-giosa pontualidade e meacutetodo que lhe conferia grande meacuterito como homem de sentimentos pios e de excelente juiacutezo foi interrompido uma tarde (sem duacutevida quando estava rezando) por uma visita de seu gratildeo-vizir a cuja filha parece havia ocorrido uma ideia (Poe 2010 p 156-7 grifos nossos)

Buscando restabelecer a ldquoverdade dos fatosrdquo pela existecircncia do ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo ndash o qual a partir apenas de uma consulta de uma leitura e de uma recepccedilatildeo ingecircnuas pode desconstruir todo um co-nhecimento literaacuterio e cultural secular baseado natildeo se sabe exatamente em quecirc ndash o narrador comeccedila

Tendo tido ocasiatildeo no curso de algumas investigaccedilotildees sobre o Oriente de consultar o Diacutegame Eassinhounatildeo obra que eacute de algum modo pouco conhe-cida [] natildeo foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literaacuterio tinha ateacute entatildeo permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir Sherazade tal como eacute descrita nas Mil e uma noites e que o desenlace ali dado natildeo totalmente inexato ateacute certo ponto merece pelo menos censura por natildeo ter ido muito mais aleacutemrdquo46 (p 156 grifos do autor)

Eacute importante observar o grifo sobre este uacuteltimo termo ndash ldquodesen-lacerdquo ndash centro da proposiccedilatildeo de uma nova organizaccedilatildeo para o conto e

46 (Poe 2004a p 369)

indicativo da plena eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos ao enredo O narrador natildeo o indica poreacutem como incorreto mas apenas como precipitado Ora uma das razotildees para que tal conclusatildeo natildeo funcione eacute para o narrador o fato de ela ser idealizada em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica ldquoeacute sem duacute-vida excessivamente mais proacutepria e agradaacutevel mas infelizmente como a maior parte das coisas agradaacuteveis eacute mais agradaacutevel que verdadeirardquo (p 158) Quando conclui sua apresentaccedilatildeo do conto e passa a palavra para Sherazade a narrativa desta seraacute contudo permeada por uma boa pitada de realismo em sentido negativo introduzido nas reaccedilotildees do Sultatildeo Suas contiacutenuas interrupccedilotildees seu ronco sua descrenccedila em relaccedilatildeo ao que ouve sua tosse para advertir sua esposa de que estaacute indo longe demais em ter-mos imaginativos vecircm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa seja em sentido temaacutetico seja textual Isso torna o encaminhamento do ldquoplanordquo de Sherazade menos simples do que pareceria na narrativa oriental ndash pois sob qual pretexto conseguiria a heroiacutena a atenccedilatildeo de seu marido e a suspensatildeo de sua pena capital Apenas pela adequaccedilatildeo do Sultatildeo ao jogo literaacuterio sua compreensatildeo de que a narrativa de Sherazade inscreve-se na ficccedilatildeo servindo portanto para o deleite esteacutetico e artiacutestico Tal natildeo ocorre no conto poeiano pois a ilusatildeo da narrativa eacute chamada constantemente agrave consciecircncia da realidade empiacuterica Se o sultatildeo em As mil e uma noites eacute um ldquobom leitorrdquo ou me-lhor um bom ouvinte pois compreende a ficcionalidade do texto literaacute-rio sem buscar apenas sua comprovaccedilatildeo nrsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poreacutem ele deseja apenas ver sua realidade empiacuterica sendo refletida ali ldquondash Conversa fiada ndash exclamou o reirdquo (p 166)

Sherazade narra assim uma sequecircncia de fatos impressionantes ma-ravilhosos a seu marido e a sua irmatilde que comporiam a oitava aventura de ldquoSimbad o Marujordquo ocorrida em sua velhice quando satildeo indicadas na versatildeo oriental apenas sete O fundo desse enredo seraacute contudo um diaacute-logo com a modernidade por um vieacutes cientificista cujos acontecimentos satildeo apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora mas so-bretudo virtualmente por seus ouvintes Os acontecimentos ldquomodernosrdquo seratildeo assim narrados agrave moda das noites da Araacutebia (Arabian nights) promo-vendo uma visatildeo dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caraacuteter empiacuterico por noacutes leitores de Poe A narrativa portanto natildeo visa um imediato reconhecimento mas um estranhamento inicial e a progressiva ldquovisualizaccedilatildeordquo e compreensatildeo de objetos bem conhecidos do seacuteculo XIX e

de curiosidades da natureza Eacute exemplo marcante a descriccedilatildeo de um navio a vapor pelo olhar da heroiacutena e pelo reconhecimento quase automaacutetico de Simbad de se tratar de um ldquomonstrordquo47 De fato o estilo da descriccedilatildeo parece ser mais adequado a um monstro (mariacutetimo) e se utiliza dos termos que integram a descriccedilatildeo maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compre-ensatildeo do real (os espinhos a barriga seu incomensuraacutevel tamanho)

Quando aquela coisa chegou mais perto noacutes a distinguimos perfeitamente Seu cumprimento era igual ao de trecircs das mais altas aacutervores que existem e era tatildeo largo como o grande salatildeo de audiecircncias de vosso palaacutecio oh o mais sublime e munificente dos califas Seu corpo diferente do dos demais peixes comuns era tatildeo soacutelido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da aacutegua com exceccedilatildeo de uma estreita lis-ta cor de sangue que o circundava completamente A barriga que flutuava abaixo da superfiacutecie e a qual soacute podiacuteamos vislumbrar de vez e quando ao erguer-se e cair do monstro ao sabor das ondas estava inteiramente coberta de escamas metaacutelicas de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebulo-so As costas eram chatas e quase brancas e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo (p 160)48

Ou ainda

[] Deixando aquela ilha disse Simbad ndash pois Sherazade deve compre-ender-se natildeo deu atento agrave incivil interrupccedilatildeo de seu marido ndash deixando aquela ilha chegamos a outra onde as florestas eram de soacutelidas pedras e tatildeo duras que reduziam os machados mais bem temperados com que tentaacuteva-mos derrubaacute-las (p 163)

[Nota de rodapeacute do autor] lsquoUma das mais notaacuteveis curiosidades do Texas eacute uma floresta petrificada perto das cabeceiras do rio Pasigno Consiste de vaacuterias centenas de aacutervores em posiccedilatildeo ereta todas transformadas em pedra Algumas aacutervores agora crescendo satildeo parcialmente petrificadas Este eacute um fato espantoso para os filoacutesofos da natureza e deve levaacute-los a modificar a teoria existente da petrificaccedilatildeorsquo (p 169) 49

47 O ldquomonstrordquo eacute para Poe em outras narrativas mais ligadas ao estranhamento fantaacutes-tico aleacutem de um indicativo de proporccedilotildees agigantadas signo do estranhamento e da incompreensatildeo diante da narrativa da natureza de um objeto ou de um ser Assim no conto ldquoA esfingerdquo temos a descriccedilatildeo de um ldquomonstrordquo assim como em ldquoO gato pretordquo temos a descoberta do narrador-personagem de ele mesmo se tratar de um ldquomonstrordquo pelos crimes que jamais havia imaginado poder cometer

48 (Poe 2004a p 372)49 (Poe 2004a p 375)

Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosoacuteficos como ldquoZadigrdquo e ldquoBaboucrdquo ndash o deslocamento da re-alidade da Europa do seacuteculo XVIII a um lugar longiacutenquo geralmente um paiacutes oriental para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relaccedilotildees sociais sobretudo francesas Poe organiza a narrati-va de modo que a ilusatildeo de seu leitor tambeacutem seja chamada agrave realidade Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima voltado ao mara-vilhoso exclamatoacuterio altamente descritivo pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos poreacutem estranhos Poe insere notas de rodapeacute atestando sua ldquoveracidaderdquo ndash indicando suas fontes ndash ldquoKennedyrdquo ldquo(Murray p 215 Phil Edit)rdquo ldquoMagazine Colonial de Simmonardquo No entan-to em alguns momentos Poe deixa-as de lado ou simplesmente a fonte verificada natildeo estaacute ldquocorretardquo como quando cita o Alcoratildeo

ndash Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensatildeo e prodigiosa solidez mas que natildeo obstante se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres50

ndash Isto agora eu acredito ndash disse o rei ndash porque jaacute li antes algo dessa espeacutecie num livro (p 166)

[Nota de rodapeacute do autor] A terra eacute sustentada por uma vaca de cor azul tendo chifres em nuacutemero de quatrocentos (Alcoratildeo) (p 172) 51

De acordo com Braulio Tavares esta imagem natildeo se encontra no Alcoratildeo Como resultado temos que se por um lado podemos dar ldquocre-dibilidaderdquo a algumas das informaccedilotildees e fontes que Poe menciona ndash o que demanda de seus leitores certa lsquocrenccedilarsquo no escritor e algum posi-cionamento sobre suas intenccedilotildees em elaborar desta forma seu texto ndash por outro o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado Simultaneamente Edgar Poe ironiza as proacute-prias possibilidades limitadas de crenccedila de alguns de seus leitores pois o Sultatildeo apenas pode crer ldquonaquilo que jaacute leu num livrordquo ndash livro este dotado de estatuto de ldquoverdade empiacutericardquo

50 E ainda uma vez Poe ri de tudo e de todos do Oriente e muito possivelmente da base de sua religiosidade (geneacuterica) e da crenccedila unilateral nas imagens que com-potildeem aquele livro sagrado

51 (Poe 2004a p 379)

A grande questatildeo que se impotildee nesse momento eacute a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empiacuterica dentro da verdade textual ou uma perfeita correlaccedilatildeo entre ambas Desconfiar da uacuteltima seria o papel do legiacutetimo leitor de ldquoliteraturardquo Conforme observa Anco Vieira (sp)

como toda forma de conhecimento a literatura mdash e as artes de maneira ge-ral mdash tambeacutem encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos imitando o referente (representando o que poderia acontecer) fingindo (construindo enunciados natildeo-seacuterios) plasmando uma realidade e uma ver-dade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o referente nada obstante se valer deste enquanto mateacuteria) O resultado desse modo de se relacionar com os signos eacute que na literatura o leitor ao ler um poema eacute levado a decifrar e a recifrar permanentemente o verso e no caso da prosa a se deparar com o sentido polissecircmico que as estoacuterias narradas encerram

Assim a relaccedilatildeo com a verdade empiacuterica se daacute enquanto mateacuteria lite-raacuteria na forma de referente ou seja enquanto possibilidade ndash na premissa aristoteacutelica ldquoo que poderia acontecerrdquo em um caraacuteter mais universal do que particular O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapeacute terem ou natildeo se sucedido natildeo seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual ou de verossimilhanccedila interna mas sim o natildeo existente ldquocompromissordquo de verdade entre o autor seus enunciados e o processo de recepccedilatildeo Eacute indi-ferente se as informaccedilotildees satildeo fiaacuteveis ou natildeo na realidade pois ldquonatildeo vem ao caso que estejamos informados de sua verdaderdquo (Vieira sp) Assim o fato de as referecircncias ao Alcoratildeo de as citaccedilotildees retiradas dos Magazines Asiaacuteticos e manuais de fisiologia serem verdadeiras ou falsas em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica natildeo interferiria no estatuto literaacuterio do texto

ndash Pare ndash disse o rei ndash Natildeo posso suportar isso e natildeo o suporto Vocecirc jaacute me provocou terriacutevel dor de cabeccedila com suas mentiras O dia tambeacutem pelo que vejo estaacute comeccedilando a raiar Haacute quanto tempo temos estado casados Minha consciecircncia estaacute ficando perturbada de novo E depois essa uacuteltima histoacuteria do dromedaacuterio Pensa que sou maluco Em resumo vocecirc pode muito bem levantar-se e ser estrangulada (p 168)52

A condenaccedilatildeo da narradora-personagem Sherazade pela incom-preensatildeo de seu marido no tocante ao caraacuteter ficcional de sua inven-ccedilatildeo ndash o qual se confunde para ele com a ldquomentirardquo ou seja a maacute-feacute na narrativa ndash termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da

52 (Poe 2004a p 382)

produccedilatildeo literaacuteria e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a ima-ginaccedilatildeo a fantasia o maravilhoso e possivelmente uma mais especiacutefica ficccedilatildeo cientiacutefica da qual Edgar Allan Poe eacute considerado um dos ldquopaisrdquo baseada na mescla do imaginaacuterio romacircntico de seu gecircnio e trabalho poeacutetico e da difusatildeo de novas tecnologias em meados do seacuteculo XIX O consolo amargo que emana do texto (intra e extra-textualmente) suge-rindo-se o desprezo de um grupo de leitores e criacuteticos que visa apenas a verificaccedilatildeo da verdade empiacuterica dentro da verdade textual estaria situ-ado no deleite esteacutetico perdido no prazer verdadeiramente literaacuterio que resta assim para uns poucos privilegiados

[Sherazade] recebeu contudo grande consolaccedilatildeo (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da histoacuteria permanecia ainda inacabada e que a petulacircncia do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa privando-o de muitas aventuras incon-cebiacuteveis (p 169)53

REFEREcircNCIAS

BATESON Gregory ldquoUma teoria sobre brincadeira e fantasiardquo In RIBEIRO B T GARCEZ M P (org) Sociolinguiacutestica Interacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 (p 85-105)

BOUDIEU Pierre As regras da arte Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

JAROUCHE Mamede Mustafa ldquoPrefaacuteciordquo In Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordfEd Satildeo Paulo Globo 2006

Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordf Ed Satildeo Paulo Globo 2006

POE Edgar Allan ldquoMarginaliardquo In Essays and Reviews New York Library of America 1984 (p 1223 e seg)

______ ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999a (p 101-114)

______ ldquoO princiacutepio poeacuteticordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999b (p 75-99)

53 (Poe 2004a p 382)

______ ldquoMarginaliardquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999c (p 165-186)

______ ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo In Assassinatos na rua Morgue e outras histoacuterias de crime e misteacuterio Trad William Lagos Porto Alegre LampPM 2002 (p 69-86)

______ ldquoThe Thousand-and-Second Tale of Scheherazaderdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004a (p 369-382)

______ ldquoNever bet the devil your headrdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004b (p 469-475)

______ ldquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazaderdquo In POE Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (Org) Contos obscuros de Edgar Allan Poe Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 156-173)

RIBEIRO Joseacute Imprensa e ficccedilatildeo no seacuteculo XIX Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym Satildeo Paulo Editora UNESP 1996

SENA Andreacute de Visotildees do ultrarromantismo melancolia literaacuteria e modo ultrarromacircntico Recife Editora UFPE 2010

SUASSUNA Ariano Introduccedilatildeo agrave Esteacutetica Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2011

TAVARES Braulio ldquoPosfaacutecio ndash A sombra luminosa (A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade)rdquo In POE Edgar Allan Contos Obscuros de Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (org) Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 181-207)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2010

______ As estruturas narrativas Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 2011

VIEIRA Anco Maacutercio Tenoacuterio O que eacute e o que natildeo eacute literatura [texto ineacutedito no prelo]

Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff

Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Atualmente temos visto surgir vaacuterias releituras de contos de fadas tradicionais em diversos tipos de suportes artiacutesticos ao mesmo tempo em que observamos uma grande mudanccedila no caraacuteter de personagens de cunho fantaacutestico que ateacute o romantismo foram tidos como horren-dos e assombrados e no seacuteculo XXI tecircm se confundido e se asseme-lhado com alguns personagens de contos de fadas Eacute o caso de alguns monstros a exemplo dos vampiros que viraram sensaccedilatildeo no univer-so mais infantil e juvenil como personagens pop A aproximaccedilatildeo dos personagens desses dois gecircneros nos motivou agrave busca de suas origens e uma anaacutelise sobre a possiacutevel interseccedilatildeo entre o conto fantaacutestico e o conto de fada

A partir de um estudo sobre a teoria dos gecircneros passando pelas definiccedilotildees e caracterizaccedilotildees tanto do fantaacutestico como do conto de fadas percebemos que os dois tecircm uma mesma origem secular A origem dos contos de fadas eacute bem antiga pois satildeo em sua maioria histoacuterias que fo-ram recolhidas da tradiccedilatildeo oral de diversas culturas por pesquisadores e escritores ndash tais como Perrault e os irmatildeos Grimm ndash e por isso encontra-mos em muitos casos mais de uma versatildeo de uma mesma histoacuteria (que faziam parte de culturas diferentes) Haacute registros no Egito antigo de nar-rativas que deram origem ao que noacutes conhecemos hoje como contos de fadas e foram sendo recontadas por pessoas que as disseminaram pelo mundo atraveacutes dos seacuteculos como confirma Coelho (2012 p 36) ldquoessas diversas fontes levadas atraveacutes dos tempos para diferentes regiotildees por peregrinos viajantes invasores foram-se misturando umas agraves outras e criando as diferentes formas narrativasrdquo Esse eacute um forte exemplo da for-ccedila arquetiacutepica do mito permanecendo e sobrevivendo a guerras pragas viagens e mesmo mudanccedilas de idioma e de cultura

Ao consolidar-se como gecircnero literaacuterio em fins do seacuteculo XVIII e iniacutecios do XIX o conto de fadas passa a ser dividido em dois subgecircneros Os que tecircm sua origem nas histoacuterias populares chamados de contos de fa-das tradicionais e os que nascem da imaginaccedilatildeo de um autor conhecidos como contos de fadas artiacutesticos Para a teoacuterica Karin Volobuef (1999) o conto de fadas popular consiste em narrativas que representam a natureza essencial do ser humano e do mundo Satildeo exemplos disso agraves referecircncias aos vaacuterios periacuteodos da vida desde o nascimento passando por dificul-dades casamentos recompensas e morte tambeacutem agraves diferentes classes sociais sempre mostrando pastores miseraacuteveis ou a realeza aleacutem de uma diversidade humana e de representaccedilotildees arquetiacutepicas da natureza Ainda segundo essa autora ldquoo conto de fadas eacute moldado pela raacutepida sequecircncia de acontecimentos e quase nenhuma descriccedilatildeordquo (p 54)

Observamos ainda nessas histoacuterias populares certa uniformidade quanto agrave construccedilatildeo de personagens De acordo com Luumlthi (apud Volobuef p 54) haacute sempre a presenccedila de um heroacutei ou heroiacutena que vai enfrentar difi-culdades um oponente que vecircm desestabilizar o equiliacutebrio inicial e impor obstaacuteculos um adjunto podendo aparecer como um ser sobrenatural e que vem ajudar o heroacutei aleacutem de algumas figuras opostas ao heroacutei e uma pessoa resgatada pelo protagonista Eacute importante notar que ldquoos personagens sem-pre satildeo planos e imutaacuteveis dividem-se em bons e maus e recebem nomes geneacutericos que natildeo os individualizam (Maria priacutencipe lenhador avoacute lobo)rdquo (Volobuef p 54) e eacute comum que o que os identifica seja uma caracteriacutestica exterior como eacute o caso de Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve

Jaacute os contos artiacutesticos tecircm como caracteriacutestica principal a de tra-duzir ldquoa individualidade poeacutetica de um dado escritorrdquo (Volobuef 1999 p 57) apresentando uma forma mais definida uma estrutura estetica-mente complexa Esse tipo de conto implica em uma forma fixa que foi estruturada pelo autor do texto enquanto que os contos populares podem ser contados de memoacuteria e podem variar de acordo com a pes-soa que o narra jaacute que haacute a possibilidade de remodelaccedilatildeo da histoacuteria Poreacutem eacute importante remarcar que apesar de o conto artiacutestico apresen-tar uma estrutura definida eacute comum que ele absorva ldquocom frequecircncia elementos temaacuteticos da narrativa popularrdquo (Volobuef p 57)

O conto de fadas artiacutestico entatildeo se mostra mais proacuteximo dos con-tos fantaacutesticos que se popularizam na eacutepoca romacircntica assim como os contos de fadas Segundo o teoacuterico Tzvetan Todorov o fenocircmeno

fantaacutestico surge da ambiguidade e da incerteza Para ele haacute trecircs condi-ccedilotildees para o fantaacutestico a primeira seria o leitor considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e buscar uma interpre-taccedilatildeo natural ou sobrenatural para os acontecimentos da narrativa A segunda seria a hesitaccedilatildeo da proacutepria personagem (esta eacute uma condiccedilatildeo que natildeo precisa ser satisfeita para que haja o fantaacutestico) E por fim o leitor adotar uma perspectiva do texto especiacutefica que natildeo seja nem ldquopo-eacuteticardquo nem ldquoalegoacutericardquo como muitas vezes satildeo construiacutedos os contos de fadas (lembrando tambeacutem da existecircncia de contos de fadas populares a exemplo de As moedas furtadas coletados pelos irmatildeos Grimm que trabalham sugestotildees e elipses associadas ao fantaacutestico torodoviano)

Diferentemente de Todorov Ceserani (2006) natildeo trata o fantaacutestico como um gecircnero mas sim um modo literaacuterio em que elementos retoacutericos determinadas temaacuteticas atraveacutes de combinaccedilotildees e empregos especiacuteficos associados ainda a estrateacutegias narrativas e artifiacutecios formais o caracteri-zariam enquanto tal Entre eles haacute a posiccedilatildeo de relevo dos procedimentos narrativos no corpo da narraccedilatildeo utilizado tanto pelos contos fantaacutesticos tradicionais como pelos contos de fadas artiacutesticos Isso se daacute levando-se em consideraccedilatildeo que o fantaacutestico surge com uma base na experiecircncia nar-rativa do seacuteculo XVIII a qual explorou inuacutemeras potencialidades antes inexistentes ou pouco definidas Observamos no modo fantaacutestico um jogo bem estruturado de cenas e enredos e um ldquo[] gosto por contar casos de lsquoaventurarsquordquo (p 68) Mas tambeacutem eacute presente ldquoo destaque a manipulaccedilatildeo consciente e paroacutedica dos procedimentos narrativos o gosto por colocar relevo e explicitar todos os mecanismos da ficccedilatildeordquo (p 69)

Para corroborar com essa escolha de tratar de ambos os contos de fa-das e fantaacutestico nos servimos das ideias de Marcus Mazzari discutidas na apresentaccedilatildeo agrave nova ediccedilatildeo do livro Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (2012) de Jacob e Wilhelm Grimm Mazzari concorda com o fato de que os eventos maravilhosos nos contos de fadas populares satildeo vistos de forma inteiramente natural (convergindo para as ideias de Todorov sobre o Maravilhoso) e informa que o trabalho dos Grimm natildeo se restringiu a anotar as histoacuterias que escutavam mas tambeacutem realizaram um trabalho extenso de pesquisa filoloacutegica e mesmo de reescrita Jacob Grimm por exemplo tenta definir que os seus Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (no original Kinder und Hausmaumlrchen) seriam expressatildeo de uma ldquopoesia da Naturezardquo criaccedilatildeo anocircnima e espontacircnea Ele proacuteprio tenta

dividir sua produccedilatildeo em contos populares (Volksmaumlrchen) que foram os coletados das narrativas orais e os contos artiacutesticos (Kunstmaumlrchen) his-toacuterias elaboradas a partir de sua proacutepria criatividade assim como teremos posteriormente as produccedilotildees de Hans Christian Andersen e as de Oscar Wilde divisatildeo esta que tambeacutem foi usada por Volobuef

Eacute interessante observar que apesar de os contos de fadas particular-mente os contos dos Grimm terem atualmente um grande apelo infantil eles natildeo foram escritos particularmente para crianccedilas mostrando vaacuterias vezes um caraacuteter assustador grotesco bem como uma seacuterie de referecircn-cias ligada agrave sexualidade Mas desde o lanccedilamento das primeiras ediccedilotildees (1812 e 1815) os contos dos Grimm chamaram a atenccedilatildeo das crianccedilas e isso gerou uma autocensura assim nas ediccedilotildees posteriores Wilhelm Grimm que ficou responsaacutevel pelas reediccedilotildees buscou retirar das histoacute-rias vaacuterios elementos que julgou inadequados para o puacuteblico infantil

Tratemos agora de dois exemplos literaacuterios concretos para discutir de maneira pontual as relaccedilotildees entre os universos da oralidade folcloacute-rica e do fantaacutestico O vampiro (1816) de John Polidori (1795-1821) e O califa cegonha (1825) de Wilhelm Hauff (1802-1827) Neste segundo em especial veremos um exemplo de conto de fadas artiacutestico que se aproxima de um maravilhoso caro ao Livro das mil e uma noites num franco processo de intertextualidade

O conto de Polidori tem como substrato as lendas folcloacutericas sobre monstros oriundos de regiotildees recocircnditas da Europa contudo se origina de sua proacutepria criatividade e eacute inspirado num texto inacabado de Lord Byron a quem servia como meacutedico particular e parceiro de aventuras

Percebemos em vaacuterios trechos dessa histoacuteria uma das primeiras sobre vampiros em liacutengua inglesa exemplos de crendices do povo neste caso de uma Greacutecia oitocentista de cultura potencialmente orientali-zante (estando sob o domiacutenio dos turcos) locus horrendus distinto dos espaccedilos ligados agrave razatildeo ocidental Eacute nesta ambiecircncia que os habitantes da Greacutecia narram ao protagonista do conto em viagem os estranhos acontecimentos que se passavam no lugar

[] Ianthe ficava ao lado observando os efeitos maacutegicos do laacutepis desenhando cenaacuterios de sua terra ela entatildeo descrevia para ele danccedilas de roda ao ceacuteu aber-to com todos os tons vibrantes da memoacuteria jovem [] transmitia-lhe as his-toacuterias sobrenaturais conhecidas por sua ama A seacuterie de crenccedilas aparentes na-quilo que narrava despertou o interesse de Aubrey [] (Polidori 2010 p 59)

Podemos observar claramente nesse trecho a forte influecircncia que o autor sofre das narrativas orais natildeo soacute em relaccedilatildeo ao tema principal do conto (o vampirismo) mas tambeacutem no proacuteprio enredo da histoacuteria que trata de crenccedilas e personifica os medos que as pessoas tinham do des-conhecido num soacute personagem o famigerado vampiro lord Ruthven

Este conto todavia apesar dos iacutendices que o ligam ao maravilho-so das culturas orais e folcloacutericas eacute marcado por um sobrenatural bem mais proacuteximo do fantaacutestico Lord Ruthven eacute descrito como um homem diferente a um tempo nobre e excecircntrico de perfil e feiccedilotildees belas mas com cores morticcedilas Eacute por isso que tanto pode atrair as mulheres como tambeacutem causar profundo horror a outras especialmente pelo olhar Desde o iniacutecio inquieta e desperta a desconfianccedila do leitor servindo de elo aparente agraves fantasmagorias que passam a ocorrer

A presenccedila de seres e acontecimentos sobrenaturais eacute comum aos contos de fadas e fantaacutesticos poreacutem o caraacuteter assustador que obra de Polidori confere a esses elementos estaacute ligado ao gecircnero fantaacutestico Essa natureza apavorante que o conto imprime ao personagem sobrenatural por exemplo eacute reforccedilada pelas duacutevidas tanto do leitor como do protago-nista da histoacuteria Aubrey que continuamente se pergunta a respeito das caracteriacutesticas estranhas de Ruthven

Durante o conto o protagonista transita de um mundo em que natildeo se acredita em vampiros e acontecimentos sobrenaturais para outro em que estas coisas satildeo reais Por outro lado com tal aparente descoberta ele passa a soacute pensar nisso uma monomania que o leva agrave loucura ndash mais um elemento que aparece constantemente no fantaacutestico como possiacute-vel explicaccedilatildeo para a sobrenaturalidade Eacute por isso que O vampiro se distancia do maravilhoso ligado aos contos de fadas e se aproxima da definiccedilatildeo todoroviana de fantaacutestico-estranho na qual a explicaccedilatildeo para os elementos sobrenaturais eacute a loucura ou o sonho

Como sabemos os aspectos duacutebios e ambiacuteguos satildeo a principal caracte-riacutestica do gecircnero fantaacutestico segundo Todorov o que nos faz considerar essa obra de Polidori como conto fantaacutestico tambeacutem Assim percebemos nela uma convergecircncia entre os gecircneros do conto artiacutestico e do conto fantaacutestico

Em relaccedilatildeo ao segundo conto para tratarmos de uma obra de cunho maravilhoso com aproximaccedilatildeo do Livro das mil e uma noites nos basearemos nas obras do alematildeo Wilhelm Hauff Ao analisarmos o seu livro Maumlrchen numa traduccedilatildeo integral para o francecircs pudemos

notar vaacuterias caracteriacutesticas que corroboram tal estudo O livro eacute dividi-do em partes mais extensas que satildeo fragmentadas em contos menores agrave maneira oriental Nos deteremos na narrativa de Lrsquohistoire du calife cigogne54 que faz parte da coletacircnea La caravane A obra de Hauff foi produzida no contexto das pesquisas e publicaccedilotildees dos irmatildeos Grimm acompanhadas pela traduccedilatildeo e difusatildeo do Livro das mil e uma noites assim o jovem alematildeo sofreu influecircncia desse imaginaacuterio maacutegico ligado ao Oriente ao publicar em 1826 sua referida obra

Em La caravane conta-se a histoacuteria de um grupo de viajantes que atravessa o deserto voltando de Meca para Bagdaacute Ao receber a compa-nhia de um viajante estrangeiro os homens comeccedilam a se contar histoacute-rias para passar mais raacutepido o tempo E assim durante o dia eles para-vam de cavalgar e narravam pequenas histoacuterias esperando o pocircr do sol periacuteodo menos quente para prosseguirem viagem Como em As mil e uma noites eles utilizam a estrateacutegia das narrativas para permanecerem vivos Eacute numa dessas histoacuterias que se narra o acontecido com o califa cegonha que iremos analisar a seguir

Primeiramente podemos observar que o conto trata de pessoas marcadas pelas suas classes sociais um califa um vizir e uma princesa por exemplo Como vimos eacute recorrente nos contos de fadas a imagem dos personagens a partir de seu papel na sociedade O califa e seu vizir compram uma pequena caixa com um poacute e uma escritura em liacutengua desconhecida Ao buscarem saber do que se tratava descobrem com a ajuda de um saacutebio que a partir daquele poacute eles poderiam transfor-mar-se em qualquer animal e uma vez metamorfoseados conseguiriam compreender-lhes todas as falas Animados com a ideia eles se trans-formam em cegonhas mas apoacutes terem desobedecido agrave norma de natildeo rirem esquecem o que devem falar para voltarem a ser humanos

Encontramos assim mais um elemento bastante recorrente nos contos de fadas e mesmo agraves narrativas das Mil e uma noites que seria a metamorfose de humanos em animais Mais uma vez essa metamor-fose aparece como uma espeacutecie de maldiccedilatildeo que prende o personagem Interessante observar que no iniacutecio do conto o califa sente-se muito fe-liz e presenteado com o dom de poder se transformar em animal como verifica-se no trecho do manuscrito que o califa comprou 54 A histoacuteria do califa cegonha (as traduccedilotildees de Hauff seratildeo a partir de agora de minha

autoria vertidas do francecircs)

Homem tu que encontras esta [caixa] agradeces agrave Allah por sua graccedila Aquele que usar um pouco do tabaco contido nesta caixa e disser ao mesmo tempo Mutabor poderaacute se transformar em qualquer animal e compreenderaacute a liacutengua dos animais (Hauff 1998 p 23)

Assim o califa e o vizir resolvem utilizar a magia em si proacuteprios bem como o tipo de animal que iratildeo se tornar no caso dessa histoacuteria a maldiccedilatildeo eacute natildeo poder voltar a ser humano Diferentemente do que observamos em vaacuterios contos de fadas tradicionais no texto de Hauff o personagem se metamorfoseia em animal por vontade proacutepria e mes-mo com certa vaidade em poder fazecirc-lo

Podemos reconhecer na histoacuteria do califa cegonha certa moral jaacute que transformados neste animal o protagonista e o seu vizir encontram uma coruja que se diz ser uma princesa encantada pelo mesmo homem que lhes vendeu o poacute maacutegico A princesa pode ajudaacute-los a encontrar o tal mago que faraacute com que eles descubram como voltar a ser humanos enquanto que ela proacutepria poderaacute voltar a ser princesa caso um deles a aceite como esposa Atraveacutes do elemento da metamorfose se estabelece um importante intertexto com as narrativas do Livro das mil e uma noi-tes a exemplo de uma presente na 50ordf noite quando a filha do rei luta contra um gecircnio e os dois mudam diversas vezes de forma

Ao ajudar a princesa que se revela uma bela jovem e ser ajudado por ela o califa e o vizir conseguem voltar a sua forma humana e re-tornam para a cidade de Bagdaacute onde o povo encontrava-se muito in-feliz por acreditar na morte de seu governante Ao chegarem agrave cidade os protagonistas descobrem que o mago que os transformou tinha lhe usurpado o trono mas acaba punido Encontramos mais uma vez o famoso ldquofelizes para semprerdquo presente nos contos de fadas

Observamos que tambeacutem na obra de Hauff a foacutermula das narrati-vas orais se repete um heroacutei vive bem e eacute apresentado a um conflito do qual consegue sair e dele ainda ganha alguma recompensa Tambeacutem em relaccedilatildeo aos personagens apresentados identificamos semelhanccedilas com os contos populares O califa se caracteriza como o heroacutei o mago que se apresenta primeiramente como um mascate eacute o oponente O vizir eacute o personagem adjunto enquanto que a princesa se apresenta como a pessoa que eacute resgatada pelo heroacutei e ao mesmo tempo recompensa

Eacute possiacutevel observar na obra de Hauff a forte presenccedila do elemento maravilhoso bem representado entre outros motivos pelo poacute maacutegico que

permite a transformaccedilatildeo em animal e os personagens natildeo apresentam ne-nhum tipo de estranhamento ao descobrirem tais possibilidades Eacute o mes-mo que acontece nas Aventuras de Alice no paiacutes das Maravilhas de Lewis Carroll quando a protagonista que vivia no mundo que conhecemos eacute transportada para um paiacutes em que o maravilhoso aparece como o natural das coisas Para a personagem lagarta com quem conversa em determina-da passagem originaacuteria do paiacutes das Maravilhas natildeo eacute estranho a pessoa mudar de tamanho constantemente isso constitui uma novidade para a garota contudo logo aceita Entatildeo natildeo haacute quebra da realidade daquele lugar jaacute que o Maravilhoso parte de uma coerecircncia e verossimilhanccedila que lhe satildeo tiacutepicas distinto por exemplo do sobrenatural inquietante do con-to de Polidori Isso eacute o que acontece tambeacutem em Lrsquohistoire du calife cigogne pois no universo em que vivem os personagens a magia eacute algo verossiacutemil natildeo proporcionando nenhuma quebra da realidade que conheciam

Percebemos entatildeo na narrativa de Hauff uma grande proximida-de com o Maravilhoso puro todoroviano que acredita nos elementos maacutegicos e transfiguradores como inatos agrave realidade Sabemos que o ele-mento maravilhoso jaacute era comum nas histoacuterias populares sobre fadas mas aqui lhe eacute acrescentado uma descriccedilatildeo mais detalhada do que a das narrativas puramente orais e folcloacutericas a exemplo do trecho da trans-formaccedilatildeo dos dois seres humanos em cegonhas

Suas pernas comeccedilaram a reduzir de volume para se tornarem finas e ver-melhas as belas babouches [pantufas orientais] amarelas do califa e do seu companheiro se transformaram em patas de cegonhas seus braccedilos tornaram-se asas seus pescoccedilos se alongaram desproporcionalmente suas barbas desa-pareceram e seus corpos se cobriram de penas delicadas (Hauff 1998 p 24)

Normalmente esse tipo de descriccedilatildeo mais detalhada natildeo eacute encon-trada nas narrativas populares o que facilita sua classificaccedilatildeo como conto artiacutestico

A narrativa de Hauff sofre como vimos grande influecircncia do orientalismo O cenaacuterio e os personagens selecionados para a histoacuteria demonstram facilmente a presenccedila do imaginaacuterio dessa cultura e drsquoAs mil e uma noites Em La caravane temos a presenccedila em vaacuterios niacuteveis das narrativas orais o que nos remete tanto agraves histoacuterias de Sherazade mas tambeacutem aos contos populares recolhidos pelos Grimm tendo ainda como base sua proacutepria imaginaccedilatildeo

REFEREcircNCIAS

AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura Volume I Coimbra Livraria Almedina 1991

CESERANI Remo O Fantaacutestico Curitiba Editora UFPR 2006

COELHO Nelly Novaes O Conto de Fadas siacutembolos mitos arqueacutetipos 4ordf ed Satildeo Paulo Paulinas 2012

HAUFF Wilhelm Contes Arles Babel 1998

Livro das mil e uma noites Trad de Mamede Mustafa Jarouche (Vol 1) Satildeo Paulo Globo 2012

MAZZARI Marcus ldquoO bicentenaacuterio de um claacutessico poesia do maravilhoso em versatildeo originalrdquo In GRIMM Jacob GRIMM Wilhelm Contos maravilhosos infantis e domeacutesticos (1812-1815) Satildeo Paulo Cosac Naify 2012

POLIDORI John ldquoO Vampirordquo in SILVA Alexander (org) Contos claacutessicos de vampiro Satildeo Paulo Hedra 2010 (p 51-77)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 4ordf ed Satildeo Paulo Perspectiva 2010

VOLOBUEF Karin Frestas e arestas a prosa de ficccedilatildeo do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas

Julia Troncoso(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Heloiacutesa Seixas eacute uma escritora carioca que iniciou sua carreira na aacuterea em que se formou jornalismo Hoje com diversos livros publica-dos eacute em sua obra de estreacuteia (uma coletacircnea de contos) Pente de Vecircnus que consta Iacuteblis conto que foi novamente compilado a outras narrativas fantaacutesticas por Braulio Tavares em Paacuteginas de sombra ndash contos fantaacutesti-cos brasileiros Em Iacuteblis conhecemos Camila uma pesquisadora da cul-tura islacircmica Seixas nos conta com detalhes o fluxo de consciecircncia de Camila durante o dia em que ela retorna a Paris onde mora

O estilo de Heloiacutesa Seixas se desenvolve de uma maneira na qual o elemento fantaacutestico eacute de forma um pouco abrupta inserido em uma narrativa que em sua quase totalidade eacute realistaimpressionista Grande parte do corpo do texto eacute dedicada a criar uma imagem do perfil psi-coloacutegico de Camila Esse recurso jaacute havia sido registrado por Todorov ldquo[] natildeo haacute de fato aqui nenhuma preparaccedilatildeo para o fantaacutestico antes de sua brusca irrupccedilatildeo (o que precede eacute mais uma anaacutelise psicoloacutegica indireta do narrador)rdquo (Todorov 2010 p 31) Seixas natildeo deixa seu tex-to fugir do fantaacutestico para ser definido como estranho ou maravilhoso Permanece entatildeo equilibrado entre esse dois gecircneros sem se compro-meter com um ou outro

O que acontece eacute a gradual e delicada inserccedilatildeo de elementos inquie-tantes e misteriosos na trama num trabalho de verticalizaccedilatildeo psicoloacute-gica A presenccedila dos elementos duacutebios surge logo nas primeiras linhas ldquoo cheiro adocicado do lodordquo (Seixas 2003 p117) Aleacutem de minaretes trecircmulos Minaretes satildeo grandes siacutembolos da cultura islacircmica usados para chamar seus fieis para rezar nas diferentes horas do dia Sua altura permite que as mesquitas sejam localizadas de muito longe agraves vezes existem vaacuterios deles que costumam ser expressivamente mais altos do

que as proacuteprias mesquitas Os alicerces dessas torres satildeo construiacutedos em cima das mais profundas e impenetraacuteveis rochas e a base delas em geral natildeo costuma ficar proacutexima da superfiacutecie estando sedimentadas em soacuteli-do chatildeo E no entanto em Iacuteblis os minaretes satildeo trecircmulos

Seixas prossegue ao longo do conto pormenorizando sobre os pequenos prazeres de Camila Todos de alguma maneira camuflados e contidos dentro da figura muito polida muito distante da protagonista

Camila senta-se com satisfaccedilatildeo alisando com a matildeo a toalha de linho bran-co que recobre a mesinha O arranjo do centro delicado como um iquebana reuacutene trecircs bototildees de rosas-chaacute e alguns ramos de uma folhagem vaporosa que lhe parece avenca Ao vecirc-la sentar-se sozinha a mesa o garccedilom se apro-xima soliacutecito e retira trecircs dos quatro pratos ali dispostos Sob os pratos de louccedila branca com desenhos de flores em baixo-relevo haacute um descanso de metal redondo que daacute agrave porcelana matizes prateados [] Alcachofras Nada mais delicioso do que um tenro coraccedilatildeo de alcachofra devorado com voluacutepia depois da tortura das folhas em que eacute preciso cravar os dentes para obter apenas uma pequena amostra sofrida e efecircmera (p120 grifo meu)

Seixas cria um tratado sobre os pequenos prazeres de Camila mui-tos deles com conotaccedilotildees sexuais Eacute sobre o sistema dos prazeres e dos desprazeres que Freud afirma que tambeacutem a repressatildeo pode vir a ser apreciada como prazer Segundo ele eacute dessa maneira que os prazeres neuroacuteticos acontecem Pela repressatildeo esses desejos satildeo mantidos sub-consciente e temporariamente afastados da possibilidade de satisfaccedilatildeo

No curso das coisas acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatiacuteveis em seus objetivos ou exigecircn-cias com os remanescentes que podem combinar-se na unidade inclusi-va do ego Os primeiros satildeo entatildeo expelidos dessa unidade pelo processo de repressatildeo mantidos em niacuteveis inferiores de desenvolvimento psiacutequico e afastados de iniacutecio da possibilidade de satisfaccedilatildeo Se subsequumlentemente alcanccedilam ecircxito ndash como tatildeo facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos ndash em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfa-ccedilatildeo direta ou substitutiva esse acontecimento que em outros casos seria uma oportunidade de prazer eacute sentida pelo ego como desprazer Em con-sequumlecircncia do velho conflito que terminou pela repressatildeo uma nova ruptura ocorreu no princiacutepio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforccedilando-se de acordo com o princiacutepio por obter novo prazer Os pormenores do processo pelo qual a repressatildeo transforma uma possibi-lidade de prazer numa fonte de desprazer ainda natildeo estatildeo claramente com-preendidos ou natildeo podem ser claramente representados natildeo haacute duacutevida

poreacutem de que todo desprazer neuroacutetico eacute dessa espeacutecie ou seja um prazer que natildeo pode ser sentido como tal (Freud p3)

Eacute por isso a despeito de para o leitor Camila aparentar sentir prazer naquela situaccedilatildeo que ela fica tatildeo hesitante Torna-se claro no re-lato das primeiras experiecircncias sexuais dela que a personagem vivencia o prazer como sendo de alguma maneira iliacutecito

Era laacute o local dos encontros secretos Fora Pamela quem comeccedilara tudo mas Camila costumava ficar ainda mais excitada do que ela Os encontros eram sempre na hora da sesta quando todos da casa dormiam e o silecircncio zumbia como moscas ao sol Sentavam-se as duas no monte de feno na parte de traacutes do galpatildeo e esperavam a respiraccedilatildeo suspensa Logo ouviam os passos Era ele E o menino surgia por detraacutes do feno com seu corpo magro e alto o olhar assustado o rosto infantil Natildeo teria mais do que treze anos dois anos mais velho do que as meninas portanto Parecia sempre intimidado diante delas mas soacute ateacute que comeccedilasse a brincadeira Assim que chegava tirava o chapeacuteu e rolava-o nas matildeos desconcertado Era sempre Pamela quem dava a primeira ordem ndash Senta aqui Ele obedecia Camila afastava-se abrindo lugar para ele entre as duas Lembrava-se bem da primeira vez que acon-tecera Quando o jovem barqueiro se ajeitara no feno ao seu lado Camila olhara para suas matildeos as unhas enegrecidas e experimentara um estranho prazer (Seixas p 118 ndash grifo meu)

Se esse trecho natildeo fosse suficiente fica bastante claro no terceiro re-lato que Camila enfrenta um embate interno para ter a coragem de satis-fazer a este anseio iacutentimo ldquoSim natildeo adianta negar eacute o que vocecirc quer Seraacute como da uacuteltima vez a uacuteltima vez foi uma loucura natildeo sei o que se passa comigo eu Vocecirc gosta Seus modos finos seu charme aristocraacutetico sua ele-gacircncia de princesa tudo isso eacute uma farsardquo (p121 ndash grifos da autora) Em suma Heloiacutesa Seixas esmiuacuteccedila o perfil psicoloacutegico de Camila dando ao leitor acesso ao sistema de prazeres da personagem para no final o ecircxtase de Camila coincidir com o cliacutemax do livro Isso auxilia no efeito fantaacutestico que permanece ao final do conto pois natildeo se pode definir se o ecircxtase eacute sexual ou da morte endossando o dito freudiano de que

Se tomarmos como verdade que natildeo conhece exceccedilatildeo o fato de tudo o que vive morrer por razotildees internas tornar-se mais uma vez inorgacircnico sere-mos entatildeo compelidos a dizer que ldquoo objetivo de toda vida eacute a morterdquo e voltando o olhar para traacutes que ldquoas coisas inanimadas existiram antes das vivasrdquo (Freud p17)

Existe uma opiniatildeo generalizada de que o medo e o terror satildeo pro-vocados pelo desconhecido ldquoA mais antiga e forte emoccedilatildeo da humani-dade eacute o medo e o mais antigo medo eacute do desconhecido Poucos psi-coacutelogos negaram esse fato e a verdade dessa premissa estabelece para sempre a genuinidade e dignidade do conto inquietante de terror como forma literaacuteriardquo (Lovecraft apud Ceserani 2006 p71)

O problema nessa afirmaccedilatildeo eacute que ela eacute um pouco ambiacutegua Porque se pode facilmente interpretar que o novo faz parte unicamen-te do desconhecido Eacute claro que a hipoacutetese tem que ser testada mas o que de fato provoca o medo eacute o oculto o que ainda se estaacute por conhe-cer (no aparentemente conhecido e no totalmente desconhecido) O teatro grego entendeu isso e forjou uma das grandes regras dramatuacuter-gicas a de natildeo morrer no palco Toda cena que provocasse terror era contada natildeo mostrada E eacute claro a imaginaccedilatildeo do puacuteblico dava con-torno e definiccedilatildeo com seus proacuteprios temores Tambeacutem no cinema essa regra foi entendida Hitchcock por sua vez foi um grande apreciador dessa teacutecnica Ocultar e deixar a mente do espectador preencher com a sua proacutepria imaginaccedilatildeo aquilo de horriacutevel que natildeo era mostrado Foi igualmente o mesmo princiacutepio que transformou Tubaratildeo em um grande claacutessico Diante da peacutessima qualidade dos robocircs (animatroni-cs) que havia tornado o seu filme cocircmico Spielberg decidiu voltar agrave sala de ediccedilatildeo e mostrar o miacutenimo possiacutevel Por isso que a contribui-ccedilatildeo de Freud em seu O estranho (1919) eacute tatildeo interessante porque ele observa por meio do estudo do vocabulaacuterio muitos dos recursos utilizados por escritores para fazer literatura inquietante Parece mes-mo que esta eacute uma aacuterea da literatura especialmente propensa a ser de interesse psicanaliacutetico pois eacute tatildeo recorrente nesses textos o fluxo de consciecircncias alteradas

Nessa obra Freud traccedila longa digressatildeo acerca da palavra alematilde unheimlich Ele aborda as diversas acepccedilotildees que essa palavra tem naque-la liacutengua (arcaicas e contemporacircneas ao autor) as palavras familiares a ela suas diferentes traduccedilotildees para outras liacutenguas tambeacutem europeacuteias e por sua vez os diferentes significados dessas traduccedilotildees Esse largo panorama nos permite visualizar sua abrangecircncia e complexidade Un eacute em alematildeo prefixo de negaccedilatildeo todavia heimlich ndash secreto recocircndito furtivo ndash natildeo eacute oposto a unheimlich ndash assustador angustiante aterrori-zante ndash e sim a heimisch ndash paacutetrio domeacutestico do mesmo paiacutes Contudo

heimlich em liacutengua arcaica tinha os mesmo significados de heimisch em liacutengua moderna55

Por outro lado ele [Freud] faz notar que no termo existe forte ambivalecircn-cia e tambeacutem certa vagueza assim como uma notaacutevel ambivalecircncia existe no termo heimlich que parece de fato ter duas aacutereas de significado duas ldquoes-feras de representaccedilatildeo principaisrdquo (uma mais arcaica outra mais moderna) ldquoque sem serem antiteacuteticas satildeo todavia muito estranhas uma agrave outra a esfera da familiaridade da comodidade e a do lsquoesconderrsquo do manter fechadordquo No uso corrente unheimlich eacute o contraacuterio do primeiro significado Poreacutem basta consultar o vocabulaacuterio histoacuterico da liacutengua alematilde de Grimm para descobrir que as ambiguumlidades de significado tambeacutem de heimlich satildeo amplas e existem ligaccedilotildees profundas entre as duas aacutereas de significado (que pode indicar ldquoo lugar livre da influecircncia de fantasmasrdquo mas tambeacutem ldquoescondidordquo ldquoperigosordquo ldquofechado para a consciecircnciardquo ldquoinconscienterdquo e assim por diante) Heimlich pode portanto ter o mesmo significado de unheimlich como acontece com outras palavras indo-europeacuteias que ambiguamente remetem a significados ou funccedilotildees contrapostas pode-se pensar por exemplo em ldquohoacutespederdquo que possui alguma afinidade semacircntica com heimlich (Ceserani 2006 p 137-138)

Logo fica clara a intimidade que o conceito de Estranho tem com o de familiar Para Freud o Estranho acontece quando se entra em con-tato com algo de familiar visto por uma nova perspectiva Quanto mais familiar maior a surpresa de reparar uma nova camada de significado O ato de ver algo completamente novo geralmente natildeo se atrela a expec-tativas gerando um efeito inquietante distinto A experiecircncia do deacutejagrave vu eacute um claro exemplo de inquietaccedilatildeo aflorada pela familiaridade

[] Deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna Essa categoria de coisas assusta-doras construiria entatildeo o estranho e deve ser indiferente a questatildeo de saber se o que eacute estranho era em si originalmente assustador ou se trazia outro afeto Em segundo lugar se eacute essa na verdade a natureza secreta do estra-nho pode-se compreender porque o uso linguumliacutestico se estendeu da Heimlich para o seu oposto das Unheimlich pois esse estranho natildeo eacute nada novo ou alheio poreacutem algo que eacute familiar e haacute muito estabelecido na mente e que somente se alienou desta atraveacutes do processo de repressatildeo (Freud 1919 p 13 ndash traduccedilatildeo minha)

55 Haacute de se observar tambeacutem que hoje em teoria da literatura aquilo que Freud cha-mou de Unheimlich embora ainda seja traduzido como Estranho eacute na verdade facil-mente entendido como Fantaacutestico

Em Iacuteblis a familiaridade de Camila com a situaccedilatildeo e com o Islatilde eacute o que provoca o efeito inquietante no final do conto Ela conhece um homem na estaccedilatildeo de trem que recorda a ilustraccedilatildeo de um militante da jihad de um livro que estava lendo Este homem aparece novamente no mesmo vagatildeo de trem que ocupava ocasiatildeo em que deixa cair proacuteximo a Camila seu passaporte (sugere-se que ela suspeita que tal ato tenha sido proposital no intuito de um possiacutevel contato posterior) O desco-nhecido ao mesmo tempo a fascina e aterroriza fazendo com que perca seu centramento Muitas discussotildees angustiadas ocorrem no plano psi-coloacutegico mas haacute o momento final da confrontaccedilatildeo que se daacute no plano real pela via do sexo Tudo enfim que nos surpreende como estranho se aproxima de memoacuterias que noacutes conscientemente ou natildeo temos

[] E eacute assim num aacutetimo como um relacircmpago que corta os ceacuteus que ela se recorda Iacuteblis Iacuteblis na literatura islacircmica quer dizer Vecircnus a estrela da manhatilde Camila abre ainda mais os olhos sentindo em sua espinha um frio de morte Vecircnus o elo entre a luz e as trevas siacutembolo de Luacutecifer Luacutecifer o anjo caiacutedo democircnio entre trevas e luz Os olhos quase saltando das oacuterbitas Camila tenta gritar mas as matildeos grossas e quentes rodeiam sua garganta com firmeza (Seixas 2003 p 123)

Nessa cena aquilo que era apenas siacutembolo assume plena e tangiacutevel funccedilatildeo (funccedilatildeo em sentido freudiano quando o imaginaacuterio se faz realida-de) Logo o limiar entre realidade e crenccedila se extingue Camila antes fa-miliar a estes siacutembolos eacute tomada entatildeo por essa sensaccedilatildeo arrebatadora de estranhamento Se ela natildeo os reconhecesse esse efeito nunca aconteceria pois natildeo teria a capacidade de notar o caraacuteter extraordinaacuterio da situaccedilatildeo

Freud acredita que existe uma espeacutecie de intuiccedilatildeo animista em todo ser humano que eacute reprimida mas que pode manifestar-se diante de algo que nos inquieta

Haacute mais um ponto de aplicaccedilatildeo geral que gostaria de acrescentar embora estritamente falando tenha sido incluiacutedo no que jaacute foi dito acerca do ani-mismo e dos modos de accedilatildeo do mecanismo mental que foram superados mas penso que merece destaque especial Refiro-me a que um estranho efei-to se apresenta quando se extingue a distinccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo e realidade como algo que ateacute entatildeo consideraacutevamos imaginaacuterio surge diante de noacutes na realidade ou quando um siacutembolo assume plenas funccedilotildees da coisa que simboliza e assim por diante Eacute esse elemento que contribui natildeo pouco para o estranho efeito ligado agraves praacuteticas maacutegicas (Freud 1919 p 15)

A despeito da tradiccedilatildeo todoroviana na anaacutelise desse tipo de litera-tura ser muitas vezes voltada para a questatildeo dos limites do Fantaacutestico a verdade eacute que no conto de Heloiacutesa Seixas essa questatildeo se torna secundaacute-ria Iacuteblis pode ser lido como um siacutembolo do Fantaacutestico O tiacutetulo do livro tem origem na literatura de expressatildeo islacircmica Iacuteblis eacute um dos muitos democircnios no Coratildeo que nesse contexto satildeo chamados de djinns Eles satildeo criaturas intermediaacuterias entre Deus e os Anjos que foram forjados a fogo por Deus de modo similar agrave criaccedilatildeo do Adatildeo biacuteblico (extraiacutedo do barro) No Islamismo haacute uma miriacuteade de djinns e todos eles tentam os seres humanos a cometer pecados de toda sorte De fato natildeo se dis-tanciam dos democircnios cristatildeos Iacuteblis se equivalendo ao Luacutecifer catoacutelico Em ambas as histoacuterias haacute uma querela entre Deus e IacuteblisLuacutecifer diante do amor que o primeiro dedica aos humanos seres que para esses de-mocircnios satildeo indignos e inferiores Sendo que no Coratildeo o djinn natildeo representa uma oposiccedilatildeo a Deus Para os islacircmicos Deus eacute superior a todas as coisas e nada o ameaccedila

Iacuteblis e Luacutecifer satildeo considerados anjos caiacutedos Seres de luz que desce-ram agraves trevas elo entre escuridatildeo e a claridade Eacute por isso que ambos satildeo simbolizados pela Estrela da Manhatilde Vecircnus Ela metaforiza um elemento noturno que insiste em permanecer no dia liame entre a luz e as trevas

Eacute por isso que Iacuteblis eacute o siacutembolo perfeito para a proacutepria Literatura Fantaacutestica Como explicado por Freud em relaccedilatildeo ao estranho e o familiar que geram um olhar despatriado alheio disforme ldquoessa refe-recircncia ao fator da repressatildeo permite-nos ademais compreender a defi-niccedilatildeo de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto natildeo obstante veio agrave luzrdquo (Freud 1919 p13) Tal qual IacuteblisLuacutecifer Eacute constante em todos esses elementos a dubiedade e vagueza entre as definiccedilotildees e limites ldquoo fantaacutestico ocorre na incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixa-se o fantaacutestico para entrar no gecircnero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantaacutestico eacute a hesitaccedilatildeo experimentada por um ser que soacute conhece as leis naturais face a um conhecimento aparentemente sobrenaturalrdquo (Todorov 2010 p 31)

Conscientemente ou natildeo Heloiacutesa Seixas criou um conto que utili-za recursos particularmente interessantes para a Literatura Fantaacutestica Iacuteblis eacute um exemplar ficcional brasileiro da contemporaneidade que em cenaacuterios exoacuteticos orientalistas e distantes nos mostra a forccedila descriti-va desta autora que cria universos viacutevidos e palpaacuteveis em confluecircncia

com a verticalidade psicoloacutegica A utilizaccedilatildeo desse siacutembolo-chave para o Islamismo foi um toque de Midas e abre inuacutemeras possibilidades in-terpretativas haja vista a variedade de leituras que esse texto tem em potencial junto agrave milenar literatura islacircmica

REFEREcircNCIAS

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad de Nilton Cezar Tridapalli Paranaacute UFPR Eduel 2006

FREUD Sigmund Aleacutem do Princiacutepio de Prazer Disponiacutevel em lthttplacanorgfreecomfreudtextosfalemdoprincipiodeprazerpdfgt (acessado em 25 de julho de 2013)

_________ The ldquoUncannyrdquo Disponiacutevel em lthttphomesieuedutrnozgenalpMCS490MediaCultureandTechnology-Readingsweek14-The20Uncanny-freudpdfgt (acessado em 22 de junho de 2013)

SEIXAS Heloiacutesa ldquoIacuteblisrdquo In TAVARES Braulio (org) Paacuteginas de Sombra ndash Contos fantaacutesticos brasileiros Rio de Janeiro Casa da Palavra 2003 (p 116-123)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Debates 2010

Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg

Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

O Romantismo alematildeo costuma ser subdividido em grupos nome-ados em conformidade com a cidade que os abrigava (Volobuef 1999) Esses grupos tinham semelhanccedilas que possibilitavam o enquadramento sob a eacutegide do movimento mas com caracteriacutesticas proacuteprias Elas natildeo eram excludentes entre si os artistas tinham a liberdade e verdadeira-mente nutriram o costume do tracircnsito e da assimilaccedilatildeo esteacutetica Ainda assim eacute possiacutevel traccedilar um panorama desses ciacuterculos literaacuterios

Entre os anos de 1806 e 1808 vemos o florescimento de uma se-gunda geraccedilatildeo do Romantismo alematildeo que se afastava dos preceitos da primeira geraccedilatildeo (Romantismo de Jena [1799]) no que esta tinha de primordial o egocentrismo e o cosmopolitismo (num sentido contraacuterio ao nacionalismo conservador de Heidelberg)

Poderiacuteamos basear esse comportamento pelo fato de que a segunda geraccedilatildeo presenciou a invasatildeo da Pruacutessia pelos exeacutercitos de Napoleatildeo experimentando as agruras da dominaccedilatildeo estrangeira o que teria des-pertado seu sentimento nacionalista e a desilusatildeo quanto agrave capacidade de atuaccedilatildeo do ldquoeurdquo (Volobuef 1999) Como provaacutevel consequecircncia dis-so o Romantismo de Heidelberg como ficou conhecido o ciacuterculo lite-raacuterio dessa geraccedilatildeo nutriu um interesse pelo passado histoacuterico do seu povo pela cultura popular e pela busca de uma nova mitologia extraiacuteda do universo folcloacuterico desenvolvendo tambeacutem trabalhos filoloacutegicos

Achim von Arnim atuou na cena literaacuteria da Alemanha em fins do seacuteculo XIX e comeccedilo do XX se destacando do ponto de vista da produ-ccedilatildeo ficcional e da criacutetica literaacuteria entre seus colegas do Romantismo de Heidelberg vindo a ser como hoje eacute reputado um dos maiores expoen-tes do Romantismo alematildeo e mundial (Manguel 2005)

No conto em questatildeo vemos muitos pontos deflagradores do Achim heidelberguiano De iniacutecio podemos observar que ele opta pela exposiccedilatildeo crua dos sentimentos torpes e negativos do ldquoeurdquo tais como vaidade ciuacuteme traiccedilatildeo ndash esta uacuteltima aliaacutes tema recorrente tanto em Achim quanto nas Mil e uma noites ndash sensualismo oportunismo im-pulsividade egoiacutesmo Dessa forma contrariando uma certa tendecircncia dos contos de horror que valorizam a atmosfera de medo e o cenaacuterio exterior ele natildeo caricaturiza seus personagens pelo contraacuterio eacute nestes que foca a imageacutetica do horror Eles satildeo seres humanos muito bem dese-nhados nas suas imperfeiccedilotildees nuances e caracteriacutesticas contraditoacuterias a exemplo de nossa perversa e adoraacutevel Meluumlck

Mais adiante quase no fim do conto veremos que o pano de fundo da Revoluccedilatildeo Francesa ndash a invasatildeo dos castelos o ateamento de fogo e a matanccedila dos aristocratas (presenciados entre outros pelos persona-gens Saintree Mathilde Meluumlck alguns dos quais seratildeo mortos) ndash vai ao encontro das ideias de Achim contraacuterias a este lado sangrento da Revoluccedilatildeo Ele como titular da corrente romacircntica de tendecircncia social na Alemanha natildeo deixa de trabalhar este cenaacuterio e a partir dele de-sencadear as accedilotildees derradeiras em seu conto Curiosamente o discurso inflamado de Meluumlck na segunda profecia (p 298) em relaccedilatildeo agrave morte que ocorreu na sua casa por conta da Revoluccedilatildeo eacute entendido por al-guns criacuteticos como a proacutepria voz de Achim Meluumlck eacute vista assim como alterego de Achim que diz por meio dela o que ele proacuteprio sentia e pensava agrave eacutepoca da Revoluccedilatildeo

Ademais percebemos no conto uma visatildeo clara relativa agraves diferen-ccedilas entre as massas e a aristocracia e sentimos que ele tende a dar relevo agrave generosidade ao exaltar a alma (tambeacutem) boa de Meluumlck tanto no comeccedilo do conto pela fama que ela ganha atraveacutes do magnetismo pes-soal e do talento de atriz e posteriormente pelo olhar do personagem Frenel que admira nela as raras palpitaccedilotildees de um bom coraccedilatildeo em desacordo com outras personagens mesquinhas

Vemos tambeacutem no conto como identificaccedilatildeo do Romantismo de Heildelberg o interesse peculiar do autor pelo Oriente ou seja Meluumlck que eacute tratada numa dimensatildeo que a aproxima da lenda popular ndash ten-decircncia proacutepria deste ciacuterculo e do misteacuterio a partir do qual o autor cons-troacutei atmosferas de horror literaacuterio Para se apoiar e trabalhar sobre os as-pectos ligados agrave cultura oral podemos inferir que o autor como outros

de sua eacutepoca foi achar no Oriente bons ingredientes para compor uma nova mitologia romacircntica associada aos seus reconhecidos trabalhos filoloacutegicos Uma tendecircncia do seacuteculo XIX na Europa que tem durado ateacute hoje no momento em que se reconfigura o Oriente ldquocomo ideacuteia conceito ou imagemrdquo (Said 1990 p 208)

Atentemos um pouco nesse Oriente inventado com a ajuda de Edward Said (1990 p 217-218) Historicamente a Franccedila e a Inglaterra foram as maiores colonizadoras do Oriente proacuteximo no seacuteculo XIX Aquele paiacutes no entanto teve uma presenccedila muito mais expedicionaacuteria e aventureira do que o engajado empreendimento de reconhecimento do Oriente feito pela Inglaterra ldquonatildeo tinham [escritores franceses] quais-quer pretensotildees em relaccedilatildeo agraves suas ideacuteias orientais a natildeo ser que elas [fossem] corroboradas por uma longa tradiccedilatildeo erudita (e natildeo existen-cial)rdquo (p 217 ndash grifo do autor) Assim a impressatildeo acerca dos orientais e de sua cultura trazida por esses paiacuteses ao Ocidente foi muito diferente e a que se perpetuou mais foi a visatildeo francesa atraveacutes de elementos li-gados agrave sensualidade fantasia e leveza em oposiccedilatildeo agrave visatildeo inglesa do Oriente mais realista

Edward Said afirma que

muitos dos primeiros aficionados do Oriente comeccedilaram saudando o Oriente como um salutar deacuterangement dos seus haacutebitos mentais e espirituais europeus O Oriente foi superestimado pelo seu panteiacutesmo pela sua espiri-tualidade pela sua estabilidade sua longevidade primitividade e assim por diante [] Mas quase sem exceccedilatildeo essa estima exagerada foi seguida por uma reaccedilatildeo subitamente o Oriente pareceu subumanizado antidemocraacuteti-co atrasado baacuterbaro etc (p 158 ndash grifos meus)

No seacuteculo XIX as expediccedilotildees Ocidente-Oriente e os diaacuterios de bor-do publicados eram muitos ndash o movimento contraacuterio era escasso ndash e tais viagens corroboravam juiacutezos de valor criados por um senso comum jaacute bem estabelecido

[] desse modo o uso da palavra oriental por um escritor [passa a ser] uma referecircncia suficiente para o leitor se identificar [com] um corpo especiacutefico de informaccedilatildeo sobre o Oriente [] parecia ter uma situaccedilatildeo epistemoloacutegica igual agrave da cronologia histoacuterica ou agrave da localizaccedilatildeo geograacutefica [] Os orien-tais raramente eram vistos ou olhados a visatildeo passava atraveacutes delesrdquo (p 212-213 ndash grifo meu)

Neste conto haacute um personagem o dr Frenel mencionado acima que eacute um ocidental-orientalista no sentido de que ele fez vaacuterias viagens para o Oriente e aprendeu muito sobre os seus costumes e segredos Ele encarna um certo poder o conhecimento do misteacuterio enquanto o de Meluumlck eacute a efetiva praacutetica do que eacute misterioso O misteacuterio no con-to mostra entatildeo toda sua forccedila Assim ele tem o importante papel de tornar Meluumlck e tudo que lhe rodeia mais fantaacutestico mais misterioso mais assustador em algumas passagens Sua visatildeo sobre Meluumlck eacute a um soacute tempo verdadeira e duvidosa gerando a ambiguidade fantaacutestica A proacutepria mente humana poderia justificar essa atitude como Said (p 64) diz ldquoeacute perfeitamente possiacutevel argumentar que alguns objetos distintivos satildeo feitos pela mente e que esses objetos embora pareccedilam existir objetivamente tecircm uma realidade apenas ficcionalrdquo

Haacute a partir daiacute uma separaccedilatildeo ostensiva entre eu e eles a partir da qual territoacuterios e mentalidades satildeo declarados diferentes E assim ldquotodo tipo de suposiccedilotildees associaccedilotildees e ficccedilotildees parece povoar o espaccedilo que estaacute fora do nosso proacutepriordquo (p 65) o que soacute contribui para o fantaacutes-tico Como Causo afirmou em relaccedilatildeo agrave ficccedilatildeo insoacutelita esta se trata de um jogo entre Eu e Outro do qual nascem novas percepccedilotildees podendo servir para o enriquecimento da visatildeo de mundo e do olhar sobre si mesmo num ldquoprocesso de apresentaccedilatildeo de realidades alternativas atra-veacutes das quais noacutes reavaliamos as nossas percepccedilotildees da realidade que compreendemosrdquo (2003 p 63)

Esta invenccedilatildeo do Outro serve em suma de enriquecimento ao proacute-prio imaginaacuterio com a reconstruccedilatildeo criativa das Mil e uma noites pelos autores do seacuteculo XIX conforme indica o proacuteprio Said (p 63) ldquoum re-sultado feliz [] foi que um nuacutemero estimaacutevel de importantes escritores durante o seacuteculo XIX era entusiasta do Oriente Eacute perfeitamente correto acho falar de um gecircnero de escrita orientalista tal como eacute exemplifica-do pelas obras de Hugo Goethe Nerval Flaubert Fitzgerald e similaresrdquo Hugo (apud Said p 61) completa este painel em texto escrito em 1829 ldquoau siegravecle de Louis XIV on eacutetait helleacuteniste maintenant on est orientalisterdquo

Podemos afirmar em conformidade com Causo (2003) que as suces-sotildees de acontecimentos fantaacutesticos que vatildeo sendo desencadeadas a partir do aparecimento de Meluumlck em Toulon (Franccedila) configuram uma viagem insoacutelita ldquouma sucessatildeo de eventos fantaacutesticos ou maravilhosos ocorri-dos dentro de uma progressatildeo no tempo e no espaccedilo e testemunhada

por personagens que tendem a se manter de um evento a outro [] A natureza do evento ou fato fantaacutestico ou maravilhoso pode ser divina demoniacuteaca ou misteriosardquo (p 77) Essa uacuteltima natureza estaria ligada ao conto em questatildeo e tambeacutem por isso eacute que se encaixa na categoria de fantaacutestico proposta por Todorov (2008) visto que aleacutem de deixar esses fatos no terreno do natildeo explicado e da incerteza como eacute mister ao gecircnero natildeo vemos marcaccedilotildees no texto suficientes para atribuir a esses eventos uma causa especiacutefica o que os desencadeia eacute um misteacuterio

Rosemary Jackson (apud Causo 2003 p78) reforccedila a ideia do fan-taacutestico como algo misterioso que desorienta quanto agrave realidade racional quando afirma que ldquojoga com as dificuldades de interpretaccedilatildeo de eventoscoisas como objetos ou como imagens assim desorientando a categoriza-ccedilatildeo do leitor sobre o realrdquo E podemos apontar como exemplo desse ldquojogordquo o fato de o narrador colocar esses eventos fantaacutesticos sempre em discus-satildeo com tentativas de explicaccedilotildees cientiacuteficas geralmente desencadeadas por ele proacuteprio ou pelo personagem Saintree e nunca se conseguir uma explicaccedilatildeo final O jogo de tentativa e frustraccedilatildeo confunde e faz o leitor se perguntar sobre o que eacute real e como algo fora do natural pode ocorrer Eacute isso que o fantaacutestico pretende conforme Todorov (2008)

Apesar disso podemos encontrar em Meluumlck vaacuterios elementos que o aproximam tambeacutem do maravilhoso Haacute fatos explicados segundo leis natildeo naturais ou puramente aceitos sem questionamentos Uma adora-ccedilatildeo por parte dos outros personagens orientada para Meluumlck simboliza uma fascinaccedilatildeo pelo Outro apoacutes um primeiro estranhamento Por ou-tro lado este e outros fatos estranhos poderiam ser tambeacutem frutos da real feiticcedilaria da protagonista o que endossaria o caraacuteter maravilhoso contudo fica delimitado sugerindo-se novamente o fantaacutestico O autor oscila propositalmente entre os dois gecircneros discutidos por Todorov

Outros fenocircmenos ligados ao maravilhoso seriam os acontecimentos estranhos ocorridos na casa de Saintree (cuja rotina parecia lsquomaacutegicarsquo) a se-melhanccedila fiacutesica com Meluumlck dos filhos dele com Mathilde entre outros

[] e Mathilde achava os olhos orientais e as longas pestanas de seus fi-lhos tatildeo encantadores que esquecia seu enigmaacutetico misteacuterio [] O mane-quim entatildeo tinha de apertar nos braccedilos uma crianccedila apoacutes a outra todas se divertiam e nenhuma achava isso mais prodigioso do que as mil outras coisas que diariamente lhes causavam estranheza por serem novidade [] (Arnim 2005 p 297)

Assim detectamos elementos hiacutebridos neste conto que poderiam aproximaacute-lo do subgecircnero fantaacutestico-maravilhoso todoroviano

Meluumlck eacute uma mulher da Araacutebia O intertexto com As mil e uma noites eacute leve mas evidente Numa vista geral por essas histoacuterias encontramos o mote da mulher capaz de tudo do pior ateacute para salvar a honra ou o amor Mas tal perspectiva tem uma tendecircncia a se harmonizar no decorrer dos contos orientais Vemos tambeacutem a traiccedilatildeo feminina como uma toacutepica for-te jaacute que os homens seriam os apaixonados obcecados Vai se articulando assim a misoginia atrelada agrave forccedila feminina dentro de um imaginaacuterio de sensualidade proacuteprio de expressiva parte da literatura aacuterabe

Vemos em tudo isso o reflexo direto da figura de Meluumlck agraves vezes e contraditoriamente uma mulher sem escruacutepulos que para conquistar Saintree parece ter lhe enfeiticcedilado enquanto ele passava uma tarde em sua casa Uma vez laacute sentia-se como se natildeo pudesse sair inebriado pri-vado de si numa ldquodoce prisatildeordquo (p 289) Mulher que ao ser rejeitada pelo mesmo roubou literalmente seu coraccedilatildeo numa feiticcedilaria cuja descri-ccedilatildeo causa horror (p 294-295) A traiccedilatildeo referida no caso das Noites tambeacutem ocorre aqui mas natildeo eacute ele o obcecado Soacute o maravilhoso per-mite que ele possa ficar a ela atado por conta do coraccedilatildeo extraiacutedo natildeo de maneira metafoacuterica (p 296) A obcecada eacute ela mas a protagonista pro-voca nele a mesma dependecircncia amorosa O sensualismo em Meluumlck mesmo que natildeo seja tatildeo expliacutecito quanto nos contos aacuterabes aparece em meio a uma atmosfera oniacuterica e sinesteacutesica em que o aroma das flores as texturas dos tecidos e a intensidade das cores colaboram na criaccedilatildeo de um sonho oriental com sugestotildees eroacuteticas (p 288)

Para Carroll (1999 p 39) no horror haacute sempre um monstro repug-nante sendo esta a condiccedilatildeo sine qua non dessa ficccedilatildeo ldquo[] a reaccedilatildeo afe-tiva do personagem ao monstruoso nas histoacuterias de horror natildeo eacute sim-plesmente uma questatildeo de medochoque ou seja de ficar aterrorizado com algo que ameaccedila ser perigoso Pelo contraacuterio a ameaccedila mistura-se agrave repugnacircncia agrave naacuteusea e agrave repulsardquo Notamos no conto em questatildeo um choque inicial um espanto em alguns momentos de fantaacutestico mas natildeo a naacuteusea e tambeacutem natildeo haacute um monstro configurado segundo os termos do horror de Carroll

O escritor e criacutetico Lovecraft afirma que ldquoo criteacuterio do fantaacutestico natildeo se situa na obra a natildeo ser na experiecircncia particular do leitor e essa expe-riecircncia deve ser o medordquo (apud Todorov p 20) Em relaccedilatildeo agrave atmosfera

de horror que o leitor pode detectar vemos em Meluumlck nossa profetisa particular da Araacutebia residir o estranhamento ela eacute o proacuteprio Oriente

Por sua vez Stephen King (1981) desenvolve uma leitura diferencia-da da de Carroll nos esclarecendo que pontos de tensatildeo e motivos que conduzem o leitor a uma experiecircncia esteacutetica do medo natildeo precisam ser necessariamente horripilantes jaacute que aquele eacute muitas vezes encontrado nas entrelinhas das histoacuterias No conto em questatildeo temos descriccedilotildees expliacutecitas que causam medo no leitor todas em relaccedilatildeo aos misteacuterios de Meluumlck ou agraves cenas da Revoluccedilatildeo mas o horror eacute detectado sempre nas entrelinhas no natildeo dito Isso fica claro na figura do duplo que eacute trabalha-da pela narrativa no caso um manequim que agraves vezes parece ganhar vida sob o comando da protagonista Ele natildeo configura o monstro sobrenatu-ral expliacutecito de acordo com as teorias de Carroll mas a tiacutepica inquieta-ccedilatildeo do duplo fantaacutestico o autocircmato estudado por Freud (apud Ceserani 2006 p 25-26) apreendida a partir de entrelinhas e ambiguidades

Ao ouvir perguntas sobre o paradeiro da condessa Meluumlck agarrou a quase desmaiada Mathilde agrave forccedila e levou-a ao soacutetatildeo onde o manequim articulado estava guardado Usando pela uacuteltima vez sua arte conduziu a condessa ateacute o manequim que a estreitou com uma forccedila imutaacutevel em seus braccedilos frios como os de um esqueleto Meluumlck ordenou-lhe que ficasse em silecircncio ou estaria morta mas a advertecircncia era desnecessaacuteria pois Mathilde calava caiacuteda em profundo desmaio (Arnim p 302)

Esse aspecto mentalpsicoloacutegico que foi tatildeo bem trabalhado por E T A Hoffmann ao qual muito bem nos chama atenccedilatildeo Freud pode tambeacutem ser entendido em certa medida em Todorov (p 60) quando ele fala do ldquopandeterminismordquo que teria como consequecircncia natural a ldquopansignificaccedilatildeordquo Nesse pensamento o pandeterminismo natildeo estaacute proacute-ximo agrave loucura ou ao entorpecimento causado por drogas como ele explica mas ldquosignifica que o limite entre o fiacutesico e o mental entre a ma-teacuteria e o espiacuterito entre a coisa e a palavra deixa de ser fechadordquo

Ceserani (p 25-26) nos diz que o duplo estaria associado agrave aliena-ccedilatildeo do homem num mundo que ele proacuteprio criou em que parte de sua proacutepria personalidade eacute reprimida Surgem assim fantasmagorias que o deixam obsessivo e transtornado As relaccedilotildees entre os seres vivos e os autocircmatos toacutepica que estaacute ligada a uma seacuterie de experimentaccedilotildees teacutec-nicas do seacuteculo XVIII (criaccedilatildeo de maacutequinas capazes de imitar os gestos

humanos) e teatrais (marionetes quadros vivos) coloca em pauta a preo-cupaccedilatildeo com os problemas da personalidade e identidade da consciecircncia humana do eu e do outro da estabilidade mental do duplo enfim

O manequim imita assustadoramente os movimentos de Saintree (p 287) e salva Mathilde da morte no soacutetatildeo da casa (p 303) Nas duas ocasiotildees atua como uma extensatildeo de Meluumlck no primeiro caso para impressionar seu amado no segundo para libertar sua amiga dos revo-lucionaacuterios que iriam mataacute-la Na polaridade negativa ou positiva age com uma estranheza ora fantaacutestica ora maravilhosa endossando os po-deres orientais de Meluumlck ldquoprofetisa particular da Araacutebiardquo que nos des-cortina os misteacuterios do Outro numa criaccedilatildeo ligada ao insoacutelito Eacute nesta encruzilhada que observamos mais um belo exemplo de conto de hor-ror vindo do Romantismo engajado de Heildelberg que traz o mundo fantaacutestico e maravilhoso tatildeo caro agraves Mil e uma noites

ldquoO outro eacute o eu que eu menos conheccedilomas eacute o que mais me fascinardquo

(Manuella Mirna)

REFEREcircNCIAS

CARROLL Noeumll A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coraccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Papirus 1999

CAUSO Roberto de Sousa Ficccedilatildeo cientiacutefica fantasia e horror no Brasil 1875 a 1950 Belo Horizonte Editora UFMG 2003

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad Nilton Cezar Tridapalli Curitiba UFPR 2006

KING Stephen Danccedila Macabra Satildeo Paulo Editora Ponto de Leitura 1981

MANGUEL Alberto (org) Contos de Horror do seacuteculo XIX Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2008

VOLOBUEF Karin Frestas e Arestas a prosa do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval

Lucila Nogueira(Profordf Drordf Departamento de Letras ndashUniversidade Federal de Pernambuco)

Eacute antes do oacutepio que a minhrsquoalma eacute doenteSentir a vida convalesce e estiolaEu vou buscar ao oacutepio que consolaUm oriente ao oriente do Oriente

(Fernando Pessoa)

Conforme Edward W Said (1990) o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra a Franccedila e o Oriente que vem representar natildeo apenas o sinal da soberania europeacuteia como as diversas consequecircncias de haverem esses paiacuteses dominado o mediterracircneo oriental desde o final do seacuteculo XVII Na verdade o orientalismo vinha promover a diferenccedila entre o racional e o familiar e o irracional e o estranho Em termos de estudos eruditos conside-ra-se que o orientalismo comeccedilou sua existecircncia com a decisatildeo do Conselho de Viena em 1312 de estabelecer uma seacuterie de caacutetedras de aacuterabe grego hebraico e siacuterio em Paris Oxford Bolonha Avignon e Salamanca (Said p 60)

Por outro lado eacute possiacutevel falar de um gecircnero orientalista presente nas obras de Hugo Nerval e Flaubert que deriva em uma mitologia flutuante do Oriente Veja-se o Itineraacuterio de Chateaubriand a Viagem ao Oriente de Lamartine tambeacutem as de Flaubert e de Nerval A uma certa altura a referecircncia oriental ultrapassa o calendaacuterio judeu e cristatildeo e atinge os mapas da Iacutendia da China do Japatildeo e da Sumeacuteria Entatildeo vai tratar o orientalista moderno do resgate da obscuridade e estranha-mento distinguidos pelos estudiosos anteriores No que concerne aos escritores iratildeo surgir aqueles para quem a viagem real ou metafoacuterica ao Oriente eacute a realizaccedilatildeo de algum projeto profundamente sentido e urgente eacute o caso por exemplo de Geacuterard de Nerval

A influecircncia do Oriente vai ser sinocircnima de uma oportunidade de libertaccedilatildeo como ocorre no livro As Orientais de Victor Hugo O Oriente passa a ser poesia impetuosidade melancolia o magnetismo da viagem aliado a uma possessatildeo de novas imagens Os peregrinos franceses ao contraacuterio dos ingleses iam ao Oriente com o sentido agudo de perda e natildeo de soberania Perseguiam memoacuterias ruiacutenas correspondecircncias ocultas segredos esquecidos formas literaacuterias encontradas em seu apo-geu imaginativo como ocorre com Geacuterard de Nerval (Said p 177)

A viagem de Nerval ao Oriente foi feita atraveacutes da de Lamartine e a deste atraveacutes da de Chateaubriand Para Lamartine sua viagem ao Oriente em 1883 consistiu numa grande atitude de sua vida interior porque ela consistia na paacutetria da sua imaginaccedilatildeo atestando a grandeza da Aacutesia diante da pequenez da Greacutecia Em contraste com Lamartine va-mos encontrar Flaubert e Nerval que chegaram ao Oriente preparados por uma grande leitura dos claacutessicos O proacuteprio Nerval afirmou em As filhas do fogo que tudo que ele sabia sobre o Oriente se baseava numa remota lembranccedila da sua educaccedilatildeo escolar ndash no entanto a leitura da sua viagem ao Oriente desmente isso embora seu conhecimento seja menos sistemaacutetico que o de Flaubert O fato eacute que esses dois escritores (Nerval em 1842-43 e Flaubert em 1849-50) deram agraves suas visitas ao Oriente um uso pessoal e esteacutetico maior que qualquer outro viajante do seacuteculo XIX Eles pertencem agravequele grupo romacircntico que cultua as imagens de lu-gares exoacuteticos gostos sado-masoquistas fascinaccedilatildeo pelo macabro pelo segredo e pelo ocultismo e em suas obras valorizaram figuras femininas fatais como Cleoacutepatra e Salomeacute Levaram para o Oriente uma mitologia pessoal Flaubert em busca de uma terra natal e Nerval seguindo os traccedilos de seus sonhos Assim tanto para um como para outro o Oriente era um lugar de deacutejagrave vu um lugar para o qual se voltavam com frequ-ecircncia mesmo depois que acabava a viagem (Said p 188) O alcance da obra oriental dos dois ultrapassa os limites do orientalismo ortodoxo O orientalismo de Flaubert estaacute tambeacutem nos Cadernos de Viagem na pri-meira versatildeo de A tentaccedilatildeo de Santo Antonio em Herodias Salammbocirc e nas numerosas notas de leitura

Jaacute Nerval criou a sua Viagem ao Oriente como uma coletacircnea de no-tas de esboccedilos histoacuterias e fragmentos de viagens seu Oriente tambeacutem pode ser encontrado em As Quimeras nas cartas parte de sua ficccedilatildeo e outros escritos em prosa Ele reconhece o Oriente como o paiacutes dos

sonhos e ilusotildees Conforme Edward Said Nerval investe a si mesmo no Oriente produzindo natildeo tanto uma narrativa noveliacutestica quanto uma intenccedilatildeo perpeacutetua ndash nunca plenamente realizada ndash de fundir a mente agrave accedilatildeo fiacutesica Essa antinarrativa essa peregrinaccedilatildeo eacute uma guinada na di-reccedilatildeo contraacuteria agrave finalidade discursiva do tipo concebido por escritores anteriores sobre o Oriente

Observa Said ainda que ligado fiacutesica e solidariamente ao Oriente Nerval vagueia informalmente por entre as suas riquezas e a sua atmos-fera cultural (e principalmente feminina) localizando no Egito espe-cialmente aquele materno ldquocentro ao mesmo tempo misterioso e aces-siacutevelrdquo do qual deriva toda a sabedoria (Said p 190) ldquoLembra Michel Butor que vagando pelas ruas e pelos arredores do Cairo de Beirute ou de Constantinopla Nerval estaacute sempre agrave espera de qualquer coisa que lhe permita sentir a caverna que se estende por baixo de Roma Atenas e Jerusaleacutemrdquo (p 190)

Natildeo haacute equivalentes ingleses para as obras orientais de Chateaubriand Lamartine Nerval e Flaubert Os especialistas de Nerval sabem que estamos diante de duas viagens uma que eacute mista imagina-da unida com a de outros autores outra formada por textos e versos jaacute publicados em jornais revistas e livros ldquoEacute uma impressatildeo dolorosa escreveu Nerval cada dia mais distante de perder cidade a cidade de paiacutes a paiacutes todo esse belo universo que se acredita criar jovens pela lei-turahelliprdquo (Nerval 1998)

Este eacute o Oriente de Nerval buscando uma resposta para o desco-nhecido O Oriente carrega o paroxismo entre a autoridade do real e a vontade do sonho este combate faz do poeta um visionaacuterio de uma humanidade inocente e primitiva Pertence ao sonho ou agrave vida o sol negro da melancolia em derredor do autor que viaja em sua proacutepria companhia essa viagem que eacute apenas uma metaacutefora de seus sonhos de leituras o Oriente se constitui num mundo agrave parte cumulado de seres e de coisas que se transformam em accedilotildees poeacuteticas

Para penetrar na alma e no segredo do Oriente Nerval decide aprender aacuterabe A mulher eacute um ser agrave parte e o coraccedilatildeo do poeta cami-nha seguidamente na vontade de se reencontrar As deusas orientais como Astarte e Iacutesis ganham relevo em meio aos ecircxtases miacutesticos e so-brenaturais assim como os duplos se revelam pares misteriosos onde ainda vibra o eco de mundos desaparecidos

Do Liacutebano a Constantinopla chamada geralmente por Nerval de Istambul ele se instala e vive como flacircneur dando ao seu texto uma in-tensidade que o Liacutebano natildeo pocircde oferecer Eacute o Oriente que vai assegurar a comunhatildeo coacutesmica Nerval teraacute trecircs fontes principais a Biacuteblia o Islatilde e a Maccedilonaria Na verdade a sua viagem eacute decididamente um romance e ele proacuteprio reconheceu que assim gostava de conduzir sua vida (como um ro-mance) O Oriente surge diante desse visionaacuterio como o princiacutepio de toda uma vida anterior que nele encontra seu signo supremo e sua confirmaccedilatildeo

Em 1842 Nerval inicia sua viagem ao Oriente percorrendo a ilha de Malta o Cairo Beirute Chipre Rhodes Esmirna Constantinopla Triste o seu retorno ningueacutem o esperava ao cabo da sua peregrinaccedilatildeo Retorna a Paris com escala na Itaacutelia nos primeiros dias de 1844 Publica Mulheres do Cairo que seraacute a primeira versatildeo de Viagens ao Oriente Em janeiro de 1848 publica Cenas da vida oriental I Em 1850 As noi-tes do Ramazatilde Cenas da vida oriental II As mulheres do Liacutebano Em 1851 Viagens ao Oriente em 52 Os Iluminados em 53 Pequenos cas-telos da Boecircmia e Siacutelvia Neste ano tambeacutem eacute publicado por Dumas El Desdichado em 1854 publica As filhas do fogo e As Quimeras Em maio sai da cliacutenica em que estivera o ano anterior e vai para a Alemanha de onde ele volta em estado de grande confusatildeo mental no mecircs de ju-lho Escreve Aureacutelia e prepara a ediccedilatildeo de Pandora Em janeiro de 1855 Nerval eacute encontrado enforcado na Rua da Velha Lanterna

Flaubert aos quatorze anos se referiu ao Oriente do sol brilhante do ceacuteu azul dos minaretes dourados dos pagodes de pedra o Oriente com a sua poesia o Oriente com seus perfumes suas caravanas nas areias suas esmeraldas suas flores seus jardins de laranjas Flaubert so-nhou com os laacutebios das mulheres puras com os grandes olhos negros que teriam amor soacute para ele sonhou com a pele morena das mulheres da Aacutesia (Flaubert 2006 p 7)

O tema do Oriente se interioriza quer voltando-se ao passado quer de modo intemporal Flaubert conheceraacute o Egito a Palestina a Siacuteria Bagdaacute Babilocircnia Ispahan Teeratilde Trebizonda e Constantinopla Flaubert constituiu um dossiecirc de 178 paacuteginas sobre a viagem agrave Peacutersia e em sua biblioteca constam livros como Viajantes antigos e modernos de Edward Chacon e Livros sagrados do Oriente traduzido por Guillaume Pauper em 1840 leu a Viagem ao Egito e agrave Siacuteria de Volney e consultou tambeacutem Sobre os modos e costumes dos egiacutepcios modernos de Edward

W Lane publicado em 1837 Acontece que contrariamente a muitos viajantes dos seacuteculos XVIII e XIX Flaubert natildeo faz estardalhaccedilo de sua erudiccedilatildeo em Viagem ao Oriente Ele tinha consciecircncia de que a descri-ccedilatildeo eacute um elemento importante do gecircnero viagem mas ao mesmo tempo sentia a impotecircncia das palavras diante da beleza

Um escritor eacute aquele que tem uma percepccedilatildeo diferenciada do real que usa de uma conexatildeo analoacutegica em suas expressotildees que vecirc sinais de advertecircncia em episoacutedios de sua vida o que pode ocorrer com algum deliacuterio ou eventualmente alguma mania de grandeza O escritor pro-cura reconstruir a sua identidade perdida falando agraves vezes sozinho a mais alta poesia o canto mais sublime Com um destino forccedilosamente poacutestumo Nerval soacute teraacute seu talento reconhecido no seacuteculo XX graccedilas a Proust e aos surrealistas No entanto seus doze sonetos satildeo suficientes para assegurar sua gloacuteria Um deles eacute El Desdichado

El Desdichado

Je suis le Teacutenebreux le Veuf lrsquoInconsoleacuteLe prince drsquoAquitaine agrave la tour abolieMa seule Eacutetoile est morte et mon luth constelleacutePorte le Soleil noir de la Meacutelancholie

Dans la Nuit du Tombeau toi qui mrsquoas consoleacuteRends moi le Pausilippe et la mer drsquoItalieLa Fleur qui plaisait tant agrave mon coeur deacutesoleacuteEt la Treille ougrave le Pampre agrave la Vigne srsquoallie

Suis je Amour ou Phoebus ndash Lusignan ou BironMon front est rouge encor du baiser de la ReineJrsquoai dormi dans la Grotte ougrave verdit la syregravene

Et jrsquoai deux fois vivant traverseacute lrsquoAcheronModulant et chantant sur la lyre drsquoOrpheacuteeLes soupirs de la Sainte ndash et les cris de la Feacutee

El Desdichado

Eu sou o Tenebroso o Viuacutevo o InconsoladoO priacutencipe da Aquitania na torre da abuliaMinha Estrela eacute a morte e meu luto estrelado Dissemina o Sol negro da Melancolia

Na Noite da Queda tu que me consolasteMe entregaste o mar da Itaacutelia e o PolisipoA Flor que amou tanto o meu coraccedilatildeo desoladoE a Videira onde o Pacircntano agrave rosa se alia

Sou Amor ou sou Phebo ndash Lusignan ou BironMinha fronte ainda eacute rubra do beijo da RainhaAdormeci na caverna onde nada a sereia

E duas vezes vivo atravessei o AcheronModulando e cantando na lira de OrfeuOs gritos da fada ndash e os suspiros da Santa

Publicado pela primeira vez em 10 de dezembro de 1853 por Dumas este poema parece ser contemporacircneo da segunda crise de lou-cura de Nerval (agosto e setembro de 1853) e dele existem dois ma-nuscritos Este eacute o mais ceacutelebre dos sonetos nervalianos e representa tambeacutem a crise do sujeito liacuterico e da poesia O primeiro quarteto oferece uma identidade que natildeo eacute social nem histoacuterica mas absoluta A morte da estrela e o sol negro surgem como se fossem um apocalipse que leva o locutor agraves trevas do fim No segundo quarteto restitui ao inconsola-do o passado trazendo uma contradiccedilatildeo violenta pelo uso da sintaxe Vem uma figura de consolaccedilatildeo do universo napolitano que pode ser uma referecircncia de iacutendices autobiograacuteficos Amor voltado agraves trevas os amantes natildeo podem se ver e o poeta se encontra na gruta da sereia Quanto ao uacuteltimo terceto o poeta se identifica com Orfeu desce aos infernos e constroacutei um monstro fabuloso e poeacutetico a Quimera O Sol Negro da Melancolia jaacute aparecia em Viagem ao Oriente e evoca a gravu-ra de Duumlrer A sereia na gruta representa a figura do paganismo sendo que essa gruta eacute o lugar por excelecircncia da Quimera sereia ou dragatildeo

Geacuterard Nerval acreditava na metempsicose a passagem da alma de um corpo a outro apoacutes a morte Seu livro Aureacutelia se abre com a afir-maccedilatildeo de que o sonho eacute uma segunda vida Aos vinte anos lanccedilou uma traduccedilatildeo do Fausto de Goethe que iria servir para a sinfonia de Berlioz Aos vinte e um anos jaacute era reconhecido no acircmbito literaacuterio e junto com Theophile Gautier publicava um folhetim dramaacutetico na imprensa Suas composiccedilotildees literaacuterias fazem renascer o mito do eterno feminino que sempre o perseguiu encontrado nas novelas Siacutelvia e Aureacutelia Estes livros representam a figuraccedilatildeo do contraste embora revele a sugestatildeo de um

sofrimento verdadeiro O muro das visotildees eacute um subterracircneo que se ilu-mina como se o sonho se derramasse na vida real

Sim encontramos em Nerval essa brutal oscilaccedilatildeo entre dois mun-dos o real e o imaginaacuterio assim como a transfiguraccedilatildeo de sua proacutepria vida em um mito que abarca todo o destino dos seus semelhantes Conquista metafiacutesica mito universal discurso fantaacutestico de premoni-ccedilotildees visotildees obsessotildees vida real e imaginaacuteria no crivo da linguagem Trecircs aspetos chamam a atenccedilatildeo a noccedilatildeo de uma supra-racionalidade a fusatildeo da linguagem inconsciente com a literaacuteria e a recusa da funccedilatildeo enunciativa das palavras Os elementos que formam a supra-racionalida-de que domina a obra de Nerval satildeo essencialmente a presenccedila animada do som as visotildees as transposiccedilotildees miacuteticas ou poeacuteticas as recordaccedilotildees bem como a fusatildeo da linguagem do consciente e do inconsciente Os textos fantaacutesticos de Nerval se revestem de consideraccedilotildees radicais que nunca se aproximam do que Coleridge designava ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do natildeo crerrdquo ingrediente baacutesico do gecircnero A vida de Nerval eacute sua obra e no seu estilo visionaacuterio as coisas jaacute natildeo existem em discordacircncia com as palavras que as designam elas se reuacutenem de modo indissociaacutevel

Entre as lendas que circulam no cemiteacuterio parisiense Pegravere Lachaise uma delas se refere a Nerval que em 1855 foi encontrado enforcado com desenhos e marcas de siacutembolos ocultos no peito O lugar onde teria ocorrido o pretenso suiciacutedio oscila entre as grades de um hospiacutecio de um albergue ou de um esgoto Comenta-se ser o mais bem vestido entre os fantasmas a se evaporar por traacutes de seu tuacutemulo apoacutes o passeio noturno

ldquoEu sou um mestre em fantasmagoriasrdquo dizia Rimbaud Eacute no roman-tismo alematildeo que vamos encontrar uma reflexatildeo mais profunda entre vi-satildeo e imaginaccedilatildeo Vale lembrar Novalis quando diz que ldquoo pensamento e a vista se assemelhamrdquo A faculdade de pressentir o futuro e a de recordar o passado tem relaccedilotildees com a faculdade de ver agrave distacircncia Para Goethe a luz eacute a proacutepria substacircncia do universo e a energia produtora do mundo

As diferentes formas de adivinhaccedilatildeo se fundamentam sobre a obser-vaccedilatildeo de superfiacutecies refletoras daiacute que o espelho se relacione com aconte-cimentos futuros pessoas mortas ou ausentes temas distantes Daiacute que a visatildeo no espelho se constitua um mediador dum fantasma no Testamento a Orfeu e em O sangue de um Poeta de Jean Cocteau ligado ao movimen-to surrealista atravessar o espelho significa o ingresso no reino da morte A obra despreocupada com a verossimilhanccedila nos leva ao outro lado do

espelho em clima de estranheza para um espaccedilo bidimensional como o do sonho e natildeo tridimensional como o de nossa percepccedilatildeo

O fantaacutestico diminui os limites que circunscrevem a vida huma-na aliaacutes como lembra Bachelard nem o pensamento cientiacutefico estaacute ao abrigo de motivaccedilotildees irracionais baseadas em raiacutezes inconscientes De modo que o renascimento desse irracional vai surgir sobre vaacuterias nomenclaturas como o estranho o sobrenatural o maravilhoso a ficccedilatildeo cientiacutefica o fantaacutestico puro O fantaacutestico vai tratar de acontecimentos inexplicaacuteveis pelas leis naturais que questionam a percepccedilatildeo ordinaacuteria da realidade O fantaacutestico eacute ambiacuteguo e inquietante envolvendo sempre algum dilema misterioso quando surge no seacuteculo XVIII vem marcado pela nova do orientalismo nos contos por exemplo de Jacques Cazotte Seu livro O Diabo amoroso eacute uma mistura do real com o irreal o heroacutei Aacutelvaro natildeo sabe distinguir sonho de realidade

A idade de ouro do fantaacutestico pode ser considerada no seacuteculo XIX Esse fantaacutestico oriundo do romantismo traz marcas do roman noir per-meado do sobrenatural e do gosto pelo demoniacuteaco O roman noir inglecircs produziu no seacuteculo XVIII obras como O castelo de Otranto de Horaacutecio Walpole e Os misteacuterios de Udolfo de Ann Radcliffe neles eram constan-tes o macabro e o terror fantasmas conventos abandonados cemiteacuterios ao luar William Beckford escreve Vathek dentro da moda do orientalis-mo mas tambeacutem com episoacutedios noirs Os contos de Hoffmann satildeo des-cobertos na Franccedila em torno de 1830 e vatildeo influenciar bastante Nodier Gautier e Nerval

Nervoso exaltado depressivo epileacutetico opiocircmano Nodier eacute o pre-cursor de uma longa seacuterie de escritores com sensibilidade exacerbada Maravilhoso sonho e misteacuterio se fundem em um texto em que se exal-ta a loucura Theacuteophile Gautier grande admirador de Hoffmann seraacute influenciado pelas teorias de Swedenborg e pelo espiritismo Muitas de suas histoacuterias contam um amor impossiacutevel entre o ser vivo e o fantasma

O nosso Geacuterard Nerval vai ter a sua proacutepria vida invadida pelos fantasmas Aleacutem da admiraccedilatildeo a Hoffmann traduz muito jovem o Fausto de Goethe Em 1841 tem sua primeira crise nervosa em 1843 viaja ao Oriente e passa a acreditar na reencarnaccedilatildeo em 1851 o poeta tem uma nova crise e passa a observar e registrar sua experiecircncia do sonho e da loucura surgem as obras que testemunham seu itineraacuterio espiritual atormentado Daiacute que se diga que Aureacutelia eacute menos um conto

fantaacutestico do que uma aventura espiritual mas sua originalidade con-siste na fusatildeo fantaacutestica do sonho e da realidade misturando fatos e sua existecircncia com visotildees e alucinaccedilotildees fazendo com que o leitor atravesse da realidade ao sonho ldquoO sonho eacute uma segunda vidardquo ele diz e comple-menta ldquoEu decidi registrar o sonho e conhecer o seu segredordquo

Referecircncias

ARNOLD Paul Esoteacuterisme de Baudelaire Paris Librairie Philosophique J Vrin 1972

BAUDELAIRE Charles Ensaios sobre Edgar Allan Poe Satildeo Paulo Iacutecone Editora 2003

_____ Les fleurs du mal ndash Le Spleen de Paris Paris Ed Hatier 2000

CAMPRA Rosalba Territorios de la Ficcioacuten ndash Lo Fantaacutestico Madrid Editorial Renacimiento 2008

EHRSAM Jean et Veronique (Org) La Litteacuterature Fantastique en France Paris Ed Hatier 1985

FLAUBERT Gustave Voyage en Orient (1849-1851) Paris Eacutedittions Gallimard 2006

GAUTIER Theacuteophile Baudelaire Satildeo Paulo Boitempo Editorial 2001

_____ Contos fantaacutesticos Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

GRUumlNEWALD Joseacute Lino (Org) Poetas franceses do seacuteculo XIX Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira 1921

MILNER Max La fantasmagoriacutea Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1990

NERVAL Geacuterard de Aureacutelia Satildeo Paulo Icone Editora 1986

_____ La Bohegraveme Galante Paris Renecirc Hilsum Ed 1932

_____ Les Chimegraveres ndash La Bohecircme Galante Petit Chacircteaux de Bohecircme Paris Eacutedittions Gallimard 2005

_____ Pandora 2ordf ed Barcelona Tusquets Editores 1980

_____ Siacutelvia Rio de Janeiro Ed Rocco 1986

_____ Voyage en Orient Franccedila Eacutedittions Gallimard 2003

POE Edgar Les poegravemes Paris Eacutedittions Gallimard 1982

SAID Edward Orientalismo - O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1975

YERLES Pierre LITS Marc (Orgs) Le Fantastique Bruxelles Didier Hatier 1990

Rua Acadecircmico Heacutelio Ramos 20 | Vaacuterzea Recife - PE CEP 50740-530 Fones (0xx81) 21268397 | 21268930 | Fax (0xx81) 21268395wwwufpebredufpe | livrariaedufpecombr | editoraufpebr

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

O ifrit [] correu em direccedilatildeo agrave jovem mas ela rapida-

mente arrancou um fi o de cabelo balanccedilou-o na matildeo bal-

buciou algo entredentes e o fi o se transformou numa espa-

da afi ada com a qual ela golpeou o leatildeo cortando-o em duas

partes As duas partes saiacuteram voando mas restou a cabeccedila

que se transformou em escorpiatildeo A jovem por sua vez ado-

tou a forma de uma enorme serpente e por algum tempo

travou violenta luta com o escorpiatildeo mas logo o escorpiatildeo

se transformou em abutre e voou para fora do palaacutecio en-

tatildeo a serpente virou aacuteguia e voou no encalccedilo do abutre de-

saparecendo por algum tempo Mas logo o chatildeo se fendeu

dele saindo um gato malhado que gritou roncou e rosnou

atraacutes do gato saiu um lobo preto lutaram no palaacutecio por

algum tempo e entatildeo o lobo derrotou o gato este gritou

e se transformou numa larva que rastejou e entrou numa

romatilde jogada ao lado da fonte a romatilde inchou ateacute fi car do

tamanho de uma melancia listrada ao passo que o lobo se

transformava num galo branco como a neve A romatilde saiu

voando e caiu no maacutermore da parte mais elevada do saguatildeo

espatifou-se e seus gratildeos se espalharam todos []

Livro das mil e uma noites

(50a noite trad Mamede Mustafa Jarouche)

  • Prefaacutecio (Andreacute de Sena)
  • Breves consideraccedilotildees sobre os conceitos lsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites (Mamede Mustafa Jarouche)
  • Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford (Alfredo Cordiviola)
  • O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente (Andreacute de Sena)
  • Borges leitor de As mil e uma noites (Dariacuteo Sanchez)
  • O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas (Joseacute Alberto Miranda Poza)
  • Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites (Oussama Naouar)
  • A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente (Rafaela Queiroz F Cordeiro amp Priscilla de Moraes Batista)
  • O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier (Thiago Pininga)
  • ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de Edgar Allan Poe (Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim)
  • Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff (Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira)
  • Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas (Julia Troncoso)
  • Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg (Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute)
  • O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval (Lucila Nogueira)
Page 2: Literatura Fantástica e Orientalismo

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Andreacute de Sena (Org)

Recife 2013

ASSOCIACcedilAtildeO BRASILEIRADAS EDITORAS UNIVERSITAacuteRIAS

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio ou pro cesso especialmente por sistemas graacuteficos microfiacutelmicos fotograacuteficos reprograacuteficos fonograacuteficos e viacutedeograacute ficos Vedada a memorizaccedilatildeo eou a recuperaccedilatildeo total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusatildeo de qualquer parte da obra em qualquer programa jusciberneacutetico Essas proibiccedilotildees aplicam- se tambeacutem agraves caracteriacutesticas graacuteficas da obra e agrave sua editoraccedilatildeo

Creacuteditos

Diagramaccedilatildeo e capa Tamyres Siqueira

Ilustraccedilatildeo da orelha (escolha do organizadorautor Andreacute de Sena) ldquoSheacuteheacuterazade continua son histoirerdquo de 1928 por Virginia Frances Sterrett

Impressatildeo e acabamento EDUFPE

Prefaacutecio

Os artigos que compotildeem este Literatura fantaacutestica e orientalismo foram gerados para apresentaccedilatildeo durante o 2ordm Congresso de Literatura Fantaacutestica de Pernambuco (2ordm CLIF-PE) ocorrido entre os dias 05 e 08 de marccedilo de 2013 na Universidade Federal de Pernambuco organizado pelo Belvidera ndash Nuacutecleo de Estudos Oitocentistas do Departamento de Letras da referida instituiccedilatildeo por mim coordenado

O evento teve como tema principal ldquoA influecircncia do Livro das mil e uma noites e do imaginaacuterio orientalista na construccedilatildeo do conto fantaacutesti-co ocidentalrdquo e mobilizou centenas de estudiosos e interessados de todo o paiacutes nos miniauditoacuterios do Centro de Artes e Comunicaccedilatildeo (CAC) no auditoacuterio do Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas e no Hall do CAC (onde aconteceu mais uma ediccedilatildeo do movimentado Salatildeo de Arte Fantaacutestica de Pernambuco) Em quatro dias de atividades intensas o 2ordm CLIF-PE contou com trecircs conferecircncias 50 palestras e comunicaccedilotildees mostras de arte lanccedilamentos de livros aleacutem de dois minicursos

Entre os conferencistas o Prof Dr Mamede Mustafa Jarouche res-ponsaacutevel pela primeira traduccedilatildeo direta do aacuterabe ao portuguecircs do Livro das mil e uma noites que discutiu os inuacutemeros aspectos ligados ao so-brenatural e ao sobre-humano nesta milenar obra a corroborar com o surgimento de toda uma literatura de cunho imaginativo do seacuteculo XVIII aos dias atuais em acircmbito ocidental aleacutem do Prof Dr Alberto Miranda Poza medievalista espanhol que discutiu o acircmbito do mara-vilhoso na concepccedilatildeo do Libro de Apolonio e do miacutestico sufi Sheikh Muhammad Ragip (SP) que tratou de temas como a religiosidade do Islatilde e a literatura miacutestica sufi

A perspectiva interdisciplinar foi outro foco do 2ordm CLIF-PE desde a abertura do evento comandada pelo alauacutede aacuterabe do Prof Dr Oussama Naouar e pela expressiva interpretaccedilatildeo teatral da atriz pernambucana Vanessa Sueidy (como Sherazade) de trechos das Mil e uma noites O

evento contou ainda com a mostra competitiva de artes plaacutesticas de seu Salatildeo de Arte Fantaacutestica (pintura e escultura) aleacutem das mostras de fo-tografia e curtas-metragens com a participaccedilatildeo de dezenas de artistas de outros cursos da UFPE e da cidade Os dois minicursos trabalha-ram perspectivas ligadas ao fantaacutestico e ao orientalismo ldquoCurso-oficina de aacuterabe claacutessico para iniciantes sons letras e signos leitura da surata de abertura do Alcoratildeordquo (ministrado pelos Profs Drs Vicente Masip e Fatiha Dechicha) e ldquoO burro de ouro e o fantaacutestico As metamorfoses de Apuleiordquo (ministrado pelo Prof Ms Everton Natividade)

Para a realizaccedilatildeo do evento e publicaccedilatildeo deste livro mais uma con-tribuiccedilatildeo do Departamento de Letras da UFPE e do Nuacutecleo Belvidera ao estudo do fantaacutestico e temas afins no Brasil agradecemos todo o apoio recebido do proacuteprio Departamento aleacutem da Editora da UFPE da FACEPE que possibilitou a vinda dos conferencistas Mamede Mustafa Jarouche e Sheikh Muhammad Ragip ao Recife pela ampla cobertura da imprensa nos quatro dias do 2ordm CLIF-PE e a todos os participan-tes palestrantes artistas puacuteblico em geral e membros da Comissatildeo Organizadora

Prof Dr Andreacute de SenaRecife agosto de 2013

Breves consideraccedilotildees sobre os conceitoslsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites

Mamede Mustafa Jarouche(Prof Dr Departamento de liacutengua e literatura aacuterabe ndash

FFLCH ndash Universidade de Satildeo Paulo)

Eacute sobejamente reconhecido que o Livro das mil e uma noites em aacuterabe Kitaacuteb Alf Layla wa Layla eacute composto de camadas narrativas que somente a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica baseada nos manuscritos hoje dis-poniacuteveis da obra pode devassar e mesmo assim de maneira insatisfatoacute-ria pois satildeo consabidas conforme tem acentuado a criacutetica mais recente as limitaccedilotildees impostas de um lado pela proacutepria forma ldquomanuscritardquo a narrativas cuja produccedilatildeo natildeo visava prioritariamente a leitura (ou pelo menos natildeo a leitura conforme eacute hoje concebida) e de outro lado pela configuraccedilatildeo de sentido especiacutefica de cada conjunto narrativo tomado isoladamente em seu tempo e espaccedilo de funcionamento

Aqui a proposta eacute a partir do que a criacutetica filoloacutegica convencionou chamar de ldquoramo siacuteriordquo desse livro pensar o funcionamento em seu interior dos conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb traduziacuteveis como ldquoespantosordquo ldquoinsoacutelitordquo ldquoestranhordquo ldquoassombrosordquo Evitemos cuidadosamente por ora o termo ldquofantaacutesticordquo ao qual a criacutetica prestigiosa de Tzvetan Todorov conferiu um sentido plenamente consolidado em nossos dias e que natildeo se aplica agraves narrativas do Livro das mil e uma noites pois pressupotildee na verdade textos e leitores que soacute existem a partir do seacuteculo XIX

Conveacutem de iniacutecio ressaltar que ao propor o ramo siacuterio estaacute-se pro-pondo simultaneamente as narrativas mais antigas desse livro e as que em geral constam dos seus mais diversos e desencontrados manuscri-tos Embora contestada aqui e acolaacute ela ainda eacute bastante funcional para referir tais narrativas

Retomando os conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb com toda a sua gama de possibilidades tradutoacuterias seria conveniente neste ponto citar um au-tor aacuterabe do seacuteculo XIII Zakariyya Alqazwiacuteni Trata-se de um trecho do seu notoacuterio tratado cosmogocircnico intitulado lsquoAjaacutersquoib Almakhluqaacutet wa

Gharaacutersquoib Almawjudaacutet traduziacutevel como As mais espantosas criaturas e os mais assombrosos existentes e comumente conhecido a partir de sua versatildeo francesa como Maravilhas da Criaccedilatildeo Eacute um trecho da abertura da obra quando ele disserta sobre os propoacutesitos do seu trabalho

Quando Deus altiacutessimo determinou que eu me distanciasse de minha casa e terra natal e me separasse de meus familiares e de meu lar entreguei-me agrave leitura de livros seguindo o parecer de quem dissera ldquoo melhor companheiro em todos os tempos eacute o meu livrordquo Assim estava eu mergulhado na obser-vaccedilatildeo das coisas espantosas (lsquoajaacutersquoib) da accedilatildeo de Deus altiacutessimo sobre as suas criaturas e as coisas assombrosas (gharaacutersquoib) de suas invenccedilotildees sobre o que inventou tal como ele orientou quando disse [no Alcoratildeo] ldquoAcaso natildeo veem o ceacuteu sobre eles como o construiacutemos e adornamosrdquo O que se pretende aiacute natildeo eacute o revolver das pupilas ou algo que o valha pois isso os quadruacutepedes tambeacutem fazem Aqueles que do ceacuteu natildeo enxergam senatildeo o azul e da terra senatildeo o poacute satildeo semelhantes aos quadruacutepedes e ateacute mesmo inferiores a eles e mais estuacutepidos pois tal como disse Deus [no Alcoratildeo] ldquoeles tecircm coraccedilotildees com os quais natildeo compreendem e tecircm olhosrdquo e completou ldquoesses satildeo como gado e ainda mais extraviadosrdquo O que se pretende com o ldquoolharrdquo eacute a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis a observaccedilatildeo dos sensiacuteveis e a indagaccedilatildeo acerca da sabedoria [que os rege] bem como o que lhes sucede a fim de chegar agrave sua verdade pois eles satildeo o motivo dos prazeres mundanos e das venturas do aleacutem Foi por isso que o profeta [Muhammad] disse ldquoOacute Deus mostre-me as coisas tais como satildeordquo e toda vez que nelas prestava atenccedilatildeo se tornava mais iluminado inspirado e protegido por Deus Foi por isso que ele tambeacutem disse ldquoReflitam sobre a criaccedilatildeo de Deusrdquo E a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis natildeo eacute proporcionada senatildeo a quem tenha experiecircncia com os saberes e as matemaacuteticas e apoacutes o aperfeiccediloamento do caraacuteter e o polimento da alma Nesse momento entatildeo se lhe abre a clarividecircncia e ele enxerga em meio agrave totalidade do que eacute espantoso aquilo que visto parcialmente seria incompreensiacutevel e que se fosse narrado a outrem o deixaria desconfiado Como eacute excelente quem disse

ldquoOuvi algo espantoso que eu considerava um espectro do sono ou deliacuterio de um contomas quando o analisei percebi sua verdade e desde entatildeo jaacute vi milhares destas liccedilotildeesrdquo

Tais reflexotildees servem logo de saiacuteda para uma indagaccedilatildeo seria ra-zoaacutevel falar em elementos ldquosobrenaturaisrdquo nas Noites Sobrenatural sa-bemo-lo eacute ldquomaacutegicordquo estaacute fora das leis naturais ou a elas se impotildee E as ldquoleis naturaisrdquo pertencem obviamente ao domiacutenio da ciecircncia Estamos diante portanto de um conceito historicamente mutaacutevel Quando numa histoacuteria qualquer das Noites (ou de qualquer outro conjunto narrativo da

eacutepoca) aparece um gecircnio aprisionado haacute seacuteculos pelo rei Salomatildeo uma ponderaccedilatildeo a se fazer eacute como reagiria um leitor ou ouvinte do seacuteculo XIV por exemplo a isso Embora o fato certamente lhe fosse espantoso e admiraacutevel isso natildeo o tornaria em absoluto ldquosobrenaturalrdquo dado que semelhante ocorrecircncia fazia parte do horizonte de expectativas e possi-bilidades de entatildeo Era possiacutevel ponto Logo natildeo era sobrenatural Mas claro tratava-se de criaturas por assim dizer ldquosobre-humanasrdquo isto eacute cuja forccedila superava em muito a do ser humano Em todo caso a expressatildeo ldquosobrenaturalrdquo deve aqui ser tomada cum grano salis

Mas retomemos o processo de deflagraccedilatildeo das Noites eacute uma nar-rativa que constitui os seus receptores preferenciais como que os tipifi-cando o rei Shahriyar e a menina Dunyazad um molde pronto e outro inacabado De um lado a recepccedilatildeo experiente que extrai liccedilotildees cuida-dosa prevenida moldada pelo muito que vivenciou previamente (natildeo se deve olvidar que o grau zero de psicologia das Noites faz com que os seus personagens sejam constituiacutedos por suas experiecircncias apenas) do outro a recepccedilatildeo descuidada quase inconsequente (ldquoque histoacuteria diver-tidardquo afirma ela a todo instante mesmo quando se narram as maiores atrocidades) e em certo sentido ldquopurardquo pois livre de prevenccedilotildees

A propoacutesito a narrativa tambeacutem constitui a sua narradora Para aleacutem de sua mera articulaccedilatildeo oral ela possui uma histoacuteria que excluin-do-lhe o proacuteprio corpo e em certa medida lhe ocultando a feminilidade daacute-lhe todos os contornos de saacutebia descrevendo os livros que lera e a forma como os entendeu

Contudo do ponto de vista estrito da loacutegica que se impotildee agrave narra-dora Shahrazad sua irmatilde Dunyazad natildeo passa de um simulacro de re-cepccedilatildeo uma vez que o receptor preferencial eacute o rei Shahriyar seu marido de cuja boa vontade em uacuteltima instacircncia depende a continuaccedilatildeo da sua vida Com isso tem-se um receptor que rei e marido se relaciona conco-mitantemente agrave arte de governar de um lado e agrave arte de amar de outro lado e em cujos acircmbitos ele se vecirc em maus lenccediloacuteis sua presumiacutevel defi-ciecircncia na arte de amar aqui entendida em sentido lato torna-o viacutetima de adulteacuterio (que ele tambeacutem praticaraacute a seguir vitimando outra criatura igualmente eacute o que se supotildee inaacutebil nessa arte) e como consequecircncia as-sassino de mulheres o que evidencia uma outra deficiecircncia sua agora na arte de governar Estamos portanto diante de uma personagem deficien-te nesses dois quesitos fundamentais para a sua constituiccedilatildeo enquanto tal

Descobrir-se viacutetima de adulteacuterio faz o rei Shahriyar sair vagando pelo mundo acompanhado de seu irmatildeo mais novo e menos poderoso Shahzaman tambeacutem vitimado pela mesma desdita Ambos se encontram com a mulher de um gecircnio a qual os obriga a possuiacute-la sexualmente De uma soacute tacada colaboram para aumentar o nuacutemero de viacutetimas da mesma infacircmia que os atingira descobrindo na proacutepria carne o que a proacutepria mulher do gecircnio lhes enuncia os desejos femininos satildeo tatildeo inevitaacuteveis quanto o destino Essa amarga revelaccedilatildeo os espanta e assombra mais do que a presenccedila do gecircnio que simplesmente os assusta pois se trata de criatura sobre-humana cujo poder era imensamente superior ao deles

A primeira histoacuteria contada por Shahrazad para a sua dupla de ouvin-tes conteacutem em seu bojo mais trecircs histoacuterias Em resumo eacute a histoacuteria de um mercador inocente ameaccedilado por um ser monstruososobrenaturalsobre-humano e que acaba salvo por trecircs velhos que lhe contam histoacuterias sobre seres tambeacutem monstruosossobrenaturaissobre-humanos Tais histoacuterias satildeo consideradas ldquodivertidasrdquo por Dunyazad ao passo que o rei Shahriyar demonstra preocupaccedilatildeo com o seu desfecho o que se deve agrave analogia dessa histoacuteria com a situaccedilatildeo vivida por ele por Shahrazad e pelas mulheres que ele jaacute mandou matar E a analogia esse jogo de espelhamento das realidades do mundo eacute em si mesmo muito mais espantosa e assombrosa do que a existecircncia de seres sobre-humanos e a ocorrecircncia de eventos sobrenaturais

Outra histoacuteria significativa para os propoacutesitos desta breve explana-ccedilatildeo eacute a do carregador e das trecircs damas de Bagdaacute situada entre as noites 28 e 69 do ramo siacuterio Nela se acumulam os temas da obscenidade e do sobrenatural Um humilde carregador do mercado de Bagdaacute vai parar na mansatildeo de trecircs irmatildes beliacutessimas jovens e pelo visto solteiras Apoacutes a ocorrecircncia de praacuteticas obscenas de grau vaacuterio entre eles surgem agrave porta da casa trecircs dervixes caolhos e logo em seguida o califa Harun Arrashid em pessoa com seu vizir Jaacutelsquofar e seu escravo Masrur todos os trecircs disfar-ccedilados de mercadores Como seria de se esperar cada um dos dervixes tem a sua histoacuteria para narrar Natildeo vou resumi-las aqui mas direi que na histoacuteria do primeiro dervixe os elementos sobrenaturais aparecem mas natildeo satildeo determinantes para o desfecho Na histoacuteria do segundo dervixe o sobrenatural se mostra fundamental para o desfecho E na histoacuteria do terceiro dervixe a accedilatildeo humana eacute mais determinante do que o sobrenatural Em seguida das trecircs irmatildes duas contam suas histoacuterias a primeira das quais natildeo conteacutem elementos sobrenaturais ao passo que

na segunda o sobrenatural estaacute na metamorfose No final o califa inter-veacutem investido da sua funccedilatildeo de califa propriamente dita e natildeo mais sob disfarce e entatildeo todas as coisas satildeo repostas em seus devidos lugares ficando aiacute evidente que o texto o constitui como o governante ideal que exerce com a mesma eficaacutecia o domiacutenio sobre o mundo material e sobre o mundo sobrenatural ou seja das coisas sobre-humanas

Em seguida narra-se a histoacuteria das trecircs maccedilatildes que natildeo apresen-ta nenhum elemento sobrenatural limitando-se a mostrar a extrema crueldade e injusticcedila de que os homens satildeo capazes quando agem sob o domiacutenio da paixatildeo desenfreada A vida do elemento deflagrador disso tudo um escravo eacute trocada por uma narrativa a dos vizires Nuruddin e Badruddin noites 72-101 na qual o sobrenatural conquanto ocorra com intensidade tem importacircncia secundaacuteria quando comparado com as analogias que ndash estas sim ndash satildeo fundamentais e das quais decorre todo o ldquoespantosordquo e ldquoassombrosordquo dessa histoacuteria

Em seguida tem-se a histoacuteria do corcunda do rei da China noites 102-170 cujas peripeacutecias satildeo notaacuteveis O corcunda eacute morto aparente-mente pela accedilatildeo de um alfaiate que incrimina um meacutedico judeu que por sua vez incrimina um despenseiro muccedilulmano que por sua vez in-crimina um corretor cristatildeo Uma porccedilatildeo de eventos que seria ocioso narrar coloca todos esses homens diante do sultatildeo o qual encolerizado com a perda do seu bufatildeo predileto exige que lhe contem histoacuterias tatildeo espantosas quanto a da sua morte Seguidamente o corretor cristatildeo de-pois o despenseiro muccedilulmano e finalmente o meacutedico judeu contam as suas histoacuterias as quais satildeo consideradas insuficientes e rejeitadas pelo sultatildeo que se limita a dizer a cada um ldquoNatildeo essa sua histoacuteria natildeo eacute es-pantosa como a do corcundardquo Nenhuma das trecircs narrativas observe-se conteacutem nem sobrenatural nem analogias Eacute somente a uacuteltima narrativa do alfaiate ndash que com efeito fora o verdadeiro responsaacutevel pela morte do corcunda ndash repleta de peripeacutecias e de subhistoacuterias que agrada ao sultatildeo e o leva a perdoaacute-los pela suposta morte do corcunda

A avaliaccedilatildeo do sultatildeo pode ser tambeacutem tomada como um guia dos princiacutepios que em uacuteltima instacircncia regiam a valorizaccedilatildeo ou natildeo de uma dada narrativa no contexto das Noites Natildeo seraacute aqui possiacutevel nem se-ria razoaacutevel resumir tais histoacuterias e nos limitaremos a observar que no caso das trecircs narrativas rejeitadas pelo sultatildeo ndash e consequentemente por ele consideradas sem qualidade ndash todas consistem naquilo que hoje

podemos chamar grosso modo de narrativa ldquorealistardquo na qual os eventos se datildeo numa pura relaccedilatildeo de sucessividade natildeo mais Essa pura sucessivi-dade era entatildeo considerada banal e insossa incapaz de levar a surpresa do espantoso e do assombroso ao espiacuterito dos ouvintes Como comparaccedilatildeo seraacute uacutetil pensar na narrativa que antecede a histoacuteria do corcunda a supra-citada histoacuteria dos dois vizires irmatildeo Nuruddin e Badruddin bem como na narrativa que sucede as trecircs fracassadas contada pelo alfaiate

A qualidade da narrativa dos dois vizires reside na incidecircncia ao lado da sucessividade que se espera de qualquer narrativa da simultaneidade Os eventos se datildeo de maneira sucessiva e simultacircnea e tal simultaneidade se reveste de dois aspectos a planejada fruto da urdidura humana e a aleatoacuteria fruto da accedilatildeo do destino Eacute preciso de qualquer modo ler essa histoacuteria em sua totalidade para perceber tal relaccedilatildeo E na histoacuteria narrada pelo alfaiate no interior da qual estaacute a do barbeiro e dos seus seis irmatildeos o que sobressai para aleacutem da simultaneidade verificaacutevel na sucessivida-de dos eventos narrados eacute tambeacutem a repeticcedilatildeo e a acumulaccedilatildeo freneacuteti-ca das peripeacutecias Disso resulta que da perspectiva das Noites o melhor rendimento narrativo estaraacute na exploraccedilatildeo da sucessividade temporal previsiacutevel em qualquer narraccedilatildeo de eventos acompanhada da simulta-neidade (sempre posta em analogia) desses eventos tudo isso na maior quantidade possiacutevel para gerar os efeitos de acumulaccedilatildeo e de repeticcedilatildeo que parecem ser tatildeo apreciados pelos ouvintes e leitores da eacutepoca Tem-se entatildeo que o espantoso e o assombroso de tais narrativas natildeo se encon-tram exatamente nos eventos narrados mas sim na sua disposiccedilatildeo o que faz da proacutepria teacutecnica narrativa a fonte de todos os espantos e de todos os assombros os quais por sua vez satildeo a mateacuteria mesma das reflexotildees do homem sobre a sua condiccedilatildeo e seu mundo consistindo enfim naquilo que nos faz humanos e nas palavras de Alqazwiacuteni vai aleacutem do azul do ceacuteu e da poeira da terra diferenciando-nos dos quadruacutepedes e de outras bestas que infestam nas mais variadas formas o planeta

Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford

Alfredo Cordiviola(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Em uma discreta rua do bairro de Kensington em Londres uma discreta casa conserva a memoacuteria de Frederick Leighton Membro de uma famiacutelia favorecida por sua riqueza e por seus viacutenculos com a aris-tocracia britacircnica Leighton chegou a ser um dos pintores mais consa-grados da eacutepoca vitoriana Honrado com o tiacutetulo de Lord pela rainha e com vaacuterios precircmios nos salotildees anuais de pintura presidente da Royal Academy of Arts Leighton passou longas temporadas de formaccedilatildeo em Roma e em Paris e fez numerosas viagens particularmente pelos pa-iacuteses aacuterabes Esteve na Argeacutelia no Marrocos em Egito no Liacutebano na Turquia da sua viagem a Siacuteria em 1873 trouxe uma magniacutefica coleccedilatildeo de azulejos dos seacuteculos XV e XVI que poucos anos depois serviriam para transformar uma das partes da sua casa em um espaccedilo encantado fruto de outras dimensotildees e de outros mundos

A casa de Kensington foi sua residecircncia e seu estuacutedio tambeacutem um lugar de reclusatildeo para um homem solitaacuterio que cultivava a privacidade e o recato Nesse espaccedilo em 1877 Leighton manda construir o Arab Hall um suntuoso recinto pensado para albergar sua vasta coleccedilatildeo de objetos de arte e curiosidades acumulados em mais de vinte anos de excursotildees por terras distantes Com seus azulejos de Damasco e outras peccedilas tra-zidas de longe (algumas delas aportadas por seu amigo Richard Burton o explorador e tradutor das Mil e uma noites) o Hall foi desenhado pelo arquiteto George Aitchison Tatildeo consagrado pelas instacircncias oficiais como seu cliente Aitchison seria um professor conceituado e presidente do Royal Institute of British Architects mas natildeo se dedicava aos projetos domeacutesticos era especialista em construir os grandes templos que o enge-nho vitoriano e a circulaccedilatildeo do capital demandavam como estaccedilotildees de trem cais de embarque e armazeacutens Neste caso contou com a colaboraccedilatildeo

de destacados ceramistas escultores e artesatildeos que se encarregaram das colunas dos capiteacuteis dos frisos das gelosias e das luminaacuterias que com-punham o cenaacuterio O modelo a ser seguido e livremente adaptado na construccedilatildeo do pavilhatildeo era a Sala della fontana de La Zisa um palaacutecio do seacuteculo XII situado em Palermo na Siciacutelia No sul italiano La Zisa era um produto das muacuteltiplas influecircncias (gregas bizantinas aacuterabes normandas longobardas) que atravessaram o espaccedilo mediterracircneo ao longo dos seacute-culos Na Inglaterra o Hall imaginado por Leighton era uma fantasia ar-quitetural que revelava um gosto de eacutepoca e a evocaccedilatildeo de um lugar de muitos lugares de nenhum lugar denominado ldquoOrienterdquo

Leighton passou os uacuteltimos trinta anos da sua vida na casa rodea-do pela disciplinada beleza das reminiscecircncias chinesas japonesas in-dianas e principalmente aacuterabes que se multiplicavam pelos cocircmodos Objetos moacuteveis e decoraccedilotildees naturalizavam o exotismo e criavam rea-lidades que estavam igualmente distantes do Cairo ou de Sind como da densa atmosfera da industrializaccedilatildeo vitoriana Iacutentimas e privadas essas realidades natildeo eram muito diferentes daquelas que em grande escala eram criadas por essa espetacular invenccedilatildeo do seacuteculo XIX a Exposiccedilatildeo Universal Paraiacutesos da fantasmagoria lugares de peregrinaccedilatildeo para a mercadoria fetiche como definia Walter Benjamin as Exposiccedilotildees Universais constituem a partir do grandioso evento celebrado no Crystal Palace de Londres em 1851 o magno teatro onde se articulam os modos do progresso e da teacutecnica As Exposiccedilotildees reuacutenem o exoacutetico e o visionaacuterio a invenccedilatildeo e a ciecircncia o cataacutelogo das riquezas naturais a serem exploradas pela astuacutecia humana e os curiosos ornamentos e sin-gularidades que as periferias proporcionam Satildeo as vitrines do Impeacuterio onde o Impeacuterio se reconhece e se legitima como motor da Histoacuteria e como garante da ordem mundial Uma casa como a de Leighton pode ser vista como uma versatildeo em miniatura para consumo privado e se-leto desses grandes espetaacuteculos O espaccedilo domeacutestico exclui por defini-ccedilatildeo a participaccedilatildeo das massas e natildeo estaacute pautado pelas maravilhas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica como as feacuterias universais mas pelos usos da arte determinados pelo criteacuterio esteacutetico do colecionador Obedece contudo a um mesmo princiacutepio importar o Outro que eacute trazido de longe como passado convertido em reliacutequia Importar para resignificar o tempo pre-sente e para convalidar assim em acircmbitos amplos ou restritos as hie-rarquias geopoliacuteticas que regem a produccedilatildeo de sentidos na metroacutepole

Essas apropriaccedilotildees de um Oriente transido pela convenccedilatildeo e trans-formado em Outro natildeo obedecem por certo a uma invenccedilatildeo de Leighton e distam muito de ser exclusividade da expansatildeo vitoriana Pelo contraacute-rio o Arab Hall pode ser visto como um exemplo emblemaacutetico de um vasto processo que tinha comeccedilado muito antes e que nesse momento da segunda metade do seacuteculo XIX jaacute estava plenamente consolidado no imaginaacuterio ocidental Com a expansatildeo imperial (inglesa e francesa em particular) e com os fluxos econocircmicos e culturais mobilizados pelo co-lonialismo essa profusa porccedilatildeo do globo que se estende de Tanger ateacute Damasco jaacute vinha despertando ao longo do seacuteculo anterior todo tipo de fasciacutenios e de espantos na cosmovisatildeo europeia Esse incerto Oriente (que podia comeccedilar tambeacutem em Veneza na Espanha na Greacutecia) jaacute fora e con-tinuaria sendo incessantemente descrito por discursos imagens e pres-supostos para consumo domeacutestico das esferas metropolitanas Discursos e imagens que enquanto ampliavam o nuacutemero de informaccedilotildees dados e referecircncias impunham tambeacutem um prisma que delimitava e confirmava as perspectivas e fantasias preestabelecidas Cada vez mais esse Oriente setecentista significava barbaacuterie primitivismo misteacuterio sensualidade in-dolecircncia Nessa trama de postulados e de intervenccedilotildees (que serviriam de antecedentes precisos para a devoccedilatildeo romacircntica e para a imaginaccedilatildeo vitoriana) estatildeo inseridos acontecimentos muito diversos que por sua vez emitem intensas reverberaccedilotildees que seratildeo outra vez recicladas e reinven-tadas em outros domiacutenios Acontecimentos mais ou menos transcenden-tais mais ou menos influentes e tatildeo diversos entre si como a traduccedilatildeo das Mil e uma noites feita a partir de diversos manuscritos antigos e de narra-tivas provavelmente inventadas ou apoacutecrifas por Antoine Galland entre 1704 e 1707 ou as teorias sobre a Histoacuteria de Hegel as escavaccedilotildees arque-oloacutegicas em Palmyra as maquinaccedilotildees de Voltaire as peccedilas de porcelana ilustradas com reminiscecircncias turcas e as pinturas de Van Mour sobre a vida no Impeacuterio Otomano as elucubraccedilotildees dos savants que participaram nas campanhas napoleocircnicas no Egito a odalisca de Ingres E tambeacutem o Vathek de William Beckford

Nascido em Wiltshire em 1760 no seio de uma aristocraacutetica famiacutelia que gerenciava vastas plantaccedilotildees de accediluacutecar na Jamaica Beckford cumpre as etapas caracteriacutesticas da sua classe (educaccedilatildeo esmerada fluecircncia em liacutenguas breve incursatildeo pela poliacutetica participaccedilatildeo no Grand Tour) poreacutem eacute mais conhecido por suas excentricidades que definiam tanto sua vida

privada como tambeacutem sua trajetoacuteria de colecionador literato compositor musical e propulsor de curiosos projetos arquitetocircnicos Destes o mais curioso foi a construccedilatildeo na propriedade familiar da Fonthill Abbey uma fantasia neogoacutetica desenhada pelo arquiteto James Wyatt Construiacuteda com extrema celeridade e inapropriados materiais durante os primeiros anos do seacuteculo XIX a imponente abadia da qual soacute resta uma miacutenima parte foi um monumento de fragilidade que apenas resistiu alguns anos antes de colapsar definitivamente Mais duradoura foi uma torre neoclaacutes-sica em Bath a Landsdown Tower erigida como refuacutegio para si e para suas copiosas coleccedilotildees A torre eacute o uacutenico exemplo dos devaneios ediliacutecios de Beckford que ainda sobrevive Hoje alberga um museu no cemiteacuterio anexo se encontra o tuacutemulo de granito do autor

Heterodoxo e cosmopolita Beckford faleceu em 1844 O obituaacuterio do Bath and Cheltenham Gazette informa que ldquofor more than 40 years he has relinquished Parliamentary honours and other public duties devoting him-self to retirement but not unprofitablyrdquo1 Poderia quiccedilaacute ter sido somente lembrado como um dos tantos diletantes de uma eacutepoca propiacutecia para ex-travagacircncias e hedonismos Mas escreveu o Vathek uma obra lida durante deacutecadas com avidez (entre muitos outros por Byron Keats Swinburne e Mallarmeacute) que aprimorou definitivamente sua fama Foi redigida em pou-cos dias e em francecircs no ano de 1782 e traduzida ao inglecircs em 1786 por Samuel Henley como An Arabian Tale from a Unpublished Manuscript ndash um manuscrito tatildeo imaginaacuterio como as aventuras narradas no romance que ficou rapidamente conhecido pelo tiacutetulo do seu protagonista Como Al-Whatiq o califa dos abaacutessidas do seacuteculo IX em que a personagem estaacute livremente inspirada o califa Vathek estava possuiacutedo por uma vontade ab-soluta de conhecimento que foi como para Fausto primeiro uma virtude e depois sua perdiccedilatildeo Movido por esse afatilde insaciaacutevel o califa renega do Islatilde constroacutei uma torre para adivinhar os segredos do ceacuteu pratica toda classe de maldades e excessos Horrores indefinidos prodiacutegios artes maacutegicas enti-dades malignas e paisagens abissais se multiplicam no seu caminho Viaja procurando algo que natildeo haveraacute de achar por lugares fantaacutesticos e sinistros Apesar de tudo ainda recebe uma uacuteltima chance de se redimir que desper-diccedila A histoacuteria chega assim a um final inevitaacutevel como o narrador informa

1 Bath and Cheltenham Gazette May 8 1844 p 3 Disponiacutevel em Beckfordiana The William Beckford Website (httpbeckfordc18netbeckfordianahtml)

Thus the Caliph Vathek who for the sake of empty pomp and forbidden power had sullied himself with a thousand crimes became a prey to grief without end and remorse without mitigation2

Vathek acaba no inferno nesse inferno subterracircneo que Borges con-siderou o mais atroz de toda a literatura escrita ateacute entatildeo Lembremos que o autor argentino evoca infernos onde acontecem fatos atrozes como o de Dante mas os distingue de infernos que satildeo em si mesmos atrozes como este imaginado por Beckford Nesse sentido o compara com aquelas peculiares gravuras que Piranesi tinha elaborado alguns anos antes a seacuterie das Carceri dacuteinvenzione proacutedigas em estranhos ins-trumentos que parecem maacutequinas de torturas em corredores e esca-darias que natildeo levam a parte alguma em salas labiriacutenticas e em seres fantasmais que deambulam sem propoacutesito pelas sombras3

O breve e pobre resumo do romance que apresentamos no paraacute-grafo anterior omite os esplendores e surpresas as ironias e o erotis-mo que tanto cativaram os leitores mas pelo menos ajuda a instalar o Vathek na encruzilhada de duas tradiccedilotildees a goacutetica e a ldquoorientalistardquo O romance interpela ambas as mitologias e precisamente no modo em que as perpassa reside sua singularidade Passagens subterracircneas seres macabros tensotildees sexuais eventos sobrenaturais e horrores variados conformam a base da literatura goacutetica que se consagra no seacuteculo XVIII a partir da tremenda popularidade atingida pela obra de Horace Walpole O Castelo de Otranto (1764) O revival medievalista jaacute vinha se manifes-tando no paisagismo e na arquitetura em poucas deacutecadas particular-mente na Inglaterra mas tambeacutem na Franccedila na Alemanha e em outras partes da Europa o ldquogoacuteticordquo forneceria durante grande parte do XIX um mecanismo exemplar de reapropriaccedilatildeo e reinvenccedilatildeo de passados e de imaginaacuterias continuidades com o tempo presente Dos apoacutecrifos poemas de Ossian a Tennyson e Walter Scott de Ruskin aos preacute-rafa-elitas atraveacutes do goacutetico e seus apelos se invocava um tempo imutaacutevel em que prevaleciam a espiritualidade e os valores constantes os laccedilos de sangue e a prosaacutepia O goacutetico tambeacutem era um antiacutedoto que protegia

2 Beckford William Vathek Fourth Edition Revised and Corrected London Clarke 1824 p 227

3 Borges Jorge Luis ldquoSobre o Vathek de William Beckfordrdquo em Obras completas Buenos Aires Emeceacute 1986 (p 729-732)

tanto da insensiacutevel frieza das linhas retas cultivadas pelo neoclassicismo quanto das incertezas da industrializaccedilatildeo com suas obscuras paisagens urbanas dominadas pela maacutequina e o carvatildeo Tradiccedilatildeo monarquia na-cionalismo eram evidenciados em forma fantasmaacutetica pelas aboacutebadas pelas torres e agulhas pelos vitrais e pelos interiores altos e luminosos que obrigavam a elevar a visatildeo Natildeo eacute casual que o neogoacutetico passasse a adquirir um estatuto quase hegemocircnico na arquitetura da eacutepoca Nisto Walpole tambeacutem seria pioneiro ao dotar sua mansatildeo de Strawberry Hill com as caracteriacutesticas de outros tempos propiciando um estilo que iria se repetir ateacute a saciedade nas construccedilotildees civis do periacuteodo vitoriano Das Houses of Parliament desenhadas por Augustus Pugin um dos princi-pais expoentes do movimento ateacute os museus estaccedilotildees de trem igrejas e residecircncias particulares cada cidade parecia obrigada a ter seus mo-numentos neogoacuteticos Paradoxalmente essa invocaccedilatildeo do passado era a forma de ser modernos de estar plena e cabalmente inseridos no tempo que correspondia viver o tempo do impeacuterio e da naccedilatildeo triunfantes

Com sua fugaz abadia Beckford tambeacutem pratica esse gesto devocio-nal para o passado Essa construccedilatildeo fazia parte do theatrum mundi insta-lado nos seus domiacutenios de Fonthill A extensa propriedade servia como palco ideal para criar uma aura de privacidade que fomentava os rumores e as censuras da sociedade e para reunir uma das coleccedilotildees de obras de arte mobiacutelia e livros raros mais importantes da sua eacutepoca A abadia livre-mente influenciada pelas catedrais que tanto admirara nas suas estadias em Portugal pode ser vista tambeacutem como uma peccedila de ficccedilatildeo como um reservatoacuterio de tesouros e suntuosidades que concretizava e tornava vi-siacuteveis as incontaacuteveis maravilhas do palaacutecio do califa Vathek A simbiose entre as fantasias goacuteticas e orientais que constituiacuteam o arcabouccedilo do ro-mance se materializava assim mais uma vez aquela simbiose de palavras agora estava feita de pedras ornamentos e ostentaccedilotildees em fim

Eacute evidente que se Vathek incorpora e prefigura a vocaccedilatildeo pelo goacutetico por sua temaacutetica sua atmosfera e seus personagens manifesta tambeacutem um iacutempar fasciacutenio pelo Oriente Um fasciacutenio que se refletia no modo de vida e nas preferecircncias esteacuteticas do seu autor mas que natildeo obedecia ape-nas a um gosto iacutentimo nem a uma mera extravaganza Pelo contraacuterio do seacuteculo XVIII ao XIX esse interesse pelos orientes da imaginaccedilatildeo fa-zia parte do Zeitgeist e teria tatildeo longas repercussotildees como as produzidas pela redescoberta do goacutetico Se o Arab Hall de Leighton era um exemplo

concreto e superabundante desse interesse eacute tambeacutem a prova de que o Oriente evocado pelas andanccedilas e o traacutegico final de Vathek continuava mais vivo do que nunca vaacuterias deacutecadas depois da apariccedilatildeo do romance Mas seria um erro pensar que se tratava simplesmente de uma moda ou de uma frivolidade passageira Se neogoacuteticos e orientalismos deixam sua marca na literatura nos edifiacutecios nos haacutebitos nos artefatos e nas artes visuais eacute porque fornecem o mais apropriado dos espelhos onde a eacutepoca se vecirc a si mesma do modo em que precisa se ver hierarquizando passados legitimando presentes e subalternizando o Outro

Nessas composiccedilotildees de identidades e de diferenccedilas cabe ao ldquoOrienterdquo cumprir um papel fundamental Os escritos de Edward Said4 muito tecircm contribuiacutedo para mapear e desmontar os fundamentos epistemoloacutegicos que sustentam essas composiccedilotildees Criticado por enfatizar dicotomias e praticar reducionismos natildeo haacute como negar que Said constitui referecircncia inevitaacutevel quando se trata de reelaborar a mecacircnica do mesmo e do outro que define saberes e praacuteticas emanadas na oacuterbita dos imperialismos Uma mecacircnica que adquire conotaccedilotildees peculiares no contexto da modernidade iluminista quando a ldquoEuropardquo se consagra a si mesma como estaacutegio mais avanccedilado da evoluccedilatildeo uniacutevoca e linear da espeacutecie humana e a globalizaccedilatildeo depende do comeacutercio escravagista o racismo comeccedila a ser legitimado pelo discurso cientiacutefico e expediccedilotildees como a de Cook e Bouganville parecem completar a inspeccedilatildeo e o ldquodescobrimentordquo de todo o planeta Uma mecacircnica contudo que remete a tempos conflitos e dominaccedilotildees anteriores e que no seacuteculo XVIII jaacute contava com uma longa histoacuteria

A partir dos desdobramentos dessa longa histoacuteria (que eacute a histoacuteria da expansatildeo do ldquoOcidenterdquo pelo Mediterracircneo e pelo mundo) certas ideias sobre outras regiotildees e outras culturas do planeta vatildeo lentamente se legitimando mediante as mais diversas descriccedilotildees e representaccedilotildees Versotildees oferecidas pelos relatos dos viajantes pelos desenhos dos car-toacutegrafos pelas definiccedilotildees dos historiadores e teoacutelogos pelas paraacutebolas e ficccedilotildees contribuem para forjar diversas imagens homogecircneas das terras e das populaccedilotildees situadas nos antiacutepodas de locais de enunciaccedilatildeo que se concebem a si mesmos por mandato divino por dominacircncia militar ou por ambas as coisas como expressatildeo de uma superioridade civilizatoacuteria

4 Em particular Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001) e Cultura e imperialismo (Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995) O primeiro foi originalmente publicado em 1978 e o segundo em 1993

Essas imagens que traccedilam fronteiras e estabelecem oposiccedilotildees e anti-nomias haveratildeo de adquirir uma dimensatildeo muito mais hegemocircnica e de alcance global quando a partir do seacuteculo XV a ocidentalizaccedilatildeo passa a ser o motor central da geopoliacutetica planetaacuteria A expansatildeo europeia e a con-solidaccedilatildeo de uma modernidade capitalista intimamente vinculada com o colonialismo redefinem mais uma vez e com profundas consequecircncias ulteriores as hierarquias entre as partes do mundo Seraacute esse um mun-do definido e naturalizado como assimeacutetrico e marcadamente dicotocircmi-co pelo conjunto de discursos e praacuteticas que configuram isso que Aniacutebal Quijano denomina colonialidade Enquanto o colonialismo (o efetivo do-miacutenio poliacutetico e econocircmico) eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da colonialida-de esta garante a produccedilatildeo e a perduraccedilatildeo dos pressupostos simboacutelicos e epistemoloacutegicos que asseguram e consolidam a dominaccedilatildeo A coloniali-dade estabelece matrizes de poder relativas agrave produccedilatildeo de conhecimento agraves relaccedilotildees de trabalho e aos viacutenculos intersubjetivos que excedem a de-finiccedilatildeo de soberania de uma naccedilatildeo sobre outra e que perduram mesmo depois dos processos de independecircncia que marcam a histoacuteria das antigas colocircnias durante os seacuteculos XIX e XX Assim o colonialismo antecede agrave colonialidade e propicia sua disseminaccedilatildeo pelas sociedades mas a colo-nialidade natildeo desaparece com a ruptura da ordem imperial nem com a emergecircncia do estado-naccedilatildeo autocircnomo Desta forma uma noccedilatildeo como a de ldquopureza de sanguerdquo que subalterniza os indiviacuteduos e lhes impotildee um lugar determinado na trama social e a ideia de ldquoeurocentrismordquo que ex-pande a subordinaccedilatildeo no plano global satildeo dois dos instrumentos que a colonialidade inserta no sistema-mundo O racismo impotildee um criteacuterio de classificaccedilatildeo universal cujo fundamento uacuteltimo eacute o eurocentrismo Como afirma Quijano

El eurocentrismo por lo tanto no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o soacutelo de los dominantes del capitalismo mundial sino del conjunto de los educados bajo su hegemoniacutea Se trata de la perspectiva cog-nitiva producida en el largo tiempo del conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonialmoderno y que naturaliza la experiencia de las gentes en este patroacuten de poder5

5 Quijano Anibal ldquoColonialidad del Poder y Clasificacioacuten Socialrdquo em Castro-Goacutemez Santiago Grosfoguel Ramoacuten (eds) El Giro Decolonial reflexiones para una di-versidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo global Bogotaacute Pontificia Universidad Javeriana 2007 (p93-126 p 94)

O revivalismo goacutetico e o deslumbramento orientalista natildeo podem ser percebidos fora desses paracircmetros culturais impostos pelo eurocen-trismo e a expansatildeo do ldquoOcidenterdquo Os impeacuterios consolidados e emer-gentes se deixam seduzir por outros lugares e outros tempos enquan-to postulam um padratildeo de universalidade que atende a seus proacuteprios interesses O ldquoOrienterdquo as chinoiseries a seda o chaacute e a porcelana os enigmas e o algodatildeo da Iacutendia as estampas japonesas satildeo incorporados assim a um fluxo de apreciaccedilotildees e de demandas Seria injusto contudo supor que essas apropriaccedilotildees se reduzem agrave perpeacutetua fetichizaccedilatildeo da di-ferenccedila ou que satildeo uma simples consequecircncia da necessidade capitalista de abrir novos mercados Como em todo tracircnsito promovido pelas di-versas e progressivas mundializaccedilotildees da histoacuteria a operacionalizaccedilatildeo do perifeacuterico dentro das oacuterbitas centrais por um lado confirma o estereoacuteti-po e impotildee o recurso da miacutemica mas pode acabar tambeacutem provocando uma ampliaccedilatildeo das fronteiras do cognosciacutevel um elogio da margem e um questionamento do monologismo

Algo disto haacute no Vathek poderia ter sido um de tantos romances previsiacuteveis e acaba sendo um exemplo de heterotopia que parece implo-dir desde dentro mesmo das convenccedilotildees goacuteticas e orientalistas os luga-res comuns de toda enunciaccedilatildeo Talvez seja um exerciacutecio feito por um excecircntrico ocioso e libertino uma obra quiccedilaacute menor que na histoacuteria das letras represente como escreve Borges ldquothe perfume and suppliance of a minuterdquo Mas com sua cornucoacutepia de dicccedilotildees imagens e mitologias eacute tambeacutem um texto que foi replicado transformado e dissolvido em outras obras e por outros autores que no seacuteculo XIX ampliaram as pos-sibilidades da literatura e as possibilidades que a literatura dispotildee para inventar e descrever o real Algo do Vathek estaacute em Coleridge em de Quincey em Baudelaire em Burton em Wells Algo do Vathek perdura nos umbrosos neogoacuteticos de proviacutencia e no refinado sossego da casa de Leighton Ou nas vozes e expectativas que parecem ecoar diante de cada novo leitor das Mil e uma noites E tambeacutem nas conotaccedilotildees cer-tamente mais complexas e mais polissecircmicas que a palavra ldquoOrienterdquo foi adquirindo no mundo Natildeo eacute pouco para um mero romance que foi escrito em um lugar chamado Fonthill em trecircs dias e duas noites daquele remoto ano de 1782

O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente

Andreacute de Sena(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco Belvidera)

De maneira ostensiva ou praesentia in absentia eacute fato que o Oriente veio revelando vaacuterios de seus prismas jaacute nas pioneiras manifestaccedilotildees literaacuterias em acircmbito ocidental natildeo raras vezes fomentando incoacutegnitas O personagem Dioniso de As bacantes (406 aC) de Euriacutepides ndash apenas um dentre os vaacuterios exemplos que se poderia enumerar no espectro do mais puro aticismo ndash nos serviria de iacutecone para este precursor fasciacutenio que o meacutedio Oriente suscitou ainda nos tempos claacutessicos carnalizan-do os misteacuterios e belezas ora sedutores ora aterrorizantes da ldquoditosa Araacutebiardquo (Euriacutepedes 2004 p 220) Natildeo agrave toa eacute Dioniso ndash filho de Zeus mas educado por ninfas asiaacuteticas ndash o conhecido potencializador de ele-mentos maacutegicos e estranhos da fase heroica dos Hinos homeacutericos aos palcos traacutegicos da era de Peacutericles sem contar com sua presenccedila como motivo plaacutestico nos famosos vasos negros de figurinhas vermelhas A trageacutedia euripidiana apesar de propalar a noccedilatildeo de meacutetron de respei-to humano agraves hierarquias divinas estaacute repleta de acontecimentos que ensaiam a ruptura da propalada verossimilhanccedila associada agrave miacutemese aristoteacutelica veras fantasmagorias que vatildeo do controle telepaacutetico do deus em relaccedilatildeo ao coro das bacantes passando pelas sugestotildees do insoacutelito (terremotos incecircndios mutaccedilotildees fiacutesicas e efeitos oacuteticos que confundem os outros personagens) ateacute o elogio da licantropia

Se Pembroke (1998 p 356) afirma que as dinastias que precederam Zeus na Teogonia hesioacutedica teriam como provaacuteveis modelos mitos me-sopotacircmicos e anatoacutelicos por sua vez Momigliano (1998 p 184) argu-menta que foram os contatos com naccedilotildees orientais que deram impulso ao proacuteprio surgimento da historiografia grega Assim a ponte que vai do mythos ao logos na mundivisatildeo ocidental tem no Oriente um de seus encraves Natildeo eacute por outro motivo que Platatildeo nrsquoA repuacuteblica em meio agraves

discussotildees filosoacuteficas referentes agrave origem e essecircncia da Justiccedila vista como um bem em si natildeo prescindiraacute da utilizaccedilatildeo do mito ndash no caso um que tem a Liacutedia como cenaacuterio principal caminho atraveacutes do qual os gregos entraram em contato com o Oriente proacuteximo sua tirania riquezas e ma-gia ndash para ilustrar sua argumentaccedilatildeo repleto de elementos maravilhosos

A permissatildeo a que me refiro seria especialmente significativa se eles [o justo e o injusto] recebessem o poder que teve outrora segundo se conta o antepas-sado de Giges o Liacutedio Este homem era pastor a serviccedilo do rei que naquela eacutepoca governava a Liacutedia Certo dia durante uma violenta tempestade acom-panhada de um terremoto o solo fendeu-se e formou-se um precipiacutecio perto do lugar onde o seu rebanho pastava Tomado de assombro desceu ao fundo do abismo e entre outras maravilhas que a lenda enumera viu um cavalo de bronze oco cheio de pequenas aberturas debruccedilando-se para o interior viu um cadaacutever que parecia maior do que o de um homem e que tinha na matildeo um anel de ouro de que se apoderou depois partiu sem levar mais nada Com esse anel no dedo foi assistir agrave assembleacuteia habitual dos pastores que se reali-zava todos os meses para informar ao rei o estado dos seus rebanhos Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros virou sem querer o engaste do anel para o interior da matildeo imediatamente se tornou invisiacutevel aos seus vizinhos que falaram dele como se natildeo encontrasse ali Assustado apalpou novamen-te o anel virou o engaste para fora e tornou-se visiacutevel Tendo-se apercebido disso repetiu a experiecircncia para ver se o anel tinha realmente esse poder reproduziu-se o mesmo prodiacutegio virando o engaste para dentro tornava-se invisiacutevel para fora visiacutevel [] (Platatildeo 1999 p 44-45)

O mesmo fasciacutenio que jamais se desobrigou da atraccedilatildeo pelo estra-nho se aprofundaraacute ainda mais durante o culto periacuteodo alexandrino em que se conjugaram como nunca Ocidente e Oriente ateacute desembocar no fausto das cortes romanas o imperador Filipe (244-249 dC) era aacutera-be e como lembra Irwin (2008 p 26) uma das Saacutetiras de Juvenal acusa ironicamente esta influecircncia do Oriente no Ocidente na etapa latina ao afirmar que ldquoo rio Orontes [um rio na Siacuteria] veio desaguar no Tibrerdquo

Na Idade Meacutedia por exemplo os textos teoacutericos de Dante acusam a leitura e a influecircncia de Averroacuteis (um dos maiores comentadores de Aristoacuteteles) e Avicena As obras deste uacuteltimo comeccedilaram a ser traduzidas do aacuterabe ao latim em Toledo e refletiram-se em inuacutemeros outros livros gerados nas universidades de Oxford e Paris com o detalhe de que boa parte da ciecircncia islacircmica conforme Irwin (p 41) natildeo configuraria exata-mente lsquociecircnciarsquo como hoje a compreendemos muitos textos originais aacutera-bes eram dedicados agrave ldquoastrologia alquimia numerologia omplatoscopia

(adivinhaccedilatildeo a partir das rachaduras nos ossos calcinados de carneiros) geomancia (adivinhaccedilatildeo a partir de marcas na areia) haruspicaccedilatildeo (adi-vinhaccedilatildeo a partir de entranhas) e praacuteticas obscuras de natureza semelhan-terdquo O estudo da matemaacutetica aacuterabe servia para a arquitetura baliacutestica e engenharia mas tambeacutem como auxiliar da astrologia e todo um pensa-mento maacutegico ligado a uma natureza fantaacutestica que aceitava a existecircncia de talismatildes maacutegicos e receitas para venenos que podiam atuar a grandes distacircncias Segundo Irwin (p 42) o poliacutemata Abu Yusuf Yaqub ibn Ishaq Al-Kindi que viveu em Bagdaacute no seacuteculo IX era um dos autores mais lidos e admirados no periacuteodo medieval pelos saacutebios europeus e boa parte de sua obra se baseava em princiacutepios maacutegicos

Em De Radiis (ldquoSobre os raiosrdquo) tratado que sobreviveu [nos dias atuais] somente em sua traduccedilatildeo latina do seacuteculo XII Al-Kindi expocircs uma visatildeo essencialmente maacutegica do universo na qual radiaccedilotildees ocultas provenientes dos astros influenciavam os assuntos humanos Cada astro exercia uma in-fluecircncia sobre um grupo especiacutefico de objetos Embora os raios estelares fos-sem de suma importacircncia tudo no universo emitia raios Do mesmo modo segundo De Radiis as palavras possuiacuteam poderes maacutegicos especialmente se fossem proferidas sob conjunccedilotildees estelares particularmente favoraacuteveis e associadas ao uso de imagens talismacircnicas e ao sacrifiacutecio de animais com finalidade maacutegica [] Outras obras de al-Kindi que foram traduzidas trata-vam da astrologia e do poder de previsatildeo dos sonhos (p 42)

Tais prospecccedilotildees haveriam de influenciar o pensamento miacutestico e a sabedoria hermeacutetica de autores europeus da dimensatildeo de um Nicolau de Cusa (1401-1464) e um Pico della Mirandola (1463-1494) funda-mentais para a filosofia renascentista Do universo da teacutecnica ao plano das ideias a influecircncia aacuterabe foi decisiva e natildeo se pode perder de vista ainda a possibilidade de que a ciecircncia lsquomaacutegicarsquo registrada pela erudiccedilatildeo aacuterabe do medievo tambeacutem tenha se infiltrado em suas produccedilotildees liga-das ao orbe ficcional ndash ao menos tal como hoje o compreendemos

As tentativas proto-renascentistas de Toledo ndash mais proacuteximas do uni-verso da liacutengua portuguesa ndash plasmadas nas traduccedilotildees e difusatildeo da ciecircn-cia e alquimia aacuterabes na passagem da Alta para a Baixa Idade Meacutedia tive-ram ampla repercussatildeo no Ocidente Ainda segundo o orientalista Irwin (p 43) dada a quantidade de material ocultista sendo traduzida e estuda-da em Toledo a cidade acabou adquirindo uma reputaccedilatildeo para a feiticcedilaria e a magia negra (fato aludido por exemplo em liacutengua portuguesa no

teatro de Gil Vicente vide o Auto das fadas uma das peccedilas mais lsquofantaacutes-ticasrsquo da produccedilatildeo vicentina de 1511) E natildeo eram apenas textos ocultis-tas que vinham sendo decodificados em Toledo sabe-se que na corte de Afonso X o Saacutebio havia uma traduccedilatildeo de contos orientais maravilhosos pertencentes ao ciclo hindu do Panchatantra (200 aC) que provava a existecircncia naquele lugar de um puacuteblico aacutevido natildeo apenas pela poesia galaico-portuguesa especialmente a de cunho marianista mas tambeacutem pela fantasia orientalista Muitos autores do Ocidente influenciar-se-atildeo pelos estilos narrativos do Oriente a exemplo do catalatildeo Raimundo Luacutelio (1232-1315) autor de Blanquerna segundo Irwin (p 58) obra composta numa narrativa ldquodivaganterdquo ldquojuncada de faacutebulas e contos a maior parte dos quais parece derivar de originais aacuterabesrdquo conhecidos pelo ldquoencaixe de histoacuteriasrdquo e Bocaccio (1331-1375) cujo Decameratildeo apresenta diversos intertextos com o Livro das mil e uma noites

As contaminaccedilotildees intertextuais natildeo param por aiacute Eacute conheci-da a pletora miacutetica que a obra de viajantes como Sir John Mandeville Ludovico Varthema Marco Polo (que levou o Oriente para aleacutem do Oriente) e outros trouxe agrave luz do dia ainda no periacuteodo medievo cor-roborando mutatis mutandis na criaccedilatildeo de um Oriente maravilhoso gerador de outras regras naturais

Tais maravilhas descritivas chegavam inclusive a ser atestadas com as memorabilia coletadas durante as viagens e trazidas agrave Europa para cons-tituir as primeiras vitrines de maravilhas ou gabinetes de curiosidades precursores dos museus modernos nos seacuteculos XVII e XVIII ldquocoleccedilotildees de artefatos raros antiguidades e simulaccedilotildees de monstros pela arte da ta-xidermiardquo (Irwin p 66) O imaginaacuterio miacutetico orientalista tambeacutem estava presente na literatura em liacutengua portuguesa como eacute prova novamente a obra de Gil Vicente que situa seu monstro Monderigon da Comeacutedia sobre a divisa da cidade de Coimbra (1527) como oriundo dos ldquodesertos da Armecircniardquo e a estranha taccedila que D Duardos exibe e atraveacutes da qual en-canta Fleacuterida em Dom Duardos (1522) como vinda da Turquia

Somando-se outras inuacutemeras obras que constituiacuteram gecircneros hiacute-bridos entre as narrativas informativas de viagem e a ficccedilatildeo fantaacutesti-ca escritas por aventureiros (aventura no melhor sentido da palavra incluindo o literaacuterio) da eacutepoca renascentista que insistiam em revelar as espantosas maravilhas do Oriente (Giambattista Ramusio Samuel Purchas Jean Thenaud Pierre Belon Ogier Ghiselin de Busbecq Nicolas

de Nicolay Guillaume Postel etc) observa-se a gradual constataccedilatildeo da existecircncia concreta de um espaccedilo fiacutesico que parecia natildeo se submeter agraves leis naturais vigentes na banda ocidental Segundo Irwin (p 86)

O Oriente era superior ao Ocidente porque o paraiacuteso terrestre tinha se lo-calizado laacute [Postel] citava comprovaccedilotildees da excelecircncia oriental como por exemplo o borametz um arbusto oriental que dava cordeiros como frutos ou outra aacutervore oriental que produzia patildeo vinho seda vinagre e oacuteleo (Pico della Mirandola abrigava noccedilotildees vagamente semelhantes acerca do Oriente pois acreditava que o sol era mais forte na parte leste do mundo onde pro-duzia pedras preciosas perfumes leotildees tigres e elefantes)

Natildeo custa lembrar que os proacuteprios aacuterabes desenvolviam suas nar-rativas de viagem repletas de elementos sobrenaturais e maacutegicos tam-beacutem compondo gecircneros hiacutebridos e assegurando uma visatildeo e um anseio mais utoacutepicos (sendo a utopia atemporal mesmo que empiricamente localizaacutevel no tempo e no universo das ideias) do que propriamente a configuraccedilatildeo de um zeitgeist medievalrenascentista numa relaccedilatildeo de ontologia No tratado geograacutefico Peacuterola de espantos e singularidades de assombros observa-se a possibilidade de um oriente maacutegico aos proacute-prios aacuterabes associado agrave China Segundo Jarouche (2010 p 40) texto de autoria duvidosa cuja elaboraccedilatildeo se situa entre os seacuteculos XIV e XV traz a expressatildeo ldquoChina da Chinardquo semelhante a outra que aparece no Livro das mil e uma noites (ldquoNas peniacutensulas da Iacutendia e da Indochinardquo) revelando todo um imaginaacuterio ligado agraves regiotildees extremas do globo O proacuteprio Jarouche (2010 p 40) traduz trechos deste tratado numa nota de sua ediccedilatildeo das Noites nos quais podemos observar esta percepccedilatildeo de lsquoorientalismo dos orientaisrsquo tambeacutem eivado de histoacuterias maravilhosas

Quanto agrave China da China ela fica no fim do mundo a Oriente natildeo existindo depois dela senatildeo o mar oceano A capital da Grande China se chama Assilagrave As notiacutecias desse povo natildeo nos chegam devido agrave grande distacircncia e conta-se que o rei deles caso natildeo tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas natildeo eacute considerado rei E se o rei deles tiver muitos filhos e morrer seu reino natildeo seraacute herdado senatildeo por aquele que for o mais haacutebil na pintura e no desenho

Em seu excelente estudo intitulado Pelo amor ao saber (2006) que visou revelar um orientalismo diverso do olhar negativista sobre o tema a exemplo do proposto por Edward Said na obra Orientalismo (1978)

Robert Irwin analisou vaacuterias etapas histoacutericas e as leituras distintas que as mesmas propuseram em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves realidades poliacutetica soacutecio-econocircmica e antropoloacutegica dos povos aacuterabes mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave sua literatura Por exemplo a par de um crescente domiacutenio da liacutengua aacuterabe por parte dos filoacutelogos renascentistas e posteriormente iluministas observou-se tambeacutem a necessidade de compreender a rica literatura oriental (incluindo-se a persa) num amaacutelgama com os gecircne-ros e formas claacutessicas que vinham sendo retomados atraveacutes da imitatio classicista num momento em que as proacuteprias liacutenguas vernaacuteculas euro-peacuteias eram confrangidas pela superioridade cientiacutefica do latim

Quando nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XVIII William Jones traduziu obras aacuterabes e persas com o objetivo de apresentaacute-las a um puacuteblico inglecircs era inevitaacutevel que tentasse adequar as estrofes orientais aos gecircneros claacutessicos e assim ele se entusiasmava com ldquopastoraisrdquo ldquoeacuteclogasrdquo persas e assim por diante [] Por outro lado quem estava entediado com as grandes obras da antiguidade e achava que as artes e os conhecimentos dos antigos gregos e romanos tinham sido supervalorizados (e esses eram uma minoria vocife-rante) agarrava-se agrave literatura oriental como algo que fornecia um tesouro de novas imagens modos de expressatildeo e heroacuteis que poderiam proporcionar uma fuga agraves restriccedilotildees dos precedentes claacutessicos (Irwin p 103)

Contudo aos poucos e apesar da normatividade tiacutepica destas eacutepocas uma nova percepccedilatildeo de que outros gecircneros e formas literaacuterias poderiam ampliar a visatildeo artiacutestica foi se consolidando entre o puacuteblico leitor culto Na fase iluminista a descoberta do Livro das mil e uma noi-tes pelo Ocidente associou-se entre outros exemplos agrave assimilaccedilatildeo de Shakespeare por Lessing e de Rousseau por Herder fazendo brotar os primeiros veios das correntes preacute-romacircnticas Isso eacute corroborado por Kidson (p 418) quando afirma

Essa mudanccedila de fidelidade coincidiu com uma alteraccedilatildeo resoluta nas refle-xotildees sobre o que eacute ou natildeo eacute arte e sobre seu lugar no espectro da experiecircncia humana Ateacute o seacuteculo XVIII a teoria artiacutestica preocupara-se de modo mais ou menos exclusivo com a noccedilatildeo do ideal que em certo sentido se traduzi-ria como a pretensatildeo de conhecimento do mundo

Foi entatildeo com o despertar do que este criacutetico chama de ldquoo ele-mento subjetivo da experiecircncia esteacuteticardquo que o maravilhosofantaacutes-tico oriental veio se consolidar peremptoriamente no imaginaacuterio

artiacutestico do Ocidente Daacute-se uma aparente contradiccedilatildeo apoacutes o livro de Winckelmann sobre a cultura claacutessica ldquoa curiosidade que jaacute esta-va levando os europeus a se lanccedilarem em busca da arte grega genuiacutena tambeacutem os levou a outros lugares e logo os colocou diante de obras de imaginaccedilatildeo agraves quais simplesmente natildeo se aplicava o acervo de ideias criacuteticas que haviam herdadordquo (Kidson p 437)

Nesta busca muito contribuiacuteram dois autores franceses que no iniacutecio do seacuteculo XVIII realizaram duas grandes experiecircncias ligadas agrave literatura oriental admiradas pelos leitores da eacutepoca O primeiro foi Bartheacuteleacutemy drsquoHerbelot (1625-1695) com sua Bibliothegraveque orientale uma das maiores coletacircneas de textos em prosa e poesia vertidas do aacuterabe no Ocidente O segundo ainda mais importante (mas cuja obra teve o terreno preparado pela Bibliothegraveque) foi Antoine Galland (1646-1715) com sua famosa traduccedilatildeo do Livro das mil e uma noites em tomos publicados de 1704 a 1707 Pode-se dizer que a traduccedilatildeo de Galland ndash a que se somaram outras como a capitaneada em liacutengua inglesa por sir William Hay Macnaghten entre 1814 e 1818 a ediccedilatildeo alematilde de Breslau em doze volumes organizada por Maximilian Habicht e Heinrich Fleischer (entre 1825 e 1843) a de Edward William Lane que saiu entre 1838 e 1841 a do aventureiro e diplomata sir Richard Burton (1885) ndash inspiraraacute todo o preacute-romantismo e romantismo europeus e serviraacute como uma das fontes para o surgimento tanto da novela goacutetica como do fantaacutestico setecentista e oitocentista Como afirma Irwin (p 141) DrsquoHerbelot e Galland foram os primeiros orientalistas a se dedicar com seriedade agrave literatura secular do Oriente Meacutedio e a traduccedilatildeo de Galland das Noites tornou-se rapidamente um enorme sucesso de vendas sendo logo convertida para outros idiomas europeus O mais interessante eacute que Galland acalentava uma certa visatildeo antropoloacutegica em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites indiretamente corroborando (ou quando muito sugerindo) aquela naturalidade da sobrenaturalidade delegada ao Oriente pelos autores ocidentais do medievo e do Renascimento em pleno contexto racionalista Segundo Irwin (p 141)

[Galland] pretendia que sua traduccedilatildeo da coleccedilatildeo de histoacuterias medievais [das Noites] fosse natildeo apenas uma diversatildeo literaacuteria mas tambeacutem uma obra de instruccedilatildeo que informaria aos leitores como era o modo de vida dos povos orientais e com esse objetivo inseriu numerosos comentaacuterios explicativos em sua traduccedilatildeo Na introduccedilatildeo ao primeiro volume ele escreveu que parte

do prazer de ler essas histoacuterias estava em tomar conhecimento ldquodos costu-mes e maneiras dos orientais bem como das cerimocircnias tanto pagatildes como maometanas pois essas coisas estatildeo mais bem descritas nesses contos que nos relatos de escritores e viajantesrdquo

Eacute bem conhecida a influecircncia que o Livro das mil e uma noites operaraacute nas primeiras narrativas goacuteticas sendo o caso de Vathek de William Beckford o mais paradigmaacutetico (Beckford por sinal estudava o aacuterabe e chegou a traduzir alguns trechos das Noites sendo por algum tempo detentor de um dos mais importantes manuscritos deste livro atualmente guardado na Biblioteca Bodleiana de Oxford) Teoacutericos des-tacados do primeiro romantismo alematildeo (ciacuterculo de Jena) a exemplo de Friedrich Schlegel que definiram pioneiramente o proacuteprio movimento eram grandes conhecedores da obra e a liam no original aacuterabe A lis-ta de autores romacircnticos e fantaacutesticos que buscaram atraveacutes da visatildeo libertaacuteria proporcionada pela literatura aacuterabe e mais especificamente o Livro das mil e uma noites a possibilidade de criaccedilatildeo de seus proacute-prios temas personagens e enredos mirabolantes eacute infinita Potocki Byron Chateaubriand Coleridge Gautier Nerval Tieck Jean-Paul Hoffmann Poe Carvalhal Borges eacute mais difiacutecil encontrar quem natildeo tenha homenageado o Oriente em suas obras ligadas ao fantaacutestico do que o contraacuterio e mais de uma tese jaacute deve ter sido escrita sobre o tema Essa influecircncia eacute em grande parte citada literalmente ou entatildeo traba-lhada na forma de intertextos reescrituras e ateacute paroacutedias

Todorov na Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica se mostra inquieto di-versas vezes em relaccedilatildeo agrave classificaccedilatildeo das Noites tratando-as como ldquocontos maravilhosos mais do que contos de fadasrdquo (2007 p 60) ressaltando-lhes os aspectos de ldquomaravilhoso hiperboacutelicordquo (em que ldquofenocircmenos satildeo sobrenatu-rais soacute por suas dimensotildees superiores agraves que nos resultam familiaresrdquo ndash p 60) ldquomaravilhoso exoacuteticordquo (nos ldquoacontecimentos sobrenaturais [que apare-cemsatildeo descritos] sem apresentaacute-los como taisrdquo ndash p 61) ldquomaravilhoso ins-trumentalrdquo (na existecircncia de ldquoadiantamentos teacutecnicos irrealizaacuteveis na eacutepoca descrita mas depois de tudo perfeitamente possiacuteveisrdquo ndash p 62) e assim por diante O criacutetico buacutelgaro analisa ainda a linguagem e os procedimentos nar-rativos das Noites prenhes de sugestotildees fantaacutesticas e maravilhosas (efetiva-mente mais maravilhosas do que fantaacutesticas segundo sua teoria) e por fim chega agrave constataccedilatildeo de que exigiriam ldquoum estudo especialrdquo (p 60) que seria hipoteticamente escrito noutra ocasiatildeo

A associaccedilatildeo de Todorov das Noites a um princiacutepio maravilhoso estaacute a meu ver correta Mas ndash poderiacuteamos acrescentar ndash um maravilhoso que por sua vez fecundou o fantaacutestico se nos reportarmos novamente agraves cha-ves de leitura deste autor Como dito a influecircncia que as Noites exerceram na imaginaccedilatildeo literaacuteria setecentista e oitocentista chegando agrave contempo-raneidade eacute clara visto que a maior parte dos procedimentos narrativos e de um imaginaacuterio desconstrutor da noccedilatildeo cartesiana de real ndash apesar da jaacute propalada naturalidade da sobrenaturalidade (ldquosobre-humanidaderdquo na boa expressatildeo cunhada pelo tradutor brasileiro das Noites Mamede Mustafa Jarouche durante sua conferecircncia no 2ordm CLIF-PE noccedilatildeo de uma medida acima do humano mas dentro da natureza) existente no contexto do original aacuterabe que aparece natildeo raro sob a forma chistosa ndash tiacutepicos do modo fantaacutestico jaacute estatildeo presentes na obra Em suma o Livro das mil e uma noites antecipa padrotildees e caracteriacutesticas caros ao discurso fantaacutestico dentre os quais poderiacuteamos enumerar alguns

bullcerta visatildeo associada a um estranhamento pela repeticcedilatildeo de acontecimentos

bullo inesperado o inusitado

bulla completa quebra da verossimilhanccedila e decoro classicistas funda-mentais para a compreensatildeo de uma lsquonovarsquo verossimilhanccedila imanen-te agrave obra literaacuteria

bullo chiste a metalinguagem o prazer da e pela narrativa (lembremo-nos do caso do xeique que tendo poupada sua vida por um agressivo ifrit opta em permanecer no local em que seria morto apenas pelo pra-zer de ouvir novas histoacuterias de outros condenados que tambeacutem tenta-vam pela narrativa de suas proacuteprias aventuras delirantes se salvar)

bullas relaccedilotildees inusuais (infinitas bastando-nos lembrar do caso dos peixes coloridos que toda vez que eram postos numa panela inicia-vam a falar ao tempo que se abria uma fenda na parede e dela saiacutea uma estranha mulher repetidamente mas sem elos causais explici-tados no texto gerando-se percepccedilotildees e sugestotildees aleatoacuterias) tais re-laccedilotildees tambeacutem adentram o territoacuterio das metaacuteforas poeacuteticas ainda mais evidenciadas pelas traduccedilotildees em outros idiomas que custam a chegar ao sentido original do aacuterabe (veja-se a descriccedilatildeo de uma per-sonagem atraveacutes de siacutemiles aparentemente esdruacutexulos mas capazes

de despertar novas imagens poeacuteticas ldquoEla fazia o sol iluminado se envergonhar e parecia uma estrela brilhando no alto ou um pavilhatildeo de ouro ou uma noiva desvelada ou um peixe egiacutepcio na fonte ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite []rdquo ndash 2010 p 113)

bulla mistura de reinos (lembremo-nos do priacutencipe que era metade hu-mano metade pedra negra) o grotesco

bullreinvenccedilotildees e relativizaccedilotildees do tempo (num dos melhores episoacute-dios das Noites tenta-se recriar perfeitamente em todos os detalhes um dia completo do passado ocorrido 12 anos antes) quebras tem-porais e de espaccedilo nonsense exaltaccedilatildeo do novo e do excecircntrico pela viagem o inquietante familiar (no sentido do unheimlich freudiano a exemplo da descoberta de novas e insuspeitas paisagens numa geo-grafia ateacute entatildeo considerada familiar e totalmente apreendida nova-mente no caso do lago dos peixes coloridos)

bullexerciacutecio do coloquialismo cultura popular possiacuteveis leituras textu-ais moralistas e alegoacutericas que contudo natildeo eclipsam o sentimento do estranho e do fantaacutestico sentimento de infinito atraveacutes de uma histoacuteria infinita gerada pelo gecircnio imaginativo de Sahrazad (noccedilatildeo de partes distintas relatos diversos ndash incluindo a mistura de gecircneros poesia e prosa bem como prosa poeacutetica ndash enfeixados num todo que eacute coeso a seu modo aparentemente uma estrutura lsquoem abertorsquo progressiva)

A partir destas e de outras caracteriacutesticas presentes ao texto das Noites cuja liccedilatildeo a literatura fantaacutestica ulterior saberaacute aprender po-deremos analisar elementos intertextuais em uma infinidade de casos Muito longe de tentar esgotar o assunto elencarei a tiacutetulo ilustrativo trecircs exemplos ou maneiras baacutesicas pelos quais alguns autores reescre-veram o Livro das mil e uma noites primeiramente irei explorar proce-dimentos e sugestotildees intertextuais a partir de alguns vislumbres da obra do contista alematildeo E T A Hoffmann (1776-1822) depois um exemplo de recorte e reconstituiccedilatildeo utilizando excertos de um conto do escritor portuguecircs Aacutelvaro do Carvalhal (1844-1868) e por uacuteltimo um caso de escritura completa re-modalizada num conto do escritor norte-ameri-cano Edward Lucas White (1866-1934) A escolha destes autores e sua ordem natildeo satildeo aleatoacuterias e revelam neste recorte cronoloacutegico como a influecircncia do orientalismo maacutegico natildeo cessa de fins do seacuteculo XVIII ateacute chegarmos ao seacuteculo XX (e obviamente tambeacutem nos dias atuais)

Assim em meio agrave apologia do grotesco evidenciada pelas Noites seria possiacutevel antever naquele curioso corcunda do episoacutedio do casamento de Dadruddin Hasan de Basra o precursor duma longa linhagem de perso-nagens bufotildees que seraacute trabalhada pelo fantaacutestico autoconsciente a exem-plo do famoso Pequeno Zacarias vulgo Cinaacutebrio de E T A Hoffmann A pergunta natildeo eacute descabida e a leitura atenta das Noites sugeriraacute mais de um intertexto em relaccedilatildeo agraves obras do genial contista alematildeo Por exemplo em meio agrave aventura do cristatildeo com o rei da China (episoacutedio narrado nas Noites) descreve-se um aposento composto por um jardim maacutegico que tambeacutem poderia antecipar o jardim das serpentinas hoffmannianas

O almocreve me conduziu ateacute a casa paguei-lhe um quarto de dinar ele re-cebeu e foi-se embora Bati agrave porta e fui recebido por duas pequenas meni-nas brancas que me disseram ldquoEm nome de Deus entre pois nossa patroa natildeo dormiu esta noite tal a alegria por sua vindardquo Adentrei o paacutetio e me vi diante de uma casa agrave qual se acessava subindo sete degraus e que tinha por toda a sua circunferecircncia janelas dando para um jardim com todos os gecircne-ros de frutas e aves com coacuterregos abundantes que eram uma diversatildeo para os olhos no centro havia uma fonte e em cada um de seus quatro acircngulos uma cobra de ouro vermelho tranccedilado da boca das quatro cobras fluiacutea uma aacutegua que parecia ser peacuterola e gema (2010 p 283)

Compare-se agora este excerto do Livro das mil e uma noites com outro presente na ldquoSexta vigiacuteliardquo do conto O vaso de ouro de Hoffmann

Quando Anselmo olhou para as plantas e aacutervores pareceu-lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente Agrave sombra densa dos ciprestes reluziam ba-cias de maacutermore de onde afloravam estranhas estaacutetuas que salpicavam raios cristalinos que caiacuteam sobre brilhantes corolas de liacuterios vozes singulares ressoa-vam e sussurravam atraveacutes do bosque de plantas extraordinaacuterias e um esplecircn-dido perfume espalhava-se como ondas O arquivista desaparecera e Anselmo soacute avistava uma enorme corbelha de ardentes liacuterios cor de puacuterpura e de fogo Extasiado pela visatildeo pelo doce perfume do jardim encantado Anselmo esta-cou completamente enfeiticcedilado (Hoffmann 1993 p 40)

Tais anaacutelises satildeo importantes para observarmos ateacute que ponto a ima-ginaccedilatildeo romacircntica recriou ndash obviamente com criatividade autoral ndash o Livro das mil e uma noites Ao falar em procedimentos e sugestotildees inter-textuais refiro-me aos intertextos que satildeo sugeridos em relaccedilatildeo agraves Noites pelos textos fantaacutesticos posteriores sem que haja uma clara marcaccedilatildeo de que delas proviriam A influecircncia estaacute laacute mas soacute podemos cogitaacute-la nas

entrelinhas O mais proacuteximo que observamos dessa marca inicial ou iacutendi-ce no conto O vaso de ouro se encontra num excerto da ldquoTerceira vigiacuteliardquo Apoacutes a narraccedilatildeo de histoacuterias delirantes referentes a liacuterios maacutegicos e perso-nificaccedilotildees alquiacutemicas como a do ldquojovem Phosphorusrdquo efetivada pelo es-tudante Anselmo responde-lhe o escrivatildeo Heerbrand ldquolsquoPermita-me caro senhor arquivista mas isto natildeo passa de frivolidades orientaisrsquordquo (p 21) as-sociando chistosamente a narrativa fantaacutestica descrita anteriormente aos desbordamentos imaginativos da escrita aacuterabe (a influecircncia das Noites na obra de Hoffmann estaacute diluiacuteda das mais diversas maneiras relatei apenas um breve exemplo para ilustrar a noccedilatildeo de sugestatildeo intertextual)

A influecircncia das Noites se torna mais evidente quando as obras fantaacutes-ticas citam-nas nominalmente Em liacutengua portuguesa poderemos explo-rar alguns trechos do conto oitocentista A febre do jogo em que Aacutelvaro do Carvalhal ndash o autor que mais se aproximou em Portugal do romantismo imaginativo e espectral tiacutepico das culturas germacircnica e anglo-saxatilde ndash natildeo soacute acusa nominalmente tal intertexto mas tambeacutem retira um trecho completo das Noites e o adapta a sua proacutepria histoacuteria Observemos alguns elementos e a dicccedilatildeo goacutetica do conto hauridos tambeacutem de outras leituras romacircnticas

Laacute fora desprendia a tempestade as borrascosas asas pelo entenebrecido espaccedilo Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas vidraccedilas O ceacuteu abrasava-se em clarotildees efeacutemeros E a terra revolvia-se accediloitada pelos iacutempe-tos recrudescentes de sucessivos furacotildees A imobilidade sombria das cate-drais antigas dos torreotildees cocircnicos de mourisca faacutebrica dos zimboacuterios dos edifiacutecios circulares e colossais iluminada a espaccedilos pelas fosforescecircncias paacutelidas dos relacircmpagos dava ao espectaacuteculo um luacutegubre caraacutecter Dir-se-ia que o abismo vomitara legiotildees de democircnios que ameaccedilavam este nosso acanhado canto do mundo com um formidaacutevel torvelinho reduzindo-o a arena de vertiginosas coreias (Carvalhal 2004 p 23)

A febre do jogo configura o tiacutepico conto influenciado pela peccedila no-turna (Nachtstuumlck) alematilde a explorar os desvatildeos psicoloacutegicos dos per-sonagens juntamente agraves descriccedilotildees distoacutepicas dos loci horrendi A certa altura Mariano seu atormentado protagonista afirma ldquopintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas grandezas de um conto das mil e uma noitesrdquo (p 28) associando nomeadamente as excentri-cidades luacutegubres da diegese ao universo ficcional das Noites inclusive como afirmado reconstituindo-as em vaacuterios momentos de sua proacutepria trama narrativa Quando Mariano segue o espectro do pai que acabara de

assassinar ndash numa lsquocatabase goacuteticarsquo que por sinal jaacute fora sugerida entre outras por algumas ldquonoitesrdquo (capiacutetulos) do ramo siacuterio do Livro das mil e uma noites (narrativas do primeiro e terceiro dervixes) ndash adentra um antigo templo aacuterabe remodelado pelo cristianismo e eacute tomado por visotildees extaacuteticas e aterrorizantes soacute finalizadas quando aparentemente eacute trazido de volta a si (sugerindo-se fantasticamente que toda a experiecircncia preacutevia natildeo passara de deliacuterio) estando agora na cidade de Naacutepoles Daacute-se entatildeo o que chamei de reconstituiccedilatildeo ou seja a recriaccedilatildeo de um trecho original das Noites (somente um trecho ou trechos ndash eacute bom destacar) numa outra diegese autoral e ineacutedita que em todo o caso acusa textualmente esta influecircncia Leiamos o excerto do conto de Carvalhal

De repente paro esmagado num ciacuterculo de ferro Ergue-se um brado solu-ccedilante e comprimido Vozes confusas troavam de cada lado Olhei Caiacuteam sobre mim os raios tisnadores de um sol brilhante Estava no zeacutenite o sol De todas as partes acelerada se ajuntava a populaccedila Alguns homens natildeo poucos cheios de suor e de cansaccedilo reprimiam-me nos braccedilos atleacuteticos Entre esses homens descobri minha matildee que desalinhada e lacrimosa cla-mava estorcendo os braccedilos em veemente dor- Louco loucoCravei nela os olhos estupefactoAquele brado de uma afliccedilatildeo de matildee arrefeceu-me ateacute agrave ponta dos cabelosTentei reflectir mas faltaram-me ideias Tentei recordar mas natildeo tive me-moacuteria O que eu tinha era o vaacutecuo na cabeccedila Poreacutem natildeo sei como compe-netrei-me da medonha verdadeEnvergonhado quis furtar-me agraves vistas dos curiosos E soacute nesse instante reparei que estava nu Eu Nu de dia numa praccedila puacuteblica Como acreditaacute-lo Estava nu Mas trazia pendente dos ombros a coberta esfarrapada do meu leito como um manto real- Louco louco repeti entatildeo num choro coleacuterico de desespero atroz E espumando de raiva rolei de chofre exacircnime nos braccedilos que me prendiam- Luacutecio foi a minha primeira exclamaccedilatildeo ao volver agrave existecircncia - Onde estou eu foi a minha primeira perguntaLuacutecio de peacute agrave cabeceira da minha cama estava embevecido em minuciosa anaacutelise Parecia determinado a natildeo perder uma soacute das fases por que ia pas-sando a doenccedila nem algum novo sintoma que acaso se revelasse- Desconheccedilo esta casa Onde estamos prossegui- Em Naacutepoles- Naacutepoles- Justamente [] (p 45-46)

A modalizaccedilatildeo fantaacutestica do conto de Carvalhal transforma agora pelo aparente vieacutes da loucura e do deliacuterio o personagem Luacutecio Durante todo o conto agira e fora descrito agrave semelhanccedila do Mefistoacutefeles goethia-no sendo o responsaacutevel por toda a sorte de horrores que se abateu sobre Mariano A partir deste momento sugere-se um amigo fiel que ao lado da matildee do protagonista teme pela sauacutede mental do mesmo Fica no ar a duacutevida seraacute toda esta cena mais um dos ardis do diaboacutelico Luacutecio O que importa eacute a presenccedila da recriaccedilatildeo das Noites jaacute que na narraccedilatildeo de um dos capiacutetulos da obra ldquoOs vizires Nuruddin Ali do Cairo e seu filho Badruddin Hasan de Basrardquo aparece a mesma cena

[] O dia se iluminou a alvorada irrompeu e os portotildees de Damasco fo-ram abertos As pessoas saiacuteram e viram Badruddin Hasan jovem gracioso com roupas miacutenimas barrete descoberto e tuacutenica sem os calccedilotildees Exausto devido agrave noite em claro agrave procissatildeo com os ciacuterios e ao peso que carregara o jovem dormia estirado e roncava [] Disse um outro [popular] ldquoCoitados dos filhos do povo Vejam o que aconteceu a esse rapaz Estava bebendo talvez e quis parar e ir cuidar da vida mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu assim pelado Ou quem sabe talvez tenha confundido a porta de sua casa com o portatildeo da cidade e encontrando-o trancado dormiu aqui mesmordquo [] Badruddin Hasan acordou e vendo-se diante dos portotildees de uma cidade cercado por homens de toda espeacutecie ficou atarantado e per-guntou ldquoOnde estou minha gente O que tecircm vocecircsrdquo Responderam ldquoNoacutes encontramos vocecirc aqui deitado na hora da chamada para a oraccedilatildeo da alvo-rada Eacute soacute o que sabemos a seu respeito Onde vocecirc dormiu esta noiterdquo Ele respondeu ldquoPor Deus minha gente que esta noite eu estava dormindo do Cairordquo Algueacutem disse ldquoOuccedilam soacuterdquo Outro disse ldquoDeem-lhe um tapa com forccedilardquo E todos lhe disseram ldquoMeu filho vocecirc estaacute doido Dormir no Cairo em acordar em Damascordquo [] Outro disse ldquoEle estaacute loucordquo e todos grita-ram ldquoloucordquo e agrave forccedila resolveram que ele enlouquecera [] (p 239)

O leitor das Noites sabe que Hasan fora transportado pelos ares por ifrits de uma cidade a outra dentro da perspectiva maravilhosa mas o personagem natildeo tem ideia disso pois estava dormindo no momento do rapto e chega a cogitar posteriormente que realmente sonhara es-tando em Damasco todo o dia e a vida anterior no Cairo gerando-se o nonsense Jaacute o texto de Carvalhal natildeo apresenta iacutendice preacutevio algum sugerindo que a brusca passagem de uma cidade a outra poderia ser uma ilusatildeo gerada pela alienaccedilatildeo de Mariano sem maiores explicaccedilotildees A bricolagem intertextual corrobora os aspectos delirantes e fantaacutesti-cos (pela indefiniccedilatildeo do que realmente ocorreu com o protagonista) do

conto de Carvalhal mas como afirmado compotildee apenas uma passa-gem episoacutedica de A febre do jogo da maior importacircncia eacute verdade con-tudo sem assegurar a totalidade da diegese

Passemos agora a explorar por fim um caso em que a escritura comple-ta re-modalizada em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites ocorre a partir de um conto de Edgar Lucas White intitulado Amina que apesar de escrito na primeira deacutecada do seacuteculo XX faz uso de procedimentos tiacutepicos do horror e fantaacutestico oitocentistas tomando ainda como base o exotismo orientalista que existiu sob as mais diversas faces em todo o seacuteculo XIX

Amina eacute totalmente baseada em uma das histoacuterias das Noites em que se narra o aparecimento de um suposto ente sobrenatural em meio ao caravanccedilarai e agraves ruiacutenas de cidades antigas intitulada ldquoO filho de rei e a ogrardquo Cumpre transcrevecirc-la integralmente na voz do pescador que a conta ao rei Yunan

Conta-se oacute rei venturoso que certo rei tinha um filho que era grande aman-te de caccediladas Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai o qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz Certo dia saiacuteram ambos e cavalgaram ateacute o deserto O jovem descortinou uma presa e o vizir lhe disse ldquoPegue-a corra atraacutes dessa caccedilardquo O jovem foi atraacutes do animal mas perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto sem saber para que lado ir nem que rumo tomar Entatildeo eis que viu uma jovem chorando no caminho Perguntou-lhe ldquoDe onde vocecirc eacuterdquo Ela respondeu ldquoSou filha de um dos reis da Iacutendia Estava neste deserto cavalgando minha montaria quando fui dominada pelo sono e distraiacuteda caiacute do animal Agora estou longe de todos e assustadardquo Ouvindo as palavras da moccedila o filho do rei lamentou-lhe a situaccedilatildeo e colocou-a na garupa de seu cavalo avanccedilando ateacute topar com umas ruiacutenas A moccedila entatildeo lhe disse ldquoMeu senhor eu pre-ciso satisfazer uma necessidade logo alirdquo e o rapaz a ajudou a descavalgar Ela entrou nas ruiacutenas e o filho do rei foi atraacutes sem saber o que ela era Observando-a poreacutem descobriu tratar-se de uma ogra que fora dizer aos seus filhotes ldquoEu lhes trouxe um jovem bonito e gordinhordquo Os filhotes dis-seram ldquoTraga-o logo mamatildeezinha para que pastemos em seu ventrerdquo Disse o vizir ao ouvir o diaacutelogo deles o rapaz ficou apavorado seus mem-bros se contraiacuteram e temendo por sua vida ele retornouDisse o vizir a ogra saiu atraacutes dele e lhe perguntou ldquoO que vocecirc tem Por que estaacute com medordquo Entatildeo ele se queixou da situaccedilatildeo que estava enfrentan-do e concluiu ldquoIrei sofrer uma injusticcedilardquo Ela lhe disse ldquoSe estaacute para sofrer uma injusticcedila entatildeo peccedila ajuda a Deus altiacutessimo e ele o livraraacute do mal que vocecirc temerdquoDisse o vizir o jovem ergueu as matildeos para o ceacuteu [] e disse ldquoOacute Deus faccedila-me triunfar contra o meu inimigo lsquopois voacutes de tudo sois capazrsquordquo

Disse o vizir quando a ogra ouviu a suacuteplica deixou-o em paz O jovem che-gou satildeo e salvo ateacute o pai e lhe contou a histoacuteria do vizir isto eacute que fora ele que lhe ordenara correr atraacutes da caccedila sucedendo-lhe entatildeo tudo aquilo com a ogra O rei mandou convocar o vizir e executou-o (p 84-85)

Destarte o que constitui um breve episoacutedio narrativa dentro de ou-tra na 15ordf e 16ordf noites do Livro das mil e uma noites (ramo siacuterio) seraacute utilizado para enformar a diegese completa do conto de White consubs-tanciando a diferenccedilagradaccedilatildeo que parte do universo oral e folcloacuterico das ldquoformas simplesrdquo (segundo a terminologia do criacutetico literaacuterio Andreacute Jolles [1976]) passando pelo pioneiro registro literaacuterio das Noites ateacute culminar numa reescritura re-modalizada e autoral no caso o conto Amina

Publicado originalmente na revista The Bellman em 1ordm de junho de 1907 Amina conta a histoacuteria do personagem Waldo um ocidental que se encontra numa pesquisa de campo no deserto em meio agraves milenaacuterias ruiacutenas de civilizaccedilotildees antigas Jaacute na primeira frase da narrativa perce-be-se a atmosfera de pesadelo que entretece a diegese a revelar que a realidade pode assumir graus fantaacutesticos ldquoWaldo cara a cara com a re-alidade do inacreditaacutevel ndash como ele mesmo teria dito ndash estava comple-tamente estupefato Em silecircncio ele deixou-se conduzir pelo cocircnsul do teacutepido escuro do interior pela porta em ruiacutenas ateacute o calor e a claridade ofuscante do desertordquo (White 2007 p 147)

O leitor eacute apresentado in media res a este cenaacuterio desolado que atinge a extensatildeo dos sonhos Trecircs personagens principais Waldo o cocircnsul e Hassan parecem perdidos ao tempo que buscam se defender ou mesmo extirpar certos animais estranhos que aparentemente Waldo observara algum tempo antes

- Hassan ndash [disse o cocircnsul] observe aquiHassan disse algo em persa- Quantos filhotes havia ndash o cocircnsul perguntou a WaldoWaldo nada respondeu- Quantos pequenos vocecirc viu ndash o cocircnsul voltou a perguntar- Vinte ou mais ndash Waldo conseguiu responder- Isso eacute impossiacutevel ndash o cocircnsul retrucou- Parecia haver 16 ou 18 ndash Waldo corrigiu-se Hassan sorriu e resmungou O cocircnsul pegou duas armas das matildeos do guia entregou a Waldo a dele e os dois caminharam ao redor da tumba [] (p 147)

Logo em seguida o aspecto sobrenatural destes seres eacute posto em evidecircncia no momento em que os personagens decidem se separar para caccedilaacute-los O atocircnito Waldo diferentemente do cocircnsul e de Hassan ainda insiste em natildeo acreditar que a experiecircncia anterior poderia ser fruto de sua imaginaccedilatildeo sendo repreendido pelo referido cocircnsul por esta atitude

[] Fique atento ao seu redor Existe a chance quase remota de o macho retor-nar durante o dia ndash eles costumam ser notiacutevagos mas esse covil eacute excepcional [] Vocecirc natildeo deve ter nenhum tipo de sentimentalismo tolo em relaccedilatildeo agrave se-melhanccedila que esses animais possam ter com os seres humanos Atire e atire para matar Natildeo apenas eacute nosso dever exterminaacute-los mas seraacute muito perigoso para noacutes se natildeo o fizermos

Uma gradaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao sobrenatural existe se atentarmos agraves ca-racteriacutesticas destes trecircs personagens que de certa forma iconizam alguns gecircnerossubgecircneros propostos pela teoria todoroviana Hassan o nativo de fala persa poderia representar o olhar do Maravilhoso puro a aceita-ccedilatildeo completa da existecircncia de leis outras talvez desacreditadas em situa-ccedilotildees e topografias distintas O cocircnsul poderia ter refletido inicialmente o olhar do Estranho do ocidental que precisou encontrar certas soluccedilotildees ou respostas para que a existecircncia do insoacutelito fosse explicada de maneira racional e dentro das leis naturais posteriormente abandonadas com a presentificaccedilatildeo efetiva do sobrenatural e o consequente aparecimento do Fantaacutestico-maravilhoso (em que haacute primeiro a hesitaccedilatildeo fantaacutestica se-guida pela aceitaccedilatildeo do Maravilhoso) E por fim na maior parte do texto a experiecircncia do olhar do Fantaacutestico pela ambiguidadeduacutevida instigadas pelo personagem Waldo Contudo eacute importante observar o sobrenatural aceito por Hassan e pelo cocircnsul eacute trabalhado numa via de negatividade que eacute bem diversa por exemplo do Maravilhoso puro dos contos de fa-das aproximando Amina das tiacutepicas narrativas de horror A associaccedilatildeo que o cocircnsul faz dos animais-monstros com a suposta aparecircncia humana revela que o sobrenatural permanece de maneira disfoacuterica e atraveacutes de uma inquietaccedilatildeo trabalhada pela experienciaccedilatildeo do medo Eacute o medo que faz com que ocidentais e orientais se unam em prol do total extermiacutenio destes seres ainda segundo a visatildeo do cocircnsul

Haacute pouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanas po-reacutem nos poucos pontos em que a opiniatildeo puacuteblica existe ela atua com pron-tidatildeo e vigor Se haacute um assunto sobre o qual natildeo haacute discordacircncia eacute que eacute

incumbecircncia de todos os homens ajudar a erradicar essas criaturas O velho costume biacuteblico de apedrejar ateacute a morte eacute o modo de linchar os nativos por aqui Esses asiaacuteticos modernos satildeo capazes de aplicaacute-lo a qualquer pessoa considerada negligente no combate a esses monstros Se deixarmos um de-les escapar e as pessoas ficarem sabendo podemos dar iniacutecio a um surto de preconceito racial que vai ser difiacutecil enfrentar Portanto atire sem hesitaccedilatildeo ou piedade - Entendi- Natildeo me importa se vocecirc entende ou natildeo ndash disse o cocircnsul ndash Quero que vocecirc aja Atire se for preciso e de modo certeiro ndash E partiu (p 148-149)

Eacute interessante como se pode observar nas entrelinhas deste excerto a discussatildeo da outridade OcidenteOriente pela modalizaccedilatildeo fantaacutesti-ca O olhar colonial se adensa no momento em que se fala da ldquopouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanasrdquo e trata do tema do preconceito racial entrevisto nas possiacuteveis sublevaccedilotildees dos coloni-zados inserindo-se ainda o ritual do apedrejamento dentro do contexto especiacutefico do conto Ateacute que ponto aquela insistente frase a corroborar com as usuais toacutepicas do discurso imperialista ldquoatire sem hesitaccedilatildeo ou piedaderdquo poderia ser associada a essa relaccedilatildeo de outridade De fato a sabedoria do sobrenatural de Hassan e o olhar de simpatia que o narra-dor tem para com este personagem subalterno natildeo chega a desconstruir o discurso da superioridade europeia Mas o que importa para a presen-te anaacutelise eacute o fato de que o cocircnsul pede a Waldo um pragmatismo que continua por via oposta a endossar o olhar fantaacutestico deste uacuteltimo eacute preciso agir e natildeo compreender Destarte continuamos no territoacuterio do insoacutelito potencializado pelas novas marcaccedilotildees que o texto ofereceraacute relativas agrave passagem do Ocidente para o Oriente

Na manhatilde de sua aventura inesqueciacutevel Waldo acordou cedo As experiecircn-cias de suas viagens ao mar as visotildees de Gibraltar em Port Said no canal em Suez em Aden em Muscat e em Basrah propiciaram uma transiccedilatildeo ina-dequada entre a regularidade decorosa da vida escolar e domeacutestica na Nova Inglaterra e a maravilha daquelas imensidotildees deseacuterticas e suas paisagens de tirar o focirclego Tudo parecia irreal mas a veracidade daquela estranheza o perturbava tanto que ele natildeo conseguia sentir-se agrave vontade nem dormir profundamente em uma barraca Depois de deitar-se passava muito tempo acordado e levanta-va cedo como naquela manhatilde no iniacutecio do falso alvorecer (p 149)

A teacutecnica do sfumato das artes plaacutesticas mistura sutil de matizes e gra-dientes sem transiccedilotildees abruptas natildeo poderia ser associada a esta passagem A movecircncia Ocidente-Oriente eacute acompanhada por uma seacuterie de fenocircme-nos estranhos que gera uma quebra ontoloacutegica em relaccedilatildeo ao real atraveacutes de choques inesperados que acabam inserindo o personagem Waldo num estado quase delirante corroborado pelo sol ostensivo falta de sono esgo-tamento nervoso ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas (costuma beber ldquoconhaque purordquo ndash p 147) procedimentos caros ao gecircneromodo fantaacutestico

Durante a noite em meio ao acampamento Waldo sente necessida-de de passear e contemplar pessoalmente no deserto as constelaccedilotildees e o famoso pleniluacutenio tatildeo decantado pelo Livro das mil e uma noites em me-taacuteforas liacutericas geralmente associadas agrave beleza feminina Sua relaccedilatildeo com o deserto eacute um tanto contraditoacuteria ansiava uma experiecircncia de libertaccedilatildeo e a realidade se mostrava contraacuteria opressora Pensava que o perigo maior da viagem de exploraccedilatildeo seriam os soldados curdos logo desmistificados como paciacuteficos Na realidade os perigos eram outros como deu a enten-der Hassan o personagem mediador entre o visiacutevel e o invisiacutevel

Hassan falava um pouco de inglecircs e contava-lhe histoacuterias sobre espiacuteritos ma-lignos espectros e outros estranhos seres lendaacuterios sobre o democircnio das ruiacute-nas surgindo como ser humano falando todos os idiomas sempre agrave procura de infieacuteis sobre a mulher cujos peacutes eram virados com os calcanhares para a frente levando os imprudentes a um poccedilo onde os afogava sobre os fan-tasmas malignos dos salteadores mortos mais terriacuteveis que os vivos sobre o espiacuterito incorporado em um burro ou em uma gazela levando seus persegui-dores agrave beira do precipiacutecio parecendo continuar a correr sobre uma areia que natildeo passava de uma simples miragem que se dissolvia [] (p 151)

O sobrenatural aparece aqui numa de suas facetas literaacuterias mais carac-teriacutesticas ligada agrave oralidade A cultura lsquoprimitivarsquo a ele associada eivada de crendices antiteacuteticas ao logos natildeo raras vezes na experiecircncia do insoacutelito in-verte a polaridade e passa a funcionar justamente como logos dentro do so-brenatural toacutepica relativamente comum das histoacuterias de horror Os perigos iniciais ldquovagos e imaginaacuteriosrdquo (p 151) acabaratildeo ganhando concretude em meio ao deserto locus geralmente propiacutecio ao intervalo que vai da imagi-naccedilatildeo agrave miragem um natildeo-lugar ou espaccedilo com outra dinacircmica de tempo

Olhou ao redor contemplando aquela vasta desolaccedilatildeo e o ceacuteu de um azul-turquesa uniforme arqueando-se sobre o deserto Montanhas avermelhadas e

distantes pareciam amontoar-se sobre colinas mais proacuteximas que enchiam a paisagem amarela sem diminuir-lhe a monotonia Areia e rochas com poucos galhos finos formavam a paisagem em volta alterada aqui e ali pela presenccedila de ruiacutenas brancas ou acinzentadas Natildeo fazia muito tempo que o sol nascera mas a superfiacutecie toda do deserto tremulava com o calor [] (p 152)

Eacute nesta fronteira cronotoacutepica cuja luminosidade excessiva mais con-funde do que refrata mimeticamente o aspecto das coisas que lhe apa-receraacute entatildeo a figura esquisita de uma mulher em meio agraves ruiacutenas com-postas por ldquotumbas preacute-histoacutericas asiaacuteticas persas partas sassacircnidas e muccedilulmanasrdquo (p 151) Novamente observamos as modalizaccedilotildees tiacutepicas do fantaacutestico e do horror que intentam causar estranhamento no leitor

Todas as mulheres do vilarejo que ele jaacute vira usavam ldquoyashmaksrdquo ou alguma espeacutecie de pano ou veacuteu para cobrir o rosto Aquela mulher estava sem veacuteu e sem qualquer pano na cabeccedila Usava um tipo de veste marrom-amarelada que cobria seu corpo do pescoccedilo aos calcanhares sem marcar-lhe a cintura Seus peacutes apesar da areia escaldante estavam descalccedilosAo perceber a presenccedila de Waldo ela parou e olhou para ele que lhe de-volveu o olhar Ele notou que a posiccedilatildeo dos peacutes da mulher natildeo parecia com a dos europeus natildeo se voltavam para fora mas com os lados de dentro paralelos Ela natildeo usava tornozeleiras e pulseiras nem colar ou brincos Ele achou que os braccedilos dela eram os mais musculosos que jaacute tinha visto em um ser humano As unhas eram pontudas e longas tanto nas matildeos quanto nos peacutes Seu cabelo era preto curto e desgrenhado mas mesmo assim ela natildeo parecia selvagem Seus olhos sorriam e seus laacutebios esboccedilavam um sorriso apesar de natildeo se separarem sem mostrar os dentes por traacutes deles (p 152)

Nestas descriccedilotildees meticulosas das caracteriacutesticas inquietantes da personagem observamos como White reescreveu amiudadamente o epi-soacutedio do Livro das mil e uma noites contudo sem lhe alterar substancial-mente o enredo O priacutencipe aacuterabe se transformou em Waldo um ator-mentado ocidental perdido em meio agraves vastidotildees dos desertos do Oriente acompanhado por personagens secundaacuterios que natildeo existiam no texto original O encontro com uma mulher solitaacuteria se daacute no mesmo locus en-quanto ambos estatildeo perdidos (lembremos tambeacutem que a personagem da mulher solitaacuteria em meio aos bosques a se revelar ulteriormente como o diabo a um nobre eacute comum nas novelas medievais de cavalaria europeia) A oraccedilatildeo do priacutencipe aacuterabe que repele a ogra seraacute em Amina substituiacuteda por um tiro certeiro do personagem cocircnsul que abateraacute a mulher-mons-tro no justo momento em que teria matado Waldo juntamente aos filhos

Entatildeo como se daraacute a re-modalizaccedilatildeo anunciada anteriormente que o conto de White operaraacute em relaccedilatildeo ao texto original Ela estaacute configu-rada basicamente na maneira como o maravilhoso do episoacutedio do Livro das mil e uma noites se converteraacute em horror autoconsciente em Amina pelo modus operandi do estranhamento a gerar um sem-nuacutemero de en-trechos A mulher-monstro de White por exemplo conversa com Waldo em inglecircs contudo ldquoenquanto ela falava seus laacutebios natildeo se abriamrdquo (p 152) Ela se comunica ldquocantarolando as palavrasrdquo (p 153) e eacute descrita no ato de se mover em todo o potencial de uma escritura de estranhamento

Ela se locomovia sem fazer barulho e com rapidez Waldo mal conseguia acompanhaacute-la No percurso Waldo por vezes seguia atraacutes e notava como suas vestes cobriam suas costas a cintura estreita e os quadris bem forma-dos Sempre que se apressava e conseguia alcanccedilaacute-la ele a olhava com curio-sidade um tanto confuso por sua cintura tatildeo bem definida atraacutes natildeo ter uma forma definida na frente por seu contorno do pescoccedilo aos joelhos totalmente sem forma sob as roupas natildeo marcar sua cintura natildeo sugerir firmeza ou flacidez Da mesma maneira observava o brilho em seus olhos e os laacutebios extremamente vermelhos e finos (p 153)

Este monstro sai das classificaccedilotildees e dualismos tiacutepicos natildeo eacute nem ldquocristatildeordquo nem ldquomuccedilulmanordquo como diz o texto mas uma terceira coisa inominada Se diz pertencente ao ldquopovo livrerdquo e tal expressatildeo natildeo seraacute explicada a posteriori fazendo com que permaneccedilamos em leituras po-lissecircmicas A carga de horror criada pela narrativa eacute excepcional fazendo com que Amina se constitua em paradigma do gecircnero ainda mais pela vertente do orientalismo A certa altura a personagem homocircnima afirma conhecer a localizaccedilatildeo do acampamento de Waldo que este ansiava reen-contrar sugerindo tambeacutem nas elipses das modalizaccedilotildees do horror que andava rondando suas cercanias e observando os protagonistas de manei-ra incoacutegnita O texto eacute eliacuteptico por natildeo explicitar nada sempre sugerindo possibilidades Ao adentrar a caverna em que a mulher parecia habitar na realidade uma antiga tumba profanada coisas estranhas embora pos-siacuteveis (dentro das medidas do real empiacuterico) passam a ocorrer (Waldo a seguira antes de retornar ao acampamento no intuito de beber aacutegua)

Por um momento ficou cego pela transiccedilatildeo do brilho insistente do deserto para a sombra do interior da tumba []Agrave medida que seus olhos se acostumaram com a falta de luz ele teve um tal susto que ficou em peacute Parecia que por todos os lados aquele espaccedilo estava

fervilhante de crianccedilas nuas Levando em conta sua inexperiecircncia avaliou que elas tinham 2 anos de idade mas moviam-se com a destreza de garotos de 8 ou 10 anos - De quem satildeo essas crianccedilas ndash ele perguntou- Minhas- Todas suas- Todas minhas ndash ela respondeu de modo curioso- Mas haacute vinte delas ndash ele gritou- Vocecirc conta mal no escuro ndash ela disse ndash Haacute menos do que isso- Mas com certeza haacute uma duacutezia ndash ele disse rodando sobre si cercado pelas crianccedilas que danccedilavam e saltavam agrave sua volta- O povo livre tem famiacutelias grandes ndash ela explicou- Mas todos parecem ter a mesma idade ndash Waldo exclamou com a liacutengua seca em contato com o ceacuteu da bocaEla riu um riso desagradaacutevel batendo as matildeos Ela estava entre ele e a por-ta e como a maior parte da luz vinha da porta ele natildeo conseguia ver seus laacutebios []Waldo estava confuso e sentou-se novamente As crianccedilas circularam a seu redor conversando rindo brincando fazendo ruiacutedos que mostravam sua alegria [] (p 154-155)

Eacute esta a modalizaccedilatildeo a que me refiro relativa agrave escritura de estra-nhamento Poderemos observar simples crianccedilas entrevistas no ato de brincar nesta atmosfera de estranhamento criada pela linguagem Num determinado trecho acusa-se textualmente a influecircncia das Noites

- Qual eacute o seu nome ndash ele perguntou- Amina ndash ela respondeu - Eacute um nome da histoacuteria das ldquoMil e uma noitesrdquo ndash ele disse- Das histoacuterias tolas dos crentes ndash disse ela com desdeacutem ndash O povo livre natildeo sabe nada a respeito dessas bobagens ndash Seus laacutebios fechados e o murmuacuterio entre as siacutelabas proferidas o deixaram ainda mais surpreso quando ela cur-vou os laacutebios sem abri-los (p 154)

Edgar Lucas White segundo Tavares (2007 p 146) se inspirava nos proacuteprios pesadelos para compor muitos de seus contos fantaacutesticos reuni-dos nas obras The song of the sirens and other stories (1919) e Lukundoo and other stories (1927) A citaccedilatildeo nominal das Noites homenageia o texto original e ficamos tentados a encontrar em Amina um princiacutepio de recep-ccedilatildeo de leitor posteriormente potencializado pelo inconsciente durante o sono Segundo a nota do tradutor Jarouche (2010 p 85) a palavra ldquoogrardquo por ele utilizada em sua versatildeo das Noites traduziria imperfeitamente

o termo aacuterabe ldquogulardquo que designa na mitologia beduiacutena ldquoum ser sobre-humano capaz de mudar de figura e que se alimenta de carne huma-na Segundo uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao profeta Muhammad a simples menccedilatildeo a Deus bastaria para afugentaacute-lordquo sendo para isso invocado um excerto do Alcoratildeo (668) pelo personagem do priacutencipe aacuterabe como vis-to anteriormente no excerto das Noites O sentido de maravilhoso desta obra possibilita a inserccedilatildeo paciacutefica de uma ldquogulardquo (natildeo haacute aqui associaccedilatildeo agrave palavra lsquogularsquo em liacutengua portuguesa no sentido de fome desmesurada) agrave realidade diegeacutetica Jaacute o texto de White quebra esta possibilidade ao acrescentar toda a disforia de uma ontologia natildeo pacificada mesmo com a morte e revelaccedilatildeo final do monstro Waldo oscila ateacute o fim da narrativa a respeito da natureza teriomorfa e sobrenatural de Amina

- Bem na hora meu garoto ndash disse [o cocircnsul] ndash Ela estava prestes a atacarEle levantou o cano da arma e com ela mexeu no corpo- Bem morta ndash ele disse ndash Que sorte Geralmente satildeo precisos trecircs ou quatro balas para abater um deles Eu jaacute vi uma delas matar um homem mesmo tendo levado dois tiros nos pulmotildees - Vocecirc assassinou esta mulher ndash Waldo perguntou irado - Assassinar ndash o cocircnsul perguntou ndash Assassinar Olhe para istoEle ajoelhou-se e abriu os laacutebios fechados deixando agrave mostra natildeo dentes humanos mas pequenos incisivos dentes afiados bem separados e caninos longos e sobrepostos como os de um galgo uma denticcedilatildeo carniacutevora ame-accediladora e perigosa Ele sentiu medo mas mesmo assim a forma e a aparecircncia da mulher ainda o deixavam horrorizado tocado por sua semelhanccedila humana- Vocecirc atira em mulheres que tecircm dentes longos ndash Waldo insistiu revoltado com a morte terriacutevel que presenciara- Eacute difiacutecil convencecirc-lo ndash o cocircnsul disse ndash Vocecirc chama isto de mulherEle arrancou as roupas do cadaacuteverWaldo ficou aterrorizado O que ele viu natildeo foi a parte da frente do corpo de uma mulher mas sim o lado de baixo de uma loba prenhe ou de uma porca branca em sua segunda gestaccedilatildeo do pescoccedilo agrave genitaacutelia dez ubres em duas fileiras machucados grossos e flaacutecidos- Que tipo de criatura eacute essa ndash ele perguntou increacutedulo- Um ldquoghoulrdquo [gula] um espiacuterito maligno meu filho ndash o cocircnsul respondeu calmamente quase sussurrando - Pensei que eles natildeo existissem ndash Waldo disse ndash Achei que fossem lendas que natildeo houvesse nenhum deles- Posso acreditar que natildeo exista nenhum em Rhode Island ndash o cocircnsul disse ndash Estamos na Peacutersia e a Peacutersia fica na Aacutesia (p 156)

Como afirmado a ambiguidade fantaacutestica eacute levada ateacute o final com a revelaccedilatildeo do monstro e a aceitaccedilatildeo do sobrenatural Em todo o caso a meu ver em Amina esta aceitaccedilatildeo eacute distinta do Fantaacutestico-maravilhoso todoroviano pois se buscou ateacute este momento a criaccedilatildeo de uma atmos-fera em que a experiecircncia do medo se faz tocircnica e mesmo a explicaccedilatildeo do sobrenatural ligada em uacuteltima instacircncia agrave extinccedilatildeo do monstro natildeo possibilitou sua diluiccedilatildeo antes se obteacutem aquela antevisatildeo negativa do cos-mos e da vida analisada pelas teorias lovecraftianas a respeito do horror autoconsciente Lembro por uacuteltimo que os referidos procedimentos e su-gestotildees intertextuais os recortes e reconstituiccedilotildees e as escrituras completas e re-modalizadas ligadas ao Livro das mil e uma noites entre vaacuterios outros processos de intertextualidade poderatildeo ser encontrados em todas as eacutepo-cas autores e literaturas e colhi apenas trecircs exemplos (teoacutericos e ficcionais) para ilustrar tal fato Concluo com o adoraacutevel bordatildeoleitmotiv da irmatilde de Sahrazad Dinarzad (tatildeo importante quanto a contadora de histoacuterias eacute aquela que fomenta sua continuidade e corrobora no processo atraveacutes de uma recepccedilatildeo embevecida) em homenagem agraves Noites ldquoPor Deus ma-ninha se acaso vocecirc natildeo estiver dormindo conte-me uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar acordados esta noiterdquo []

REFEREcircNCIAS

CARVALHAL Aacutelvaro do Contos Fixaccedilatildeo do texto e posfaacutecio de Gianluca Miraglia Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2004

EURIacutePIDES ldquoLas bacantesrdquo In EacuteSQUILO SOacuteFOCLES EURIacutePIDES Obras completas Trad Joseacute Alsina [et al] Madrid Catedra 2004 (p 215-254)

HOFFMANN E T A Contos fantaacutesticos Trad Claudia Cavalcanti Rio de Janeiro Imago 1993

IRWIN Robert Pelo amor ao saber os orientalistas e seus inimigos Trad Waldeacutea Barcellos Satildeo Paulo Record 2008

JOLLES Andreacute Formas simples Trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Cultrix 1976

KIDSON Peter ldquoArtes plaacutesticasrdquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 435-463)

Livro das mil e uma noites Trad Mamede Mustafa Jarouche 4 volumes Satildeo Paulo Editora Globo 2010 (6ordf reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo de 2006 ndash volume 01) 2006 (2ordf ed ndash volume 02) 2007 (volume 03) 2012 (volume 04)

LOVECRAFT H P O horror sobrenatural em literatura Trad Celson M Paciornik Satildeo Paulo Iluminuras 2008

MOMIGLIANO Arnaldo ldquoHistoacuteria e biografiardquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 181-210)

PLATAtildeO A repuacuteblica Trad Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

PEMBROKE S G ldquoMitordquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 335-358)

TAVARES Braulio ldquoAminardquo In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 146)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 1ordf reimp da 3ordf ed de 2004 Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2007

WHITE Edgar Lucas Amina Trad Carolina Caires Coelho In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 147-156)

Borges leitor de As mil e uma noites

Dariacuteo Sanchez(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

ldquoese libro capaz de tantas metamorfosisrdquo

Jorge Luis Borges eacute talvez o mais universal dos escritores hispa-no-americanos como fica demonstrado natildeo soacute pela importacircncia de sua obra mas tambeacutem pela singularidade de sua pessoa que tem inspirado desde a introduccedilatildeo a um tratado antropoloacutegico de Michel Foucault ateacute o personagem central num romance de Umberto Eco Eacute fato que no caso deste portentoso escritor obra e homem se confundem na sua impor-tacircncia e originalidade

Borges escreveu poemas contos e ensaios muitos dos quais satildeo hoje ndash apenas 27 anos depois de sua morte ndash verdadeiros claacutessicos da literatura universal bastando mencionar tiacutetulos como El Aleph ou Pierre Menard autor del Quijote Mas natildeo eacute soacute pela sua liacutempida prosa e seu verso reflexivo que esse autor argentino eacute mundialmente reconhecido tambeacutem sua original concepccedilatildeo da literatura tem despertado o interesse de especialistas e neoacutefitos concepccedilatildeo que vai muito aleacutem do cacircnone ocidental ao abranger outras literaturas ndash com lugar de destaque para a literatura oriental ndash e especialmente vai aleacutem da obra literaacuteria incor-porando nela o processo de leitura o exerciacutecio da traduccedilatildeo a praacutetica da escritura e o transcorrer da vida

Para Borges a literatura estaacute nos leitores e natildeo nas obras ou seus autores Longe de ser um objeto de conhecimento (como tanto gostam de pensaacute-la os teoacutericos e especialistas) a literatura eacute um processo uma praacutetica que acontece cada vez que um leitor percorre reconta traduz ou relembra um livro lido Eacute na (re)leitura onde radica o valor da obra literaacuteria releitura que permite novas criaccedilotildees novas versotildees novas his-toacuterias novas vidas ou mortes ateacute

Essa importacircncia da leitura por cima da obra fica demonstrada em afirmaccedilotildees como as seguintes ldquoClaacutesico no es un libro que necesaria-mente posee tales o cuales meacuteritos es un libro que las generaciones de los hombres urgidas por diversas razones leen con previo fervor y con una misteriosa lealtadrdquo (Borges 1993I p 151) ou ldquoUn libro es maacutes que una estructura verbal es el diaacutelogo que entabla con su lector y la intencioacuten que impone a su voz y las cambiantes y durables imaacutegenes que deja en su memoria (Borges 1993I p 125) Ou ainda ldquoUna literatura difiere de otra menos por el texto que por la manera de ser leiacutedardquo (Borges 1993I p 125) Ler com fervor e lealdade ou armazenar imagens na memoacuteria eis definiccedilotildees da literatura segundo Borges E como os leitores das obras satildeo muacuteltiplos e muacuteltiplas suas lembranccedilas e fervores a literatura eacute uma mateacuteria muacuteltipla infinita ldquoPor el hecho de que el poema es inagotable Y se confunde con la suma de las criaturas Y no llegaraacute jamaacutes al uacuteltimo verso Y variacutea seguacuten los hombresrdquo (Borges 1993II p 315)

Desde tal concepccedilatildeo as frequentes referecircncias de Borges agrave compilaccedilatildeo de relatos orientais conhecida como As mil e uma noites (ou ldquoAs mil noites e uma noiterdquo como ele preferia) natildeo eacute soacute mais uma mostra de sua exoacutetica erudiccedilatildeo mas uma confirmaccedilatildeo ancestral de sua teoria da literatura como processo interminaacutevel de leitura De fato ainda que no espaccedilo da oralidade (e a oralidade eacute tatildeo literaacuteria para Borges quanto a escrita bastando-nos lem-brar de suas histoacuterias de ldquocompadritosrdquo) Sherazade eacute uma leitora que conta suas leituras ao sultatildeo que por sua vez eacute outro leitor Como tambeacutem satildeo leitores os histoacutericos compiladores da lenda original que foram agregando novos relatos e os tradutores ocidentais que natildeo soacute agregaram ou retiraram elementos mas que enriqueceram a obra com os estilos de sua liacutengua e de sua eacutepoca As mil e uma noites eacute a obra interminaacutevel por antonomaacutesia (a Never ending story como eacute o tiacutetulo do romance de Michael Ende) e por isso fascinou Borges por ser a soma do que eacute a literatura na sua concepccedilatildeo uma prolongaccedilatildeo infinita de leituras e escrituras

A paixatildeo de Borges por As mil e uma noites fica evidente em vaacuterios de seus escritos e na sua obsessiva comparaccedilatildeo das diversas versotildees para descobrir aquilo que os compiladores e tradutores tinham agregado ou extraiacutedo do texto original Genotexto intertexto subtexto (para usar palavras tatildeo caras aos especialistas) a compilaccedilatildeo oriental aparece na obra do autor argentino de maneira expliacutecita como inspiraccedilatildeo objeto de estudo eou referecircncia bibliograacutefica e de maneira impliacutecita na estrutura

ou elaboraccedilatildeo de alguns relatos Bem no comeccedilo de seu ofiacutecio como escritor publica um artigo sobre Los traductores de Las mil y una noches e pelo menos cinco relatos fazem referecircncia direta ao livro Alguien El sur Historia de los dos que sontildearon El libro de arena e Historia de los dos reyes y los dos laberintos aleacutem do poema Metaacuteforas de las mil y una noches Mas seraacute no luacutecido ensaio intitulado Las mil y una noches que Borges sintetizaraacute melhor seu sentir sobre a referida obra

O texto foi lido pelo seu autor no Teatro Coliseo de Buenos Aires em junho de 1977 dentro de um ciclo de conferencias que foram publicadas em 1980 sob o tiacutetulo de Siete noches Nele Borges susteacutem que para falar desse livro eacute necessaacuterio fazer referecircncia a alguns antecedentes do acontecimento da consciecircncia de Oriente em Ocidente tais como a conquista da Peacutersia e Iacutendia por Alexandre Magno (que deixou de ser grego para se converter em persa) e as narraccedilotildees de Marco Polo sobre Kublai Khan entre outros vaacuterios

Falando concretamente da obra aacuterabe Borges nos lembra de que no seacuteculo XV foi reunida em Alexandria uma seacuterie de faacutebulas de origem hindu persa e asiaacutetica as quais jaacute escritas em aacuterabe foram compiladas no Cairo A matriz ou nuacutecleo central eacute a Iacutendia depois na Peacutersia satildeo modificadas e arabizadas e passam ao Egito em finais do seacuteculo XV onde eacute realizada a primeira compilaccedilatildeo sob o tiacutetulo de As mil e uma noi-tes tiacutetulo que remete ao infinito e semelhante segundo ele agrave expressatildeo inglesa ldquoforever and a dayrdquo Para Borges a origem do livro eacute comparaacutevel agraves catedrais goacuteticas que satildeo obras de geraccedilotildees de homens Milhares de autores provavelmente ldquoconfabulatores nocturnirdquo (contadores noturnos de histoacuterias) escreveram As mil e uma noites mas nenhum deles pensou que estava conformando um livro tatildeo valioso para a humanidade

A primeira versatildeo europeia eacute de 1704 na traduccedilatildeo francesa de Antoine Galland o que foi um acontecimento capital para as literaturas europeias regidas entatildeo pelos preceitos neoclaacutessicos E aqui expressa Borges uma afirmaccedilatildeo de vital importacircncia se natildeo para nossa tese da li-teratura como processo para a motivaccedilatildeo de um Congresso de literatura fantaacutestica que trata da influecircncia de literatura do Oriente no Ocidente Diz Borges que ldquocon el movimiento romaacutentico el Oriente entra plenamente en la conciencia de Europardquo E mais para frente agrega ldquoPodriacuteamos decir que el movimiento romaacutentico empieza en aquel instante en que alguien en Normandiacutea o Pariacutes lee Las mil y una noches Estaacute saliendo del mundo legislado por Boileau estaacute entrando en el mundo de la libertad romaacutenticardquo

(Borges 1993III p 234 e 240) Ou seja que o Romantismo produz e se produz pela influecircncia do Oriente e se temos presente que o Romantismo eacute a grande revoluccedilatildeo da arte ocidental e origem de toda a arte moderna poderiacuteamos inferir que a presenccedila de Oriente eacute uma caracteriacutestica da arte moderna Uma evidecircncia disso seria precisamente aquilo que chama-mos de fantaacutestico que se faz um traccedilo presente e constante na literatura ocidental a partir do Romantismo ou em outras palavras a partir da pre-senccedila do Oriente da leitura de As mil e uma noites

No ensaio sobre Os tradutores das mil e uma noites Borges compara as diversas versotildees ocidentais do texto aacuterabe Adverte que aquela primei-ra traduccedilatildeo de Galland realizada nos albores do seacuteculo XVIII apesar de ter eliminado o conteuacutedo eroacutetico deu um destaque suficiente agrave dimensatildeo maacutegica da histoacuteria cativando os franceses da eacutepoca limitados pela pre-ceptiva poeacutetica Mais de um seacuteculo depois a traduccedilatildeo inglesa de Lane ainda que sendo mais literal tambeacutem suspende os elementos eroacuteticos pois sua intenccedilatildeo era fazer um livro familiar e soacute a versatildeo de Burton nessa liacutengua vai-se ocupar de incorporar o erotismo proacuteprio do texto original A versatildeo alematilde de Littmann destacada como a melhor pela Enciclopeacutedia Britacircnica eacute descartada porque nela falta a subjetividade presente nas tra-duccedilotildees anteriores subjetividade que eacute mais importante que uma suposta literalidade Diz Borges ldquolas versiones de Burton e de Mardrus e incluso de Galland soacutelo se dejan concebir despueacutes de una literatura Cualesquiera que sean sus lacras o sus meacuteritos esas obras caracteriacutesticas presuponen un rico proceso interiorrdquo (Borges 1993I p 412) Ou seja que agrave traduccedilatildeo (assim como agrave leitura) natildeo importa a literalidade ou fidelidade mas o seu valor literaacuterio pela subjetividade entendida como presenccedila do leitor Natildeo vamos falar aqui das consequecircncias que tal afirmaccedilatildeo tem para os estudos de traduccedilatildeo (outros jaacute tem feito isso com amplitude) soacute queremos desta-car que as traduccedilotildees de As mil e uma noites interessam a Borges pela no-vidade pela variaccedilatildeo pela recriaccedilatildeo da obra original daiacute que a traduccedilatildeo seja literatura no sentido de processo de leitura

No mesmo ensaio de Sete noites Borges conta que a histoacuteria de Aladim natildeo aparece no texto aacuterabe-persa soacute na traduccedilatildeo francesa e agrega a anedota da ldquoadmiraacutevel memoacuteria inventivardquo de De Quincey que parte de Galland para se referir a uma histoacuteria diferente Mas natildeo soacute foram os tradutores com sua literatura Galland com seu relato de Aladim De Quincey com sua ldquomemoacuteria inventivardquo ou Stevenson com

suas New Arabian Nights os que acrescentaram elementos ao texto ori-ginal tambeacutem o mesmo Borges fez isso escrevendo um dos relatos de As mil e uma noites confirmando assim natildeo soacute a fascinaccedilatildeo do portenho pela obra aacuterabe mas a maacutegica que envolve essa compilaccedilatildeo

Em 1939 Borges realiza uma resenha da traduccedilatildeo do livro aacuterabe de Richard Burton para a revista El hogar na qual escreve ldquoDe las notas que Burton agregoacute a su famosa traduccioacuten del libro Las mil y una noches traslado esta curiosa leyenda Se intitula Historia de los dos reyes y los dos laberintosrdquo (Borges apud Sardegna 2005 sp) E a continuaccedilatildeo se refere agrave histoacuteria de um rei da Babilocircnia que encerra um rei aacuterabe num confuso labirinto do qual este consegue escapar e depois leva preso agravequele rei e o abandona no deserto um labirinto sem corredores e sem portas Soacute que como conta Miguel Sardegna a histoacuteria natildeo tinha sido omitida da traduccedilatildeo francesa de Galland e resgatada posteriormente na traduccedilatildeo inglesa de Burton como disse Borges aos leitores da revista na realidade a histoacuteria foi a contribuiccedilatildeo de Borges ao livro oriental A citaccedilatildeo de obras e autores supostamente apoacutecrifos seraacute recorrente na obra do escritor argentino soacute que nesse caso particular permite-lhe contribuir com a obra convertendo-lhe numa nova Sherazade No final o referido conto aparece anos depois como ldquoLos dos reyes y los dos la-berintosrdquo na compilaccedilatildeo de contos titulada El Aleph

E em Historia universal de la infacircmia aparece o conto ldquoHistoria de los dos que sontildearonrdquo com uma anotaccedilatildeo final que diz ldquo(Del Libro de las 1001 Noches noche 351)rdquo (Borges 1993I p 339) Com efeito trata-se da citaccedilatildeo completa de um dos contos do livro aacuterabe que trata de um homem que depois de um sonho decide ir a Peacutersia procurando for-tuna mas ali eacute detido e interrogado por um capitatildeo que apoacutes ouvir o relato do sonho e da fortuna ri do homem e conta-lhe que ele tambeacutem sonha com um quintal no Cairo onde supostamente acharaacute uma for-tuna Eacute bom lembrar que eacute essa mesma histoacuteria a base do best-seller de Paulo Coelho O Alquimista Mas o interessante em todas essas novas versotildees e reescrituras eacute a confirmaccedilatildeo do que diz o mesmo Borges ldquoLas mil y una noches no han muerto El infinito tiempo de Las mil y una noches prosigue su camino [] Casi podriacuteamos hablar de muchos libros titulados Las mil y una nochesrdquo (Borges 1993III p 241)

Mas a ficccedilatildeo borgiana a fantaacutestica ficccedilatildeo borgiana vai aleacutem da citaccedilatildeo e da invenccedilatildeo de mais um relato para se ocupar de ficcionalizar a origem

do livro esse momento no qual o primeiro contador o primeiro ldquoconfa-bulator nocturnirdquo comeccedila essa catedral goacutetica esse livro interminaacutevel Em ldquoAlguienrdquo escrito em finais da deacutecada de 1980 encontramos o relato dessa origem primeira Por sua brevidade vamos citar o conto inteiro

Balkh Nishapur Alejandriacutea no importa el nombre Podemos imaginar un zoco una taberna un patio de altos miradores velados un riacuteo que ha repetido los rostros de las generaciones Podemos imaginar asimismo un jardiacuten polvo-riento porque el desierto no estaacute lejos Se ha formado una rueda y un hombre habla No nos es dado descifrar (los reinos y los siglos son muchos) el vago turbante los ojos aacutegiles la piel cetrina y la voz aacutespera que articula prodigios Tampoco eacutel nos ve somos demasiados Narra la historia del primer jeque y de la gacela o la de aquel Ulises que se apodoacute Es-Sindibad del Mar El hombre habla y gesticula No sabe (otros lo sabraacuten) que es del linaje de los confabulalores nocturni de los rapsodas de la noche que Alejandro Bicorne congregaba para solaz de sus vigilias No sabe (nunca lo sabraacute) que es nues-tro bienhechor Cree hablar para unos pocos y unas monedas y en un perdi-do ayer entreteje el Libro de las Mil y Una Noches (Borges 1991III p 171)

A histoacuteria eacute de uma siacutentese maravilhosa Mas quero chamar a aten-ccedilatildeo para quando diz ldquoTampoco eacutel nos ve somos demasiadosrdquo referecircncia necessaacuteria aos leitores que como os autores do livro aacuterabe satildeo presentes e anocircnimos De novo a literatura soacute acontece com as duas presenccedilas que apesar dos muitos reinos e seacuteculos se encontram no momento da leitura aquele momento em que ocorre aquilo que eacute chamado de Literatura

Voltando agrave conferecircncia em Buenos Aires ao tentar definir o Oriente Borges descarta o criteacuterio geograacutefico e diz que as conotaccedilotildees dessa palavra satildeo devidas agrave compilaccedilatildeo oriental a ideia de As mil e uma noites eacute a ideia de Oriente e vice-versa Diz que para o Oriente natildeo eacute importante a histoacuteria como sucessatildeo de fatos e agrega ldquoSe piensa que la literatura y la poesiacutea son procesos eternos Creo que en lo esencial tienen razoacutenrdquo (Borges 1991III p 237) Ou seja a literatura eacute uma construccedilatildeo de muacuteltiplos autoresleitores uma prolongaccedilatildeo infinita ou interminaacutevel como satildeo o Oriente e As mil e uma noites mundos construiacutedos de ldquoumas quantas figuras arquetiacutepicasrdquo

O arqueacutetipo outra ideia fundamental do universo borgiano presente na obra oriental e relacionada com essa nossa inferecircncia de que natildeo satildeo os autores (com nome proacuteprio) mas os leitores anocircnimos os que fazem a literatura E essas ideias de infinito de eternidade de prolongamento in-terminaacutevel de arqueacutetipos estatildeo todas refletidas ainda na estrutura do texto

aacuterabe na qual temos um relato dentro de outro relato que pela sua vez nos leva a outro relato e tudo isso incluiacutedo num relato maior Labirintos ver-bais dos quais tanto gostava Borges E para abranger este prolongamento infinito de versotildees e relatos eacute possiacutevel usar uma metaacutefora dele mesmo ldquoSe llamaba el Libro de Arena porque ni el libro ni la arena tienen ni principio ni finrdquo (Borges 1991III p 69) As mil e uma noites seria o livro de areia E a analogia entre ambas as histoacuterias natildeo eacute forccedilada pois o personagem do rela-to esconde o livro de areia atraacutes dos seus exemplares de As mil e uma noites

Para Borges no referido ensaio a maacutegica e os sonhos satildeo inerentes agrave nossa ideia de Oriente e de As mil e uma noites a maacutegica entendi-da como uma causalidade diferente devida a objetos ou situaccedilotildees com poder particular (como no caso da famosa lacircmpada e seu gecircnio) e os sonhos pensados como uma revelaccedilatildeo de outra realidade outra reali-dade que pode ser a literaacuteria que pode ser a realidade (como no caso jaacute referido de ldquoLos dos que sontildearonrdquo) E nessas afirmaccedilotildees sobre a maacutegica e os sonhos parecem estar as dicas para a leitura de um dos seus relatos mais importantes no qual aparece bem presente a compilaccedilatildeo aacuterabe

El sur conta a histoacuteria de Juan Dahlmann um homem culto bibliote-caacuterio que sofre um acidente enquanto estaacute lendo um raro exemplar de As mil e uma noites e deve ser internado num sanatoacuterio Estando ali ou depois de sair dali (o relato permite as duas leituras sonho ou realidade) ele vai ateacute seu siacutetio no interior da Argentina onde eacute forccedilado a entrar numa briga com faca com um homem ruacutestico que interrompe sua leitura da recopilaccedilatildeo oriental No desenlace o protagonista opta pela morte nessa briga ao estilo dos valentes gauacutechos O texto pode ser lido como uma alegoria da oposiccedilatildeo entre as letras e as armas ou entre a famiacutelia paterna alematilde e a famiacutelia mater-na argentina do personagem principal Mas o que me interessa natildeo eacute esse tipo de anaacutelise mas o fato de que o agir do personagem estaacute determinado de vaacuterias maneiras pela literatura ou seja pela leitura como ato fiacutesico e mental Ou em outras palavras pela magia e o sonho

Satildeo vaacuterios os momentos nos quais o relato anuncia este prolonga-mento ou transformaccedilatildeo da vida em literatura ndash fazendo da literatura um processo uma coisa viva uma atividade No niacutevel do fiacutesico (e do maacutegico) o primeiro personagem sofre o acidente que o leva ao sana-toacuterio e mais tarde eacute convidado agrave briga na taverna enquanto se encontra lendo As mil e uma noites Sua concentraccedilatildeo na leitura do texto aacuterabe eacute interrompida duas vezes pelo acidente e pelos homens na taverna e

nos dois casos a interrupccedilatildeo tem desenlace traacutegico Jaacute no plano mental (e do sonho) a leitura influencia a visatildeo de mundo do personagem com os pesadelos da convalescenccedila ateacute o ponto de permitir-lhe prolongar a vida (na realidade ou no sonho) como se fosse um relato Ou seja no final da vida o leitor decide ser personagem literaacuterio prolongando ou concretizando suas diversas leituras num ato A literatura a leitura aparecem como um prolongamento da vida de Juan Dalhmann assim como Sherazade prolongou sua vida contando relatos Eacute verdade que em El sur esse prolongamento acaba com a morte e que o modelo dessa morte eacute a literatura gauchesca mas soacute pela maacutegica ou pelo sonho da lei-tura eacute possiacutevel fazer essa escolha final Entatildeo esse leitor de As mil e uma noites decide se fazer relato ou em outras palavras dar vida agrave literatura

Satildeo vaacuterios os relatos borgianos nos quais a literatura eacute a origem da realidade como Tloumln Uqbar Orbis Tertius que conta a histoacuteria de um planeta criado partindo das descriccedilotildees de uma enciclopeacutedia Obviamente a ideia de El sur eacute mais modesta um homem decide morrer de maneira literaacuteria sua morte pode ser um sonho ou uma realidade tanto faz por-que os sonhos diz Borges satildeo mais reais que a vida E o mesmo entatildeo poderia ser dito da literatura Natildeo eacute casual que o personagem esteja len-do As mil e uma noites (nada na literatura de Borges ndash nem na vida ndash eacute casualidade) El Sur seria um novo relato da literatura gauchesca ou um conto sul-americano na compilaccedilatildeo oriental De qualquer jeito mais um paraacutegrafo dessa narrativa interminaacutevel e infinita que eacute a vida

No final noacutes somos uma narraccedilatildeo e nossa vida eacute soacute mais um re-lato das mil e uma noites das infinitas noites que satildeo a mesma noite Porque a literatura natildeo estaacute nas obras mas nos leitores nas lembranccedilas e projeccedilotildees com que vivemos dia apoacutes dia nas incontaacuteveis versotildees que satildeo feitas de relatos anteriores no relato que fazemos de noacutes mesmos chamado vida Somos a paacutegina de um livro de infinitos autores

REFEREcircNCIAS

BORGES Jorge Luis Obras completas Volumen I II III Buenos Aires Emeceacute Editores 1993

SARDEGNA Miguel ldquoLas mil y una noches de Robert Luis Stevensonrdquo In Revista Axololt Antildeo 3 nordm 18 Buenos Aires 2007 httprevistaaxolotlcomarotrassent18htm (Acesso em 21 de abril de 2013)

O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio

europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas

Joseacute Alberto Miranda Poza(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Apresentaccedilatildeo do Libro de Apolonio

Conforme Pablo Cabantildeas o Libro de Apolonio eacute uma das obras mais belas da literatura medieval espanhola constituindo ldquoun poema que sorprende al lector tanto por su teacutecnica casi perfecta como por su subyugante plasticidad narrativardquo (1998 p 9) Aproximar-se hoje agrave leitura do Libro de Apolonio supotildee intentar valorar as circunstacircncias histoacutericas em que foi escrito os coacutedigos culturais da eacutepoca em que seu autor se movia e mostrar o tipo de leitor-ouvinte para quem o poema foi composto (Corbella 1992)

Para comeccedilar do autor do texto natildeo sabemos nada embora exis-tam as informaccedilotildees que podem ser deduzidas a partir do proacuteprio texto Como afirma Uriacutea (2000 p 27) ldquoestamos ante un caso de anonimia absolutardquo Aleacutem disso natildeo devemos confundir em ecdoacutetica autor (do texto) com copista amanuense (do manuscrito) Nesse sentido o ma-nuscrito uacutenico conservado do Libro de Apolonio ndash Coacutedice Escurialense III-K-4 ndash eacute uma coacutepia com muitos erros e diferentes rasuras que afetam letras siacutelabas e palavras Pela grafia e algumas caracteriacutesticas linguiacutesti-cas a coacutepia eacute datada como sendo de 1390 e a liacutengua foi modernizada pelo copista Apresenta traccedilos do catalatildeo e do aragonecircs que comprome-tem o cocircmputo silaacutebico e o ritmo o que indica que esses traccedilos seriam do copista e natildeo do autor originaacuterio que escreveu em castelhano do seacuteculo XIII (Giroacuten Alconchel 2002)

Considerando as influecircncias latinas e gregas do texto podemos chegar agrave conclusatildeo conforme Alvar (1976 p 66) de que o autor era homem que possuiacutea uma grande cultura De fato numa passagem da obra ele caracteriza a figura de Apolocircnio como homem de letras

como intelectual com referecircncias a fontes culturais e literaacuterias da eacutepoca (Cabantildeas 1998 p 45)

Encerroacutese Apolonio en sus salas privadasdonde teniacutea escritos e historias comentadasleyoacute sus argumentos las hazantildeas pasadascaldeas y latinas tres veces repasadas

Conhecia a tradiccedilatildeo da Odisseia que comeccedila com Homero e vai ree-laborar-se nas novelas de viagens e aventuras da eacutepoca bizantina mas tam-beacutem conhecia a literatura em liacutengua latina que imitava alguns autores egreacute-gios Com todos esses elementos tatildeo variados o autor anocircnimo conseguiu criar sua obra original muito aleacutem da contingecircncia de um empreacutestimo

Pero nada surge de la nada la cultura es un lento quehacer Y la serie innu-merable de coautores del relato nos manifiesta la personalidad de cada uno de ellos [hellip] Al final tenemos un texto que es el resultado de otros muchos (Alvar 1976 p 67)

O autor portanto era homem de letras o que vale tanto como di-zer na eacutepoca cleacuterigo O cristianismo teve um papel essencial em todo Ocidente ao longo do medievo em especial para o que agora nos inte-ressa cabe ressaltar sua relevacircncia na transmissatildeo cultural conformou ndash para bem ou para mal ndash o pensamento e a vida social de toda a Europa Ocidental Por isso natildeo eacute estranho que a geografia arquitetocircnica nos ofe-reccedila inclusive atualmente a presenccedila constante de uma igreja em cada cidade ou aldeia cuja origem se encontra na inveterada tradiccedilatildeo que se deu ao longo de todo o medievo todas as cidades medievais possuiacuteam sua igreja e ao redor dela distribuiacutea-se o resto da populaccedilatildeo de onde surge por sua vez o conceito de paroacutequia Mas natildeo soacute as igrejas como lugar de culto e siacutembolo ideoloacutegico e aglutinador que presidia a vida social no incipiente meio urbano mas tambeacutem no campo no acircmbito rural os mos-teiros desenvolveram uma funccedilatildeo absolutamente primordial na histoacuteria da cultura Porque neles natildeo se ensinava apenas doutrina mas tambeacutem se conservavam e elaboravam (copiavam traduziam) textos de obras lite-raacuterias da Antiguidade (Miranda Poza 2011 p 163)

Os monges que conviviam no seio dos mosteiros eram submeti-dos a diversas regras como observar as horas destinadas agrave oraccedilatildeo agrave leitura e ao estudo das Sagradas Escrituras o cultivo do horto cuidar

dos doentes mas muito em especial desenvolviam o ingente labor de copiar no scriptorium da biblioteca do mosteiro manuscritos em latim e no percurso do tempo tambeacutem em liacutenguas romacircnicas A conhecida obra de Umberto Eco O nome da rosa constitui um magniacutefico exemplo de reconstruccedilatildeo da vida daqueles monges naqueles mosteiros medie-vais Contudo como jaacute indicamos em outro lugar (Miranda Poza 2007 p 124) o vocaacutebulo ldquoclereciacuteardquo nem sempre designava de forma exclusiva o acircmbito religioso Cleacuterigo no medievo designava o homem letrado estudioso embora a maior parte entre os que estudavam fosse efetiva-mente religiosa

Nesse sentido duas anotaccedilotildees devem ser feitas A primeira com re-laccedilatildeo ao tiacutetulo do livro Como a maior parte dos escritos dos seacuteculos XIII e XIV no tiacutetulo aparece o termo ldquolivrordquo cujo sentido natildeo era apenas ldquovo-lume formado por folhas de papel ou vitelardquo mas tambeacutem apresentava o significado de ldquomarco ordenador de certo conteuacutedo textualrdquo O poeta ainda diz que quer componer un romance de nueva maestria (Cabantildeas 1998 p 41) onde ldquoromancerdquo significaria natildeo soacute ldquopoema natildeo latinordquo mas ldquotexto de verossimilitude natildeo histoacuterica com desenvolvimento argumen-tativo e literaacuteriordquo em outras palavras de ficccedilatildeo (Michael 1986 p 510) A segunda das anotaccedilotildees faz referecircncia agrave expressatildeo ldquonueva maestriacuteardquo Com efeito o texto pertence a um novo gecircnero na poesia peninsular medieval em liacutengua neolatina o Mester de Clereciacutea Aproximadamente desde comeccedilos do seacuteculo XIII ateacute finais do seacuteculo XIV surgiram em Castela uma seacuterie de obras escritas total ou parcialmente em estrofes de quatro versos alexandrinos (de 14 siacutelabas no cocircmputo hispacircnico e 12 no cocircmputo portuguecircs-francecircs) com rima consoante e uma cesura ou pausa na metade do verso (respectivamente na seacutetima ou sexta siacutela-ba conforme o cocircmputo meacutetrico de referecircncia)6 Uma nova forma que caracteriza uma nova poesia A primeira obra que apresenta esta nova forma de poesia este novo ofiacutecio esta nova arte (ou mester) foi a versatildeo

6 Haacute uma diferenccedila como podemos apreciar na meacutetrica das tradiccedilotildees espanhola e por-tuguesa Na tradiccedilatildeo espanhola todo verso que termina em palavra oxiacutetona acrescenta uma siacutelaba no cocircmputo Destarte natildeo haacute por exemplo versos monossiacutelabos na meacutetrica espanhola porque todo monossiacutelabo eacute forccedilosamente tocircnico oxiacutetono com valor meacutetri-co duplo (Masip 2002 p 58) Por sua vez a meacutetrica portuguesa apenas toma em conta na uacuteltima palavra do verso a uacuteltima siacutelaba tocircnica de forma que um verso acabado em voz paroxiacutetona contaria com uma siacutelaba a menos do que na tradiccedilatildeo meacutetrica espanhola

castelhana do Libro de Alexandre obra anocircnima do seacuteculo XIII anterior ao Libro de Apolonio que copiava reproduzia ou recriava o Roman de Alexandre francecircs Para Goacutemez Moreno (1984) confrontando o proacutelogo do Libro de Alexandre com os de outras obras principalmente francesas clereciacutea significava entre os poetas do seacuteculo XIII ldquomoralidaderdquo mais ldquoverdade histoacutericardquo mais ldquocapacidade de traduccedilatildeordquo mais ldquoconhecimento das artes meacutetricasrdquo Os primeiros versos do texto que fundava o novo gecircnero contecircm a definiccedilatildeo formal da cuaderna viacutea que caracterizaraacute o movimento (Cantildeas Murillo 1983 p 85)

Mester traygo fermoso non es de joglariacuteaMester es sen pecado ca es de clereciacuteaFablar curso rimado por la quaderna viaA siacutellabas cunctadas ca es grand maestria

A estrofe eacute composta por versos alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas conforme o tipo de contagem) que se repetem regularmente na estro-fe de quatro versos divididos em duas partes simeacutetricas denominadas hemistiacutequios que constam de 7 (ou 6) siacutelabas cada um7 No primeiro hemistiacutequio para manter o ritmo do verso aparece um acento secundaacute-rio na sexta siacutelaba (uacuteltima na contagem portuguesa) de forma paralela ao que ocorre no segundo hemistiacutequio (Masip 2002 p 88) A cesura se manifesta na declamaccedilatildeo por uma breve pausa e nas ediccedilotildees criacuteticas ou filoloacutegicas eacute comum o costume de reproduzir um espaccedilo em branco en-tre os dois hemistiacutequios apoacutes a cesura conforme se mostra no esquema a seguir (Miranda Poza 2007 p 125)

7 O professor Vicente Masip (2002 p 65-66) define os versos alexandrinos dentro da epiacutegrafe correspondente aos tetradecassiacutelabos espanhoacuteis (tridecassiacutelabos portu-gueses) com estas palavras ldquoPoseen catorce siacutelabas meacutetricas en espantildeol y doce en portugueacutes distribuidas en dos hemistiquios de siete (seis en portugueacutes) Se llaman asiacute debido al Roman dacuteAlexandre poema franceacutes de la segunda mitad del siglo XIII usado por el autor del Libro de Alexandre espantildeol del siglo XIII El verso alejandrino fue usado por los poetas cultos del ldquoMester de Clereciacuteardquo durante los siglos XIII y XIV con el objetivo de oponer una forma regular de ldquosiacutelabas contadasrdquo a la irregularidad meacutetrica de los trovadores populares del ldquoMester de Juglariacuteardquo Este tipo de verso fue abandonado a partir del siglo XVI (exceptuando el famoso soneto a la Santiacutesima Virgen Mariacutea de Pedro Espinosa [1578-1650]) y soacutelo fue retomado en el siglo XVIII convirtieacutendose raacutepidamente en metro preferido de los romaacutenticos junto con el ende-casiacutelabo (decassiacutelabo portuguecircs)rdquo

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute acuteMes ter tray go fer mo so non es de jo gla riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteMes ter es sen pe ca do ca es de cle re ciacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteFa blar cur so ri ma do por la qua der na viacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteA siacute lla bas cunc ta das ca es grand ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Observemos como as estrofes de ldquonueva maestriardquo do Libro de Apolonio reproduzem exatamente o mesmo esquema formal8

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute (+ 1) acuteEn el nom bre de Dios τ de San ta Ma riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutesi e llos me gui a ssen es tu di ar que rriacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutecon po ner hun ro man ccedile de nue ua ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutedel Buen rey A po lo nio τ de su cor te siacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

8 Aos efeitos de contagem de siacutelabas tomamos como referecircncia na ocasiatildeo a ediccedilatildeo filoloacutegica mais fiel ao original de Dolores Corbella (1992 p 71)

Cabe perguntar-se agora uma vez abordada a caracterizaccedilatildeo do texto no que tange aos aspectos formais sobre a originalidade do autor no con-texto medieval descrito acima A intertextualidade eacute inevitaacutevel Primeiro em termos gerais como indicam Todorov (1972 p 28) ldquotodo lo nuevo en literatura no es sino material antiguo vuelto a forjarrdquo ou Claudio Guilleacuten (1985 p 220) ldquono hay literatura sin aceptacioacuten realizacioacuten transforma-cioacuten o transgresioacuten de unos modelos arquetiacutepicosrdquo Com efeito aleacutem do recurso retoacuterico agrave verossimilitude que faz o proacuteprio autor ao longo do texto ndash miradlo en la historia si a miacute no me creeacuteis (Cabantildeas 1998 p 94) ndash na literatura medieval se parte de outro conceito de literalidade diferente do que hoje temos De fato De Bruyne (1988 p 15) afirma

No se debe esperar que la Edad Media aporte definiciones nuevas u origi-nales los medievales [hellip] se dan por satisfechos con lo que encuentran en los textos antiguos pues [hellip] eacutestos no soacutelo transmiten el pensamiento de los Antiguos sino que son la evidencia del sentido comuacuten que es tambieacuten el buen sentido

Na Idade Meacutedia o texto singular responde a uma alteridade o que faz que ele esteja sempre definido em relaccedilatildeo aos demais onde eacute tatildeo importan-te a assimilaccedilatildeo quanto a transformaccedilatildeo a imitaccedilatildeo quanto a originalidade (Corbella 1992) Nesse contexto histoacuterico-cultural o medievo eacute uma ldquocul-tura textualizadardquo (Lotman 1979 p 26-27) onde eacute tatildeo real o mundo das coisas como o mundo dos signos a realidade vivida como a lida

2 Conteuacutedo do Livro de Apolonio A histoacuteria de Apolocircnio rei de Tiro

O professor Pablo Cabantildeas (1998 p 15-30) descreve de forma cer-teira o prolixo argumento do Libro de Apolonio estabelecendo ateacute sete partes diferenciadas entrelaccediladas atraveacutes de haacutebeis estrofes de transi-ccedilatildeo que conduzem o leitor-ouvinte pela conturbada histoacuteria dos prota-gonistas da trama embora no corpo do texto natildeo exista nenhuma divi-satildeo formal da primeira linha do manuscrito ateacute a uacuteltima Natildeo em vatildeo o argumento da obra responde a uma estrutura semelhante agrave novela bizantina gecircnero equivalente durante as centuacuterias medievais ao que em nossos dias poderia representar uma novela de aventuras cujo remoto precedente se encontra naquela (Alborg 1997 p132) Essas estrofes de

transiccedilatildeo asseguram a coerecircncia textual e ajudam o leitor no acompa-nhamento da trama Apenas dois exemplos

Pero del Rey Antioco quiero dejar de hablarquiero la narracioacuten a Apolonio tornarEn Tarso lo dejamos debemos recordar (Cabantildeas 1998 p 50)

Dejemos a la dama guarde su monasteriosirva su iglesia y rece los salmos del salterioVolvamos a Apolonio con nuestro ministeriollevoacute en las aventuras un infortunio serio (Cabantildeas 1998 p 88)

O resumo do argumento poderia ser o seguinte

[I] Antiacuteoco rei da Antioquia fica viuacutevo e acaba dormindo com sua proacutepria filha Uma mulher aconselha agrave filha que oculte o pecado Procurada como futura esposa por priacutencipes vizinhos o rei consegue manter a situaccedilatildeo sem ser revelada mediante um ardil (ldquodo diabordquo) pro-potildee aos postulantes a resoluccedilatildeo de um enigma Se natildeo adivinhassem a resposta certa seriam decapitados como de fato aconteceu com alguns pretendentes Ateacute que chegou Apolocircnio rei de Tiro que daacute com a res-posta certa que esconde a vergonha mas o rei Antiacuteoco diz que essa res-posta eacute uma grande afronta poreacutem lhe outorga alguns dias para buscar uma nova soluccedilatildeo Apolocircnio sabendo que ele estaacute certo foge com medo de ser executado e em natildeo havendo outra resposta possiacutevel ao enigma comeccedila assim o peacuteriplo aventureiro

[II] Antiacuteoco fica irado com a fugida de Apolocircnio e envia a Tiro um criado para assassinaacute-lo mas Apolocircnio jaacute tinha fugido a Tarso com criados e provisotildees

[III] Apolocircnio se estabelece em Tarso salvando a cidade da pobre-za com o que consegue a gratidatildeo dos moradores Mas temeroso de Antiacuteoco parte para Pentapolin Ocorre um temporal Apenas ele conse-gue se salvar chegando agarrado a uma tabua ateacute a praia onde eacute resgata-do por um pescador que o acolhe compartilhando o pouco que ele tem Recuperado Apolocircnio vai ateacute a cidade e joga bola com outros jovens

destacando-se no jogo pela sua classe e habilidade no que eacute advertido pelo rei Architrastes o qual o convida a jantar No jantar conhece a filha do rei Luciana que toca admiravelmente para ele Apolocircnio seraacute o fu-turo mestre da filha e pouco depois seu marido Com Luciana graacutevida chegam notiacutecias da morte de Antiacuteoco e da filha dele pelo qual Apolocircnio prepara uma viagem para recuperar o reino de Antioquia Luciana o acompanha apesar de seu estado O parto se adianta por causa da via-gem e morre (aparentemente) no parto O corpo eacute jogado ao mar apesar da oposiccedilatildeo de Apolocircnio pela supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo conveniente e ricamente disposto num caixatildeo com instruccedilotildees para seu enterro caso chegasse porventura ateacute terra firme

[IV] Com efeito o caixatildeo chega ateacute Eacutefeso descoberto na praia por um meacutedico que com a ajuda do seu assistente consegue reviver a dama Uma vez de volta agrave vida Luciana manda construir um mosteiro onde serviraacute a Deus

[V] Apolocircnio abalado pela perda da sua esposa volta a Tarso Natildeo se daacute a conhecer Pede a Estrangilo que cuide da sua filha Tarsiana pois ele vai morar no Egito

[VI] Morto Estrangilo Dioniacutesia a esposa dele manda matar Tarsiana para favorecer a proacutepria filha Fracassa porque no momento da tentativa de execuccedilatildeo chegam uns ladrotildees que raptam Tarsiana e a levam para ser vendida no mercado Eacute vendida a um proxeneta mas o primeiro cliente Antinaacutegona o senhor da cidade eacute convencido pelo rogo da donzela para natildeo maculaacute-la Posteriormente isso mesmo acon-teceraacute com os sucessivos clientes que seratildeo convencidos pela beleza do seu canto tendo sempre a proteccedilatildeo de Antiacutegona que juraraacute amor pater-no por ela

[VII] Volta Apolocircnio para ter notiacutecias da sua filha Dioniacutesia lhe diz que ela morreu mas as laacutegrimas do heroacutei natildeo brotam diante do falso tuacutemulo Embarca em direccedilatildeo a Tiro na sua busca Antinaacutegora visita o navio de Apolocircnio que natildeo participa da festa de recepccedilatildeo e fica isola-do no seu camarote Para tentar consolar Apolocircnio Antinaacutegora chama Tarsiana Depois de longa conversa entre os dois Apolocircnio descobre

que se trata realmente da sua filha Felicidade Consente o casamento dela com Antinaacutegora Feito o casoacuterio Apolocircnio planeja visitar Tarso e voltar a Tiro mas uma apariccedilatildeo em sonhos lhe aconselha ir ateacute Eacutefeso no templo que dizem de Diana A abadessa eacute realmente Luciana Apolocircnio recupera seu reino e mostra sua generosidade com quem lhe ajudou O final do texto eacute de teor claramente moralizante fugacidade das coisas do mundo terrestre caducidade da vida e solicitaccedilatildeo da graccedila e da miseri-coacuterdia de Deus

3 Fontes primaacuterias do Libro de Apolonio

Cerca de 100 manuscritos satildeo os textos conservados sobre a his-toacuteria de Apolocircnio alguns deles de tradiccedilatildeo claacutessica latina nos quais se falava da incineraccedilatildeo praacutetica abandonada paulatinamente no mundo ocidental a partir do seacuteculo IV quando o Cristianismo se converteu em religiatildeo oficial Aparecem tambeacutem contiacutenuos elementos pagatildeos como invocaccedilotildees a Netuno alusotildees a Apolo e a esposa de Apolocircnio aguarda sua chegada no templo de Diana Fala-se entatildeo em ecdoacutetica da exis-tecircncia do hipertexto datado no seacuteculo V ou VI a partir do qual se for-maram cinco ramos ou versotildees gerais

bullA Historia Apollonii Regis Tyri

bullA Gesta Apollonii Regis Tyri metrica

bullO Phanteon de Godofredo de Viterbo em versos latinos escrito entre 1186 e 1191 espeacutecie de histoacuteria universal na qual se inclui ao lado de outros relatos a histoacuteria de Apolocircnio

bullA Gesta Romanorum que inclui no capiacutetulo 153 a histoacuteria de Apolocircnio De tribulatione temporali que in gaudium sempiternum postremo commutabitur

bullOs Carmina Burana breve texto poeacutetico latino de comeccedilos do seacuteculo XIII onde Apolocircnio narra sumariamente em seis estrofes as aventuras da sua vida

Mas natildeo soacute devemos tomar em conta suas origens latinas A per-meabilidade da cultura claacutessica permite supor a existecircncia preacutevia de

um texto ainda mais antigo que remontaria agrave eacutepoca helecircnica (Corbella 1992 p 27) Com efeito foram achados paralelismos entre a histoacuteria de Apolocircnio e algumas obras de Xenofonte aleacutem claro eacute do inequiacutevoco caraacuteter odisseico acima evocado tanto pela estrutura do poema quanto pelos numerosos topoi que depois seratildeo conservados e repetidos ao lon-go dos seacuteculos Poreacutem a histoacuteria natildeo copia a Odisseia mas tem temas que satildeo dela situaccedilotildees que procedem de velhos peacuteriplos a caminho de Iacutetaca e isso cria um clima que eacute impossiacutevel negar

Contudo pense-se na caracterizaccedilatildeo que no Libro de Apolonio eacute dada ao protagonista tratado como um heroacutei mas ao mesmo tempo como um perfeito cavaleiro que em palavras de Manuel Alvar (1989 p 51 63) ldquoparticipa de una postura espiritual que es goacuteticardquo ldquoApolonio presenta esa otra faz del siglo XIII en la que el hombre se preocupa por el hombre en la que se siente atraiacutedo por los problemas de su realidad y su tiempordquo

Portanto quanto agrave originalidade do texto podemos dizer que o fato da trama novelesca natildeo ser outra coisa do que uma seacuterie de possiacuteveis lugares comuns natildeo afeta a proacutepria existecircncia do relato Certo eacute que cada um dos episoacutedios do texto pode ter um antecedente ou uma rela-ccedilatildeo com motivos mais ou menos difundidos mas o que temos diante dos nossos olhos eacute uma criatura iacutempar e singular Um caso egreacutegio da literatura espanhola o Lazarillo de Tormes tambeacutem natildeo apareceu do nada contos proveacuterbios tipos situaccedilotildees Mas Alvar pergunta eacute apenas isso o Lazarillo

En verdad que puede parecer postiza la historia de Antioco que los temas del incesto abundan por doquier que la compra de doncellas por rufianes explotadores no es nunca novedad [hellip] pero nada de ello sirve para explicar la Historia Apollonii mucho menos para entender la naturaleza poeacutetica del Libro espantildeol y su encanto (Alvar 1976 p 47)

4 A intertextualidade no Libro de Apolonio

41 A tradiccedilatildeo grega

Artiles (1976 p 15) como outros criacuteticos jaacute mencionados como Alborg (1997) afirmava que o Libro de Apolonio ldquoes una novela bizan-tina versificada metida en caacutenones de cuaderna viacuteardquo E efetivamente como ocorre nas novelas gregas deste gecircnero o poema mistura elemen-tos da literatura sentimental e novelesca amores impossiacuteveis e viagens tempestuosas perdas e reencontros

O mar seraacute a evasatildeo de previsiacuteveis males ou representaraacute o senti-mento de vontade de aventuras Assim raciocina Apolocircnio quando de-cide sair de Tiro e adentrar o mar aventurando-se no desconhecido nos misteacuterios e expondo-se a eventuais perigos longe da tranquilidade que lhe proporcionava seu reino (Cabantildeas 1998 p 59)

Viviacutea en mi reino regalado y honradono conociacutea penas viviacutea descansadoteniacuteame por torpe y por menoscabadoporque por muchas tierras no habiacutea viajado

No diaacutelogo platocircnico Feacutedon fala-se dos misteacuterios que os heroacuteis dos relatos lendaacuterios natildeo souberam acatar e por isso seguiram os caminhos da dor (Alvar 1976 p 49)

oὐ μέντοι rsquoαλλὰ τόδε γέ τίς μοι δοκεῖ ὡ Κέβης εὖ λέγεσθαι τὸ θεους εἰναι ἡμῶν τοὺς ἐπιμελουμενους καὶ ἡμας τοὺς ἀνθρώπους ἐν τῶν κτημάτων τοὶς θεοῖς εἶναι [Aquilo dos misteacuterios de que noacutes homens nos encontra-mos numa espeacutecie de caacutercere que nos eacute vedado abrir para escapar Uma coisa pelo menos Cebete me parece bem enunciada que os deuses satildeo nos-sos guardiotildees e noacutes homens propriedade deles]9

Agrave tradiccedilatildeo da Odisseia responde o relato autobiograacutefico dos heroacuteis Surgem as aventuras e desventuras dos protagonistas tanto no Libro como nas novelas gregas Haacute muito tempo que foi dito que as nove-las gregas satildeo uma espeacutecie de sequecircncias cinematograacuteficas (Rattenbury 1935 pp XXII e XCII) que nos conduzem de um cenaacuterio para outro de

9 Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico Feacutedon Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia)

aventura em aventura e noacutes ndash simples espectadores ndash corremos atraacutes da dor dos heroacuteis Mas aleacutem disso a vida dos protagonistas eacute a muacutesica ambiente que faz vibrar as estrofes do Libro ou move a compaixatildeo dos leitores natildeo eacute a vida como peripeacutecia mas a autobiografia contemplada como passado remoto que move o leitor numa identificaccedilatildeo de simpa-tia ateacute aqueles heroacuteis golpeados pelo destino

Tambeacutem como na Odisseia no Libro de Apolonio os companheiros do heroacutei morrem e apenas ele se salva e consegue chegar agrave praia agarra-do numa tabua

Libro de Apolonio Odisseia

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echarDe vestido y calzado pobre estaba al llegara Pentapolin tierra donde hubo de arribar

ἧος ὁ ταῦθ᾽ ὣρμαινε κατὰ φρέναα καὶ κατὰ θυμὁνὧρσε δ᾽ ἐπὶ μέγα κῦμα Ποσειδάων ἐνοχθωνδεινόν τ᾽ ἀργαλέον τε κατηρεφές ἤλασε δ᾽ αὐτόνὡς δ᾽ ἄνεμος ζαης ἠἲων θημῶνα τινάξῃκαρφαλέων τὰ μὲν ἂρ τε διεσκέδασ᾽ ἂλλυδις ἂλλῃὥς τῆς δούρατα μακρὰ διεσκέδασ᾽ αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςἀμφ᾽ ένὶ δούρατι βαῖνε κέληθ᾽ ώς ἵππον ἐλαύνων

Fez surgir logo Posido que a terra sa-code uma vaga cheia de grandes peri-gos que se arca e sobre ele desaba Bem como vento impetuoso que monte de palha desmancha para levaacute-lo em re-moinho de um lado para outro desfeito dessa maneira o mar forte os pranchotildees espalhou Odisseu monta num deles tal como se fosse cavalo de pista

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 57) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 V vv 365-372) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 108)

Como Apolocircnio quando natildeo tem roupas adequadas para entrar no palaacutecio de Archistrastes Ulisses ataviado pobremente tambeacutem fica no umbral da sua proacutepria casa

Libro de Apolonio Odisseia

Apolonio por miedo de la Corte enojarno teniacutea vestido nada con que adornarno quiso de verguumlenza en el palacio entrarretornoacute hasta la puerta y comenzoacute a llorar

ἀγχίμολον δὲ μετ᾽ αὐτὸν ἐδύσετο δώματ᾽ [Ὀδυσσεύςπτωχῷ λευγαλέω ἐναλίκιος ἠδὲ γέροντισκηπτόμενος τὰ δὲ λυγρὰ περὶ εἴματα ἓστοἷζε δ᾽ ἐπὶ μελίνου οὐδοῦ ἔντοσθε θυράωνκλινάμενος σταθμω κυπαρισσίνω ὃν ποτε τέκτωνξέσσεν ἐπισταμένως καὶ ἐπὶ στάθμην ἴθυνην

[Entra na sala depois do porqueiro o divino Odisseu desfigurado num velho pedinte de miacutesero aspecto num pau firmado cobrindo-lhe o corpo uns andrajos trazia Sobre a soleira de freixo da porta de dentro assentando-se no umbral o corpo encostou de cipreste que o artiacutefice outrora com muito engenho lavrara tomando as medidas com fio]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 63) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XVII vv 336-341) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 297)

Como na Odisseia a muacutesica serve para envolver o relato das aven-turas dos heroacuteis Assim Demoacutedoco o aedo movido por um impulso di-vino faz chorar a Ulisses pelo qual Alciacutenoo decide suspender seu can-to para natildeo perturbar o convidado Paralelamente no Libro Apolocircnio chora de pena e natildeo se deleita diferentemente dos presentes com os cantos de Luciana filha de Architrastes

Libro de Apolonio Odisseia

Comenzoacute Apolonio de suspiros cargadodijo toda su pena por lo que hubo pasadodoacutende estaacuten tierra y reino coacutemo era llamadobien lo escuchoacute la dama teniendo gran agrado

Los altos y los bajos todos de ella deciacuteanLa dama y la vihuela tan bien se sucediacuteanque lo tienen a hazantildea todos los que lo oiacuteanHizo otros ejercicios que mucho maacutes valiacutean

Alabaacutendola todos Apolonio callabaPensando estuvo el rey por queacute eacutel no hablabaLe preguntoacute y le dijo que se maravillabaque con todos los otros tan mal de acuerdo [estaba

ταῦτ᾿ ἂρ᾿ ἀοιδὸς ἂειδε περικλυτός αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςτήκετο δάκρυ δ᾿ ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάςὡς δὲ γυνή κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσαὁς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσινἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἧμαρ

ldquoκέκλυτε Φαιήκων ἡμήτορες ἠδὲ μέδοντεςΔημόδοκος δ᾿ ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειανοὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ᾿ ἀείδει

[Isso narrava o famoso cantor Odisseu entrementes liquefa-zia-se em laacutegrimas tendo ba-nhadas as faces como mulher abraccedilada no corpo do caro ma-rido que sucumbisse a lutar jun-to aos muros e seus moradores a defendecirc-la e a seus filhos da sorte do dia impiedoso [] Pare portanto o cantor porque ale-gres fiquemos noacutes todos]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 66-67) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 521-525) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 536-538) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 150-151)

Apolocircnio enfim comeccedila sua peregrinaccedilatildeo por terras de Egito da mesma forma que no relato eacutepico de Homero tambeacutem Ulisses dirige suas naves ateacute o Egito

Libro de Apolonio Odisseia

laquoTe encomiendo la hija te la doy a criarcon su ama Licoacuterides que la sabraacute guardarno quiero los cabellos ni las untildeas cortarhasta que casamiento bueno le pueda dar

laquoHasta que yo esto pueda cumplir y prepararel reino de Antioco yo le quiero dejarAhora ni en Pentapolin ni en Tiro quiero entrarIreacute hasta Egipto donde quiero mientras estarraquo

μῆνα γὰρ οἷον ἔμεινα τεταρπόμενος τεκέεσσινκουριδίῃ τ᾽ ἀλόχω καὶ κτήμασιν αὐτὰρ ἔπειταΑἴγυπτὸνδε με θυμὸς ἀνώγει ναυτίλλεσθαι

[Um mecircs somente fiquei deleitando-me ao lado dos filhos da que esposei quando virgem pois logo depois de algum tempo me manda o peito viajar outra vez para o Egito distante]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 91) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XIV vv 244-246) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 244)

42 A tradiccedilatildeo latina

Como no caso da grega a tradiccedilatildeo latina se faz presente em diversas pas-sagens do Libro de Apolonio Jaacute foi dito que a muacutesica e quem a interpreta o vate as habilidades musicais em geral satildeo traccedilos positivos caracterizadores do heroacutei Isso mesmo se narra na tradiccedilatildeo claacutessica latina dentre outros na fi-gura de Oviacutedio Nas Tristia ele mesmo se apresenta para a posteridade como poeta relevante na introduccedilatildeo agrave sua obra (Oviacutedio 1997 p 66) Ille ego qui fuerim tenerorum lusor amorum Quem legis ut noris accipe posteritas10

Natildeo resulta estranho portanto que Apolocircnio chegue a ser compa-rado pelo autor do Libro com o poeta Orfeu um dos grandes mitos da tradiccedilatildeo claacutessica (Cabantildeas 1998 p 68)

Todos por una boca deciacutean y afirmabanque ni Apolo ni Orfeo mejor que eacuteste tocabanel cantar de la dama al que mucho alababanante eacuteste de Apolonio en nada lo apreciaban

Com efeito nas Metamorfoses Oviacutedio narra a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Receacutem-casada a jovem Euriacutedice eacute mordida por uma cobra

10 ldquoVem conhecer posteridade o poeta que fui De amores ternos o poeta que ora lecircsrdquo (Oviacutedio 1997 p 67) ldquoSabei oacute Posteridade para que me conheccedilas que sou aquele que fui cantor dos ternos amores que lecircsrdquo (Naso 1952 p173)

e morre Nam nupta per herbas dum noua Naiadum turba comitata uagatur occidit im talum serpentis dente recepto (Ovidio Nasoacuten 1994 p171)11 Depois de chorar a morte da amada no mundo terreno o excel-so poeta decide descer ao Estige e consegue convencer Perseacutefone atra-veacutes do seu belo canto e suas doces palavras para devolver Euriacutedice ao mundo dos mortais Quem satis ad superas postquam Rhodopeiumlus auras defleuit uates ne non temptaret et umbras ad Styga Taenaria est ausus descendere porta (Ovidio Nasoacuten 1994 p 171)12 Comovidos os deuses das trevas concedem o pedido do vate

Talia dicentem neruosque ad uerba mouentemexsangues flebant animae []Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama estEumenidum maduisse genas nec regia coniuxsustinet oranti nec qui regit ima negareEurydicenque uocant13

(Ovidio Nasoacuten 1994 p173)

Poreacutem a libertaccedilatildeo eacute concedida sob uma condiccedilatildeo natildeo voltar os olhos para a amada ateacute sair do Averno Hanc simul et legem Rhodopeiumlus accipit Orpheus ne flectat retro sua lumina donet Auernas exierit ual-les aut irrita dona futura (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)14 Quando che-gavam no limite dos dois mundos temeroso de que ela pudesse enfra-quecer Orfeu voltou seu rosto para Euriacutedice e no mesmo instante ela caiu no abismo Nec procul afuerunt telluris margine summae hic ne deficeret metuens auidusque uidendi flexit amans oacuteculos et protinus illa relapsa est (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)15 Portanto o canto de Apolocircnio

11 ldquoEuriacutedice pouco depois do casamento quando passeava com as ninfas suas compa-nheiras [] pisou em uma cobra foi mordida no peacute e morreurdquo (Bulfinch 2001 p 224)

12 ldquoOrfeu cantou seu pesar para todos quantos respiram na atmosfera superior deuses e homens e nada conseguindo resolveu procurar a esposa na regiatildeo dos mortos Desceu por uma gruta situada ao lado do promontoacuterio de Teacutenaro e chegou ao reino do Estigerdquo (Bulfinch 2001 p 224-226)

13 ldquoEnquanto cantava estas ternas palavras os proacuteprios fantasmas derramavam laacutegri-mas [] Entatildeo pela primeira vez segundo se diz as faces das Fuacuterias umedeceram-se de laacutegrimas Proseacuterpina natildeo pocircde resistir e o proacuteprio Plutatildeo cedeu Euriacutedice foi cha-madardquo (Bulfinch 2001 p 226)

14 ldquoOrfeu teve permissatildeo de levaacute-la consigo com uma condiccedilatildeo a de que natildeo se voltaria para olhaacute-la enquanto natildeo tivessem chegado agrave atmosfera superiorrdquo (Bulfinch 2001 p 226)

15 ldquoateacute quase atingirem as risonhas regiotildees do mundo superior quando Orfeu num momento de esquecimento para certificar-se de que Euriacutedice o estava seguindo olhou para traacutes e Euriacutedice foi entatildeo arrebatadardquo (Bulfinch 2001 p 226)

eacute aqui comparado com a excelecircncia do famoso poeta que foi capaz de comover ateacute as divindades das trevas

Outro episoacutedio do Libro nos aproxima da mitologia claacutessica Quando viacutetima do naufraacutegio pobre e exausto Apolocircnio eacute hospedado por um hu-milde pescador que vai compartilhar com ele o pouco que tem o heroacutei pro-mete recompensaacute-lo no futuro pela sua boa accedilatildeo (Cabantildeas 1998 p 58-59)

El rey con gran verguumlenza porque pobre estuvierafue hacia el pescador salioacutele a la esperalaquomdashiexclDios te salve mdashle dijo como cosa primeraRespondioacute el pescador de sabrosa maneralaquomdashAmigo mdashdijo el reymdash tuacute bien lo puedes verPobre y necesitado estoy no traigo haberAsiacute Dios te bendiga que te pueda placerque comprendas mi pena y la quieras saberlaquoTan pobre cual tuacute ves desnudo y desdichadode un buen reino soy rey muy rico y potentadode la ciudad de Tiro donde era muy amadodiacutecenme Apolonio por nombre sentildealadoraquoSu vestido partioacute maacutes tarde con su espadadio al rey la mitad lo llevoacute a su posadaLe dio de cenar cuanto pudo no escondioacute nadaPor un hueacutesped ninguna cena fue mejor dada

Tambeacutem nas Metamorfoses a histoacuteria de Filecircmon e Baucis pode re-presentar perfeitamente um antecedente textual deste episoacutedio Filecircmon eacute um velho camponecircs marido de Baucis que recebeu junto com esta a visita de Juacutepiter que se apresentou de incoacutegnito na casa deles

Iuppiter hunc specie mortali cumque parenteuenit Atlantiades positis caduficer alis mille domos adiere locum requiemque petentesmille domos clausere serae tamen una recepitparua quidem stipulis et canna tecta palustrised pia Baucis anus parilique aetate Philemonilla sunt annis iuncti iuuenalibus16

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 120-121)

16 ldquoCerta vez Juacutepiter sob forma humana visitou a regiatildeo em companhia de Mercuacuterio (o do caduceu) sem suas asas Apresentaram-se como viajantes fatigados a muitas portas pro-curando abrigo e reposo mas encontraram todas fechadas Afinal uma moradia humil-de acolheu-os uma pequena choupana onde uma piedosa velha Baucis e seu marido Filecircmon unidos quando jovens haviam envelhecido juntosrdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

Uma vez revelada a sua verdadeira identidade ndash lsquodirsquo que lsquosumus meritasque luet uicina poenas inpiarsquo dixerunt lsquouobis inmunibus huius esse mali dabiturrsquo (Ovidio Nasoacuten 1994 p 123)17 o casal foi recom-pensado pelos deuses da mesma forma que aqueles que natildeo os recebe-ram adequadamente foram punidos e morreram afogados O pedido do casal aos deuses foi morrer no mesmo dia para nunca eles sentirem respectivamente falta do outro

lsquoDicite iuste senex et femina coniuge iustodigna quid optetisrsquo []lsquoet quoniam concordes egimus annosauferat hora duos eadem nec coniugis umquambusta meae uideam neu sim tumulandus ab illarsquo18

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 124)

No Libro de Apolonio por sua vez na parte final do poema o protago-nista tambeacutem recompensaraacute seu hoacutespede ricamente (Cabantildeas 1998 p 132)

Por todos los trabajos que le habiacutean venidono olvidoacute el convenio que habiacutea prometidorecordoacute al pescador que lo habiacutea acogidoel que hubo con eacutel el mantillo partidoDios que vive y reina tres y uno llamadodepare un tal hueacutesped a todo hombre cuitadobien haya tal hueacutesped cuerpo tan acordadoque tan buen galardoacuten da a un hospedado

43 Orientalismo

Vaacuterios satildeo os traccedilos que denunciam a influecircncia oriental no Libro de Apolonio Jaacute foi comentada acima a proximidade temaacutetica com rela-ccedilatildeo agrave literatura de aventuras os livros de viagens e a novela bizantina (Artiles 1976 Alborg 1997) Contudo algumas outras caracteriacutesticas acrescentam seu grau de intertextualidade com o mundo oriental

17 ldquondash Somos deuses Esta aldeia inospitaleira sofreraacute a pena de sua impiedaderdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

18 ldquomdash Excelente velho e tu mulher digna de tal marido dizei-me quais satildeo os vosso desejos Que favor quereis de noacutes [] E como passamos toda a nossa vida com amor e concoacuterdia desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida e que eu natildeo viva para ver o tuacutemulo de Baucis nem ela para ver o meurdquo (Bulfinch 2001 p 64)

O primeiro aspecto que merece destaque eacute sem duacutevida no arran-que da histoacuteria de Apolocircnio o enigma como ardil que os pretenden-tes devem resolver para desposarem a filha do rei Antiacuteoco (Cabantildeas 1998 p 43-44)

La verdura del ramo es como la raiacutezde carne de mi madre engrueso mi cervizAquel que adivinase este enigma felizeacutese tendriacutea la hija del rey emperatrizldquoTuacute eres la raiacutez tu hija el ramaltuacute pereces por ella en pecado mortalpues hereda la hija toda deuda carnalla cual tuacute y su madre teniacuteais comunalrdquo

Natildeo eacute contudo o uacutenico exemplo de adivinhaccedilatildeo ou enigma ao longo do poema De fato em outro momento destacado da obra quando o heroacutei descobre que Tarsiana eacute sua filha esta para entretecirc-lo traccedila uma seacuterie de adivinhaccedilotildees que Apolocircnio haveria de resolver (Cabantildeas 1998 p 113)

ldquomdashUnas pocas preguntas te quiero preguntarSi tuacute me las supieses en razoacuten contestarllevareacute la ganancia que me mandaste darsi no me respondieres quieacuterotela dejarldquoDime cuaacutel es la casa ndashpreguntoacute la criadandashque nunca se estaacute queda siempre anda laceradalos hueacutespedes son mudos da voces la posadaSi esto adivinases te quedareacute obligadardquoldquomdashEsto ndashdijo Apoloniondash yo lo voy ideandoel riacuteo es la casa que corre murmurandolos peces son los hueacutespedes que siempre estaacuten callandoEacutesta estaacute terminada ve otra preguntandordquo

As adivinhaccedilotildees satildeo conhecidas por todos os povos desde os pri-moacuterdios e no geral referem coisas comuns de faacutecil compreensatildeo pelo que apresentam um caraacuteter essencialmente popular Contudo sua ori-gem eacute oriental onde muitas vezes expressavam os mais elevados pen-samentos ldquolas maacutes antiguas que se conocen pertenecen a la eacutepoca ba-biloacutenica y aparecen escritas en tablillasrdquo (Rasero Chacoacuten 2004 p 227) Exemplos de adivinhaccedilotildees ou enigmas aparecem em textos biacuteblicos no Alcoratildeo na mitologia grega e nos manuscritos sacircnscritos

Capiacutetulo agrave parte merece a referecircncia sobre a lapidaccedilatildeo como cas-tigo imposto ao proxeneta ndash vino un hombre malo sentildeor de soldaderas pensoacute en ganar con eacutesta ganancias tan sentildeeras (Cabantildeas 1998 p 98) ndash que explorava Tarsiana

No quisieron el ruego poner en otro plazoremovioacutese el concejo como un santildeudo mazobuscaron al traidor echaacuteronle el lazomataacuteronlo con piedras cual rapaz de mal trazo (Cabantildeas 1998 p 122)

A praacutetica da lapidaccedilatildeo era habitual nas tradiccedilotildees preacutevias ao Alcoratildeo no Oriente e de comum aplicaccedilatildeo O primeiro maacutertir cristatildeo Satildeo Estevatildeo morreu lapidado Saulo de Tarso o futuro Satildeo Paulo dedicado na eacutepoca agrave perseguiccedilatildeo dos cristatildeos participou passivamente da lapi-daccedilatildeo observando a cena De fato na Biacuteblia as referecircncias a lapidaccedilotildees satildeo numerosas envolvendo quase sempre assuntos relacionados com atitudes haacutebitos e atividades sexuais

Se um homem se casa com uma mulher e apoacutes coabitar com ela comeccedila a detestaacute-la imputando-lhe atos vergonhosos e difamando-a publicamente dizendo ldquoCasei-me com esta mulher mas quando me aproximei dela natildeo encontrei os sinais da sua virgindaderdquo [] se a denuacutencia for verdadeira se natildeo acharem as provas da virgindade da jovem levaratildeo a jovem ateacute a por-ta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejaratildeo ateacute que morra (Deuteronocircmio 22 13-21)

Se houver uma jovem virgem prometida a um homem e um homem a encontra na cidade e se deita com ela trareis ambos agrave porta da cidade e os apedrejareis ateacute que morram a jovem por natildeo ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher do seu proacuteximo (Deuteronocircmio 22 23-24)

Iahweh falou a Moiseacutes e disse Tira fora do acampamento aquele que pronun-ciou a maldiccedilatildeo Todos aqueles que o ouviram poratildeo suas matildeos sobre a cabeccedila dele e toda a comunidade o apedrejaraacute (Leviacutetico 24 13-14)

Mais conhecido eacute o episoacutedio da mulher aduacuteltera (Joatildeo 8 3-11)

Os escribas e os fariseus trazem entatildeo uma mulher surpreendida em adul-teacuterio e colocando-a no meio dizem-lhe ldquoMestre esta mulher foi surpre-endida em flagrante delito de adulteacuterio Na Lei Moiseacutes nos ordena apedre-jar tais mulheres Tu pois que dizesrdquo [] Quem dentre voacutes estiver sem

pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra Eles ouvindo isso saiacuteram um apoacutes do outro a comeccedilar pelos mais velhos [] Entatildeo erguendo-se Jesus lhe disse ldquoMulher onde estatildeo eles Ningueacutem te condenourdquo Disse ela ldquoNingueacutem Senhorrdquo Disse entatildeo Jesus ldquoNem eu te condeno Vai e de agora em diante natildeo peques maisrdquo

Por fim um uacuteltimo traccedilo de orientalismo no texto de caraacuteter aber-tamente literaacuterio e muito mais claro e direto as referecircncias inequiacutevocas agraves Mil e uma noites Com efeito como Sherazade Tarsiana consegue no caso continuar virgem atraveacutes de suas habilidades musicais que con-vencem os homens que pagam para passar a noite com ela No texto oriental Sherazade contaraacute a seu marido o sultatildeo Shariar graccedilas a sua imaginaccedilatildeo desbordante a histoacuteria de Ali Babaacute e depois viratildeo outras igualmente fantaacutesticas durante mil e uma noites histoacuterias que ela deixa interrompidas quando amanhece para continuar na noite seguinte atre-lando-as a novas histoacuterias O sultatildeo absolutamente fascinado suspen-deraacute a execuccedilatildeo prevista ndash para evitar uma eventual traiccedilatildeo que tinha sofrido com outra mulher ndash jaacute que planejava a morte de uma virgem do seu hareacutem por dia (Riquer amp Valverde 1991 vol 3 p 65-66) No Libro de Apolonio satildeo narradas as habilidades de Tarsiana com os sucessivos clientes do bordel comeccedilando pelo primeiro deles que foi o senhor da cidade Antinaacutegora o qual pagou um alto preccedilo em troca da virgindade e que no final da obra acabaraacute sendo seu esposo

ldquoYo puedo por tu hecho perder ventura y hadocaeraacutes por mal cuerpo tuacute en mortal pecadoHombre eres de valor que estaacutes siempre encumbradosobre hueacuterfana pobre no hagas desaguisadordquo

ldquomdashDama bien entiendo esto que me deciacutesde buena parte sois de linaje veniacutesesta peticioacuten que vos a miacute pediacutesveacuteolo por derecho pues bien lo concluiacutes

ldquoEl precio que dariacutea para con vos pecaros lo quiero de gracia ofrecer y donarque si vos no pudiereis por el ruego escaparal que con vos entrare dadlo para apartar

ldquoSi vos con esta mantildea os podeacuteis defendermientras lo miacuteo durare no os faltaraacute haberrdquo (Cabantildeas 1998 p 100-101)

Tarsiana com o dinheiro de Antinaacutegora consegue convencer o proxeneta para ela aprender outro ofiacutecio de cantora trovadora e assim ele ficaria mais rico e ela honrada

ldquoSentildeor si de ti fuese lo que pido otorgadootro mester sabiacutea que es maacutes sin pecadoque es maacutes ganancioso y es maacutes honrado

ldquoSi tuacute me lo otorgas por la tu cortesiacuteaque me ponga en estudio de esa maestriacuteacuanto tuacute me pidieses yo tanto te dariacuteatuacute tendriacuteas ganancia y yo no pecariacuteardquo

Luego al otro diacutea casi de madrugadalevantoacutese la dama ricamente adornadatomoacute la viola buena y bien templaday salioacute al mercado a tocar por soldada

Tan bien supo la dama su cosa prepararque sabiacutea a su amo la ganancia aumentarRiendo y bromeando con el su buen mirarsuacutepose aunque nintildea del pecado apartar (Cabantildeas 1998 p 102-103)

Eis aqui portanto um exemplo de adaptaccedilatildeo medieval de um velho motivo oriental o que vai nos conduzir ateacute a seguinte epiacutegrafe os traccedilos de medievalismo no processo de recepccedilatildeo e transmissatildeo dos textos pagatildeos

5 O medievalismo do Libro de Apolonio originalidade imitaccedilatildeo adaptaccedilatildeo

Toda obra eacute filha do seu tempo O Libro de Apolonio como dito natildeo seraacute uma exceccedilatildeo A Idade Meacutedia foi um periacuteodo longo e conturbado es-pecialmente se considerarmos a encruzilhada representada pelo Ocidente frente ao Oriente no acircmbito da espiritualidade o Cristianismo frente ao Islam Mas antes de tudo havia uma forte cultura pagatilde de tradiccedilatildeo gre-co-romana aleacutem de muitas outras que depois com a volta do olhar para o homem no Renascimento ndash e ainda muito depois no Romantismo ndash retornaratildeo agraves versotildees originais longe de qualquer adaptaccedilatildeo

Nesse sentido a originalidade do texto radica em apresentar-nos uma tensatildeo entre o local a adaptaccedilatildeo agrave cultura castelhana e o universal a cultura e a lenda de tradiccedilatildeo claacutessica que inclui inequiacutevocos traccedilos orientais e pagatildeos Em outras palavras o medievo realizou uma adap-taccedilatildeo e imitaccedilatildeo de foacutermulas tipos e motivos que se repetiram por toda Europa e que representaram a reatualizaccedilatildeo de registros claacutessicos

O primeiro elemento caracterizador dessa adaptaccedilatildeo medieval como foi jaacute parcialmente apontado vem da matildeo da religiosidade e do imaginaacuterio cristatildeo Em palavras de Le Goff (1983 p 57)

Toda toma de conciencia en la Edad Media se hace por y a traveacutes de la religioacuten ndashen el plano de la espiritualidadndash Podriacutea definirse casi una mentalidad me-dieval por la imposibilidad de expresarse al margen de referencias religiosas

Assim por exemplo uma reinterpretaccedilatildeo das contiacutenuas viagens de Apolocircnio desde esta perspectiva do leitor medieval pode ser aleacutem do arqueacutetipo da dinacircmica da vida do exiacutelio voluntaacuterio a de entender a vida como um percurso ateacute a outra vida o Aleacutem Nesse sentido a pere-grinatio vitae eacute siacutembolo do cristianismo que potildee em evidecircncia o caraacuteter transitoacuterio de toda situaccedilatildeo

Mas jaacute em referecircncia direta ao texto se compararmos o poema es-panhol com a fonte latina que lhe serve como base a Historia Apollonii Regis Tyri surpreende de imediato a grande quantidade de referecircncias religiosas que observamos Com efeito o poema castelhano modifica o espiacuterito pagatildeo da Historia latina Manuel Alvar (1976 p 142) elaborou na sua ediccedilatildeo criacutetica um documentado estudo contendo de um lado as vozes que fazem referecircncia a costumes deuses festas ou crenccedilas pagatildeos (soacute como amostra ampulla uini Apollo Diana Neptunus sepulcrum templa) e do outro as vozes cristatildes correspondentes ndash natildeo necessaria-mente equivalentes das anteriores ermitantildeo santo cleacuterigos monasterio descomulgado pecado nintildea en pecado rayo del diablo etc

Sem entrar nos aspectos puramente leacutexicos jaacute estudados pelo pres-tigioso filoacutelogo espanhol seria bom mergulharmos nessas adaptaccedilotildees de caraacuteter religioso para uma melhor compreensatildeo da dimensatildeo ide-oloacutegica que este tipo de obra representava A primeira e mais eviden-te resulta da cristianizaccedilatildeo dos primeiros versos do poema (Cabantildeas 1998 p 41)

En el nombre de Dios y de Santa Mariacuteasi ellos me guiasen estudiar querriacuteacomponer un romance de nueva maestriacuteadel buen rey Apolonio y su cortesiacutea

Esses primeiros versos satildeo precisamente os que os poetas claacutessicos de-dicavam como invocaccedilatildeo agrave Musa fonte inspiradora como por exemplo para natildeo perder o fio de Homero na Iliacuteada (1965 p 59) Μῆνιν ἂειδε θεά Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος ουλομένην19 ou tambeacutem na Odisseia (1965 p 131) Ἀνδρα μοι ἔννεπε Μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ πλάγχθη20 E para concluir soacute neste primeiro instante podemos ir do Alfa ao Ocircmega isto eacute do iniacutecio ao teacutermino do Libro Laacute encontramos um final moralizante dentro da mais genuiacutena doutrina cristatilde (Cabantildeas 1998 p 135)

Muerto estaacute Apolonio todos morir debemospor aquello que amamos el final no olvidemosPor lo que aquiacute hicieacuteremos allaacute recibiremosallaacute iremos todos siempre de aquiacute saldremos

Dejemos la palabra la razoacuten no alarguemospocos seraacuten los diacuteas que aquiacute moraremosCuando de aquiacute salgamos iquestqueacute ropa llevaremossi no al festiacuten de Dios de Aqueacutel en que creemos

El Sentildeor que gobierna los vientos y la marEacutel nos deacute la su gracia y Eacutel se digne guiary asiacute nos deje tales cosas pensar y obrarque por la su merced podamos escaparEl que tuviere seso responda y diga ameacuten

E ainda para completar natildeo falta o momento de moralizaccedilatildeo no meio da obra cumprindo com o princiacutepio de exemplaridade medieval modelo de conduta e comportamento para aprendizado de todos os exempla21 O esquema eacute simples parte-se do caso particular narrado e se generaliza em termos de moral cristatilde modelo de comportamento

19 ldquoCanta-me oacute deusa do Peleio Aquiles A ira tenazrdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portu-guesa de Manuel Odorico Mendes [2004 p 25])

20 ldquoMusa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito peregrinourdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes [2000 p 28])

21 No proacutelogo do Conde Lucanor Don Juan Manuel explica o intuito da sua obra Et porque cada home aprende mejor aquello de que se maacutes paga por ende el que alguna cosa quiere

Confunda Dios tal rey de tan mala mesuraviviacutea en pecado e ideaba locuramatar queriacutea al hombre que dijera corduraa aqueacutel que resolvioacute la adivinanza oscura

Esto mismo acontece con todos los pecadoslos unos con los otros van todos enlazadosSi no fueren aprisa los unos enmendadosotros muchos mayores son luego acumulados (Cabantildeas 1998 p 48-49)

Nada de novo portanto no panorama que poderia entatildeo oferecer o contexto medieval Em palavras de Blanco Aguinaga (2000 I p 75) rdquoEl Libro de Apolonio [hellip] se relaciona con los esquemas de la vieja novela bizan-tina de aventuras y viajes de final feliz y con las habituales moralizacionesrdquo

Os fenoacutemenos meteoroloacutegicos que governam o mar eram na eacutepica claacutessica atribuiacutedos a divindades pagatildes Como eacute loacutegico o anocircnimo autor do Libro de Apolonio atribui ao Deus cristatildeo esses avatares e a Ele se encomenda para pedir a proteccedilatildeo do heroacutei e de todos noacutes

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echar (Cabantildeas 1998 p 57)

Soacute nesse contexto de adaptaccedilatildeo cristatilde da mitologia pagatilde que vimos apontando pode justificar-se a suposta crueldade do Deus misericordioso e justo cristatildeo frente agrave arbitrariedade das deidades greco-latinas muitas

mostrar a otro deacutebegelo mostrar en la manera que entendiere que seraacute maacutes pagado el que la ha de aprender Et porque muchos homes las cosas sotiles non les caben en los entendimien-tos nin las entienden bien [hellip] yo don Juan fijo del infante don Manuel [hellip] compuesto de las maacutes fermosas palabras que yo pude et entre las palabras entremetiacute algunos ejem-plos de que se podriacutean aprovechar los que los oyeren (Don Juan Manuel 1977 p 13-14)

vezes interessadas apenas em resolver seus proacuteprios confrontos tomando como refeacutens de suas accedilotildees os homens mortais Afora eacute claro a evidente contradiccedilatildeo que se produz em relaccedilatildeo agrave dupla atitude de Deus atribuiacuteda pelo autor do texto agrave sorte de Apolocircnio nos versos destacados da passa-gem acima Outras vezes as tempestades convenientemente guiadas por Deus provocam o acaso que permite o reencontro dos personagens

La tempestad cogioacutelos y el mal temporalsacoacutelos de camino la borrasca mortalechoacutelos su ventura y el Rey espiritualen la villa que pasa Tarsiana mucho mal (Cabantildeas 1998 p 106)

Contudo agraves vezes os fenocircmenos adversos da natureza satildeo atribuiacute-dos ao diabo e natildeo a Deus

laquoDile que muerto estaacute Antioco y enterradoCon eacutel murioacute la hija que lo llevoacute al pecadodestruyoacutelos a ambos un rayo del diabloraquo (Cabantildeas 1998 p76)

A adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio religioso cristatildeo do medievo obriga a forccedilar situaccedilotildees como aquela em que Architrastes rei de Pentapolin daacute sua benccedilatildeo a Apolocircnio e sua filha Luciana quando partem para Antioquia uma vez mortos o rei Antiacuteoco e sua filha Bendiacutejolos a en-trambos con su derecha mano rogoacute al Creador que estaacute en lo maacutes alto que Eacutel guiase a su hija en invierno y veranohellip (Cabantildeas 1998 p 78)

Contudo como vaacuterios seacuteculos depois vai acontecer de novo no per-curso da historia da literatura universal a mistura de influecircncias deixa notar sua presenccedila nesta encruzilhada de culturas e imaginaacuterios Assim no aacutepice do teatro barroco espanhol pode parecer surpreendente a for-ma como Calderoacuten de la Barca em La vida es suentildeo conjuga o fatalismo do horoacutescopo e a providecircncia cristatilde (Alborg 1997 p 690) Lapesa amp Ruiz Ramoacuten falam nesse sentido de ldquooposiciones de contrastesrdquo (1983 p 430) Com efeito Calderoacuten nos apresenta horoacutescopos pressaacutegios e vaticiacutenios que prognosticam os futuros contingentes os astroacutelogos ou judiciaacuterios sabedores de matemaacuteticas sutis julgando signos astrais pre-dizem os influxos de estrelas e planetas Mas as previsotildees dos homens por saacutebios que eles sejam resultam inuacuteteis para preservar-se do ditado

por poderes supremos que regem o acontecer ndash embora nem sempre seja assim como confessa Victor Hugo no prefaacutecio de Notre-Dame de Paris22 ndash onde emerge a grande oposiccedilatildeo ceacuteu fado No Libro de Apolonio o fado o ἀναγκή citado por Victor Hugo caracterizador dos heroacuteis eacutepicos e de outros futuros convive diretamente com o Espiacuterito Santo (Cabantildeas 1998 p 88)

La gente desolada y su rey descasadopasaron su trayecto maldiciendo del hadoEl Espiacuteritu Santo los guioacute sosegadoasiacute el mar arribaron a Tarso sitio amado

Essa mesma oposiccedilatildeo de contrastes ou encruzilhada cultural justifica enfim o episoacutedio que narra a supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo do navio que obriga a desova no mar do corpo de Luciana aparentemente morto o que configu-ra por sua vez um novo foco na trama aventureira do protagonista

ldquoAntes de pocas horas si el cuerpo retenemoshabremos muerto todos librarnos no podremossi la madre perdemos buena hija tenemosmal haces Apolonio que asiacute permanecemosrdquo (Cabantildeas 1998 p 81)

Mas ainda como texto medieval participa de referecircncias desenvol-vidas na sua proacutepria eacutepoca isto eacute autenticamente contemporacircneas e que seratildeo evocadas e imortalizadas pouco tempo depois nas recopilaccedilotildees de romances populares agrupados sob a comum denominaccedilatildeo de Romancero Viejo Entendam-se aqui as expressotildees ldquoromancerdquo e ldquoRomancero Viejordquo exatamente nos termos como as define Masip (2002 pp 112 e 134) ldquopo-emas de tipo narrativo o liacuterico populares producidos entre la seguntad mitad del siglo XIV y todo el siglo XV [] Pueden dividirse en tradi-cionales que evocan los cantares de gesta [] y juglarescosrdquo Nestes ro-mances aparecem motivos e referecircncias intertextuais correspondentes a certos costumes e usos da eacutepoca dos cavaleiros medievais Nesse sentido compare-se o castigo que Apolocircnio ameaccedila infligir na pessoa que ousasse 22 ldquoIl y a quelques anneacutees quacuteen visitant ou pour mieux dire en furetent Notre-Dame

lacuteauteur de ce livre trouva dans un recoin obscur de lacuteune des tours ce mot graveacute agrave la main sur le mur ANAacuteΓKH Ces majuscules grecques () e surtout le sens lugrube et fatal quacuteelles renferment frappegraverent vivement lacuteauteur () Cacuteest sur ce mot quacuteon a fait ce livrerdquo (Hugo 1904 sp)

incomodaacute-lo quando se encontrava atribulado apoacutes receber a falsa notiacute-cia da morte da sua filha com o castigo que por vinganccedila pessoal rece-beu Don Galvaacuten quando foi morto e que aparece descrito em detalhes no Romance de Gaiferos y Galvaacuten datado de 1547

Libro de Apolonio Romance de Gaiferos y Galvaacuten

Al fondo de la nave en rincoacuten apartadoechoacutese en un lecho el rey tan desgraciadojuroacute que quien le hablase seriacutea mal pagadode uno de sus pies seriacutea mutilado

La muerte que eacutel les dijera mancilla es de la [escucharmdashCoacutertenle el pie del estribo la mano del [gavilaacutensaacutequenle ambos los ojos por maacutes segu-ro andary el dedo y el corazoacuten traeacutedmelo por sentildeal

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 107) Citamos pela ediccedilatildeo de Wolf amp Hofmann (1856 II p 222-225)

6 O Libro de Apolonio intertextualidade e literatura comparada Ontem e hoje

A anaacutelise do Libro de Apolonio nos conduz ateacute a conclusatildeo de que ele constitui um claro exemplo do que representou o medievo do ponto de vista literaacuterio e cultural natildeo apenas na Peniacutensula Ibeacuterica mas tam-beacutem no resto da Europa O imaginaacuterio europeu medieval foi consti-tuindo-se sustentado sim na ideologia do cristianismo mas ao mesmo tempo adaptando toda uma tradiccedilatildeo claacutessica pagatilde que na sua versatildeo greco-latina trazia ecos inequiacutevocos do Oriente De um lado Bizacircncio e o antigo impeacuterio oriental romano de outro as influecircncias da cultura semiacutetica aacuterabe e hebraica que chegaram agrave Peniacutensula Ibeacuterica a partir do seacuteculo VIII e que ainda permaneciam em pleno apogeu no seacuteculo XIII eacutepoca da elaboraccedilatildeo do Libro Traziam como consequecircncia uma mistura de motivos e toacutepicos que hoje devemos ser capazes de apreciar e valorar na justa medida em especial quando abordamos a sempre difiacutecil tarefa de compreender um texto antigo

Ao longo das paacuteginas acima foram levantados vaacuterios elementos diferentes entre si de origens tambeacutem bem diversas mas que o anocircni-mo autor ndash homem culto cleacuterigo que inaugurava um novo gecircnero ou

mester de clereciacutea em liacutengua romacircnica e natildeo em latim ndash soube mesclar de forma admiraacutevel e que noacutes hoje desde nosso imaginaacuterio e nossa concepccedilatildeo do mundo devemos saber interpretar sob os coacutedigos da eacutepo-ca na qual foi escrito o poema

A imediata influecircncia de uma histoacuteria sobre o rei Apolocircnio escrita em latim e que circulava pelas bibliotecas dos mosteiros medievais da eacutepoca Historia Apollonii Regis Tyri natildeo compromete a originalidade do texto que nos oferece o autor A Iliacuteada e a Odisseia se fazem presentes em numerosas passagens do Libro e ainda achamos traccedilos que vinculam o texto com os livros de viagens e aventuras e com toda a rica tradiccedilatildeo da novela bizantina Os ecos do conto fantaacutestico oriental representados aqui pelo episoacutedio de Tarsiana trovadora quando eacute vendida ao proxene-ta ndash cujo nome natildeo eacute revelado em momento nenhum como tampouco o nome da filha de Antiacuteoco maculada pelo incesto ndash que eacute capaz com a doccedilura de suas palavras primeiro e a graccedila de seu canto depois de preservar sua virgindade ainda nesse contexto tatildeo adverso remetem agraves habilidades de Sherazade nas Mil e uma noites

Contudo a obra natildeo deixa de ser filha do seu tempo e como tal natildeo faltam caracteriacutesticas e traccedilos puramente medievais como a religiosidade cristianizando as divindades greco-latinas que regem os fenocircmenos at-mosfeacutericos as tempestades e os destinos dos protagonistas quando nave-gam pelo traiccediloeiro mar seja punindo na trama do texto aos pecadores ndash inclusive infligindo-lhes castigos que ora nos levam ateacute episoacutedios biacuteblicos ora nos revelam costumes dos cavaleiros medievais que depois ilustraratildeo o Romancero viejo ndash e beneficiando os que se comportam conforme a mo-ral cristatilde seja enfim atraveacutes das dicas moralizantes que o autor espalha ao longo do texto em primeira pessoa oferecidas ao leitor-ouvinte o que por sua vez nos conduz ateacute a literatura dos exempla medievais

Mas ainda a contribuiccedilatildeo do texto natildeo olha apenas para a histoacute-ria ou a sua contemporaneidade Com efeito algumas personagens do Libro mesmo secundaacuterias podem ser consideradas como a semente de outras futuras estas de indubitaacutevel relevacircncia para a literatura hispacircnica e universal Assim a velha ama que criou a filha de Antiacuteoco e que lhe recomenda natildeo acusar o pai pelo incesto cometido encontra-se na base da Trotaconventos do Libro de buen amor de Juan Ruiz (seacuteculo XIV) e sobretudo representa um esboccedilo do que haveraacute de ser a Celestina de Fernando de Rojas nos albores do Humanismo espanhol (1499)

Por fim muito depois da eacutepoca na qual foi escrito o Libro a gra-ccedila a personalidade e a inteligecircncia que enfeitam Tarsiana tecircm muito a ver com a personagem da gitanilla das Novelas ejemplares de Miguel de Cervantes e sem duacutevida jaacute no acircmbito universal aleacutem da literatura escrita em liacutengua espanhola com a cigana Esmeralda de Notre-Dame de Paris de Victor Hugo

REFEREcircNCIAS

A Biacuteblia de Jerusaleacutem Traduccedilatildeo do texto em liacutengua portuguesa diretamente dos originais Satildeo Paulo Ediccedilotildees Paulinas 1989

ALBORG JL Historia de la Literatura Espantildeola Tomo I Edad Media y Renacimiento 2ordf edicioacuten ampliada Madrid Gredos 1997

ALVAR M Apolonio cleacuterigo entendido In Symposium in honorem prof M de Riquer Barcelona Edicions del Quaderns Crema 1989 (p 51-73)

ARTILES J El ldquoLibro de Apoloniordquo poema espantildeol del siglo XIII Madrid Gredos 1976

BLANCO AGUINAGA C RODRIacuteGUEZ PUEacuteRTOLAS J ZAVALA IM Historia social de la literatura espantildeola (en lengua castellana) 3ordf ed Madrid Akal 2000

BRUYNE E de La esteacutetica de la Edad Media Madrid Visor 1988

BULFINCH Th O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Faacutebula) Histoacuterias de Deuses e Heroacuteis 13ordf ed Trad David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Ediouro 2001

CALDEROacuteN DE LA BARCA P La vida es suentildeo Ed de Antonio Rey Hazas Barcelona Vicens Vives 2000

CERVANTES M de El Licenciado Vidriera y otras novelas ejemplares Madrid Salvat Editores Alianza Editorial 1969

DON JUAN MANUEL El Libro de Patronio e por otro nombre El Conde Lucanor 13ordf ed Madrid Espasa-Calpe 1977

GIROacuteN ALCONCHEL JL Comentario de textos de clereciacutea Alexandre y Apolonio Madrid Arco Libros 2002

GOacuteMEZ MORENO Aacute Notas al proacutelogo del Libro de Alexandre Revista de Literatura XLVI 1984 (p 117-127)

GUILLEacuteN C Entre lo uno y lo diverso Barcelona Criacutetica 1985

HODOI ELEKTRONIKAI Du texte agrave lacutehypertexte Homegravere Odysseacutee Traduction franccedilaise Paris E Flammarion 1937 Disponiacutevel no endereccedilo da Internet mercurefltruclacbeHodoiconcordancesintrohtmHomere (Acessado em 21 de fevereiro de 2013)

HOMERO Iliacuteada Texto integral Trad Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Martin Claret 2004

_____ Odisseia Trad Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2000

_____ Nueva Antologiacutea de la Iliacuteada y la Odisea Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos 1965

LAPESA R RUIZ RAMOacuteN F Calderoacuten traacutegico In RICO F (org) Historia y Criacutetica de la Literatura Espantildeola Vol 31 Primer Suplemento Siglo de Oro Barroco Ed Aurora Egido Barcelona Criacutetica 1983 (p 430-435)

LE GOFF J Tiempo trabajo y cultura en el occidente medieval Madrid Taurus 1983

Libro de Alexandre Edicioacuten preparada por Jesuacutes Cantildeas Murillo Madrid Editora Nacional 1983

Libro de Apolonio Texto iacutentegro en versioacuten del Dr D Pablo Cabantildeas Madrid Castalia 1998

Libro de Apolonio Edicioacuten de Dolores Corbella Madrid Caacutetedra 1992

Libro de Apolonio Edicioacuten de Manuel Alvar Madrid Fundacioacuten Juan March Castalia 1976

LOTMAN Y ESCUELA DE TARTUacute Semioacutetica de la cultura Madrid Caacutetedra 1979

MASIP V Manual de poesiacutea espantildeola y portuguesa Recife AECI Bagaccedilo 2002

MICHAEL I Epic to Romance to Novel Problems of the Genre Identification Bulletin of the John Rylandacutes University Library of Manchester nordm 68 1986 (p 498-527)

MIRANDA POZA JA La Edad Media en Europa como marco para el estudio de la eacutepoca literaria medieval In MIRANDA POZA JA (org) Estudios Hispaacutenicos Recife Editora Universitaacuteria da UFPE 2011 (p 159-169)

_____ Poesiacutea Espantildeola Medieval (II) El Mester de Clereciacutea In MIRANDA POZA JA RODRIGUES JPM (orgs) Estudios de Lengua y Literatura Espantildeola Recife APEEPE PROEXT Departamento de Letras ndash UFPE 2007 (p 123-140)

NASO PO Tristium 2ordf ed Trad literal de Augusto Velloso Rio de Janeiro Ediccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Simotildees 1952

OVIacuteDIO Poemas da carne e do exiacutelio Seleccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Joseacute Paulo Paes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

OVIDIO NASOacuteN P Metamorfosis Texto revisado y traducido por Antonio Ruiz de Elvira 3 vols Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientiacuteficas 1994

RASERO CHACOacuteN J Adivinanzas y trabalenguas Posibilidades didaacutecticas In BARCIA MENDO E (coord) La tradicioacuten oral en Extremadura Meacuterida Junta de Extremadura ndash Consejeriacutea de Educacioacuten Ciencia y Tecnologiacutea 2004 (p 221-247)

RATTENBURY RM Prologue a Les Eacutethiopiques de Heliodore Texte eacutetabli par RM Rattenbury ET TW Lumb et traduit par J Maillon Paris Collection decircs Universiteacutes de France 1935

RIQUER M VALVERDE JM Historia de la Literatura Universal Barcelona Planeta 1991

ROJAS F de La CelestinaTragicomedia de Calisto y Melibea 4ordf ed Introduccioacuten de Stephen Gilman Edicioacuten y notas de Dorothy S Severin Madrid Alianza Editorial 2003

RUIZ J El libro de buen amor Madrid Edimat Libros 1999

TODOROV Tz Introduccioacuten a la literatura fantaacutestica Buenos Aires Tiempo Contemporaacuteneo 1972

URIacuteA I Panorama criacutetico del mester de clereciacutea Madrid Castalia 2000

Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico ldquoFedatildeordquo Trad Carlos Alberto Nunes Creacuteditos Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia) Disponiacutevel no endereccedilo da Internet HTTPbregroupscomgroupacropolis (Acessado em 20 de fevereiro de 2013)

WOLF FJ HOFMANN C Primavera y flor de romances o Coleccioacuten de los maacutes viejos y maacutes populares romances castellanos 2 vols Berlin A Asher amp Co 1856 Disponiacutevel na Internet no endereccedilohttpdeptswashingtoneduhispromoptionalballadactionphpigrh=0087amppublisher=Wolf201856b (Acessado em 24 de fevereiro de 2013)

Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e

a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites

Oussama Naouar(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Consideraccedilotildees epistemoloacutegicas introdutoacuterias das evidecircncias obscuras das Mil e uma noites

As Mil e uma e noites assombram nosso imaginaacuterio relativo ao Oriente como para nos lembrar que eacute necessaacuterio guardar uma certa acuidade associada aos objetos muito evidentes Pois com efeito exis-tem duas sortes de objetos delicados para o pesquisador De uma parte os objetos desconhecidos totalmente novos pelo menos segundo acre-ditamos de outra os muito evidentes e ceacutelebres

Os primeiros tecircm que ser buscados continuamente Se trata para noacutes de natildeo somente os achar mas tambeacutem de lhes tirar sua aparente virginda-de sobretudo relativa como temos de admitir Portanto esta concepccedilatildeo de objeto novo eacute na maioria das vezes epistemologicamente confusa Ela atende ao olhar de um pesquisador que se debruccedila a partir de uma eacutepoca particular sobre um elemento que atrai nossa atenccedilatildeo Esta virgindade eacute ainda uma propriedade construiacuteda sobre o objeto de pesquisa pois de fato ela se elabora a partir do cruzamento de uma ou mais articulaccedilotildees definidas como novas num momento histoacuterico particular no quadro de uma episteme Sabemos a partir de Foucault que a episteme faz referecircncia agrave sistematizaccedilatildeo das regras de construccedilatildeo dos objetos sujeitos e concei-tos postulando que haacute um elemento dos saberes (no sentido de elemento aquaacutetico por exemplo) que impotildee aos objetos do saber o modo de ser determinado (cf Foucault 1990 p 13) Portanto esta construccedilatildeo mesma implica uma ruptura desconstruccedilatildeo para tornar novamente inteligiacutevel esta formalizaccedilatildeo do objeto de pesquisa

A outra categoria eacute composta destes objetos do cotidiano comuns que natildeo brilham mais por sua novidade tanto que natildeo se deixam mais

interrogar Aqui o esclarecimento foucaultiano continua pertinen-te Mas pode ser necessaacuterio conjugaacute-lo agraves meditaccedilotildees de um Gaston Bachelard recordando esta ceacutelebre frase de La formation de lrsquoesprit scientifique que precisa ldquonoacutes conhecemos contra um conhecimento an-teriorrdquo (Bachelard 1971 p 14) Nessa perspectiva o conhecimento soacute eacute possiacutevel a partir da superaccedilatildeo de um conhecimento anterior o qual nesta aproximaccedilatildeo epistemoloacutegica aparece necessariamente como um limite um oposto um obstaacuteculo As mil e uma noites fazem parte destes uacuteltimos objetos Pois este texto que natildeo cessa de nos fascinar noacutes o apreendemos somente pelas tramas do passado Esta constataccedilatildeo natildeo deixa de nos lembrar que ao encontro do conhecimento o espiacuterito se revela sob o peso da idade pois nunca eacute jovem mas sempre velho pelos seus preconceitos e nessas circunstacircncias acessar o conhecimento ldquoeacute espiritualmente rejuvenescer eacute aceitar uma mutaccedilatildeo brusca que deve contradizer o passadordquo (Bachelard 1971 p 14) Ora noacutes sabemos a que ponto as Mil e uma noites satildeo um objeto eterno sempre revisitado sempre fascinante mas que pode esconder atraacutes de suas evidecircncias uma parte profunda de obscuridade As Mil e uma noites uma vez que o efeito exoacutetico tenha passado nos enseja a perguntar sobre suas evidecircn-cias obscuras Acalentado sob uma apreensatildeo ingecircnua e reconfortante este questionamento chama o espiacuterito ceacutetico agrave desconstruccedilatildeo

Com efeito muitas ideias preconcebidas englobam indistintamente Sherazade Oriente Mil e uma noites hareacutens e outros objetos de nossa imaginaccedilatildeo Em relaccedilatildeo a estas ideias Bergson indica pertinentemen-te que nosso espiacuterito possui uma irresistiacutevel tendecircncia a considerar como mais clara a ideacuteia que lhe serve continuamente Esta forma de ldquoeconomia mentalrdquo explica em parte porque se constitui num conjunto de ideacuteias preconceitos e opiniotildees que acabam escondendo a comple-xidade e a singularidade de uma produccedilatildeo literaacuteria Uma exigecircncia de superaccedilatildeo de questionamento se configura ao reacutes de nossas opiniotildees pois ldquoa opiniatildeo pensa mal ela natildeo pensa ela traduz necessidades em conhecimentos Designando os objetos pela utilidade ela se proiacutebe de os conhecer Natildeo se pode fundar nada sobre a opiniatildeo temos antes de tudo que a destruir Ela eacute o primeiro obstaacuteculo a superarrdquo (Bachelard 1971 p 14) Um olhar filosoacutefico ao texto eacute sobretudo pertinente se acei-tarmos que a filosofia pode se referendar como remeacutedio agrave opiniatildeo pois da opiniatildeo agrave asneira haacute um pequeno passo um breve resvalar Opiniatildeo

e asneira entreteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima conivente e profunda tambeacutem como bem dizia Gilles Deleuze em seu Abeacuteceacutedaire ldquoa filosofia impede a asneira de ser tatildeo grande como poderia ser se natildeo houvesse a filosofiardquo (in Boutang 1988) Eis um argumento de peso

Portanto estes enviesamentos epistemoloacutegicos natildeo satildeo proacuteprios so-mente agraves Mil e uma noites bem ao contraacuterio Tal constataccedilatildeo em torno da obra literaacuteria ilustra uma problemaacutetica bem mais ampla proacutepria ao orientalismo Edward Saiumld teoacuterico da literatura e figura importante dos estudos poacutes-coloniais cuja pena nos deu Orientalisme lrsquoOrient creacutee par lrsquoOccident funda esta corrente a partir da concepccedilatildeo do Oriente como objeto de uma criaccedilatildeo ldquoO Oriente como uma criaccedilatildeo do Ocidente seu duplo seu contraacuterio a encarnaccedilatildeo dos seus medos e de seu sentimento de superioridade a um soacute tempo a carne de um corpo do qual aspiraria a ser o espiacuteritordquo (Saiumld 1980 p 23)

Agrave luz desta citaccedilatildeo natildeo podemos deixar de repensar os quadros dos trecircs ceacutelebres Eugegravenes ndash Delacroix Girardet e Fromentin ndash ou ainda a inspiraccedilatildeo que atravessa as obras picturais do brasileiro Oscar Pereira da Silva Nelas vemos se materializar esta carne certamente oriental que traz ao contraacuterio e por traacutes dessas personagens figuradas um es-piacuterito fundamentalmente ocidental tudo participa dessa constataccedilatildeo as posturas as cenas e a distribuiccedilatildeo dos papeis Mas a grande contri-buiccedilatildeo de Saiumld continua na re-inscriccedilatildeo destes liames como construtos epistemologicamente falando A literatura a arte e mais largamente a esteacutetica no sentido de partage du sensible como a nomeia Jacques Ranciegravere (2000) se tornam reveladores da relaccedilatildeo complexa que rege esta geografia de um imaginaacuterio proacuteprio agrave oposiccedilatildeo Oriente-Ocidente

Pois eacute necessaacuterio admitir que o orientalismo natildeo se limita somen-te a uma corrente esteacutetica nem mesmo artiacutestica ou literaacuteria mas a ldquoum cacircmbio dinacircmico entre autores individuais e vastos empreendimentos poliacuteticos formados pelos impeacuterios britacircnico francecircs e americano sobre o territoacuterio intelectual e imaginaacuteriordquo (Saiumld 1980 p 27) Dito de outra for-ma as obras e produccedilotildees esteacuteticas do orientalismo vatildeo a par com projetos poliacuteticos e geopoliacuteticos proacuteprios ao colonialismo Intelectual e imaginaacuterio eis certamente o coraccedilatildeo da confrontaccedilatildeo que poderia se prolongar em Razatildeo e Emoccedilatildeo racionalidade e misticismo Estas oposiccedilotildees natildeo conti-nuam menos ideoloacutegicas como nos indica Jacques Derrida (1967) Jaacute que inscritas no prolongamento da dicotomia Oriente-Ocidente e agrave imagem

do exemplo Carne-Espiacuterito evocada anteriormente estas oposiccedilotildees teste-munham um limite da histoacuteria do pensamento que consistiu em conceber o mundo como um sistema de oposiccedilatildeo a declinar ao infinito em que um dos elementos eacute sempre pensado como um ldquoparasitardquo um ldquoacidenterdquo um ldquoexcrementordquo (Derrida 1967 p 415)

Este movimento pendular entre poetizaccedilatildeo e desilusatildeo se ilustra entre os escritores franceses que realizaram a experiecircncia concreta do Oriente Pensemos na decepccedilatildeo de um Chateaubriand que escrevia em descobrindo a Alexandria ldquoAlexandria me pareceu o lugar mais triste e desolado da terrardquo (1969 p 63) Ele diraacute de Jerusaleacutem

A paisagem ao redor da cidade eacute medonha quanta desolaccedilatildeo e quanta mi-seacuteria Nesta pilha de escombros que chamam uma cidade a gente do paiacutes se deu ao prazer de dar nomes de ruas a passagens desertas As casas parecem presiacutedios ou sepulcros Agrave vista destas casas de pedras nos perguntamos se natildeo constituem monumentos confusos de um cemiteacuterio no meio do deserto Entre na cidade nada vos consolaraacute da tristeza exterior voacutes vos perdereis nas pequenas ruas natildeo pavimentadas que sobem e descem sobre um solo desigual e voacutes andareis entre ondas de poeira ou entre pedras que rolam (Chateaubriand 1969 p 87)

Estamos bem longe do Oriente sonhado e os golpes da realidade pa-recem dolorosos Da mesma forma eacute faacutecil pensar que Jerusaleacutem cidade sagrada por excelecircncia ilustra este espiacuterito ocidental dentro de uma car-ne oriental elevada agrave escala de uma cidade Mais que em outro lugar o imaginaacuterio interfere com o intelectual ao ponto de poder distinguir no orientalismo uma forma desviada de cruzada esteacutetica onde o territoacuterio cobiccedilado escapa sempre em meio a todas as brechas a todas as incursotildees

Mas eacute talvez Flaubert que se demarca mais deste grupo de escritores viajantes ele que numa carta escrita a sua matildee revela uma decepccedilatildeo toda paradoxal que busca o autecircntico passando pelo crivo do imaginaacuterio ldquoEacute no Cairo que o Oriente comeccedila Alexandria eacute muito mesclada de euro-peus para que a cor local seja bem purardquo (1973 p 182) Notemos aqui como desta frase curta emana uma tensatildeo fundamental e proacutepria do oci-dente colonial que opotildee autenticidade e alteridade Quanto agrave Jerusaleacutem sua decepccedilatildeo soacute cresceria Em outra correspondecircncia Flaubert indica

Jerusaleacutem eacute uma vala cercada por muralhas Tudo aiacute apodrece Os ca-chorros mortos nas ruas as religiotildees nas igrejas Haacute muita quantidade de

excremento e ruiacutenas O Santo Sepulcro eacute uma aglomeraccedilatildeo em meio a todas as maldiccedilotildees possiacuteveis Num pequeno espaccedilo haacute uma igreja armecircnia uma grega uma latina e uma copta Tudo isso se injuriando se maldizendo do fundo da alma e calccedilando o vizinho a propoacutesito de candelabros tapetes e quadros ndash que quadros (Flaubert 1973 p 227)

Uma cidade caoticamente ldquosantardquo ao menos na aparecircncia onde o odor da morte nos pega pela garganta Onde estatildeo os perfumes do Oriente neste cenaacuterio meio fuacutenebre meio maldito Este Oriente que deveria revitalizar o ldquocorpordquo entorpecido do Ocidente parece deslizar agraves avessas da realidade em direccedilatildeo a um imaginaacuterio que de fato natildeo mais existe Geacuterard de Nerval escreve em 1867 depois de sua viagem de 1843

O Egito eacute uma vasta tumba eacute a impressatildeo que me passou ao aportar nesta praia de Alexandria que com suas ruiacutenas e seus montiacuteculos oferece aos olhos tuacutemulos espalhados sobre uma terra de cinzas [] Eu teria amado mais as lembranccedilas da antiguidade grega mas tudo isso foi destruiacutedo arra-sado e se tornou irreconheciacutevel (Nerval 1980 p 83)

Satildeo provavelmente os tuacutemulos de suas proacuteprias ilusotildees que expli-cam esta persistecircncia de uma apreciaccedilatildeo lsquomoacuterbidarsquo do Oriente de uma funesta decepccedilatildeo Tais citaccedilotildees satildeo esclarecedoras por nos fazerem ob-servar a maneira como intelectual e imaginaacuterio se imbricam quando se trata do Oriente Tambeacutem cremos que para noacutes estudiosos de literatu-ra eacute importante apreender o Oriente assumindo esta tensatildeo constituti-va Eacute soacute se perguntando fundamentalmente sobre este paradoxo que faz da imagem do Oriente a realizaccedilatildeo muitas vezes mais ldquofictiacuteciardquo de uma busca intelectual e imaginaacuteria que pode se esboccedilar as premissas de uma apreciaccedilatildeo mais justa do Oriente Ter em mente que este imaginaacuterio eacute um dos elementos constitutivos de nossa episteme integrando suas dimensotildees religiosa e miacutestica satildeo ambas posturas que nos permitem natildeo perder de vista os desvios de nossa apreensatildeo Pois olhar o Oriente caminha a par de uma vontade de dobrar o mundo numa ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo para retomar a expressatildeo de Martine Geronimi (2006)

Na admiraccedilatildeo e no elogio ldquoda suntuosidade das cores e dos perfu-mes do Orienterdquo clichecirc tiacutepico se faz necessaacuterio perceber os murmuacuterios de uma nostalgia profunda aquela dos valores perdidos da Europa Em sua obra Orient-Occident La fracture imaginaire Georges Corm (2005) nos lembra que ldquoa imagem de uma Europa que perdeu sua alma em

busca do progresso material vai comeccedilar a se cristalizar A idealizaccedilatildeo do Oriente de sua miacutestica de seu senso de honra de seu desprezo su-posto aos valores materiais vai se estabelecerrdquo Mas paradoxalmente a superioridade ocidental colonial ressurge continuamente Eacute de certa maneira um fenocircmeno que se encontra algures entre os exilados por exemplo nesta idealizaccedilatildeo perpeacutetua do paiacutes de origem Como fascina-ccedilatildeo assimeacutetrica feita de admiraccedilatildeo e recusa o orientalismo soacute podia coincidir sob mais de um aspecto agrave empresa colonial aquela mesma que se apropriava ldquocivilizandordquo

2 Do universal vindo de algures as Mil e uma noites em partilha

Mas esta ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo natildeo tem soacute desvantagens Ela parece dar mesmo que de maneira meio desviada creacutedito ao Oriente Apesar de todas as duacutevidas que levanta atualmente a humanidade sobre o mun-do aacuterabe sobre esta ferida narciacutesica que ele arrasta durante seacuteculos ferida de uma grande civilizaccedilatildeo passada que desaprendeu a se reno-var as Mil e uma noites ao lado da espiritualidade sufi soube guardar os favores do Ocidente E aqui temos outro dos grandes paradoxos do Oriente se invertermos o sentido da relaccedilatildeo em sua ligaccedilatildeo consigo proacuteprio e com o Ocidente Pois parece que o divino que trouxe um eacutelan civilizador importante agraves sociedades araacutebico-mulccedilumanas tornou-se um fardo deixando mais atuais estas linhas do filoacutesofo andaluz Averroacuteis (1126-1198) conhecido no mundo aacuterabe como Ibn el Rushd

Natildeo existe nenhuma contradiccedilatildeo entre verdade religiosa e verdade racional pois todas as duas vecircm de Deus qualquer um que interditar os fieacuteis dotados de razatildeo a iniciaccedilatildeo aos escritos filosoacuteficos da Antiguidade os teraacute distan-ciado de uma porta a qual o Islatilde chama e de um meio de permitir melhor conhecer a Deus (2000 p 99)

Desde o seacuteculo XII portanto o divoacutercio entre espiritualidade e pen-samento entre a doutrina e as artes entre a crenccedila e o saber soacute se dilatou no Oriente As diferentes tentativas para redourar o brasatildeo do mundo aacuterabe se tornaram letra morta se o julgarmos por sua atualidade As mais recentes sendo aquelas da Nahda literalmente o renascimento empresa cujas figuras mais conhecidas satildeo Tahtacircwi Jamacircl al-Dicircn al-Afghacircni ou

ainda Muhammad Abduh (cf Issa 2008) Estes uacuteltimos tiveram o meacute-rito de tentar reformar o mundo aacuterabe se negando em se inscrever num orientalismo caricatural No que ele comporta de caricatura o orienta-lismo se apresenta como a resultante de uma empresa de elaboraccedilatildeo de fronteiras tanto a fascinaccedilatildeo do Oriente se fundamenta tambeacutem numa ideologia da diferenciaccedilatildeo a basear-se principalmente sobre a superiori-dade ocidental e indo-europeacuteia A polecircmica que opocircs violentamente Al-Afghacircni a Renan ilustra paradigmaticamente esta confusatildeo dos registros da eacutepoca oitocentista (cf Lorcerie 2007 p 509-536)

E portanto se o mundo de hoje como o de ontem adula esta li-teratura deve se basear em algumas razotildees Eacute na viagem e na recepccedilatildeo que as Mil e uma noites conquistaram as suas credenciais E se podemos por um lado criticar um apelo exotista sobre o texto por outro a obra se enriqueceu do ponto de vista aacuterabe por conta deste interesse ocidental A histoacuteria nos ensina que a circulaccedilatildeo dos textos das representaccedilotildees e das ideias participa da promoccedilatildeo destas ao tempo que lhe recorta de sua historicidade do fato de ldquoa neutralizaccedilatildeo do contexto histoacuterico que resul-ta da circulaccedilatildeo internacional dos textos e do esquecimento correlativo das condiccedilotildees histoacutericas de origemrdquo (Bourdieu Wacquant 1998 p 17) Eacute necessaacuterio lembrar que as Mil e uma noites eram consideradas como pertencentes a uma literatura secundaacuteria e eacute de maneira paradoxal ao prisma do Ocidente que a obra se valorou E se ela eacute apresentada como a obra que ilustra a sensibilidade e o imaginaacuterio do mundo aacuterabe por ex-celecircncia continua pertencendo a um patrimocircnio de literatura lsquoprofanarsquo tambeacutem correntemente chamado no mundo aacuterabe de ldquomedianardquo ou seja intermediaacuteria entre as obras-primas literaacuterias e as obras mais populares a exemplo dos contos orais Inicialmente os contos que circulavam no mundo aacuterabe natildeo continham ainda os acreacutescimos trazidos por Antoine Galland que eram de fato contos siacuterios relatados por informantes anocirc-nimos como eacute exemplo a histoacuteria de Ali Baba et les quarante voleurs ou ainda Aladin Entatildeo foi necessaacuterio posteriormente traduzir do francecircs ao aacuterabe estes acreacutescimos para disponibilizaccedilatildeo dos leitores aacuterabes Da mesma maneira sabemos que a histoacuteria de Sherazade eacute de origem india-na e a composiccedilatildeo das Mil e uma noites da forma como as conhecemos hoje corresponde mais ou menos segundo as versotildees agravequela em circu-laccedilatildeo durante o seacuteculo XV e natildeo durante o seacuteculo X

Este interesse persistente pelas Mil e uma noites se exprime igual-mente na Franccedila como testemunha a mais recente exposiccedilatildeo organiza-da pelo Institut du Monde Arabe de Paris O cataacutelogo da exposiccedilatildeo ape-sar de uma vontade perceptiacutevel de superar as representaccedilotildees comuns convoca os argumentos habituais em favor da obra extraordinaire sur-prenant faisant le lien entre lrsquoOrient et lrsquoOccident Universelle ou ainda veacutehicule de mythologies et des croyances propres agrave lrsquoOrient Aqui por-tanto seremos tentados a dizer veiacuteculo das mitologias e crenccedilas igual-mente proacuteprias ao Ocidente Pois de fato esta obra que parece se erigir numa lsquoliteratura de reconciliaccedilatildeorsquo foi escolhida como tal por uma soacute das partes segundo criteacuterios esteacuteticos certo colorido bem distantes do que poderiam ser os gostos orientais

Portanto as Mil e uma noites satildeo continuamente objeto de uma redescoberta como eacute testemunha mesmo o assunto deste evento (2ordm CLIF-PE) Por quecirc Porque esse texto eacute de certa maneira viacutetima de sua celebridade um dos maiores da literatura mundial e eacute preciso reconhececirc-lo resguardando a problemaacutetica de sua inscriccedilatildeo na heranccedila orientalista como um texto fundador natildeo sendo o uacutenico ndash pois haacute muitos outros a Eneida de Virgiacutelio a Epopeia de Gilgamesh Nassr Eddin Juhah este bufatildeo sufi o Kalevala a Iliacuteada e a Odisseia o Ramayana e o Mahabarata E cre-mos ainda que esta dimensatildeo universal emancipada dos particularismos do Oriente e do Ocidente revela todo o interesse do texto

3 As Mil e uma noites entre a forccedila moralizadora e a tentaccedilatildeo desmoralizadora

Mas o que satildeo ao final as Mil e uma noites Onde buscar sua uni-dade Seria difiacutecil definir claramente o que satildeo elas tanto difere sua tonalidade de um texto a outro Das narrativas de viagem agraves pequenas histoacuterias lendaacuterias passando por contos em que se sobressaem aspec-tos fesceninos elas representam uma soma de gecircneros diferentes sob um quadro que sumariza um conjunto sobretudo disparatado epopeia conto histoacuteria blagues faacutebulas proveacuterbios etc As primeiras leituras dos contos das Mil e uma noites no seacuteculo X as classificavam entre os con-tos morais do gecircnero mediano destinados agrave populaccedilatildeo geral inferiores a outras obras a exemplo de Kalicircla wa Dimna que pertenciam ao gecircnero

do espelho de priacutencipes destinado agrave educaccedilatildeo moral e poliacutetica dos per-sonagens da alta nobreza sobre os passos do Roman drsquoAlexandre 23

Este paralelo entre Kalicircla wa Dimna eacute pertinente pois nela se en-contra tambeacutem um contador o conselheiro e filoacutesofo Bilpaiuml que ilustra as consequecircncias de um comportamento numa histoacuteria cujos prota-gonistas satildeo animais especialmente os chacais que datildeo nome ao livro Estas histoacuterias acabam numa liccedilatildeo moral e natildeo deixaram de inspirar moralistas como La Fontaine no seacuteculo XVII Todavia pensar as Mil e uma noites como um texto unicamente de educaccedilatildeo moral parece difiacute-cil jaacute que nem todas as histoacuterias se concluem numa proposta de mora-lismo mesmo que olhando amiuacutede se constate rapidamente que o bem sempre triunfa do mal e mesmo quando o fraco perde no momento em que o mal parece triunfar

Por conseguinte um contorno etimoloacutegico fortalece a pertinecircncia desta perspectiva A literatura eacute chamada Adab em aacuterabe termo que designa o prolongamento da educaccedilatildeo no sentido de dececircncia Haacute uma continuidade entre literatura e educaccedilatildeo estebelecida em torno de uma ideia de conveniecircncia do que eacute decente e conveniente A pessoa edu-cada eacute qualificada de Mutaadab ou seja aquele que tem Adab A par-tir disso se desenha claramente aqui o ideal filosoacutefico do Antropos que cabe ao homem letrado o homem conveniente eacute aquele que harmoniza seu ser com o mundo e os outros Ele alcanccedila por sua dececircncia educa-ccedilatildeo e cultura literaacuteria uma forma de harmonizaccedilatildeo do exterior com o interior e vice-versa

Esta virtude educativa das letras e da cultura literaacuteria se encontra reivindicada em outras obras E isso pode ser associado mais largamen-te a uma das caracteriacutesticas do conto o que explica tambeacutem a atraccedilatildeo por esta forma no seacuteculo XIX Pensamos em Pierre Capelle que em seu Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature cujo subtiacutetulo expliacutecito nos diz Choix de penseacutees ingeacutenieuses et sublimes de dissertations et de deacutefinitions extraites des plus ceacutelegravebres moralistes poegravetes et savants pour

23 A obra Kalila wa Dimma era destinada agrave educaccedilatildeo moral e agrave iniciaccedilatildeo poliacutetica da no-breza Cada capiacutetulo eacute aberto com um diaacutelogo entre o rei Dablishim e seu conselheiro-filoacutesofo Bilpai Tais perguntas discutem essencialmente as consequecircncias de um com-portamento que em seguida eacute ilustrado atraveacutes de uma histoacuteria com dois protagonistas os chacais Kalila e Dimna A influecircncia desta obra foi grande tanto nas Noites como sobre os livros de Shhname de Firdusi do miacutestico Rumi e tambeacutem dos moralistas

servir de deacutelassement aux eacutetudes former le cœur orner lrsquoesprit et nourrir la meacutemoire des jeunes gens Nada mais Pierre Capelle nos diz

De todos os gecircneros de poesia o conto eacute sem contradiccedilotildees aquele que mais se aproxima da natureza ele eacute a expressatildeo ingecircnua ele deve tomar de empreacutestimo todos os ornamentos [] Os contos podem tambeacutem ter os seus tanto eles pin-tam nossos ridiacuteculos com o fim de nos corrigir tal eacute o objeto dos contos morais que atacam nossos erros com o intuito de nos curar ndash eacute o desejo dos contos filosoacuteficos [] Nos perguntamos que paiacutes foi o berccedilo dos contos uns dizem que teria sido a Greacutecia dando como provas as faacutebulas milesianas e as Noites Aacuteticas outros nomeiam a Araacutebia citando como testemunhos os contos aacuterabes outros tambeacutem os fazem vir da Peacutersia e reclamam em favor de sua opiniatildeo as Mil e uma noites Erudiccedilatildeo mal aplicada os contos nasceram deles mesmos sobretu-do onde existiram homens ociosos (1824 p 3-4)

Mas as Mil e uma noites natildeo satildeo simples contos eacute a literatura de to-dos os possiacuteveis que se encontra aiacute reunida Tambeacutem esta perspectiva de re-inscriccedilatildeo do texto em sua finalidade educativa e moral se revela heu-riacutestica Eacute necessaacuterio compreender as Noites como uma criaccedilatildeo literaacuteria que evolui no seio de uma tensatildeo constitutiva entre uma forccedila moraliza-dora do texto e uma tentaccedilatildeo desmoralizadora tantas vezes explicitada Esta hipoacutetese permite retomar todo o aporte ldquoeducativordquo da obra pois com efeito deste ponto de vista haacute um duplo movimento paradoxal que potildee a seu serviccedilo o fantaacutestico O fantaacutestico se torna o instrumento que permite a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora numa obra que serve por fim a finalidades altamente morais

4 O fantaacutestico ou a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora

Falta-nos definir delimitar o fantaacutestico Para isso a convocaccedilatildeo de Tzvetan Todorov (1970) se tornou um pedaacutegio conceitual uma passa-gem quase inevitaacutevel Vamos apresentar esta referecircncia para depois nos distanciarmos para um importante reajuste que consistiraacute inicialmente em apreender o fantaacutestico sem cair num dos riscos acima delimitados especialmente o do anacronismo

De fato hoje num mundo que eacute o nosso e que natildeo comporta em absoluto djins lacircmpadas maacutegicas nem tapetes voadores se formos expostos a percebecirc-los teremos duas alternativas ou se trata de uma

ilusatildeo dos sentidos produto da imaginaccedilatildeo e as leis do mundo continu-am intactas ou o evento aconteceu realmente como parte integrante da realidade mas esta realidade nos revela paradoxalmente leis desconhe-cidas Pensemos por exemplo na ilha flutuante de Simbad Ela eacute ilusoacute-ria ou existe realmente Segundo Todorov o fantaacutestico ocupa o espaccedilo da incerteza desde que escolhamos uma ou outra dessas possibilidades para entrar em gecircneros vizinhos o estranho ou o maravilhoso

O fantaacutestico segundo Todorov eacute assim esta hesitaccedilatildeo que expe-rimenta um sujeito em relaccedilatildeo agraves leis naturais frente a um evento de aparecircncia sobrenatural Pertence a este gecircnero toda obra fundada ldquosobre uma hesitaccedilatildeo do leitor um leitor que se identifica agrave personagem prin-cipal quanto agrave natureza de um evento estranho Esta hesitaccedilatildeo pode se resolver seja ao se admitir que o evento pertence agrave realidade seja porque se decide que eacute fruto da imaginaccedilatildeo ou o resultado de uma ilusatildeo dito de outra maneira pode-se decidir que o evento aconteceu ou natildeordquo (p 165) Estamos frente a um verdadeiro trabalho conceitual jaacute que (a) a definiccedilatildeo discrimina o real e (b) delimita claramente sua descriccedilatildeo tendo-se em vista ainda o esclarecimento das condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do gecircnero (o leitor deve acreditar na concretude dos fatos e na realidade dos personagens a hesitaccedilatildeo tambeacutem deve ser vivenciada por um dos personagens e enfim o leitor tem que recusar interpretaccedilotildees alegoacutericas e poeacuteticas acerca dos acontecimentos) Noacutes reteremos aqui uma dimen-satildeo subversiva que potildee o real e a razatildeo em suspensatildeo

As Mil e uma noites estatildeo situadas numa encruzilhada entre o ma-ravilhoso o estranho e o fantaacutestico De fato se tentarmos superar os dois obstaacuteculos do etnocentrismo e do anacronismo temos que admitir que a concepccedilatildeo do fantaacutestico contemporacircnea natildeo eacute a mesma da eacutepoca e das regiotildees de produccedilatildeo dos textos que compotildeem as Noites Por outro lado ainda hoje eacute admitido pela maioria das pessoas de expressatildeo muccedilul-mana que Deus criou de uma parte homens e de outra djins Os djins satildeo assim realidades ontologicamente subjetivas mas julgados como intriacutensecos ao mundo (cf Toufy 1972 pp 154-213) Esta anaacutelise se apoacuteia sobre os numerosos exemplos no texto Tomemos um caso seme-lhante para ilustrar esta tensatildeo anacrocircnica no episoacutedio da ilha flutuante de Simbad Na eacutepoca este tipo de ilha eacute possibilitada por uma crenccedila partilhada ou seja apoiada pela realidade noacutes encontramos descriccedilotildees nos bestiaacuterios medievais de lugares como este O episoacutedio de Simbad eacute

fantaacutestico natildeo pela ilha em si mas pelas experiecircncias que ocorrem nela Da mesma forma as exegeses do Ocidente segundo a ciecircncia da eacutepoca descrevem a existecircncia de uma ilha flutuante Mas nunca se trata de um fantaacutestico puro ou austero que se daacute a ver no texto e isso pode ser repercutido como um dos traccedilos caracteriacutesticos das Mil e uma noites uma obra que sabe associar o fantaacutestico e o bom senso de uma parte o maravilhoso e o humor de outra

5 Quando o inuacutetil eacute fantaacutestico

Na ordem de nosso cotidiano o que nos liga agrave existecircncia agrave vida satildeo as coisas ldquoditasrdquo uacuteteis O que relatamos transmitimos para a preserva-ccedilatildeo da vida natildeo satildeo a priori pequenas histoacuterias Mas aqui o que eacute rela-tado nas Noites satildeo coisas que pertencem ao passional ao divertimento e ao fantaacutestico O grande paradoxo eacute que satildeo coisas fuacuteteis que valem uma vida Aqui reside uma articulaccedilatildeo importante e um entrecruza-mento do fantaacutestico com a educaccedilatildeo

Pois para muitos de noacutes o que nos move eacute uma certa razatildeo instru-mental Muitos poderiam se perguntar sobre a utilidade de um tal congres-so para falar ainda mais de literatura fantaacutestica Eacute preciso para alimentar aqui nosso percurso reflexivo trazer dois elementos capazes de esclare-cer esta problemaacutetica Inicialmente uma anedota relatada por Philippe Meirieu numa palestra consagrada agraves praacuteticas artiacutesticas no ensino puacutebli-co (CFMI 2000) Ele cita um episoacutedio histoacuterico descoberto por Patrick Mendelsohn nos arquivos da Universidade de Berna ndash que natildeo tem nada a ver com as Mil e uma noites Estamos entre 1940 e 1941 num inverno particularmente rigoroso na fronteira entre a Suiacuteccedila e a Alemanha Uma patrulha de soldados suiacuteccedilos estaacute perdida nesta fronteira no frio na neve e em meio agrave tempestade Natildeo haacute comida e os celulares ainda natildeo tinham sido inventados Na verdade pressentem com ansiedade a presenccedila da morte A situaccedilatildeo eacute traacutegica ateacute que um dos soldados acha nos bolsos um pedaccedilo de mapa e graccedilas a ele reencontram o caminho e retornam ao quartel Ali satildeo interrogados e dizem como conseguiram sair da situaccedilatildeo graccedilas agravequele pedaccedilo de mapa e como suas vidas estavam por um fio Ao se examinar atentamente o pedaccedilo haacute a descoberta se tratava de um mapa de outra cadeia montanhosa distante os Pirineus

Continuando a ilustrar este paradoxo penso ainda nas pinturas ru-pestres do Brejo da Madre de Deus e laacute o que se acha agarrado ao cume das pedras Pinturas rupestres Assim o que nossos questionamentos captam eacute o que explica que pessoas que tinham de enfrentar muitas difi-culdades frio fome sede ausecircncia de um conforto que qualificariacuteamos de miacutenimo hoje pudessem encontrar tempo e igualmente inspiraccedilatildeo ne-cessaacuterios para perder tempo em pintar natildeo os planos da futura cidade nem um recenseamento mas cenas da vida altamente estetizadas

Para compreender isto temos de lembrar das primeiras paacuteginas criadas pela pena de Leacutevi-Strauss em sua ceacutelebre Introduction agrave la penseacutee sauvage em que se pergunta sobre as razotildees pelas quais os iacuten-dios deixavam frutas e plantas uacuteteis preferindo plantas nauseabundas chegando agrave seguinte conclusatildeo ldquoas espeacutecies animais e vegetais natildeo satildeo conhecidas tanto por sua utilidade elas satildeo decretadas uacuteteis ou interes-santes porque satildeo de antematildeo conhecidasrdquo (Leacutevi-Strauss 1962 p 21) O que nos faz viver o que nos determina natildeo eacute contrariamente ao que cremos a eficaacutecia imediata Eacute a ordem simboacutelica pela qual inscrevemos os objetos comportamentos e situaccedilotildees que vivemos

Uma das explicaccedilotildees que podemos trazer em relaccedilatildeo ao grande su-cesso da figura de Sherazade reside no fato de que para salvar sua vida como ela proacutepria afirma relata coisas espantosas e surpreendentes Que coisas As que natildeo se destinam agrave nossa razatildeo mas agraves paixotildees e afetos Histoacuterias fantaacutesticas que ligam Sherazade agrave vida histoacuterias inuacuteteis eacute ne-cessaacuterio guardar no espiacuterito para perceber aqui uma articulaccedilatildeo muitas vezes insuspeita entre as Mil e uma noites e a educaccedilatildeo Esta tomada de consciecircncia materializa como o uacutetil se cindiu do fantaacutestico na educa-ccedilatildeo pensemos no que fizemos a geraccedilotildees de crianccedilas espontaneamente apaixonadas por mapas de tesouros o sonho de ilhas misteriosas conti-nentes desconhecidos e cidades submersas transformadas em geraccedilotildees que odeiam a Geografia

Sherazade cuja vida eacute ameccedilada natildeo encontra outra estrateacutegia que a de arriscaacute-la com coisas divertidas ela potildee sua vida ao risco da compo-siccedilatildeo literaacuteria A figura de Sherazade se constitui assim em uma cativa paradoxalmente ldquonocircmaderdquo em sentido deleuziano Eacute aquela que passa o tempo a fugir dos ldquoagenciamentos territorializadosrdquo Natildeo nos conta uma histoacuteria natildeo realiza uma viagem uacutenica Natildeo vai de um soacute iniacutecio a um soacute fim Sherazade ilustra um caminho em que os pontos satildeo sempre

submetidos ao proacuteprio trajeto E pode ser neste sentido que Sherazade conforma a desterritorializaccedilatildeo por excelecircncia a de uma nocircmade que cativa natildeo para de movimentar as fronteiras Ela navega pela vista mos-trando ao mesmo tempo as qualidades de uma inteligecircncia que evo-lui numa multiplicidade qualitativa nos lembrando que ldquoa navegaccedilatildeo nocircmade empiacuterica e complexa faz intervir os ventos barulhos cores e sons do marrdquo (Deleuze Guattari 1980 p 599) Noacutes sabemos tambeacutem que o que verdadeiramente seduziu desde o seacuteculo XIX os autores e criadores dos diferentes campos artiacutesticos foi certamente a metaacutefora do autor frente o imperativo da criaccedilatildeo O escritor o compositor o autor eacute aquele que deve encontrar diariamente um tema uma histoacuteria para viver e para sobreviver Dito de outra forma o inuacutetil vale igualmente a vida do autor

6 Da tentaccedilatildeo desmoralizadora

Se expressa nas Mil e uma noites uma tentaccedilatildeo desmoralizadora de superar as barreiras e delimitaccedilotildees estabelecidas pela sociedade igualmente no registro da hierarquia social Pensemos na 9ordf noite por exemplo onde vemos se realizar o impensaacutevel numa sociedade em que o estatuto social eacute fortemente delimitado O que se trata aqui eacute o cotidia-no aspectos que poderemos classificar de lsquoordinaacuteriosrsquo Estamos em um mercado aacuterabe (souk) qualquer pessoa hoje ainda pode imaginar uma atmosfera tiacutepica se identificando com o carregador O que nos faz mer-gulhar nas Noites Qual a mensagem aqui O livro sob muitos aspectos nos fala de coisas cotidianas

1) elas reconfiguram o cotidiano jogando com as barreiras morais e sociais estabelecidas superando as lsquolimitaccedilotildeesrsquo do real a ficccedilatildeo nos faz sair de noacutes mesmos e de nossas vidas

2) Mas as Noites nos dizem tambeacutem que precisamos prestar aten-ccedilatildeo a este cotidiano de aparecircncia comum Eacute necessaacuteria atenccedilatildeo agraves coisas ordinaacuterias pode ser que se encontre nelas coisas extraordinaacuterias Este eacute um fato particularmente moderno para um texto tatildeo antigo Mas isso natildeo se limita especificamente agraves Mil e uma noites o mesmo pode ser encontrado na literatura dita de maneira geral como lsquomedianarsquo

Pois as pessoas simples tecircm um papel consideraacutevel nas Noites pen-samos tambeacutem no personagem do empregado do matadouro de Bagdaacute arpoado por uma adoraacutevel jovem que decidiu jaacute que era traiacuteda pelo marido dormir com o mais sujo e abjeto homem da cidade A obra cria uma sociedade sonhada cujas fronteiras indevassaacuteveis satildeo constan-temente perpassadas uma sociedade em que escravos africanos fazem amor com lindas princesas sultanas onde carregadores satildeo seduzidos por jovens distintas e empregados de matadouros copulam com lindas mulheres Assim a tentaccedilatildeo desmoralizadora se exprime como uma fuga uma improvisaccedilatildeo literaacuteria entre a sentenccedila religiosa de abertura ldquoem nome de Deus o todo misericordioso o muito misericordiosordquo e a conclusatildeo das narrativas curtas sempre moral E Deus estaacute aqui sempre posto como testemunha e invocado para nos lembrar talvez que o di-vino se materializa tanto no excesso de moralidade quanto na tentaccedilatildeo desmoralizadora que o rosto de Deus se encontra tambeacutem no deboche na decadecircncia e na orgia Esta ideia eacute ainda mais fortalecida quando se restitui as experiecircncias conduzidas pelos Majdhucircb literalmente os ldquoaspirados em Deusrdquo tambeacutem chamados repreendidos que procuravam o seu Senhor bem amado dentro de experiecircncias que superavam todos os quadros morais estabelecidos (cf Bentounegraves Solt 1996 p 154-158) Repensemos neste quarteto de Omar Khayyam

Cada gosto de vinho que o Saki derramaNegligentemente para apagar os fogos de penaEm qualquer coraccedilatildeo doloroso Louvaccedilotildees agravequele que ofereceUm tal remeacutedio para consolo de sua melancolia (2005 p 69)

Interpretamos sobretudo este vinho como uma metaacutefora miacutestica ou como praacutetica voluntaacuteria de embriaguez tendo em vista uma aproxima-ccedilatildeo de Deus O ecircxtase estaacute assim natildeo muito longe da surpresa do des-lumbramento e espanto Jogar com uma ordem estabelecida que eacute res-peitada interiorizada e as Mil e uma maneiras de transgredi-las pois a transgressatildeo eacute um dos ingredientes essenciais ao drama e um dos aspec-tos que mais datildeo interesse ao texto Ela natildeo eacute proacutepria agraves Noites tambeacutem estaacute presente no romance de Ariosto no qual a traiccedilatildeo se daacute com um anatildeo disforme O fantaacutestico e o sobrenatural satildeo caminhos para a supe-raccedilatildeo do real o transgredir a lei tais funccedilotildees se aproximando daquelas apontadas por Torodov Noacutes podemos ver no fantaacutestico na forma como

ele se expressa nas Noites uma linha de fuga no sentido deleuziano do termo que permite escapar no espaccedilo de um instante literaacuterio agrave censu-ra se jogando sutilmente contra as interdiccedilotildees das autoridades

7 Agrave guisa de conclusatildeo a submissatildeo moralizadora ou quando a literatura marcha obediente

De fato ao fim eacute bem a moral que daacute a tocircnica nas Noites e a cons-tante e breve reconquista dos territoacuterios do imaginaacuterio do fantaacutestico do maravilhoso Eacute necessaacuterio repensar continuamente esta literatura como Adab no duplo sentido de educadora e moralizadora De harmonizar o ser com o mundo e os outros Se repensarmos por exemplo Simbad do mar24 que encontra um outro Simbad carregador Aquele conta a este que um dia perdeu sua fortuna e decidiu abandonar tudo para partir apoacutes lembrar-se da sentenccedila do rei Salomatildeo ldquotrecircs coisas satildeo preferiacuteveis a trecircs outras o dia da morte ao dia do nascimento um cachorro vivo a um leatildeo morto e a tumba agrave miseacuteriardquo Eis uma amarga liccedilatildeo de moral ao outro Simbad o simples carregador acabrunhado pela vida e pelo ardor de sua tarefa Uma liccedilatildeo ainda mais amarga se pensarmos no esquema narrativo invariaacutevel ao qual obedecem as aventuras de Simbad do mar ele nasce em meio agrave fortuna para depois perdecirc-la embarca para encon-trar uma tempestade ou uma agressatildeo naufraga e perde todas as suas mercadorias mas a sorte estaacute sempre a seu favor pois ele se arrisca Eacute Simbad do mar que embarca ou o Simbad simples carregador que sonha em fazecirc-lo Natildeo seria uma mensagem agraves pessoas humildes de Bagdaacute sobre a aceitaccedilatildeo de sua sorte e de natildeo se perder a esperanccedila de trabalhar e abraccedilar os riscos ldquoUns tecircm o cansaccedilo por lote e outros o repouso Uns satildeo felizes outros como eu mesmo vocacionados agrave maior pena e ao aviltamentordquo (Bencheikh Miquel 2007 p 354) E poucas paacute-ginas nos bastam para trazer esta liccedilatildeo

Eacute pelas provas que se atinge as honras pois ao se visar o que estaacute muito alto quantas noites sem sonho Deve mergulhar profundamente o que deseja encon-trar peacuterolas e merecer assim o poder e a riqueza Quem sonha a gloacuteria sem mer-gulhar na pena consome a existecircncia a buscar o impossiacutevel (p 356 ndash 539ordf noite)

24 A traduccedilatildeo literal do aacuterabe natildeo faz de Simbad um marinheiro mas um homem do mar no sentido de que ele usa o mar como um comerciante o mar nunca eacute um fim em si

Simbad ilustra se eacute necessaacuteria uma concepccedilatildeo da moral em terras do Islatilde em que a fortuna deve se conjugar com a salvaccedilatildeo a tal pon-to que quando a ilha se movimenta o capitatildeo do barco comeccedila a gri-tar a quem quiser ouvir ldquoabandonem seus bens e salvem suas almas Primeiro suas vidas Esta ilha na qual vocecircs estatildeo natildeo eacute uma ilhardquo (p 357) A ambivalecircncia da ilha entre imagem paradisiacuteaca e simulaccedilatildeo diaboacutelica eacute um motivo antigo Estamos face a uma alegoria a ilha eacute tambeacutem o diabo que simula o paraiacuteso Eacute preciso se referir agraves primei-ras linhas da Icircle deserte et autres textes de Deleuze sobre a persistecircncia desta imagem na literatura das diferenccedilas entre ilha continental e ilha oceacircnica esclarecendo esta geografia imaginaacuteria que tanto se aproxima como se distancia de noacutes mesmos

Os geoacutegrafos dizem que haacute dois tipos de ilhas Eacute uma informaccedilatildeo preciosa para a imaginaccedilatildeo pois se encontra aqui uma confirmaccedilatildeo do que ela sabia de outra parte [] As ilhas continentais satildeo ilhas acidentais ilhas derivadas elas estatildeo separadas do continente nascidas de uma desarticulaccedilatildeo erosatildeo fratura e sobrevivem ao afundamento do que as mantinha As ilhas oceacircnicas satildeo ilhas originaacuterias essenciais de uma parte satildeo constituiacutedas de corais se nos apresen-ta como um verdadeiro organismo de outra surge de erupccedilotildees submarinas trazendo para o ar livre um movimento das profundezas umas emergem lenta-mente outras desaparecem e retornam sem que tenhamos tempo de anexaacute-las [] Essa atraccedilatildeo que o homem tem pelas ilhas retoma este duplo movimento que as produz Sonhar as ilhas com anguacutestia ou alegria pouco importa eacute so-nhar que noacutes nos separamos que jaacute estamos separados longe dos continentes que estamos soacutes e perdidos ndash ou eacute sonhar que reiniciamos a partir do zero que recriamos e recomeccedilamos (Deleuze 2002 p 11)

Enfim eacute preciso entender que os grandes episoacutedios que compotildeem as Mil e uma noites satildeo construiacutedos sobre um modelo elaborado que tecircm em vista finalidades altamente morais Pensamos no tintureiro desonesto da 930ordf noite Este personagem velhaco mentiroso na alma e que nunca se envergonha das vilezas que faz aos outros exige o pagamento antes do trabalho gasta o dinheiro e pede aos clientes que retornem para pegar seus pertences no outro dia em dias consecutivos pretextando o nascimento do filho ou a visita de convidados Depois quando natildeo tem mais argumentos diz que a roupa fora roubada quando estava estendida Se o cliente eacute bom diz um ldquoDeus providenciaraacute a sua substituiccedilatildeordquo se eacute menos influenciaacutevel causa um escacircndalo mas sem obter nada mesmo se queixando ao juiz Pouco a pouco o ruiacutedo se expande em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas desonestas do tintureiro atraindo a atenccedilatildeo sobre ele Pouco a pouco vai sendo posto de lado seus negoacutecios declinam e por fim seraacute simultaneamente queimado e afogado Mais que uma liccedilatildeo de moral vinculada aos negoacutecios comerciais vemos aqui como as Noites aspiram a esta liccedilatildeo de conseacutequentialisme demonstrando sequencialmente os efeitos gerados por uma accedilatildeo e a partir dela o valor moral da mesma O fantaacutes-tico eacute ornamento mas igualmente uma fuga salutar diante de um neces-saacuterio retorno a uma realidade que pedia moralidade e Adab

REFEREcircNCIAS

AMIROU Rachid Imaginaire touristique et sociabiliteacute du voyage Paris PUF 1995

BACHELARD Gaston La formation de lrsquoesprit scientifique Paris Vrin 1971

AVERROES LrsquoIslam et la raison Trad Marc Geoffroy Paris Garnier-Flammarion 2000

BERCHET Jean-Claude Le Voyage en Orient anthologie des voyageurs franccedilais au XIXe siegravecle Paris Robert Laffont 1985

BOURDIEU Pierre WACQUANT Loiumlc ldquoSur les ruses de la raison impeacuterialisterdquo in Actes de la recherche en sciences sociales Vol 121-122 mars 1998 (p109-118)

BOUTANG Pierre-Andreacute LrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuze (teacuteleacutefilm documentaire) Paris Arte (1988) 1996

CAILLOIS Roger Au cœur du fantastique Paris Gallimard 1965

CAPELLE Pierre Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature (tome 1) Paris Haut-coeur et Gayet Jeune 1824

CFMI - Centre de Formation des Musiciens Intevenants agrave lrsquoEacutecole Actes de colloque La musique un enseignement obligatoire Pourquoi comment Paris Lrsquoharmattan 2000

CHATEAUBRIAND Reneacute Itineacuteraire de Paris agrave Jeacuterusalem Paris Gallimard 1969

CORM Georges Orient-Occident La fracture imaginaire Paris La deacutecouverte 2005

DELEUZE Gilles Mille Plateaux ndash Capitalisme et schizophreacutenie 2 en collaboration avec GUATTARI Felix Paris Les eacuteditions de Minuit 1980

_________ Diffeacuterence et reacutepeacutetition Presses Universitaires de France Paris 1968

DERRIDA Jacques Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Paris Seuil 1967

FOUCAULT Michel Les mots et les choses Paris Gallimard 1990

FLAUBERT Gustave Correspondance 1 1830-1851 Paris Gallimard 1973

__________ Correspondances ressource en ligne de lrsquoUniversiteacute de Rouen URL httpflaubertuniv-rouenfrcorrespondanceconardlettres49bhtml (acessado em 14 de fevereiro de 2013)

__________Voyage en Eacutegypte Paris Grasset 1991

GERONIMI Martine ldquoLrsquoOrient geacuteographie imaginaire les eacutecrivains franccedilais et les villes de deacutesirrdquo in Teacuteoros 25-2 | 2006 13-18

HENTSCH Thierry LrsquoOrient imaginaire Paris Eacuteditions de Minuit 1988

ISSA Hossam ldquoLa Nahda ou le recircve de na nation eacutegyptienne de Muhammad Ali agrave Gamal Abdel Nasserrdquo in EacutegypteMonde arabe Premiegravere seacuterie Mutations [En ligne] mis en ligne le 08 juillet 2008 httpemarevuesorgindex1480html (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

LORCERIE Franccediloise ldquoLrsquoislam comme contre-identification franccedilaise trois momentsrdquo in LrsquoAnneacutee du Maghreb vol II 2007

LOVECRAFT Howard Phillips Eacutepouvante et surnaturel en litteacuterature Paris Bourgeois 1969

MOUSSA Sarga Le Voyage en Eacutegypte Anthologie des voyageurs europeacuteens de Bonaparte agrave lrsquooccupation anglaise Paris Robert Laffont 2004

NERVAL Geacuterard de Voyage en Orient Paris Flammarion 1980

RANCIERE Jacques Le partage du sensible Paris La fabrique 2000

SAIumlD Edward LrsquoOrientalisme LrsquoOrient creacuteeacute par lrsquoOccident Paris Seuil 1980

TOUALBI-THAALIBI Issam ldquoRegards sur la socieacuteteacute musulmane du ixe siegraveclerdquo in Revue europeacuteenne des sciences sociales [En ligne] 50-1 | 2012 mis en ligne le 15 juin 2015 httpressrevuesorg1208 (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

TOUFY Fahd ldquoAnges deacutemons et djinns en Islamrdquo in Geacutenies Anges et Deacutemons Paris Seuil 1972 (p 154-213)

Voyage en Orient Exposition de la Bibliothegraveque nationale de France (BNF) [httpexpositionsbnffrveoindexhtm] (acessado nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2013)

A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro(Doutoranda em Linguiacutestica ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Priscilla de Moraes Batista(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Luiacutes Nicolau Fagundes Varela (1871-1845) eacute considerado um dos grandes nomes do Romantismo brasileiro Poeta ambientado pela criacutetica entre a segunda e terceira geraccedilotildees suas obras versavam sobre temas como morte patriotismo religiatildeo e misticismo Em meio a esta produccedilatildeo haacute um conto especial que abarca elementos oniacutericos fantaacutesticos ora em tom gro-tesco ora sublime retomando o mito paradisiacuteaco de um Oriente perdido quase metafiacutesico imagem esteacutetica que percorre a histoacuteria da literatura por-tuguesa desde a eacutepoca dos Descobrimentos (Machado 1983) Encontrado por Batalha (2011) e publicado no livro O fantaacutestico brasileiro contos esque-cidos o conto As Bruxas de Fagundes Varela introduz o leitor do seacuteculo XIX no universo da bruxaria e feiticcedilaria do folclore europeu a partir da his-toacuteria de um grupo de argonautas portugueses que aportados em um cais satildeo surpreendidos pela presenccedila de mulheres velhas e medonhas no conveacutes de seu navio sendo estas referidas posteriormente como feiticeiras Eacute nesse momento que os personagens iniciam uma jornada lendaacuteria culminando com a constataccedilatildeo do capitatildeo da ida dos seus tripulantes agraves Iacutendias

Apoacutes essa breve introduccedilatildeo ao conto passemos agrave discussatildeo dos aspectos linguiacutesticos e literaacuterios responsaacuteveis por construir a diegese Logo no iniacutecio da narrativa deparamo-nos com o diaacutelogo que Fagundes Varela estabelece com importantes obras da literatura fantaacutestica Baseando-nos no dialogismo de Bakhtin (2005) conceito desenvolvi-do em Problemas da poeacutetica de Dostoievski observamos que o autor ao referenciaacute-las explicitamente para a dimensatildeo ficcional da histoacuteria de-marca quais satildeo os discursos esteacuteticos e literaacuterios que vatildeo se constituir como base para a construccedilatildeo do (seu) universo da bruxaria

Na Alemanha e na Escoacutecia elas [as bruxas] andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura e desprendem funeacutereas monodias ao ermo e aos venda-vais Foi assim que Fausto e Mefistoacutefeles as encontraram a subir a montanha na medonha noite dos Walpurgis que Shakespeare as pintou na desvairada trageacutedia do Macbeth que Hoffmann as apresentou a desoras entre a chuva e a tempestade aos lacrimosos olhos da triste amante de Anselmo o louco no conto doentio que denominou o - vaso de ouro eacute assim que Walter Scott coxo as fez aparecer em seus belos romances Na Franccedila poreacutem segundo as tradiccedilotildees coligidas por Emiacutelio Souvestre no ndash Foyer Breton ndash e Paulo Feval em suas lendas elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar lavar o sudaacuterio dos finados nas aacuteguas do rio ou ir danccedilar ao Sabbath o baile infernal alumiado pelo claratildeo sinistro das fosforescecircncias tendo por orquestra ndash o bramido das torrentes ndash o ronco de trovoada e os silvos da ventania (Varela 2011 p 53)

Entatildeo Fagundes Varela ao oferecer exemplos literaacuterios para basear a realidade da sua histoacuteria dialoga com o fundo aperceptivo (Bakhtin 1993) do universo dantesco de histoacuterias de bruxaria e feiticcedilaria pre-sentes em diversas obras da Alemanha EscoacuteciaInglaterra Franccedila e Portugal Uma vez que o autor faz referecircncia a esse imaginaacuterio esteacutetico de grande influecircncia na construccedilatildeo do arqueacutetipo coletivo da bruxaria mencionaremos algumas das vozes que ressoam e se entrelaccedilam de for-ma mais contundente com o enunciado total do conto

Iniciaremos pela Alemanha Entre as vozes que convoca tais como Hoffmann em Vaso de ouro ldquotriste amante de Anselmo o loucordquo Gottfried Burger o pai da poesia narrativa fantaacutestica neste paiacutes e Achim von Arnim escritor romacircntico de espectros destacaremos a de Goethe Em sua obra Fausto haacute referecircncia agrave noite dos Walpurgis a qual eacute comemorada entre 30 de abril e 1deg de Maio celebrada por cristatildeos e pagatildeos em vaacuterios paiacuteses aleacutem da Alemanha como Inglaterra Beacutelgica Holanda e Franccedila Essa referecircncia pode ser ilustrada na cena III do quadro XXI da parte inicial do livro inti-tulada Noite de Santa Walpurga na qual Mefistoacutefeles obriga Fausto a passar uma noite no monte de Brocken para assistir agrave celebraccedilatildeo dos Walpurgis

De Brocken ao rochedocorrer correr bruxedoOnde a cana jaacute loirejamas a espiga inda verdejatodo o bando unido sejaPosto de alto e todo manoeacute o senhor Dom Fulano

quem preside ao nosso arcanoPor cima da folha mais do pedregulhofestanccedila rasgada com todo o barulhoO bode tresanda fartum que enfeiticcedilae a bruxa casticcedila casticcedila e casticcedila (Goethe 2003 grifo nosso)

Passemos agora agraves vozes literaacuterias da Escoacutecia e Inglaterra Entre elas as de Walter Scott romancista histoacuterico Anna Radcliffe escritora de histoacuterias de fantasmas o corcel de Giaour25 tambeacutem trabalhado pela de Byron e a de Shakespeare em especial na sua obra Macbeth (1606) A referecircncia a esse livro eacute particularmente importante tendo em vista o universo da bruxaria nele trabalhado muito a fim ao conto de Varela Isso pode ser ilustrado neste excerto da peccedila shakespeariana em que Banquo ao conversar com Macbeth afirma

A que distacircncia em sua avaliaccedilatildeo senhor estamos de Forres O que satildeo essas figuras tatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fantaacutesticas e desvairadas em seus trajes a ponto de natildeo parecerem habitantes da terra e no entanto podemos ver que estatildeo sobre a terra Vivem vocecircs Ou seriam vocecircs alguma coisa que natildeo admi-te perguntas humanas Vocecircs parecem entender-me logo levando como fazem cada uma por sua vez seu dedo encarquilhado aos laacutebios emaciados Vocecircs tecircm toda a aparecircncia de mulheres e no entanto suas barbas proiacutebem-me de inter-pretar suas figuras como tal (Shakespeare 2012 p 18-9 grifos nossos)

Ao definir as trecircs bruxas como ldquotatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fan-taacutesticas e desvairadasrdquo de ldquodedo encarquilhadordquo ldquocom aparecircncia de mulhe-resrdquo figuras que ldquonatildeo admite[m] perguntas humanasrdquo Shakespeare atraveacutes de Banquo caracteriza essas criaturas como seres que oscilam entre o hu-mano e o natildeo-humano pois mesmo vivendo e habitando a terra haacute algo na natureza dessas criaturas que se afasta do natural Esses traccedilos podem ser tambeacutem visualizados no iniacutecio do conto quando Fagundes Varela afirma ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa suas palavras e accedilotildees cunhadas do torvo caraacuteter de uma sombria monomaniardquo (p 53 ndash grifos nossos) Esta uacuteltima expressatildeo ldquosombria mo-nomaniardquo ainda destaca a fixaccedilatildeo irracional doentia e grotesca desses seres

Varela ainda dialoga com outras vozes literaacuterias da Franccedila a saber Emiacutelio Souvestre ao mencionar o poema Foyer Breton que reuacutene vaacuterias

25 Eacute interessante notar que o nome ldquoGiaeurrdquo caracterizava o desprezo que os turcos tinham agravequeles que natildeo seguiam sua religiatildeo particularmente os cristatildeos

histoacuterias do folclore e da literatura popular da Bretanha e Paulo Feacuteval romancista mais conhecido no final do seacuteculo XIX A partir dessas refe-recircncias observamos que Fagundes Varela eacute um romacircntico que dialoga atraveacutes da retomada no seu texto com os grandes nomes do movimen-to em se utilizando por exemplo de temas populares e folcloacutericos mais proacuteximos do fantaacutestico e contraacuterios ao universo classicista tradicional

Haacute ainda outra voz de grande importacircncia para a elaboraccedilatildeo do fundo aperceptivo do conto Logo apoacutes ambientar o leitor quanto ao tema a ser abordado evoca-se uma lenda folcloacuterica da eacutepoca das Grandes Navegaccedilotildees divulgada nas terras portuguesas A referecircncia geograacutefica eacute oferecida quan-do o autor cita alguns locais de Portugal ndash Minho e Extremadura ndash onde tais supersticcedilotildees se encontram mais arraigadas ao folclore local ldquoentretanto em nossas tradiccedilotildees filhas quase todas das geacutelidas supersticcedilotildees do Minho e da Extremadura as bruxas natildeo satildeo revestidas desse caraacuteter de sublimes horrores que as faz tatildeo temidas nas campinas da Bretanha nas montanhas da Escoacutecia ou nas planiacutecies da Alemanhardquo (Varela 2011 p 53) Aqui o ter-mo entretanto delimita o imaginaacuterio das bruxas portuguesas das Grandes Navegaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves figuras diaboacutelicas citadas anteriormente

Apoacutes delimitar o fundo dialoacutegico do conto passemos para a anaacutelise do narrador e dos personagens Em relaccedilatildeo ao primeiro observamos a presenccedila do narrador heterodiegeacutetico (Batalha 2011) que natildeo participa da accedilatildeo (de grau zero) mas que conhece os fatos ao seu redor (oniscien-te) Por outro lado notamos que o autor abre um lsquoespaccedilorsquo no texto para se posicionar sobre o que estaacute relatando a saber as lendas que dispotildee para o leitor ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas [eacute estranho] contam que agrave noite elas rolam pela correnteza sentadas em alguiacutedares e coro-adas de floresrdquo (Varela 2011 p 54) Baseando-nos em Bakhtin (1993) observamos que nesse trecho Fagundes Varela mostra explicitamente a sua voz a partir da expressatildeo deslocada entre colchetes ldquoeacute estranhordquo re-velando sua visatildeo sobre a histoacuteria de dentro e fora do conto Nos dizeres da autora francesa Authier-Revuz (1982) estariacuteamos nos deparando com um comentaacuterio metoniacutemico isto eacute um entrelaccedilamento da enunciaccedilatildeo pois o autor alude a si e ao outro dentro do seu proacuteprio discurso abrindo uma brecha no seu enunciado quando emprega o verbo no plural contam (quem conta eles isto eacute os ditos mitos e folclores populares)

Eacute interessante notar que apoacutes essa demarcaccedilatildeo pontual da voz do autor na narrativa referindo-se ao imaginaacuterio dessas lendas oralizadas

ele relata ldquoeis uma das lendas mais conhecidasrdquo Aqui a diegese eacute tra-balhada de maneira antropoloacutegica mas com criatividade literaacuteria Isso significa que o leitor percebe que eacute lenda e por isso a teoria de Todorov sobre o fantaacutestico puro falha ao menos pontualmente Contudo eacute im-portante mencionarmos que no primeiro paraacutegrafo do conto haacute uma focalizaccedilatildeo mais proacutexima do maravilhoso todoroviano quando Varela descreve as bruxas como ldquomulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 2011 p 53) aceitando de antematildeo a presenccedila de leis distintas do real

Voltemos agora para os personagens A esse respeito o enredo eacute constituiacutedo por cinco marinheiros ndash Pedro Guilherme Teodoro Jacques e Gabriel ndash e uma quantidade indefinida de bruxas Sob a perspectiva bakhtiniana (1993) observamos que haacute uma uacutenica visatildeo de mundo co-letivizando as vozes do grupo dos marinheiros ldquoo marinheiro eacute um tipo estoico por natureza nada haacute que os aflija como tambeacutem nada haacute que os amedronterdquo (Varela 2011 p 55 grifo nosso) Nessa citaccedilatildeo relacionada a uma discussatildeo relativa ao sobrenatural saiacutemos do horror propriamen-te dito no momento em que estes marinheiros apresentam caracteriacutesti-cas dos heroacuteis mitoloacutegicos claacutessicos impassiacuteveis inabalaacuteveis em suma incapazes da experiecircncia do medo

Por outro lado as bruxas satildeo caracterizadas ora como grotescas ora sublimes Hugo (2007) na obra Do grotesco e do sublime permite-nos compreender esses polos como parte da dinacircmica do pensamento esteacute-tico romacircntico pois a sua junccedilatildeo ofereceria novo iacutempeto agrave arte Para ele o grotesco o disforme e o horriacutevel datildeo descanso ao que eacute belo e para se admirar esse ldquobelordquo seria preciso um contraste uma comparaccedilatildeo

Nesse conto observamos que o grotesco e o sublime satildeo elementos predominantes na caracterizaccedilatildeo das bruxas os quais por sua vez intensificam o universo fantaacutestico-maravilhoso assim o trabalho de Varela com o grotesco se configura a partir de uma mescla de elementos heterogecircneos que daacute vazatildeo a uma experiecircncia abismal (Kayser 2008) como ilustram os excertos abaixo

As bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernal (Varela 2011 p 53 grifos nossos)

Os aspectos destas taacutertareas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa [] (p 53 grifo nosso)

Pedro subiu e chegando agrave escotilha viu uma multidatildeo de mulheres velhas e medonhas que entravam umas atraacutes das outras pulando e saltando a cavalo em cabos de vassouras (p 54 grifo nosso)

Entatildeo ele olhou para aquela turba invasora de sinistras personagens [] (p 54 grifo nosso)

As moccedilas transformaram-se logo em hediondas velhas sem contudo perder as riquezas que lhes tinham dado sem duacutevida seus misteriosos amantes e cavalgando o claacutessico cabo de vassoura lanccedilaram-se ao mar e desaparece-ram (p 57 grifo nosso)

Desse modo o grotesco eacute configurado como um traccedilo marcante da obra se inserindo especialmente no tratamento que eacute dado agraves invasoras Contudo em um determinado ponto da histoacuteria no momento em que as bruxas invadem a embarcaccedilatildeo modifica-se sua aparecircncia horriacutevel e grotesca e elas tornam-se belas criaturas Segundo Hugo (2007) o gro-tesco pode ser visto como um ponto de partida para se chegar ao belo Logo esse movimento ndash do feio para o belo ndash proporciona uma expansatildeo vivacidade e emoccedilatildeo ao objeto artiacutestico Nessa perspectiva observamos a passagem do grotesco para o sublime no universo do insoacutelito a partir de algumas descriccedilotildees tais como em ldquoos marinheiros correram para a proa e viram em vez das megeras que Pedro enxergara um bando de moccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo (p 55 grifo nosso)

Eacute interessante notarmos que esse aspecto sublime da beleza pode se constituir como um simulacro funcionando atraveacutes de uma falsa aparecircncia Ora as bruxas possuem uma ldquosombria monomaniardquo (Varela 2011 p 53) ou seja predomina entre elas o desejo doentio de serem eternamente jovens e belas ldquoas bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e ventu-ras da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 194 p 53 grifo nosso) Essa beleza eacute portanto estranha e grotes-ca porque eacute sedutora e ilusoacuteria artifiacutecio do sobrenatural para ldquoenganarrdquo os marinheiros Logo o grotesco e sublime satildeo aspectos que funcionam na diegese como iacutendices que potencializam o caraacuteter insoacutelito da obra

Antes de concluirmos a anaacutelise da caracterizaccedilatildeo dessas bruxas observemos que elas satildeo construiacutedas no conto como seres livres e

independentes sexualmente detentoras de um grande poder sensual e de encanto eroacutetico como se vecirc nas seguintes imagens

[] elas andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura [] (p 53 gri-fos nossos)

[] elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar [] (p 53 grifo nosso)

[] se transformam em belas moccedilas apossam-se dos navios erguem as acircn-coras e vatildeo por aiacute afora seduzir os rapazes entregar-se em horrenda lubri-cidade aos braccedilos deles ndash incendidos de um amor vertiginoso e funesto (p 54 grifos nossos)

Nesses trechos notamos a presenccedila da liberdade via erotismo re-lacionada tambeacutem ao imaginaacuterio romacircntico de quebra do decoro e das femmes fatales oitocentistas Ademais o universo dessas bruxas osci-la em torno de um movimento entre o sagrado e o profano26 (Priore 1994) evocando mulheres proacuteximas a uma pureza quase casta e virginal ndash ldquomoccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo ndash mas ao mesmo tempo envoltas em uma atmosfera misteriosa e erotizada

Ainda a respeito da polarizaccedilatildeo grotesco x sublime observamos que esse movimento de expansatildeo do disforme para o que estaacute na forma do belo destaca-se na configuraccedilatildeo peculiar do tempo e espaccedilo narrativos O cronotopo eacute diluiacutedo por alguns processos narrativos tiacutepicos do fantaacutestico

Entretanto o navio natildeo perdia tempo - corria corria corria e na desabrida carreira como o luacutegubre cavaleiro de Burger deixava atraacutes de si a terra as ilhas as aacutervores e as nuvens como um bando de aves fugitivas A cada porccedilatildeo de espaccedilo que rompia ndash o ar tornava-se mais azul e carregado as estrelas maiores e mais viacutevidas No zimboacuterio imenso do firmamento a lua se equilibrava como uma lacircmpada de prata inundada de nardo na cuacutepula dos templos orientais As ondas erguiam-se como Leviathans em cujo dorso escamoso brincavam os raios de uma luz fosforescente e a embarcaccedilatildeo de-senhava-se raacutepida e fugaz nas aacuteguas como a sombra do corcel de Giaeur nas plantas do ervaccedilal (Varela 2011 p 55 grifos nossos)

Nesse excerto observamos que o tempo passa raacutepido e o navio li-teralmente ldquovoardquo O espaccedilo e tempo satildeo assim expandidos atraveacutes do

26 O movimento de oscilaccedilatildeo do sagrado e do profano estaacute ligado tambeacutem agrave dinacircmica do grotesco e do sublime

processo de repeticcedilatildeo de palavras ndash corria corria corria ndash e por meio do paralelo do navio com o ldquocorcel de Giaourrdquo (dialogismo mostrado com o poema de Byron) A referecircncia agrave ldquocuacutepula dos templos orientaisrdquo sina-liza a viagem ateacute a Iacutendia e representa a passagem da razatildeo europeia ao maravilhoso desconhecido do Oriente Potencializando o universo fan-taacutestico do conto esta regiatildeo eacute descrita com termos que evocam o lon-giacutenquo o metafiacutesico o abstrato um sonho que ldquoparecerdquo nunca ter se re-alizado mas que se presentifica efetivamente como se eacute revelado ao final do conto a partir do diaacutelogo entre o capitatildeo e o grupo de marinheiros

Machado (1983) em sua obra O mito do Oriente na literatura por-tuguesa explica que este espaccedilo geograacutefico tambeacutem em liacutengua portu-guesa veio sendo apropriado literariamente como um mito ao longo dos seacuteculos por autores do passado como Joatildeo de Barros Camotildees Diogo do Couto entre outros ateacute a contemporaneidade (Antero de Quental Eccedila de Queiroacutes etc) Segundo Machado desde a eacutepoca dos Descobrimentos haacute uma constante elaboraccedilatildeo desse tema que de tan-to circular tornou-se parte da nossa memoacuteria coletiva imprimindo-se na nossa histoacuteria como um arqueacutetipo O olhar negativo em relaccedilatildeo ao Oriente por conta da secular dominaccedilatildeo moura na peniacutensula ibeacuterica eacute mitigado por estas maravilhas comuns ao imaginaacuterio europeu poten-cializadas pela movecircncia das grandes navegaccedilotildees

No conto de Varela a chegada do navio agraves Iacutendias pelos ares eacute des-crita da seguinte forma

Depois de assim voar o navio por algum tempo parou finalmente junto de umas costas alvas e extensas coroadas de uma vegetaccedilatildeo fantaacutestica e titacirc-nia As feiticeiras pularam logo ao mar e comeccedilaram a correr para a terra com tal desembaraccedilo como se pisassem uma campina firme e segura Os ldquomarsouinsrdquo ficaram estaacuteticos e perplexos alguns minutos poreacutem como ndash marinheiro eacute capaz de desembestar ateacute o quinto inferno e palestrar com o proacuteprio Satan soltaram os escaleres e remaram para a praia Chegando sen-tiram uma como harmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e desconcertados que vinha de longe nas asas de uma aacuterea teacutepida e suave ferir-lhes o ouvido Caminharam para o lugar de onde partia o ruiacutedo agrave medida poreacutem que se adiantavam um perfume voluptuoso e sensual desconhecido embora vinha-lhes amenizar os sentidos umas aacutervores enormes gigantescas cujos fastiacutegios pareciam espanejar as nuvens levantavam-se diante deles mu-dos silenciosos como os fantasmas de Anna Radcliff como os espectros de Achim DrsquoArnim (Varela 2011 p 56 grifos nossos)

Observamos nessa descriccedilatildeo o fasciacutenio pela descoberta de um paraiacuteso o qual os marinheiros soacute depois saberatildeo tratar-se das Iacutendias Esse ambiente ndash que de certa forma torna lsquofantaacutesticarsquo a Ilha das Amores camoniana ndash revela traccedilos miacutesticos de orientalismo maacutegico e exotista uma ldquoharmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e des-concertadosrdquo sente-se o cheiro de ldquoum perfume voluptuoso e sensual desconhecidordquo haacute aacutervores ldquoenormes gigantescasrdquo etc Tais imagens se aproximam das elaboradas por Joatildeo de Barros em suas crocircnicas segun-do Machado (1983) este autor se concentra na evocaccedilatildeo da descoberta conquista e descriccedilatildeo minuciosa das terras orientais Isso se daacute porque ele eacute um ldquohumanista estaacuteticordquo ndash diferente de Damiatildeo de Goacuteis que viajou muito ao longo da vida ndash a substituir o conhecimento in loco por uma ldquoelaborada retoacuterica claacutessica evocativa do longiacutenquordquo (p 22) que ganha proporccedilotildees miacuteticas

A partir da chegada dos marinheiros a essa terra ldquodesconhecidardquo observamos que durante a descriccedilatildeo do ambiente haacute elementos que caracterizam uma ornamentaccedilatildeo de caraacuteter grotesco e a influecircncia oriental construiacuteda pelo emprego de expressotildees como ldquoedifiacutecio amplo e colossalrdquo ldquomaacutermore pretordquo ldquosacadas douradasrdquo ldquoarabescos fantaacutesticosrdquo ldquofumo do incensordquo ldquoecos rudes e selvagensrdquo ldquosolidotildeesrdquo e ldquonoiterdquo

Os nossos homens adiantavam-se mais e deram entatildeo de rosto com um edi-fiacutecio amplo e colossal todo de maacutermore preto coberto de torreotildees sacadas douradas cornijas e arabescos fantaacutesticos Pelas infinitas fileiras de janeli-nhas ou antes seteiras se pendurava uma multidatildeo de lampiotildees multicores e saiacutea em turbilhatildeo o fumo do incenso e dos alvos uma orquestra desconhe-cida expandia seus ecos rudes e selvagens que se iam morrer pelas solidotildees e pela noite (Varela p 56 ndash grifos nossos)

Em seguida os argonautas se deparam com mais um elemento po-tencializador do gecircnero fantaacutestico a saber um ritual de danccedila como espaccedilo maacutegico de grande semelhanccedila com a danccedila do ventre a qual eacute considerada por muitos a primeira danccedila da humanidade Sari (2011) traz algumas contribuiccedilotildees a esse respeito em sua Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre na qual afirma que sua origem se daacute como um ritual sagrado uma vez que as mulheres danccedilavam para a Deusa-Matildee Inana siacutembolo da reproduccedilatildeo fertilidade e em especial relacio-nada ao crescimento dos gratildeos durante o plantio Surgida no Paleoliacutetico

na regiatildeo da Sumeacuteria ndash e natildeo no Egito como muitos pensam ndash as dan-ccedilarinas como satildeo por noacutes chamadas eram as grandes sacerdotisas dos templos e uma vez que Inana era extremamente feminina seus rituais baseavam-se na sexualidade fertilidade e no ventre a partir de teacutecnicas que norteavam a danccedila sagrada como os movimentos peacutelvicos Essa movimentaccedilatildeo do corpo da sacerdotisa-danccedilarina eacute evocada pelo nar-rador do conto

Fora do edifiacutecio sobre um vasto terreiro ardia uma enorme fogueira em torno da qual homens e mulheres de olhos negros e cintilantes face redonda e bronzeada danccedilavam ao som de instrumentos estranhos e refletiam ao claratildeo da fogueira suas figuras extravagantes na fachada de maacutermore polido do palaacutecio e faziam tremular pelo ar as compridas abas de suas vestimentas vermelhas e amarelas Havia tambeacutem moccedilas belas embora excessivamente trigueiras que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmente no gesti-cular lacircnguido e voluptuoso de uma danccedila desconhecida suas grinaldas e cin-turotildees eram ornados de pequenos luzeiros palidamente azulados Uma ala de homens feios e carrancudos cercava esta exoacutetica companhia e completava o quadro (Varela 2011 p 56-57 - grifos nossos)

Notamos claramente a descriccedilatildeo da movimentaccedilatildeo do corpo da danccedilarina do ventre a partir das expressotildees ldquomoccedilas belas que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmenterdquo e ldquogesticular lacircnguido e volup-tuosordquo Aleacutem disso as caracterizaccedilotildees das vestes dessas mulheres ndash ldquosuas grinaldas e cinturotildees eram ornados de pequenos luzeirosrdquo ndash ratificam a imagem da danccedilarina oriental Todos esses elementos relacionados ao mundo oriental27 potencializam o fantaacutestico

Eacute interessante notar que o leitor eacute paulatinamente inserido no universo fantaacutestico-maravilhoso da trama construiacutedo em torno da nar-rativa oriental de Varela segundo Todorov (2008) no subgecircnero fantaacutes-tico-maravilhoso daacute-se a aceitaccedilatildeo do sobrenatural apoacutes a duacutevida e as ambiguidades fantaacutesticas

27 De acordo com Sari (2011) ldquoas primeiras guerras e consequentemente os primeiros impeacuterios formam o conjunto de fatores que difundiram o culto a deusa e a danccedila peacutelvi-ca ritualiacutestica [] [Ademais houve] seis grandes impeacuterios que participaram ativamente na divulgaccedilatildeo e expansatildeo dos rituais da danccedila impeacuterio Sumeriano Assiacuterio Persa o impeacuterio de Alexandre o grande Romano e o principal o impeacuterio Otomanordquo (p 13)

Quando ao meio dia chegou o capitatildeo os marinheiros contaram o ocorrido e como prova mostraram as plantas que tinham apanhado O comandante tomou-as e pocircs-se a examinaacute-las com atenccedilatildeo misturada de pasmo inexpri-miacutevel depois entregando-as disse - Sabeis voacutes outros onde estivestes esta noite - Natildeo meu capitatildeo responderam os marujos- Pois estivestes na Iacutendia- Na Iacutendia Na Iacutendia Gritaram os marujos estuacutepidos de espanto (Varela 2011 p 57)

Nesse trecho flagramos a presenccedila do fantaacutestico-maravilhoso no momento em que o comandante aceita a histoacuteria contada pelos seus su-bordinados como algo ocorrido de fato evidenciando assim a presenccedila de novas leis na natureza e o estranhamento dos marinheiros eacute logo posto em suspensatildeo Aleacutem disso no final do conto encontramos iacutendices que confirmam este universo de forma incontestaacutevel

Esta eacute a canela filha legiacutetima da Aacutesia esta outra o cravo esta a baunilha e fi-nalmente esta de cujo nome natildeo me recordo agora eacute um excelente remeacutedio que natildeo cresce em nenhuma outra parte do mundo a natildeo ser ali A descriccedilatildeo que me fizestes desses homens morenos e trajados de estranhas roupagens natildeo faz senatildeo confirmar o que digo Aquele edifiacutecio de maacutermores eacute um pa-laacutecio de priacutencipe aquelas moccedilas de grinaldas e cinturotildees brilhantes satildeo as virgens indianas que cozem os vaga-lumes e luciacuteolas as suas vestimentas aqueles homens armados satildeo os guardas e soldados do priacutencipe Natildeo haacute duvida por artimanhas do diabo em menos de uma noite fostes agrave Iacutendia e voltastes (Varela 2011 p 58)

Desse modo um sobrenatural que eacute aceito se apresenta como fator determinante para a narrativa Ademais nesse trecho a voz do coman-dante se mistura com a do narrador ou seja deparamo-nos com um hibridismo (Bakhtin 1993) entre essas vozes uma vez que o narrador parece tomar a posiccedilatildeo do comandante tambeacutem como o seu posiciona-mento Isso significa que haacute uma imbricaccedilatildeo entre o que o comandante e o narrador pensam sobre o universo maravilhoso ficcional

Baseando-nos em Machado (1983) notamos que a diegese se constitui como uma ficccedilatildeo miacutetica do Oriente elaborada a partir do contexto mental dos Descobrimentos em que aparentemente a proacute-pria realidade adquire conotaccedilotildees maravilhosas aos olhos de hoje Assim ainda conforme Machado (1983) haacute ldquouma certa tendecircncia da cultura oitocentista que pretende retomar a liccedilatildeo dos viajantes aacutevidos

ao mesmo tempo de exoacutetico e de conhecimento cientiacuteficordquo (p 82) Assim a junccedilatildeo entre o passado miacutetico (histoacuterico) a esteacutetica fantaacutestica oitocentista (literaacuteria) aliada agraves imagens (do ponto de vista histoacuterico e literaacuterio) de um Oriente miacutetico que eacute tanto renascentista quanto ro-macircntico configuram um conto fantaacutestico-maravilhoso importante e original dentro da literatura oitocentista brasileira

REFEREcircNCIAS

AUTHIER-REVUZ Jaqueline ldquoHeterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva elementos para uma abordagem do outro no discursordquo In Entre a transparecircncia e a opacidade um estudo enunciativo do sentido Porto Alegre EDIPUCRS [1982] 2004

BAKHTIN Mikhail ldquoO discurso no romancerdquo In BAKHTIN Mikhail Questotildees de Literatura e de esteacutetica a teoria do romance Satildeo Paulo Unesp Hucitec [1975] 1993 (p 71-163)

______ Problemas da Poeacutetica de Dostoievski Trad Paulo Bezerra 3ordf ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

GOETHE Johann Wolfgang von Fausto Trad Antoacutenio Feliciano de Castilho eBooksBrasil 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwebooksbrasilorgeLibrisfaustogoethehtml21gt (acesso em 02 de fevereiro de 2013)

HUGO Victor Do grotesco e sublime Satildeo Paulo Perspectiva 2007

KAYSER Wolfgang O grotesco Satildeo Paulo Perspectiva 2008

MACHADO Aacutelvaro Manoel O mito do Oriente na Literatura Portuguesa Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1983

PRIORE May Del A mulher na histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Contexto 1994

SARI Nassih Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre 2011 Disponiacutevel em lt httpwwwcentraldancadoventrecombr gt (acesso em 12 de julho de 2011)

SHAKESPEARE William Macbeth Trad Beatriz Vieacutegas-Faria Porto Alegre LampPM Pocket 2012

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Satildeo Paulo Perspectiva 2008

VARELA Fagundes ldquoAs Bruxasrdquo in BATALHA Maria Cristina (org) O fantaacutestico brasileiro contos esquecidos Rio de Janeiro Editora Caeteacutes 2011 (p 53-58)

O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier

Thiago Joseacute Costa Pininga(Mestrando em Teoria da Literatura ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Escrito em 1840 o conto Peacute de muacutemia narra a histoacuteria de um perso-nagem flacircneur que ao passar em uma loja de antiguidades tem a ideia de comprar um objeto para lhe servir de peso-de-papel aos seus ldquoesboccedilos de versosrdquo encontrando um verdadeiro peacute de muacutemia que se descreve como da princesa Hermonthis28 Nesta descriccedilatildeo trabalhada por um autor consi-derado um dos fundadores do parnasianismo francecircs tatildeo rica em detalhes esteacuteticos (a exemplo do que ocorre em poemas dessa escola a exemplo de Vaso chinecircs do poeta brasileiro Alberto de Oliveira) teriacuteamos o poder in-consciente e fantaacutestico de dar vida aos objetos de sua admiraccedilatildeo

Se a descriccedilatildeo minuciosa e amorosa faz com que determinado ob-jeto ganhe ldquovidardquo como dito acima isso significa que ele (o objeto) de-veria ser construiacutedo como se estivesse nas matildeos e diante dos olhos do leitor ndash natildeo apenas um texto verbal ndash mas como um fantasma29

Em outros contos fantaacutesticos deste autor encontramos caracteriacutesti-cas semelhantes entre eles A cafeteira e Ocircnfale Tais objetos sejam eles uma cafeteira uma tapeccedilaria ou um peacute mumificado satildeo considerados de grande beleza (ou menos uacuteteis que belos) e por isso tecircm ou merecem uma existecircncia proacutepria isto eacute fantasmagoacuterica natildeo fugindo assim de uma ldquoArte pela Arterdquo ndash termo cunhado por Gautier ndash na medida em que o culto agrave forma permite uma separaccedilatildeo do suporte material em termos

28 A referecircncia a uma princesa do Egito eacute indireta Hermonthis eacute o nome de uma cidade do Antigo Egito e natildeo propriamente o nome de uma princesa Contudo eacute exatamente a cidade que Cleoacutepatra tornaraacute sua capital Vale verificar que a construccedilatildeo do nome Cleoacutepatra significa ldquoGloacuteria do pairdquo ou ldquoAmada por seu pairdquo Ao longo da narrativa percebe-se entatildeo uma associaccedilatildeo de Cleoacutepatra a Hermonthis uma vez que seria esta a ldquoamada por seu pairdquo

29 De fato Theacuteophile Gautier antes de seguir a carreira literaacuteria expressava o desejo de ser pintor

pragmaacuteticos Desse modo a escolha do autor em escrever contos fan-taacutesticos natildeo foge agrave sua escolha esteacutetica pelo contraacuterio aprofunda-a Um caso exemplar eacute o conto Peacute de muacutemia em que como dito ao procurar um objeto uacutetil que servisse para peso-de-papel se constata que o peacute estaacute vivo saltitante e agrave procura da dona O fantaacutestico e suas consequecircn-cias fazem o personagem mudar de opiniatildeo sobre a utilidade do referido objeto embora continue lhe conferindo uma aura estetizada

O protagonista eacute em duas passagens do texto um possiacutevel poeta na primeira passagem pela fala do vendedor que diz ironicamente ldquoHa ha ha para um peso-de-papel ideia original ideia de artistardquo (Gautier 1999 p106 ndash grifo meu) e na segunda no momento em que o perso-nagem retorna agrave sua casa ldquoPara aproveitaacute-la imediatamente pousei o peacute da divina princesa Hermonthis sobre um maccedilo de papel esboccedilos de versos mosaico indecifraacutevel de rasurasrdquo (p 107) Um personagem poeta natildeo apenas porque escreve versos mas tambeacutem por possuir uma aura identificada pelo comerciante Eacute comum Gautier compor narrativas com personagens-artistas poetas atores pintores e ateacute mesmo escritores de contos fantaacutesticos (estes com clara intenccedilatildeo de humor) No conto Ocircnfale uma histoacuteria rococoacute o personagem assim se declara ldquoSe o bom homem pudesse ter previsto que eu abraccedilaria a [profissatildeo] de contista fantaacutesti-co sem duacutevida ter-me-ia posto pela porta afora e deserdado irrevogavel-mente []rdquo (p 51) Por sua vez a personagem feminina iconizada como muacutemia aparece como um textopoema isso porque como bem observa Ruth Silvano Brandatildeo ldquotoda ela eacute pura escritura grafada por sinais vaacuterios ou apagados como nos palimsestosrdquo (Brandatildeo 1996 p 19)

Eacute pela experiecircncia com o fantaacutestico aliada agrave esteacutetica da ldquoArte pela Arterdquo que o personagem eacute educado Jaacute natildeo trata aquele objeto da mesma maneira em primeiro lugar porque ele parece estar vivo em segundo porque a muacutemia (que eacute descrita agora sem um dos peacutes) faz a troca de seu peacute solto por uma estatueta ndash e esta constituiria a prova de que aquele acontecimento teria sido real e natildeo um sonho Entre a primeira experiecircn-cia e a uacuteltima o personagem eacute levado em uma viagem aparentemente real ateacute o Antigo Egito na qual tambeacutem aprende liccedilotildees natildeo somente artiacutesticas como espirituais (morais) a fim de constatar que somente a boa arte a arte de qualidade a arte que transcende eacute capaz de durar pela eternidade

A mudanccedila no personagem ocorre natildeo somente em um niacutevel ar-tiacutestico mas tambeacutem se gerando consequecircncias morais Muito embora

associe-se o parnasiano a um sentido amoral vemos que Gautier utiliza a moralidade ao escrever seus contos fantaacutesticos Por exemplo no conto O cavaleiro duplo em que existe um confronto entre o bem e o mal e o primeiro sai vencedor depois de uma luta de vida ou morte entre os dois personagens gecircmeos com o bom terminando vencedor no conto Dois atores para um papel onde um ator se envaidece de ser o melhor interprete da personagem de diabo para uma peccedila em cartaz ateacute que o mesmo aparece e toma seu lugar no palco quase o matando e por uacuteltimo citamos um de seus contos mais famosos A morte enamorada em que se descreve toda uma moral ligada ao catolicismo Os trecircs contos citados trabalham profundas conotaccedilotildees espirituais a noccedilatildeo de bem e mal e os castigos por soberba e arrogacircncia Todos os seus protagonistas acabam salvos e aprendendo uma liccedilatildeo

Em Peacute de muacutemia verificamos que a mudanccedila de atitude do per-sonagem eacute tambeacutem espiritual ou seja moral tendo em vista que esta acontece na perspectiva dos debates entre Oriente e Ocidente e pelo vieacutes de uma formaccedilatildeoconselho para jovens poetas sobre dar utilida-de agrave beleza30 Este conto foi escrito em 1840 periacuteodo em que a Franccedila dominava econocircmica e politicamente suas colocircnias no Oriente e jaacute ti-nha passado por importantes experiecircncias orientalizantes no norte da Aacutefrica Gautier francecircs ambienta seu conto em seu paiacutes de origem res-saltando um fantaacutestico egiacutepcio que irrompe de uma pacata atmosfera burguesa reproduzindo um imaginaacuterio comum agrave eacutepoca verificada pelo estudioso Edward Said no livro Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente

O Oriente foi orientalizado natildeo soacute porque se descobriu que ele era lsquoorien-talrsquo em todos aqueles aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu meacutedio do seacuteculo XIX mas tambeacutem porque podia ser ndash isto eacute ndash per-mitia ser feito oriental Haacute muito pouca anuecircncia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert com uma cortesatilde egiacutepcia tenha produzido um modelo amplamente influente da mulher oriental ela nunca falou de si mes-ma nunca representou suas emoccedilotildees presenccedila ou histoacuteria Ele falou por ela e a representou (Said 1990 p 17 ndash grifos do autor)

30 Sabrina Baltor nos informa que ldquoTheacuteophile Gautier torna-se um exemplo para Flaubert Baudelaire jovens escritores que nunca o viram capitular perante a arte social ou burguesa []rdquo (1997 p 22)

Longe de ser neutro Gautier ndash que influenciou Flaubert inclusive com a ideia de ldquoArte pela Arterdquo ndash vai explorar justamente o comeacutercio entre Ocidente e Oriente em um primeiro momento de modo realista Nos primeiros paraacutegrafos ele alerta para o fato de que na capital france-sa estava em moda ndash e em grande nuacutemero ndash determinados tipos de lojas locais de vendas de objetos raros onde se comprava itens de todas as culturas e civilizaccedilotildees do mundo em sua maioria antiguidades sendo o comerciante do conto identificado como um tipo oriental (ldquoA curvatura do nariz tinha uma silhueta aquilina que lembrava o tipo oriental ou judeurdquo Gautier 1999 p 104 ndash grifo meu) Desde jaacute Gautier natildeo esconde que a relaccedilatildeo seraacute mercantilista O diaacutelogo que segue entre o comercian-te e o poeta revela o misticismo do primeiro e o ceticismo do segundo

O comerciante se utiliza de argumentos fantaacutesticos sobre o possiacutevel uso desrespeitoso do objeto ressaltando que os nobres egiacutepcios ficariam zangados ao saberem que o peacute de sua amada filha poderia servir como um simples peso-de-papel ldquoele [o faraoacute] que mandava cavar uma mon-tanha de granito para colocar nela o triplo esquife pintado e dourado coberto de hieroacuteglifos com belas pinturas do julgamento das almasrdquo (Gautier p106) Contudo o poeta ceacutetico insiste na compra e consegue adquiri-la com o que tinha nos bolsos Revela-se aqui a situaccedilatildeo de su-perioridade do ocidental e a consequente inferioridade do oriental que vecirc suas crenccedilas serem rebaixadas ao niacutevel do profano utilitaacuterio estando o objeto em questatildeo disponiacutevel a qualquer um que pagasse e natildeo a al-gueacutem que pudesse compreender seu verdadeiro valor

Eacute a este tipo de superioridade e dominaccedilatildeo que Edward Said denuncia como orientalismo ldquoideia da identidade europeia como sendo superior em comparaccedilatildeo com todos os povos e culturas natildeo-europeusrdquo (Said 1990 p 19) Aqui superioridade eacute tanto uma questatildeo econocircmi-ca quanto ideoloacutegica primeiro porque a relaccedilatildeo entre Franccedila e Oriente eacute aquela entre colocircnia e colonizados pautada em relaccedilotildees comerciais desiguais Em segundo lugar para manter e sustentar esta relaccedilatildeo era necessaacuterio manter uma ideologia que dizia ser a Franccedila a representante da ciecircncia e do progresso ocidentais (basta lembrar que floresciam nesta eacutepoca as teorias do filoacutesofo francecircs Auguto Comte o Curso de filosofia positiva eacute publicado entre 1830 e 1842) sendo o Oriente apenas um lu-gar repleto de misticismo ingecircnuo e ultrapassado O proacuteprio persona-gem do comerciante natildeo se mostra como o mais respeitoso pelas coisas

do Oriente nas entrelinhas desconfia-se que estava interessando em revelando uma crenccedila e seu respeito por ela somente fazer subir o preccedilo do objeto Caso contraacuterio natildeo colocaria a peccedila em exposiccedilatildeo

Seraacute apenas no diaacutelogo travado com a muacutemia da princesa (que fala em seu idioma antigo estranhamente compreendido pelo protagonista) que veremos a presenccedila ou tentativa de uma voz que fala por si mesma a reve-lar seu ponto de vista e sua triste histoacuteria (em comparaccedilatildeo com a oriental de Flaubert que natildeo tinha voz nem histoacuteria) A partir desse diaacutelogo se inicia uma mudanccedila em relaccedilatildeo ao mundo oriental num processo gradual de saiacuteda do fantaacutestico e inserccedilatildeo no maravilhoso Ora o conceito de orien-talismo eacute definido entre outros como ldquoum estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Orienterdquo (Said p 15) contudo em Gautier vemos tratar-se menos de um domiacutenio do que uma reestruturaccedilatildeo de saldo positivo e imaginativo Por fim demonstra-se que tal domiacutenio natildeo eacute possiacutevel ndash porque natildeo haacute domiacutenio sobre a experiecircncia fantaacutestica

A noccedilatildeo de Oriente eacute entatildeo transfigurada por Gautier O conto se iniciava com um discurso que parecia apontar aos leitores a presenccedila da noccedilatildeo de superioridade do europeu moderno ateacute entrar em cena o fantaacutes-tico que potildee em duacutevida a proacutepria crenccedila na ciecircncia e na razatildeo ocidentais

A pesquisadora Sabrina Baltor (1997 p 136) nos informa que ldquona obra de Gautier nota-se certo fasciacutenio pelo povo egiacutepcio natildeo eacute agrave toa que dois contos e um romance tecircm como cenaacuterio a terra dos faraoacutes Une nuit de Cleacuteopacirctre (1838) Le pied de momie (1840) e Le roman de La momie (1857)rdquo portanto trata-se de um autor que admira os temas orientais em seu aspecto artiacutestico ou seja de um segmento capaz de ensinar-lhe a cultivar a beleza e a sua duraccedilatildeo

Historicamente depois de grande acuacutemulo de experiecircncias de expe-diccedilotildees europeias ao Oriente que natildeo eram necessariamente criadas tendo em vista objetivos artiacutesticos e sim de comeacutercio de conhecimento cientiacute-fico ou estrateacutegia militar foram as obras literaacuterias contudo que popula-rizaram de maneira mais eficiente o Oriente (o orientalismo) ao europeu segundo nos informa Said ao que acrescentamos o fato de o fantaacutestico nestas eacutepocas ter se tornado um gecircnero popular de grande apelo puacuteblico

Os motivos de Gautier no entanto para aleacutem de conquistar leitores faacuteceis buscavam a experimentaccedilatildeo ao trabalhar ideais ligados agrave pere-nidade da arte bem como a criacutetica a uma sociedade empenhada em valores utilitaacuterios e burgueses sem espiritualidade A valorizaccedilatildeo da arte

egiacutepcia especialmente a da mumificaccedilatildeo que sobreviveu por milecircnios mostrava por contraste que a arte de sua eacutepoca era de niacutevel inferior ba-seada em modismos A soluccedilatildeo era uma volta ao passado para tentar re-cuperar algo que se perdeu daiacute a escolha pelo Egito Antigo Por sua vez no niacutevel esteacutetico natildeo haveria conflitos porque as descriccedilotildees estetizadas caracteriacutesticas dos parnasianos natildeo sofriam perdas pelo contraacuterio ga-nhavam mais vida tornavam-se mais ldquoreaisrdquo

Depois que acorda (e o motivo do sonho eacute recorrente natildeo soacute fan-taacutestico mas tambeacutem neste conto tornando-o ambiacuteguo) o personagem-poeta passa sensorialmente em especial atraveacutes do olfato a descobrir que algo andava errado em sua casa A escolha deste sentido eacute signifi-cativa quando se trata de visotildees do Oriente trabalhadas por franceses lembremos dos versos de Baudelaire amigo famoso de Gautier em As flores do mal31 ldquoCom a fluidez daquilo que jamais termina Como o almiacutescar o incenso e as resinas do Oriente Que a gloacuteria exaltam dos sentidos e da menterdquo (Baudelaire 2006 p 127 ndash grifo meu) Em outra ocasiatildeo da narrativa tambeacutem se afirma sinestesicamente ldquoO sonho do Egito era a eternidade seus odores tecircm a solidez do granito e duram outro tantordquo (Gautier 1999 p 108 ndash grifo meu)

A partir destes odores diferentes o protagonista afirma ldquosentir al-guma coisa que se parecia muito com o terrorrdquo (p 109 ndash grifo meu) pois o peacute estava saltitando Ele tambeacutem observa nesta hora a proacutepria prin-cesa saltitando e teme por sua vida Apoacutes o suspense a princesa revela sua triste histoacuteria alguns ladrotildees invadiram seu sarcoacutefago e roubaram toda sua riqueza de modo que natildeo tinha dinheiro sequer para comprar seu peacute de volta As mercadorias roubadas acabariam indo parar nas lojas de antiguidades citadas anteriormente nada mais restava agrave princesa a natildeo ser a piedade do poeta Tudo que havia de valioso no Oriente fora levado por conquistadores e vendido como curiosidade exoacutetica para as diversas partes do mundo que poderiam pagar por ele32

31 As flores do mal foram dedicadas com ecircnfase a Theacuteophile Gautier ldquoAo poeta impecaacute-vel ao perfeito maacutegico das letras francesas a meu cariacutessimo e veneradiacutessimo mestre e amigo Theacuteophile Gautier com os sentimentos da mais profunda humildade dedico estas flores doentiasrdquo

32 Este tema do comeacuterciotraacutefico de produtos do Egito Antigo continua atual sendo por exemplo trabalhado por autores como o recifense Fernando Monteiro no ro-mance A muacutemia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Globo 2001)

Convencido da triste histoacuteria da princesa e por medo do que lhe aconteceria caso se negasse a ajudaacute-la acaba lhe restituindo o membro perdido Em agradecimento a princesa-muacutemia o leva como dito para uma viagem ateacute o Antigo Egito na qual conhece todas as belezas das piracircmides entre outras Ateacute chegar ao Faraoacute que tambeacutem agradecido lhe concede um desejo O poeta com uma ironia muito tiacutepica dos contos fantaacutesticos de matriz hoffmanniana escolhe a ldquomatildeordquo da princesa33 Mas ele eacute acordado por um amigo e parece descobrir que tudo natildeo foi um sonho (ldquoo fantaacutestico ocupa o tempo desta incertezardquo ndash Todorov 1970 p 15) porque a estaacutetua deixada pela princesa em troca do peacute ainda estava laacute

No final do conto a razatildeo volta ao seu estado inicial de poder ex-plicar o ocorrido de modo natural tudo efetivamente natildeo passara de um sonho (Todorov denomina de gecircnero Estranho o sobrenatural explicado por via do sonho) Por outro lado vemos que o que interessa Gautier eacute a metaacutefora da relaccedilatildeo do artista com sua produccedilatildeo criativa que se fosse perfeita ganharia vida Ora a perfeiccedilatildeo pela forma soacute poderia resultar em um fantasma que eacute pura forma sem mateacuteria A muacutemia aleacutem de ser uma bela estaacutetua eacute tambeacutem um texto ldquoA princesa eacute grafia marcada por traccedilos da ordem do resiacuteduo verbal resiacuteduo mnecircmico nunca traduzido ou recuperaacutevel porque para sempre perdido como ocorre com as primeiras experiecircncias psiacutequicasrdquo (Brandatildeo 1996 p 20) Quiccedilaacute o peacute de muacutemia natildeo fosse um poema esquecido um rascunho (natildeo seria o hieroacuteglifo neste conto um tipo de rascunho do autor) acima dos outros papeacuteis

Eacute somente pela experiecircncia fantaacutestica que haacute uma inversatildeo de va-lores inesperada diante do personagem e dos leitores O fantaacutestico estaacute aleacutem da ciecircncia e obriga a caminhar pelo desconhecido pelo que ainda natildeo eacute enquadrado em algum tipo de conhecimento seguro e explicaacute-vel pelas leis da razatildeo O orientalismo eacute reestruturado com um saldo positivo para o Oriente pois faz reconhecer ao europeu moderno que sua razatildeo natildeo eacute capaz de descobrir tudo e seu controle e domiacutenio estatildeo enfraquecidos por este meio Natildeo eacute somente ao conhecimento tradi-cional e agrave estrutura da sociedade (mercantilista x miacutestica) que Gautier faz sua criacutetica pois ao afirmar a arte egiacutepcia como arte de beleza mais duradoura que a ocidental (diz o Faraoacute ldquominha filha duraraacute mais do que uma estaacutetua de bronzerdquo [p115]) ele quer com isso dizer que o Oriente

33 ldquoA matildeo pelo peacute parecia-me uma recompensa antiteacutetica de bastante gostordquo (1999 p114)

tem mais para nos ensinar se quisermos aprender em termos de Arte e Cultura

De fato o fantaacutestico tambeacutem se liga agrave noccedilatildeo de ldquoArte pela Arterdquo numa outra espeacutecie de culto agrave forma que se daacute pela autorreferencialidade A princesa pode ser vista pelo menos de quatro maneiras Estaacutetua Muacutemia Princesa e Texto (pois estava completamente adornada de hieroacuteglifos) O modo de apresentaccedilatildeo vai do tratamento de objeto ao tratamento hu-mano natildeo esquecendo contudo a modalizaccedilatildeo fantaacutestica (Muacutemia viva)

Existe aqui portanto um ensaio de respeito pelo Outro enquanto Outro ou seja em suas diferenccedilas que natildeo satildeo as diferenccedilas criadas aprioristicamente apesar de obviamente ser Gautier um europeu que tambeacutem torna fantaacutestico o Oriente O desconhecimento eacute o que provoca medo e terror pois inibe qualquer accedilatildeo ou a interpreta desde jaacute como perigo na grande maioria das vezes sem efetivamente ser perigosa A morte eacute um exemplo de experiecircncia desconhecida Mas natildeo haacute mortes neste conto ndash embora exista no miacutenimo uma ldquonatureza-mortardquo

REFEREcircNCIAS

AMARAL Ana Carolina Bianco ldquoA moderna hesitaccedilatildeo fantaacutestica em O Peacute de Muacutemia de Gautierrdquo in Revista Travessias Interativas Ribeiratildeo Preto UNESP 2011 (p 8-18)

BALTOR Sabrina Ribeiro A opccedilatildeo de Theacuteophile Gautier pelo conto fantaacutestico In I Encontro Nacional O Insoacutelito como Questatildeo na Narrativa Ficcional UERJ 2009 Mesa Redonda Rio de Janeiro DialogartsUERJ 2009 (p 78-84)

BALTOR Sabrina Ribeiro Literatura plaacutestica e Arte pela Arte nas narrativas de Theacuteophile Gautier Tese (Doutorado) Rio de Janeiro UFRJ 1997

BAUDELAIRE Charles As Flores do Mal Trad Ivan Junqueira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2006

BRANDAtildeO Ruth Silvano Literatura e psicanaacutelise Rio Grande do Sul UFRS 1996

GAUTIER Theacuteophile Contos Fantaacutesticos Trad Geraldo Gerson de Souza Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Coleccedilatildeo Debates Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 1970

ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de

Edgar Allan Poe

Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Os homens que exercem a profissatildeo de jornalista parecem consti-tuiacutedos como os deuses de Walhalla que se cortavam em pedaccedilos todos os dias e acordavam com perfeita sauacutede todas as manhatildes

(Edgar Allan Poe Marginalia34)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) esteve durante toda sua vida profissional ligado a jornais e a revistas literaacuterias norte-americanos dentre os quais o Southern Literary Messenger de Richmond a Burtonrsquos Gentlemanrsquos Magazine a Grahamrsquos Magazine e o The pionner da Filadeacutelfia Realizando breves contribuiccedilotildees ou atuando como editor nesses perioacutedicos Poe adentrou em um domiacutenio de pro-duccedilatildeo de literatura veloz muitas vezes voltada apenas a satisfazer as exi-gecircncias do puacuteblico e que certamente atendia aos interesses comerciais dos editores Essa carreira suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros podemos dizer se fez quase apesar dele mesmo Com efei-to Poe natildeo hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofiacutecio era a poesia Assim em 1845 aos 36 anos escreve

Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar em qualquer ocasiatildeo um esforccedilo seacuterio naquilo que sob mais felizes circuns-tacircncias teria sido a carreira de minha escolha Para mim a poesia natildeo tem sido uma finalidade mas uma paixatildeo e as paixotildees deveriam merecer reverecircn-cia natildeo devem nem podem ser excitadas agrave vontade com vista agraves mesquinhas compensaccedilotildees ou louvores ainda mais mesquinhos da humanidade35

Deliberadamente Poe idealizava as formas de criaccedilatildeo artiacutestico-li-teraacuterias constituiacutedas sob a loacutegica do campo artiacutestico como um ldquomundo

34 Ver em Poe (1999c p 176 1984 p 1223 e seg) 35 Poe (1999c p 19 2004a p 715)

econocircmico invertidordquo36 como mais tarde escreveria o socioacutelogo fran-cecircs Pierre Bourdieu (2002) quer dizer o campo da arte que opera pela primordial negaccedilatildeo dos interesses econocircmicos Apesar disso no en-tanto o escritor norte-americano natildeo deixaria de reconhecer a grande transformaccedilatildeo intelectual que promoviam os jornais e as revistas lite-raacuterias permitindo a difusatildeo do conhecimento Allan Poe assim como outros homens de sua eacutepoca ndash e ateacute mais que alguns deles ndash foi sensiacutevel agraves profundas modificaccedilotildees sociais ocasionadas pela ascensatildeo da induacutes-tria e pelas formas de divisatildeo do trabalho as quais resultaram em uma diminuiccedilatildeo do tempo livre passiacutevel de ser empregado para apreciaccedilatildeo de arte em meados do seacuteculo XIX

Deste modo ainda que de sua parte pudesse haver certo constrangi-mento na adoccedilatildeo de alguma funcionalidade em seus textos ndash pelo menos eacute o que alguns dos relatos nos fazem crer ndash ainda que tal constrangimento pudesse ser percebido Poe natildeo deixaria de reconhecer a importacircncia de tais adaptaccedilotildees no plano dos procedimentos da obra articulando o cam-po de produccedilatildeo e o de recepccedilatildeo dos objetos literaacuterios Eacute o que podemos ler em um excerto de sua coluna ldquoMarginaliardquo (ldquoNotas agrave margemrdquo)

O progresso realizado em alguns anos pelas lsquorevistasrsquo e lsquomagazinesrsquo natildeo deve ser interpretado como quereriam certos criacuteticos Natildeo eacute uma decadecircncia do gosto ou das letras americanas Eacute antes um sinal dos tempos eacute o primeiro indiacutecio de uma era em que se caminharaacute para o que eacute breve condensado bem dirigido e se iraacute abandonar a bagagem volumosa eacute o advento do jornalismo e a decadecircncia da dissertaccedilatildeo Comeccedila-se a preferir a artilharia ligeira agraves gran-des peccedilas Natildeo afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que haacute um seacuteculo mas indubitavelmente eles o tecircm mais aacutegil mais raacutepido mais reto mais metoacutedico menos pesado De um lado o fundo dos pensamentos se enriqueceu Haacute mais fatos conhecidos e registrados mais coisa para refletir Somos inclinados a enfeixar o maacuteximo possiacutevel de ideias no miacutenimo de volume a espelhaacute-las o mais rapidamente que pudermos Daiacute nosso jornalismo atual daiacute tambeacutem nossa profusatildeo de magazines37

36 ldquoVerdadeiro desafio a todas as formas de economismo a ordem literaacuteria (etc) que progressivamente se instituiu ao fim de um longo e lento processo de autonomizaccedilatildeo apresenta-se como um mundo econocircmico invertido aqueles que nele entram tecircm interesse no desinteresse como a profecia e especialmente a profecia de infortuacutenio que segundo Weber prova sua autenticidade pelo fato de que natildeo proporciona ne-nhuma remuneraccedilatildeo a ruptura hereacutetica com as tradiccedilotildees artiacutesticas em vigor encon-tra seu criteacuterio de autenticidade no desinteresserdquo (Bourdieu 2002 p 245)

37 Edgar Allan Poe (1999c p 165)

Assim natildeo obstante sua inserccedilatildeo nesses magazines como jorna-lista poder ter sido ideologicamente contraacuteria agraves suas pretensotildees en-quanto escritor Edgar Allan Poe pocircde recolher desse campo natildeo soacute a renda necessaacuteria ao seu sustento mas a praacutetica de uma literatura veloz fundamental ao campo jornaliacutestico na produccedilatildeo de papers e contos Principalmente pocircde recolher dele um vasto material para suas criacuteticas sobre os maus escritores seus contemporacircneos De fato apesar de ter construiacutedo sua literatura a partir das condiccedilotildees disponiacuteveis dentro desse mesmo campo de atuaccedilatildeo Poe como assinala Braulio Tavares (2010) tinha manifesta intenccedilatildeo de superar a maneira como outros jornalistas procediam e de produzir um gecircnero literaacuterio que ainda que respondes-se agrave necessidade do puacuteblico e dos editores ndash para o funcionamento dos perioacutedicos ndash pudesse ter qualidade esteacutetica

Em muitos de seus contos a exemplo de ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo ldquoUma trapalhadardquo ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o dia-bordquo e A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o escritor trabalhou ques-totildees pertinentes agrave produccedilatildeo da literatura sobretudo a partir de uma refle-xatildeo de sua proacutepria obra e de seus procedimentos38 O uacuteltimo conto centro deste estudo A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade que data de 1845 eacute uma saacutetiraparoacutedia ao Livro das mil e uma noites construiacuteda a partir da ideia de que o mundo literaacuterio teria permanecido em ignoracircncia a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroiacutena Sherazade ndash contrariamente agrave versatildeo orientalista conhecida Nesta conforme resume Mamede Mustafa Jarouche tradutor drsquoAs mil e uma noites para o portuguecircs

Um rei chamado Sahriyar [] membro de poderosa dinastia descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo Em crise esse rei sai pelo mundo iniciando uma busca que eacute tambeacutem de fundo espiritual ele quer saber se existe neste mundo algueacutem mais infeliz do que ele A resposta eacute positiva com um agravante ningueacutem pode conter as mulheres ndash eacute o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido Entatildeo ele retorna para o seu reino deci-dido a tomar uma medida draacutestica e violenta casar-se a cada noite com uma mulher diferente mandando mataacute-la na manhatilde seguinte

38 De forma bem particular Poe trabalha o chiste ou ldquoironia autorreflexivardquo (ver a respeito Sena [2010]) aleacutem de se lanccedilar agrave criacutetica de seus adversaacuterios ficcionalmente dando-lhes emprego nas ediccedilotildees do Dial Down-Easter North American Quarterly Humdrum Seus colegas de profissatildeo vatildeo desde o editor-chefe da Blackwood aos jorna-listas que colaboram em revistas cobrando ldquoum centavo por linhardquo nos contos ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo e ldquoO anjo do bizarrordquo respectivamente

Depois de muitas mortes e pacircnico entre as famiacutelias daacute-se a intervenccedilatildeo da heroiacutena ela eacute filha do vizir mais importante do reino possui grande cultura e inteligecircncia chama-se Sahrazad [] e elaborou uma estrateacutegia infaliacutevel por meio das histoacuterias que vai sucessivamente noite apoacutes noite desfiando diante de um rei a princiacutepio assustado mas depois cada vez mais seduzido e encan-tado (Jarouche 2006 p 9)

Contrariamente em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroiacutena empe-nhando-se assim em trazer agrave tona a lsquoverdade dos fatosrsquo a partir das infor-maccedilotildees encontradas no guia fictiacutecio ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo [ldquoTellmenow Isitsoumlornotrdquo] inserido na heranccedila enciclopedista do Ocidente (enxergan-do no Oriente um ldquooutrordquo) e agrave moda da produccedilatildeo jornaliacutestica do seacuteculo XIX No conto Poe torna risiacuteveis as formas de produccedilatildeo e de recepccedilatildeo dos elementos maravilhosos e realistas a partir de um efeito de estranha-mento diegeacutetico que termina por colocar agrave prova os mesmos conceitos o realismo o maravilhoso literaacuterio a miacutemesis e sobretudo as formas de produccedilatildeo acesso e recepccedilatildeo do conhecimento em sua eacutepoca

A visatildeo criacutetica da praacutetica de contemporacircneos nos perioacutedicos lhe for-neceu certo humor em seus escritos esse sendo aqui compreendido mais como disposiccedilatildeo ou estado de espiacuterito do que realmente um caraacuteter risiacute-vel mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes Dizemos isso porque em grande parte dos contos em que Poe se serve da saacutetira ou paroacutedia em relaccedilatildeo aos seus colegas de profissatildeo encontramos mais disposiccedilatildeo a um provaacutevel riso amargo ndash possivelmente por atentar para a perfeita existecircncia desses literatos que natildeo tinham escruacutepulos em descum-prir as regras do ldquomundo econocircmico invertidordquo acima mencionado ndash do que a inegaacutevel conjuntura formal que permitiria o riso deliberado ainda que esse seja sempre factual ou neo-factualmente possiacutevel39 Sem conde-nar completamente a existecircncia desse tipo de literatura contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superaccedilatildeo natildeo soacute das obras de outros como tambeacutem das suas Edgar Allan Poe produziu textos voltados agraves possibilidades de tipificaccedilatildeo que esse domiacutenio discursivo permitia O conto curto como se sabe foi o resultado mais profiacutecuo que encontrou

39 Sobre isso admitimos sem duacutevida que o riso possui nuances sobre as quais a esteacuteti-ca ainda natildeo encontrou uma definiccedilatildeo universal sem refutaccedilatildeo se eacute que seja possiacutevel tal coisa ainda que devamos considerar os frutiacuteferos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Henri Bergson dentre outros teoacutericos

nessa inquiriccedilatildeo em muito uma tentativa de suscitar uma impressatildeo cen-tralizada no leitor ou aquilo que nomeou ldquounidade de efeitordquo40

Mas voltemos ao risiacutevel Pois ainda que Poe tenha atingido mais no-toriedade nos seacuteculos posteriores agrave sua morte pela produccedilatildeo de histoacuterias de crime misteacuterio e horror ele plasmou uma singular obra de contos sa-tiacutericos humoriacutesticos e grotescos Essa tessitura textual se configura para noacutes ldquometacomunicativardquo tendo por assunto do discurso ldquoa relaccedilatildeo entre os falantesrdquo ou os participantes de determinado evento seja ele literaacuterio ou natildeo conforme a elucidaccedilatildeo de Gregory Bateson (2002 p 87) ndash neste caso pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risiacuteveis como campo de criacutetica (e de defesa de criacuteticas) Igual estrateacutegia ocorre em ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo no qual o Poe-narrador defende-se da acusaccedilatildeo de que suas histoacuterias natildeo tenham uma ldquomoralrdquo ela estaacute laacute porque os criacute-ticos literaacuterios daratildeo um jeito de encontraacute-la ldquoQuando chegar a ocasiatildeo apropriada tudo o que o cavalheiro pretendia seraacute trazido agrave luz no Dial ou Down-Easter juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde ndash e assim tudo vai dar certo no fimrdquo (Poe 2002 p 71)

Esse caraacuteter metacomunicativo se tornou para noacutes uma importan-te interrogaccedilatildeo Pois esta noccedilatildeo natildeo abrange questotildees unicamente for-mais mas principalmente as regras do jogo linguiacutestico-literaacuterio que satildeo indispensaacuteveis ao funcionamento do texto ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que elencados a um niacutevel formal em muito se assemelham aos de seus contos ldquoseacuteriosrdquo a exemplo de sua aproximaccedilatildeo com a literatura fantaacutestica maravilho-sa ou de crimes aleacutem de seu uso particular do grotesco Sua narrativa constante em primeira pessoa uma discussatildeo em torno de alguma ideia filosoacutefica descriccedilotildees raras de espaccedilo salvo em casos necessaacuterios agrave die-gese uma possiacutevel ldquounidade de efeitordquo guiando os procedimentos estilo retoacuterico natildeo raras vezes solene Seu jogo poreacutem eacute elaborado a partir de 40 A unidade de efeito eacute um dos conceitos elaborados por Poe em ensaios como A fi-

losofia da composiccedilatildeo para traduzir a busca de um autor por abarcar dentro de uma obra uma impressatildeo escolhida desde antes de sua concepccedilatildeo com vistas a provocar no leitor um efeito caracteriacutestico Todos os procedimentos escolhidos girariam em torno desse uacutenico efeito tendo-se o desenlace em vista mas apoiando-se principal-mente sobre o aacutepice da obra A unidade de efeito eacute assim um preacute-monitoramento formal da expressividade da obra

inter-relaccedilotildees entre tais procedimentos diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de ldquoum centavo por linhardquo41 estando contudo ele mesmo inserido em um contexto em que como observa Joseacute Ribeiro (1996 p 11) ldquoa loacutegica da relaccedilatildeo empresa ver-sus consumidor na qual a imprensa perioacutedica estaacute inserida faz com que empreendimentos criativos em busca de novas fatias de mercado (natildeo garantidas de antematildeo) sejam adotados cautelosamenterdquo Esse jornalis-mo como Poe o vecirc desvirtua barateia ou mesmo vulgariza o conheci-mento e eacute tambeacutem fonte profiacutecua de erros ainda que em casos positivos possa ser de grande valia agrave difusatildeo do conhecimento Poe ndash eacute importante insistir ndash natildeo era avesso agrave ampla produccedilatildeo de publicaccedilotildees jornaliacutesticas (homens que satildeo retalhados e se levantam ilesos na outra manhatilde) mas admitia que a sua proliferaccedilatildeo tornava confuso o acesso a fontes fiaacuteveis

Em um primeiro momento a leitura drsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas dentro daquela que o autor constroacutei em forma de saacutetira drsquoAs mil e uma noites e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irocircnico Afinal propor uma narrativa maravilhosa a partir de um vieacutes risiacutevel natildeo seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista Poreacutem afastamo-nos dessa compreensatildeo por trecircs razotildees A primeira eacute o uso constante do insoacutelito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe mesmo quando nosso escritor recorria a um esclarecimento final apelando agrave ob-jetividade dos fatos42 A segunda justificativa encontra-se na epiacutegrafe de A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade ldquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeo velho ditadordquo (Poe 2010 p 156) [ldquotruth is stranger than fictionrdquo] Este ditado foi uma vez citado por Poe na coluna ldquoMarginaliardquo

lsquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeorsquo eacute de tal modo um refratildeo para sempre na boca dos desinformados que estes o citam como poderiam ci-tar qualquer outra proposiccedilatildeo que lhes parecesse paradoxal ndash pela mera propriedade de paradoxo Pessoas que leem nunca citam o ditado porque puros truiacutesmos natildeo merecem ser mencionados Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno Ele era um homem de

41 Como escreve no conto ldquoO anjo do bizarrordquo42 Ou seja quanto optava pelo estranho ou pelo maravilhoso segundo as teorias todo-

rovianas jaacute que ao fantaacutestico quase natildeo recorre salvo em raros contos como ldquoO gato pretordquo conforme observa o mesmo criacutetico

gecircnio mas suas linhas foram um fracasso eacute claro uma vez que as realidades do planeta detalhados na mais prosaica linguagem envergonham e confun-dem bastante todas as fantasias acessoacuterias do poeta43 (Poe 1984 p 1328)

Assim o ldquoparadoxordquo apresentado pelo ldquovelho ditadordquo tantas vezes repetido por pessoas desinformadas que natildeo leem natildeo levaria em conta uma das caracteriacutesticas principais da ficccedilatildeo pois como no longo poema de seu amigo sobre o planeta Saturno a necessidade de verossimilhanccedila externa (descriccedilatildeo da realidade empiacuterica) natildeo deixaria espaccedilo para a imaginaccedilatildeo para as fantasias que se tornam desta forma apenas aces-soacuterias ao poema Por fim a terceira justificativa se situa na proacutepria orga-nizaccedilatildeo narrativa do conto pela dubiedade que Poe estabelece a partir da construccedilatildeo de alguns niacuteveis na narrativa e pela proacutepria existecircncia de trecircs narradores o autor empiacuterico o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem Envolvidos na realidade empiacuterica ou insoacutelita aqueles niacuteveis satildeo construiacutedos em relaccedilatildeo ao contexto de produccedilatildeo lite-raacuteria norte-americano no seacuteculo XIX Entendemos que seraacute proveitoso compreender as regras do jogo literaacuterio que Poe estabelece com seus leitores aleacutem de observarmos como se procede a autorreflexatildeo criativa de Poe no conto A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade

O narrador deste conto embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literaacuterio ateacute entatildeo parece no entanto em mui-tos momentos natildeo ter tido acesso ao proacuteprio livro que critica As mil e uma noites pois comete ldquoenganosrdquo e supressotildees em relaccedilatildeo agrave narra-tiva oriental Assim por exemplo menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto44 e um rato azul quando na verdade aquela intitulada ldquoO mercador e o gecircniordquo inicia a sequecircn-cia de noites da heroiacutena Mas muito aleacutem de uma brincadeira com a narrativa parodiada esta eacute possivelmente uma resposta de Poe a uma paroacutedia feita de seu conto ldquoO gato pretordquo no ano de 184445 atestando em certa medida o desprezo na recepccedilatildeo pela elaboraccedilatildeo fantaacutestica do conto Uma reaccedilatildeo como essa por outro lado assinalaria ainda uma 43 (traduccedilatildeo livre)44 Mais uma vez assinalamos a ironia que Poe apresenta ao puacuteblico leitor e aos seus com-

panheiros de trabalho remetendo-se a uma obra de seu proacuteprio cunho ldquoO gato pretordquo45 De acordo com Thomas Mabbott (em POE Edgar Allan The Collected Works of

Edgar Allan Poe mdash Vol III Tales and Sketches [Org MABBOTT Thomas Ollive] 1978)

vez sua imersatildeo apesar de si mesmo no contexto supramencionado da produccedilatildeo jornaliacutestico-literaacuteria norte-americana com as suas limitaccedilotildees agrave criaccedilatildeo de novas formas literaacuterias e novas tipologias narrativas

Reconstroacutei-se desse modo a narrativa oriental a ldquoversatildeo usual da histoacuteriardquo permeando-a de ironias tanto no que diz respeito aos possiacuteveis maravilhoso ficccedilatildeo cientiacutefica ou realismo quanto na apreensatildeo formal dos acontecimentos Por exemplo as condiccedilotildees do cumprimento do voto do sultatildeo de matar suas esposas ao amanhecer satildeo descritas em termos ligados automaticamente ao contexto geneacuterico da ldquocultura orientalrdquo par-ticularmente de sua religiatildeo posta em paridade com a honra masculina traiacuteda do personagem a primeira natildeo mais sendo levada tatildeo a seacuterio

Devemos relembrar que na versatildeo usual da histoacuteria certo monarca tendo bons motivos para sentir ciuacutemes de sua rainha natildeo somente mandou ma-taacute-la mas fez um voto ndash por sua barba e pela do profeta ndash de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domiacutenios e no dia seguinte entregaacute-la agraves matildeos do carrasco Tendo cumprido esse voto durante muitos anos ao peacute da letra e com reli-giosa pontualidade e meacutetodo que lhe conferia grande meacuterito como homem de sentimentos pios e de excelente juiacutezo foi interrompido uma tarde (sem duacutevida quando estava rezando) por uma visita de seu gratildeo-vizir a cuja filha parece havia ocorrido uma ideia (Poe 2010 p 156-7 grifos nossos)

Buscando restabelecer a ldquoverdade dos fatosrdquo pela existecircncia do ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo ndash o qual a partir apenas de uma consulta de uma leitura e de uma recepccedilatildeo ingecircnuas pode desconstruir todo um co-nhecimento literaacuterio e cultural secular baseado natildeo se sabe exatamente em quecirc ndash o narrador comeccedila

Tendo tido ocasiatildeo no curso de algumas investigaccedilotildees sobre o Oriente de consultar o Diacutegame Eassinhounatildeo obra que eacute de algum modo pouco conhe-cida [] natildeo foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literaacuterio tinha ateacute entatildeo permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir Sherazade tal como eacute descrita nas Mil e uma noites e que o desenlace ali dado natildeo totalmente inexato ateacute certo ponto merece pelo menos censura por natildeo ter ido muito mais aleacutemrdquo46 (p 156 grifos do autor)

Eacute importante observar o grifo sobre este uacuteltimo termo ndash ldquodesen-lacerdquo ndash centro da proposiccedilatildeo de uma nova organizaccedilatildeo para o conto e

46 (Poe 2004a p 369)

indicativo da plena eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos ao enredo O narrador natildeo o indica poreacutem como incorreto mas apenas como precipitado Ora uma das razotildees para que tal conclusatildeo natildeo funcione eacute para o narrador o fato de ela ser idealizada em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica ldquoeacute sem duacute-vida excessivamente mais proacutepria e agradaacutevel mas infelizmente como a maior parte das coisas agradaacuteveis eacute mais agradaacutevel que verdadeirardquo (p 158) Quando conclui sua apresentaccedilatildeo do conto e passa a palavra para Sherazade a narrativa desta seraacute contudo permeada por uma boa pitada de realismo em sentido negativo introduzido nas reaccedilotildees do Sultatildeo Suas contiacutenuas interrupccedilotildees seu ronco sua descrenccedila em relaccedilatildeo ao que ouve sua tosse para advertir sua esposa de que estaacute indo longe demais em ter-mos imaginativos vecircm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa seja em sentido temaacutetico seja textual Isso torna o encaminhamento do ldquoplanordquo de Sherazade menos simples do que pareceria na narrativa oriental ndash pois sob qual pretexto conseguiria a heroiacutena a atenccedilatildeo de seu marido e a suspensatildeo de sua pena capital Apenas pela adequaccedilatildeo do Sultatildeo ao jogo literaacuterio sua compreensatildeo de que a narrativa de Sherazade inscreve-se na ficccedilatildeo servindo portanto para o deleite esteacutetico e artiacutestico Tal natildeo ocorre no conto poeiano pois a ilusatildeo da narrativa eacute chamada constantemente agrave consciecircncia da realidade empiacuterica Se o sultatildeo em As mil e uma noites eacute um ldquobom leitorrdquo ou me-lhor um bom ouvinte pois compreende a ficcionalidade do texto literaacute-rio sem buscar apenas sua comprovaccedilatildeo nrsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poreacutem ele deseja apenas ver sua realidade empiacuterica sendo refletida ali ldquondash Conversa fiada ndash exclamou o reirdquo (p 166)

Sherazade narra assim uma sequecircncia de fatos impressionantes ma-ravilhosos a seu marido e a sua irmatilde que comporiam a oitava aventura de ldquoSimbad o Marujordquo ocorrida em sua velhice quando satildeo indicadas na versatildeo oriental apenas sete O fundo desse enredo seraacute contudo um diaacute-logo com a modernidade por um vieacutes cientificista cujos acontecimentos satildeo apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora mas so-bretudo virtualmente por seus ouvintes Os acontecimentos ldquomodernosrdquo seratildeo assim narrados agrave moda das noites da Araacutebia (Arabian nights) promo-vendo uma visatildeo dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caraacuteter empiacuterico por noacutes leitores de Poe A narrativa portanto natildeo visa um imediato reconhecimento mas um estranhamento inicial e a progressiva ldquovisualizaccedilatildeordquo e compreensatildeo de objetos bem conhecidos do seacuteculo XIX e

de curiosidades da natureza Eacute exemplo marcante a descriccedilatildeo de um navio a vapor pelo olhar da heroiacutena e pelo reconhecimento quase automaacutetico de Simbad de se tratar de um ldquomonstrordquo47 De fato o estilo da descriccedilatildeo parece ser mais adequado a um monstro (mariacutetimo) e se utiliza dos termos que integram a descriccedilatildeo maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compre-ensatildeo do real (os espinhos a barriga seu incomensuraacutevel tamanho)

Quando aquela coisa chegou mais perto noacutes a distinguimos perfeitamente Seu cumprimento era igual ao de trecircs das mais altas aacutervores que existem e era tatildeo largo como o grande salatildeo de audiecircncias de vosso palaacutecio oh o mais sublime e munificente dos califas Seu corpo diferente do dos demais peixes comuns era tatildeo soacutelido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da aacutegua com exceccedilatildeo de uma estreita lis-ta cor de sangue que o circundava completamente A barriga que flutuava abaixo da superfiacutecie e a qual soacute podiacuteamos vislumbrar de vez e quando ao erguer-se e cair do monstro ao sabor das ondas estava inteiramente coberta de escamas metaacutelicas de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebulo-so As costas eram chatas e quase brancas e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo (p 160)48

Ou ainda

[] Deixando aquela ilha disse Simbad ndash pois Sherazade deve compre-ender-se natildeo deu atento agrave incivil interrupccedilatildeo de seu marido ndash deixando aquela ilha chegamos a outra onde as florestas eram de soacutelidas pedras e tatildeo duras que reduziam os machados mais bem temperados com que tentaacuteva-mos derrubaacute-las (p 163)

[Nota de rodapeacute do autor] lsquoUma das mais notaacuteveis curiosidades do Texas eacute uma floresta petrificada perto das cabeceiras do rio Pasigno Consiste de vaacuterias centenas de aacutervores em posiccedilatildeo ereta todas transformadas em pedra Algumas aacutervores agora crescendo satildeo parcialmente petrificadas Este eacute um fato espantoso para os filoacutesofos da natureza e deve levaacute-los a modificar a teoria existente da petrificaccedilatildeorsquo (p 169) 49

47 O ldquomonstrordquo eacute para Poe em outras narrativas mais ligadas ao estranhamento fantaacutes-tico aleacutem de um indicativo de proporccedilotildees agigantadas signo do estranhamento e da incompreensatildeo diante da narrativa da natureza de um objeto ou de um ser Assim no conto ldquoA esfingerdquo temos a descriccedilatildeo de um ldquomonstrordquo assim como em ldquoO gato pretordquo temos a descoberta do narrador-personagem de ele mesmo se tratar de um ldquomonstrordquo pelos crimes que jamais havia imaginado poder cometer

48 (Poe 2004a p 372)49 (Poe 2004a p 375)

Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosoacuteficos como ldquoZadigrdquo e ldquoBaboucrdquo ndash o deslocamento da re-alidade da Europa do seacuteculo XVIII a um lugar longiacutenquo geralmente um paiacutes oriental para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relaccedilotildees sociais sobretudo francesas Poe organiza a narrati-va de modo que a ilusatildeo de seu leitor tambeacutem seja chamada agrave realidade Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima voltado ao mara-vilhoso exclamatoacuterio altamente descritivo pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos poreacutem estranhos Poe insere notas de rodapeacute atestando sua ldquoveracidaderdquo ndash indicando suas fontes ndash ldquoKennedyrdquo ldquo(Murray p 215 Phil Edit)rdquo ldquoMagazine Colonial de Simmonardquo No entan-to em alguns momentos Poe deixa-as de lado ou simplesmente a fonte verificada natildeo estaacute ldquocorretardquo como quando cita o Alcoratildeo

ndash Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensatildeo e prodigiosa solidez mas que natildeo obstante se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres50

ndash Isto agora eu acredito ndash disse o rei ndash porque jaacute li antes algo dessa espeacutecie num livro (p 166)

[Nota de rodapeacute do autor] A terra eacute sustentada por uma vaca de cor azul tendo chifres em nuacutemero de quatrocentos (Alcoratildeo) (p 172) 51

De acordo com Braulio Tavares esta imagem natildeo se encontra no Alcoratildeo Como resultado temos que se por um lado podemos dar ldquocre-dibilidaderdquo a algumas das informaccedilotildees e fontes que Poe menciona ndash o que demanda de seus leitores certa lsquocrenccedilarsquo no escritor e algum posi-cionamento sobre suas intenccedilotildees em elaborar desta forma seu texto ndash por outro o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado Simultaneamente Edgar Poe ironiza as proacute-prias possibilidades limitadas de crenccedila de alguns de seus leitores pois o Sultatildeo apenas pode crer ldquonaquilo que jaacute leu num livrordquo ndash livro este dotado de estatuto de ldquoverdade empiacutericardquo

50 E ainda uma vez Poe ri de tudo e de todos do Oriente e muito possivelmente da base de sua religiosidade (geneacuterica) e da crenccedila unilateral nas imagens que com-potildeem aquele livro sagrado

51 (Poe 2004a p 379)

A grande questatildeo que se impotildee nesse momento eacute a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empiacuterica dentro da verdade textual ou uma perfeita correlaccedilatildeo entre ambas Desconfiar da uacuteltima seria o papel do legiacutetimo leitor de ldquoliteraturardquo Conforme observa Anco Vieira (sp)

como toda forma de conhecimento a literatura mdash e as artes de maneira ge-ral mdash tambeacutem encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos imitando o referente (representando o que poderia acontecer) fingindo (construindo enunciados natildeo-seacuterios) plasmando uma realidade e uma ver-dade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o referente nada obstante se valer deste enquanto mateacuteria) O resultado desse modo de se relacionar com os signos eacute que na literatura o leitor ao ler um poema eacute levado a decifrar e a recifrar permanentemente o verso e no caso da prosa a se deparar com o sentido polissecircmico que as estoacuterias narradas encerram

Assim a relaccedilatildeo com a verdade empiacuterica se daacute enquanto mateacuteria lite-raacuteria na forma de referente ou seja enquanto possibilidade ndash na premissa aristoteacutelica ldquoo que poderia acontecerrdquo em um caraacuteter mais universal do que particular O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapeacute terem ou natildeo se sucedido natildeo seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual ou de verossimilhanccedila interna mas sim o natildeo existente ldquocompromissordquo de verdade entre o autor seus enunciados e o processo de recepccedilatildeo Eacute indi-ferente se as informaccedilotildees satildeo fiaacuteveis ou natildeo na realidade pois ldquonatildeo vem ao caso que estejamos informados de sua verdaderdquo (Vieira sp) Assim o fato de as referecircncias ao Alcoratildeo de as citaccedilotildees retiradas dos Magazines Asiaacuteticos e manuais de fisiologia serem verdadeiras ou falsas em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica natildeo interferiria no estatuto literaacuterio do texto

ndash Pare ndash disse o rei ndash Natildeo posso suportar isso e natildeo o suporto Vocecirc jaacute me provocou terriacutevel dor de cabeccedila com suas mentiras O dia tambeacutem pelo que vejo estaacute comeccedilando a raiar Haacute quanto tempo temos estado casados Minha consciecircncia estaacute ficando perturbada de novo E depois essa uacuteltima histoacuteria do dromedaacuterio Pensa que sou maluco Em resumo vocecirc pode muito bem levantar-se e ser estrangulada (p 168)52

A condenaccedilatildeo da narradora-personagem Sherazade pela incom-preensatildeo de seu marido no tocante ao caraacuteter ficcional de sua inven-ccedilatildeo ndash o qual se confunde para ele com a ldquomentirardquo ou seja a maacute-feacute na narrativa ndash termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da

52 (Poe 2004a p 382)

produccedilatildeo literaacuteria e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a ima-ginaccedilatildeo a fantasia o maravilhoso e possivelmente uma mais especiacutefica ficccedilatildeo cientiacutefica da qual Edgar Allan Poe eacute considerado um dos ldquopaisrdquo baseada na mescla do imaginaacuterio romacircntico de seu gecircnio e trabalho poeacutetico e da difusatildeo de novas tecnologias em meados do seacuteculo XIX O consolo amargo que emana do texto (intra e extra-textualmente) suge-rindo-se o desprezo de um grupo de leitores e criacuteticos que visa apenas a verificaccedilatildeo da verdade empiacuterica dentro da verdade textual estaria situ-ado no deleite esteacutetico perdido no prazer verdadeiramente literaacuterio que resta assim para uns poucos privilegiados

[Sherazade] recebeu contudo grande consolaccedilatildeo (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da histoacuteria permanecia ainda inacabada e que a petulacircncia do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa privando-o de muitas aventuras incon-cebiacuteveis (p 169)53

REFEREcircNCIAS

BATESON Gregory ldquoUma teoria sobre brincadeira e fantasiardquo In RIBEIRO B T GARCEZ M P (org) Sociolinguiacutestica Interacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 (p 85-105)

BOUDIEU Pierre As regras da arte Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

JAROUCHE Mamede Mustafa ldquoPrefaacuteciordquo In Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordfEd Satildeo Paulo Globo 2006

Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordf Ed Satildeo Paulo Globo 2006

POE Edgar Allan ldquoMarginaliardquo In Essays and Reviews New York Library of America 1984 (p 1223 e seg)

______ ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999a (p 101-114)

______ ldquoO princiacutepio poeacuteticordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999b (p 75-99)

53 (Poe 2004a p 382)

______ ldquoMarginaliardquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999c (p 165-186)

______ ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo In Assassinatos na rua Morgue e outras histoacuterias de crime e misteacuterio Trad William Lagos Porto Alegre LampPM 2002 (p 69-86)

______ ldquoThe Thousand-and-Second Tale of Scheherazaderdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004a (p 369-382)

______ ldquoNever bet the devil your headrdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004b (p 469-475)

______ ldquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazaderdquo In POE Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (Org) Contos obscuros de Edgar Allan Poe Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 156-173)

RIBEIRO Joseacute Imprensa e ficccedilatildeo no seacuteculo XIX Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym Satildeo Paulo Editora UNESP 1996

SENA Andreacute de Visotildees do ultrarromantismo melancolia literaacuteria e modo ultrarromacircntico Recife Editora UFPE 2010

SUASSUNA Ariano Introduccedilatildeo agrave Esteacutetica Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2011

TAVARES Braulio ldquoPosfaacutecio ndash A sombra luminosa (A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade)rdquo In POE Edgar Allan Contos Obscuros de Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (org) Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 181-207)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2010

______ As estruturas narrativas Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 2011

VIEIRA Anco Maacutercio Tenoacuterio O que eacute e o que natildeo eacute literatura [texto ineacutedito no prelo]

Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff

Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Atualmente temos visto surgir vaacuterias releituras de contos de fadas tradicionais em diversos tipos de suportes artiacutesticos ao mesmo tempo em que observamos uma grande mudanccedila no caraacuteter de personagens de cunho fantaacutestico que ateacute o romantismo foram tidos como horren-dos e assombrados e no seacuteculo XXI tecircm se confundido e se asseme-lhado com alguns personagens de contos de fadas Eacute o caso de alguns monstros a exemplo dos vampiros que viraram sensaccedilatildeo no univer-so mais infantil e juvenil como personagens pop A aproximaccedilatildeo dos personagens desses dois gecircneros nos motivou agrave busca de suas origens e uma anaacutelise sobre a possiacutevel interseccedilatildeo entre o conto fantaacutestico e o conto de fada

A partir de um estudo sobre a teoria dos gecircneros passando pelas definiccedilotildees e caracterizaccedilotildees tanto do fantaacutestico como do conto de fadas percebemos que os dois tecircm uma mesma origem secular A origem dos contos de fadas eacute bem antiga pois satildeo em sua maioria histoacuterias que fo-ram recolhidas da tradiccedilatildeo oral de diversas culturas por pesquisadores e escritores ndash tais como Perrault e os irmatildeos Grimm ndash e por isso encontra-mos em muitos casos mais de uma versatildeo de uma mesma histoacuteria (que faziam parte de culturas diferentes) Haacute registros no Egito antigo de nar-rativas que deram origem ao que noacutes conhecemos hoje como contos de fadas e foram sendo recontadas por pessoas que as disseminaram pelo mundo atraveacutes dos seacuteculos como confirma Coelho (2012 p 36) ldquoessas diversas fontes levadas atraveacutes dos tempos para diferentes regiotildees por peregrinos viajantes invasores foram-se misturando umas agraves outras e criando as diferentes formas narrativasrdquo Esse eacute um forte exemplo da for-ccedila arquetiacutepica do mito permanecendo e sobrevivendo a guerras pragas viagens e mesmo mudanccedilas de idioma e de cultura

Ao consolidar-se como gecircnero literaacuterio em fins do seacuteculo XVIII e iniacutecios do XIX o conto de fadas passa a ser dividido em dois subgecircneros Os que tecircm sua origem nas histoacuterias populares chamados de contos de fa-das tradicionais e os que nascem da imaginaccedilatildeo de um autor conhecidos como contos de fadas artiacutesticos Para a teoacuterica Karin Volobuef (1999) o conto de fadas popular consiste em narrativas que representam a natureza essencial do ser humano e do mundo Satildeo exemplos disso agraves referecircncias aos vaacuterios periacuteodos da vida desde o nascimento passando por dificul-dades casamentos recompensas e morte tambeacutem agraves diferentes classes sociais sempre mostrando pastores miseraacuteveis ou a realeza aleacutem de uma diversidade humana e de representaccedilotildees arquetiacutepicas da natureza Ainda segundo essa autora ldquoo conto de fadas eacute moldado pela raacutepida sequecircncia de acontecimentos e quase nenhuma descriccedilatildeordquo (p 54)

Observamos ainda nessas histoacuterias populares certa uniformidade quanto agrave construccedilatildeo de personagens De acordo com Luumlthi (apud Volobuef p 54) haacute sempre a presenccedila de um heroacutei ou heroiacutena que vai enfrentar difi-culdades um oponente que vecircm desestabilizar o equiliacutebrio inicial e impor obstaacuteculos um adjunto podendo aparecer como um ser sobrenatural e que vem ajudar o heroacutei aleacutem de algumas figuras opostas ao heroacutei e uma pessoa resgatada pelo protagonista Eacute importante notar que ldquoos personagens sem-pre satildeo planos e imutaacuteveis dividem-se em bons e maus e recebem nomes geneacutericos que natildeo os individualizam (Maria priacutencipe lenhador avoacute lobo)rdquo (Volobuef p 54) e eacute comum que o que os identifica seja uma caracteriacutestica exterior como eacute o caso de Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve

Jaacute os contos artiacutesticos tecircm como caracteriacutestica principal a de tra-duzir ldquoa individualidade poeacutetica de um dado escritorrdquo (Volobuef 1999 p 57) apresentando uma forma mais definida uma estrutura estetica-mente complexa Esse tipo de conto implica em uma forma fixa que foi estruturada pelo autor do texto enquanto que os contos populares podem ser contados de memoacuteria e podem variar de acordo com a pes-soa que o narra jaacute que haacute a possibilidade de remodelaccedilatildeo da histoacuteria Poreacutem eacute importante remarcar que apesar de o conto artiacutestico apresen-tar uma estrutura definida eacute comum que ele absorva ldquocom frequecircncia elementos temaacuteticos da narrativa popularrdquo (Volobuef p 57)

O conto de fadas artiacutestico entatildeo se mostra mais proacuteximo dos con-tos fantaacutesticos que se popularizam na eacutepoca romacircntica assim como os contos de fadas Segundo o teoacuterico Tzvetan Todorov o fenocircmeno

fantaacutestico surge da ambiguidade e da incerteza Para ele haacute trecircs condi-ccedilotildees para o fantaacutestico a primeira seria o leitor considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e buscar uma interpre-taccedilatildeo natural ou sobrenatural para os acontecimentos da narrativa A segunda seria a hesitaccedilatildeo da proacutepria personagem (esta eacute uma condiccedilatildeo que natildeo precisa ser satisfeita para que haja o fantaacutestico) E por fim o leitor adotar uma perspectiva do texto especiacutefica que natildeo seja nem ldquopo-eacuteticardquo nem ldquoalegoacutericardquo como muitas vezes satildeo construiacutedos os contos de fadas (lembrando tambeacutem da existecircncia de contos de fadas populares a exemplo de As moedas furtadas coletados pelos irmatildeos Grimm que trabalham sugestotildees e elipses associadas ao fantaacutestico torodoviano)

Diferentemente de Todorov Ceserani (2006) natildeo trata o fantaacutestico como um gecircnero mas sim um modo literaacuterio em que elementos retoacutericos determinadas temaacuteticas atraveacutes de combinaccedilotildees e empregos especiacuteficos associados ainda a estrateacutegias narrativas e artifiacutecios formais o caracteri-zariam enquanto tal Entre eles haacute a posiccedilatildeo de relevo dos procedimentos narrativos no corpo da narraccedilatildeo utilizado tanto pelos contos fantaacutesticos tradicionais como pelos contos de fadas artiacutesticos Isso se daacute levando-se em consideraccedilatildeo que o fantaacutestico surge com uma base na experiecircncia nar-rativa do seacuteculo XVIII a qual explorou inuacutemeras potencialidades antes inexistentes ou pouco definidas Observamos no modo fantaacutestico um jogo bem estruturado de cenas e enredos e um ldquo[] gosto por contar casos de lsquoaventurarsquordquo (p 68) Mas tambeacutem eacute presente ldquoo destaque a manipulaccedilatildeo consciente e paroacutedica dos procedimentos narrativos o gosto por colocar relevo e explicitar todos os mecanismos da ficccedilatildeordquo (p 69)

Para corroborar com essa escolha de tratar de ambos os contos de fa-das e fantaacutestico nos servimos das ideias de Marcus Mazzari discutidas na apresentaccedilatildeo agrave nova ediccedilatildeo do livro Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (2012) de Jacob e Wilhelm Grimm Mazzari concorda com o fato de que os eventos maravilhosos nos contos de fadas populares satildeo vistos de forma inteiramente natural (convergindo para as ideias de Todorov sobre o Maravilhoso) e informa que o trabalho dos Grimm natildeo se restringiu a anotar as histoacuterias que escutavam mas tambeacutem realizaram um trabalho extenso de pesquisa filoloacutegica e mesmo de reescrita Jacob Grimm por exemplo tenta definir que os seus Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (no original Kinder und Hausmaumlrchen) seriam expressatildeo de uma ldquopoesia da Naturezardquo criaccedilatildeo anocircnima e espontacircnea Ele proacuteprio tenta

dividir sua produccedilatildeo em contos populares (Volksmaumlrchen) que foram os coletados das narrativas orais e os contos artiacutesticos (Kunstmaumlrchen) his-toacuterias elaboradas a partir de sua proacutepria criatividade assim como teremos posteriormente as produccedilotildees de Hans Christian Andersen e as de Oscar Wilde divisatildeo esta que tambeacutem foi usada por Volobuef

Eacute interessante observar que apesar de os contos de fadas particular-mente os contos dos Grimm terem atualmente um grande apelo infantil eles natildeo foram escritos particularmente para crianccedilas mostrando vaacuterias vezes um caraacuteter assustador grotesco bem como uma seacuterie de referecircn-cias ligada agrave sexualidade Mas desde o lanccedilamento das primeiras ediccedilotildees (1812 e 1815) os contos dos Grimm chamaram a atenccedilatildeo das crianccedilas e isso gerou uma autocensura assim nas ediccedilotildees posteriores Wilhelm Grimm que ficou responsaacutevel pelas reediccedilotildees buscou retirar das histoacute-rias vaacuterios elementos que julgou inadequados para o puacuteblico infantil

Tratemos agora de dois exemplos literaacuterios concretos para discutir de maneira pontual as relaccedilotildees entre os universos da oralidade folcloacute-rica e do fantaacutestico O vampiro (1816) de John Polidori (1795-1821) e O califa cegonha (1825) de Wilhelm Hauff (1802-1827) Neste segundo em especial veremos um exemplo de conto de fadas artiacutestico que se aproxima de um maravilhoso caro ao Livro das mil e uma noites num franco processo de intertextualidade

O conto de Polidori tem como substrato as lendas folcloacutericas sobre monstros oriundos de regiotildees recocircnditas da Europa contudo se origina de sua proacutepria criatividade e eacute inspirado num texto inacabado de Lord Byron a quem servia como meacutedico particular e parceiro de aventuras

Percebemos em vaacuterios trechos dessa histoacuteria uma das primeiras sobre vampiros em liacutengua inglesa exemplos de crendices do povo neste caso de uma Greacutecia oitocentista de cultura potencialmente orientali-zante (estando sob o domiacutenio dos turcos) locus horrendus distinto dos espaccedilos ligados agrave razatildeo ocidental Eacute nesta ambiecircncia que os habitantes da Greacutecia narram ao protagonista do conto em viagem os estranhos acontecimentos que se passavam no lugar

[] Ianthe ficava ao lado observando os efeitos maacutegicos do laacutepis desenhando cenaacuterios de sua terra ela entatildeo descrevia para ele danccedilas de roda ao ceacuteu aber-to com todos os tons vibrantes da memoacuteria jovem [] transmitia-lhe as his-toacuterias sobrenaturais conhecidas por sua ama A seacuterie de crenccedilas aparentes na-quilo que narrava despertou o interesse de Aubrey [] (Polidori 2010 p 59)

Podemos observar claramente nesse trecho a forte influecircncia que o autor sofre das narrativas orais natildeo soacute em relaccedilatildeo ao tema principal do conto (o vampirismo) mas tambeacutem no proacuteprio enredo da histoacuteria que trata de crenccedilas e personifica os medos que as pessoas tinham do des-conhecido num soacute personagem o famigerado vampiro lord Ruthven

Este conto todavia apesar dos iacutendices que o ligam ao maravilho-so das culturas orais e folcloacutericas eacute marcado por um sobrenatural bem mais proacuteximo do fantaacutestico Lord Ruthven eacute descrito como um homem diferente a um tempo nobre e excecircntrico de perfil e feiccedilotildees belas mas com cores morticcedilas Eacute por isso que tanto pode atrair as mulheres como tambeacutem causar profundo horror a outras especialmente pelo olhar Desde o iniacutecio inquieta e desperta a desconfianccedila do leitor servindo de elo aparente agraves fantasmagorias que passam a ocorrer

A presenccedila de seres e acontecimentos sobrenaturais eacute comum aos contos de fadas e fantaacutesticos poreacutem o caraacuteter assustador que obra de Polidori confere a esses elementos estaacute ligado ao gecircnero fantaacutestico Essa natureza apavorante que o conto imprime ao personagem sobrenatural por exemplo eacute reforccedilada pelas duacutevidas tanto do leitor como do protago-nista da histoacuteria Aubrey que continuamente se pergunta a respeito das caracteriacutesticas estranhas de Ruthven

Durante o conto o protagonista transita de um mundo em que natildeo se acredita em vampiros e acontecimentos sobrenaturais para outro em que estas coisas satildeo reais Por outro lado com tal aparente descoberta ele passa a soacute pensar nisso uma monomania que o leva agrave loucura ndash mais um elemento que aparece constantemente no fantaacutestico como possiacute-vel explicaccedilatildeo para a sobrenaturalidade Eacute por isso que O vampiro se distancia do maravilhoso ligado aos contos de fadas e se aproxima da definiccedilatildeo todoroviana de fantaacutestico-estranho na qual a explicaccedilatildeo para os elementos sobrenaturais eacute a loucura ou o sonho

Como sabemos os aspectos duacutebios e ambiacuteguos satildeo a principal caracte-riacutestica do gecircnero fantaacutestico segundo Todorov o que nos faz considerar essa obra de Polidori como conto fantaacutestico tambeacutem Assim percebemos nela uma convergecircncia entre os gecircneros do conto artiacutestico e do conto fantaacutestico

Em relaccedilatildeo ao segundo conto para tratarmos de uma obra de cunho maravilhoso com aproximaccedilatildeo do Livro das mil e uma noites nos basearemos nas obras do alematildeo Wilhelm Hauff Ao analisarmos o seu livro Maumlrchen numa traduccedilatildeo integral para o francecircs pudemos

notar vaacuterias caracteriacutesticas que corroboram tal estudo O livro eacute dividi-do em partes mais extensas que satildeo fragmentadas em contos menores agrave maneira oriental Nos deteremos na narrativa de Lrsquohistoire du calife cigogne54 que faz parte da coletacircnea La caravane A obra de Hauff foi produzida no contexto das pesquisas e publicaccedilotildees dos irmatildeos Grimm acompanhadas pela traduccedilatildeo e difusatildeo do Livro das mil e uma noites assim o jovem alematildeo sofreu influecircncia desse imaginaacuterio maacutegico ligado ao Oriente ao publicar em 1826 sua referida obra

Em La caravane conta-se a histoacuteria de um grupo de viajantes que atravessa o deserto voltando de Meca para Bagdaacute Ao receber a compa-nhia de um viajante estrangeiro os homens comeccedilam a se contar histoacute-rias para passar mais raacutepido o tempo E assim durante o dia eles para-vam de cavalgar e narravam pequenas histoacuterias esperando o pocircr do sol periacuteodo menos quente para prosseguirem viagem Como em As mil e uma noites eles utilizam a estrateacutegia das narrativas para permanecerem vivos Eacute numa dessas histoacuterias que se narra o acontecido com o califa cegonha que iremos analisar a seguir

Primeiramente podemos observar que o conto trata de pessoas marcadas pelas suas classes sociais um califa um vizir e uma princesa por exemplo Como vimos eacute recorrente nos contos de fadas a imagem dos personagens a partir de seu papel na sociedade O califa e seu vizir compram uma pequena caixa com um poacute e uma escritura em liacutengua desconhecida Ao buscarem saber do que se tratava descobrem com a ajuda de um saacutebio que a partir daquele poacute eles poderiam transfor-mar-se em qualquer animal e uma vez metamorfoseados conseguiriam compreender-lhes todas as falas Animados com a ideia eles se trans-formam em cegonhas mas apoacutes terem desobedecido agrave norma de natildeo rirem esquecem o que devem falar para voltarem a ser humanos

Encontramos assim mais um elemento bastante recorrente nos contos de fadas e mesmo agraves narrativas das Mil e uma noites que seria a metamorfose de humanos em animais Mais uma vez essa metamor-fose aparece como uma espeacutecie de maldiccedilatildeo que prende o personagem Interessante observar que no iniacutecio do conto o califa sente-se muito fe-liz e presenteado com o dom de poder se transformar em animal como verifica-se no trecho do manuscrito que o califa comprou 54 A histoacuteria do califa cegonha (as traduccedilotildees de Hauff seratildeo a partir de agora de minha

autoria vertidas do francecircs)

Homem tu que encontras esta [caixa] agradeces agrave Allah por sua graccedila Aquele que usar um pouco do tabaco contido nesta caixa e disser ao mesmo tempo Mutabor poderaacute se transformar em qualquer animal e compreenderaacute a liacutengua dos animais (Hauff 1998 p 23)

Assim o califa e o vizir resolvem utilizar a magia em si proacuteprios bem como o tipo de animal que iratildeo se tornar no caso dessa histoacuteria a maldiccedilatildeo eacute natildeo poder voltar a ser humano Diferentemente do que observamos em vaacuterios contos de fadas tradicionais no texto de Hauff o personagem se metamorfoseia em animal por vontade proacutepria e mes-mo com certa vaidade em poder fazecirc-lo

Podemos reconhecer na histoacuteria do califa cegonha certa moral jaacute que transformados neste animal o protagonista e o seu vizir encontram uma coruja que se diz ser uma princesa encantada pelo mesmo homem que lhes vendeu o poacute maacutegico A princesa pode ajudaacute-los a encontrar o tal mago que faraacute com que eles descubram como voltar a ser humanos enquanto que ela proacutepria poderaacute voltar a ser princesa caso um deles a aceite como esposa Atraveacutes do elemento da metamorfose se estabelece um importante intertexto com as narrativas do Livro das mil e uma noi-tes a exemplo de uma presente na 50ordf noite quando a filha do rei luta contra um gecircnio e os dois mudam diversas vezes de forma

Ao ajudar a princesa que se revela uma bela jovem e ser ajudado por ela o califa e o vizir conseguem voltar a sua forma humana e re-tornam para a cidade de Bagdaacute onde o povo encontrava-se muito in-feliz por acreditar na morte de seu governante Ao chegarem agrave cidade os protagonistas descobrem que o mago que os transformou tinha lhe usurpado o trono mas acaba punido Encontramos mais uma vez o famoso ldquofelizes para semprerdquo presente nos contos de fadas

Observamos que tambeacutem na obra de Hauff a foacutermula das narrati-vas orais se repete um heroacutei vive bem e eacute apresentado a um conflito do qual consegue sair e dele ainda ganha alguma recompensa Tambeacutem em relaccedilatildeo aos personagens apresentados identificamos semelhanccedilas com os contos populares O califa se caracteriza como o heroacutei o mago que se apresenta primeiramente como um mascate eacute o oponente O vizir eacute o personagem adjunto enquanto que a princesa se apresenta como a pessoa que eacute resgatada pelo heroacutei e ao mesmo tempo recompensa

Eacute possiacutevel observar na obra de Hauff a forte presenccedila do elemento maravilhoso bem representado entre outros motivos pelo poacute maacutegico que

permite a transformaccedilatildeo em animal e os personagens natildeo apresentam ne-nhum tipo de estranhamento ao descobrirem tais possibilidades Eacute o mes-mo que acontece nas Aventuras de Alice no paiacutes das Maravilhas de Lewis Carroll quando a protagonista que vivia no mundo que conhecemos eacute transportada para um paiacutes em que o maravilhoso aparece como o natural das coisas Para a personagem lagarta com quem conversa em determina-da passagem originaacuteria do paiacutes das Maravilhas natildeo eacute estranho a pessoa mudar de tamanho constantemente isso constitui uma novidade para a garota contudo logo aceita Entatildeo natildeo haacute quebra da realidade daquele lugar jaacute que o Maravilhoso parte de uma coerecircncia e verossimilhanccedila que lhe satildeo tiacutepicas distinto por exemplo do sobrenatural inquietante do con-to de Polidori Isso eacute o que acontece tambeacutem em Lrsquohistoire du calife cigogne pois no universo em que vivem os personagens a magia eacute algo verossiacutemil natildeo proporcionando nenhuma quebra da realidade que conheciam

Percebemos entatildeo na narrativa de Hauff uma grande proximida-de com o Maravilhoso puro todoroviano que acredita nos elementos maacutegicos e transfiguradores como inatos agrave realidade Sabemos que o ele-mento maravilhoso jaacute era comum nas histoacuterias populares sobre fadas mas aqui lhe eacute acrescentado uma descriccedilatildeo mais detalhada do que a das narrativas puramente orais e folcloacutericas a exemplo do trecho da trans-formaccedilatildeo dos dois seres humanos em cegonhas

Suas pernas comeccedilaram a reduzir de volume para se tornarem finas e ver-melhas as belas babouches [pantufas orientais] amarelas do califa e do seu companheiro se transformaram em patas de cegonhas seus braccedilos tornaram-se asas seus pescoccedilos se alongaram desproporcionalmente suas barbas desa-pareceram e seus corpos se cobriram de penas delicadas (Hauff 1998 p 24)

Normalmente esse tipo de descriccedilatildeo mais detalhada natildeo eacute encon-trada nas narrativas populares o que facilita sua classificaccedilatildeo como conto artiacutestico

A narrativa de Hauff sofre como vimos grande influecircncia do orientalismo O cenaacuterio e os personagens selecionados para a histoacuteria demonstram facilmente a presenccedila do imaginaacuterio dessa cultura e drsquoAs mil e uma noites Em La caravane temos a presenccedila em vaacuterios niacuteveis das narrativas orais o que nos remete tanto agraves histoacuterias de Sherazade mas tambeacutem aos contos populares recolhidos pelos Grimm tendo ainda como base sua proacutepria imaginaccedilatildeo

REFEREcircNCIAS

AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura Volume I Coimbra Livraria Almedina 1991

CESERANI Remo O Fantaacutestico Curitiba Editora UFPR 2006

COELHO Nelly Novaes O Conto de Fadas siacutembolos mitos arqueacutetipos 4ordf ed Satildeo Paulo Paulinas 2012

HAUFF Wilhelm Contes Arles Babel 1998

Livro das mil e uma noites Trad de Mamede Mustafa Jarouche (Vol 1) Satildeo Paulo Globo 2012

MAZZARI Marcus ldquoO bicentenaacuterio de um claacutessico poesia do maravilhoso em versatildeo originalrdquo In GRIMM Jacob GRIMM Wilhelm Contos maravilhosos infantis e domeacutesticos (1812-1815) Satildeo Paulo Cosac Naify 2012

POLIDORI John ldquoO Vampirordquo in SILVA Alexander (org) Contos claacutessicos de vampiro Satildeo Paulo Hedra 2010 (p 51-77)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 4ordf ed Satildeo Paulo Perspectiva 2010

VOLOBUEF Karin Frestas e arestas a prosa de ficccedilatildeo do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas

Julia Troncoso(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Heloiacutesa Seixas eacute uma escritora carioca que iniciou sua carreira na aacuterea em que se formou jornalismo Hoje com diversos livros publica-dos eacute em sua obra de estreacuteia (uma coletacircnea de contos) Pente de Vecircnus que consta Iacuteblis conto que foi novamente compilado a outras narrativas fantaacutesticas por Braulio Tavares em Paacuteginas de sombra ndash contos fantaacutesti-cos brasileiros Em Iacuteblis conhecemos Camila uma pesquisadora da cul-tura islacircmica Seixas nos conta com detalhes o fluxo de consciecircncia de Camila durante o dia em que ela retorna a Paris onde mora

O estilo de Heloiacutesa Seixas se desenvolve de uma maneira na qual o elemento fantaacutestico eacute de forma um pouco abrupta inserido em uma narrativa que em sua quase totalidade eacute realistaimpressionista Grande parte do corpo do texto eacute dedicada a criar uma imagem do perfil psi-coloacutegico de Camila Esse recurso jaacute havia sido registrado por Todorov ldquo[] natildeo haacute de fato aqui nenhuma preparaccedilatildeo para o fantaacutestico antes de sua brusca irrupccedilatildeo (o que precede eacute mais uma anaacutelise psicoloacutegica indireta do narrador)rdquo (Todorov 2010 p 31) Seixas natildeo deixa seu tex-to fugir do fantaacutestico para ser definido como estranho ou maravilhoso Permanece entatildeo equilibrado entre esse dois gecircneros sem se compro-meter com um ou outro

O que acontece eacute a gradual e delicada inserccedilatildeo de elementos inquie-tantes e misteriosos na trama num trabalho de verticalizaccedilatildeo psicoloacute-gica A presenccedila dos elementos duacutebios surge logo nas primeiras linhas ldquoo cheiro adocicado do lodordquo (Seixas 2003 p117) Aleacutem de minaretes trecircmulos Minaretes satildeo grandes siacutembolos da cultura islacircmica usados para chamar seus fieis para rezar nas diferentes horas do dia Sua altura permite que as mesquitas sejam localizadas de muito longe agraves vezes existem vaacuterios deles que costumam ser expressivamente mais altos do

que as proacuteprias mesquitas Os alicerces dessas torres satildeo construiacutedos em cima das mais profundas e impenetraacuteveis rochas e a base delas em geral natildeo costuma ficar proacutexima da superfiacutecie estando sedimentadas em soacuteli-do chatildeo E no entanto em Iacuteblis os minaretes satildeo trecircmulos

Seixas prossegue ao longo do conto pormenorizando sobre os pequenos prazeres de Camila Todos de alguma maneira camuflados e contidos dentro da figura muito polida muito distante da protagonista

Camila senta-se com satisfaccedilatildeo alisando com a matildeo a toalha de linho bran-co que recobre a mesinha O arranjo do centro delicado como um iquebana reuacutene trecircs bototildees de rosas-chaacute e alguns ramos de uma folhagem vaporosa que lhe parece avenca Ao vecirc-la sentar-se sozinha a mesa o garccedilom se apro-xima soliacutecito e retira trecircs dos quatro pratos ali dispostos Sob os pratos de louccedila branca com desenhos de flores em baixo-relevo haacute um descanso de metal redondo que daacute agrave porcelana matizes prateados [] Alcachofras Nada mais delicioso do que um tenro coraccedilatildeo de alcachofra devorado com voluacutepia depois da tortura das folhas em que eacute preciso cravar os dentes para obter apenas uma pequena amostra sofrida e efecircmera (p120 grifo meu)

Seixas cria um tratado sobre os pequenos prazeres de Camila mui-tos deles com conotaccedilotildees sexuais Eacute sobre o sistema dos prazeres e dos desprazeres que Freud afirma que tambeacutem a repressatildeo pode vir a ser apreciada como prazer Segundo ele eacute dessa maneira que os prazeres neuroacuteticos acontecem Pela repressatildeo esses desejos satildeo mantidos sub-consciente e temporariamente afastados da possibilidade de satisfaccedilatildeo

No curso das coisas acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatiacuteveis em seus objetivos ou exigecircn-cias com os remanescentes que podem combinar-se na unidade inclusi-va do ego Os primeiros satildeo entatildeo expelidos dessa unidade pelo processo de repressatildeo mantidos em niacuteveis inferiores de desenvolvimento psiacutequico e afastados de iniacutecio da possibilidade de satisfaccedilatildeo Se subsequumlentemente alcanccedilam ecircxito ndash como tatildeo facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos ndash em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfa-ccedilatildeo direta ou substitutiva esse acontecimento que em outros casos seria uma oportunidade de prazer eacute sentida pelo ego como desprazer Em con-sequumlecircncia do velho conflito que terminou pela repressatildeo uma nova ruptura ocorreu no princiacutepio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforccedilando-se de acordo com o princiacutepio por obter novo prazer Os pormenores do processo pelo qual a repressatildeo transforma uma possibi-lidade de prazer numa fonte de desprazer ainda natildeo estatildeo claramente com-preendidos ou natildeo podem ser claramente representados natildeo haacute duacutevida

poreacutem de que todo desprazer neuroacutetico eacute dessa espeacutecie ou seja um prazer que natildeo pode ser sentido como tal (Freud p3)

Eacute por isso a despeito de para o leitor Camila aparentar sentir prazer naquela situaccedilatildeo que ela fica tatildeo hesitante Torna-se claro no re-lato das primeiras experiecircncias sexuais dela que a personagem vivencia o prazer como sendo de alguma maneira iliacutecito

Era laacute o local dos encontros secretos Fora Pamela quem comeccedilara tudo mas Camila costumava ficar ainda mais excitada do que ela Os encontros eram sempre na hora da sesta quando todos da casa dormiam e o silecircncio zumbia como moscas ao sol Sentavam-se as duas no monte de feno na parte de traacutes do galpatildeo e esperavam a respiraccedilatildeo suspensa Logo ouviam os passos Era ele E o menino surgia por detraacutes do feno com seu corpo magro e alto o olhar assustado o rosto infantil Natildeo teria mais do que treze anos dois anos mais velho do que as meninas portanto Parecia sempre intimidado diante delas mas soacute ateacute que comeccedilasse a brincadeira Assim que chegava tirava o chapeacuteu e rolava-o nas matildeos desconcertado Era sempre Pamela quem dava a primeira ordem ndash Senta aqui Ele obedecia Camila afastava-se abrindo lugar para ele entre as duas Lembrava-se bem da primeira vez que acon-tecera Quando o jovem barqueiro se ajeitara no feno ao seu lado Camila olhara para suas matildeos as unhas enegrecidas e experimentara um estranho prazer (Seixas p 118 ndash grifo meu)

Se esse trecho natildeo fosse suficiente fica bastante claro no terceiro re-lato que Camila enfrenta um embate interno para ter a coragem de satis-fazer a este anseio iacutentimo ldquoSim natildeo adianta negar eacute o que vocecirc quer Seraacute como da uacuteltima vez a uacuteltima vez foi uma loucura natildeo sei o que se passa comigo eu Vocecirc gosta Seus modos finos seu charme aristocraacutetico sua ele-gacircncia de princesa tudo isso eacute uma farsardquo (p121 ndash grifos da autora) Em suma Heloiacutesa Seixas esmiuacuteccedila o perfil psicoloacutegico de Camila dando ao leitor acesso ao sistema de prazeres da personagem para no final o ecircxtase de Camila coincidir com o cliacutemax do livro Isso auxilia no efeito fantaacutestico que permanece ao final do conto pois natildeo se pode definir se o ecircxtase eacute sexual ou da morte endossando o dito freudiano de que

Se tomarmos como verdade que natildeo conhece exceccedilatildeo o fato de tudo o que vive morrer por razotildees internas tornar-se mais uma vez inorgacircnico sere-mos entatildeo compelidos a dizer que ldquoo objetivo de toda vida eacute a morterdquo e voltando o olhar para traacutes que ldquoas coisas inanimadas existiram antes das vivasrdquo (Freud p17)

Existe uma opiniatildeo generalizada de que o medo e o terror satildeo pro-vocados pelo desconhecido ldquoA mais antiga e forte emoccedilatildeo da humani-dade eacute o medo e o mais antigo medo eacute do desconhecido Poucos psi-coacutelogos negaram esse fato e a verdade dessa premissa estabelece para sempre a genuinidade e dignidade do conto inquietante de terror como forma literaacuteriardquo (Lovecraft apud Ceserani 2006 p71)

O problema nessa afirmaccedilatildeo eacute que ela eacute um pouco ambiacutegua Porque se pode facilmente interpretar que o novo faz parte unicamen-te do desconhecido Eacute claro que a hipoacutetese tem que ser testada mas o que de fato provoca o medo eacute o oculto o que ainda se estaacute por conhe-cer (no aparentemente conhecido e no totalmente desconhecido) O teatro grego entendeu isso e forjou uma das grandes regras dramatuacuter-gicas a de natildeo morrer no palco Toda cena que provocasse terror era contada natildeo mostrada E eacute claro a imaginaccedilatildeo do puacuteblico dava con-torno e definiccedilatildeo com seus proacuteprios temores Tambeacutem no cinema essa regra foi entendida Hitchcock por sua vez foi um grande apreciador dessa teacutecnica Ocultar e deixar a mente do espectador preencher com a sua proacutepria imaginaccedilatildeo aquilo de horriacutevel que natildeo era mostrado Foi igualmente o mesmo princiacutepio que transformou Tubaratildeo em um grande claacutessico Diante da peacutessima qualidade dos robocircs (animatroni-cs) que havia tornado o seu filme cocircmico Spielberg decidiu voltar agrave sala de ediccedilatildeo e mostrar o miacutenimo possiacutevel Por isso que a contribui-ccedilatildeo de Freud em seu O estranho (1919) eacute tatildeo interessante porque ele observa por meio do estudo do vocabulaacuterio muitos dos recursos utilizados por escritores para fazer literatura inquietante Parece mes-mo que esta eacute uma aacuterea da literatura especialmente propensa a ser de interesse psicanaliacutetico pois eacute tatildeo recorrente nesses textos o fluxo de consciecircncias alteradas

Nessa obra Freud traccedila longa digressatildeo acerca da palavra alematilde unheimlich Ele aborda as diversas acepccedilotildees que essa palavra tem naque-la liacutengua (arcaicas e contemporacircneas ao autor) as palavras familiares a ela suas diferentes traduccedilotildees para outras liacutenguas tambeacutem europeacuteias e por sua vez os diferentes significados dessas traduccedilotildees Esse largo panorama nos permite visualizar sua abrangecircncia e complexidade Un eacute em alematildeo prefixo de negaccedilatildeo todavia heimlich ndash secreto recocircndito furtivo ndash natildeo eacute oposto a unheimlich ndash assustador angustiante aterrori-zante ndash e sim a heimisch ndash paacutetrio domeacutestico do mesmo paiacutes Contudo

heimlich em liacutengua arcaica tinha os mesmo significados de heimisch em liacutengua moderna55

Por outro lado ele [Freud] faz notar que no termo existe forte ambivalecircn-cia e tambeacutem certa vagueza assim como uma notaacutevel ambivalecircncia existe no termo heimlich que parece de fato ter duas aacutereas de significado duas ldquoes-feras de representaccedilatildeo principaisrdquo (uma mais arcaica outra mais moderna) ldquoque sem serem antiteacuteticas satildeo todavia muito estranhas uma agrave outra a esfera da familiaridade da comodidade e a do lsquoesconderrsquo do manter fechadordquo No uso corrente unheimlich eacute o contraacuterio do primeiro significado Poreacutem basta consultar o vocabulaacuterio histoacuterico da liacutengua alematilde de Grimm para descobrir que as ambiguumlidades de significado tambeacutem de heimlich satildeo amplas e existem ligaccedilotildees profundas entre as duas aacutereas de significado (que pode indicar ldquoo lugar livre da influecircncia de fantasmasrdquo mas tambeacutem ldquoescondidordquo ldquoperigosordquo ldquofechado para a consciecircnciardquo ldquoinconscienterdquo e assim por diante) Heimlich pode portanto ter o mesmo significado de unheimlich como acontece com outras palavras indo-europeacuteias que ambiguamente remetem a significados ou funccedilotildees contrapostas pode-se pensar por exemplo em ldquohoacutespederdquo que possui alguma afinidade semacircntica com heimlich (Ceserani 2006 p 137-138)

Logo fica clara a intimidade que o conceito de Estranho tem com o de familiar Para Freud o Estranho acontece quando se entra em con-tato com algo de familiar visto por uma nova perspectiva Quanto mais familiar maior a surpresa de reparar uma nova camada de significado O ato de ver algo completamente novo geralmente natildeo se atrela a expec-tativas gerando um efeito inquietante distinto A experiecircncia do deacutejagrave vu eacute um claro exemplo de inquietaccedilatildeo aflorada pela familiaridade

[] Deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna Essa categoria de coisas assusta-doras construiria entatildeo o estranho e deve ser indiferente a questatildeo de saber se o que eacute estranho era em si originalmente assustador ou se trazia outro afeto Em segundo lugar se eacute essa na verdade a natureza secreta do estra-nho pode-se compreender porque o uso linguumliacutestico se estendeu da Heimlich para o seu oposto das Unheimlich pois esse estranho natildeo eacute nada novo ou alheio poreacutem algo que eacute familiar e haacute muito estabelecido na mente e que somente se alienou desta atraveacutes do processo de repressatildeo (Freud 1919 p 13 ndash traduccedilatildeo minha)

55 Haacute de se observar tambeacutem que hoje em teoria da literatura aquilo que Freud cha-mou de Unheimlich embora ainda seja traduzido como Estranho eacute na verdade facil-mente entendido como Fantaacutestico

Em Iacuteblis a familiaridade de Camila com a situaccedilatildeo e com o Islatilde eacute o que provoca o efeito inquietante no final do conto Ela conhece um homem na estaccedilatildeo de trem que recorda a ilustraccedilatildeo de um militante da jihad de um livro que estava lendo Este homem aparece novamente no mesmo vagatildeo de trem que ocupava ocasiatildeo em que deixa cair proacuteximo a Camila seu passaporte (sugere-se que ela suspeita que tal ato tenha sido proposital no intuito de um possiacutevel contato posterior) O desco-nhecido ao mesmo tempo a fascina e aterroriza fazendo com que perca seu centramento Muitas discussotildees angustiadas ocorrem no plano psi-coloacutegico mas haacute o momento final da confrontaccedilatildeo que se daacute no plano real pela via do sexo Tudo enfim que nos surpreende como estranho se aproxima de memoacuterias que noacutes conscientemente ou natildeo temos

[] E eacute assim num aacutetimo como um relacircmpago que corta os ceacuteus que ela se recorda Iacuteblis Iacuteblis na literatura islacircmica quer dizer Vecircnus a estrela da manhatilde Camila abre ainda mais os olhos sentindo em sua espinha um frio de morte Vecircnus o elo entre a luz e as trevas siacutembolo de Luacutecifer Luacutecifer o anjo caiacutedo democircnio entre trevas e luz Os olhos quase saltando das oacuterbitas Camila tenta gritar mas as matildeos grossas e quentes rodeiam sua garganta com firmeza (Seixas 2003 p 123)

Nessa cena aquilo que era apenas siacutembolo assume plena e tangiacutevel funccedilatildeo (funccedilatildeo em sentido freudiano quando o imaginaacuterio se faz realida-de) Logo o limiar entre realidade e crenccedila se extingue Camila antes fa-miliar a estes siacutembolos eacute tomada entatildeo por essa sensaccedilatildeo arrebatadora de estranhamento Se ela natildeo os reconhecesse esse efeito nunca aconteceria pois natildeo teria a capacidade de notar o caraacuteter extraordinaacuterio da situaccedilatildeo

Freud acredita que existe uma espeacutecie de intuiccedilatildeo animista em todo ser humano que eacute reprimida mas que pode manifestar-se diante de algo que nos inquieta

Haacute mais um ponto de aplicaccedilatildeo geral que gostaria de acrescentar embora estritamente falando tenha sido incluiacutedo no que jaacute foi dito acerca do ani-mismo e dos modos de accedilatildeo do mecanismo mental que foram superados mas penso que merece destaque especial Refiro-me a que um estranho efei-to se apresenta quando se extingue a distinccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo e realidade como algo que ateacute entatildeo consideraacutevamos imaginaacuterio surge diante de noacutes na realidade ou quando um siacutembolo assume plenas funccedilotildees da coisa que simboliza e assim por diante Eacute esse elemento que contribui natildeo pouco para o estranho efeito ligado agraves praacuteticas maacutegicas (Freud 1919 p 15)

A despeito da tradiccedilatildeo todoroviana na anaacutelise desse tipo de litera-tura ser muitas vezes voltada para a questatildeo dos limites do Fantaacutestico a verdade eacute que no conto de Heloiacutesa Seixas essa questatildeo se torna secundaacute-ria Iacuteblis pode ser lido como um siacutembolo do Fantaacutestico O tiacutetulo do livro tem origem na literatura de expressatildeo islacircmica Iacuteblis eacute um dos muitos democircnios no Coratildeo que nesse contexto satildeo chamados de djinns Eles satildeo criaturas intermediaacuterias entre Deus e os Anjos que foram forjados a fogo por Deus de modo similar agrave criaccedilatildeo do Adatildeo biacuteblico (extraiacutedo do barro) No Islamismo haacute uma miriacuteade de djinns e todos eles tentam os seres humanos a cometer pecados de toda sorte De fato natildeo se dis-tanciam dos democircnios cristatildeos Iacuteblis se equivalendo ao Luacutecifer catoacutelico Em ambas as histoacuterias haacute uma querela entre Deus e IacuteblisLuacutecifer diante do amor que o primeiro dedica aos humanos seres que para esses de-mocircnios satildeo indignos e inferiores Sendo que no Coratildeo o djinn natildeo representa uma oposiccedilatildeo a Deus Para os islacircmicos Deus eacute superior a todas as coisas e nada o ameaccedila

Iacuteblis e Luacutecifer satildeo considerados anjos caiacutedos Seres de luz que desce-ram agraves trevas elo entre escuridatildeo e a claridade Eacute por isso que ambos satildeo simbolizados pela Estrela da Manhatilde Vecircnus Ela metaforiza um elemento noturno que insiste em permanecer no dia liame entre a luz e as trevas

Eacute por isso que Iacuteblis eacute o siacutembolo perfeito para a proacutepria Literatura Fantaacutestica Como explicado por Freud em relaccedilatildeo ao estranho e o familiar que geram um olhar despatriado alheio disforme ldquoessa refe-recircncia ao fator da repressatildeo permite-nos ademais compreender a defi-niccedilatildeo de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto natildeo obstante veio agrave luzrdquo (Freud 1919 p13) Tal qual IacuteblisLuacutecifer Eacute constante em todos esses elementos a dubiedade e vagueza entre as definiccedilotildees e limites ldquoo fantaacutestico ocorre na incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixa-se o fantaacutestico para entrar no gecircnero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantaacutestico eacute a hesitaccedilatildeo experimentada por um ser que soacute conhece as leis naturais face a um conhecimento aparentemente sobrenaturalrdquo (Todorov 2010 p 31)

Conscientemente ou natildeo Heloiacutesa Seixas criou um conto que utili-za recursos particularmente interessantes para a Literatura Fantaacutestica Iacuteblis eacute um exemplar ficcional brasileiro da contemporaneidade que em cenaacuterios exoacuteticos orientalistas e distantes nos mostra a forccedila descriti-va desta autora que cria universos viacutevidos e palpaacuteveis em confluecircncia

com a verticalidade psicoloacutegica A utilizaccedilatildeo desse siacutembolo-chave para o Islamismo foi um toque de Midas e abre inuacutemeras possibilidades in-terpretativas haja vista a variedade de leituras que esse texto tem em potencial junto agrave milenar literatura islacircmica

REFEREcircNCIAS

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad de Nilton Cezar Tridapalli Paranaacute UFPR Eduel 2006

FREUD Sigmund Aleacutem do Princiacutepio de Prazer Disponiacutevel em lthttplacanorgfreecomfreudtextosfalemdoprincipiodeprazerpdfgt (acessado em 25 de julho de 2013)

_________ The ldquoUncannyrdquo Disponiacutevel em lthttphomesieuedutrnozgenalpMCS490MediaCultureandTechnology-Readingsweek14-The20Uncanny-freudpdfgt (acessado em 22 de junho de 2013)

SEIXAS Heloiacutesa ldquoIacuteblisrdquo In TAVARES Braulio (org) Paacuteginas de Sombra ndash Contos fantaacutesticos brasileiros Rio de Janeiro Casa da Palavra 2003 (p 116-123)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Debates 2010

Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg

Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

O Romantismo alematildeo costuma ser subdividido em grupos nome-ados em conformidade com a cidade que os abrigava (Volobuef 1999) Esses grupos tinham semelhanccedilas que possibilitavam o enquadramento sob a eacutegide do movimento mas com caracteriacutesticas proacuteprias Elas natildeo eram excludentes entre si os artistas tinham a liberdade e verdadeira-mente nutriram o costume do tracircnsito e da assimilaccedilatildeo esteacutetica Ainda assim eacute possiacutevel traccedilar um panorama desses ciacuterculos literaacuterios

Entre os anos de 1806 e 1808 vemos o florescimento de uma se-gunda geraccedilatildeo do Romantismo alematildeo que se afastava dos preceitos da primeira geraccedilatildeo (Romantismo de Jena [1799]) no que esta tinha de primordial o egocentrismo e o cosmopolitismo (num sentido contraacuterio ao nacionalismo conservador de Heidelberg)

Poderiacuteamos basear esse comportamento pelo fato de que a segunda geraccedilatildeo presenciou a invasatildeo da Pruacutessia pelos exeacutercitos de Napoleatildeo experimentando as agruras da dominaccedilatildeo estrangeira o que teria des-pertado seu sentimento nacionalista e a desilusatildeo quanto agrave capacidade de atuaccedilatildeo do ldquoeurdquo (Volobuef 1999) Como provaacutevel consequecircncia dis-so o Romantismo de Heidelberg como ficou conhecido o ciacuterculo lite-raacuterio dessa geraccedilatildeo nutriu um interesse pelo passado histoacuterico do seu povo pela cultura popular e pela busca de uma nova mitologia extraiacuteda do universo folcloacuterico desenvolvendo tambeacutem trabalhos filoloacutegicos

Achim von Arnim atuou na cena literaacuteria da Alemanha em fins do seacuteculo XIX e comeccedilo do XX se destacando do ponto de vista da produ-ccedilatildeo ficcional e da criacutetica literaacuteria entre seus colegas do Romantismo de Heidelberg vindo a ser como hoje eacute reputado um dos maiores expoen-tes do Romantismo alematildeo e mundial (Manguel 2005)

No conto em questatildeo vemos muitos pontos deflagradores do Achim heidelberguiano De iniacutecio podemos observar que ele opta pela exposiccedilatildeo crua dos sentimentos torpes e negativos do ldquoeurdquo tais como vaidade ciuacuteme traiccedilatildeo ndash esta uacuteltima aliaacutes tema recorrente tanto em Achim quanto nas Mil e uma noites ndash sensualismo oportunismo im-pulsividade egoiacutesmo Dessa forma contrariando uma certa tendecircncia dos contos de horror que valorizam a atmosfera de medo e o cenaacuterio exterior ele natildeo caricaturiza seus personagens pelo contraacuterio eacute nestes que foca a imageacutetica do horror Eles satildeo seres humanos muito bem dese-nhados nas suas imperfeiccedilotildees nuances e caracteriacutesticas contraditoacuterias a exemplo de nossa perversa e adoraacutevel Meluumlck

Mais adiante quase no fim do conto veremos que o pano de fundo da Revoluccedilatildeo Francesa ndash a invasatildeo dos castelos o ateamento de fogo e a matanccedila dos aristocratas (presenciados entre outros pelos persona-gens Saintree Mathilde Meluumlck alguns dos quais seratildeo mortos) ndash vai ao encontro das ideias de Achim contraacuterias a este lado sangrento da Revoluccedilatildeo Ele como titular da corrente romacircntica de tendecircncia social na Alemanha natildeo deixa de trabalhar este cenaacuterio e a partir dele de-sencadear as accedilotildees derradeiras em seu conto Curiosamente o discurso inflamado de Meluumlck na segunda profecia (p 298) em relaccedilatildeo agrave morte que ocorreu na sua casa por conta da Revoluccedilatildeo eacute entendido por al-guns criacuteticos como a proacutepria voz de Achim Meluumlck eacute vista assim como alterego de Achim que diz por meio dela o que ele proacuteprio sentia e pensava agrave eacutepoca da Revoluccedilatildeo

Ademais percebemos no conto uma visatildeo clara relativa agraves diferen-ccedilas entre as massas e a aristocracia e sentimos que ele tende a dar relevo agrave generosidade ao exaltar a alma (tambeacutem) boa de Meluumlck tanto no comeccedilo do conto pela fama que ela ganha atraveacutes do magnetismo pes-soal e do talento de atriz e posteriormente pelo olhar do personagem Frenel que admira nela as raras palpitaccedilotildees de um bom coraccedilatildeo em desacordo com outras personagens mesquinhas

Vemos tambeacutem no conto como identificaccedilatildeo do Romantismo de Heildelberg o interesse peculiar do autor pelo Oriente ou seja Meluumlck que eacute tratada numa dimensatildeo que a aproxima da lenda popular ndash ten-decircncia proacutepria deste ciacuterculo e do misteacuterio a partir do qual o autor cons-troacutei atmosferas de horror literaacuterio Para se apoiar e trabalhar sobre os as-pectos ligados agrave cultura oral podemos inferir que o autor como outros

de sua eacutepoca foi achar no Oriente bons ingredientes para compor uma nova mitologia romacircntica associada aos seus reconhecidos trabalhos filoloacutegicos Uma tendecircncia do seacuteculo XIX na Europa que tem durado ateacute hoje no momento em que se reconfigura o Oriente ldquocomo ideacuteia conceito ou imagemrdquo (Said 1990 p 208)

Atentemos um pouco nesse Oriente inventado com a ajuda de Edward Said (1990 p 217-218) Historicamente a Franccedila e a Inglaterra foram as maiores colonizadoras do Oriente proacuteximo no seacuteculo XIX Aquele paiacutes no entanto teve uma presenccedila muito mais expedicionaacuteria e aventureira do que o engajado empreendimento de reconhecimento do Oriente feito pela Inglaterra ldquonatildeo tinham [escritores franceses] quais-quer pretensotildees em relaccedilatildeo agraves suas ideacuteias orientais a natildeo ser que elas [fossem] corroboradas por uma longa tradiccedilatildeo erudita (e natildeo existen-cial)rdquo (p 217 ndash grifo do autor) Assim a impressatildeo acerca dos orientais e de sua cultura trazida por esses paiacuteses ao Ocidente foi muito diferente e a que se perpetuou mais foi a visatildeo francesa atraveacutes de elementos li-gados agrave sensualidade fantasia e leveza em oposiccedilatildeo agrave visatildeo inglesa do Oriente mais realista

Edward Said afirma que

muitos dos primeiros aficionados do Oriente comeccedilaram saudando o Oriente como um salutar deacuterangement dos seus haacutebitos mentais e espirituais europeus O Oriente foi superestimado pelo seu panteiacutesmo pela sua espiri-tualidade pela sua estabilidade sua longevidade primitividade e assim por diante [] Mas quase sem exceccedilatildeo essa estima exagerada foi seguida por uma reaccedilatildeo subitamente o Oriente pareceu subumanizado antidemocraacuteti-co atrasado baacuterbaro etc (p 158 ndash grifos meus)

No seacuteculo XIX as expediccedilotildees Ocidente-Oriente e os diaacuterios de bor-do publicados eram muitos ndash o movimento contraacuterio era escasso ndash e tais viagens corroboravam juiacutezos de valor criados por um senso comum jaacute bem estabelecido

[] desse modo o uso da palavra oriental por um escritor [passa a ser] uma referecircncia suficiente para o leitor se identificar [com] um corpo especiacutefico de informaccedilatildeo sobre o Oriente [] parecia ter uma situaccedilatildeo epistemoloacutegica igual agrave da cronologia histoacuterica ou agrave da localizaccedilatildeo geograacutefica [] Os orien-tais raramente eram vistos ou olhados a visatildeo passava atraveacutes delesrdquo (p 212-213 ndash grifo meu)

Neste conto haacute um personagem o dr Frenel mencionado acima que eacute um ocidental-orientalista no sentido de que ele fez vaacuterias viagens para o Oriente e aprendeu muito sobre os seus costumes e segredos Ele encarna um certo poder o conhecimento do misteacuterio enquanto o de Meluumlck eacute a efetiva praacutetica do que eacute misterioso O misteacuterio no con-to mostra entatildeo toda sua forccedila Assim ele tem o importante papel de tornar Meluumlck e tudo que lhe rodeia mais fantaacutestico mais misterioso mais assustador em algumas passagens Sua visatildeo sobre Meluumlck eacute a um soacute tempo verdadeira e duvidosa gerando a ambiguidade fantaacutestica A proacutepria mente humana poderia justificar essa atitude como Said (p 64) diz ldquoeacute perfeitamente possiacutevel argumentar que alguns objetos distintivos satildeo feitos pela mente e que esses objetos embora pareccedilam existir objetivamente tecircm uma realidade apenas ficcionalrdquo

Haacute a partir daiacute uma separaccedilatildeo ostensiva entre eu e eles a partir da qual territoacuterios e mentalidades satildeo declarados diferentes E assim ldquotodo tipo de suposiccedilotildees associaccedilotildees e ficccedilotildees parece povoar o espaccedilo que estaacute fora do nosso proacutepriordquo (p 65) o que soacute contribui para o fantaacutes-tico Como Causo afirmou em relaccedilatildeo agrave ficccedilatildeo insoacutelita esta se trata de um jogo entre Eu e Outro do qual nascem novas percepccedilotildees podendo servir para o enriquecimento da visatildeo de mundo e do olhar sobre si mesmo num ldquoprocesso de apresentaccedilatildeo de realidades alternativas atra-veacutes das quais noacutes reavaliamos as nossas percepccedilotildees da realidade que compreendemosrdquo (2003 p 63)

Esta invenccedilatildeo do Outro serve em suma de enriquecimento ao proacute-prio imaginaacuterio com a reconstruccedilatildeo criativa das Mil e uma noites pelos autores do seacuteculo XIX conforme indica o proacuteprio Said (p 63) ldquoum re-sultado feliz [] foi que um nuacutemero estimaacutevel de importantes escritores durante o seacuteculo XIX era entusiasta do Oriente Eacute perfeitamente correto acho falar de um gecircnero de escrita orientalista tal como eacute exemplifica-do pelas obras de Hugo Goethe Nerval Flaubert Fitzgerald e similaresrdquo Hugo (apud Said p 61) completa este painel em texto escrito em 1829 ldquoau siegravecle de Louis XIV on eacutetait helleacuteniste maintenant on est orientalisterdquo

Podemos afirmar em conformidade com Causo (2003) que as suces-sotildees de acontecimentos fantaacutesticos que vatildeo sendo desencadeadas a partir do aparecimento de Meluumlck em Toulon (Franccedila) configuram uma viagem insoacutelita ldquouma sucessatildeo de eventos fantaacutesticos ou maravilhosos ocorri-dos dentro de uma progressatildeo no tempo e no espaccedilo e testemunhada

por personagens que tendem a se manter de um evento a outro [] A natureza do evento ou fato fantaacutestico ou maravilhoso pode ser divina demoniacuteaca ou misteriosardquo (p 77) Essa uacuteltima natureza estaria ligada ao conto em questatildeo e tambeacutem por isso eacute que se encaixa na categoria de fantaacutestico proposta por Todorov (2008) visto que aleacutem de deixar esses fatos no terreno do natildeo explicado e da incerteza como eacute mister ao gecircnero natildeo vemos marcaccedilotildees no texto suficientes para atribuir a esses eventos uma causa especiacutefica o que os desencadeia eacute um misteacuterio

Rosemary Jackson (apud Causo 2003 p78) reforccedila a ideia do fan-taacutestico como algo misterioso que desorienta quanto agrave realidade racional quando afirma que ldquojoga com as dificuldades de interpretaccedilatildeo de eventoscoisas como objetos ou como imagens assim desorientando a categoriza-ccedilatildeo do leitor sobre o realrdquo E podemos apontar como exemplo desse ldquojogordquo o fato de o narrador colocar esses eventos fantaacutesticos sempre em discus-satildeo com tentativas de explicaccedilotildees cientiacuteficas geralmente desencadeadas por ele proacuteprio ou pelo personagem Saintree e nunca se conseguir uma explicaccedilatildeo final O jogo de tentativa e frustraccedilatildeo confunde e faz o leitor se perguntar sobre o que eacute real e como algo fora do natural pode ocorrer Eacute isso que o fantaacutestico pretende conforme Todorov (2008)

Apesar disso podemos encontrar em Meluumlck vaacuterios elementos que o aproximam tambeacutem do maravilhoso Haacute fatos explicados segundo leis natildeo naturais ou puramente aceitos sem questionamentos Uma adora-ccedilatildeo por parte dos outros personagens orientada para Meluumlck simboliza uma fascinaccedilatildeo pelo Outro apoacutes um primeiro estranhamento Por ou-tro lado este e outros fatos estranhos poderiam ser tambeacutem frutos da real feiticcedilaria da protagonista o que endossaria o caraacuteter maravilhoso contudo fica delimitado sugerindo-se novamente o fantaacutestico O autor oscila propositalmente entre os dois gecircneros discutidos por Todorov

Outros fenocircmenos ligados ao maravilhoso seriam os acontecimentos estranhos ocorridos na casa de Saintree (cuja rotina parecia lsquomaacutegicarsquo) a se-melhanccedila fiacutesica com Meluumlck dos filhos dele com Mathilde entre outros

[] e Mathilde achava os olhos orientais e as longas pestanas de seus fi-lhos tatildeo encantadores que esquecia seu enigmaacutetico misteacuterio [] O mane-quim entatildeo tinha de apertar nos braccedilos uma crianccedila apoacutes a outra todas se divertiam e nenhuma achava isso mais prodigioso do que as mil outras coisas que diariamente lhes causavam estranheza por serem novidade [] (Arnim 2005 p 297)

Assim detectamos elementos hiacutebridos neste conto que poderiam aproximaacute-lo do subgecircnero fantaacutestico-maravilhoso todoroviano

Meluumlck eacute uma mulher da Araacutebia O intertexto com As mil e uma noites eacute leve mas evidente Numa vista geral por essas histoacuterias encontramos o mote da mulher capaz de tudo do pior ateacute para salvar a honra ou o amor Mas tal perspectiva tem uma tendecircncia a se harmonizar no decorrer dos contos orientais Vemos tambeacutem a traiccedilatildeo feminina como uma toacutepica for-te jaacute que os homens seriam os apaixonados obcecados Vai se articulando assim a misoginia atrelada agrave forccedila feminina dentro de um imaginaacuterio de sensualidade proacuteprio de expressiva parte da literatura aacuterabe

Vemos em tudo isso o reflexo direto da figura de Meluumlck agraves vezes e contraditoriamente uma mulher sem escruacutepulos que para conquistar Saintree parece ter lhe enfeiticcedilado enquanto ele passava uma tarde em sua casa Uma vez laacute sentia-se como se natildeo pudesse sair inebriado pri-vado de si numa ldquodoce prisatildeordquo (p 289) Mulher que ao ser rejeitada pelo mesmo roubou literalmente seu coraccedilatildeo numa feiticcedilaria cuja descri-ccedilatildeo causa horror (p 294-295) A traiccedilatildeo referida no caso das Noites tambeacutem ocorre aqui mas natildeo eacute ele o obcecado Soacute o maravilhoso per-mite que ele possa ficar a ela atado por conta do coraccedilatildeo extraiacutedo natildeo de maneira metafoacuterica (p 296) A obcecada eacute ela mas a protagonista pro-voca nele a mesma dependecircncia amorosa O sensualismo em Meluumlck mesmo que natildeo seja tatildeo expliacutecito quanto nos contos aacuterabes aparece em meio a uma atmosfera oniacuterica e sinesteacutesica em que o aroma das flores as texturas dos tecidos e a intensidade das cores colaboram na criaccedilatildeo de um sonho oriental com sugestotildees eroacuteticas (p 288)

Para Carroll (1999 p 39) no horror haacute sempre um monstro repug-nante sendo esta a condiccedilatildeo sine qua non dessa ficccedilatildeo ldquo[] a reaccedilatildeo afe-tiva do personagem ao monstruoso nas histoacuterias de horror natildeo eacute sim-plesmente uma questatildeo de medochoque ou seja de ficar aterrorizado com algo que ameaccedila ser perigoso Pelo contraacuterio a ameaccedila mistura-se agrave repugnacircncia agrave naacuteusea e agrave repulsardquo Notamos no conto em questatildeo um choque inicial um espanto em alguns momentos de fantaacutestico mas natildeo a naacuteusea e tambeacutem natildeo haacute um monstro configurado segundo os termos do horror de Carroll

O escritor e criacutetico Lovecraft afirma que ldquoo criteacuterio do fantaacutestico natildeo se situa na obra a natildeo ser na experiecircncia particular do leitor e essa expe-riecircncia deve ser o medordquo (apud Todorov p 20) Em relaccedilatildeo agrave atmosfera

de horror que o leitor pode detectar vemos em Meluumlck nossa profetisa particular da Araacutebia residir o estranhamento ela eacute o proacuteprio Oriente

Por sua vez Stephen King (1981) desenvolve uma leitura diferencia-da da de Carroll nos esclarecendo que pontos de tensatildeo e motivos que conduzem o leitor a uma experiecircncia esteacutetica do medo natildeo precisam ser necessariamente horripilantes jaacute que aquele eacute muitas vezes encontrado nas entrelinhas das histoacuterias No conto em questatildeo temos descriccedilotildees expliacutecitas que causam medo no leitor todas em relaccedilatildeo aos misteacuterios de Meluumlck ou agraves cenas da Revoluccedilatildeo mas o horror eacute detectado sempre nas entrelinhas no natildeo dito Isso fica claro na figura do duplo que eacute trabalha-da pela narrativa no caso um manequim que agraves vezes parece ganhar vida sob o comando da protagonista Ele natildeo configura o monstro sobrenatu-ral expliacutecito de acordo com as teorias de Carroll mas a tiacutepica inquieta-ccedilatildeo do duplo fantaacutestico o autocircmato estudado por Freud (apud Ceserani 2006 p 25-26) apreendida a partir de entrelinhas e ambiguidades

Ao ouvir perguntas sobre o paradeiro da condessa Meluumlck agarrou a quase desmaiada Mathilde agrave forccedila e levou-a ao soacutetatildeo onde o manequim articulado estava guardado Usando pela uacuteltima vez sua arte conduziu a condessa ateacute o manequim que a estreitou com uma forccedila imutaacutevel em seus braccedilos frios como os de um esqueleto Meluumlck ordenou-lhe que ficasse em silecircncio ou estaria morta mas a advertecircncia era desnecessaacuteria pois Mathilde calava caiacuteda em profundo desmaio (Arnim p 302)

Esse aspecto mentalpsicoloacutegico que foi tatildeo bem trabalhado por E T A Hoffmann ao qual muito bem nos chama atenccedilatildeo Freud pode tambeacutem ser entendido em certa medida em Todorov (p 60) quando ele fala do ldquopandeterminismordquo que teria como consequecircncia natural a ldquopansignificaccedilatildeordquo Nesse pensamento o pandeterminismo natildeo estaacute proacute-ximo agrave loucura ou ao entorpecimento causado por drogas como ele explica mas ldquosignifica que o limite entre o fiacutesico e o mental entre a ma-teacuteria e o espiacuterito entre a coisa e a palavra deixa de ser fechadordquo

Ceserani (p 25-26) nos diz que o duplo estaria associado agrave aliena-ccedilatildeo do homem num mundo que ele proacuteprio criou em que parte de sua proacutepria personalidade eacute reprimida Surgem assim fantasmagorias que o deixam obsessivo e transtornado As relaccedilotildees entre os seres vivos e os autocircmatos toacutepica que estaacute ligada a uma seacuterie de experimentaccedilotildees teacutec-nicas do seacuteculo XVIII (criaccedilatildeo de maacutequinas capazes de imitar os gestos

humanos) e teatrais (marionetes quadros vivos) coloca em pauta a preo-cupaccedilatildeo com os problemas da personalidade e identidade da consciecircncia humana do eu e do outro da estabilidade mental do duplo enfim

O manequim imita assustadoramente os movimentos de Saintree (p 287) e salva Mathilde da morte no soacutetatildeo da casa (p 303) Nas duas ocasiotildees atua como uma extensatildeo de Meluumlck no primeiro caso para impressionar seu amado no segundo para libertar sua amiga dos revo-lucionaacuterios que iriam mataacute-la Na polaridade negativa ou positiva age com uma estranheza ora fantaacutestica ora maravilhosa endossando os po-deres orientais de Meluumlck ldquoprofetisa particular da Araacutebiardquo que nos des-cortina os misteacuterios do Outro numa criaccedilatildeo ligada ao insoacutelito Eacute nesta encruzilhada que observamos mais um belo exemplo de conto de hor-ror vindo do Romantismo engajado de Heildelberg que traz o mundo fantaacutestico e maravilhoso tatildeo caro agraves Mil e uma noites

ldquoO outro eacute o eu que eu menos conheccedilomas eacute o que mais me fascinardquo

(Manuella Mirna)

REFEREcircNCIAS

CARROLL Noeumll A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coraccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Papirus 1999

CAUSO Roberto de Sousa Ficccedilatildeo cientiacutefica fantasia e horror no Brasil 1875 a 1950 Belo Horizonte Editora UFMG 2003

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad Nilton Cezar Tridapalli Curitiba UFPR 2006

KING Stephen Danccedila Macabra Satildeo Paulo Editora Ponto de Leitura 1981

MANGUEL Alberto (org) Contos de Horror do seacuteculo XIX Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2008

VOLOBUEF Karin Frestas e Arestas a prosa do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval

Lucila Nogueira(Profordf Drordf Departamento de Letras ndashUniversidade Federal de Pernambuco)

Eacute antes do oacutepio que a minhrsquoalma eacute doenteSentir a vida convalesce e estiolaEu vou buscar ao oacutepio que consolaUm oriente ao oriente do Oriente

(Fernando Pessoa)

Conforme Edward W Said (1990) o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra a Franccedila e o Oriente que vem representar natildeo apenas o sinal da soberania europeacuteia como as diversas consequecircncias de haverem esses paiacuteses dominado o mediterracircneo oriental desde o final do seacuteculo XVII Na verdade o orientalismo vinha promover a diferenccedila entre o racional e o familiar e o irracional e o estranho Em termos de estudos eruditos conside-ra-se que o orientalismo comeccedilou sua existecircncia com a decisatildeo do Conselho de Viena em 1312 de estabelecer uma seacuterie de caacutetedras de aacuterabe grego hebraico e siacuterio em Paris Oxford Bolonha Avignon e Salamanca (Said p 60)

Por outro lado eacute possiacutevel falar de um gecircnero orientalista presente nas obras de Hugo Nerval e Flaubert que deriva em uma mitologia flutuante do Oriente Veja-se o Itineraacuterio de Chateaubriand a Viagem ao Oriente de Lamartine tambeacutem as de Flaubert e de Nerval A uma certa altura a referecircncia oriental ultrapassa o calendaacuterio judeu e cristatildeo e atinge os mapas da Iacutendia da China do Japatildeo e da Sumeacuteria Entatildeo vai tratar o orientalista moderno do resgate da obscuridade e estranha-mento distinguidos pelos estudiosos anteriores No que concerne aos escritores iratildeo surgir aqueles para quem a viagem real ou metafoacuterica ao Oriente eacute a realizaccedilatildeo de algum projeto profundamente sentido e urgente eacute o caso por exemplo de Geacuterard de Nerval

A influecircncia do Oriente vai ser sinocircnima de uma oportunidade de libertaccedilatildeo como ocorre no livro As Orientais de Victor Hugo O Oriente passa a ser poesia impetuosidade melancolia o magnetismo da viagem aliado a uma possessatildeo de novas imagens Os peregrinos franceses ao contraacuterio dos ingleses iam ao Oriente com o sentido agudo de perda e natildeo de soberania Perseguiam memoacuterias ruiacutenas correspondecircncias ocultas segredos esquecidos formas literaacuterias encontradas em seu apo-geu imaginativo como ocorre com Geacuterard de Nerval (Said p 177)

A viagem de Nerval ao Oriente foi feita atraveacutes da de Lamartine e a deste atraveacutes da de Chateaubriand Para Lamartine sua viagem ao Oriente em 1883 consistiu numa grande atitude de sua vida interior porque ela consistia na paacutetria da sua imaginaccedilatildeo atestando a grandeza da Aacutesia diante da pequenez da Greacutecia Em contraste com Lamartine va-mos encontrar Flaubert e Nerval que chegaram ao Oriente preparados por uma grande leitura dos claacutessicos O proacuteprio Nerval afirmou em As filhas do fogo que tudo que ele sabia sobre o Oriente se baseava numa remota lembranccedila da sua educaccedilatildeo escolar ndash no entanto a leitura da sua viagem ao Oriente desmente isso embora seu conhecimento seja menos sistemaacutetico que o de Flaubert O fato eacute que esses dois escritores (Nerval em 1842-43 e Flaubert em 1849-50) deram agraves suas visitas ao Oriente um uso pessoal e esteacutetico maior que qualquer outro viajante do seacuteculo XIX Eles pertencem agravequele grupo romacircntico que cultua as imagens de lu-gares exoacuteticos gostos sado-masoquistas fascinaccedilatildeo pelo macabro pelo segredo e pelo ocultismo e em suas obras valorizaram figuras femininas fatais como Cleoacutepatra e Salomeacute Levaram para o Oriente uma mitologia pessoal Flaubert em busca de uma terra natal e Nerval seguindo os traccedilos de seus sonhos Assim tanto para um como para outro o Oriente era um lugar de deacutejagrave vu um lugar para o qual se voltavam com frequ-ecircncia mesmo depois que acabava a viagem (Said p 188) O alcance da obra oriental dos dois ultrapassa os limites do orientalismo ortodoxo O orientalismo de Flaubert estaacute tambeacutem nos Cadernos de Viagem na pri-meira versatildeo de A tentaccedilatildeo de Santo Antonio em Herodias Salammbocirc e nas numerosas notas de leitura

Jaacute Nerval criou a sua Viagem ao Oriente como uma coletacircnea de no-tas de esboccedilos histoacuterias e fragmentos de viagens seu Oriente tambeacutem pode ser encontrado em As Quimeras nas cartas parte de sua ficccedilatildeo e outros escritos em prosa Ele reconhece o Oriente como o paiacutes dos

sonhos e ilusotildees Conforme Edward Said Nerval investe a si mesmo no Oriente produzindo natildeo tanto uma narrativa noveliacutestica quanto uma intenccedilatildeo perpeacutetua ndash nunca plenamente realizada ndash de fundir a mente agrave accedilatildeo fiacutesica Essa antinarrativa essa peregrinaccedilatildeo eacute uma guinada na di-reccedilatildeo contraacuteria agrave finalidade discursiva do tipo concebido por escritores anteriores sobre o Oriente

Observa Said ainda que ligado fiacutesica e solidariamente ao Oriente Nerval vagueia informalmente por entre as suas riquezas e a sua atmos-fera cultural (e principalmente feminina) localizando no Egito espe-cialmente aquele materno ldquocentro ao mesmo tempo misterioso e aces-siacutevelrdquo do qual deriva toda a sabedoria (Said p 190) ldquoLembra Michel Butor que vagando pelas ruas e pelos arredores do Cairo de Beirute ou de Constantinopla Nerval estaacute sempre agrave espera de qualquer coisa que lhe permita sentir a caverna que se estende por baixo de Roma Atenas e Jerusaleacutemrdquo (p 190)

Natildeo haacute equivalentes ingleses para as obras orientais de Chateaubriand Lamartine Nerval e Flaubert Os especialistas de Nerval sabem que estamos diante de duas viagens uma que eacute mista imagina-da unida com a de outros autores outra formada por textos e versos jaacute publicados em jornais revistas e livros ldquoEacute uma impressatildeo dolorosa escreveu Nerval cada dia mais distante de perder cidade a cidade de paiacutes a paiacutes todo esse belo universo que se acredita criar jovens pela lei-turahelliprdquo (Nerval 1998)

Este eacute o Oriente de Nerval buscando uma resposta para o desco-nhecido O Oriente carrega o paroxismo entre a autoridade do real e a vontade do sonho este combate faz do poeta um visionaacuterio de uma humanidade inocente e primitiva Pertence ao sonho ou agrave vida o sol negro da melancolia em derredor do autor que viaja em sua proacutepria companhia essa viagem que eacute apenas uma metaacutefora de seus sonhos de leituras o Oriente se constitui num mundo agrave parte cumulado de seres e de coisas que se transformam em accedilotildees poeacuteticas

Para penetrar na alma e no segredo do Oriente Nerval decide aprender aacuterabe A mulher eacute um ser agrave parte e o coraccedilatildeo do poeta cami-nha seguidamente na vontade de se reencontrar As deusas orientais como Astarte e Iacutesis ganham relevo em meio aos ecircxtases miacutesticos e so-brenaturais assim como os duplos se revelam pares misteriosos onde ainda vibra o eco de mundos desaparecidos

Do Liacutebano a Constantinopla chamada geralmente por Nerval de Istambul ele se instala e vive como flacircneur dando ao seu texto uma in-tensidade que o Liacutebano natildeo pocircde oferecer Eacute o Oriente que vai assegurar a comunhatildeo coacutesmica Nerval teraacute trecircs fontes principais a Biacuteblia o Islatilde e a Maccedilonaria Na verdade a sua viagem eacute decididamente um romance e ele proacuteprio reconheceu que assim gostava de conduzir sua vida (como um ro-mance) O Oriente surge diante desse visionaacuterio como o princiacutepio de toda uma vida anterior que nele encontra seu signo supremo e sua confirmaccedilatildeo

Em 1842 Nerval inicia sua viagem ao Oriente percorrendo a ilha de Malta o Cairo Beirute Chipre Rhodes Esmirna Constantinopla Triste o seu retorno ningueacutem o esperava ao cabo da sua peregrinaccedilatildeo Retorna a Paris com escala na Itaacutelia nos primeiros dias de 1844 Publica Mulheres do Cairo que seraacute a primeira versatildeo de Viagens ao Oriente Em janeiro de 1848 publica Cenas da vida oriental I Em 1850 As noi-tes do Ramazatilde Cenas da vida oriental II As mulheres do Liacutebano Em 1851 Viagens ao Oriente em 52 Os Iluminados em 53 Pequenos cas-telos da Boecircmia e Siacutelvia Neste ano tambeacutem eacute publicado por Dumas El Desdichado em 1854 publica As filhas do fogo e As Quimeras Em maio sai da cliacutenica em que estivera o ano anterior e vai para a Alemanha de onde ele volta em estado de grande confusatildeo mental no mecircs de ju-lho Escreve Aureacutelia e prepara a ediccedilatildeo de Pandora Em janeiro de 1855 Nerval eacute encontrado enforcado na Rua da Velha Lanterna

Flaubert aos quatorze anos se referiu ao Oriente do sol brilhante do ceacuteu azul dos minaretes dourados dos pagodes de pedra o Oriente com a sua poesia o Oriente com seus perfumes suas caravanas nas areias suas esmeraldas suas flores seus jardins de laranjas Flaubert so-nhou com os laacutebios das mulheres puras com os grandes olhos negros que teriam amor soacute para ele sonhou com a pele morena das mulheres da Aacutesia (Flaubert 2006 p 7)

O tema do Oriente se interioriza quer voltando-se ao passado quer de modo intemporal Flaubert conheceraacute o Egito a Palestina a Siacuteria Bagdaacute Babilocircnia Ispahan Teeratilde Trebizonda e Constantinopla Flaubert constituiu um dossiecirc de 178 paacuteginas sobre a viagem agrave Peacutersia e em sua biblioteca constam livros como Viajantes antigos e modernos de Edward Chacon e Livros sagrados do Oriente traduzido por Guillaume Pauper em 1840 leu a Viagem ao Egito e agrave Siacuteria de Volney e consultou tambeacutem Sobre os modos e costumes dos egiacutepcios modernos de Edward

W Lane publicado em 1837 Acontece que contrariamente a muitos viajantes dos seacuteculos XVIII e XIX Flaubert natildeo faz estardalhaccedilo de sua erudiccedilatildeo em Viagem ao Oriente Ele tinha consciecircncia de que a descri-ccedilatildeo eacute um elemento importante do gecircnero viagem mas ao mesmo tempo sentia a impotecircncia das palavras diante da beleza

Um escritor eacute aquele que tem uma percepccedilatildeo diferenciada do real que usa de uma conexatildeo analoacutegica em suas expressotildees que vecirc sinais de advertecircncia em episoacutedios de sua vida o que pode ocorrer com algum deliacuterio ou eventualmente alguma mania de grandeza O escritor pro-cura reconstruir a sua identidade perdida falando agraves vezes sozinho a mais alta poesia o canto mais sublime Com um destino forccedilosamente poacutestumo Nerval soacute teraacute seu talento reconhecido no seacuteculo XX graccedilas a Proust e aos surrealistas No entanto seus doze sonetos satildeo suficientes para assegurar sua gloacuteria Um deles eacute El Desdichado

El Desdichado

Je suis le Teacutenebreux le Veuf lrsquoInconsoleacuteLe prince drsquoAquitaine agrave la tour abolieMa seule Eacutetoile est morte et mon luth constelleacutePorte le Soleil noir de la Meacutelancholie

Dans la Nuit du Tombeau toi qui mrsquoas consoleacuteRends moi le Pausilippe et la mer drsquoItalieLa Fleur qui plaisait tant agrave mon coeur deacutesoleacuteEt la Treille ougrave le Pampre agrave la Vigne srsquoallie

Suis je Amour ou Phoebus ndash Lusignan ou BironMon front est rouge encor du baiser de la ReineJrsquoai dormi dans la Grotte ougrave verdit la syregravene

Et jrsquoai deux fois vivant traverseacute lrsquoAcheronModulant et chantant sur la lyre drsquoOrpheacuteeLes soupirs de la Sainte ndash et les cris de la Feacutee

El Desdichado

Eu sou o Tenebroso o Viuacutevo o InconsoladoO priacutencipe da Aquitania na torre da abuliaMinha Estrela eacute a morte e meu luto estrelado Dissemina o Sol negro da Melancolia

Na Noite da Queda tu que me consolasteMe entregaste o mar da Itaacutelia e o PolisipoA Flor que amou tanto o meu coraccedilatildeo desoladoE a Videira onde o Pacircntano agrave rosa se alia

Sou Amor ou sou Phebo ndash Lusignan ou BironMinha fronte ainda eacute rubra do beijo da RainhaAdormeci na caverna onde nada a sereia

E duas vezes vivo atravessei o AcheronModulando e cantando na lira de OrfeuOs gritos da fada ndash e os suspiros da Santa

Publicado pela primeira vez em 10 de dezembro de 1853 por Dumas este poema parece ser contemporacircneo da segunda crise de lou-cura de Nerval (agosto e setembro de 1853) e dele existem dois ma-nuscritos Este eacute o mais ceacutelebre dos sonetos nervalianos e representa tambeacutem a crise do sujeito liacuterico e da poesia O primeiro quarteto oferece uma identidade que natildeo eacute social nem histoacuterica mas absoluta A morte da estrela e o sol negro surgem como se fossem um apocalipse que leva o locutor agraves trevas do fim No segundo quarteto restitui ao inconsola-do o passado trazendo uma contradiccedilatildeo violenta pelo uso da sintaxe Vem uma figura de consolaccedilatildeo do universo napolitano que pode ser uma referecircncia de iacutendices autobiograacuteficos Amor voltado agraves trevas os amantes natildeo podem se ver e o poeta se encontra na gruta da sereia Quanto ao uacuteltimo terceto o poeta se identifica com Orfeu desce aos infernos e constroacutei um monstro fabuloso e poeacutetico a Quimera O Sol Negro da Melancolia jaacute aparecia em Viagem ao Oriente e evoca a gravu-ra de Duumlrer A sereia na gruta representa a figura do paganismo sendo que essa gruta eacute o lugar por excelecircncia da Quimera sereia ou dragatildeo

Geacuterard Nerval acreditava na metempsicose a passagem da alma de um corpo a outro apoacutes a morte Seu livro Aureacutelia se abre com a afir-maccedilatildeo de que o sonho eacute uma segunda vida Aos vinte anos lanccedilou uma traduccedilatildeo do Fausto de Goethe que iria servir para a sinfonia de Berlioz Aos vinte e um anos jaacute era reconhecido no acircmbito literaacuterio e junto com Theophile Gautier publicava um folhetim dramaacutetico na imprensa Suas composiccedilotildees literaacuterias fazem renascer o mito do eterno feminino que sempre o perseguiu encontrado nas novelas Siacutelvia e Aureacutelia Estes livros representam a figuraccedilatildeo do contraste embora revele a sugestatildeo de um

sofrimento verdadeiro O muro das visotildees eacute um subterracircneo que se ilu-mina como se o sonho se derramasse na vida real

Sim encontramos em Nerval essa brutal oscilaccedilatildeo entre dois mun-dos o real e o imaginaacuterio assim como a transfiguraccedilatildeo de sua proacutepria vida em um mito que abarca todo o destino dos seus semelhantes Conquista metafiacutesica mito universal discurso fantaacutestico de premoni-ccedilotildees visotildees obsessotildees vida real e imaginaacuteria no crivo da linguagem Trecircs aspetos chamam a atenccedilatildeo a noccedilatildeo de uma supra-racionalidade a fusatildeo da linguagem inconsciente com a literaacuteria e a recusa da funccedilatildeo enunciativa das palavras Os elementos que formam a supra-racionalida-de que domina a obra de Nerval satildeo essencialmente a presenccedila animada do som as visotildees as transposiccedilotildees miacuteticas ou poeacuteticas as recordaccedilotildees bem como a fusatildeo da linguagem do consciente e do inconsciente Os textos fantaacutesticos de Nerval se revestem de consideraccedilotildees radicais que nunca se aproximam do que Coleridge designava ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do natildeo crerrdquo ingrediente baacutesico do gecircnero A vida de Nerval eacute sua obra e no seu estilo visionaacuterio as coisas jaacute natildeo existem em discordacircncia com as palavras que as designam elas se reuacutenem de modo indissociaacutevel

Entre as lendas que circulam no cemiteacuterio parisiense Pegravere Lachaise uma delas se refere a Nerval que em 1855 foi encontrado enforcado com desenhos e marcas de siacutembolos ocultos no peito O lugar onde teria ocorrido o pretenso suiciacutedio oscila entre as grades de um hospiacutecio de um albergue ou de um esgoto Comenta-se ser o mais bem vestido entre os fantasmas a se evaporar por traacutes de seu tuacutemulo apoacutes o passeio noturno

ldquoEu sou um mestre em fantasmagoriasrdquo dizia Rimbaud Eacute no roman-tismo alematildeo que vamos encontrar uma reflexatildeo mais profunda entre vi-satildeo e imaginaccedilatildeo Vale lembrar Novalis quando diz que ldquoo pensamento e a vista se assemelhamrdquo A faculdade de pressentir o futuro e a de recordar o passado tem relaccedilotildees com a faculdade de ver agrave distacircncia Para Goethe a luz eacute a proacutepria substacircncia do universo e a energia produtora do mundo

As diferentes formas de adivinhaccedilatildeo se fundamentam sobre a obser-vaccedilatildeo de superfiacutecies refletoras daiacute que o espelho se relacione com aconte-cimentos futuros pessoas mortas ou ausentes temas distantes Daiacute que a visatildeo no espelho se constitua um mediador dum fantasma no Testamento a Orfeu e em O sangue de um Poeta de Jean Cocteau ligado ao movimen-to surrealista atravessar o espelho significa o ingresso no reino da morte A obra despreocupada com a verossimilhanccedila nos leva ao outro lado do

espelho em clima de estranheza para um espaccedilo bidimensional como o do sonho e natildeo tridimensional como o de nossa percepccedilatildeo

O fantaacutestico diminui os limites que circunscrevem a vida huma-na aliaacutes como lembra Bachelard nem o pensamento cientiacutefico estaacute ao abrigo de motivaccedilotildees irracionais baseadas em raiacutezes inconscientes De modo que o renascimento desse irracional vai surgir sobre vaacuterias nomenclaturas como o estranho o sobrenatural o maravilhoso a ficccedilatildeo cientiacutefica o fantaacutestico puro O fantaacutestico vai tratar de acontecimentos inexplicaacuteveis pelas leis naturais que questionam a percepccedilatildeo ordinaacuteria da realidade O fantaacutestico eacute ambiacuteguo e inquietante envolvendo sempre algum dilema misterioso quando surge no seacuteculo XVIII vem marcado pela nova do orientalismo nos contos por exemplo de Jacques Cazotte Seu livro O Diabo amoroso eacute uma mistura do real com o irreal o heroacutei Aacutelvaro natildeo sabe distinguir sonho de realidade

A idade de ouro do fantaacutestico pode ser considerada no seacuteculo XIX Esse fantaacutestico oriundo do romantismo traz marcas do roman noir per-meado do sobrenatural e do gosto pelo demoniacuteaco O roman noir inglecircs produziu no seacuteculo XVIII obras como O castelo de Otranto de Horaacutecio Walpole e Os misteacuterios de Udolfo de Ann Radcliffe neles eram constan-tes o macabro e o terror fantasmas conventos abandonados cemiteacuterios ao luar William Beckford escreve Vathek dentro da moda do orientalis-mo mas tambeacutem com episoacutedios noirs Os contos de Hoffmann satildeo des-cobertos na Franccedila em torno de 1830 e vatildeo influenciar bastante Nodier Gautier e Nerval

Nervoso exaltado depressivo epileacutetico opiocircmano Nodier eacute o pre-cursor de uma longa seacuterie de escritores com sensibilidade exacerbada Maravilhoso sonho e misteacuterio se fundem em um texto em que se exal-ta a loucura Theacuteophile Gautier grande admirador de Hoffmann seraacute influenciado pelas teorias de Swedenborg e pelo espiritismo Muitas de suas histoacuterias contam um amor impossiacutevel entre o ser vivo e o fantasma

O nosso Geacuterard Nerval vai ter a sua proacutepria vida invadida pelos fantasmas Aleacutem da admiraccedilatildeo a Hoffmann traduz muito jovem o Fausto de Goethe Em 1841 tem sua primeira crise nervosa em 1843 viaja ao Oriente e passa a acreditar na reencarnaccedilatildeo em 1851 o poeta tem uma nova crise e passa a observar e registrar sua experiecircncia do sonho e da loucura surgem as obras que testemunham seu itineraacuterio espiritual atormentado Daiacute que se diga que Aureacutelia eacute menos um conto

fantaacutestico do que uma aventura espiritual mas sua originalidade con-siste na fusatildeo fantaacutestica do sonho e da realidade misturando fatos e sua existecircncia com visotildees e alucinaccedilotildees fazendo com que o leitor atravesse da realidade ao sonho ldquoO sonho eacute uma segunda vidardquo ele diz e comple-menta ldquoEu decidi registrar o sonho e conhecer o seu segredordquo

Referecircncias

ARNOLD Paul Esoteacuterisme de Baudelaire Paris Librairie Philosophique J Vrin 1972

BAUDELAIRE Charles Ensaios sobre Edgar Allan Poe Satildeo Paulo Iacutecone Editora 2003

_____ Les fleurs du mal ndash Le Spleen de Paris Paris Ed Hatier 2000

CAMPRA Rosalba Territorios de la Ficcioacuten ndash Lo Fantaacutestico Madrid Editorial Renacimiento 2008

EHRSAM Jean et Veronique (Org) La Litteacuterature Fantastique en France Paris Ed Hatier 1985

FLAUBERT Gustave Voyage en Orient (1849-1851) Paris Eacutedittions Gallimard 2006

GAUTIER Theacuteophile Baudelaire Satildeo Paulo Boitempo Editorial 2001

_____ Contos fantaacutesticos Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

GRUumlNEWALD Joseacute Lino (Org) Poetas franceses do seacuteculo XIX Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira 1921

MILNER Max La fantasmagoriacutea Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1990

NERVAL Geacuterard de Aureacutelia Satildeo Paulo Icone Editora 1986

_____ La Bohegraveme Galante Paris Renecirc Hilsum Ed 1932

_____ Les Chimegraveres ndash La Bohecircme Galante Petit Chacircteaux de Bohecircme Paris Eacutedittions Gallimard 2005

_____ Pandora 2ordf ed Barcelona Tusquets Editores 1980

_____ Siacutelvia Rio de Janeiro Ed Rocco 1986

_____ Voyage en Orient Franccedila Eacutedittions Gallimard 2003

POE Edgar Les poegravemes Paris Eacutedittions Gallimard 1982

SAID Edward Orientalismo - O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1975

YERLES Pierre LITS Marc (Orgs) Le Fantastique Bruxelles Didier Hatier 1990

Rua Acadecircmico Heacutelio Ramos 20 | Vaacuterzea Recife - PE CEP 50740-530 Fones (0xx81) 21268397 | 21268930 | Fax (0xx81) 21268395wwwufpebredufpe | livrariaedufpecombr | editoraufpebr

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

O ifrit [] correu em direccedilatildeo agrave jovem mas ela rapida-

mente arrancou um fi o de cabelo balanccedilou-o na matildeo bal-

buciou algo entredentes e o fi o se transformou numa espa-

da afi ada com a qual ela golpeou o leatildeo cortando-o em duas

partes As duas partes saiacuteram voando mas restou a cabeccedila

que se transformou em escorpiatildeo A jovem por sua vez ado-

tou a forma de uma enorme serpente e por algum tempo

travou violenta luta com o escorpiatildeo mas logo o escorpiatildeo

se transformou em abutre e voou para fora do palaacutecio en-

tatildeo a serpente virou aacuteguia e voou no encalccedilo do abutre de-

saparecendo por algum tempo Mas logo o chatildeo se fendeu

dele saindo um gato malhado que gritou roncou e rosnou

atraacutes do gato saiu um lobo preto lutaram no palaacutecio por

algum tempo e entatildeo o lobo derrotou o gato este gritou

e se transformou numa larva que rastejou e entrou numa

romatilde jogada ao lado da fonte a romatilde inchou ateacute fi car do

tamanho de uma melancia listrada ao passo que o lobo se

transformava num galo branco como a neve A romatilde saiu

voando e caiu no maacutermore da parte mais elevada do saguatildeo

espatifou-se e seus gratildeos se espalharam todos []

Livro das mil e uma noites

(50a noite trad Mamede Mustafa Jarouche)

  • Prefaacutecio (Andreacute de Sena)
  • Breves consideraccedilotildees sobre os conceitos lsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites (Mamede Mustafa Jarouche)
  • Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford (Alfredo Cordiviola)
  • O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente (Andreacute de Sena)
  • Borges leitor de As mil e uma noites (Dariacuteo Sanchez)
  • O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas (Joseacute Alberto Miranda Poza)
  • Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites (Oussama Naouar)
  • A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente (Rafaela Queiroz F Cordeiro amp Priscilla de Moraes Batista)
  • O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier (Thiago Pininga)
  • ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de Edgar Allan Poe (Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim)
  • Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff (Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira)
  • Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas (Julia Troncoso)
  • Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg (Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute)
  • O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval (Lucila Nogueira)
Page 3: Literatura Fantástica e Orientalismo

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

Andreacute de Sena (Org)

Recife 2013

ASSOCIACcedilAtildeO BRASILEIRADAS EDITORAS UNIVERSITAacuteRIAS

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio ou pro cesso especialmente por sistemas graacuteficos microfiacutelmicos fotograacuteficos reprograacuteficos fonograacuteficos e viacutedeograacute ficos Vedada a memorizaccedilatildeo eou a recuperaccedilatildeo total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusatildeo de qualquer parte da obra em qualquer programa jusciberneacutetico Essas proibiccedilotildees aplicam- se tambeacutem agraves caracteriacutesticas graacuteficas da obra e agrave sua editoraccedilatildeo

Creacuteditos

Diagramaccedilatildeo e capa Tamyres Siqueira

Ilustraccedilatildeo da orelha (escolha do organizadorautor Andreacute de Sena) ldquoSheacuteheacuterazade continua son histoirerdquo de 1928 por Virginia Frances Sterrett

Impressatildeo e acabamento EDUFPE

Prefaacutecio

Os artigos que compotildeem este Literatura fantaacutestica e orientalismo foram gerados para apresentaccedilatildeo durante o 2ordm Congresso de Literatura Fantaacutestica de Pernambuco (2ordm CLIF-PE) ocorrido entre os dias 05 e 08 de marccedilo de 2013 na Universidade Federal de Pernambuco organizado pelo Belvidera ndash Nuacutecleo de Estudos Oitocentistas do Departamento de Letras da referida instituiccedilatildeo por mim coordenado

O evento teve como tema principal ldquoA influecircncia do Livro das mil e uma noites e do imaginaacuterio orientalista na construccedilatildeo do conto fantaacutesti-co ocidentalrdquo e mobilizou centenas de estudiosos e interessados de todo o paiacutes nos miniauditoacuterios do Centro de Artes e Comunicaccedilatildeo (CAC) no auditoacuterio do Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas e no Hall do CAC (onde aconteceu mais uma ediccedilatildeo do movimentado Salatildeo de Arte Fantaacutestica de Pernambuco) Em quatro dias de atividades intensas o 2ordm CLIF-PE contou com trecircs conferecircncias 50 palestras e comunicaccedilotildees mostras de arte lanccedilamentos de livros aleacutem de dois minicursos

Entre os conferencistas o Prof Dr Mamede Mustafa Jarouche res-ponsaacutevel pela primeira traduccedilatildeo direta do aacuterabe ao portuguecircs do Livro das mil e uma noites que discutiu os inuacutemeros aspectos ligados ao so-brenatural e ao sobre-humano nesta milenar obra a corroborar com o surgimento de toda uma literatura de cunho imaginativo do seacuteculo XVIII aos dias atuais em acircmbito ocidental aleacutem do Prof Dr Alberto Miranda Poza medievalista espanhol que discutiu o acircmbito do mara-vilhoso na concepccedilatildeo do Libro de Apolonio e do miacutestico sufi Sheikh Muhammad Ragip (SP) que tratou de temas como a religiosidade do Islatilde e a literatura miacutestica sufi

A perspectiva interdisciplinar foi outro foco do 2ordm CLIF-PE desde a abertura do evento comandada pelo alauacutede aacuterabe do Prof Dr Oussama Naouar e pela expressiva interpretaccedilatildeo teatral da atriz pernambucana Vanessa Sueidy (como Sherazade) de trechos das Mil e uma noites O

evento contou ainda com a mostra competitiva de artes plaacutesticas de seu Salatildeo de Arte Fantaacutestica (pintura e escultura) aleacutem das mostras de fo-tografia e curtas-metragens com a participaccedilatildeo de dezenas de artistas de outros cursos da UFPE e da cidade Os dois minicursos trabalha-ram perspectivas ligadas ao fantaacutestico e ao orientalismo ldquoCurso-oficina de aacuterabe claacutessico para iniciantes sons letras e signos leitura da surata de abertura do Alcoratildeordquo (ministrado pelos Profs Drs Vicente Masip e Fatiha Dechicha) e ldquoO burro de ouro e o fantaacutestico As metamorfoses de Apuleiordquo (ministrado pelo Prof Ms Everton Natividade)

Para a realizaccedilatildeo do evento e publicaccedilatildeo deste livro mais uma con-tribuiccedilatildeo do Departamento de Letras da UFPE e do Nuacutecleo Belvidera ao estudo do fantaacutestico e temas afins no Brasil agradecemos todo o apoio recebido do proacuteprio Departamento aleacutem da Editora da UFPE da FACEPE que possibilitou a vinda dos conferencistas Mamede Mustafa Jarouche e Sheikh Muhammad Ragip ao Recife pela ampla cobertura da imprensa nos quatro dias do 2ordm CLIF-PE e a todos os participan-tes palestrantes artistas puacuteblico em geral e membros da Comissatildeo Organizadora

Prof Dr Andreacute de SenaRecife agosto de 2013

Breves consideraccedilotildees sobre os conceitoslsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites

Mamede Mustafa Jarouche(Prof Dr Departamento de liacutengua e literatura aacuterabe ndash

FFLCH ndash Universidade de Satildeo Paulo)

Eacute sobejamente reconhecido que o Livro das mil e uma noites em aacuterabe Kitaacuteb Alf Layla wa Layla eacute composto de camadas narrativas que somente a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica baseada nos manuscritos hoje dis-poniacuteveis da obra pode devassar e mesmo assim de maneira insatisfatoacute-ria pois satildeo consabidas conforme tem acentuado a criacutetica mais recente as limitaccedilotildees impostas de um lado pela proacutepria forma ldquomanuscritardquo a narrativas cuja produccedilatildeo natildeo visava prioritariamente a leitura (ou pelo menos natildeo a leitura conforme eacute hoje concebida) e de outro lado pela configuraccedilatildeo de sentido especiacutefica de cada conjunto narrativo tomado isoladamente em seu tempo e espaccedilo de funcionamento

Aqui a proposta eacute a partir do que a criacutetica filoloacutegica convencionou chamar de ldquoramo siacuteriordquo desse livro pensar o funcionamento em seu interior dos conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb traduziacuteveis como ldquoespantosordquo ldquoinsoacutelitordquo ldquoestranhordquo ldquoassombrosordquo Evitemos cuidadosamente por ora o termo ldquofantaacutesticordquo ao qual a criacutetica prestigiosa de Tzvetan Todorov conferiu um sentido plenamente consolidado em nossos dias e que natildeo se aplica agraves narrativas do Livro das mil e uma noites pois pressupotildee na verdade textos e leitores que soacute existem a partir do seacuteculo XIX

Conveacutem de iniacutecio ressaltar que ao propor o ramo siacuterio estaacute-se pro-pondo simultaneamente as narrativas mais antigas desse livro e as que em geral constam dos seus mais diversos e desencontrados manuscri-tos Embora contestada aqui e acolaacute ela ainda eacute bastante funcional para referir tais narrativas

Retomando os conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb com toda a sua gama de possibilidades tradutoacuterias seria conveniente neste ponto citar um au-tor aacuterabe do seacuteculo XIII Zakariyya Alqazwiacuteni Trata-se de um trecho do seu notoacuterio tratado cosmogocircnico intitulado lsquoAjaacutersquoib Almakhluqaacutet wa

Gharaacutersquoib Almawjudaacutet traduziacutevel como As mais espantosas criaturas e os mais assombrosos existentes e comumente conhecido a partir de sua versatildeo francesa como Maravilhas da Criaccedilatildeo Eacute um trecho da abertura da obra quando ele disserta sobre os propoacutesitos do seu trabalho

Quando Deus altiacutessimo determinou que eu me distanciasse de minha casa e terra natal e me separasse de meus familiares e de meu lar entreguei-me agrave leitura de livros seguindo o parecer de quem dissera ldquoo melhor companheiro em todos os tempos eacute o meu livrordquo Assim estava eu mergulhado na obser-vaccedilatildeo das coisas espantosas (lsquoajaacutersquoib) da accedilatildeo de Deus altiacutessimo sobre as suas criaturas e as coisas assombrosas (gharaacutersquoib) de suas invenccedilotildees sobre o que inventou tal como ele orientou quando disse [no Alcoratildeo] ldquoAcaso natildeo veem o ceacuteu sobre eles como o construiacutemos e adornamosrdquo O que se pretende aiacute natildeo eacute o revolver das pupilas ou algo que o valha pois isso os quadruacutepedes tambeacutem fazem Aqueles que do ceacuteu natildeo enxergam senatildeo o azul e da terra senatildeo o poacute satildeo semelhantes aos quadruacutepedes e ateacute mesmo inferiores a eles e mais estuacutepidos pois tal como disse Deus [no Alcoratildeo] ldquoeles tecircm coraccedilotildees com os quais natildeo compreendem e tecircm olhosrdquo e completou ldquoesses satildeo como gado e ainda mais extraviadosrdquo O que se pretende com o ldquoolharrdquo eacute a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis a observaccedilatildeo dos sensiacuteveis e a indagaccedilatildeo acerca da sabedoria [que os rege] bem como o que lhes sucede a fim de chegar agrave sua verdade pois eles satildeo o motivo dos prazeres mundanos e das venturas do aleacutem Foi por isso que o profeta [Muhammad] disse ldquoOacute Deus mostre-me as coisas tais como satildeordquo e toda vez que nelas prestava atenccedilatildeo se tornava mais iluminado inspirado e protegido por Deus Foi por isso que ele tambeacutem disse ldquoReflitam sobre a criaccedilatildeo de Deusrdquo E a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis natildeo eacute proporcionada senatildeo a quem tenha experiecircncia com os saberes e as matemaacuteticas e apoacutes o aperfeiccediloamento do caraacuteter e o polimento da alma Nesse momento entatildeo se lhe abre a clarividecircncia e ele enxerga em meio agrave totalidade do que eacute espantoso aquilo que visto parcialmente seria incompreensiacutevel e que se fosse narrado a outrem o deixaria desconfiado Como eacute excelente quem disse

ldquoOuvi algo espantoso que eu considerava um espectro do sono ou deliacuterio de um contomas quando o analisei percebi sua verdade e desde entatildeo jaacute vi milhares destas liccedilotildeesrdquo

Tais reflexotildees servem logo de saiacuteda para uma indagaccedilatildeo seria ra-zoaacutevel falar em elementos ldquosobrenaturaisrdquo nas Noites Sobrenatural sa-bemo-lo eacute ldquomaacutegicordquo estaacute fora das leis naturais ou a elas se impotildee E as ldquoleis naturaisrdquo pertencem obviamente ao domiacutenio da ciecircncia Estamos diante portanto de um conceito historicamente mutaacutevel Quando numa histoacuteria qualquer das Noites (ou de qualquer outro conjunto narrativo da

eacutepoca) aparece um gecircnio aprisionado haacute seacuteculos pelo rei Salomatildeo uma ponderaccedilatildeo a se fazer eacute como reagiria um leitor ou ouvinte do seacuteculo XIV por exemplo a isso Embora o fato certamente lhe fosse espantoso e admiraacutevel isso natildeo o tornaria em absoluto ldquosobrenaturalrdquo dado que semelhante ocorrecircncia fazia parte do horizonte de expectativas e possi-bilidades de entatildeo Era possiacutevel ponto Logo natildeo era sobrenatural Mas claro tratava-se de criaturas por assim dizer ldquosobre-humanasrdquo isto eacute cuja forccedila superava em muito a do ser humano Em todo caso a expressatildeo ldquosobrenaturalrdquo deve aqui ser tomada cum grano salis

Mas retomemos o processo de deflagraccedilatildeo das Noites eacute uma nar-rativa que constitui os seus receptores preferenciais como que os tipifi-cando o rei Shahriyar e a menina Dunyazad um molde pronto e outro inacabado De um lado a recepccedilatildeo experiente que extrai liccedilotildees cuida-dosa prevenida moldada pelo muito que vivenciou previamente (natildeo se deve olvidar que o grau zero de psicologia das Noites faz com que os seus personagens sejam constituiacutedos por suas experiecircncias apenas) do outro a recepccedilatildeo descuidada quase inconsequente (ldquoque histoacuteria diver-tidardquo afirma ela a todo instante mesmo quando se narram as maiores atrocidades) e em certo sentido ldquopurardquo pois livre de prevenccedilotildees

A propoacutesito a narrativa tambeacutem constitui a sua narradora Para aleacutem de sua mera articulaccedilatildeo oral ela possui uma histoacuteria que excluin-do-lhe o proacuteprio corpo e em certa medida lhe ocultando a feminilidade daacute-lhe todos os contornos de saacutebia descrevendo os livros que lera e a forma como os entendeu

Contudo do ponto de vista estrito da loacutegica que se impotildee agrave narra-dora Shahrazad sua irmatilde Dunyazad natildeo passa de um simulacro de re-cepccedilatildeo uma vez que o receptor preferencial eacute o rei Shahriyar seu marido de cuja boa vontade em uacuteltima instacircncia depende a continuaccedilatildeo da sua vida Com isso tem-se um receptor que rei e marido se relaciona conco-mitantemente agrave arte de governar de um lado e agrave arte de amar de outro lado e em cujos acircmbitos ele se vecirc em maus lenccediloacuteis sua presumiacutevel defi-ciecircncia na arte de amar aqui entendida em sentido lato torna-o viacutetima de adulteacuterio (que ele tambeacutem praticaraacute a seguir vitimando outra criatura igualmente eacute o que se supotildee inaacutebil nessa arte) e como consequecircncia as-sassino de mulheres o que evidencia uma outra deficiecircncia sua agora na arte de governar Estamos portanto diante de uma personagem deficien-te nesses dois quesitos fundamentais para a sua constituiccedilatildeo enquanto tal

Descobrir-se viacutetima de adulteacuterio faz o rei Shahriyar sair vagando pelo mundo acompanhado de seu irmatildeo mais novo e menos poderoso Shahzaman tambeacutem vitimado pela mesma desdita Ambos se encontram com a mulher de um gecircnio a qual os obriga a possuiacute-la sexualmente De uma soacute tacada colaboram para aumentar o nuacutemero de viacutetimas da mesma infacircmia que os atingira descobrindo na proacutepria carne o que a proacutepria mulher do gecircnio lhes enuncia os desejos femininos satildeo tatildeo inevitaacuteveis quanto o destino Essa amarga revelaccedilatildeo os espanta e assombra mais do que a presenccedila do gecircnio que simplesmente os assusta pois se trata de criatura sobre-humana cujo poder era imensamente superior ao deles

A primeira histoacuteria contada por Shahrazad para a sua dupla de ouvin-tes conteacutem em seu bojo mais trecircs histoacuterias Em resumo eacute a histoacuteria de um mercador inocente ameaccedilado por um ser monstruososobrenaturalsobre-humano e que acaba salvo por trecircs velhos que lhe contam histoacuterias sobre seres tambeacutem monstruosossobrenaturaissobre-humanos Tais histoacuterias satildeo consideradas ldquodivertidasrdquo por Dunyazad ao passo que o rei Shahriyar demonstra preocupaccedilatildeo com o seu desfecho o que se deve agrave analogia dessa histoacuteria com a situaccedilatildeo vivida por ele por Shahrazad e pelas mulheres que ele jaacute mandou matar E a analogia esse jogo de espelhamento das realidades do mundo eacute em si mesmo muito mais espantosa e assombrosa do que a existecircncia de seres sobre-humanos e a ocorrecircncia de eventos sobrenaturais

Outra histoacuteria significativa para os propoacutesitos desta breve explana-ccedilatildeo eacute a do carregador e das trecircs damas de Bagdaacute situada entre as noites 28 e 69 do ramo siacuterio Nela se acumulam os temas da obscenidade e do sobrenatural Um humilde carregador do mercado de Bagdaacute vai parar na mansatildeo de trecircs irmatildes beliacutessimas jovens e pelo visto solteiras Apoacutes a ocorrecircncia de praacuteticas obscenas de grau vaacuterio entre eles surgem agrave porta da casa trecircs dervixes caolhos e logo em seguida o califa Harun Arrashid em pessoa com seu vizir Jaacutelsquofar e seu escravo Masrur todos os trecircs disfar-ccedilados de mercadores Como seria de se esperar cada um dos dervixes tem a sua histoacuteria para narrar Natildeo vou resumi-las aqui mas direi que na histoacuteria do primeiro dervixe os elementos sobrenaturais aparecem mas natildeo satildeo determinantes para o desfecho Na histoacuteria do segundo dervixe o sobrenatural se mostra fundamental para o desfecho E na histoacuteria do terceiro dervixe a accedilatildeo humana eacute mais determinante do que o sobrenatural Em seguida das trecircs irmatildes duas contam suas histoacuterias a primeira das quais natildeo conteacutem elementos sobrenaturais ao passo que

na segunda o sobrenatural estaacute na metamorfose No final o califa inter-veacutem investido da sua funccedilatildeo de califa propriamente dita e natildeo mais sob disfarce e entatildeo todas as coisas satildeo repostas em seus devidos lugares ficando aiacute evidente que o texto o constitui como o governante ideal que exerce com a mesma eficaacutecia o domiacutenio sobre o mundo material e sobre o mundo sobrenatural ou seja das coisas sobre-humanas

Em seguida narra-se a histoacuteria das trecircs maccedilatildes que natildeo apresen-ta nenhum elemento sobrenatural limitando-se a mostrar a extrema crueldade e injusticcedila de que os homens satildeo capazes quando agem sob o domiacutenio da paixatildeo desenfreada A vida do elemento deflagrador disso tudo um escravo eacute trocada por uma narrativa a dos vizires Nuruddin e Badruddin noites 72-101 na qual o sobrenatural conquanto ocorra com intensidade tem importacircncia secundaacuteria quando comparado com as analogias que ndash estas sim ndash satildeo fundamentais e das quais decorre todo o ldquoespantosordquo e ldquoassombrosordquo dessa histoacuteria

Em seguida tem-se a histoacuteria do corcunda do rei da China noites 102-170 cujas peripeacutecias satildeo notaacuteveis O corcunda eacute morto aparente-mente pela accedilatildeo de um alfaiate que incrimina um meacutedico judeu que por sua vez incrimina um despenseiro muccedilulmano que por sua vez in-crimina um corretor cristatildeo Uma porccedilatildeo de eventos que seria ocioso narrar coloca todos esses homens diante do sultatildeo o qual encolerizado com a perda do seu bufatildeo predileto exige que lhe contem histoacuterias tatildeo espantosas quanto a da sua morte Seguidamente o corretor cristatildeo de-pois o despenseiro muccedilulmano e finalmente o meacutedico judeu contam as suas histoacuterias as quais satildeo consideradas insuficientes e rejeitadas pelo sultatildeo que se limita a dizer a cada um ldquoNatildeo essa sua histoacuteria natildeo eacute es-pantosa como a do corcundardquo Nenhuma das trecircs narrativas observe-se conteacutem nem sobrenatural nem analogias Eacute somente a uacuteltima narrativa do alfaiate ndash que com efeito fora o verdadeiro responsaacutevel pela morte do corcunda ndash repleta de peripeacutecias e de subhistoacuterias que agrada ao sultatildeo e o leva a perdoaacute-los pela suposta morte do corcunda

A avaliaccedilatildeo do sultatildeo pode ser tambeacutem tomada como um guia dos princiacutepios que em uacuteltima instacircncia regiam a valorizaccedilatildeo ou natildeo de uma dada narrativa no contexto das Noites Natildeo seraacute aqui possiacutevel nem se-ria razoaacutevel resumir tais histoacuterias e nos limitaremos a observar que no caso das trecircs narrativas rejeitadas pelo sultatildeo ndash e consequentemente por ele consideradas sem qualidade ndash todas consistem naquilo que hoje

podemos chamar grosso modo de narrativa ldquorealistardquo na qual os eventos se datildeo numa pura relaccedilatildeo de sucessividade natildeo mais Essa pura sucessivi-dade era entatildeo considerada banal e insossa incapaz de levar a surpresa do espantoso e do assombroso ao espiacuterito dos ouvintes Como comparaccedilatildeo seraacute uacutetil pensar na narrativa que antecede a histoacuteria do corcunda a supra-citada histoacuteria dos dois vizires irmatildeo Nuruddin e Badruddin bem como na narrativa que sucede as trecircs fracassadas contada pelo alfaiate

A qualidade da narrativa dos dois vizires reside na incidecircncia ao lado da sucessividade que se espera de qualquer narrativa da simultaneidade Os eventos se datildeo de maneira sucessiva e simultacircnea e tal simultaneidade se reveste de dois aspectos a planejada fruto da urdidura humana e a aleatoacuteria fruto da accedilatildeo do destino Eacute preciso de qualquer modo ler essa histoacuteria em sua totalidade para perceber tal relaccedilatildeo E na histoacuteria narrada pelo alfaiate no interior da qual estaacute a do barbeiro e dos seus seis irmatildeos o que sobressai para aleacutem da simultaneidade verificaacutevel na sucessivida-de dos eventos narrados eacute tambeacutem a repeticcedilatildeo e a acumulaccedilatildeo freneacuteti-ca das peripeacutecias Disso resulta que da perspectiva das Noites o melhor rendimento narrativo estaraacute na exploraccedilatildeo da sucessividade temporal previsiacutevel em qualquer narraccedilatildeo de eventos acompanhada da simulta-neidade (sempre posta em analogia) desses eventos tudo isso na maior quantidade possiacutevel para gerar os efeitos de acumulaccedilatildeo e de repeticcedilatildeo que parecem ser tatildeo apreciados pelos ouvintes e leitores da eacutepoca Tem-se entatildeo que o espantoso e o assombroso de tais narrativas natildeo se encon-tram exatamente nos eventos narrados mas sim na sua disposiccedilatildeo o que faz da proacutepria teacutecnica narrativa a fonte de todos os espantos e de todos os assombros os quais por sua vez satildeo a mateacuteria mesma das reflexotildees do homem sobre a sua condiccedilatildeo e seu mundo consistindo enfim naquilo que nos faz humanos e nas palavras de Alqazwiacuteni vai aleacutem do azul do ceacuteu e da poeira da terra diferenciando-nos dos quadruacutepedes e de outras bestas que infestam nas mais variadas formas o planeta

Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford

Alfredo Cordiviola(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Em uma discreta rua do bairro de Kensington em Londres uma discreta casa conserva a memoacuteria de Frederick Leighton Membro de uma famiacutelia favorecida por sua riqueza e por seus viacutenculos com a aris-tocracia britacircnica Leighton chegou a ser um dos pintores mais consa-grados da eacutepoca vitoriana Honrado com o tiacutetulo de Lord pela rainha e com vaacuterios precircmios nos salotildees anuais de pintura presidente da Royal Academy of Arts Leighton passou longas temporadas de formaccedilatildeo em Roma e em Paris e fez numerosas viagens particularmente pelos pa-iacuteses aacuterabes Esteve na Argeacutelia no Marrocos em Egito no Liacutebano na Turquia da sua viagem a Siacuteria em 1873 trouxe uma magniacutefica coleccedilatildeo de azulejos dos seacuteculos XV e XVI que poucos anos depois serviriam para transformar uma das partes da sua casa em um espaccedilo encantado fruto de outras dimensotildees e de outros mundos

A casa de Kensington foi sua residecircncia e seu estuacutedio tambeacutem um lugar de reclusatildeo para um homem solitaacuterio que cultivava a privacidade e o recato Nesse espaccedilo em 1877 Leighton manda construir o Arab Hall um suntuoso recinto pensado para albergar sua vasta coleccedilatildeo de objetos de arte e curiosidades acumulados em mais de vinte anos de excursotildees por terras distantes Com seus azulejos de Damasco e outras peccedilas tra-zidas de longe (algumas delas aportadas por seu amigo Richard Burton o explorador e tradutor das Mil e uma noites) o Hall foi desenhado pelo arquiteto George Aitchison Tatildeo consagrado pelas instacircncias oficiais como seu cliente Aitchison seria um professor conceituado e presidente do Royal Institute of British Architects mas natildeo se dedicava aos projetos domeacutesticos era especialista em construir os grandes templos que o enge-nho vitoriano e a circulaccedilatildeo do capital demandavam como estaccedilotildees de trem cais de embarque e armazeacutens Neste caso contou com a colaboraccedilatildeo

de destacados ceramistas escultores e artesatildeos que se encarregaram das colunas dos capiteacuteis dos frisos das gelosias e das luminaacuterias que com-punham o cenaacuterio O modelo a ser seguido e livremente adaptado na construccedilatildeo do pavilhatildeo era a Sala della fontana de La Zisa um palaacutecio do seacuteculo XII situado em Palermo na Siciacutelia No sul italiano La Zisa era um produto das muacuteltiplas influecircncias (gregas bizantinas aacuterabes normandas longobardas) que atravessaram o espaccedilo mediterracircneo ao longo dos seacute-culos Na Inglaterra o Hall imaginado por Leighton era uma fantasia ar-quitetural que revelava um gosto de eacutepoca e a evocaccedilatildeo de um lugar de muitos lugares de nenhum lugar denominado ldquoOrienterdquo

Leighton passou os uacuteltimos trinta anos da sua vida na casa rodea-do pela disciplinada beleza das reminiscecircncias chinesas japonesas in-dianas e principalmente aacuterabes que se multiplicavam pelos cocircmodos Objetos moacuteveis e decoraccedilotildees naturalizavam o exotismo e criavam rea-lidades que estavam igualmente distantes do Cairo ou de Sind como da densa atmosfera da industrializaccedilatildeo vitoriana Iacutentimas e privadas essas realidades natildeo eram muito diferentes daquelas que em grande escala eram criadas por essa espetacular invenccedilatildeo do seacuteculo XIX a Exposiccedilatildeo Universal Paraiacutesos da fantasmagoria lugares de peregrinaccedilatildeo para a mercadoria fetiche como definia Walter Benjamin as Exposiccedilotildees Universais constituem a partir do grandioso evento celebrado no Crystal Palace de Londres em 1851 o magno teatro onde se articulam os modos do progresso e da teacutecnica As Exposiccedilotildees reuacutenem o exoacutetico e o visionaacuterio a invenccedilatildeo e a ciecircncia o cataacutelogo das riquezas naturais a serem exploradas pela astuacutecia humana e os curiosos ornamentos e sin-gularidades que as periferias proporcionam Satildeo as vitrines do Impeacuterio onde o Impeacuterio se reconhece e se legitima como motor da Histoacuteria e como garante da ordem mundial Uma casa como a de Leighton pode ser vista como uma versatildeo em miniatura para consumo privado e se-leto desses grandes espetaacuteculos O espaccedilo domeacutestico exclui por defini-ccedilatildeo a participaccedilatildeo das massas e natildeo estaacute pautado pelas maravilhas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica como as feacuterias universais mas pelos usos da arte determinados pelo criteacuterio esteacutetico do colecionador Obedece contudo a um mesmo princiacutepio importar o Outro que eacute trazido de longe como passado convertido em reliacutequia Importar para resignificar o tempo pre-sente e para convalidar assim em acircmbitos amplos ou restritos as hie-rarquias geopoliacuteticas que regem a produccedilatildeo de sentidos na metroacutepole

Essas apropriaccedilotildees de um Oriente transido pela convenccedilatildeo e trans-formado em Outro natildeo obedecem por certo a uma invenccedilatildeo de Leighton e distam muito de ser exclusividade da expansatildeo vitoriana Pelo contraacute-rio o Arab Hall pode ser visto como um exemplo emblemaacutetico de um vasto processo que tinha comeccedilado muito antes e que nesse momento da segunda metade do seacuteculo XIX jaacute estava plenamente consolidado no imaginaacuterio ocidental Com a expansatildeo imperial (inglesa e francesa em particular) e com os fluxos econocircmicos e culturais mobilizados pelo co-lonialismo essa profusa porccedilatildeo do globo que se estende de Tanger ateacute Damasco jaacute vinha despertando ao longo do seacuteculo anterior todo tipo de fasciacutenios e de espantos na cosmovisatildeo europeia Esse incerto Oriente (que podia comeccedilar tambeacutem em Veneza na Espanha na Greacutecia) jaacute fora e con-tinuaria sendo incessantemente descrito por discursos imagens e pres-supostos para consumo domeacutestico das esferas metropolitanas Discursos e imagens que enquanto ampliavam o nuacutemero de informaccedilotildees dados e referecircncias impunham tambeacutem um prisma que delimitava e confirmava as perspectivas e fantasias preestabelecidas Cada vez mais esse Oriente setecentista significava barbaacuterie primitivismo misteacuterio sensualidade in-dolecircncia Nessa trama de postulados e de intervenccedilotildees (que serviriam de antecedentes precisos para a devoccedilatildeo romacircntica e para a imaginaccedilatildeo vitoriana) estatildeo inseridos acontecimentos muito diversos que por sua vez emitem intensas reverberaccedilotildees que seratildeo outra vez recicladas e reinven-tadas em outros domiacutenios Acontecimentos mais ou menos transcenden-tais mais ou menos influentes e tatildeo diversos entre si como a traduccedilatildeo das Mil e uma noites feita a partir de diversos manuscritos antigos e de narra-tivas provavelmente inventadas ou apoacutecrifas por Antoine Galland entre 1704 e 1707 ou as teorias sobre a Histoacuteria de Hegel as escavaccedilotildees arque-oloacutegicas em Palmyra as maquinaccedilotildees de Voltaire as peccedilas de porcelana ilustradas com reminiscecircncias turcas e as pinturas de Van Mour sobre a vida no Impeacuterio Otomano as elucubraccedilotildees dos savants que participaram nas campanhas napoleocircnicas no Egito a odalisca de Ingres E tambeacutem o Vathek de William Beckford

Nascido em Wiltshire em 1760 no seio de uma aristocraacutetica famiacutelia que gerenciava vastas plantaccedilotildees de accediluacutecar na Jamaica Beckford cumpre as etapas caracteriacutesticas da sua classe (educaccedilatildeo esmerada fluecircncia em liacutenguas breve incursatildeo pela poliacutetica participaccedilatildeo no Grand Tour) poreacutem eacute mais conhecido por suas excentricidades que definiam tanto sua vida

privada como tambeacutem sua trajetoacuteria de colecionador literato compositor musical e propulsor de curiosos projetos arquitetocircnicos Destes o mais curioso foi a construccedilatildeo na propriedade familiar da Fonthill Abbey uma fantasia neogoacutetica desenhada pelo arquiteto James Wyatt Construiacuteda com extrema celeridade e inapropriados materiais durante os primeiros anos do seacuteculo XIX a imponente abadia da qual soacute resta uma miacutenima parte foi um monumento de fragilidade que apenas resistiu alguns anos antes de colapsar definitivamente Mais duradoura foi uma torre neoclaacutes-sica em Bath a Landsdown Tower erigida como refuacutegio para si e para suas copiosas coleccedilotildees A torre eacute o uacutenico exemplo dos devaneios ediliacutecios de Beckford que ainda sobrevive Hoje alberga um museu no cemiteacuterio anexo se encontra o tuacutemulo de granito do autor

Heterodoxo e cosmopolita Beckford faleceu em 1844 O obituaacuterio do Bath and Cheltenham Gazette informa que ldquofor more than 40 years he has relinquished Parliamentary honours and other public duties devoting him-self to retirement but not unprofitablyrdquo1 Poderia quiccedilaacute ter sido somente lembrado como um dos tantos diletantes de uma eacutepoca propiacutecia para ex-travagacircncias e hedonismos Mas escreveu o Vathek uma obra lida durante deacutecadas com avidez (entre muitos outros por Byron Keats Swinburne e Mallarmeacute) que aprimorou definitivamente sua fama Foi redigida em pou-cos dias e em francecircs no ano de 1782 e traduzida ao inglecircs em 1786 por Samuel Henley como An Arabian Tale from a Unpublished Manuscript ndash um manuscrito tatildeo imaginaacuterio como as aventuras narradas no romance que ficou rapidamente conhecido pelo tiacutetulo do seu protagonista Como Al-Whatiq o califa dos abaacutessidas do seacuteculo IX em que a personagem estaacute livremente inspirada o califa Vathek estava possuiacutedo por uma vontade ab-soluta de conhecimento que foi como para Fausto primeiro uma virtude e depois sua perdiccedilatildeo Movido por esse afatilde insaciaacutevel o califa renega do Islatilde constroacutei uma torre para adivinhar os segredos do ceacuteu pratica toda classe de maldades e excessos Horrores indefinidos prodiacutegios artes maacutegicas enti-dades malignas e paisagens abissais se multiplicam no seu caminho Viaja procurando algo que natildeo haveraacute de achar por lugares fantaacutesticos e sinistros Apesar de tudo ainda recebe uma uacuteltima chance de se redimir que desper-diccedila A histoacuteria chega assim a um final inevitaacutevel como o narrador informa

1 Bath and Cheltenham Gazette May 8 1844 p 3 Disponiacutevel em Beckfordiana The William Beckford Website (httpbeckfordc18netbeckfordianahtml)

Thus the Caliph Vathek who for the sake of empty pomp and forbidden power had sullied himself with a thousand crimes became a prey to grief without end and remorse without mitigation2

Vathek acaba no inferno nesse inferno subterracircneo que Borges con-siderou o mais atroz de toda a literatura escrita ateacute entatildeo Lembremos que o autor argentino evoca infernos onde acontecem fatos atrozes como o de Dante mas os distingue de infernos que satildeo em si mesmos atrozes como este imaginado por Beckford Nesse sentido o compara com aquelas peculiares gravuras que Piranesi tinha elaborado alguns anos antes a seacuterie das Carceri dacuteinvenzione proacutedigas em estranhos ins-trumentos que parecem maacutequinas de torturas em corredores e esca-darias que natildeo levam a parte alguma em salas labiriacutenticas e em seres fantasmais que deambulam sem propoacutesito pelas sombras3

O breve e pobre resumo do romance que apresentamos no paraacute-grafo anterior omite os esplendores e surpresas as ironias e o erotis-mo que tanto cativaram os leitores mas pelo menos ajuda a instalar o Vathek na encruzilhada de duas tradiccedilotildees a goacutetica e a ldquoorientalistardquo O romance interpela ambas as mitologias e precisamente no modo em que as perpassa reside sua singularidade Passagens subterracircneas seres macabros tensotildees sexuais eventos sobrenaturais e horrores variados conformam a base da literatura goacutetica que se consagra no seacuteculo XVIII a partir da tremenda popularidade atingida pela obra de Horace Walpole O Castelo de Otranto (1764) O revival medievalista jaacute vinha se manifes-tando no paisagismo e na arquitetura em poucas deacutecadas particular-mente na Inglaterra mas tambeacutem na Franccedila na Alemanha e em outras partes da Europa o ldquogoacuteticordquo forneceria durante grande parte do XIX um mecanismo exemplar de reapropriaccedilatildeo e reinvenccedilatildeo de passados e de imaginaacuterias continuidades com o tempo presente Dos apoacutecrifos poemas de Ossian a Tennyson e Walter Scott de Ruskin aos preacute-rafa-elitas atraveacutes do goacutetico e seus apelos se invocava um tempo imutaacutevel em que prevaleciam a espiritualidade e os valores constantes os laccedilos de sangue e a prosaacutepia O goacutetico tambeacutem era um antiacutedoto que protegia

2 Beckford William Vathek Fourth Edition Revised and Corrected London Clarke 1824 p 227

3 Borges Jorge Luis ldquoSobre o Vathek de William Beckfordrdquo em Obras completas Buenos Aires Emeceacute 1986 (p 729-732)

tanto da insensiacutevel frieza das linhas retas cultivadas pelo neoclassicismo quanto das incertezas da industrializaccedilatildeo com suas obscuras paisagens urbanas dominadas pela maacutequina e o carvatildeo Tradiccedilatildeo monarquia na-cionalismo eram evidenciados em forma fantasmaacutetica pelas aboacutebadas pelas torres e agulhas pelos vitrais e pelos interiores altos e luminosos que obrigavam a elevar a visatildeo Natildeo eacute casual que o neogoacutetico passasse a adquirir um estatuto quase hegemocircnico na arquitetura da eacutepoca Nisto Walpole tambeacutem seria pioneiro ao dotar sua mansatildeo de Strawberry Hill com as caracteriacutesticas de outros tempos propiciando um estilo que iria se repetir ateacute a saciedade nas construccedilotildees civis do periacuteodo vitoriano Das Houses of Parliament desenhadas por Augustus Pugin um dos princi-pais expoentes do movimento ateacute os museus estaccedilotildees de trem igrejas e residecircncias particulares cada cidade parecia obrigada a ter seus mo-numentos neogoacuteticos Paradoxalmente essa invocaccedilatildeo do passado era a forma de ser modernos de estar plena e cabalmente inseridos no tempo que correspondia viver o tempo do impeacuterio e da naccedilatildeo triunfantes

Com sua fugaz abadia Beckford tambeacutem pratica esse gesto devocio-nal para o passado Essa construccedilatildeo fazia parte do theatrum mundi insta-lado nos seus domiacutenios de Fonthill A extensa propriedade servia como palco ideal para criar uma aura de privacidade que fomentava os rumores e as censuras da sociedade e para reunir uma das coleccedilotildees de obras de arte mobiacutelia e livros raros mais importantes da sua eacutepoca A abadia livre-mente influenciada pelas catedrais que tanto admirara nas suas estadias em Portugal pode ser vista tambeacutem como uma peccedila de ficccedilatildeo como um reservatoacuterio de tesouros e suntuosidades que concretizava e tornava vi-siacuteveis as incontaacuteveis maravilhas do palaacutecio do califa Vathek A simbiose entre as fantasias goacuteticas e orientais que constituiacuteam o arcabouccedilo do ro-mance se materializava assim mais uma vez aquela simbiose de palavras agora estava feita de pedras ornamentos e ostentaccedilotildees em fim

Eacute evidente que se Vathek incorpora e prefigura a vocaccedilatildeo pelo goacutetico por sua temaacutetica sua atmosfera e seus personagens manifesta tambeacutem um iacutempar fasciacutenio pelo Oriente Um fasciacutenio que se refletia no modo de vida e nas preferecircncias esteacuteticas do seu autor mas que natildeo obedecia ape-nas a um gosto iacutentimo nem a uma mera extravaganza Pelo contraacuterio do seacuteculo XVIII ao XIX esse interesse pelos orientes da imaginaccedilatildeo fa-zia parte do Zeitgeist e teria tatildeo longas repercussotildees como as produzidas pela redescoberta do goacutetico Se o Arab Hall de Leighton era um exemplo

concreto e superabundante desse interesse eacute tambeacutem a prova de que o Oriente evocado pelas andanccedilas e o traacutegico final de Vathek continuava mais vivo do que nunca vaacuterias deacutecadas depois da apariccedilatildeo do romance Mas seria um erro pensar que se tratava simplesmente de uma moda ou de uma frivolidade passageira Se neogoacuteticos e orientalismos deixam sua marca na literatura nos edifiacutecios nos haacutebitos nos artefatos e nas artes visuais eacute porque fornecem o mais apropriado dos espelhos onde a eacutepoca se vecirc a si mesma do modo em que precisa se ver hierarquizando passados legitimando presentes e subalternizando o Outro

Nessas composiccedilotildees de identidades e de diferenccedilas cabe ao ldquoOrienterdquo cumprir um papel fundamental Os escritos de Edward Said4 muito tecircm contribuiacutedo para mapear e desmontar os fundamentos epistemoloacutegicos que sustentam essas composiccedilotildees Criticado por enfatizar dicotomias e praticar reducionismos natildeo haacute como negar que Said constitui referecircncia inevitaacutevel quando se trata de reelaborar a mecacircnica do mesmo e do outro que define saberes e praacuteticas emanadas na oacuterbita dos imperialismos Uma mecacircnica que adquire conotaccedilotildees peculiares no contexto da modernidade iluminista quando a ldquoEuropardquo se consagra a si mesma como estaacutegio mais avanccedilado da evoluccedilatildeo uniacutevoca e linear da espeacutecie humana e a globalizaccedilatildeo depende do comeacutercio escravagista o racismo comeccedila a ser legitimado pelo discurso cientiacutefico e expediccedilotildees como a de Cook e Bouganville parecem completar a inspeccedilatildeo e o ldquodescobrimentordquo de todo o planeta Uma mecacircnica contudo que remete a tempos conflitos e dominaccedilotildees anteriores e que no seacuteculo XVIII jaacute contava com uma longa histoacuteria

A partir dos desdobramentos dessa longa histoacuteria (que eacute a histoacuteria da expansatildeo do ldquoOcidenterdquo pelo Mediterracircneo e pelo mundo) certas ideias sobre outras regiotildees e outras culturas do planeta vatildeo lentamente se legitimando mediante as mais diversas descriccedilotildees e representaccedilotildees Versotildees oferecidas pelos relatos dos viajantes pelos desenhos dos car-toacutegrafos pelas definiccedilotildees dos historiadores e teoacutelogos pelas paraacutebolas e ficccedilotildees contribuem para forjar diversas imagens homogecircneas das terras e das populaccedilotildees situadas nos antiacutepodas de locais de enunciaccedilatildeo que se concebem a si mesmos por mandato divino por dominacircncia militar ou por ambas as coisas como expressatildeo de uma superioridade civilizatoacuteria

4 Em particular Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001) e Cultura e imperialismo (Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995) O primeiro foi originalmente publicado em 1978 e o segundo em 1993

Essas imagens que traccedilam fronteiras e estabelecem oposiccedilotildees e anti-nomias haveratildeo de adquirir uma dimensatildeo muito mais hegemocircnica e de alcance global quando a partir do seacuteculo XV a ocidentalizaccedilatildeo passa a ser o motor central da geopoliacutetica planetaacuteria A expansatildeo europeia e a con-solidaccedilatildeo de uma modernidade capitalista intimamente vinculada com o colonialismo redefinem mais uma vez e com profundas consequecircncias ulteriores as hierarquias entre as partes do mundo Seraacute esse um mun-do definido e naturalizado como assimeacutetrico e marcadamente dicotocircmi-co pelo conjunto de discursos e praacuteticas que configuram isso que Aniacutebal Quijano denomina colonialidade Enquanto o colonialismo (o efetivo do-miacutenio poliacutetico e econocircmico) eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da colonialida-de esta garante a produccedilatildeo e a perduraccedilatildeo dos pressupostos simboacutelicos e epistemoloacutegicos que asseguram e consolidam a dominaccedilatildeo A coloniali-dade estabelece matrizes de poder relativas agrave produccedilatildeo de conhecimento agraves relaccedilotildees de trabalho e aos viacutenculos intersubjetivos que excedem a de-finiccedilatildeo de soberania de uma naccedilatildeo sobre outra e que perduram mesmo depois dos processos de independecircncia que marcam a histoacuteria das antigas colocircnias durante os seacuteculos XIX e XX Assim o colonialismo antecede agrave colonialidade e propicia sua disseminaccedilatildeo pelas sociedades mas a colo-nialidade natildeo desaparece com a ruptura da ordem imperial nem com a emergecircncia do estado-naccedilatildeo autocircnomo Desta forma uma noccedilatildeo como a de ldquopureza de sanguerdquo que subalterniza os indiviacuteduos e lhes impotildee um lugar determinado na trama social e a ideia de ldquoeurocentrismordquo que ex-pande a subordinaccedilatildeo no plano global satildeo dois dos instrumentos que a colonialidade inserta no sistema-mundo O racismo impotildee um criteacuterio de classificaccedilatildeo universal cujo fundamento uacuteltimo eacute o eurocentrismo Como afirma Quijano

El eurocentrismo por lo tanto no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o soacutelo de los dominantes del capitalismo mundial sino del conjunto de los educados bajo su hegemoniacutea Se trata de la perspectiva cog-nitiva producida en el largo tiempo del conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonialmoderno y que naturaliza la experiencia de las gentes en este patroacuten de poder5

5 Quijano Anibal ldquoColonialidad del Poder y Clasificacioacuten Socialrdquo em Castro-Goacutemez Santiago Grosfoguel Ramoacuten (eds) El Giro Decolonial reflexiones para una di-versidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo global Bogotaacute Pontificia Universidad Javeriana 2007 (p93-126 p 94)

O revivalismo goacutetico e o deslumbramento orientalista natildeo podem ser percebidos fora desses paracircmetros culturais impostos pelo eurocen-trismo e a expansatildeo do ldquoOcidenterdquo Os impeacuterios consolidados e emer-gentes se deixam seduzir por outros lugares e outros tempos enquan-to postulam um padratildeo de universalidade que atende a seus proacuteprios interesses O ldquoOrienterdquo as chinoiseries a seda o chaacute e a porcelana os enigmas e o algodatildeo da Iacutendia as estampas japonesas satildeo incorporados assim a um fluxo de apreciaccedilotildees e de demandas Seria injusto contudo supor que essas apropriaccedilotildees se reduzem agrave perpeacutetua fetichizaccedilatildeo da di-ferenccedila ou que satildeo uma simples consequecircncia da necessidade capitalista de abrir novos mercados Como em todo tracircnsito promovido pelas di-versas e progressivas mundializaccedilotildees da histoacuteria a operacionalizaccedilatildeo do perifeacuterico dentro das oacuterbitas centrais por um lado confirma o estereoacuteti-po e impotildee o recurso da miacutemica mas pode acabar tambeacutem provocando uma ampliaccedilatildeo das fronteiras do cognosciacutevel um elogio da margem e um questionamento do monologismo

Algo disto haacute no Vathek poderia ter sido um de tantos romances previsiacuteveis e acaba sendo um exemplo de heterotopia que parece implo-dir desde dentro mesmo das convenccedilotildees goacuteticas e orientalistas os luga-res comuns de toda enunciaccedilatildeo Talvez seja um exerciacutecio feito por um excecircntrico ocioso e libertino uma obra quiccedilaacute menor que na histoacuteria das letras represente como escreve Borges ldquothe perfume and suppliance of a minuterdquo Mas com sua cornucoacutepia de dicccedilotildees imagens e mitologias eacute tambeacutem um texto que foi replicado transformado e dissolvido em outras obras e por outros autores que no seacuteculo XIX ampliaram as pos-sibilidades da literatura e as possibilidades que a literatura dispotildee para inventar e descrever o real Algo do Vathek estaacute em Coleridge em de Quincey em Baudelaire em Burton em Wells Algo do Vathek perdura nos umbrosos neogoacuteticos de proviacutencia e no refinado sossego da casa de Leighton Ou nas vozes e expectativas que parecem ecoar diante de cada novo leitor das Mil e uma noites E tambeacutem nas conotaccedilotildees cer-tamente mais complexas e mais polissecircmicas que a palavra ldquoOrienterdquo foi adquirindo no mundo Natildeo eacute pouco para um mero romance que foi escrito em um lugar chamado Fonthill em trecircs dias e duas noites daquele remoto ano de 1782

O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente

Andreacute de Sena(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco Belvidera)

De maneira ostensiva ou praesentia in absentia eacute fato que o Oriente veio revelando vaacuterios de seus prismas jaacute nas pioneiras manifestaccedilotildees literaacuterias em acircmbito ocidental natildeo raras vezes fomentando incoacutegnitas O personagem Dioniso de As bacantes (406 aC) de Euriacutepides ndash apenas um dentre os vaacuterios exemplos que se poderia enumerar no espectro do mais puro aticismo ndash nos serviria de iacutecone para este precursor fasciacutenio que o meacutedio Oriente suscitou ainda nos tempos claacutessicos carnalizan-do os misteacuterios e belezas ora sedutores ora aterrorizantes da ldquoditosa Araacutebiardquo (Euriacutepedes 2004 p 220) Natildeo agrave toa eacute Dioniso ndash filho de Zeus mas educado por ninfas asiaacuteticas ndash o conhecido potencializador de ele-mentos maacutegicos e estranhos da fase heroica dos Hinos homeacutericos aos palcos traacutegicos da era de Peacutericles sem contar com sua presenccedila como motivo plaacutestico nos famosos vasos negros de figurinhas vermelhas A trageacutedia euripidiana apesar de propalar a noccedilatildeo de meacutetron de respei-to humano agraves hierarquias divinas estaacute repleta de acontecimentos que ensaiam a ruptura da propalada verossimilhanccedila associada agrave miacutemese aristoteacutelica veras fantasmagorias que vatildeo do controle telepaacutetico do deus em relaccedilatildeo ao coro das bacantes passando pelas sugestotildees do insoacutelito (terremotos incecircndios mutaccedilotildees fiacutesicas e efeitos oacuteticos que confundem os outros personagens) ateacute o elogio da licantropia

Se Pembroke (1998 p 356) afirma que as dinastias que precederam Zeus na Teogonia hesioacutedica teriam como provaacuteveis modelos mitos me-sopotacircmicos e anatoacutelicos por sua vez Momigliano (1998 p 184) argu-menta que foram os contatos com naccedilotildees orientais que deram impulso ao proacuteprio surgimento da historiografia grega Assim a ponte que vai do mythos ao logos na mundivisatildeo ocidental tem no Oriente um de seus encraves Natildeo eacute por outro motivo que Platatildeo nrsquoA repuacuteblica em meio agraves

discussotildees filosoacuteficas referentes agrave origem e essecircncia da Justiccedila vista como um bem em si natildeo prescindiraacute da utilizaccedilatildeo do mito ndash no caso um que tem a Liacutedia como cenaacuterio principal caminho atraveacutes do qual os gregos entraram em contato com o Oriente proacuteximo sua tirania riquezas e ma-gia ndash para ilustrar sua argumentaccedilatildeo repleto de elementos maravilhosos

A permissatildeo a que me refiro seria especialmente significativa se eles [o justo e o injusto] recebessem o poder que teve outrora segundo se conta o antepas-sado de Giges o Liacutedio Este homem era pastor a serviccedilo do rei que naquela eacutepoca governava a Liacutedia Certo dia durante uma violenta tempestade acom-panhada de um terremoto o solo fendeu-se e formou-se um precipiacutecio perto do lugar onde o seu rebanho pastava Tomado de assombro desceu ao fundo do abismo e entre outras maravilhas que a lenda enumera viu um cavalo de bronze oco cheio de pequenas aberturas debruccedilando-se para o interior viu um cadaacutever que parecia maior do que o de um homem e que tinha na matildeo um anel de ouro de que se apoderou depois partiu sem levar mais nada Com esse anel no dedo foi assistir agrave assembleacuteia habitual dos pastores que se reali-zava todos os meses para informar ao rei o estado dos seus rebanhos Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros virou sem querer o engaste do anel para o interior da matildeo imediatamente se tornou invisiacutevel aos seus vizinhos que falaram dele como se natildeo encontrasse ali Assustado apalpou novamen-te o anel virou o engaste para fora e tornou-se visiacutevel Tendo-se apercebido disso repetiu a experiecircncia para ver se o anel tinha realmente esse poder reproduziu-se o mesmo prodiacutegio virando o engaste para dentro tornava-se invisiacutevel para fora visiacutevel [] (Platatildeo 1999 p 44-45)

O mesmo fasciacutenio que jamais se desobrigou da atraccedilatildeo pelo estra-nho se aprofundaraacute ainda mais durante o culto periacuteodo alexandrino em que se conjugaram como nunca Ocidente e Oriente ateacute desembocar no fausto das cortes romanas o imperador Filipe (244-249 dC) era aacutera-be e como lembra Irwin (2008 p 26) uma das Saacutetiras de Juvenal acusa ironicamente esta influecircncia do Oriente no Ocidente na etapa latina ao afirmar que ldquoo rio Orontes [um rio na Siacuteria] veio desaguar no Tibrerdquo

Na Idade Meacutedia por exemplo os textos teoacutericos de Dante acusam a leitura e a influecircncia de Averroacuteis (um dos maiores comentadores de Aristoacuteteles) e Avicena As obras deste uacuteltimo comeccedilaram a ser traduzidas do aacuterabe ao latim em Toledo e refletiram-se em inuacutemeros outros livros gerados nas universidades de Oxford e Paris com o detalhe de que boa parte da ciecircncia islacircmica conforme Irwin (p 41) natildeo configuraria exata-mente lsquociecircnciarsquo como hoje a compreendemos muitos textos originais aacutera-bes eram dedicados agrave ldquoastrologia alquimia numerologia omplatoscopia

(adivinhaccedilatildeo a partir das rachaduras nos ossos calcinados de carneiros) geomancia (adivinhaccedilatildeo a partir de marcas na areia) haruspicaccedilatildeo (adi-vinhaccedilatildeo a partir de entranhas) e praacuteticas obscuras de natureza semelhan-terdquo O estudo da matemaacutetica aacuterabe servia para a arquitetura baliacutestica e engenharia mas tambeacutem como auxiliar da astrologia e todo um pensa-mento maacutegico ligado a uma natureza fantaacutestica que aceitava a existecircncia de talismatildes maacutegicos e receitas para venenos que podiam atuar a grandes distacircncias Segundo Irwin (p 42) o poliacutemata Abu Yusuf Yaqub ibn Ishaq Al-Kindi que viveu em Bagdaacute no seacuteculo IX era um dos autores mais lidos e admirados no periacuteodo medieval pelos saacutebios europeus e boa parte de sua obra se baseava em princiacutepios maacutegicos

Em De Radiis (ldquoSobre os raiosrdquo) tratado que sobreviveu [nos dias atuais] somente em sua traduccedilatildeo latina do seacuteculo XII Al-Kindi expocircs uma visatildeo essencialmente maacutegica do universo na qual radiaccedilotildees ocultas provenientes dos astros influenciavam os assuntos humanos Cada astro exercia uma in-fluecircncia sobre um grupo especiacutefico de objetos Embora os raios estelares fos-sem de suma importacircncia tudo no universo emitia raios Do mesmo modo segundo De Radiis as palavras possuiacuteam poderes maacutegicos especialmente se fossem proferidas sob conjunccedilotildees estelares particularmente favoraacuteveis e associadas ao uso de imagens talismacircnicas e ao sacrifiacutecio de animais com finalidade maacutegica [] Outras obras de al-Kindi que foram traduzidas trata-vam da astrologia e do poder de previsatildeo dos sonhos (p 42)

Tais prospecccedilotildees haveriam de influenciar o pensamento miacutestico e a sabedoria hermeacutetica de autores europeus da dimensatildeo de um Nicolau de Cusa (1401-1464) e um Pico della Mirandola (1463-1494) funda-mentais para a filosofia renascentista Do universo da teacutecnica ao plano das ideias a influecircncia aacuterabe foi decisiva e natildeo se pode perder de vista ainda a possibilidade de que a ciecircncia lsquomaacutegicarsquo registrada pela erudiccedilatildeo aacuterabe do medievo tambeacutem tenha se infiltrado em suas produccedilotildees liga-das ao orbe ficcional ndash ao menos tal como hoje o compreendemos

As tentativas proto-renascentistas de Toledo ndash mais proacuteximas do uni-verso da liacutengua portuguesa ndash plasmadas nas traduccedilotildees e difusatildeo da ciecircn-cia e alquimia aacuterabes na passagem da Alta para a Baixa Idade Meacutedia tive-ram ampla repercussatildeo no Ocidente Ainda segundo o orientalista Irwin (p 43) dada a quantidade de material ocultista sendo traduzida e estuda-da em Toledo a cidade acabou adquirindo uma reputaccedilatildeo para a feiticcedilaria e a magia negra (fato aludido por exemplo em liacutengua portuguesa no

teatro de Gil Vicente vide o Auto das fadas uma das peccedilas mais lsquofantaacutes-ticasrsquo da produccedilatildeo vicentina de 1511) E natildeo eram apenas textos ocultis-tas que vinham sendo decodificados em Toledo sabe-se que na corte de Afonso X o Saacutebio havia uma traduccedilatildeo de contos orientais maravilhosos pertencentes ao ciclo hindu do Panchatantra (200 aC) que provava a existecircncia naquele lugar de um puacuteblico aacutevido natildeo apenas pela poesia galaico-portuguesa especialmente a de cunho marianista mas tambeacutem pela fantasia orientalista Muitos autores do Ocidente influenciar-se-atildeo pelos estilos narrativos do Oriente a exemplo do catalatildeo Raimundo Luacutelio (1232-1315) autor de Blanquerna segundo Irwin (p 58) obra composta numa narrativa ldquodivaganterdquo ldquojuncada de faacutebulas e contos a maior parte dos quais parece derivar de originais aacuterabesrdquo conhecidos pelo ldquoencaixe de histoacuteriasrdquo e Bocaccio (1331-1375) cujo Decameratildeo apresenta diversos intertextos com o Livro das mil e uma noites

As contaminaccedilotildees intertextuais natildeo param por aiacute Eacute conheci-da a pletora miacutetica que a obra de viajantes como Sir John Mandeville Ludovico Varthema Marco Polo (que levou o Oriente para aleacutem do Oriente) e outros trouxe agrave luz do dia ainda no periacuteodo medievo cor-roborando mutatis mutandis na criaccedilatildeo de um Oriente maravilhoso gerador de outras regras naturais

Tais maravilhas descritivas chegavam inclusive a ser atestadas com as memorabilia coletadas durante as viagens e trazidas agrave Europa para cons-tituir as primeiras vitrines de maravilhas ou gabinetes de curiosidades precursores dos museus modernos nos seacuteculos XVII e XVIII ldquocoleccedilotildees de artefatos raros antiguidades e simulaccedilotildees de monstros pela arte da ta-xidermiardquo (Irwin p 66) O imaginaacuterio miacutetico orientalista tambeacutem estava presente na literatura em liacutengua portuguesa como eacute prova novamente a obra de Gil Vicente que situa seu monstro Monderigon da Comeacutedia sobre a divisa da cidade de Coimbra (1527) como oriundo dos ldquodesertos da Armecircniardquo e a estranha taccedila que D Duardos exibe e atraveacutes da qual en-canta Fleacuterida em Dom Duardos (1522) como vinda da Turquia

Somando-se outras inuacutemeras obras que constituiacuteram gecircneros hiacute-bridos entre as narrativas informativas de viagem e a ficccedilatildeo fantaacutesti-ca escritas por aventureiros (aventura no melhor sentido da palavra incluindo o literaacuterio) da eacutepoca renascentista que insistiam em revelar as espantosas maravilhas do Oriente (Giambattista Ramusio Samuel Purchas Jean Thenaud Pierre Belon Ogier Ghiselin de Busbecq Nicolas

de Nicolay Guillaume Postel etc) observa-se a gradual constataccedilatildeo da existecircncia concreta de um espaccedilo fiacutesico que parecia natildeo se submeter agraves leis naturais vigentes na banda ocidental Segundo Irwin (p 86)

O Oriente era superior ao Ocidente porque o paraiacuteso terrestre tinha se lo-calizado laacute [Postel] citava comprovaccedilotildees da excelecircncia oriental como por exemplo o borametz um arbusto oriental que dava cordeiros como frutos ou outra aacutervore oriental que produzia patildeo vinho seda vinagre e oacuteleo (Pico della Mirandola abrigava noccedilotildees vagamente semelhantes acerca do Oriente pois acreditava que o sol era mais forte na parte leste do mundo onde pro-duzia pedras preciosas perfumes leotildees tigres e elefantes)

Natildeo custa lembrar que os proacuteprios aacuterabes desenvolviam suas nar-rativas de viagem repletas de elementos sobrenaturais e maacutegicos tam-beacutem compondo gecircneros hiacutebridos e assegurando uma visatildeo e um anseio mais utoacutepicos (sendo a utopia atemporal mesmo que empiricamente localizaacutevel no tempo e no universo das ideias) do que propriamente a configuraccedilatildeo de um zeitgeist medievalrenascentista numa relaccedilatildeo de ontologia No tratado geograacutefico Peacuterola de espantos e singularidades de assombros observa-se a possibilidade de um oriente maacutegico aos proacute-prios aacuterabes associado agrave China Segundo Jarouche (2010 p 40) texto de autoria duvidosa cuja elaboraccedilatildeo se situa entre os seacuteculos XIV e XV traz a expressatildeo ldquoChina da Chinardquo semelhante a outra que aparece no Livro das mil e uma noites (ldquoNas peniacutensulas da Iacutendia e da Indochinardquo) revelando todo um imaginaacuterio ligado agraves regiotildees extremas do globo O proacuteprio Jarouche (2010 p 40) traduz trechos deste tratado numa nota de sua ediccedilatildeo das Noites nos quais podemos observar esta percepccedilatildeo de lsquoorientalismo dos orientaisrsquo tambeacutem eivado de histoacuterias maravilhosas

Quanto agrave China da China ela fica no fim do mundo a Oriente natildeo existindo depois dela senatildeo o mar oceano A capital da Grande China se chama Assilagrave As notiacutecias desse povo natildeo nos chegam devido agrave grande distacircncia e conta-se que o rei deles caso natildeo tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas natildeo eacute considerado rei E se o rei deles tiver muitos filhos e morrer seu reino natildeo seraacute herdado senatildeo por aquele que for o mais haacutebil na pintura e no desenho

Em seu excelente estudo intitulado Pelo amor ao saber (2006) que visou revelar um orientalismo diverso do olhar negativista sobre o tema a exemplo do proposto por Edward Said na obra Orientalismo (1978)

Robert Irwin analisou vaacuterias etapas histoacutericas e as leituras distintas que as mesmas propuseram em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves realidades poliacutetica soacutecio-econocircmica e antropoloacutegica dos povos aacuterabes mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave sua literatura Por exemplo a par de um crescente domiacutenio da liacutengua aacuterabe por parte dos filoacutelogos renascentistas e posteriormente iluministas observou-se tambeacutem a necessidade de compreender a rica literatura oriental (incluindo-se a persa) num amaacutelgama com os gecircne-ros e formas claacutessicas que vinham sendo retomados atraveacutes da imitatio classicista num momento em que as proacuteprias liacutenguas vernaacuteculas euro-peacuteias eram confrangidas pela superioridade cientiacutefica do latim

Quando nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XVIII William Jones traduziu obras aacuterabes e persas com o objetivo de apresentaacute-las a um puacuteblico inglecircs era inevitaacutevel que tentasse adequar as estrofes orientais aos gecircneros claacutessicos e assim ele se entusiasmava com ldquopastoraisrdquo ldquoeacuteclogasrdquo persas e assim por diante [] Por outro lado quem estava entediado com as grandes obras da antiguidade e achava que as artes e os conhecimentos dos antigos gregos e romanos tinham sido supervalorizados (e esses eram uma minoria vocife-rante) agarrava-se agrave literatura oriental como algo que fornecia um tesouro de novas imagens modos de expressatildeo e heroacuteis que poderiam proporcionar uma fuga agraves restriccedilotildees dos precedentes claacutessicos (Irwin p 103)

Contudo aos poucos e apesar da normatividade tiacutepica destas eacutepocas uma nova percepccedilatildeo de que outros gecircneros e formas literaacuterias poderiam ampliar a visatildeo artiacutestica foi se consolidando entre o puacuteblico leitor culto Na fase iluminista a descoberta do Livro das mil e uma noi-tes pelo Ocidente associou-se entre outros exemplos agrave assimilaccedilatildeo de Shakespeare por Lessing e de Rousseau por Herder fazendo brotar os primeiros veios das correntes preacute-romacircnticas Isso eacute corroborado por Kidson (p 418) quando afirma

Essa mudanccedila de fidelidade coincidiu com uma alteraccedilatildeo resoluta nas refle-xotildees sobre o que eacute ou natildeo eacute arte e sobre seu lugar no espectro da experiecircncia humana Ateacute o seacuteculo XVIII a teoria artiacutestica preocupara-se de modo mais ou menos exclusivo com a noccedilatildeo do ideal que em certo sentido se traduzi-ria como a pretensatildeo de conhecimento do mundo

Foi entatildeo com o despertar do que este criacutetico chama de ldquoo ele-mento subjetivo da experiecircncia esteacuteticardquo que o maravilhosofantaacutes-tico oriental veio se consolidar peremptoriamente no imaginaacuterio

artiacutestico do Ocidente Daacute-se uma aparente contradiccedilatildeo apoacutes o livro de Winckelmann sobre a cultura claacutessica ldquoa curiosidade que jaacute esta-va levando os europeus a se lanccedilarem em busca da arte grega genuiacutena tambeacutem os levou a outros lugares e logo os colocou diante de obras de imaginaccedilatildeo agraves quais simplesmente natildeo se aplicava o acervo de ideias criacuteticas que haviam herdadordquo (Kidson p 437)

Nesta busca muito contribuiacuteram dois autores franceses que no iniacutecio do seacuteculo XVIII realizaram duas grandes experiecircncias ligadas agrave literatura oriental admiradas pelos leitores da eacutepoca O primeiro foi Bartheacuteleacutemy drsquoHerbelot (1625-1695) com sua Bibliothegraveque orientale uma das maiores coletacircneas de textos em prosa e poesia vertidas do aacuterabe no Ocidente O segundo ainda mais importante (mas cuja obra teve o terreno preparado pela Bibliothegraveque) foi Antoine Galland (1646-1715) com sua famosa traduccedilatildeo do Livro das mil e uma noites em tomos publicados de 1704 a 1707 Pode-se dizer que a traduccedilatildeo de Galland ndash a que se somaram outras como a capitaneada em liacutengua inglesa por sir William Hay Macnaghten entre 1814 e 1818 a ediccedilatildeo alematilde de Breslau em doze volumes organizada por Maximilian Habicht e Heinrich Fleischer (entre 1825 e 1843) a de Edward William Lane que saiu entre 1838 e 1841 a do aventureiro e diplomata sir Richard Burton (1885) ndash inspiraraacute todo o preacute-romantismo e romantismo europeus e serviraacute como uma das fontes para o surgimento tanto da novela goacutetica como do fantaacutestico setecentista e oitocentista Como afirma Irwin (p 141) DrsquoHerbelot e Galland foram os primeiros orientalistas a se dedicar com seriedade agrave literatura secular do Oriente Meacutedio e a traduccedilatildeo de Galland das Noites tornou-se rapidamente um enorme sucesso de vendas sendo logo convertida para outros idiomas europeus O mais interessante eacute que Galland acalentava uma certa visatildeo antropoloacutegica em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites indiretamente corroborando (ou quando muito sugerindo) aquela naturalidade da sobrenaturalidade delegada ao Oriente pelos autores ocidentais do medievo e do Renascimento em pleno contexto racionalista Segundo Irwin (p 141)

[Galland] pretendia que sua traduccedilatildeo da coleccedilatildeo de histoacuterias medievais [das Noites] fosse natildeo apenas uma diversatildeo literaacuteria mas tambeacutem uma obra de instruccedilatildeo que informaria aos leitores como era o modo de vida dos povos orientais e com esse objetivo inseriu numerosos comentaacuterios explicativos em sua traduccedilatildeo Na introduccedilatildeo ao primeiro volume ele escreveu que parte

do prazer de ler essas histoacuterias estava em tomar conhecimento ldquodos costu-mes e maneiras dos orientais bem como das cerimocircnias tanto pagatildes como maometanas pois essas coisas estatildeo mais bem descritas nesses contos que nos relatos de escritores e viajantesrdquo

Eacute bem conhecida a influecircncia que o Livro das mil e uma noites operaraacute nas primeiras narrativas goacuteticas sendo o caso de Vathek de William Beckford o mais paradigmaacutetico (Beckford por sinal estudava o aacuterabe e chegou a traduzir alguns trechos das Noites sendo por algum tempo detentor de um dos mais importantes manuscritos deste livro atualmente guardado na Biblioteca Bodleiana de Oxford) Teoacutericos des-tacados do primeiro romantismo alematildeo (ciacuterculo de Jena) a exemplo de Friedrich Schlegel que definiram pioneiramente o proacuteprio movimento eram grandes conhecedores da obra e a liam no original aacuterabe A lis-ta de autores romacircnticos e fantaacutesticos que buscaram atraveacutes da visatildeo libertaacuteria proporcionada pela literatura aacuterabe e mais especificamente o Livro das mil e uma noites a possibilidade de criaccedilatildeo de seus proacute-prios temas personagens e enredos mirabolantes eacute infinita Potocki Byron Chateaubriand Coleridge Gautier Nerval Tieck Jean-Paul Hoffmann Poe Carvalhal Borges eacute mais difiacutecil encontrar quem natildeo tenha homenageado o Oriente em suas obras ligadas ao fantaacutestico do que o contraacuterio e mais de uma tese jaacute deve ter sido escrita sobre o tema Essa influecircncia eacute em grande parte citada literalmente ou entatildeo traba-lhada na forma de intertextos reescrituras e ateacute paroacutedias

Todorov na Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica se mostra inquieto di-versas vezes em relaccedilatildeo agrave classificaccedilatildeo das Noites tratando-as como ldquocontos maravilhosos mais do que contos de fadasrdquo (2007 p 60) ressaltando-lhes os aspectos de ldquomaravilhoso hiperboacutelicordquo (em que ldquofenocircmenos satildeo sobrenatu-rais soacute por suas dimensotildees superiores agraves que nos resultam familiaresrdquo ndash p 60) ldquomaravilhoso exoacuteticordquo (nos ldquoacontecimentos sobrenaturais [que apare-cemsatildeo descritos] sem apresentaacute-los como taisrdquo ndash p 61) ldquomaravilhoso ins-trumentalrdquo (na existecircncia de ldquoadiantamentos teacutecnicos irrealizaacuteveis na eacutepoca descrita mas depois de tudo perfeitamente possiacuteveisrdquo ndash p 62) e assim por diante O criacutetico buacutelgaro analisa ainda a linguagem e os procedimentos nar-rativos das Noites prenhes de sugestotildees fantaacutesticas e maravilhosas (efetiva-mente mais maravilhosas do que fantaacutesticas segundo sua teoria) e por fim chega agrave constataccedilatildeo de que exigiriam ldquoum estudo especialrdquo (p 60) que seria hipoteticamente escrito noutra ocasiatildeo

A associaccedilatildeo de Todorov das Noites a um princiacutepio maravilhoso estaacute a meu ver correta Mas ndash poderiacuteamos acrescentar ndash um maravilhoso que por sua vez fecundou o fantaacutestico se nos reportarmos novamente agraves cha-ves de leitura deste autor Como dito a influecircncia que as Noites exerceram na imaginaccedilatildeo literaacuteria setecentista e oitocentista chegando agrave contempo-raneidade eacute clara visto que a maior parte dos procedimentos narrativos e de um imaginaacuterio desconstrutor da noccedilatildeo cartesiana de real ndash apesar da jaacute propalada naturalidade da sobrenaturalidade (ldquosobre-humanidaderdquo na boa expressatildeo cunhada pelo tradutor brasileiro das Noites Mamede Mustafa Jarouche durante sua conferecircncia no 2ordm CLIF-PE noccedilatildeo de uma medida acima do humano mas dentro da natureza) existente no contexto do original aacuterabe que aparece natildeo raro sob a forma chistosa ndash tiacutepicos do modo fantaacutestico jaacute estatildeo presentes na obra Em suma o Livro das mil e uma noites antecipa padrotildees e caracteriacutesticas caros ao discurso fantaacutestico dentre os quais poderiacuteamos enumerar alguns

bullcerta visatildeo associada a um estranhamento pela repeticcedilatildeo de acontecimentos

bullo inesperado o inusitado

bulla completa quebra da verossimilhanccedila e decoro classicistas funda-mentais para a compreensatildeo de uma lsquonovarsquo verossimilhanccedila imanen-te agrave obra literaacuteria

bullo chiste a metalinguagem o prazer da e pela narrativa (lembremo-nos do caso do xeique que tendo poupada sua vida por um agressivo ifrit opta em permanecer no local em que seria morto apenas pelo pra-zer de ouvir novas histoacuterias de outros condenados que tambeacutem tenta-vam pela narrativa de suas proacuteprias aventuras delirantes se salvar)

bullas relaccedilotildees inusuais (infinitas bastando-nos lembrar do caso dos peixes coloridos que toda vez que eram postos numa panela inicia-vam a falar ao tempo que se abria uma fenda na parede e dela saiacutea uma estranha mulher repetidamente mas sem elos causais explici-tados no texto gerando-se percepccedilotildees e sugestotildees aleatoacuterias) tais re-laccedilotildees tambeacutem adentram o territoacuterio das metaacuteforas poeacuteticas ainda mais evidenciadas pelas traduccedilotildees em outros idiomas que custam a chegar ao sentido original do aacuterabe (veja-se a descriccedilatildeo de uma per-sonagem atraveacutes de siacutemiles aparentemente esdruacutexulos mas capazes

de despertar novas imagens poeacuteticas ldquoEla fazia o sol iluminado se envergonhar e parecia uma estrela brilhando no alto ou um pavilhatildeo de ouro ou uma noiva desvelada ou um peixe egiacutepcio na fonte ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite []rdquo ndash 2010 p 113)

bulla mistura de reinos (lembremo-nos do priacutencipe que era metade hu-mano metade pedra negra) o grotesco

bullreinvenccedilotildees e relativizaccedilotildees do tempo (num dos melhores episoacute-dios das Noites tenta-se recriar perfeitamente em todos os detalhes um dia completo do passado ocorrido 12 anos antes) quebras tem-porais e de espaccedilo nonsense exaltaccedilatildeo do novo e do excecircntrico pela viagem o inquietante familiar (no sentido do unheimlich freudiano a exemplo da descoberta de novas e insuspeitas paisagens numa geo-grafia ateacute entatildeo considerada familiar e totalmente apreendida nova-mente no caso do lago dos peixes coloridos)

bullexerciacutecio do coloquialismo cultura popular possiacuteveis leituras textu-ais moralistas e alegoacutericas que contudo natildeo eclipsam o sentimento do estranho e do fantaacutestico sentimento de infinito atraveacutes de uma histoacuteria infinita gerada pelo gecircnio imaginativo de Sahrazad (noccedilatildeo de partes distintas relatos diversos ndash incluindo a mistura de gecircneros poesia e prosa bem como prosa poeacutetica ndash enfeixados num todo que eacute coeso a seu modo aparentemente uma estrutura lsquoem abertorsquo progressiva)

A partir destas e de outras caracteriacutesticas presentes ao texto das Noites cuja liccedilatildeo a literatura fantaacutestica ulterior saberaacute aprender po-deremos analisar elementos intertextuais em uma infinidade de casos Muito longe de tentar esgotar o assunto elencarei a tiacutetulo ilustrativo trecircs exemplos ou maneiras baacutesicas pelos quais alguns autores reescre-veram o Livro das mil e uma noites primeiramente irei explorar proce-dimentos e sugestotildees intertextuais a partir de alguns vislumbres da obra do contista alematildeo E T A Hoffmann (1776-1822) depois um exemplo de recorte e reconstituiccedilatildeo utilizando excertos de um conto do escritor portuguecircs Aacutelvaro do Carvalhal (1844-1868) e por uacuteltimo um caso de escritura completa re-modalizada num conto do escritor norte-ameri-cano Edward Lucas White (1866-1934) A escolha destes autores e sua ordem natildeo satildeo aleatoacuterias e revelam neste recorte cronoloacutegico como a influecircncia do orientalismo maacutegico natildeo cessa de fins do seacuteculo XVIII ateacute chegarmos ao seacuteculo XX (e obviamente tambeacutem nos dias atuais)

Assim em meio agrave apologia do grotesco evidenciada pelas Noites seria possiacutevel antever naquele curioso corcunda do episoacutedio do casamento de Dadruddin Hasan de Basra o precursor duma longa linhagem de perso-nagens bufotildees que seraacute trabalhada pelo fantaacutestico autoconsciente a exem-plo do famoso Pequeno Zacarias vulgo Cinaacutebrio de E T A Hoffmann A pergunta natildeo eacute descabida e a leitura atenta das Noites sugeriraacute mais de um intertexto em relaccedilatildeo agraves obras do genial contista alematildeo Por exemplo em meio agrave aventura do cristatildeo com o rei da China (episoacutedio narrado nas Noites) descreve-se um aposento composto por um jardim maacutegico que tambeacutem poderia antecipar o jardim das serpentinas hoffmannianas

O almocreve me conduziu ateacute a casa paguei-lhe um quarto de dinar ele re-cebeu e foi-se embora Bati agrave porta e fui recebido por duas pequenas meni-nas brancas que me disseram ldquoEm nome de Deus entre pois nossa patroa natildeo dormiu esta noite tal a alegria por sua vindardquo Adentrei o paacutetio e me vi diante de uma casa agrave qual se acessava subindo sete degraus e que tinha por toda a sua circunferecircncia janelas dando para um jardim com todos os gecircne-ros de frutas e aves com coacuterregos abundantes que eram uma diversatildeo para os olhos no centro havia uma fonte e em cada um de seus quatro acircngulos uma cobra de ouro vermelho tranccedilado da boca das quatro cobras fluiacutea uma aacutegua que parecia ser peacuterola e gema (2010 p 283)

Compare-se agora este excerto do Livro das mil e uma noites com outro presente na ldquoSexta vigiacuteliardquo do conto O vaso de ouro de Hoffmann

Quando Anselmo olhou para as plantas e aacutervores pareceu-lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente Agrave sombra densa dos ciprestes reluziam ba-cias de maacutermore de onde afloravam estranhas estaacutetuas que salpicavam raios cristalinos que caiacuteam sobre brilhantes corolas de liacuterios vozes singulares ressoa-vam e sussurravam atraveacutes do bosque de plantas extraordinaacuterias e um esplecircn-dido perfume espalhava-se como ondas O arquivista desaparecera e Anselmo soacute avistava uma enorme corbelha de ardentes liacuterios cor de puacuterpura e de fogo Extasiado pela visatildeo pelo doce perfume do jardim encantado Anselmo esta-cou completamente enfeiticcedilado (Hoffmann 1993 p 40)

Tais anaacutelises satildeo importantes para observarmos ateacute que ponto a ima-ginaccedilatildeo romacircntica recriou ndash obviamente com criatividade autoral ndash o Livro das mil e uma noites Ao falar em procedimentos e sugestotildees inter-textuais refiro-me aos intertextos que satildeo sugeridos em relaccedilatildeo agraves Noites pelos textos fantaacutesticos posteriores sem que haja uma clara marcaccedilatildeo de que delas proviriam A influecircncia estaacute laacute mas soacute podemos cogitaacute-la nas

entrelinhas O mais proacuteximo que observamos dessa marca inicial ou iacutendi-ce no conto O vaso de ouro se encontra num excerto da ldquoTerceira vigiacuteliardquo Apoacutes a narraccedilatildeo de histoacuterias delirantes referentes a liacuterios maacutegicos e perso-nificaccedilotildees alquiacutemicas como a do ldquojovem Phosphorusrdquo efetivada pelo es-tudante Anselmo responde-lhe o escrivatildeo Heerbrand ldquolsquoPermita-me caro senhor arquivista mas isto natildeo passa de frivolidades orientaisrsquordquo (p 21) as-sociando chistosamente a narrativa fantaacutestica descrita anteriormente aos desbordamentos imaginativos da escrita aacuterabe (a influecircncia das Noites na obra de Hoffmann estaacute diluiacuteda das mais diversas maneiras relatei apenas um breve exemplo para ilustrar a noccedilatildeo de sugestatildeo intertextual)

A influecircncia das Noites se torna mais evidente quando as obras fantaacutes-ticas citam-nas nominalmente Em liacutengua portuguesa poderemos explo-rar alguns trechos do conto oitocentista A febre do jogo em que Aacutelvaro do Carvalhal ndash o autor que mais se aproximou em Portugal do romantismo imaginativo e espectral tiacutepico das culturas germacircnica e anglo-saxatilde ndash natildeo soacute acusa nominalmente tal intertexto mas tambeacutem retira um trecho completo das Noites e o adapta a sua proacutepria histoacuteria Observemos alguns elementos e a dicccedilatildeo goacutetica do conto hauridos tambeacutem de outras leituras romacircnticas

Laacute fora desprendia a tempestade as borrascosas asas pelo entenebrecido espaccedilo Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas vidraccedilas O ceacuteu abrasava-se em clarotildees efeacutemeros E a terra revolvia-se accediloitada pelos iacutempe-tos recrudescentes de sucessivos furacotildees A imobilidade sombria das cate-drais antigas dos torreotildees cocircnicos de mourisca faacutebrica dos zimboacuterios dos edifiacutecios circulares e colossais iluminada a espaccedilos pelas fosforescecircncias paacutelidas dos relacircmpagos dava ao espectaacuteculo um luacutegubre caraacutecter Dir-se-ia que o abismo vomitara legiotildees de democircnios que ameaccedilavam este nosso acanhado canto do mundo com um formidaacutevel torvelinho reduzindo-o a arena de vertiginosas coreias (Carvalhal 2004 p 23)

A febre do jogo configura o tiacutepico conto influenciado pela peccedila no-turna (Nachtstuumlck) alematilde a explorar os desvatildeos psicoloacutegicos dos per-sonagens juntamente agraves descriccedilotildees distoacutepicas dos loci horrendi A certa altura Mariano seu atormentado protagonista afirma ldquopintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas grandezas de um conto das mil e uma noitesrdquo (p 28) associando nomeadamente as excentri-cidades luacutegubres da diegese ao universo ficcional das Noites inclusive como afirmado reconstituindo-as em vaacuterios momentos de sua proacutepria trama narrativa Quando Mariano segue o espectro do pai que acabara de

assassinar ndash numa lsquocatabase goacuteticarsquo que por sinal jaacute fora sugerida entre outras por algumas ldquonoitesrdquo (capiacutetulos) do ramo siacuterio do Livro das mil e uma noites (narrativas do primeiro e terceiro dervixes) ndash adentra um antigo templo aacuterabe remodelado pelo cristianismo e eacute tomado por visotildees extaacuteticas e aterrorizantes soacute finalizadas quando aparentemente eacute trazido de volta a si (sugerindo-se fantasticamente que toda a experiecircncia preacutevia natildeo passara de deliacuterio) estando agora na cidade de Naacutepoles Daacute-se entatildeo o que chamei de reconstituiccedilatildeo ou seja a recriaccedilatildeo de um trecho original das Noites (somente um trecho ou trechos ndash eacute bom destacar) numa outra diegese autoral e ineacutedita que em todo o caso acusa textualmente esta influecircncia Leiamos o excerto do conto de Carvalhal

De repente paro esmagado num ciacuterculo de ferro Ergue-se um brado solu-ccedilante e comprimido Vozes confusas troavam de cada lado Olhei Caiacuteam sobre mim os raios tisnadores de um sol brilhante Estava no zeacutenite o sol De todas as partes acelerada se ajuntava a populaccedila Alguns homens natildeo poucos cheios de suor e de cansaccedilo reprimiam-me nos braccedilos atleacuteticos Entre esses homens descobri minha matildee que desalinhada e lacrimosa cla-mava estorcendo os braccedilos em veemente dor- Louco loucoCravei nela os olhos estupefactoAquele brado de uma afliccedilatildeo de matildee arrefeceu-me ateacute agrave ponta dos cabelosTentei reflectir mas faltaram-me ideias Tentei recordar mas natildeo tive me-moacuteria O que eu tinha era o vaacutecuo na cabeccedila Poreacutem natildeo sei como compe-netrei-me da medonha verdadeEnvergonhado quis furtar-me agraves vistas dos curiosos E soacute nesse instante reparei que estava nu Eu Nu de dia numa praccedila puacuteblica Como acreditaacute-lo Estava nu Mas trazia pendente dos ombros a coberta esfarrapada do meu leito como um manto real- Louco louco repeti entatildeo num choro coleacuterico de desespero atroz E espumando de raiva rolei de chofre exacircnime nos braccedilos que me prendiam- Luacutecio foi a minha primeira exclamaccedilatildeo ao volver agrave existecircncia - Onde estou eu foi a minha primeira perguntaLuacutecio de peacute agrave cabeceira da minha cama estava embevecido em minuciosa anaacutelise Parecia determinado a natildeo perder uma soacute das fases por que ia pas-sando a doenccedila nem algum novo sintoma que acaso se revelasse- Desconheccedilo esta casa Onde estamos prossegui- Em Naacutepoles- Naacutepoles- Justamente [] (p 45-46)

A modalizaccedilatildeo fantaacutestica do conto de Carvalhal transforma agora pelo aparente vieacutes da loucura e do deliacuterio o personagem Luacutecio Durante todo o conto agira e fora descrito agrave semelhanccedila do Mefistoacutefeles goethia-no sendo o responsaacutevel por toda a sorte de horrores que se abateu sobre Mariano A partir deste momento sugere-se um amigo fiel que ao lado da matildee do protagonista teme pela sauacutede mental do mesmo Fica no ar a duacutevida seraacute toda esta cena mais um dos ardis do diaboacutelico Luacutecio O que importa eacute a presenccedila da recriaccedilatildeo das Noites jaacute que na narraccedilatildeo de um dos capiacutetulos da obra ldquoOs vizires Nuruddin Ali do Cairo e seu filho Badruddin Hasan de Basrardquo aparece a mesma cena

[] O dia se iluminou a alvorada irrompeu e os portotildees de Damasco fo-ram abertos As pessoas saiacuteram e viram Badruddin Hasan jovem gracioso com roupas miacutenimas barrete descoberto e tuacutenica sem os calccedilotildees Exausto devido agrave noite em claro agrave procissatildeo com os ciacuterios e ao peso que carregara o jovem dormia estirado e roncava [] Disse um outro [popular] ldquoCoitados dos filhos do povo Vejam o que aconteceu a esse rapaz Estava bebendo talvez e quis parar e ir cuidar da vida mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu assim pelado Ou quem sabe talvez tenha confundido a porta de sua casa com o portatildeo da cidade e encontrando-o trancado dormiu aqui mesmordquo [] Badruddin Hasan acordou e vendo-se diante dos portotildees de uma cidade cercado por homens de toda espeacutecie ficou atarantado e per-guntou ldquoOnde estou minha gente O que tecircm vocecircsrdquo Responderam ldquoNoacutes encontramos vocecirc aqui deitado na hora da chamada para a oraccedilatildeo da alvo-rada Eacute soacute o que sabemos a seu respeito Onde vocecirc dormiu esta noiterdquo Ele respondeu ldquoPor Deus minha gente que esta noite eu estava dormindo do Cairordquo Algueacutem disse ldquoOuccedilam soacuterdquo Outro disse ldquoDeem-lhe um tapa com forccedilardquo E todos lhe disseram ldquoMeu filho vocecirc estaacute doido Dormir no Cairo em acordar em Damascordquo [] Outro disse ldquoEle estaacute loucordquo e todos grita-ram ldquoloucordquo e agrave forccedila resolveram que ele enlouquecera [] (p 239)

O leitor das Noites sabe que Hasan fora transportado pelos ares por ifrits de uma cidade a outra dentro da perspectiva maravilhosa mas o personagem natildeo tem ideia disso pois estava dormindo no momento do rapto e chega a cogitar posteriormente que realmente sonhara es-tando em Damasco todo o dia e a vida anterior no Cairo gerando-se o nonsense Jaacute o texto de Carvalhal natildeo apresenta iacutendice preacutevio algum sugerindo que a brusca passagem de uma cidade a outra poderia ser uma ilusatildeo gerada pela alienaccedilatildeo de Mariano sem maiores explicaccedilotildees A bricolagem intertextual corrobora os aspectos delirantes e fantaacutesti-cos (pela indefiniccedilatildeo do que realmente ocorreu com o protagonista) do

conto de Carvalhal mas como afirmado compotildee apenas uma passa-gem episoacutedica de A febre do jogo da maior importacircncia eacute verdade con-tudo sem assegurar a totalidade da diegese

Passemos agora a explorar por fim um caso em que a escritura comple-ta re-modalizada em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites ocorre a partir de um conto de Edgar Lucas White intitulado Amina que apesar de escrito na primeira deacutecada do seacuteculo XX faz uso de procedimentos tiacutepicos do horror e fantaacutestico oitocentistas tomando ainda como base o exotismo orientalista que existiu sob as mais diversas faces em todo o seacuteculo XIX

Amina eacute totalmente baseada em uma das histoacuterias das Noites em que se narra o aparecimento de um suposto ente sobrenatural em meio ao caravanccedilarai e agraves ruiacutenas de cidades antigas intitulada ldquoO filho de rei e a ogrardquo Cumpre transcrevecirc-la integralmente na voz do pescador que a conta ao rei Yunan

Conta-se oacute rei venturoso que certo rei tinha um filho que era grande aman-te de caccediladas Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai o qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz Certo dia saiacuteram ambos e cavalgaram ateacute o deserto O jovem descortinou uma presa e o vizir lhe disse ldquoPegue-a corra atraacutes dessa caccedilardquo O jovem foi atraacutes do animal mas perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto sem saber para que lado ir nem que rumo tomar Entatildeo eis que viu uma jovem chorando no caminho Perguntou-lhe ldquoDe onde vocecirc eacuterdquo Ela respondeu ldquoSou filha de um dos reis da Iacutendia Estava neste deserto cavalgando minha montaria quando fui dominada pelo sono e distraiacuteda caiacute do animal Agora estou longe de todos e assustadardquo Ouvindo as palavras da moccedila o filho do rei lamentou-lhe a situaccedilatildeo e colocou-a na garupa de seu cavalo avanccedilando ateacute topar com umas ruiacutenas A moccedila entatildeo lhe disse ldquoMeu senhor eu pre-ciso satisfazer uma necessidade logo alirdquo e o rapaz a ajudou a descavalgar Ela entrou nas ruiacutenas e o filho do rei foi atraacutes sem saber o que ela era Observando-a poreacutem descobriu tratar-se de uma ogra que fora dizer aos seus filhotes ldquoEu lhes trouxe um jovem bonito e gordinhordquo Os filhotes dis-seram ldquoTraga-o logo mamatildeezinha para que pastemos em seu ventrerdquo Disse o vizir ao ouvir o diaacutelogo deles o rapaz ficou apavorado seus mem-bros se contraiacuteram e temendo por sua vida ele retornouDisse o vizir a ogra saiu atraacutes dele e lhe perguntou ldquoO que vocecirc tem Por que estaacute com medordquo Entatildeo ele se queixou da situaccedilatildeo que estava enfrentan-do e concluiu ldquoIrei sofrer uma injusticcedilardquo Ela lhe disse ldquoSe estaacute para sofrer uma injusticcedila entatildeo peccedila ajuda a Deus altiacutessimo e ele o livraraacute do mal que vocecirc temerdquoDisse o vizir o jovem ergueu as matildeos para o ceacuteu [] e disse ldquoOacute Deus faccedila-me triunfar contra o meu inimigo lsquopois voacutes de tudo sois capazrsquordquo

Disse o vizir quando a ogra ouviu a suacuteplica deixou-o em paz O jovem che-gou satildeo e salvo ateacute o pai e lhe contou a histoacuteria do vizir isto eacute que fora ele que lhe ordenara correr atraacutes da caccedila sucedendo-lhe entatildeo tudo aquilo com a ogra O rei mandou convocar o vizir e executou-o (p 84-85)

Destarte o que constitui um breve episoacutedio narrativa dentro de ou-tra na 15ordf e 16ordf noites do Livro das mil e uma noites (ramo siacuterio) seraacute utilizado para enformar a diegese completa do conto de White consubs-tanciando a diferenccedilagradaccedilatildeo que parte do universo oral e folcloacuterico das ldquoformas simplesrdquo (segundo a terminologia do criacutetico literaacuterio Andreacute Jolles [1976]) passando pelo pioneiro registro literaacuterio das Noites ateacute culminar numa reescritura re-modalizada e autoral no caso o conto Amina

Publicado originalmente na revista The Bellman em 1ordm de junho de 1907 Amina conta a histoacuteria do personagem Waldo um ocidental que se encontra numa pesquisa de campo no deserto em meio agraves milenaacuterias ruiacutenas de civilizaccedilotildees antigas Jaacute na primeira frase da narrativa perce-be-se a atmosfera de pesadelo que entretece a diegese a revelar que a realidade pode assumir graus fantaacutesticos ldquoWaldo cara a cara com a re-alidade do inacreditaacutevel ndash como ele mesmo teria dito ndash estava comple-tamente estupefato Em silecircncio ele deixou-se conduzir pelo cocircnsul do teacutepido escuro do interior pela porta em ruiacutenas ateacute o calor e a claridade ofuscante do desertordquo (White 2007 p 147)

O leitor eacute apresentado in media res a este cenaacuterio desolado que atinge a extensatildeo dos sonhos Trecircs personagens principais Waldo o cocircnsul e Hassan parecem perdidos ao tempo que buscam se defender ou mesmo extirpar certos animais estranhos que aparentemente Waldo observara algum tempo antes

- Hassan ndash [disse o cocircnsul] observe aquiHassan disse algo em persa- Quantos filhotes havia ndash o cocircnsul perguntou a WaldoWaldo nada respondeu- Quantos pequenos vocecirc viu ndash o cocircnsul voltou a perguntar- Vinte ou mais ndash Waldo conseguiu responder- Isso eacute impossiacutevel ndash o cocircnsul retrucou- Parecia haver 16 ou 18 ndash Waldo corrigiu-se Hassan sorriu e resmungou O cocircnsul pegou duas armas das matildeos do guia entregou a Waldo a dele e os dois caminharam ao redor da tumba [] (p 147)

Logo em seguida o aspecto sobrenatural destes seres eacute posto em evidecircncia no momento em que os personagens decidem se separar para caccedilaacute-los O atocircnito Waldo diferentemente do cocircnsul e de Hassan ainda insiste em natildeo acreditar que a experiecircncia anterior poderia ser fruto de sua imaginaccedilatildeo sendo repreendido pelo referido cocircnsul por esta atitude

[] Fique atento ao seu redor Existe a chance quase remota de o macho retor-nar durante o dia ndash eles costumam ser notiacutevagos mas esse covil eacute excepcional [] Vocecirc natildeo deve ter nenhum tipo de sentimentalismo tolo em relaccedilatildeo agrave se-melhanccedila que esses animais possam ter com os seres humanos Atire e atire para matar Natildeo apenas eacute nosso dever exterminaacute-los mas seraacute muito perigoso para noacutes se natildeo o fizermos

Uma gradaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao sobrenatural existe se atentarmos agraves ca-racteriacutesticas destes trecircs personagens que de certa forma iconizam alguns gecircnerossubgecircneros propostos pela teoria todoroviana Hassan o nativo de fala persa poderia representar o olhar do Maravilhoso puro a aceita-ccedilatildeo completa da existecircncia de leis outras talvez desacreditadas em situa-ccedilotildees e topografias distintas O cocircnsul poderia ter refletido inicialmente o olhar do Estranho do ocidental que precisou encontrar certas soluccedilotildees ou respostas para que a existecircncia do insoacutelito fosse explicada de maneira racional e dentro das leis naturais posteriormente abandonadas com a presentificaccedilatildeo efetiva do sobrenatural e o consequente aparecimento do Fantaacutestico-maravilhoso (em que haacute primeiro a hesitaccedilatildeo fantaacutestica se-guida pela aceitaccedilatildeo do Maravilhoso) E por fim na maior parte do texto a experiecircncia do olhar do Fantaacutestico pela ambiguidadeduacutevida instigadas pelo personagem Waldo Contudo eacute importante observar o sobrenatural aceito por Hassan e pelo cocircnsul eacute trabalhado numa via de negatividade que eacute bem diversa por exemplo do Maravilhoso puro dos contos de fa-das aproximando Amina das tiacutepicas narrativas de horror A associaccedilatildeo que o cocircnsul faz dos animais-monstros com a suposta aparecircncia humana revela que o sobrenatural permanece de maneira disfoacuterica e atraveacutes de uma inquietaccedilatildeo trabalhada pela experienciaccedilatildeo do medo Eacute o medo que faz com que ocidentais e orientais se unam em prol do total extermiacutenio destes seres ainda segundo a visatildeo do cocircnsul

Haacute pouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanas po-reacutem nos poucos pontos em que a opiniatildeo puacuteblica existe ela atua com pron-tidatildeo e vigor Se haacute um assunto sobre o qual natildeo haacute discordacircncia eacute que eacute

incumbecircncia de todos os homens ajudar a erradicar essas criaturas O velho costume biacuteblico de apedrejar ateacute a morte eacute o modo de linchar os nativos por aqui Esses asiaacuteticos modernos satildeo capazes de aplicaacute-lo a qualquer pessoa considerada negligente no combate a esses monstros Se deixarmos um de-les escapar e as pessoas ficarem sabendo podemos dar iniacutecio a um surto de preconceito racial que vai ser difiacutecil enfrentar Portanto atire sem hesitaccedilatildeo ou piedade - Entendi- Natildeo me importa se vocecirc entende ou natildeo ndash disse o cocircnsul ndash Quero que vocecirc aja Atire se for preciso e de modo certeiro ndash E partiu (p 148-149)

Eacute interessante como se pode observar nas entrelinhas deste excerto a discussatildeo da outridade OcidenteOriente pela modalizaccedilatildeo fantaacutesti-ca O olhar colonial se adensa no momento em que se fala da ldquopouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanasrdquo e trata do tema do preconceito racial entrevisto nas possiacuteveis sublevaccedilotildees dos coloni-zados inserindo-se ainda o ritual do apedrejamento dentro do contexto especiacutefico do conto Ateacute que ponto aquela insistente frase a corroborar com as usuais toacutepicas do discurso imperialista ldquoatire sem hesitaccedilatildeo ou piedaderdquo poderia ser associada a essa relaccedilatildeo de outridade De fato a sabedoria do sobrenatural de Hassan e o olhar de simpatia que o narra-dor tem para com este personagem subalterno natildeo chega a desconstruir o discurso da superioridade europeia Mas o que importa para a presen-te anaacutelise eacute o fato de que o cocircnsul pede a Waldo um pragmatismo que continua por via oposta a endossar o olhar fantaacutestico deste uacuteltimo eacute preciso agir e natildeo compreender Destarte continuamos no territoacuterio do insoacutelito potencializado pelas novas marcaccedilotildees que o texto ofereceraacute relativas agrave passagem do Ocidente para o Oriente

Na manhatilde de sua aventura inesqueciacutevel Waldo acordou cedo As experiecircn-cias de suas viagens ao mar as visotildees de Gibraltar em Port Said no canal em Suez em Aden em Muscat e em Basrah propiciaram uma transiccedilatildeo ina-dequada entre a regularidade decorosa da vida escolar e domeacutestica na Nova Inglaterra e a maravilha daquelas imensidotildees deseacuterticas e suas paisagens de tirar o focirclego Tudo parecia irreal mas a veracidade daquela estranheza o perturbava tanto que ele natildeo conseguia sentir-se agrave vontade nem dormir profundamente em uma barraca Depois de deitar-se passava muito tempo acordado e levanta-va cedo como naquela manhatilde no iniacutecio do falso alvorecer (p 149)

A teacutecnica do sfumato das artes plaacutesticas mistura sutil de matizes e gra-dientes sem transiccedilotildees abruptas natildeo poderia ser associada a esta passagem A movecircncia Ocidente-Oriente eacute acompanhada por uma seacuterie de fenocircme-nos estranhos que gera uma quebra ontoloacutegica em relaccedilatildeo ao real atraveacutes de choques inesperados que acabam inserindo o personagem Waldo num estado quase delirante corroborado pelo sol ostensivo falta de sono esgo-tamento nervoso ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas (costuma beber ldquoconhaque purordquo ndash p 147) procedimentos caros ao gecircneromodo fantaacutestico

Durante a noite em meio ao acampamento Waldo sente necessida-de de passear e contemplar pessoalmente no deserto as constelaccedilotildees e o famoso pleniluacutenio tatildeo decantado pelo Livro das mil e uma noites em me-taacuteforas liacutericas geralmente associadas agrave beleza feminina Sua relaccedilatildeo com o deserto eacute um tanto contraditoacuteria ansiava uma experiecircncia de libertaccedilatildeo e a realidade se mostrava contraacuteria opressora Pensava que o perigo maior da viagem de exploraccedilatildeo seriam os soldados curdos logo desmistificados como paciacuteficos Na realidade os perigos eram outros como deu a enten-der Hassan o personagem mediador entre o visiacutevel e o invisiacutevel

Hassan falava um pouco de inglecircs e contava-lhe histoacuterias sobre espiacuteritos ma-lignos espectros e outros estranhos seres lendaacuterios sobre o democircnio das ruiacute-nas surgindo como ser humano falando todos os idiomas sempre agrave procura de infieacuteis sobre a mulher cujos peacutes eram virados com os calcanhares para a frente levando os imprudentes a um poccedilo onde os afogava sobre os fan-tasmas malignos dos salteadores mortos mais terriacuteveis que os vivos sobre o espiacuterito incorporado em um burro ou em uma gazela levando seus persegui-dores agrave beira do precipiacutecio parecendo continuar a correr sobre uma areia que natildeo passava de uma simples miragem que se dissolvia [] (p 151)

O sobrenatural aparece aqui numa de suas facetas literaacuterias mais carac-teriacutesticas ligada agrave oralidade A cultura lsquoprimitivarsquo a ele associada eivada de crendices antiteacuteticas ao logos natildeo raras vezes na experiecircncia do insoacutelito in-verte a polaridade e passa a funcionar justamente como logos dentro do so-brenatural toacutepica relativamente comum das histoacuterias de horror Os perigos iniciais ldquovagos e imaginaacuteriosrdquo (p 151) acabaratildeo ganhando concretude em meio ao deserto locus geralmente propiacutecio ao intervalo que vai da imagi-naccedilatildeo agrave miragem um natildeo-lugar ou espaccedilo com outra dinacircmica de tempo

Olhou ao redor contemplando aquela vasta desolaccedilatildeo e o ceacuteu de um azul-turquesa uniforme arqueando-se sobre o deserto Montanhas avermelhadas e

distantes pareciam amontoar-se sobre colinas mais proacuteximas que enchiam a paisagem amarela sem diminuir-lhe a monotonia Areia e rochas com poucos galhos finos formavam a paisagem em volta alterada aqui e ali pela presenccedila de ruiacutenas brancas ou acinzentadas Natildeo fazia muito tempo que o sol nascera mas a superfiacutecie toda do deserto tremulava com o calor [] (p 152)

Eacute nesta fronteira cronotoacutepica cuja luminosidade excessiva mais con-funde do que refrata mimeticamente o aspecto das coisas que lhe apa-receraacute entatildeo a figura esquisita de uma mulher em meio agraves ruiacutenas com-postas por ldquotumbas preacute-histoacutericas asiaacuteticas persas partas sassacircnidas e muccedilulmanasrdquo (p 151) Novamente observamos as modalizaccedilotildees tiacutepicas do fantaacutestico e do horror que intentam causar estranhamento no leitor

Todas as mulheres do vilarejo que ele jaacute vira usavam ldquoyashmaksrdquo ou alguma espeacutecie de pano ou veacuteu para cobrir o rosto Aquela mulher estava sem veacuteu e sem qualquer pano na cabeccedila Usava um tipo de veste marrom-amarelada que cobria seu corpo do pescoccedilo aos calcanhares sem marcar-lhe a cintura Seus peacutes apesar da areia escaldante estavam descalccedilosAo perceber a presenccedila de Waldo ela parou e olhou para ele que lhe de-volveu o olhar Ele notou que a posiccedilatildeo dos peacutes da mulher natildeo parecia com a dos europeus natildeo se voltavam para fora mas com os lados de dentro paralelos Ela natildeo usava tornozeleiras e pulseiras nem colar ou brincos Ele achou que os braccedilos dela eram os mais musculosos que jaacute tinha visto em um ser humano As unhas eram pontudas e longas tanto nas matildeos quanto nos peacutes Seu cabelo era preto curto e desgrenhado mas mesmo assim ela natildeo parecia selvagem Seus olhos sorriam e seus laacutebios esboccedilavam um sorriso apesar de natildeo se separarem sem mostrar os dentes por traacutes deles (p 152)

Nestas descriccedilotildees meticulosas das caracteriacutesticas inquietantes da personagem observamos como White reescreveu amiudadamente o epi-soacutedio do Livro das mil e uma noites contudo sem lhe alterar substancial-mente o enredo O priacutencipe aacuterabe se transformou em Waldo um ator-mentado ocidental perdido em meio agraves vastidotildees dos desertos do Oriente acompanhado por personagens secundaacuterios que natildeo existiam no texto original O encontro com uma mulher solitaacuteria se daacute no mesmo locus en-quanto ambos estatildeo perdidos (lembremos tambeacutem que a personagem da mulher solitaacuteria em meio aos bosques a se revelar ulteriormente como o diabo a um nobre eacute comum nas novelas medievais de cavalaria europeia) A oraccedilatildeo do priacutencipe aacuterabe que repele a ogra seraacute em Amina substituiacuteda por um tiro certeiro do personagem cocircnsul que abateraacute a mulher-mons-tro no justo momento em que teria matado Waldo juntamente aos filhos

Entatildeo como se daraacute a re-modalizaccedilatildeo anunciada anteriormente que o conto de White operaraacute em relaccedilatildeo ao texto original Ela estaacute configu-rada basicamente na maneira como o maravilhoso do episoacutedio do Livro das mil e uma noites se converteraacute em horror autoconsciente em Amina pelo modus operandi do estranhamento a gerar um sem-nuacutemero de en-trechos A mulher-monstro de White por exemplo conversa com Waldo em inglecircs contudo ldquoenquanto ela falava seus laacutebios natildeo se abriamrdquo (p 152) Ela se comunica ldquocantarolando as palavrasrdquo (p 153) e eacute descrita no ato de se mover em todo o potencial de uma escritura de estranhamento

Ela se locomovia sem fazer barulho e com rapidez Waldo mal conseguia acompanhaacute-la No percurso Waldo por vezes seguia atraacutes e notava como suas vestes cobriam suas costas a cintura estreita e os quadris bem forma-dos Sempre que se apressava e conseguia alcanccedilaacute-la ele a olhava com curio-sidade um tanto confuso por sua cintura tatildeo bem definida atraacutes natildeo ter uma forma definida na frente por seu contorno do pescoccedilo aos joelhos totalmente sem forma sob as roupas natildeo marcar sua cintura natildeo sugerir firmeza ou flacidez Da mesma maneira observava o brilho em seus olhos e os laacutebios extremamente vermelhos e finos (p 153)

Este monstro sai das classificaccedilotildees e dualismos tiacutepicos natildeo eacute nem ldquocristatildeordquo nem ldquomuccedilulmanordquo como diz o texto mas uma terceira coisa inominada Se diz pertencente ao ldquopovo livrerdquo e tal expressatildeo natildeo seraacute explicada a posteriori fazendo com que permaneccedilamos em leituras po-lissecircmicas A carga de horror criada pela narrativa eacute excepcional fazendo com que Amina se constitua em paradigma do gecircnero ainda mais pela vertente do orientalismo A certa altura a personagem homocircnima afirma conhecer a localizaccedilatildeo do acampamento de Waldo que este ansiava reen-contrar sugerindo tambeacutem nas elipses das modalizaccedilotildees do horror que andava rondando suas cercanias e observando os protagonistas de manei-ra incoacutegnita O texto eacute eliacuteptico por natildeo explicitar nada sempre sugerindo possibilidades Ao adentrar a caverna em que a mulher parecia habitar na realidade uma antiga tumba profanada coisas estranhas embora pos-siacuteveis (dentro das medidas do real empiacuterico) passam a ocorrer (Waldo a seguira antes de retornar ao acampamento no intuito de beber aacutegua)

Por um momento ficou cego pela transiccedilatildeo do brilho insistente do deserto para a sombra do interior da tumba []Agrave medida que seus olhos se acostumaram com a falta de luz ele teve um tal susto que ficou em peacute Parecia que por todos os lados aquele espaccedilo estava

fervilhante de crianccedilas nuas Levando em conta sua inexperiecircncia avaliou que elas tinham 2 anos de idade mas moviam-se com a destreza de garotos de 8 ou 10 anos - De quem satildeo essas crianccedilas ndash ele perguntou- Minhas- Todas suas- Todas minhas ndash ela respondeu de modo curioso- Mas haacute vinte delas ndash ele gritou- Vocecirc conta mal no escuro ndash ela disse ndash Haacute menos do que isso- Mas com certeza haacute uma duacutezia ndash ele disse rodando sobre si cercado pelas crianccedilas que danccedilavam e saltavam agrave sua volta- O povo livre tem famiacutelias grandes ndash ela explicou- Mas todos parecem ter a mesma idade ndash Waldo exclamou com a liacutengua seca em contato com o ceacuteu da bocaEla riu um riso desagradaacutevel batendo as matildeos Ela estava entre ele e a por-ta e como a maior parte da luz vinha da porta ele natildeo conseguia ver seus laacutebios []Waldo estava confuso e sentou-se novamente As crianccedilas circularam a seu redor conversando rindo brincando fazendo ruiacutedos que mostravam sua alegria [] (p 154-155)

Eacute esta a modalizaccedilatildeo a que me refiro relativa agrave escritura de estra-nhamento Poderemos observar simples crianccedilas entrevistas no ato de brincar nesta atmosfera de estranhamento criada pela linguagem Num determinado trecho acusa-se textualmente a influecircncia das Noites

- Qual eacute o seu nome ndash ele perguntou- Amina ndash ela respondeu - Eacute um nome da histoacuteria das ldquoMil e uma noitesrdquo ndash ele disse- Das histoacuterias tolas dos crentes ndash disse ela com desdeacutem ndash O povo livre natildeo sabe nada a respeito dessas bobagens ndash Seus laacutebios fechados e o murmuacuterio entre as siacutelabas proferidas o deixaram ainda mais surpreso quando ela cur-vou os laacutebios sem abri-los (p 154)

Edgar Lucas White segundo Tavares (2007 p 146) se inspirava nos proacuteprios pesadelos para compor muitos de seus contos fantaacutesticos reuni-dos nas obras The song of the sirens and other stories (1919) e Lukundoo and other stories (1927) A citaccedilatildeo nominal das Noites homenageia o texto original e ficamos tentados a encontrar em Amina um princiacutepio de recep-ccedilatildeo de leitor posteriormente potencializado pelo inconsciente durante o sono Segundo a nota do tradutor Jarouche (2010 p 85) a palavra ldquoogrardquo por ele utilizada em sua versatildeo das Noites traduziria imperfeitamente

o termo aacuterabe ldquogulardquo que designa na mitologia beduiacutena ldquoum ser sobre-humano capaz de mudar de figura e que se alimenta de carne huma-na Segundo uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao profeta Muhammad a simples menccedilatildeo a Deus bastaria para afugentaacute-lordquo sendo para isso invocado um excerto do Alcoratildeo (668) pelo personagem do priacutencipe aacuterabe como vis-to anteriormente no excerto das Noites O sentido de maravilhoso desta obra possibilita a inserccedilatildeo paciacutefica de uma ldquogulardquo (natildeo haacute aqui associaccedilatildeo agrave palavra lsquogularsquo em liacutengua portuguesa no sentido de fome desmesurada) agrave realidade diegeacutetica Jaacute o texto de White quebra esta possibilidade ao acrescentar toda a disforia de uma ontologia natildeo pacificada mesmo com a morte e revelaccedilatildeo final do monstro Waldo oscila ateacute o fim da narrativa a respeito da natureza teriomorfa e sobrenatural de Amina

- Bem na hora meu garoto ndash disse [o cocircnsul] ndash Ela estava prestes a atacarEle levantou o cano da arma e com ela mexeu no corpo- Bem morta ndash ele disse ndash Que sorte Geralmente satildeo precisos trecircs ou quatro balas para abater um deles Eu jaacute vi uma delas matar um homem mesmo tendo levado dois tiros nos pulmotildees - Vocecirc assassinou esta mulher ndash Waldo perguntou irado - Assassinar ndash o cocircnsul perguntou ndash Assassinar Olhe para istoEle ajoelhou-se e abriu os laacutebios fechados deixando agrave mostra natildeo dentes humanos mas pequenos incisivos dentes afiados bem separados e caninos longos e sobrepostos como os de um galgo uma denticcedilatildeo carniacutevora ame-accediladora e perigosa Ele sentiu medo mas mesmo assim a forma e a aparecircncia da mulher ainda o deixavam horrorizado tocado por sua semelhanccedila humana- Vocecirc atira em mulheres que tecircm dentes longos ndash Waldo insistiu revoltado com a morte terriacutevel que presenciara- Eacute difiacutecil convencecirc-lo ndash o cocircnsul disse ndash Vocecirc chama isto de mulherEle arrancou as roupas do cadaacuteverWaldo ficou aterrorizado O que ele viu natildeo foi a parte da frente do corpo de uma mulher mas sim o lado de baixo de uma loba prenhe ou de uma porca branca em sua segunda gestaccedilatildeo do pescoccedilo agrave genitaacutelia dez ubres em duas fileiras machucados grossos e flaacutecidos- Que tipo de criatura eacute essa ndash ele perguntou increacutedulo- Um ldquoghoulrdquo [gula] um espiacuterito maligno meu filho ndash o cocircnsul respondeu calmamente quase sussurrando - Pensei que eles natildeo existissem ndash Waldo disse ndash Achei que fossem lendas que natildeo houvesse nenhum deles- Posso acreditar que natildeo exista nenhum em Rhode Island ndash o cocircnsul disse ndash Estamos na Peacutersia e a Peacutersia fica na Aacutesia (p 156)

Como afirmado a ambiguidade fantaacutestica eacute levada ateacute o final com a revelaccedilatildeo do monstro e a aceitaccedilatildeo do sobrenatural Em todo o caso a meu ver em Amina esta aceitaccedilatildeo eacute distinta do Fantaacutestico-maravilhoso todoroviano pois se buscou ateacute este momento a criaccedilatildeo de uma atmos-fera em que a experiecircncia do medo se faz tocircnica e mesmo a explicaccedilatildeo do sobrenatural ligada em uacuteltima instacircncia agrave extinccedilatildeo do monstro natildeo possibilitou sua diluiccedilatildeo antes se obteacutem aquela antevisatildeo negativa do cos-mos e da vida analisada pelas teorias lovecraftianas a respeito do horror autoconsciente Lembro por uacuteltimo que os referidos procedimentos e su-gestotildees intertextuais os recortes e reconstituiccedilotildees e as escrituras completas e re-modalizadas ligadas ao Livro das mil e uma noites entre vaacuterios outros processos de intertextualidade poderatildeo ser encontrados em todas as eacutepo-cas autores e literaturas e colhi apenas trecircs exemplos (teoacutericos e ficcionais) para ilustrar tal fato Concluo com o adoraacutevel bordatildeoleitmotiv da irmatilde de Sahrazad Dinarzad (tatildeo importante quanto a contadora de histoacuterias eacute aquela que fomenta sua continuidade e corrobora no processo atraveacutes de uma recepccedilatildeo embevecida) em homenagem agraves Noites ldquoPor Deus ma-ninha se acaso vocecirc natildeo estiver dormindo conte-me uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar acordados esta noiterdquo []

REFEREcircNCIAS

CARVALHAL Aacutelvaro do Contos Fixaccedilatildeo do texto e posfaacutecio de Gianluca Miraglia Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2004

EURIacutePIDES ldquoLas bacantesrdquo In EacuteSQUILO SOacuteFOCLES EURIacutePIDES Obras completas Trad Joseacute Alsina [et al] Madrid Catedra 2004 (p 215-254)

HOFFMANN E T A Contos fantaacutesticos Trad Claudia Cavalcanti Rio de Janeiro Imago 1993

IRWIN Robert Pelo amor ao saber os orientalistas e seus inimigos Trad Waldeacutea Barcellos Satildeo Paulo Record 2008

JOLLES Andreacute Formas simples Trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Cultrix 1976

KIDSON Peter ldquoArtes plaacutesticasrdquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 435-463)

Livro das mil e uma noites Trad Mamede Mustafa Jarouche 4 volumes Satildeo Paulo Editora Globo 2010 (6ordf reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo de 2006 ndash volume 01) 2006 (2ordf ed ndash volume 02) 2007 (volume 03) 2012 (volume 04)

LOVECRAFT H P O horror sobrenatural em literatura Trad Celson M Paciornik Satildeo Paulo Iluminuras 2008

MOMIGLIANO Arnaldo ldquoHistoacuteria e biografiardquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 181-210)

PLATAtildeO A repuacuteblica Trad Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

PEMBROKE S G ldquoMitordquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 335-358)

TAVARES Braulio ldquoAminardquo In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 146)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 1ordf reimp da 3ordf ed de 2004 Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2007

WHITE Edgar Lucas Amina Trad Carolina Caires Coelho In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 147-156)

Borges leitor de As mil e uma noites

Dariacuteo Sanchez(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

ldquoese libro capaz de tantas metamorfosisrdquo

Jorge Luis Borges eacute talvez o mais universal dos escritores hispa-no-americanos como fica demonstrado natildeo soacute pela importacircncia de sua obra mas tambeacutem pela singularidade de sua pessoa que tem inspirado desde a introduccedilatildeo a um tratado antropoloacutegico de Michel Foucault ateacute o personagem central num romance de Umberto Eco Eacute fato que no caso deste portentoso escritor obra e homem se confundem na sua impor-tacircncia e originalidade

Borges escreveu poemas contos e ensaios muitos dos quais satildeo hoje ndash apenas 27 anos depois de sua morte ndash verdadeiros claacutessicos da literatura universal bastando mencionar tiacutetulos como El Aleph ou Pierre Menard autor del Quijote Mas natildeo eacute soacute pela sua liacutempida prosa e seu verso reflexivo que esse autor argentino eacute mundialmente reconhecido tambeacutem sua original concepccedilatildeo da literatura tem despertado o interesse de especialistas e neoacutefitos concepccedilatildeo que vai muito aleacutem do cacircnone ocidental ao abranger outras literaturas ndash com lugar de destaque para a literatura oriental ndash e especialmente vai aleacutem da obra literaacuteria incor-porando nela o processo de leitura o exerciacutecio da traduccedilatildeo a praacutetica da escritura e o transcorrer da vida

Para Borges a literatura estaacute nos leitores e natildeo nas obras ou seus autores Longe de ser um objeto de conhecimento (como tanto gostam de pensaacute-la os teoacutericos e especialistas) a literatura eacute um processo uma praacutetica que acontece cada vez que um leitor percorre reconta traduz ou relembra um livro lido Eacute na (re)leitura onde radica o valor da obra literaacuteria releitura que permite novas criaccedilotildees novas versotildees novas his-toacuterias novas vidas ou mortes ateacute

Essa importacircncia da leitura por cima da obra fica demonstrada em afirmaccedilotildees como as seguintes ldquoClaacutesico no es un libro que necesaria-mente posee tales o cuales meacuteritos es un libro que las generaciones de los hombres urgidas por diversas razones leen con previo fervor y con una misteriosa lealtadrdquo (Borges 1993I p 151) ou ldquoUn libro es maacutes que una estructura verbal es el diaacutelogo que entabla con su lector y la intencioacuten que impone a su voz y las cambiantes y durables imaacutegenes que deja en su memoria (Borges 1993I p 125) Ou ainda ldquoUna literatura difiere de otra menos por el texto que por la manera de ser leiacutedardquo (Borges 1993I p 125) Ler com fervor e lealdade ou armazenar imagens na memoacuteria eis definiccedilotildees da literatura segundo Borges E como os leitores das obras satildeo muacuteltiplos e muacuteltiplas suas lembranccedilas e fervores a literatura eacute uma mateacuteria muacuteltipla infinita ldquoPor el hecho de que el poema es inagotable Y se confunde con la suma de las criaturas Y no llegaraacute jamaacutes al uacuteltimo verso Y variacutea seguacuten los hombresrdquo (Borges 1993II p 315)

Desde tal concepccedilatildeo as frequentes referecircncias de Borges agrave compilaccedilatildeo de relatos orientais conhecida como As mil e uma noites (ou ldquoAs mil noites e uma noiterdquo como ele preferia) natildeo eacute soacute mais uma mostra de sua exoacutetica erudiccedilatildeo mas uma confirmaccedilatildeo ancestral de sua teoria da literatura como processo interminaacutevel de leitura De fato ainda que no espaccedilo da oralidade (e a oralidade eacute tatildeo literaacuteria para Borges quanto a escrita bastando-nos lem-brar de suas histoacuterias de ldquocompadritosrdquo) Sherazade eacute uma leitora que conta suas leituras ao sultatildeo que por sua vez eacute outro leitor Como tambeacutem satildeo leitores os histoacutericos compiladores da lenda original que foram agregando novos relatos e os tradutores ocidentais que natildeo soacute agregaram ou retiraram elementos mas que enriqueceram a obra com os estilos de sua liacutengua e de sua eacutepoca As mil e uma noites eacute a obra interminaacutevel por antonomaacutesia (a Never ending story como eacute o tiacutetulo do romance de Michael Ende) e por isso fascinou Borges por ser a soma do que eacute a literatura na sua concepccedilatildeo uma prolongaccedilatildeo infinita de leituras e escrituras

A paixatildeo de Borges por As mil e uma noites fica evidente em vaacuterios de seus escritos e na sua obsessiva comparaccedilatildeo das diversas versotildees para descobrir aquilo que os compiladores e tradutores tinham agregado ou extraiacutedo do texto original Genotexto intertexto subtexto (para usar palavras tatildeo caras aos especialistas) a compilaccedilatildeo oriental aparece na obra do autor argentino de maneira expliacutecita como inspiraccedilatildeo objeto de estudo eou referecircncia bibliograacutefica e de maneira impliacutecita na estrutura

ou elaboraccedilatildeo de alguns relatos Bem no comeccedilo de seu ofiacutecio como escritor publica um artigo sobre Los traductores de Las mil y una noches e pelo menos cinco relatos fazem referecircncia direta ao livro Alguien El sur Historia de los dos que sontildearon El libro de arena e Historia de los dos reyes y los dos laberintos aleacutem do poema Metaacuteforas de las mil y una noches Mas seraacute no luacutecido ensaio intitulado Las mil y una noches que Borges sintetizaraacute melhor seu sentir sobre a referida obra

O texto foi lido pelo seu autor no Teatro Coliseo de Buenos Aires em junho de 1977 dentro de um ciclo de conferencias que foram publicadas em 1980 sob o tiacutetulo de Siete noches Nele Borges susteacutem que para falar desse livro eacute necessaacuterio fazer referecircncia a alguns antecedentes do acontecimento da consciecircncia de Oriente em Ocidente tais como a conquista da Peacutersia e Iacutendia por Alexandre Magno (que deixou de ser grego para se converter em persa) e as narraccedilotildees de Marco Polo sobre Kublai Khan entre outros vaacuterios

Falando concretamente da obra aacuterabe Borges nos lembra de que no seacuteculo XV foi reunida em Alexandria uma seacuterie de faacutebulas de origem hindu persa e asiaacutetica as quais jaacute escritas em aacuterabe foram compiladas no Cairo A matriz ou nuacutecleo central eacute a Iacutendia depois na Peacutersia satildeo modificadas e arabizadas e passam ao Egito em finais do seacuteculo XV onde eacute realizada a primeira compilaccedilatildeo sob o tiacutetulo de As mil e uma noi-tes tiacutetulo que remete ao infinito e semelhante segundo ele agrave expressatildeo inglesa ldquoforever and a dayrdquo Para Borges a origem do livro eacute comparaacutevel agraves catedrais goacuteticas que satildeo obras de geraccedilotildees de homens Milhares de autores provavelmente ldquoconfabulatores nocturnirdquo (contadores noturnos de histoacuterias) escreveram As mil e uma noites mas nenhum deles pensou que estava conformando um livro tatildeo valioso para a humanidade

A primeira versatildeo europeia eacute de 1704 na traduccedilatildeo francesa de Antoine Galland o que foi um acontecimento capital para as literaturas europeias regidas entatildeo pelos preceitos neoclaacutessicos E aqui expressa Borges uma afirmaccedilatildeo de vital importacircncia se natildeo para nossa tese da li-teratura como processo para a motivaccedilatildeo de um Congresso de literatura fantaacutestica que trata da influecircncia de literatura do Oriente no Ocidente Diz Borges que ldquocon el movimiento romaacutentico el Oriente entra plenamente en la conciencia de Europardquo E mais para frente agrega ldquoPodriacuteamos decir que el movimiento romaacutentico empieza en aquel instante en que alguien en Normandiacutea o Pariacutes lee Las mil y una noches Estaacute saliendo del mundo legislado por Boileau estaacute entrando en el mundo de la libertad romaacutenticardquo

(Borges 1993III p 234 e 240) Ou seja que o Romantismo produz e se produz pela influecircncia do Oriente e se temos presente que o Romantismo eacute a grande revoluccedilatildeo da arte ocidental e origem de toda a arte moderna poderiacuteamos inferir que a presenccedila de Oriente eacute uma caracteriacutestica da arte moderna Uma evidecircncia disso seria precisamente aquilo que chama-mos de fantaacutestico que se faz um traccedilo presente e constante na literatura ocidental a partir do Romantismo ou em outras palavras a partir da pre-senccedila do Oriente da leitura de As mil e uma noites

No ensaio sobre Os tradutores das mil e uma noites Borges compara as diversas versotildees ocidentais do texto aacuterabe Adverte que aquela primei-ra traduccedilatildeo de Galland realizada nos albores do seacuteculo XVIII apesar de ter eliminado o conteuacutedo eroacutetico deu um destaque suficiente agrave dimensatildeo maacutegica da histoacuteria cativando os franceses da eacutepoca limitados pela pre-ceptiva poeacutetica Mais de um seacuteculo depois a traduccedilatildeo inglesa de Lane ainda que sendo mais literal tambeacutem suspende os elementos eroacuteticos pois sua intenccedilatildeo era fazer um livro familiar e soacute a versatildeo de Burton nessa liacutengua vai-se ocupar de incorporar o erotismo proacuteprio do texto original A versatildeo alematilde de Littmann destacada como a melhor pela Enciclopeacutedia Britacircnica eacute descartada porque nela falta a subjetividade presente nas tra-duccedilotildees anteriores subjetividade que eacute mais importante que uma suposta literalidade Diz Borges ldquolas versiones de Burton e de Mardrus e incluso de Galland soacutelo se dejan concebir despueacutes de una literatura Cualesquiera que sean sus lacras o sus meacuteritos esas obras caracteriacutesticas presuponen un rico proceso interiorrdquo (Borges 1993I p 412) Ou seja que agrave traduccedilatildeo (assim como agrave leitura) natildeo importa a literalidade ou fidelidade mas o seu valor literaacuterio pela subjetividade entendida como presenccedila do leitor Natildeo vamos falar aqui das consequecircncias que tal afirmaccedilatildeo tem para os estudos de traduccedilatildeo (outros jaacute tem feito isso com amplitude) soacute queremos desta-car que as traduccedilotildees de As mil e uma noites interessam a Borges pela no-vidade pela variaccedilatildeo pela recriaccedilatildeo da obra original daiacute que a traduccedilatildeo seja literatura no sentido de processo de leitura

No mesmo ensaio de Sete noites Borges conta que a histoacuteria de Aladim natildeo aparece no texto aacuterabe-persa soacute na traduccedilatildeo francesa e agrega a anedota da ldquoadmiraacutevel memoacuteria inventivardquo de De Quincey que parte de Galland para se referir a uma histoacuteria diferente Mas natildeo soacute foram os tradutores com sua literatura Galland com seu relato de Aladim De Quincey com sua ldquomemoacuteria inventivardquo ou Stevenson com

suas New Arabian Nights os que acrescentaram elementos ao texto ori-ginal tambeacutem o mesmo Borges fez isso escrevendo um dos relatos de As mil e uma noites confirmando assim natildeo soacute a fascinaccedilatildeo do portenho pela obra aacuterabe mas a maacutegica que envolve essa compilaccedilatildeo

Em 1939 Borges realiza uma resenha da traduccedilatildeo do livro aacuterabe de Richard Burton para a revista El hogar na qual escreve ldquoDe las notas que Burton agregoacute a su famosa traduccioacuten del libro Las mil y una noches traslado esta curiosa leyenda Se intitula Historia de los dos reyes y los dos laberintosrdquo (Borges apud Sardegna 2005 sp) E a continuaccedilatildeo se refere agrave histoacuteria de um rei da Babilocircnia que encerra um rei aacuterabe num confuso labirinto do qual este consegue escapar e depois leva preso agravequele rei e o abandona no deserto um labirinto sem corredores e sem portas Soacute que como conta Miguel Sardegna a histoacuteria natildeo tinha sido omitida da traduccedilatildeo francesa de Galland e resgatada posteriormente na traduccedilatildeo inglesa de Burton como disse Borges aos leitores da revista na realidade a histoacuteria foi a contribuiccedilatildeo de Borges ao livro oriental A citaccedilatildeo de obras e autores supostamente apoacutecrifos seraacute recorrente na obra do escritor argentino soacute que nesse caso particular permite-lhe contribuir com a obra convertendo-lhe numa nova Sherazade No final o referido conto aparece anos depois como ldquoLos dos reyes y los dos la-berintosrdquo na compilaccedilatildeo de contos titulada El Aleph

E em Historia universal de la infacircmia aparece o conto ldquoHistoria de los dos que sontildearonrdquo com uma anotaccedilatildeo final que diz ldquo(Del Libro de las 1001 Noches noche 351)rdquo (Borges 1993I p 339) Com efeito trata-se da citaccedilatildeo completa de um dos contos do livro aacuterabe que trata de um homem que depois de um sonho decide ir a Peacutersia procurando for-tuna mas ali eacute detido e interrogado por um capitatildeo que apoacutes ouvir o relato do sonho e da fortuna ri do homem e conta-lhe que ele tambeacutem sonha com um quintal no Cairo onde supostamente acharaacute uma for-tuna Eacute bom lembrar que eacute essa mesma histoacuteria a base do best-seller de Paulo Coelho O Alquimista Mas o interessante em todas essas novas versotildees e reescrituras eacute a confirmaccedilatildeo do que diz o mesmo Borges ldquoLas mil y una noches no han muerto El infinito tiempo de Las mil y una noches prosigue su camino [] Casi podriacuteamos hablar de muchos libros titulados Las mil y una nochesrdquo (Borges 1993III p 241)

Mas a ficccedilatildeo borgiana a fantaacutestica ficccedilatildeo borgiana vai aleacutem da citaccedilatildeo e da invenccedilatildeo de mais um relato para se ocupar de ficcionalizar a origem

do livro esse momento no qual o primeiro contador o primeiro ldquoconfa-bulator nocturnirdquo comeccedila essa catedral goacutetica esse livro interminaacutevel Em ldquoAlguienrdquo escrito em finais da deacutecada de 1980 encontramos o relato dessa origem primeira Por sua brevidade vamos citar o conto inteiro

Balkh Nishapur Alejandriacutea no importa el nombre Podemos imaginar un zoco una taberna un patio de altos miradores velados un riacuteo que ha repetido los rostros de las generaciones Podemos imaginar asimismo un jardiacuten polvo-riento porque el desierto no estaacute lejos Se ha formado una rueda y un hombre habla No nos es dado descifrar (los reinos y los siglos son muchos) el vago turbante los ojos aacutegiles la piel cetrina y la voz aacutespera que articula prodigios Tampoco eacutel nos ve somos demasiados Narra la historia del primer jeque y de la gacela o la de aquel Ulises que se apodoacute Es-Sindibad del Mar El hombre habla y gesticula No sabe (otros lo sabraacuten) que es del linaje de los confabulalores nocturni de los rapsodas de la noche que Alejandro Bicorne congregaba para solaz de sus vigilias No sabe (nunca lo sabraacute) que es nues-tro bienhechor Cree hablar para unos pocos y unas monedas y en un perdi-do ayer entreteje el Libro de las Mil y Una Noches (Borges 1991III p 171)

A histoacuteria eacute de uma siacutentese maravilhosa Mas quero chamar a aten-ccedilatildeo para quando diz ldquoTampoco eacutel nos ve somos demasiadosrdquo referecircncia necessaacuteria aos leitores que como os autores do livro aacuterabe satildeo presentes e anocircnimos De novo a literatura soacute acontece com as duas presenccedilas que apesar dos muitos reinos e seacuteculos se encontram no momento da leitura aquele momento em que ocorre aquilo que eacute chamado de Literatura

Voltando agrave conferecircncia em Buenos Aires ao tentar definir o Oriente Borges descarta o criteacuterio geograacutefico e diz que as conotaccedilotildees dessa palavra satildeo devidas agrave compilaccedilatildeo oriental a ideia de As mil e uma noites eacute a ideia de Oriente e vice-versa Diz que para o Oriente natildeo eacute importante a histoacuteria como sucessatildeo de fatos e agrega ldquoSe piensa que la literatura y la poesiacutea son procesos eternos Creo que en lo esencial tienen razoacutenrdquo (Borges 1991III p 237) Ou seja a literatura eacute uma construccedilatildeo de muacuteltiplos autoresleitores uma prolongaccedilatildeo infinita ou interminaacutevel como satildeo o Oriente e As mil e uma noites mundos construiacutedos de ldquoumas quantas figuras arquetiacutepicasrdquo

O arqueacutetipo outra ideia fundamental do universo borgiano presente na obra oriental e relacionada com essa nossa inferecircncia de que natildeo satildeo os autores (com nome proacuteprio) mas os leitores anocircnimos os que fazem a literatura E essas ideias de infinito de eternidade de prolongamento in-terminaacutevel de arqueacutetipos estatildeo todas refletidas ainda na estrutura do texto

aacuterabe na qual temos um relato dentro de outro relato que pela sua vez nos leva a outro relato e tudo isso incluiacutedo num relato maior Labirintos ver-bais dos quais tanto gostava Borges E para abranger este prolongamento infinito de versotildees e relatos eacute possiacutevel usar uma metaacutefora dele mesmo ldquoSe llamaba el Libro de Arena porque ni el libro ni la arena tienen ni principio ni finrdquo (Borges 1991III p 69) As mil e uma noites seria o livro de areia E a analogia entre ambas as histoacuterias natildeo eacute forccedilada pois o personagem do rela-to esconde o livro de areia atraacutes dos seus exemplares de As mil e uma noites

Para Borges no referido ensaio a maacutegica e os sonhos satildeo inerentes agrave nossa ideia de Oriente e de As mil e uma noites a maacutegica entendi-da como uma causalidade diferente devida a objetos ou situaccedilotildees com poder particular (como no caso da famosa lacircmpada e seu gecircnio) e os sonhos pensados como uma revelaccedilatildeo de outra realidade outra reali-dade que pode ser a literaacuteria que pode ser a realidade (como no caso jaacute referido de ldquoLos dos que sontildearonrdquo) E nessas afirmaccedilotildees sobre a maacutegica e os sonhos parecem estar as dicas para a leitura de um dos seus relatos mais importantes no qual aparece bem presente a compilaccedilatildeo aacuterabe

El sur conta a histoacuteria de Juan Dahlmann um homem culto bibliote-caacuterio que sofre um acidente enquanto estaacute lendo um raro exemplar de As mil e uma noites e deve ser internado num sanatoacuterio Estando ali ou depois de sair dali (o relato permite as duas leituras sonho ou realidade) ele vai ateacute seu siacutetio no interior da Argentina onde eacute forccedilado a entrar numa briga com faca com um homem ruacutestico que interrompe sua leitura da recopilaccedilatildeo oriental No desenlace o protagonista opta pela morte nessa briga ao estilo dos valentes gauacutechos O texto pode ser lido como uma alegoria da oposiccedilatildeo entre as letras e as armas ou entre a famiacutelia paterna alematilde e a famiacutelia mater-na argentina do personagem principal Mas o que me interessa natildeo eacute esse tipo de anaacutelise mas o fato de que o agir do personagem estaacute determinado de vaacuterias maneiras pela literatura ou seja pela leitura como ato fiacutesico e mental Ou em outras palavras pela magia e o sonho

Satildeo vaacuterios os momentos nos quais o relato anuncia este prolonga-mento ou transformaccedilatildeo da vida em literatura ndash fazendo da literatura um processo uma coisa viva uma atividade No niacutevel do fiacutesico (e do maacutegico) o primeiro personagem sofre o acidente que o leva ao sana-toacuterio e mais tarde eacute convidado agrave briga na taverna enquanto se encontra lendo As mil e uma noites Sua concentraccedilatildeo na leitura do texto aacuterabe eacute interrompida duas vezes pelo acidente e pelos homens na taverna e

nos dois casos a interrupccedilatildeo tem desenlace traacutegico Jaacute no plano mental (e do sonho) a leitura influencia a visatildeo de mundo do personagem com os pesadelos da convalescenccedila ateacute o ponto de permitir-lhe prolongar a vida (na realidade ou no sonho) como se fosse um relato Ou seja no final da vida o leitor decide ser personagem literaacuterio prolongando ou concretizando suas diversas leituras num ato A literatura a leitura aparecem como um prolongamento da vida de Juan Dalhmann assim como Sherazade prolongou sua vida contando relatos Eacute verdade que em El sur esse prolongamento acaba com a morte e que o modelo dessa morte eacute a literatura gauchesca mas soacute pela maacutegica ou pelo sonho da lei-tura eacute possiacutevel fazer essa escolha final Entatildeo esse leitor de As mil e uma noites decide se fazer relato ou em outras palavras dar vida agrave literatura

Satildeo vaacuterios os relatos borgianos nos quais a literatura eacute a origem da realidade como Tloumln Uqbar Orbis Tertius que conta a histoacuteria de um planeta criado partindo das descriccedilotildees de uma enciclopeacutedia Obviamente a ideia de El sur eacute mais modesta um homem decide morrer de maneira literaacuteria sua morte pode ser um sonho ou uma realidade tanto faz por-que os sonhos diz Borges satildeo mais reais que a vida E o mesmo entatildeo poderia ser dito da literatura Natildeo eacute casual que o personagem esteja len-do As mil e uma noites (nada na literatura de Borges ndash nem na vida ndash eacute casualidade) El Sur seria um novo relato da literatura gauchesca ou um conto sul-americano na compilaccedilatildeo oriental De qualquer jeito mais um paraacutegrafo dessa narrativa interminaacutevel e infinita que eacute a vida

No final noacutes somos uma narraccedilatildeo e nossa vida eacute soacute mais um re-lato das mil e uma noites das infinitas noites que satildeo a mesma noite Porque a literatura natildeo estaacute nas obras mas nos leitores nas lembranccedilas e projeccedilotildees com que vivemos dia apoacutes dia nas incontaacuteveis versotildees que satildeo feitas de relatos anteriores no relato que fazemos de noacutes mesmos chamado vida Somos a paacutegina de um livro de infinitos autores

REFEREcircNCIAS

BORGES Jorge Luis Obras completas Volumen I II III Buenos Aires Emeceacute Editores 1993

SARDEGNA Miguel ldquoLas mil y una noches de Robert Luis Stevensonrdquo In Revista Axololt Antildeo 3 nordm 18 Buenos Aires 2007 httprevistaaxolotlcomarotrassent18htm (Acesso em 21 de abril de 2013)

O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio

europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas

Joseacute Alberto Miranda Poza(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Apresentaccedilatildeo do Libro de Apolonio

Conforme Pablo Cabantildeas o Libro de Apolonio eacute uma das obras mais belas da literatura medieval espanhola constituindo ldquoun poema que sorprende al lector tanto por su teacutecnica casi perfecta como por su subyugante plasticidad narrativardquo (1998 p 9) Aproximar-se hoje agrave leitura do Libro de Apolonio supotildee intentar valorar as circunstacircncias histoacutericas em que foi escrito os coacutedigos culturais da eacutepoca em que seu autor se movia e mostrar o tipo de leitor-ouvinte para quem o poema foi composto (Corbella 1992)

Para comeccedilar do autor do texto natildeo sabemos nada embora exis-tam as informaccedilotildees que podem ser deduzidas a partir do proacuteprio texto Como afirma Uriacutea (2000 p 27) ldquoestamos ante un caso de anonimia absolutardquo Aleacutem disso natildeo devemos confundir em ecdoacutetica autor (do texto) com copista amanuense (do manuscrito) Nesse sentido o ma-nuscrito uacutenico conservado do Libro de Apolonio ndash Coacutedice Escurialense III-K-4 ndash eacute uma coacutepia com muitos erros e diferentes rasuras que afetam letras siacutelabas e palavras Pela grafia e algumas caracteriacutesticas linguiacutesti-cas a coacutepia eacute datada como sendo de 1390 e a liacutengua foi modernizada pelo copista Apresenta traccedilos do catalatildeo e do aragonecircs que comprome-tem o cocircmputo silaacutebico e o ritmo o que indica que esses traccedilos seriam do copista e natildeo do autor originaacuterio que escreveu em castelhano do seacuteculo XIII (Giroacuten Alconchel 2002)

Considerando as influecircncias latinas e gregas do texto podemos chegar agrave conclusatildeo conforme Alvar (1976 p 66) de que o autor era homem que possuiacutea uma grande cultura De fato numa passagem da obra ele caracteriza a figura de Apolocircnio como homem de letras

como intelectual com referecircncias a fontes culturais e literaacuterias da eacutepoca (Cabantildeas 1998 p 45)

Encerroacutese Apolonio en sus salas privadasdonde teniacutea escritos e historias comentadasleyoacute sus argumentos las hazantildeas pasadascaldeas y latinas tres veces repasadas

Conhecia a tradiccedilatildeo da Odisseia que comeccedila com Homero e vai ree-laborar-se nas novelas de viagens e aventuras da eacutepoca bizantina mas tam-beacutem conhecia a literatura em liacutengua latina que imitava alguns autores egreacute-gios Com todos esses elementos tatildeo variados o autor anocircnimo conseguiu criar sua obra original muito aleacutem da contingecircncia de um empreacutestimo

Pero nada surge de la nada la cultura es un lento quehacer Y la serie innu-merable de coautores del relato nos manifiesta la personalidad de cada uno de ellos [hellip] Al final tenemos un texto que es el resultado de otros muchos (Alvar 1976 p 67)

O autor portanto era homem de letras o que vale tanto como di-zer na eacutepoca cleacuterigo O cristianismo teve um papel essencial em todo Ocidente ao longo do medievo em especial para o que agora nos inte-ressa cabe ressaltar sua relevacircncia na transmissatildeo cultural conformou ndash para bem ou para mal ndash o pensamento e a vida social de toda a Europa Ocidental Por isso natildeo eacute estranho que a geografia arquitetocircnica nos ofe-reccedila inclusive atualmente a presenccedila constante de uma igreja em cada cidade ou aldeia cuja origem se encontra na inveterada tradiccedilatildeo que se deu ao longo de todo o medievo todas as cidades medievais possuiacuteam sua igreja e ao redor dela distribuiacutea-se o resto da populaccedilatildeo de onde surge por sua vez o conceito de paroacutequia Mas natildeo soacute as igrejas como lugar de culto e siacutembolo ideoloacutegico e aglutinador que presidia a vida social no incipiente meio urbano mas tambeacutem no campo no acircmbito rural os mos-teiros desenvolveram uma funccedilatildeo absolutamente primordial na histoacuteria da cultura Porque neles natildeo se ensinava apenas doutrina mas tambeacutem se conservavam e elaboravam (copiavam traduziam) textos de obras lite-raacuterias da Antiguidade (Miranda Poza 2011 p 163)

Os monges que conviviam no seio dos mosteiros eram submeti-dos a diversas regras como observar as horas destinadas agrave oraccedilatildeo agrave leitura e ao estudo das Sagradas Escrituras o cultivo do horto cuidar

dos doentes mas muito em especial desenvolviam o ingente labor de copiar no scriptorium da biblioteca do mosteiro manuscritos em latim e no percurso do tempo tambeacutem em liacutenguas romacircnicas A conhecida obra de Umberto Eco O nome da rosa constitui um magniacutefico exemplo de reconstruccedilatildeo da vida daqueles monges naqueles mosteiros medie-vais Contudo como jaacute indicamos em outro lugar (Miranda Poza 2007 p 124) o vocaacutebulo ldquoclereciacuteardquo nem sempre designava de forma exclusiva o acircmbito religioso Cleacuterigo no medievo designava o homem letrado estudioso embora a maior parte entre os que estudavam fosse efetiva-mente religiosa

Nesse sentido duas anotaccedilotildees devem ser feitas A primeira com re-laccedilatildeo ao tiacutetulo do livro Como a maior parte dos escritos dos seacuteculos XIII e XIV no tiacutetulo aparece o termo ldquolivrordquo cujo sentido natildeo era apenas ldquovo-lume formado por folhas de papel ou vitelardquo mas tambeacutem apresentava o significado de ldquomarco ordenador de certo conteuacutedo textualrdquo O poeta ainda diz que quer componer un romance de nueva maestria (Cabantildeas 1998 p 41) onde ldquoromancerdquo significaria natildeo soacute ldquopoema natildeo latinordquo mas ldquotexto de verossimilitude natildeo histoacuterica com desenvolvimento argumen-tativo e literaacuteriordquo em outras palavras de ficccedilatildeo (Michael 1986 p 510) A segunda das anotaccedilotildees faz referecircncia agrave expressatildeo ldquonueva maestriacuteardquo Com efeito o texto pertence a um novo gecircnero na poesia peninsular medieval em liacutengua neolatina o Mester de Clereciacutea Aproximadamente desde comeccedilos do seacuteculo XIII ateacute finais do seacuteculo XIV surgiram em Castela uma seacuterie de obras escritas total ou parcialmente em estrofes de quatro versos alexandrinos (de 14 siacutelabas no cocircmputo hispacircnico e 12 no cocircmputo portuguecircs-francecircs) com rima consoante e uma cesura ou pausa na metade do verso (respectivamente na seacutetima ou sexta siacutela-ba conforme o cocircmputo meacutetrico de referecircncia)6 Uma nova forma que caracteriza uma nova poesia A primeira obra que apresenta esta nova forma de poesia este novo ofiacutecio esta nova arte (ou mester) foi a versatildeo

6 Haacute uma diferenccedila como podemos apreciar na meacutetrica das tradiccedilotildees espanhola e por-tuguesa Na tradiccedilatildeo espanhola todo verso que termina em palavra oxiacutetona acrescenta uma siacutelaba no cocircmputo Destarte natildeo haacute por exemplo versos monossiacutelabos na meacutetrica espanhola porque todo monossiacutelabo eacute forccedilosamente tocircnico oxiacutetono com valor meacutetri-co duplo (Masip 2002 p 58) Por sua vez a meacutetrica portuguesa apenas toma em conta na uacuteltima palavra do verso a uacuteltima siacutelaba tocircnica de forma que um verso acabado em voz paroxiacutetona contaria com uma siacutelaba a menos do que na tradiccedilatildeo meacutetrica espanhola

castelhana do Libro de Alexandre obra anocircnima do seacuteculo XIII anterior ao Libro de Apolonio que copiava reproduzia ou recriava o Roman de Alexandre francecircs Para Goacutemez Moreno (1984) confrontando o proacutelogo do Libro de Alexandre com os de outras obras principalmente francesas clereciacutea significava entre os poetas do seacuteculo XIII ldquomoralidaderdquo mais ldquoverdade histoacutericardquo mais ldquocapacidade de traduccedilatildeordquo mais ldquoconhecimento das artes meacutetricasrdquo Os primeiros versos do texto que fundava o novo gecircnero contecircm a definiccedilatildeo formal da cuaderna viacutea que caracterizaraacute o movimento (Cantildeas Murillo 1983 p 85)

Mester traygo fermoso non es de joglariacuteaMester es sen pecado ca es de clereciacuteaFablar curso rimado por la quaderna viaA siacutellabas cunctadas ca es grand maestria

A estrofe eacute composta por versos alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas conforme o tipo de contagem) que se repetem regularmente na estro-fe de quatro versos divididos em duas partes simeacutetricas denominadas hemistiacutequios que constam de 7 (ou 6) siacutelabas cada um7 No primeiro hemistiacutequio para manter o ritmo do verso aparece um acento secundaacute-rio na sexta siacutelaba (uacuteltima na contagem portuguesa) de forma paralela ao que ocorre no segundo hemistiacutequio (Masip 2002 p 88) A cesura se manifesta na declamaccedilatildeo por uma breve pausa e nas ediccedilotildees criacuteticas ou filoloacutegicas eacute comum o costume de reproduzir um espaccedilo em branco en-tre os dois hemistiacutequios apoacutes a cesura conforme se mostra no esquema a seguir (Miranda Poza 2007 p 125)

7 O professor Vicente Masip (2002 p 65-66) define os versos alexandrinos dentro da epiacutegrafe correspondente aos tetradecassiacutelabos espanhoacuteis (tridecassiacutelabos portu-gueses) com estas palavras ldquoPoseen catorce siacutelabas meacutetricas en espantildeol y doce en portugueacutes distribuidas en dos hemistiquios de siete (seis en portugueacutes) Se llaman asiacute debido al Roman dacuteAlexandre poema franceacutes de la segunda mitad del siglo XIII usado por el autor del Libro de Alexandre espantildeol del siglo XIII El verso alejandrino fue usado por los poetas cultos del ldquoMester de Clereciacuteardquo durante los siglos XIII y XIV con el objetivo de oponer una forma regular de ldquosiacutelabas contadasrdquo a la irregularidad meacutetrica de los trovadores populares del ldquoMester de Juglariacuteardquo Este tipo de verso fue abandonado a partir del siglo XVI (exceptuando el famoso soneto a la Santiacutesima Virgen Mariacutea de Pedro Espinosa [1578-1650]) y soacutelo fue retomado en el siglo XVIII convirtieacutendose raacutepidamente en metro preferido de los romaacutenticos junto con el ende-casiacutelabo (decassiacutelabo portuguecircs)rdquo

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute acuteMes ter tray go fer mo so non es de jo gla riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteMes ter es sen pe ca do ca es de cle re ciacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteFa blar cur so ri ma do por la qua der na viacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteA siacute lla bas cunc ta das ca es grand ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Observemos como as estrofes de ldquonueva maestriardquo do Libro de Apolonio reproduzem exatamente o mesmo esquema formal8

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute (+ 1) acuteEn el nom bre de Dios τ de San ta Ma riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutesi e llos me gui a ssen es tu di ar que rriacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutecon po ner hun ro man ccedile de nue ua ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutedel Buen rey A po lo nio τ de su cor te siacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

8 Aos efeitos de contagem de siacutelabas tomamos como referecircncia na ocasiatildeo a ediccedilatildeo filoloacutegica mais fiel ao original de Dolores Corbella (1992 p 71)

Cabe perguntar-se agora uma vez abordada a caracterizaccedilatildeo do texto no que tange aos aspectos formais sobre a originalidade do autor no con-texto medieval descrito acima A intertextualidade eacute inevitaacutevel Primeiro em termos gerais como indicam Todorov (1972 p 28) ldquotodo lo nuevo en literatura no es sino material antiguo vuelto a forjarrdquo ou Claudio Guilleacuten (1985 p 220) ldquono hay literatura sin aceptacioacuten realizacioacuten transforma-cioacuten o transgresioacuten de unos modelos arquetiacutepicosrdquo Com efeito aleacutem do recurso retoacuterico agrave verossimilitude que faz o proacuteprio autor ao longo do texto ndash miradlo en la historia si a miacute no me creeacuteis (Cabantildeas 1998 p 94) ndash na literatura medieval se parte de outro conceito de literalidade diferente do que hoje temos De fato De Bruyne (1988 p 15) afirma

No se debe esperar que la Edad Media aporte definiciones nuevas u origi-nales los medievales [hellip] se dan por satisfechos con lo que encuentran en los textos antiguos pues [hellip] eacutestos no soacutelo transmiten el pensamiento de los Antiguos sino que son la evidencia del sentido comuacuten que es tambieacuten el buen sentido

Na Idade Meacutedia o texto singular responde a uma alteridade o que faz que ele esteja sempre definido em relaccedilatildeo aos demais onde eacute tatildeo importan-te a assimilaccedilatildeo quanto a transformaccedilatildeo a imitaccedilatildeo quanto a originalidade (Corbella 1992) Nesse contexto histoacuterico-cultural o medievo eacute uma ldquocul-tura textualizadardquo (Lotman 1979 p 26-27) onde eacute tatildeo real o mundo das coisas como o mundo dos signos a realidade vivida como a lida

2 Conteuacutedo do Livro de Apolonio A histoacuteria de Apolocircnio rei de Tiro

O professor Pablo Cabantildeas (1998 p 15-30) descreve de forma cer-teira o prolixo argumento do Libro de Apolonio estabelecendo ateacute sete partes diferenciadas entrelaccediladas atraveacutes de haacutebeis estrofes de transi-ccedilatildeo que conduzem o leitor-ouvinte pela conturbada histoacuteria dos prota-gonistas da trama embora no corpo do texto natildeo exista nenhuma divi-satildeo formal da primeira linha do manuscrito ateacute a uacuteltima Natildeo em vatildeo o argumento da obra responde a uma estrutura semelhante agrave novela bizantina gecircnero equivalente durante as centuacuterias medievais ao que em nossos dias poderia representar uma novela de aventuras cujo remoto precedente se encontra naquela (Alborg 1997 p132) Essas estrofes de

transiccedilatildeo asseguram a coerecircncia textual e ajudam o leitor no acompa-nhamento da trama Apenas dois exemplos

Pero del Rey Antioco quiero dejar de hablarquiero la narracioacuten a Apolonio tornarEn Tarso lo dejamos debemos recordar (Cabantildeas 1998 p 50)

Dejemos a la dama guarde su monasteriosirva su iglesia y rece los salmos del salterioVolvamos a Apolonio con nuestro ministeriollevoacute en las aventuras un infortunio serio (Cabantildeas 1998 p 88)

O resumo do argumento poderia ser o seguinte

[I] Antiacuteoco rei da Antioquia fica viuacutevo e acaba dormindo com sua proacutepria filha Uma mulher aconselha agrave filha que oculte o pecado Procurada como futura esposa por priacutencipes vizinhos o rei consegue manter a situaccedilatildeo sem ser revelada mediante um ardil (ldquodo diabordquo) pro-potildee aos postulantes a resoluccedilatildeo de um enigma Se natildeo adivinhassem a resposta certa seriam decapitados como de fato aconteceu com alguns pretendentes Ateacute que chegou Apolocircnio rei de Tiro que daacute com a res-posta certa que esconde a vergonha mas o rei Antiacuteoco diz que essa res-posta eacute uma grande afronta poreacutem lhe outorga alguns dias para buscar uma nova soluccedilatildeo Apolocircnio sabendo que ele estaacute certo foge com medo de ser executado e em natildeo havendo outra resposta possiacutevel ao enigma comeccedila assim o peacuteriplo aventureiro

[II] Antiacuteoco fica irado com a fugida de Apolocircnio e envia a Tiro um criado para assassinaacute-lo mas Apolocircnio jaacute tinha fugido a Tarso com criados e provisotildees

[III] Apolocircnio se estabelece em Tarso salvando a cidade da pobre-za com o que consegue a gratidatildeo dos moradores Mas temeroso de Antiacuteoco parte para Pentapolin Ocorre um temporal Apenas ele conse-gue se salvar chegando agarrado a uma tabua ateacute a praia onde eacute resgata-do por um pescador que o acolhe compartilhando o pouco que ele tem Recuperado Apolocircnio vai ateacute a cidade e joga bola com outros jovens

destacando-se no jogo pela sua classe e habilidade no que eacute advertido pelo rei Architrastes o qual o convida a jantar No jantar conhece a filha do rei Luciana que toca admiravelmente para ele Apolocircnio seraacute o fu-turo mestre da filha e pouco depois seu marido Com Luciana graacutevida chegam notiacutecias da morte de Antiacuteoco e da filha dele pelo qual Apolocircnio prepara uma viagem para recuperar o reino de Antioquia Luciana o acompanha apesar de seu estado O parto se adianta por causa da via-gem e morre (aparentemente) no parto O corpo eacute jogado ao mar apesar da oposiccedilatildeo de Apolocircnio pela supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo conveniente e ricamente disposto num caixatildeo com instruccedilotildees para seu enterro caso chegasse porventura ateacute terra firme

[IV] Com efeito o caixatildeo chega ateacute Eacutefeso descoberto na praia por um meacutedico que com a ajuda do seu assistente consegue reviver a dama Uma vez de volta agrave vida Luciana manda construir um mosteiro onde serviraacute a Deus

[V] Apolocircnio abalado pela perda da sua esposa volta a Tarso Natildeo se daacute a conhecer Pede a Estrangilo que cuide da sua filha Tarsiana pois ele vai morar no Egito

[VI] Morto Estrangilo Dioniacutesia a esposa dele manda matar Tarsiana para favorecer a proacutepria filha Fracassa porque no momento da tentativa de execuccedilatildeo chegam uns ladrotildees que raptam Tarsiana e a levam para ser vendida no mercado Eacute vendida a um proxeneta mas o primeiro cliente Antinaacutegona o senhor da cidade eacute convencido pelo rogo da donzela para natildeo maculaacute-la Posteriormente isso mesmo acon-teceraacute com os sucessivos clientes que seratildeo convencidos pela beleza do seu canto tendo sempre a proteccedilatildeo de Antiacutegona que juraraacute amor pater-no por ela

[VII] Volta Apolocircnio para ter notiacutecias da sua filha Dioniacutesia lhe diz que ela morreu mas as laacutegrimas do heroacutei natildeo brotam diante do falso tuacutemulo Embarca em direccedilatildeo a Tiro na sua busca Antinaacutegora visita o navio de Apolocircnio que natildeo participa da festa de recepccedilatildeo e fica isola-do no seu camarote Para tentar consolar Apolocircnio Antinaacutegora chama Tarsiana Depois de longa conversa entre os dois Apolocircnio descobre

que se trata realmente da sua filha Felicidade Consente o casamento dela com Antinaacutegora Feito o casoacuterio Apolocircnio planeja visitar Tarso e voltar a Tiro mas uma apariccedilatildeo em sonhos lhe aconselha ir ateacute Eacutefeso no templo que dizem de Diana A abadessa eacute realmente Luciana Apolocircnio recupera seu reino e mostra sua generosidade com quem lhe ajudou O final do texto eacute de teor claramente moralizante fugacidade das coisas do mundo terrestre caducidade da vida e solicitaccedilatildeo da graccedila e da miseri-coacuterdia de Deus

3 Fontes primaacuterias do Libro de Apolonio

Cerca de 100 manuscritos satildeo os textos conservados sobre a his-toacuteria de Apolocircnio alguns deles de tradiccedilatildeo claacutessica latina nos quais se falava da incineraccedilatildeo praacutetica abandonada paulatinamente no mundo ocidental a partir do seacuteculo IV quando o Cristianismo se converteu em religiatildeo oficial Aparecem tambeacutem contiacutenuos elementos pagatildeos como invocaccedilotildees a Netuno alusotildees a Apolo e a esposa de Apolocircnio aguarda sua chegada no templo de Diana Fala-se entatildeo em ecdoacutetica da exis-tecircncia do hipertexto datado no seacuteculo V ou VI a partir do qual se for-maram cinco ramos ou versotildees gerais

bullA Historia Apollonii Regis Tyri

bullA Gesta Apollonii Regis Tyri metrica

bullO Phanteon de Godofredo de Viterbo em versos latinos escrito entre 1186 e 1191 espeacutecie de histoacuteria universal na qual se inclui ao lado de outros relatos a histoacuteria de Apolocircnio

bullA Gesta Romanorum que inclui no capiacutetulo 153 a histoacuteria de Apolocircnio De tribulatione temporali que in gaudium sempiternum postremo commutabitur

bullOs Carmina Burana breve texto poeacutetico latino de comeccedilos do seacuteculo XIII onde Apolocircnio narra sumariamente em seis estrofes as aventuras da sua vida

Mas natildeo soacute devemos tomar em conta suas origens latinas A per-meabilidade da cultura claacutessica permite supor a existecircncia preacutevia de

um texto ainda mais antigo que remontaria agrave eacutepoca helecircnica (Corbella 1992 p 27) Com efeito foram achados paralelismos entre a histoacuteria de Apolocircnio e algumas obras de Xenofonte aleacutem claro eacute do inequiacutevoco caraacuteter odisseico acima evocado tanto pela estrutura do poema quanto pelos numerosos topoi que depois seratildeo conservados e repetidos ao lon-go dos seacuteculos Poreacutem a histoacuteria natildeo copia a Odisseia mas tem temas que satildeo dela situaccedilotildees que procedem de velhos peacuteriplos a caminho de Iacutetaca e isso cria um clima que eacute impossiacutevel negar

Contudo pense-se na caracterizaccedilatildeo que no Libro de Apolonio eacute dada ao protagonista tratado como um heroacutei mas ao mesmo tempo como um perfeito cavaleiro que em palavras de Manuel Alvar (1989 p 51 63) ldquoparticipa de una postura espiritual que es goacuteticardquo ldquoApolonio presenta esa otra faz del siglo XIII en la que el hombre se preocupa por el hombre en la que se siente atraiacutedo por los problemas de su realidad y su tiempordquo

Portanto quanto agrave originalidade do texto podemos dizer que o fato da trama novelesca natildeo ser outra coisa do que uma seacuterie de possiacuteveis lugares comuns natildeo afeta a proacutepria existecircncia do relato Certo eacute que cada um dos episoacutedios do texto pode ter um antecedente ou uma rela-ccedilatildeo com motivos mais ou menos difundidos mas o que temos diante dos nossos olhos eacute uma criatura iacutempar e singular Um caso egreacutegio da literatura espanhola o Lazarillo de Tormes tambeacutem natildeo apareceu do nada contos proveacuterbios tipos situaccedilotildees Mas Alvar pergunta eacute apenas isso o Lazarillo

En verdad que puede parecer postiza la historia de Antioco que los temas del incesto abundan por doquier que la compra de doncellas por rufianes explotadores no es nunca novedad [hellip] pero nada de ello sirve para explicar la Historia Apollonii mucho menos para entender la naturaleza poeacutetica del Libro espantildeol y su encanto (Alvar 1976 p 47)

4 A intertextualidade no Libro de Apolonio

41 A tradiccedilatildeo grega

Artiles (1976 p 15) como outros criacuteticos jaacute mencionados como Alborg (1997) afirmava que o Libro de Apolonio ldquoes una novela bizan-tina versificada metida en caacutenones de cuaderna viacuteardquo E efetivamente como ocorre nas novelas gregas deste gecircnero o poema mistura elemen-tos da literatura sentimental e novelesca amores impossiacuteveis e viagens tempestuosas perdas e reencontros

O mar seraacute a evasatildeo de previsiacuteveis males ou representaraacute o senti-mento de vontade de aventuras Assim raciocina Apolocircnio quando de-cide sair de Tiro e adentrar o mar aventurando-se no desconhecido nos misteacuterios e expondo-se a eventuais perigos longe da tranquilidade que lhe proporcionava seu reino (Cabantildeas 1998 p 59)

Viviacutea en mi reino regalado y honradono conociacutea penas viviacutea descansadoteniacuteame por torpe y por menoscabadoporque por muchas tierras no habiacutea viajado

No diaacutelogo platocircnico Feacutedon fala-se dos misteacuterios que os heroacuteis dos relatos lendaacuterios natildeo souberam acatar e por isso seguiram os caminhos da dor (Alvar 1976 p 49)

oὐ μέντοι rsquoαλλὰ τόδε γέ τίς μοι δοκεῖ ὡ Κέβης εὖ λέγεσθαι τὸ θεους εἰναι ἡμῶν τοὺς ἐπιμελουμενους καὶ ἡμας τοὺς ἀνθρώπους ἐν τῶν κτημάτων τοὶς θεοῖς εἶναι [Aquilo dos misteacuterios de que noacutes homens nos encontra-mos numa espeacutecie de caacutercere que nos eacute vedado abrir para escapar Uma coisa pelo menos Cebete me parece bem enunciada que os deuses satildeo nos-sos guardiotildees e noacutes homens propriedade deles]9

Agrave tradiccedilatildeo da Odisseia responde o relato autobiograacutefico dos heroacuteis Surgem as aventuras e desventuras dos protagonistas tanto no Libro como nas novelas gregas Haacute muito tempo que foi dito que as nove-las gregas satildeo uma espeacutecie de sequecircncias cinematograacuteficas (Rattenbury 1935 pp XXII e XCII) que nos conduzem de um cenaacuterio para outro de

9 Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico Feacutedon Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia)

aventura em aventura e noacutes ndash simples espectadores ndash corremos atraacutes da dor dos heroacuteis Mas aleacutem disso a vida dos protagonistas eacute a muacutesica ambiente que faz vibrar as estrofes do Libro ou move a compaixatildeo dos leitores natildeo eacute a vida como peripeacutecia mas a autobiografia contemplada como passado remoto que move o leitor numa identificaccedilatildeo de simpa-tia ateacute aqueles heroacuteis golpeados pelo destino

Tambeacutem como na Odisseia no Libro de Apolonio os companheiros do heroacutei morrem e apenas ele se salva e consegue chegar agrave praia agarra-do numa tabua

Libro de Apolonio Odisseia

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echarDe vestido y calzado pobre estaba al llegara Pentapolin tierra donde hubo de arribar

ἧος ὁ ταῦθ᾽ ὣρμαινε κατὰ φρέναα καὶ κατὰ θυμὁνὧρσε δ᾽ ἐπὶ μέγα κῦμα Ποσειδάων ἐνοχθωνδεινόν τ᾽ ἀργαλέον τε κατηρεφές ἤλασε δ᾽ αὐτόνὡς δ᾽ ἄνεμος ζαης ἠἲων θημῶνα τινάξῃκαρφαλέων τὰ μὲν ἂρ τε διεσκέδασ᾽ ἂλλυδις ἂλλῃὥς τῆς δούρατα μακρὰ διεσκέδασ᾽ αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςἀμφ᾽ ένὶ δούρατι βαῖνε κέληθ᾽ ώς ἵππον ἐλαύνων

Fez surgir logo Posido que a terra sa-code uma vaga cheia de grandes peri-gos que se arca e sobre ele desaba Bem como vento impetuoso que monte de palha desmancha para levaacute-lo em re-moinho de um lado para outro desfeito dessa maneira o mar forte os pranchotildees espalhou Odisseu monta num deles tal como se fosse cavalo de pista

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 57) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 V vv 365-372) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 108)

Como Apolocircnio quando natildeo tem roupas adequadas para entrar no palaacutecio de Archistrastes Ulisses ataviado pobremente tambeacutem fica no umbral da sua proacutepria casa

Libro de Apolonio Odisseia

Apolonio por miedo de la Corte enojarno teniacutea vestido nada con que adornarno quiso de verguumlenza en el palacio entrarretornoacute hasta la puerta y comenzoacute a llorar

ἀγχίμολον δὲ μετ᾽ αὐτὸν ἐδύσετο δώματ᾽ [Ὀδυσσεύςπτωχῷ λευγαλέω ἐναλίκιος ἠδὲ γέροντισκηπτόμενος τὰ δὲ λυγρὰ περὶ εἴματα ἓστοἷζε δ᾽ ἐπὶ μελίνου οὐδοῦ ἔντοσθε θυράωνκλινάμενος σταθμω κυπαρισσίνω ὃν ποτε τέκτωνξέσσεν ἐπισταμένως καὶ ἐπὶ στάθμην ἴθυνην

[Entra na sala depois do porqueiro o divino Odisseu desfigurado num velho pedinte de miacutesero aspecto num pau firmado cobrindo-lhe o corpo uns andrajos trazia Sobre a soleira de freixo da porta de dentro assentando-se no umbral o corpo encostou de cipreste que o artiacutefice outrora com muito engenho lavrara tomando as medidas com fio]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 63) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XVII vv 336-341) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 297)

Como na Odisseia a muacutesica serve para envolver o relato das aven-turas dos heroacuteis Assim Demoacutedoco o aedo movido por um impulso di-vino faz chorar a Ulisses pelo qual Alciacutenoo decide suspender seu can-to para natildeo perturbar o convidado Paralelamente no Libro Apolocircnio chora de pena e natildeo se deleita diferentemente dos presentes com os cantos de Luciana filha de Architrastes

Libro de Apolonio Odisseia

Comenzoacute Apolonio de suspiros cargadodijo toda su pena por lo que hubo pasadodoacutende estaacuten tierra y reino coacutemo era llamadobien lo escuchoacute la dama teniendo gran agrado

Los altos y los bajos todos de ella deciacuteanLa dama y la vihuela tan bien se sucediacuteanque lo tienen a hazantildea todos los que lo oiacuteanHizo otros ejercicios que mucho maacutes valiacutean

Alabaacutendola todos Apolonio callabaPensando estuvo el rey por queacute eacutel no hablabaLe preguntoacute y le dijo que se maravillabaque con todos los otros tan mal de acuerdo [estaba

ταῦτ᾿ ἂρ᾿ ἀοιδὸς ἂειδε περικλυτός αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςτήκετο δάκρυ δ᾿ ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάςὡς δὲ γυνή κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσαὁς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσινἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἧμαρ

ldquoκέκλυτε Φαιήκων ἡμήτορες ἠδὲ μέδοντεςΔημόδοκος δ᾿ ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειανοὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ᾿ ἀείδει

[Isso narrava o famoso cantor Odisseu entrementes liquefa-zia-se em laacutegrimas tendo ba-nhadas as faces como mulher abraccedilada no corpo do caro ma-rido que sucumbisse a lutar jun-to aos muros e seus moradores a defendecirc-la e a seus filhos da sorte do dia impiedoso [] Pare portanto o cantor porque ale-gres fiquemos noacutes todos]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 66-67) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 521-525) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 536-538) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 150-151)

Apolocircnio enfim comeccedila sua peregrinaccedilatildeo por terras de Egito da mesma forma que no relato eacutepico de Homero tambeacutem Ulisses dirige suas naves ateacute o Egito

Libro de Apolonio Odisseia

laquoTe encomiendo la hija te la doy a criarcon su ama Licoacuterides que la sabraacute guardarno quiero los cabellos ni las untildeas cortarhasta que casamiento bueno le pueda dar

laquoHasta que yo esto pueda cumplir y prepararel reino de Antioco yo le quiero dejarAhora ni en Pentapolin ni en Tiro quiero entrarIreacute hasta Egipto donde quiero mientras estarraquo

μῆνα γὰρ οἷον ἔμεινα τεταρπόμενος τεκέεσσινκουριδίῃ τ᾽ ἀλόχω καὶ κτήμασιν αὐτὰρ ἔπειταΑἴγυπτὸνδε με θυμὸς ἀνώγει ναυτίλλεσθαι

[Um mecircs somente fiquei deleitando-me ao lado dos filhos da que esposei quando virgem pois logo depois de algum tempo me manda o peito viajar outra vez para o Egito distante]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 91) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XIV vv 244-246) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 244)

42 A tradiccedilatildeo latina

Como no caso da grega a tradiccedilatildeo latina se faz presente em diversas pas-sagens do Libro de Apolonio Jaacute foi dito que a muacutesica e quem a interpreta o vate as habilidades musicais em geral satildeo traccedilos positivos caracterizadores do heroacutei Isso mesmo se narra na tradiccedilatildeo claacutessica latina dentre outros na fi-gura de Oviacutedio Nas Tristia ele mesmo se apresenta para a posteridade como poeta relevante na introduccedilatildeo agrave sua obra (Oviacutedio 1997 p 66) Ille ego qui fuerim tenerorum lusor amorum Quem legis ut noris accipe posteritas10

Natildeo resulta estranho portanto que Apolocircnio chegue a ser compa-rado pelo autor do Libro com o poeta Orfeu um dos grandes mitos da tradiccedilatildeo claacutessica (Cabantildeas 1998 p 68)

Todos por una boca deciacutean y afirmabanque ni Apolo ni Orfeo mejor que eacuteste tocabanel cantar de la dama al que mucho alababanante eacuteste de Apolonio en nada lo apreciaban

Com efeito nas Metamorfoses Oviacutedio narra a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Receacutem-casada a jovem Euriacutedice eacute mordida por uma cobra

10 ldquoVem conhecer posteridade o poeta que fui De amores ternos o poeta que ora lecircsrdquo (Oviacutedio 1997 p 67) ldquoSabei oacute Posteridade para que me conheccedilas que sou aquele que fui cantor dos ternos amores que lecircsrdquo (Naso 1952 p173)

e morre Nam nupta per herbas dum noua Naiadum turba comitata uagatur occidit im talum serpentis dente recepto (Ovidio Nasoacuten 1994 p171)11 Depois de chorar a morte da amada no mundo terreno o excel-so poeta decide descer ao Estige e consegue convencer Perseacutefone atra-veacutes do seu belo canto e suas doces palavras para devolver Euriacutedice ao mundo dos mortais Quem satis ad superas postquam Rhodopeiumlus auras defleuit uates ne non temptaret et umbras ad Styga Taenaria est ausus descendere porta (Ovidio Nasoacuten 1994 p 171)12 Comovidos os deuses das trevas concedem o pedido do vate

Talia dicentem neruosque ad uerba mouentemexsangues flebant animae []Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama estEumenidum maduisse genas nec regia coniuxsustinet oranti nec qui regit ima negareEurydicenque uocant13

(Ovidio Nasoacuten 1994 p173)

Poreacutem a libertaccedilatildeo eacute concedida sob uma condiccedilatildeo natildeo voltar os olhos para a amada ateacute sair do Averno Hanc simul et legem Rhodopeiumlus accipit Orpheus ne flectat retro sua lumina donet Auernas exierit ual-les aut irrita dona futura (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)14 Quando che-gavam no limite dos dois mundos temeroso de que ela pudesse enfra-quecer Orfeu voltou seu rosto para Euriacutedice e no mesmo instante ela caiu no abismo Nec procul afuerunt telluris margine summae hic ne deficeret metuens auidusque uidendi flexit amans oacuteculos et protinus illa relapsa est (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)15 Portanto o canto de Apolocircnio

11 ldquoEuriacutedice pouco depois do casamento quando passeava com as ninfas suas compa-nheiras [] pisou em uma cobra foi mordida no peacute e morreurdquo (Bulfinch 2001 p 224)

12 ldquoOrfeu cantou seu pesar para todos quantos respiram na atmosfera superior deuses e homens e nada conseguindo resolveu procurar a esposa na regiatildeo dos mortos Desceu por uma gruta situada ao lado do promontoacuterio de Teacutenaro e chegou ao reino do Estigerdquo (Bulfinch 2001 p 224-226)

13 ldquoEnquanto cantava estas ternas palavras os proacuteprios fantasmas derramavam laacutegri-mas [] Entatildeo pela primeira vez segundo se diz as faces das Fuacuterias umedeceram-se de laacutegrimas Proseacuterpina natildeo pocircde resistir e o proacuteprio Plutatildeo cedeu Euriacutedice foi cha-madardquo (Bulfinch 2001 p 226)

14 ldquoOrfeu teve permissatildeo de levaacute-la consigo com uma condiccedilatildeo a de que natildeo se voltaria para olhaacute-la enquanto natildeo tivessem chegado agrave atmosfera superiorrdquo (Bulfinch 2001 p 226)

15 ldquoateacute quase atingirem as risonhas regiotildees do mundo superior quando Orfeu num momento de esquecimento para certificar-se de que Euriacutedice o estava seguindo olhou para traacutes e Euriacutedice foi entatildeo arrebatadardquo (Bulfinch 2001 p 226)

eacute aqui comparado com a excelecircncia do famoso poeta que foi capaz de comover ateacute as divindades das trevas

Outro episoacutedio do Libro nos aproxima da mitologia claacutessica Quando viacutetima do naufraacutegio pobre e exausto Apolocircnio eacute hospedado por um hu-milde pescador que vai compartilhar com ele o pouco que tem o heroacutei pro-mete recompensaacute-lo no futuro pela sua boa accedilatildeo (Cabantildeas 1998 p 58-59)

El rey con gran verguumlenza porque pobre estuvierafue hacia el pescador salioacutele a la esperalaquomdashiexclDios te salve mdashle dijo como cosa primeraRespondioacute el pescador de sabrosa maneralaquomdashAmigo mdashdijo el reymdash tuacute bien lo puedes verPobre y necesitado estoy no traigo haberAsiacute Dios te bendiga que te pueda placerque comprendas mi pena y la quieras saberlaquoTan pobre cual tuacute ves desnudo y desdichadode un buen reino soy rey muy rico y potentadode la ciudad de Tiro donde era muy amadodiacutecenme Apolonio por nombre sentildealadoraquoSu vestido partioacute maacutes tarde con su espadadio al rey la mitad lo llevoacute a su posadaLe dio de cenar cuanto pudo no escondioacute nadaPor un hueacutesped ninguna cena fue mejor dada

Tambeacutem nas Metamorfoses a histoacuteria de Filecircmon e Baucis pode re-presentar perfeitamente um antecedente textual deste episoacutedio Filecircmon eacute um velho camponecircs marido de Baucis que recebeu junto com esta a visita de Juacutepiter que se apresentou de incoacutegnito na casa deles

Iuppiter hunc specie mortali cumque parenteuenit Atlantiades positis caduficer alis mille domos adiere locum requiemque petentesmille domos clausere serae tamen una recepitparua quidem stipulis et canna tecta palustrised pia Baucis anus parilique aetate Philemonilla sunt annis iuncti iuuenalibus16

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 120-121)

16 ldquoCerta vez Juacutepiter sob forma humana visitou a regiatildeo em companhia de Mercuacuterio (o do caduceu) sem suas asas Apresentaram-se como viajantes fatigados a muitas portas pro-curando abrigo e reposo mas encontraram todas fechadas Afinal uma moradia humil-de acolheu-os uma pequena choupana onde uma piedosa velha Baucis e seu marido Filecircmon unidos quando jovens haviam envelhecido juntosrdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

Uma vez revelada a sua verdadeira identidade ndash lsquodirsquo que lsquosumus meritasque luet uicina poenas inpiarsquo dixerunt lsquouobis inmunibus huius esse mali dabiturrsquo (Ovidio Nasoacuten 1994 p 123)17 o casal foi recom-pensado pelos deuses da mesma forma que aqueles que natildeo os recebe-ram adequadamente foram punidos e morreram afogados O pedido do casal aos deuses foi morrer no mesmo dia para nunca eles sentirem respectivamente falta do outro

lsquoDicite iuste senex et femina coniuge iustodigna quid optetisrsquo []lsquoet quoniam concordes egimus annosauferat hora duos eadem nec coniugis umquambusta meae uideam neu sim tumulandus ab illarsquo18

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 124)

No Libro de Apolonio por sua vez na parte final do poema o protago-nista tambeacutem recompensaraacute seu hoacutespede ricamente (Cabantildeas 1998 p 132)

Por todos los trabajos que le habiacutean venidono olvidoacute el convenio que habiacutea prometidorecordoacute al pescador que lo habiacutea acogidoel que hubo con eacutel el mantillo partidoDios que vive y reina tres y uno llamadodepare un tal hueacutesped a todo hombre cuitadobien haya tal hueacutesped cuerpo tan acordadoque tan buen galardoacuten da a un hospedado

43 Orientalismo

Vaacuterios satildeo os traccedilos que denunciam a influecircncia oriental no Libro de Apolonio Jaacute foi comentada acima a proximidade temaacutetica com rela-ccedilatildeo agrave literatura de aventuras os livros de viagens e a novela bizantina (Artiles 1976 Alborg 1997) Contudo algumas outras caracteriacutesticas acrescentam seu grau de intertextualidade com o mundo oriental

17 ldquondash Somos deuses Esta aldeia inospitaleira sofreraacute a pena de sua impiedaderdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

18 ldquomdash Excelente velho e tu mulher digna de tal marido dizei-me quais satildeo os vosso desejos Que favor quereis de noacutes [] E como passamos toda a nossa vida com amor e concoacuterdia desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida e que eu natildeo viva para ver o tuacutemulo de Baucis nem ela para ver o meurdquo (Bulfinch 2001 p 64)

O primeiro aspecto que merece destaque eacute sem duacutevida no arran-que da histoacuteria de Apolocircnio o enigma como ardil que os pretenden-tes devem resolver para desposarem a filha do rei Antiacuteoco (Cabantildeas 1998 p 43-44)

La verdura del ramo es como la raiacutezde carne de mi madre engrueso mi cervizAquel que adivinase este enigma felizeacutese tendriacutea la hija del rey emperatrizldquoTuacute eres la raiacutez tu hija el ramaltuacute pereces por ella en pecado mortalpues hereda la hija toda deuda carnalla cual tuacute y su madre teniacuteais comunalrdquo

Natildeo eacute contudo o uacutenico exemplo de adivinhaccedilatildeo ou enigma ao longo do poema De fato em outro momento destacado da obra quando o heroacutei descobre que Tarsiana eacute sua filha esta para entretecirc-lo traccedila uma seacuterie de adivinhaccedilotildees que Apolocircnio haveria de resolver (Cabantildeas 1998 p 113)

ldquomdashUnas pocas preguntas te quiero preguntarSi tuacute me las supieses en razoacuten contestarllevareacute la ganancia que me mandaste darsi no me respondieres quieacuterotela dejarldquoDime cuaacutel es la casa ndashpreguntoacute la criadandashque nunca se estaacute queda siempre anda laceradalos hueacutespedes son mudos da voces la posadaSi esto adivinases te quedareacute obligadardquoldquomdashEsto ndashdijo Apoloniondash yo lo voy ideandoel riacuteo es la casa que corre murmurandolos peces son los hueacutespedes que siempre estaacuten callandoEacutesta estaacute terminada ve otra preguntandordquo

As adivinhaccedilotildees satildeo conhecidas por todos os povos desde os pri-moacuterdios e no geral referem coisas comuns de faacutecil compreensatildeo pelo que apresentam um caraacuteter essencialmente popular Contudo sua ori-gem eacute oriental onde muitas vezes expressavam os mais elevados pen-samentos ldquolas maacutes antiguas que se conocen pertenecen a la eacutepoca ba-biloacutenica y aparecen escritas en tablillasrdquo (Rasero Chacoacuten 2004 p 227) Exemplos de adivinhaccedilotildees ou enigmas aparecem em textos biacuteblicos no Alcoratildeo na mitologia grega e nos manuscritos sacircnscritos

Capiacutetulo agrave parte merece a referecircncia sobre a lapidaccedilatildeo como cas-tigo imposto ao proxeneta ndash vino un hombre malo sentildeor de soldaderas pensoacute en ganar con eacutesta ganancias tan sentildeeras (Cabantildeas 1998 p 98) ndash que explorava Tarsiana

No quisieron el ruego poner en otro plazoremovioacutese el concejo como un santildeudo mazobuscaron al traidor echaacuteronle el lazomataacuteronlo con piedras cual rapaz de mal trazo (Cabantildeas 1998 p 122)

A praacutetica da lapidaccedilatildeo era habitual nas tradiccedilotildees preacutevias ao Alcoratildeo no Oriente e de comum aplicaccedilatildeo O primeiro maacutertir cristatildeo Satildeo Estevatildeo morreu lapidado Saulo de Tarso o futuro Satildeo Paulo dedicado na eacutepoca agrave perseguiccedilatildeo dos cristatildeos participou passivamente da lapi-daccedilatildeo observando a cena De fato na Biacuteblia as referecircncias a lapidaccedilotildees satildeo numerosas envolvendo quase sempre assuntos relacionados com atitudes haacutebitos e atividades sexuais

Se um homem se casa com uma mulher e apoacutes coabitar com ela comeccedila a detestaacute-la imputando-lhe atos vergonhosos e difamando-a publicamente dizendo ldquoCasei-me com esta mulher mas quando me aproximei dela natildeo encontrei os sinais da sua virgindaderdquo [] se a denuacutencia for verdadeira se natildeo acharem as provas da virgindade da jovem levaratildeo a jovem ateacute a por-ta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejaratildeo ateacute que morra (Deuteronocircmio 22 13-21)

Se houver uma jovem virgem prometida a um homem e um homem a encontra na cidade e se deita com ela trareis ambos agrave porta da cidade e os apedrejareis ateacute que morram a jovem por natildeo ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher do seu proacuteximo (Deuteronocircmio 22 23-24)

Iahweh falou a Moiseacutes e disse Tira fora do acampamento aquele que pronun-ciou a maldiccedilatildeo Todos aqueles que o ouviram poratildeo suas matildeos sobre a cabeccedila dele e toda a comunidade o apedrejaraacute (Leviacutetico 24 13-14)

Mais conhecido eacute o episoacutedio da mulher aduacuteltera (Joatildeo 8 3-11)

Os escribas e os fariseus trazem entatildeo uma mulher surpreendida em adul-teacuterio e colocando-a no meio dizem-lhe ldquoMestre esta mulher foi surpre-endida em flagrante delito de adulteacuterio Na Lei Moiseacutes nos ordena apedre-jar tais mulheres Tu pois que dizesrdquo [] Quem dentre voacutes estiver sem

pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra Eles ouvindo isso saiacuteram um apoacutes do outro a comeccedilar pelos mais velhos [] Entatildeo erguendo-se Jesus lhe disse ldquoMulher onde estatildeo eles Ningueacutem te condenourdquo Disse ela ldquoNingueacutem Senhorrdquo Disse entatildeo Jesus ldquoNem eu te condeno Vai e de agora em diante natildeo peques maisrdquo

Por fim um uacuteltimo traccedilo de orientalismo no texto de caraacuteter aber-tamente literaacuterio e muito mais claro e direto as referecircncias inequiacutevocas agraves Mil e uma noites Com efeito como Sherazade Tarsiana consegue no caso continuar virgem atraveacutes de suas habilidades musicais que con-vencem os homens que pagam para passar a noite com ela No texto oriental Sherazade contaraacute a seu marido o sultatildeo Shariar graccedilas a sua imaginaccedilatildeo desbordante a histoacuteria de Ali Babaacute e depois viratildeo outras igualmente fantaacutesticas durante mil e uma noites histoacuterias que ela deixa interrompidas quando amanhece para continuar na noite seguinte atre-lando-as a novas histoacuterias O sultatildeo absolutamente fascinado suspen-deraacute a execuccedilatildeo prevista ndash para evitar uma eventual traiccedilatildeo que tinha sofrido com outra mulher ndash jaacute que planejava a morte de uma virgem do seu hareacutem por dia (Riquer amp Valverde 1991 vol 3 p 65-66) No Libro de Apolonio satildeo narradas as habilidades de Tarsiana com os sucessivos clientes do bordel comeccedilando pelo primeiro deles que foi o senhor da cidade Antinaacutegora o qual pagou um alto preccedilo em troca da virgindade e que no final da obra acabaraacute sendo seu esposo

ldquoYo puedo por tu hecho perder ventura y hadocaeraacutes por mal cuerpo tuacute en mortal pecadoHombre eres de valor que estaacutes siempre encumbradosobre hueacuterfana pobre no hagas desaguisadordquo

ldquomdashDama bien entiendo esto que me deciacutesde buena parte sois de linaje veniacutesesta peticioacuten que vos a miacute pediacutesveacuteolo por derecho pues bien lo concluiacutes

ldquoEl precio que dariacutea para con vos pecaros lo quiero de gracia ofrecer y donarque si vos no pudiereis por el ruego escaparal que con vos entrare dadlo para apartar

ldquoSi vos con esta mantildea os podeacuteis defendermientras lo miacuteo durare no os faltaraacute haberrdquo (Cabantildeas 1998 p 100-101)

Tarsiana com o dinheiro de Antinaacutegora consegue convencer o proxeneta para ela aprender outro ofiacutecio de cantora trovadora e assim ele ficaria mais rico e ela honrada

ldquoSentildeor si de ti fuese lo que pido otorgadootro mester sabiacutea que es maacutes sin pecadoque es maacutes ganancioso y es maacutes honrado

ldquoSi tuacute me lo otorgas por la tu cortesiacuteaque me ponga en estudio de esa maestriacuteacuanto tuacute me pidieses yo tanto te dariacuteatuacute tendriacuteas ganancia y yo no pecariacuteardquo

Luego al otro diacutea casi de madrugadalevantoacutese la dama ricamente adornadatomoacute la viola buena y bien templaday salioacute al mercado a tocar por soldada

Tan bien supo la dama su cosa prepararque sabiacutea a su amo la ganancia aumentarRiendo y bromeando con el su buen mirarsuacutepose aunque nintildea del pecado apartar (Cabantildeas 1998 p 102-103)

Eis aqui portanto um exemplo de adaptaccedilatildeo medieval de um velho motivo oriental o que vai nos conduzir ateacute a seguinte epiacutegrafe os traccedilos de medievalismo no processo de recepccedilatildeo e transmissatildeo dos textos pagatildeos

5 O medievalismo do Libro de Apolonio originalidade imitaccedilatildeo adaptaccedilatildeo

Toda obra eacute filha do seu tempo O Libro de Apolonio como dito natildeo seraacute uma exceccedilatildeo A Idade Meacutedia foi um periacuteodo longo e conturbado es-pecialmente se considerarmos a encruzilhada representada pelo Ocidente frente ao Oriente no acircmbito da espiritualidade o Cristianismo frente ao Islam Mas antes de tudo havia uma forte cultura pagatilde de tradiccedilatildeo gre-co-romana aleacutem de muitas outras que depois com a volta do olhar para o homem no Renascimento ndash e ainda muito depois no Romantismo ndash retornaratildeo agraves versotildees originais longe de qualquer adaptaccedilatildeo

Nesse sentido a originalidade do texto radica em apresentar-nos uma tensatildeo entre o local a adaptaccedilatildeo agrave cultura castelhana e o universal a cultura e a lenda de tradiccedilatildeo claacutessica que inclui inequiacutevocos traccedilos orientais e pagatildeos Em outras palavras o medievo realizou uma adap-taccedilatildeo e imitaccedilatildeo de foacutermulas tipos e motivos que se repetiram por toda Europa e que representaram a reatualizaccedilatildeo de registros claacutessicos

O primeiro elemento caracterizador dessa adaptaccedilatildeo medieval como foi jaacute parcialmente apontado vem da matildeo da religiosidade e do imaginaacuterio cristatildeo Em palavras de Le Goff (1983 p 57)

Toda toma de conciencia en la Edad Media se hace por y a traveacutes de la religioacuten ndashen el plano de la espiritualidadndash Podriacutea definirse casi una mentalidad me-dieval por la imposibilidad de expresarse al margen de referencias religiosas

Assim por exemplo uma reinterpretaccedilatildeo das contiacutenuas viagens de Apolocircnio desde esta perspectiva do leitor medieval pode ser aleacutem do arqueacutetipo da dinacircmica da vida do exiacutelio voluntaacuterio a de entender a vida como um percurso ateacute a outra vida o Aleacutem Nesse sentido a pere-grinatio vitae eacute siacutembolo do cristianismo que potildee em evidecircncia o caraacuteter transitoacuterio de toda situaccedilatildeo

Mas jaacute em referecircncia direta ao texto se compararmos o poema es-panhol com a fonte latina que lhe serve como base a Historia Apollonii Regis Tyri surpreende de imediato a grande quantidade de referecircncias religiosas que observamos Com efeito o poema castelhano modifica o espiacuterito pagatildeo da Historia latina Manuel Alvar (1976 p 142) elaborou na sua ediccedilatildeo criacutetica um documentado estudo contendo de um lado as vozes que fazem referecircncia a costumes deuses festas ou crenccedilas pagatildeos (soacute como amostra ampulla uini Apollo Diana Neptunus sepulcrum templa) e do outro as vozes cristatildes correspondentes ndash natildeo necessaria-mente equivalentes das anteriores ermitantildeo santo cleacuterigos monasterio descomulgado pecado nintildea en pecado rayo del diablo etc

Sem entrar nos aspectos puramente leacutexicos jaacute estudados pelo pres-tigioso filoacutelogo espanhol seria bom mergulharmos nessas adaptaccedilotildees de caraacuteter religioso para uma melhor compreensatildeo da dimensatildeo ide-oloacutegica que este tipo de obra representava A primeira e mais eviden-te resulta da cristianizaccedilatildeo dos primeiros versos do poema (Cabantildeas 1998 p 41)

En el nombre de Dios y de Santa Mariacuteasi ellos me guiasen estudiar querriacuteacomponer un romance de nueva maestriacuteadel buen rey Apolonio y su cortesiacutea

Esses primeiros versos satildeo precisamente os que os poetas claacutessicos de-dicavam como invocaccedilatildeo agrave Musa fonte inspiradora como por exemplo para natildeo perder o fio de Homero na Iliacuteada (1965 p 59) Μῆνιν ἂειδε θεά Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος ουλομένην19 ou tambeacutem na Odisseia (1965 p 131) Ἀνδρα μοι ἔννεπε Μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ πλάγχθη20 E para concluir soacute neste primeiro instante podemos ir do Alfa ao Ocircmega isto eacute do iniacutecio ao teacutermino do Libro Laacute encontramos um final moralizante dentro da mais genuiacutena doutrina cristatilde (Cabantildeas 1998 p 135)

Muerto estaacute Apolonio todos morir debemospor aquello que amamos el final no olvidemosPor lo que aquiacute hicieacuteremos allaacute recibiremosallaacute iremos todos siempre de aquiacute saldremos

Dejemos la palabra la razoacuten no alarguemospocos seraacuten los diacuteas que aquiacute moraremosCuando de aquiacute salgamos iquestqueacute ropa llevaremossi no al festiacuten de Dios de Aqueacutel en que creemos

El Sentildeor que gobierna los vientos y la marEacutel nos deacute la su gracia y Eacutel se digne guiary asiacute nos deje tales cosas pensar y obrarque por la su merced podamos escaparEl que tuviere seso responda y diga ameacuten

E ainda para completar natildeo falta o momento de moralizaccedilatildeo no meio da obra cumprindo com o princiacutepio de exemplaridade medieval modelo de conduta e comportamento para aprendizado de todos os exempla21 O esquema eacute simples parte-se do caso particular narrado e se generaliza em termos de moral cristatilde modelo de comportamento

19 ldquoCanta-me oacute deusa do Peleio Aquiles A ira tenazrdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portu-guesa de Manuel Odorico Mendes [2004 p 25])

20 ldquoMusa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito peregrinourdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes [2000 p 28])

21 No proacutelogo do Conde Lucanor Don Juan Manuel explica o intuito da sua obra Et porque cada home aprende mejor aquello de que se maacutes paga por ende el que alguna cosa quiere

Confunda Dios tal rey de tan mala mesuraviviacutea en pecado e ideaba locuramatar queriacutea al hombre que dijera corduraa aqueacutel que resolvioacute la adivinanza oscura

Esto mismo acontece con todos los pecadoslos unos con los otros van todos enlazadosSi no fueren aprisa los unos enmendadosotros muchos mayores son luego acumulados (Cabantildeas 1998 p 48-49)

Nada de novo portanto no panorama que poderia entatildeo oferecer o contexto medieval Em palavras de Blanco Aguinaga (2000 I p 75) rdquoEl Libro de Apolonio [hellip] se relaciona con los esquemas de la vieja novela bizan-tina de aventuras y viajes de final feliz y con las habituales moralizacionesrdquo

Os fenoacutemenos meteoroloacutegicos que governam o mar eram na eacutepica claacutessica atribuiacutedos a divindades pagatildes Como eacute loacutegico o anocircnimo autor do Libro de Apolonio atribui ao Deus cristatildeo esses avatares e a Ele se encomenda para pedir a proteccedilatildeo do heroacutei e de todos noacutes

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echar (Cabantildeas 1998 p 57)

Soacute nesse contexto de adaptaccedilatildeo cristatilde da mitologia pagatilde que vimos apontando pode justificar-se a suposta crueldade do Deus misericordioso e justo cristatildeo frente agrave arbitrariedade das deidades greco-latinas muitas

mostrar a otro deacutebegelo mostrar en la manera que entendiere que seraacute maacutes pagado el que la ha de aprender Et porque muchos homes las cosas sotiles non les caben en los entendimien-tos nin las entienden bien [hellip] yo don Juan fijo del infante don Manuel [hellip] compuesto de las maacutes fermosas palabras que yo pude et entre las palabras entremetiacute algunos ejem-plos de que se podriacutean aprovechar los que los oyeren (Don Juan Manuel 1977 p 13-14)

vezes interessadas apenas em resolver seus proacuteprios confrontos tomando como refeacutens de suas accedilotildees os homens mortais Afora eacute claro a evidente contradiccedilatildeo que se produz em relaccedilatildeo agrave dupla atitude de Deus atribuiacuteda pelo autor do texto agrave sorte de Apolocircnio nos versos destacados da passa-gem acima Outras vezes as tempestades convenientemente guiadas por Deus provocam o acaso que permite o reencontro dos personagens

La tempestad cogioacutelos y el mal temporalsacoacutelos de camino la borrasca mortalechoacutelos su ventura y el Rey espiritualen la villa que pasa Tarsiana mucho mal (Cabantildeas 1998 p 106)

Contudo agraves vezes os fenocircmenos adversos da natureza satildeo atribuiacute-dos ao diabo e natildeo a Deus

laquoDile que muerto estaacute Antioco y enterradoCon eacutel murioacute la hija que lo llevoacute al pecadodestruyoacutelos a ambos un rayo del diabloraquo (Cabantildeas 1998 p76)

A adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio religioso cristatildeo do medievo obriga a forccedilar situaccedilotildees como aquela em que Architrastes rei de Pentapolin daacute sua benccedilatildeo a Apolocircnio e sua filha Luciana quando partem para Antioquia uma vez mortos o rei Antiacuteoco e sua filha Bendiacutejolos a en-trambos con su derecha mano rogoacute al Creador que estaacute en lo maacutes alto que Eacutel guiase a su hija en invierno y veranohellip (Cabantildeas 1998 p 78)

Contudo como vaacuterios seacuteculos depois vai acontecer de novo no per-curso da historia da literatura universal a mistura de influecircncias deixa notar sua presenccedila nesta encruzilhada de culturas e imaginaacuterios Assim no aacutepice do teatro barroco espanhol pode parecer surpreendente a for-ma como Calderoacuten de la Barca em La vida es suentildeo conjuga o fatalismo do horoacutescopo e a providecircncia cristatilde (Alborg 1997 p 690) Lapesa amp Ruiz Ramoacuten falam nesse sentido de ldquooposiciones de contrastesrdquo (1983 p 430) Com efeito Calderoacuten nos apresenta horoacutescopos pressaacutegios e vaticiacutenios que prognosticam os futuros contingentes os astroacutelogos ou judiciaacuterios sabedores de matemaacuteticas sutis julgando signos astrais pre-dizem os influxos de estrelas e planetas Mas as previsotildees dos homens por saacutebios que eles sejam resultam inuacuteteis para preservar-se do ditado

por poderes supremos que regem o acontecer ndash embora nem sempre seja assim como confessa Victor Hugo no prefaacutecio de Notre-Dame de Paris22 ndash onde emerge a grande oposiccedilatildeo ceacuteu fado No Libro de Apolonio o fado o ἀναγκή citado por Victor Hugo caracterizador dos heroacuteis eacutepicos e de outros futuros convive diretamente com o Espiacuterito Santo (Cabantildeas 1998 p 88)

La gente desolada y su rey descasadopasaron su trayecto maldiciendo del hadoEl Espiacuteritu Santo los guioacute sosegadoasiacute el mar arribaron a Tarso sitio amado

Essa mesma oposiccedilatildeo de contrastes ou encruzilhada cultural justifica enfim o episoacutedio que narra a supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo do navio que obriga a desova no mar do corpo de Luciana aparentemente morto o que configu-ra por sua vez um novo foco na trama aventureira do protagonista

ldquoAntes de pocas horas si el cuerpo retenemoshabremos muerto todos librarnos no podremossi la madre perdemos buena hija tenemosmal haces Apolonio que asiacute permanecemosrdquo (Cabantildeas 1998 p 81)

Mas ainda como texto medieval participa de referecircncias desenvol-vidas na sua proacutepria eacutepoca isto eacute autenticamente contemporacircneas e que seratildeo evocadas e imortalizadas pouco tempo depois nas recopilaccedilotildees de romances populares agrupados sob a comum denominaccedilatildeo de Romancero Viejo Entendam-se aqui as expressotildees ldquoromancerdquo e ldquoRomancero Viejordquo exatamente nos termos como as define Masip (2002 pp 112 e 134) ldquopo-emas de tipo narrativo o liacuterico populares producidos entre la seguntad mitad del siglo XIV y todo el siglo XV [] Pueden dividirse en tradi-cionales que evocan los cantares de gesta [] y juglarescosrdquo Nestes ro-mances aparecem motivos e referecircncias intertextuais correspondentes a certos costumes e usos da eacutepoca dos cavaleiros medievais Nesse sentido compare-se o castigo que Apolocircnio ameaccedila infligir na pessoa que ousasse 22 ldquoIl y a quelques anneacutees quacuteen visitant ou pour mieux dire en furetent Notre-Dame

lacuteauteur de ce livre trouva dans un recoin obscur de lacuteune des tours ce mot graveacute agrave la main sur le mur ANAacuteΓKH Ces majuscules grecques () e surtout le sens lugrube et fatal quacuteelles renferment frappegraverent vivement lacuteauteur () Cacuteest sur ce mot quacuteon a fait ce livrerdquo (Hugo 1904 sp)

incomodaacute-lo quando se encontrava atribulado apoacutes receber a falsa notiacute-cia da morte da sua filha com o castigo que por vinganccedila pessoal rece-beu Don Galvaacuten quando foi morto e que aparece descrito em detalhes no Romance de Gaiferos y Galvaacuten datado de 1547

Libro de Apolonio Romance de Gaiferos y Galvaacuten

Al fondo de la nave en rincoacuten apartadoechoacutese en un lecho el rey tan desgraciadojuroacute que quien le hablase seriacutea mal pagadode uno de sus pies seriacutea mutilado

La muerte que eacutel les dijera mancilla es de la [escucharmdashCoacutertenle el pie del estribo la mano del [gavilaacutensaacutequenle ambos los ojos por maacutes segu-ro andary el dedo y el corazoacuten traeacutedmelo por sentildeal

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 107) Citamos pela ediccedilatildeo de Wolf amp Hofmann (1856 II p 222-225)

6 O Libro de Apolonio intertextualidade e literatura comparada Ontem e hoje

A anaacutelise do Libro de Apolonio nos conduz ateacute a conclusatildeo de que ele constitui um claro exemplo do que representou o medievo do ponto de vista literaacuterio e cultural natildeo apenas na Peniacutensula Ibeacuterica mas tam-beacutem no resto da Europa O imaginaacuterio europeu medieval foi consti-tuindo-se sustentado sim na ideologia do cristianismo mas ao mesmo tempo adaptando toda uma tradiccedilatildeo claacutessica pagatilde que na sua versatildeo greco-latina trazia ecos inequiacutevocos do Oriente De um lado Bizacircncio e o antigo impeacuterio oriental romano de outro as influecircncias da cultura semiacutetica aacuterabe e hebraica que chegaram agrave Peniacutensula Ibeacuterica a partir do seacuteculo VIII e que ainda permaneciam em pleno apogeu no seacuteculo XIII eacutepoca da elaboraccedilatildeo do Libro Traziam como consequecircncia uma mistura de motivos e toacutepicos que hoje devemos ser capazes de apreciar e valorar na justa medida em especial quando abordamos a sempre difiacutecil tarefa de compreender um texto antigo

Ao longo das paacuteginas acima foram levantados vaacuterios elementos diferentes entre si de origens tambeacutem bem diversas mas que o anocircni-mo autor ndash homem culto cleacuterigo que inaugurava um novo gecircnero ou

mester de clereciacutea em liacutengua romacircnica e natildeo em latim ndash soube mesclar de forma admiraacutevel e que noacutes hoje desde nosso imaginaacuterio e nossa concepccedilatildeo do mundo devemos saber interpretar sob os coacutedigos da eacutepo-ca na qual foi escrito o poema

A imediata influecircncia de uma histoacuteria sobre o rei Apolocircnio escrita em latim e que circulava pelas bibliotecas dos mosteiros medievais da eacutepoca Historia Apollonii Regis Tyri natildeo compromete a originalidade do texto que nos oferece o autor A Iliacuteada e a Odisseia se fazem presentes em numerosas passagens do Libro e ainda achamos traccedilos que vinculam o texto com os livros de viagens e aventuras e com toda a rica tradiccedilatildeo da novela bizantina Os ecos do conto fantaacutestico oriental representados aqui pelo episoacutedio de Tarsiana trovadora quando eacute vendida ao proxene-ta ndash cujo nome natildeo eacute revelado em momento nenhum como tampouco o nome da filha de Antiacuteoco maculada pelo incesto ndash que eacute capaz com a doccedilura de suas palavras primeiro e a graccedila de seu canto depois de preservar sua virgindade ainda nesse contexto tatildeo adverso remetem agraves habilidades de Sherazade nas Mil e uma noites

Contudo a obra natildeo deixa de ser filha do seu tempo e como tal natildeo faltam caracteriacutesticas e traccedilos puramente medievais como a religiosidade cristianizando as divindades greco-latinas que regem os fenocircmenos at-mosfeacutericos as tempestades e os destinos dos protagonistas quando nave-gam pelo traiccediloeiro mar seja punindo na trama do texto aos pecadores ndash inclusive infligindo-lhes castigos que ora nos levam ateacute episoacutedios biacuteblicos ora nos revelam costumes dos cavaleiros medievais que depois ilustraratildeo o Romancero viejo ndash e beneficiando os que se comportam conforme a mo-ral cristatilde seja enfim atraveacutes das dicas moralizantes que o autor espalha ao longo do texto em primeira pessoa oferecidas ao leitor-ouvinte o que por sua vez nos conduz ateacute a literatura dos exempla medievais

Mas ainda a contribuiccedilatildeo do texto natildeo olha apenas para a histoacute-ria ou a sua contemporaneidade Com efeito algumas personagens do Libro mesmo secundaacuterias podem ser consideradas como a semente de outras futuras estas de indubitaacutevel relevacircncia para a literatura hispacircnica e universal Assim a velha ama que criou a filha de Antiacuteoco e que lhe recomenda natildeo acusar o pai pelo incesto cometido encontra-se na base da Trotaconventos do Libro de buen amor de Juan Ruiz (seacuteculo XIV) e sobretudo representa um esboccedilo do que haveraacute de ser a Celestina de Fernando de Rojas nos albores do Humanismo espanhol (1499)

Por fim muito depois da eacutepoca na qual foi escrito o Libro a gra-ccedila a personalidade e a inteligecircncia que enfeitam Tarsiana tecircm muito a ver com a personagem da gitanilla das Novelas ejemplares de Miguel de Cervantes e sem duacutevida jaacute no acircmbito universal aleacutem da literatura escrita em liacutengua espanhola com a cigana Esmeralda de Notre-Dame de Paris de Victor Hugo

REFEREcircNCIAS

A Biacuteblia de Jerusaleacutem Traduccedilatildeo do texto em liacutengua portuguesa diretamente dos originais Satildeo Paulo Ediccedilotildees Paulinas 1989

ALBORG JL Historia de la Literatura Espantildeola Tomo I Edad Media y Renacimiento 2ordf edicioacuten ampliada Madrid Gredos 1997

ALVAR M Apolonio cleacuterigo entendido In Symposium in honorem prof M de Riquer Barcelona Edicions del Quaderns Crema 1989 (p 51-73)

ARTILES J El ldquoLibro de Apoloniordquo poema espantildeol del siglo XIII Madrid Gredos 1976

BLANCO AGUINAGA C RODRIacuteGUEZ PUEacuteRTOLAS J ZAVALA IM Historia social de la literatura espantildeola (en lengua castellana) 3ordf ed Madrid Akal 2000

BRUYNE E de La esteacutetica de la Edad Media Madrid Visor 1988

BULFINCH Th O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Faacutebula) Histoacuterias de Deuses e Heroacuteis 13ordf ed Trad David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Ediouro 2001

CALDEROacuteN DE LA BARCA P La vida es suentildeo Ed de Antonio Rey Hazas Barcelona Vicens Vives 2000

CERVANTES M de El Licenciado Vidriera y otras novelas ejemplares Madrid Salvat Editores Alianza Editorial 1969

DON JUAN MANUEL El Libro de Patronio e por otro nombre El Conde Lucanor 13ordf ed Madrid Espasa-Calpe 1977

GIROacuteN ALCONCHEL JL Comentario de textos de clereciacutea Alexandre y Apolonio Madrid Arco Libros 2002

GOacuteMEZ MORENO Aacute Notas al proacutelogo del Libro de Alexandre Revista de Literatura XLVI 1984 (p 117-127)

GUILLEacuteN C Entre lo uno y lo diverso Barcelona Criacutetica 1985

HODOI ELEKTRONIKAI Du texte agrave lacutehypertexte Homegravere Odysseacutee Traduction franccedilaise Paris E Flammarion 1937 Disponiacutevel no endereccedilo da Internet mercurefltruclacbeHodoiconcordancesintrohtmHomere (Acessado em 21 de fevereiro de 2013)

HOMERO Iliacuteada Texto integral Trad Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Martin Claret 2004

_____ Odisseia Trad Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2000

_____ Nueva Antologiacutea de la Iliacuteada y la Odisea Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos 1965

LAPESA R RUIZ RAMOacuteN F Calderoacuten traacutegico In RICO F (org) Historia y Criacutetica de la Literatura Espantildeola Vol 31 Primer Suplemento Siglo de Oro Barroco Ed Aurora Egido Barcelona Criacutetica 1983 (p 430-435)

LE GOFF J Tiempo trabajo y cultura en el occidente medieval Madrid Taurus 1983

Libro de Alexandre Edicioacuten preparada por Jesuacutes Cantildeas Murillo Madrid Editora Nacional 1983

Libro de Apolonio Texto iacutentegro en versioacuten del Dr D Pablo Cabantildeas Madrid Castalia 1998

Libro de Apolonio Edicioacuten de Dolores Corbella Madrid Caacutetedra 1992

Libro de Apolonio Edicioacuten de Manuel Alvar Madrid Fundacioacuten Juan March Castalia 1976

LOTMAN Y ESCUELA DE TARTUacute Semioacutetica de la cultura Madrid Caacutetedra 1979

MASIP V Manual de poesiacutea espantildeola y portuguesa Recife AECI Bagaccedilo 2002

MICHAEL I Epic to Romance to Novel Problems of the Genre Identification Bulletin of the John Rylandacutes University Library of Manchester nordm 68 1986 (p 498-527)

MIRANDA POZA JA La Edad Media en Europa como marco para el estudio de la eacutepoca literaria medieval In MIRANDA POZA JA (org) Estudios Hispaacutenicos Recife Editora Universitaacuteria da UFPE 2011 (p 159-169)

_____ Poesiacutea Espantildeola Medieval (II) El Mester de Clereciacutea In MIRANDA POZA JA RODRIGUES JPM (orgs) Estudios de Lengua y Literatura Espantildeola Recife APEEPE PROEXT Departamento de Letras ndash UFPE 2007 (p 123-140)

NASO PO Tristium 2ordf ed Trad literal de Augusto Velloso Rio de Janeiro Ediccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Simotildees 1952

OVIacuteDIO Poemas da carne e do exiacutelio Seleccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Joseacute Paulo Paes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

OVIDIO NASOacuteN P Metamorfosis Texto revisado y traducido por Antonio Ruiz de Elvira 3 vols Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientiacuteficas 1994

RASERO CHACOacuteN J Adivinanzas y trabalenguas Posibilidades didaacutecticas In BARCIA MENDO E (coord) La tradicioacuten oral en Extremadura Meacuterida Junta de Extremadura ndash Consejeriacutea de Educacioacuten Ciencia y Tecnologiacutea 2004 (p 221-247)

RATTENBURY RM Prologue a Les Eacutethiopiques de Heliodore Texte eacutetabli par RM Rattenbury ET TW Lumb et traduit par J Maillon Paris Collection decircs Universiteacutes de France 1935

RIQUER M VALVERDE JM Historia de la Literatura Universal Barcelona Planeta 1991

ROJAS F de La CelestinaTragicomedia de Calisto y Melibea 4ordf ed Introduccioacuten de Stephen Gilman Edicioacuten y notas de Dorothy S Severin Madrid Alianza Editorial 2003

RUIZ J El libro de buen amor Madrid Edimat Libros 1999

TODOROV Tz Introduccioacuten a la literatura fantaacutestica Buenos Aires Tiempo Contemporaacuteneo 1972

URIacuteA I Panorama criacutetico del mester de clereciacutea Madrid Castalia 2000

Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico ldquoFedatildeordquo Trad Carlos Alberto Nunes Creacuteditos Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia) Disponiacutevel no endereccedilo da Internet HTTPbregroupscomgroupacropolis (Acessado em 20 de fevereiro de 2013)

WOLF FJ HOFMANN C Primavera y flor de romances o Coleccioacuten de los maacutes viejos y maacutes populares romances castellanos 2 vols Berlin A Asher amp Co 1856 Disponiacutevel na Internet no endereccedilohttpdeptswashingtoneduhispromoptionalballadactionphpigrh=0087amppublisher=Wolf201856b (Acessado em 24 de fevereiro de 2013)

Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e

a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites

Oussama Naouar(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Consideraccedilotildees epistemoloacutegicas introdutoacuterias das evidecircncias obscuras das Mil e uma noites

As Mil e uma e noites assombram nosso imaginaacuterio relativo ao Oriente como para nos lembrar que eacute necessaacuterio guardar uma certa acuidade associada aos objetos muito evidentes Pois com efeito exis-tem duas sortes de objetos delicados para o pesquisador De uma parte os objetos desconhecidos totalmente novos pelo menos segundo acre-ditamos de outra os muito evidentes e ceacutelebres

Os primeiros tecircm que ser buscados continuamente Se trata para noacutes de natildeo somente os achar mas tambeacutem de lhes tirar sua aparente virginda-de sobretudo relativa como temos de admitir Portanto esta concepccedilatildeo de objeto novo eacute na maioria das vezes epistemologicamente confusa Ela atende ao olhar de um pesquisador que se debruccedila a partir de uma eacutepoca particular sobre um elemento que atrai nossa atenccedilatildeo Esta virgindade eacute ainda uma propriedade construiacuteda sobre o objeto de pesquisa pois de fato ela se elabora a partir do cruzamento de uma ou mais articulaccedilotildees definidas como novas num momento histoacuterico particular no quadro de uma episteme Sabemos a partir de Foucault que a episteme faz referecircncia agrave sistematizaccedilatildeo das regras de construccedilatildeo dos objetos sujeitos e concei-tos postulando que haacute um elemento dos saberes (no sentido de elemento aquaacutetico por exemplo) que impotildee aos objetos do saber o modo de ser determinado (cf Foucault 1990 p 13) Portanto esta construccedilatildeo mesma implica uma ruptura desconstruccedilatildeo para tornar novamente inteligiacutevel esta formalizaccedilatildeo do objeto de pesquisa

A outra categoria eacute composta destes objetos do cotidiano comuns que natildeo brilham mais por sua novidade tanto que natildeo se deixam mais

interrogar Aqui o esclarecimento foucaultiano continua pertinen-te Mas pode ser necessaacuterio conjugaacute-lo agraves meditaccedilotildees de um Gaston Bachelard recordando esta ceacutelebre frase de La formation de lrsquoesprit scientifique que precisa ldquonoacutes conhecemos contra um conhecimento an-teriorrdquo (Bachelard 1971 p 14) Nessa perspectiva o conhecimento soacute eacute possiacutevel a partir da superaccedilatildeo de um conhecimento anterior o qual nesta aproximaccedilatildeo epistemoloacutegica aparece necessariamente como um limite um oposto um obstaacuteculo As mil e uma noites fazem parte destes uacuteltimos objetos Pois este texto que natildeo cessa de nos fascinar noacutes o apreendemos somente pelas tramas do passado Esta constataccedilatildeo natildeo deixa de nos lembrar que ao encontro do conhecimento o espiacuterito se revela sob o peso da idade pois nunca eacute jovem mas sempre velho pelos seus preconceitos e nessas circunstacircncias acessar o conhecimento ldquoeacute espiritualmente rejuvenescer eacute aceitar uma mutaccedilatildeo brusca que deve contradizer o passadordquo (Bachelard 1971 p 14) Ora noacutes sabemos a que ponto as Mil e uma noites satildeo um objeto eterno sempre revisitado sempre fascinante mas que pode esconder atraacutes de suas evidecircncias uma parte profunda de obscuridade As Mil e uma noites uma vez que o efeito exoacutetico tenha passado nos enseja a perguntar sobre suas evidecircn-cias obscuras Acalentado sob uma apreensatildeo ingecircnua e reconfortante este questionamento chama o espiacuterito ceacutetico agrave desconstruccedilatildeo

Com efeito muitas ideias preconcebidas englobam indistintamente Sherazade Oriente Mil e uma noites hareacutens e outros objetos de nossa imaginaccedilatildeo Em relaccedilatildeo a estas ideias Bergson indica pertinentemen-te que nosso espiacuterito possui uma irresistiacutevel tendecircncia a considerar como mais clara a ideacuteia que lhe serve continuamente Esta forma de ldquoeconomia mentalrdquo explica em parte porque se constitui num conjunto de ideacuteias preconceitos e opiniotildees que acabam escondendo a comple-xidade e a singularidade de uma produccedilatildeo literaacuteria Uma exigecircncia de superaccedilatildeo de questionamento se configura ao reacutes de nossas opiniotildees pois ldquoa opiniatildeo pensa mal ela natildeo pensa ela traduz necessidades em conhecimentos Designando os objetos pela utilidade ela se proiacutebe de os conhecer Natildeo se pode fundar nada sobre a opiniatildeo temos antes de tudo que a destruir Ela eacute o primeiro obstaacuteculo a superarrdquo (Bachelard 1971 p 14) Um olhar filosoacutefico ao texto eacute sobretudo pertinente se acei-tarmos que a filosofia pode se referendar como remeacutedio agrave opiniatildeo pois da opiniatildeo agrave asneira haacute um pequeno passo um breve resvalar Opiniatildeo

e asneira entreteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima conivente e profunda tambeacutem como bem dizia Gilles Deleuze em seu Abeacuteceacutedaire ldquoa filosofia impede a asneira de ser tatildeo grande como poderia ser se natildeo houvesse a filosofiardquo (in Boutang 1988) Eis um argumento de peso

Portanto estes enviesamentos epistemoloacutegicos natildeo satildeo proacuteprios so-mente agraves Mil e uma noites bem ao contraacuterio Tal constataccedilatildeo em torno da obra literaacuteria ilustra uma problemaacutetica bem mais ampla proacutepria ao orientalismo Edward Saiumld teoacuterico da literatura e figura importante dos estudos poacutes-coloniais cuja pena nos deu Orientalisme lrsquoOrient creacutee par lrsquoOccident funda esta corrente a partir da concepccedilatildeo do Oriente como objeto de uma criaccedilatildeo ldquoO Oriente como uma criaccedilatildeo do Ocidente seu duplo seu contraacuterio a encarnaccedilatildeo dos seus medos e de seu sentimento de superioridade a um soacute tempo a carne de um corpo do qual aspiraria a ser o espiacuteritordquo (Saiumld 1980 p 23)

Agrave luz desta citaccedilatildeo natildeo podemos deixar de repensar os quadros dos trecircs ceacutelebres Eugegravenes ndash Delacroix Girardet e Fromentin ndash ou ainda a inspiraccedilatildeo que atravessa as obras picturais do brasileiro Oscar Pereira da Silva Nelas vemos se materializar esta carne certamente oriental que traz ao contraacuterio e por traacutes dessas personagens figuradas um es-piacuterito fundamentalmente ocidental tudo participa dessa constataccedilatildeo as posturas as cenas e a distribuiccedilatildeo dos papeis Mas a grande contri-buiccedilatildeo de Saiumld continua na re-inscriccedilatildeo destes liames como construtos epistemologicamente falando A literatura a arte e mais largamente a esteacutetica no sentido de partage du sensible como a nomeia Jacques Ranciegravere (2000) se tornam reveladores da relaccedilatildeo complexa que rege esta geografia de um imaginaacuterio proacuteprio agrave oposiccedilatildeo Oriente-Ocidente

Pois eacute necessaacuterio admitir que o orientalismo natildeo se limita somen-te a uma corrente esteacutetica nem mesmo artiacutestica ou literaacuteria mas a ldquoum cacircmbio dinacircmico entre autores individuais e vastos empreendimentos poliacuteticos formados pelos impeacuterios britacircnico francecircs e americano sobre o territoacuterio intelectual e imaginaacuteriordquo (Saiumld 1980 p 27) Dito de outra for-ma as obras e produccedilotildees esteacuteticas do orientalismo vatildeo a par com projetos poliacuteticos e geopoliacuteticos proacuteprios ao colonialismo Intelectual e imaginaacuterio eis certamente o coraccedilatildeo da confrontaccedilatildeo que poderia se prolongar em Razatildeo e Emoccedilatildeo racionalidade e misticismo Estas oposiccedilotildees natildeo conti-nuam menos ideoloacutegicas como nos indica Jacques Derrida (1967) Jaacute que inscritas no prolongamento da dicotomia Oriente-Ocidente e agrave imagem

do exemplo Carne-Espiacuterito evocada anteriormente estas oposiccedilotildees teste-munham um limite da histoacuteria do pensamento que consistiu em conceber o mundo como um sistema de oposiccedilatildeo a declinar ao infinito em que um dos elementos eacute sempre pensado como um ldquoparasitardquo um ldquoacidenterdquo um ldquoexcrementordquo (Derrida 1967 p 415)

Este movimento pendular entre poetizaccedilatildeo e desilusatildeo se ilustra entre os escritores franceses que realizaram a experiecircncia concreta do Oriente Pensemos na decepccedilatildeo de um Chateaubriand que escrevia em descobrindo a Alexandria ldquoAlexandria me pareceu o lugar mais triste e desolado da terrardquo (1969 p 63) Ele diraacute de Jerusaleacutem

A paisagem ao redor da cidade eacute medonha quanta desolaccedilatildeo e quanta mi-seacuteria Nesta pilha de escombros que chamam uma cidade a gente do paiacutes se deu ao prazer de dar nomes de ruas a passagens desertas As casas parecem presiacutedios ou sepulcros Agrave vista destas casas de pedras nos perguntamos se natildeo constituem monumentos confusos de um cemiteacuterio no meio do deserto Entre na cidade nada vos consolaraacute da tristeza exterior voacutes vos perdereis nas pequenas ruas natildeo pavimentadas que sobem e descem sobre um solo desigual e voacutes andareis entre ondas de poeira ou entre pedras que rolam (Chateaubriand 1969 p 87)

Estamos bem longe do Oriente sonhado e os golpes da realidade pa-recem dolorosos Da mesma forma eacute faacutecil pensar que Jerusaleacutem cidade sagrada por excelecircncia ilustra este espiacuterito ocidental dentro de uma car-ne oriental elevada agrave escala de uma cidade Mais que em outro lugar o imaginaacuterio interfere com o intelectual ao ponto de poder distinguir no orientalismo uma forma desviada de cruzada esteacutetica onde o territoacuterio cobiccedilado escapa sempre em meio a todas as brechas a todas as incursotildees

Mas eacute talvez Flaubert que se demarca mais deste grupo de escritores viajantes ele que numa carta escrita a sua matildee revela uma decepccedilatildeo toda paradoxal que busca o autecircntico passando pelo crivo do imaginaacuterio ldquoEacute no Cairo que o Oriente comeccedila Alexandria eacute muito mesclada de euro-peus para que a cor local seja bem purardquo (1973 p 182) Notemos aqui como desta frase curta emana uma tensatildeo fundamental e proacutepria do oci-dente colonial que opotildee autenticidade e alteridade Quanto agrave Jerusaleacutem sua decepccedilatildeo soacute cresceria Em outra correspondecircncia Flaubert indica

Jerusaleacutem eacute uma vala cercada por muralhas Tudo aiacute apodrece Os ca-chorros mortos nas ruas as religiotildees nas igrejas Haacute muita quantidade de

excremento e ruiacutenas O Santo Sepulcro eacute uma aglomeraccedilatildeo em meio a todas as maldiccedilotildees possiacuteveis Num pequeno espaccedilo haacute uma igreja armecircnia uma grega uma latina e uma copta Tudo isso se injuriando se maldizendo do fundo da alma e calccedilando o vizinho a propoacutesito de candelabros tapetes e quadros ndash que quadros (Flaubert 1973 p 227)

Uma cidade caoticamente ldquosantardquo ao menos na aparecircncia onde o odor da morte nos pega pela garganta Onde estatildeo os perfumes do Oriente neste cenaacuterio meio fuacutenebre meio maldito Este Oriente que deveria revitalizar o ldquocorpordquo entorpecido do Ocidente parece deslizar agraves avessas da realidade em direccedilatildeo a um imaginaacuterio que de fato natildeo mais existe Geacuterard de Nerval escreve em 1867 depois de sua viagem de 1843

O Egito eacute uma vasta tumba eacute a impressatildeo que me passou ao aportar nesta praia de Alexandria que com suas ruiacutenas e seus montiacuteculos oferece aos olhos tuacutemulos espalhados sobre uma terra de cinzas [] Eu teria amado mais as lembranccedilas da antiguidade grega mas tudo isso foi destruiacutedo arra-sado e se tornou irreconheciacutevel (Nerval 1980 p 83)

Satildeo provavelmente os tuacutemulos de suas proacuteprias ilusotildees que expli-cam esta persistecircncia de uma apreciaccedilatildeo lsquomoacuterbidarsquo do Oriente de uma funesta decepccedilatildeo Tais citaccedilotildees satildeo esclarecedoras por nos fazerem ob-servar a maneira como intelectual e imaginaacuterio se imbricam quando se trata do Oriente Tambeacutem cremos que para noacutes estudiosos de literatu-ra eacute importante apreender o Oriente assumindo esta tensatildeo constituti-va Eacute soacute se perguntando fundamentalmente sobre este paradoxo que faz da imagem do Oriente a realizaccedilatildeo muitas vezes mais ldquofictiacuteciardquo de uma busca intelectual e imaginaacuteria que pode se esboccedilar as premissas de uma apreciaccedilatildeo mais justa do Oriente Ter em mente que este imaginaacuterio eacute um dos elementos constitutivos de nossa episteme integrando suas dimensotildees religiosa e miacutestica satildeo ambas posturas que nos permitem natildeo perder de vista os desvios de nossa apreensatildeo Pois olhar o Oriente caminha a par de uma vontade de dobrar o mundo numa ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo para retomar a expressatildeo de Martine Geronimi (2006)

Na admiraccedilatildeo e no elogio ldquoda suntuosidade das cores e dos perfu-mes do Orienterdquo clichecirc tiacutepico se faz necessaacuterio perceber os murmuacuterios de uma nostalgia profunda aquela dos valores perdidos da Europa Em sua obra Orient-Occident La fracture imaginaire Georges Corm (2005) nos lembra que ldquoa imagem de uma Europa que perdeu sua alma em

busca do progresso material vai comeccedilar a se cristalizar A idealizaccedilatildeo do Oriente de sua miacutestica de seu senso de honra de seu desprezo su-posto aos valores materiais vai se estabelecerrdquo Mas paradoxalmente a superioridade ocidental colonial ressurge continuamente Eacute de certa maneira um fenocircmeno que se encontra algures entre os exilados por exemplo nesta idealizaccedilatildeo perpeacutetua do paiacutes de origem Como fascina-ccedilatildeo assimeacutetrica feita de admiraccedilatildeo e recusa o orientalismo soacute podia coincidir sob mais de um aspecto agrave empresa colonial aquela mesma que se apropriava ldquocivilizandordquo

2 Do universal vindo de algures as Mil e uma noites em partilha

Mas esta ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo natildeo tem soacute desvantagens Ela parece dar mesmo que de maneira meio desviada creacutedito ao Oriente Apesar de todas as duacutevidas que levanta atualmente a humanidade sobre o mun-do aacuterabe sobre esta ferida narciacutesica que ele arrasta durante seacuteculos ferida de uma grande civilizaccedilatildeo passada que desaprendeu a se reno-var as Mil e uma noites ao lado da espiritualidade sufi soube guardar os favores do Ocidente E aqui temos outro dos grandes paradoxos do Oriente se invertermos o sentido da relaccedilatildeo em sua ligaccedilatildeo consigo proacuteprio e com o Ocidente Pois parece que o divino que trouxe um eacutelan civilizador importante agraves sociedades araacutebico-mulccedilumanas tornou-se um fardo deixando mais atuais estas linhas do filoacutesofo andaluz Averroacuteis (1126-1198) conhecido no mundo aacuterabe como Ibn el Rushd

Natildeo existe nenhuma contradiccedilatildeo entre verdade religiosa e verdade racional pois todas as duas vecircm de Deus qualquer um que interditar os fieacuteis dotados de razatildeo a iniciaccedilatildeo aos escritos filosoacuteficos da Antiguidade os teraacute distan-ciado de uma porta a qual o Islatilde chama e de um meio de permitir melhor conhecer a Deus (2000 p 99)

Desde o seacuteculo XII portanto o divoacutercio entre espiritualidade e pen-samento entre a doutrina e as artes entre a crenccedila e o saber soacute se dilatou no Oriente As diferentes tentativas para redourar o brasatildeo do mundo aacuterabe se tornaram letra morta se o julgarmos por sua atualidade As mais recentes sendo aquelas da Nahda literalmente o renascimento empresa cujas figuras mais conhecidas satildeo Tahtacircwi Jamacircl al-Dicircn al-Afghacircni ou

ainda Muhammad Abduh (cf Issa 2008) Estes uacuteltimos tiveram o meacute-rito de tentar reformar o mundo aacuterabe se negando em se inscrever num orientalismo caricatural No que ele comporta de caricatura o orienta-lismo se apresenta como a resultante de uma empresa de elaboraccedilatildeo de fronteiras tanto a fascinaccedilatildeo do Oriente se fundamenta tambeacutem numa ideologia da diferenciaccedilatildeo a basear-se principalmente sobre a superiori-dade ocidental e indo-europeacuteia A polecircmica que opocircs violentamente Al-Afghacircni a Renan ilustra paradigmaticamente esta confusatildeo dos registros da eacutepoca oitocentista (cf Lorcerie 2007 p 509-536)

E portanto se o mundo de hoje como o de ontem adula esta li-teratura deve se basear em algumas razotildees Eacute na viagem e na recepccedilatildeo que as Mil e uma noites conquistaram as suas credenciais E se podemos por um lado criticar um apelo exotista sobre o texto por outro a obra se enriqueceu do ponto de vista aacuterabe por conta deste interesse ocidental A histoacuteria nos ensina que a circulaccedilatildeo dos textos das representaccedilotildees e das ideias participa da promoccedilatildeo destas ao tempo que lhe recorta de sua historicidade do fato de ldquoa neutralizaccedilatildeo do contexto histoacuterico que resul-ta da circulaccedilatildeo internacional dos textos e do esquecimento correlativo das condiccedilotildees histoacutericas de origemrdquo (Bourdieu Wacquant 1998 p 17) Eacute necessaacuterio lembrar que as Mil e uma noites eram consideradas como pertencentes a uma literatura secundaacuteria e eacute de maneira paradoxal ao prisma do Ocidente que a obra se valorou E se ela eacute apresentada como a obra que ilustra a sensibilidade e o imaginaacuterio do mundo aacuterabe por ex-celecircncia continua pertencendo a um patrimocircnio de literatura lsquoprofanarsquo tambeacutem correntemente chamado no mundo aacuterabe de ldquomedianardquo ou seja intermediaacuteria entre as obras-primas literaacuterias e as obras mais populares a exemplo dos contos orais Inicialmente os contos que circulavam no mundo aacuterabe natildeo continham ainda os acreacutescimos trazidos por Antoine Galland que eram de fato contos siacuterios relatados por informantes anocirc-nimos como eacute exemplo a histoacuteria de Ali Baba et les quarante voleurs ou ainda Aladin Entatildeo foi necessaacuterio posteriormente traduzir do francecircs ao aacuterabe estes acreacutescimos para disponibilizaccedilatildeo dos leitores aacuterabes Da mesma maneira sabemos que a histoacuteria de Sherazade eacute de origem india-na e a composiccedilatildeo das Mil e uma noites da forma como as conhecemos hoje corresponde mais ou menos segundo as versotildees agravequela em circu-laccedilatildeo durante o seacuteculo XV e natildeo durante o seacuteculo X

Este interesse persistente pelas Mil e uma noites se exprime igual-mente na Franccedila como testemunha a mais recente exposiccedilatildeo organiza-da pelo Institut du Monde Arabe de Paris O cataacutelogo da exposiccedilatildeo ape-sar de uma vontade perceptiacutevel de superar as representaccedilotildees comuns convoca os argumentos habituais em favor da obra extraordinaire sur-prenant faisant le lien entre lrsquoOrient et lrsquoOccident Universelle ou ainda veacutehicule de mythologies et des croyances propres agrave lrsquoOrient Aqui por-tanto seremos tentados a dizer veiacuteculo das mitologias e crenccedilas igual-mente proacuteprias ao Ocidente Pois de fato esta obra que parece se erigir numa lsquoliteratura de reconciliaccedilatildeorsquo foi escolhida como tal por uma soacute das partes segundo criteacuterios esteacuteticos certo colorido bem distantes do que poderiam ser os gostos orientais

Portanto as Mil e uma noites satildeo continuamente objeto de uma redescoberta como eacute testemunha mesmo o assunto deste evento (2ordm CLIF-PE) Por quecirc Porque esse texto eacute de certa maneira viacutetima de sua celebridade um dos maiores da literatura mundial e eacute preciso reconhececirc-lo resguardando a problemaacutetica de sua inscriccedilatildeo na heranccedila orientalista como um texto fundador natildeo sendo o uacutenico ndash pois haacute muitos outros a Eneida de Virgiacutelio a Epopeia de Gilgamesh Nassr Eddin Juhah este bufatildeo sufi o Kalevala a Iliacuteada e a Odisseia o Ramayana e o Mahabarata E cre-mos ainda que esta dimensatildeo universal emancipada dos particularismos do Oriente e do Ocidente revela todo o interesse do texto

3 As Mil e uma noites entre a forccedila moralizadora e a tentaccedilatildeo desmoralizadora

Mas o que satildeo ao final as Mil e uma noites Onde buscar sua uni-dade Seria difiacutecil definir claramente o que satildeo elas tanto difere sua tonalidade de um texto a outro Das narrativas de viagem agraves pequenas histoacuterias lendaacuterias passando por contos em que se sobressaem aspec-tos fesceninos elas representam uma soma de gecircneros diferentes sob um quadro que sumariza um conjunto sobretudo disparatado epopeia conto histoacuteria blagues faacutebulas proveacuterbios etc As primeiras leituras dos contos das Mil e uma noites no seacuteculo X as classificavam entre os con-tos morais do gecircnero mediano destinados agrave populaccedilatildeo geral inferiores a outras obras a exemplo de Kalicircla wa Dimna que pertenciam ao gecircnero

do espelho de priacutencipes destinado agrave educaccedilatildeo moral e poliacutetica dos per-sonagens da alta nobreza sobre os passos do Roman drsquoAlexandre 23

Este paralelo entre Kalicircla wa Dimna eacute pertinente pois nela se en-contra tambeacutem um contador o conselheiro e filoacutesofo Bilpaiuml que ilustra as consequecircncias de um comportamento numa histoacuteria cujos prota-gonistas satildeo animais especialmente os chacais que datildeo nome ao livro Estas histoacuterias acabam numa liccedilatildeo moral e natildeo deixaram de inspirar moralistas como La Fontaine no seacuteculo XVII Todavia pensar as Mil e uma noites como um texto unicamente de educaccedilatildeo moral parece difiacute-cil jaacute que nem todas as histoacuterias se concluem numa proposta de mora-lismo mesmo que olhando amiuacutede se constate rapidamente que o bem sempre triunfa do mal e mesmo quando o fraco perde no momento em que o mal parece triunfar

Por conseguinte um contorno etimoloacutegico fortalece a pertinecircncia desta perspectiva A literatura eacute chamada Adab em aacuterabe termo que designa o prolongamento da educaccedilatildeo no sentido de dececircncia Haacute uma continuidade entre literatura e educaccedilatildeo estebelecida em torno de uma ideia de conveniecircncia do que eacute decente e conveniente A pessoa edu-cada eacute qualificada de Mutaadab ou seja aquele que tem Adab A par-tir disso se desenha claramente aqui o ideal filosoacutefico do Antropos que cabe ao homem letrado o homem conveniente eacute aquele que harmoniza seu ser com o mundo e os outros Ele alcanccedila por sua dececircncia educa-ccedilatildeo e cultura literaacuteria uma forma de harmonizaccedilatildeo do exterior com o interior e vice-versa

Esta virtude educativa das letras e da cultura literaacuteria se encontra reivindicada em outras obras E isso pode ser associado mais largamen-te a uma das caracteriacutesticas do conto o que explica tambeacutem a atraccedilatildeo por esta forma no seacuteculo XIX Pensamos em Pierre Capelle que em seu Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature cujo subtiacutetulo expliacutecito nos diz Choix de penseacutees ingeacutenieuses et sublimes de dissertations et de deacutefinitions extraites des plus ceacutelegravebres moralistes poegravetes et savants pour

23 A obra Kalila wa Dimma era destinada agrave educaccedilatildeo moral e agrave iniciaccedilatildeo poliacutetica da no-breza Cada capiacutetulo eacute aberto com um diaacutelogo entre o rei Dablishim e seu conselheiro-filoacutesofo Bilpai Tais perguntas discutem essencialmente as consequecircncias de um com-portamento que em seguida eacute ilustrado atraveacutes de uma histoacuteria com dois protagonistas os chacais Kalila e Dimna A influecircncia desta obra foi grande tanto nas Noites como sobre os livros de Shhname de Firdusi do miacutestico Rumi e tambeacutem dos moralistas

servir de deacutelassement aux eacutetudes former le cœur orner lrsquoesprit et nourrir la meacutemoire des jeunes gens Nada mais Pierre Capelle nos diz

De todos os gecircneros de poesia o conto eacute sem contradiccedilotildees aquele que mais se aproxima da natureza ele eacute a expressatildeo ingecircnua ele deve tomar de empreacutestimo todos os ornamentos [] Os contos podem tambeacutem ter os seus tanto eles pin-tam nossos ridiacuteculos com o fim de nos corrigir tal eacute o objeto dos contos morais que atacam nossos erros com o intuito de nos curar ndash eacute o desejo dos contos filosoacuteficos [] Nos perguntamos que paiacutes foi o berccedilo dos contos uns dizem que teria sido a Greacutecia dando como provas as faacutebulas milesianas e as Noites Aacuteticas outros nomeiam a Araacutebia citando como testemunhos os contos aacuterabes outros tambeacutem os fazem vir da Peacutersia e reclamam em favor de sua opiniatildeo as Mil e uma noites Erudiccedilatildeo mal aplicada os contos nasceram deles mesmos sobretu-do onde existiram homens ociosos (1824 p 3-4)

Mas as Mil e uma noites natildeo satildeo simples contos eacute a literatura de to-dos os possiacuteveis que se encontra aiacute reunida Tambeacutem esta perspectiva de re-inscriccedilatildeo do texto em sua finalidade educativa e moral se revela heu-riacutestica Eacute necessaacuterio compreender as Noites como uma criaccedilatildeo literaacuteria que evolui no seio de uma tensatildeo constitutiva entre uma forccedila moraliza-dora do texto e uma tentaccedilatildeo desmoralizadora tantas vezes explicitada Esta hipoacutetese permite retomar todo o aporte ldquoeducativordquo da obra pois com efeito deste ponto de vista haacute um duplo movimento paradoxal que potildee a seu serviccedilo o fantaacutestico O fantaacutestico se torna o instrumento que permite a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora numa obra que serve por fim a finalidades altamente morais

4 O fantaacutestico ou a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora

Falta-nos definir delimitar o fantaacutestico Para isso a convocaccedilatildeo de Tzvetan Todorov (1970) se tornou um pedaacutegio conceitual uma passa-gem quase inevitaacutevel Vamos apresentar esta referecircncia para depois nos distanciarmos para um importante reajuste que consistiraacute inicialmente em apreender o fantaacutestico sem cair num dos riscos acima delimitados especialmente o do anacronismo

De fato hoje num mundo que eacute o nosso e que natildeo comporta em absoluto djins lacircmpadas maacutegicas nem tapetes voadores se formos expostos a percebecirc-los teremos duas alternativas ou se trata de uma

ilusatildeo dos sentidos produto da imaginaccedilatildeo e as leis do mundo continu-am intactas ou o evento aconteceu realmente como parte integrante da realidade mas esta realidade nos revela paradoxalmente leis desconhe-cidas Pensemos por exemplo na ilha flutuante de Simbad Ela eacute ilusoacute-ria ou existe realmente Segundo Todorov o fantaacutestico ocupa o espaccedilo da incerteza desde que escolhamos uma ou outra dessas possibilidades para entrar em gecircneros vizinhos o estranho ou o maravilhoso

O fantaacutestico segundo Todorov eacute assim esta hesitaccedilatildeo que expe-rimenta um sujeito em relaccedilatildeo agraves leis naturais frente a um evento de aparecircncia sobrenatural Pertence a este gecircnero toda obra fundada ldquosobre uma hesitaccedilatildeo do leitor um leitor que se identifica agrave personagem prin-cipal quanto agrave natureza de um evento estranho Esta hesitaccedilatildeo pode se resolver seja ao se admitir que o evento pertence agrave realidade seja porque se decide que eacute fruto da imaginaccedilatildeo ou o resultado de uma ilusatildeo dito de outra maneira pode-se decidir que o evento aconteceu ou natildeordquo (p 165) Estamos frente a um verdadeiro trabalho conceitual jaacute que (a) a definiccedilatildeo discrimina o real e (b) delimita claramente sua descriccedilatildeo tendo-se em vista ainda o esclarecimento das condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do gecircnero (o leitor deve acreditar na concretude dos fatos e na realidade dos personagens a hesitaccedilatildeo tambeacutem deve ser vivenciada por um dos personagens e enfim o leitor tem que recusar interpretaccedilotildees alegoacutericas e poeacuteticas acerca dos acontecimentos) Noacutes reteremos aqui uma dimen-satildeo subversiva que potildee o real e a razatildeo em suspensatildeo

As Mil e uma noites estatildeo situadas numa encruzilhada entre o ma-ravilhoso o estranho e o fantaacutestico De fato se tentarmos superar os dois obstaacuteculos do etnocentrismo e do anacronismo temos que admitir que a concepccedilatildeo do fantaacutestico contemporacircnea natildeo eacute a mesma da eacutepoca e das regiotildees de produccedilatildeo dos textos que compotildeem as Noites Por outro lado ainda hoje eacute admitido pela maioria das pessoas de expressatildeo muccedilul-mana que Deus criou de uma parte homens e de outra djins Os djins satildeo assim realidades ontologicamente subjetivas mas julgados como intriacutensecos ao mundo (cf Toufy 1972 pp 154-213) Esta anaacutelise se apoacuteia sobre os numerosos exemplos no texto Tomemos um caso seme-lhante para ilustrar esta tensatildeo anacrocircnica no episoacutedio da ilha flutuante de Simbad Na eacutepoca este tipo de ilha eacute possibilitada por uma crenccedila partilhada ou seja apoiada pela realidade noacutes encontramos descriccedilotildees nos bestiaacuterios medievais de lugares como este O episoacutedio de Simbad eacute

fantaacutestico natildeo pela ilha em si mas pelas experiecircncias que ocorrem nela Da mesma forma as exegeses do Ocidente segundo a ciecircncia da eacutepoca descrevem a existecircncia de uma ilha flutuante Mas nunca se trata de um fantaacutestico puro ou austero que se daacute a ver no texto e isso pode ser repercutido como um dos traccedilos caracteriacutesticos das Mil e uma noites uma obra que sabe associar o fantaacutestico e o bom senso de uma parte o maravilhoso e o humor de outra

5 Quando o inuacutetil eacute fantaacutestico

Na ordem de nosso cotidiano o que nos liga agrave existecircncia agrave vida satildeo as coisas ldquoditasrdquo uacuteteis O que relatamos transmitimos para a preserva-ccedilatildeo da vida natildeo satildeo a priori pequenas histoacuterias Mas aqui o que eacute rela-tado nas Noites satildeo coisas que pertencem ao passional ao divertimento e ao fantaacutestico O grande paradoxo eacute que satildeo coisas fuacuteteis que valem uma vida Aqui reside uma articulaccedilatildeo importante e um entrecruza-mento do fantaacutestico com a educaccedilatildeo

Pois para muitos de noacutes o que nos move eacute uma certa razatildeo instru-mental Muitos poderiam se perguntar sobre a utilidade de um tal congres-so para falar ainda mais de literatura fantaacutestica Eacute preciso para alimentar aqui nosso percurso reflexivo trazer dois elementos capazes de esclare-cer esta problemaacutetica Inicialmente uma anedota relatada por Philippe Meirieu numa palestra consagrada agraves praacuteticas artiacutesticas no ensino puacutebli-co (CFMI 2000) Ele cita um episoacutedio histoacuterico descoberto por Patrick Mendelsohn nos arquivos da Universidade de Berna ndash que natildeo tem nada a ver com as Mil e uma noites Estamos entre 1940 e 1941 num inverno particularmente rigoroso na fronteira entre a Suiacuteccedila e a Alemanha Uma patrulha de soldados suiacuteccedilos estaacute perdida nesta fronteira no frio na neve e em meio agrave tempestade Natildeo haacute comida e os celulares ainda natildeo tinham sido inventados Na verdade pressentem com ansiedade a presenccedila da morte A situaccedilatildeo eacute traacutegica ateacute que um dos soldados acha nos bolsos um pedaccedilo de mapa e graccedilas a ele reencontram o caminho e retornam ao quartel Ali satildeo interrogados e dizem como conseguiram sair da situaccedilatildeo graccedilas agravequele pedaccedilo de mapa e como suas vidas estavam por um fio Ao se examinar atentamente o pedaccedilo haacute a descoberta se tratava de um mapa de outra cadeia montanhosa distante os Pirineus

Continuando a ilustrar este paradoxo penso ainda nas pinturas ru-pestres do Brejo da Madre de Deus e laacute o que se acha agarrado ao cume das pedras Pinturas rupestres Assim o que nossos questionamentos captam eacute o que explica que pessoas que tinham de enfrentar muitas difi-culdades frio fome sede ausecircncia de um conforto que qualificariacuteamos de miacutenimo hoje pudessem encontrar tempo e igualmente inspiraccedilatildeo ne-cessaacuterios para perder tempo em pintar natildeo os planos da futura cidade nem um recenseamento mas cenas da vida altamente estetizadas

Para compreender isto temos de lembrar das primeiras paacuteginas criadas pela pena de Leacutevi-Strauss em sua ceacutelebre Introduction agrave la penseacutee sauvage em que se pergunta sobre as razotildees pelas quais os iacuten-dios deixavam frutas e plantas uacuteteis preferindo plantas nauseabundas chegando agrave seguinte conclusatildeo ldquoas espeacutecies animais e vegetais natildeo satildeo conhecidas tanto por sua utilidade elas satildeo decretadas uacuteteis ou interes-santes porque satildeo de antematildeo conhecidasrdquo (Leacutevi-Strauss 1962 p 21) O que nos faz viver o que nos determina natildeo eacute contrariamente ao que cremos a eficaacutecia imediata Eacute a ordem simboacutelica pela qual inscrevemos os objetos comportamentos e situaccedilotildees que vivemos

Uma das explicaccedilotildees que podemos trazer em relaccedilatildeo ao grande su-cesso da figura de Sherazade reside no fato de que para salvar sua vida como ela proacutepria afirma relata coisas espantosas e surpreendentes Que coisas As que natildeo se destinam agrave nossa razatildeo mas agraves paixotildees e afetos Histoacuterias fantaacutesticas que ligam Sherazade agrave vida histoacuterias inuacuteteis eacute ne-cessaacuterio guardar no espiacuterito para perceber aqui uma articulaccedilatildeo muitas vezes insuspeita entre as Mil e uma noites e a educaccedilatildeo Esta tomada de consciecircncia materializa como o uacutetil se cindiu do fantaacutestico na educa-ccedilatildeo pensemos no que fizemos a geraccedilotildees de crianccedilas espontaneamente apaixonadas por mapas de tesouros o sonho de ilhas misteriosas conti-nentes desconhecidos e cidades submersas transformadas em geraccedilotildees que odeiam a Geografia

Sherazade cuja vida eacute ameccedilada natildeo encontra outra estrateacutegia que a de arriscaacute-la com coisas divertidas ela potildee sua vida ao risco da compo-siccedilatildeo literaacuteria A figura de Sherazade se constitui assim em uma cativa paradoxalmente ldquonocircmaderdquo em sentido deleuziano Eacute aquela que passa o tempo a fugir dos ldquoagenciamentos territorializadosrdquo Natildeo nos conta uma histoacuteria natildeo realiza uma viagem uacutenica Natildeo vai de um soacute iniacutecio a um soacute fim Sherazade ilustra um caminho em que os pontos satildeo sempre

submetidos ao proacuteprio trajeto E pode ser neste sentido que Sherazade conforma a desterritorializaccedilatildeo por excelecircncia a de uma nocircmade que cativa natildeo para de movimentar as fronteiras Ela navega pela vista mos-trando ao mesmo tempo as qualidades de uma inteligecircncia que evo-lui numa multiplicidade qualitativa nos lembrando que ldquoa navegaccedilatildeo nocircmade empiacuterica e complexa faz intervir os ventos barulhos cores e sons do marrdquo (Deleuze Guattari 1980 p 599) Noacutes sabemos tambeacutem que o que verdadeiramente seduziu desde o seacuteculo XIX os autores e criadores dos diferentes campos artiacutesticos foi certamente a metaacutefora do autor frente o imperativo da criaccedilatildeo O escritor o compositor o autor eacute aquele que deve encontrar diariamente um tema uma histoacuteria para viver e para sobreviver Dito de outra forma o inuacutetil vale igualmente a vida do autor

6 Da tentaccedilatildeo desmoralizadora

Se expressa nas Mil e uma noites uma tentaccedilatildeo desmoralizadora de superar as barreiras e delimitaccedilotildees estabelecidas pela sociedade igualmente no registro da hierarquia social Pensemos na 9ordf noite por exemplo onde vemos se realizar o impensaacutevel numa sociedade em que o estatuto social eacute fortemente delimitado O que se trata aqui eacute o cotidia-no aspectos que poderemos classificar de lsquoordinaacuteriosrsquo Estamos em um mercado aacuterabe (souk) qualquer pessoa hoje ainda pode imaginar uma atmosfera tiacutepica se identificando com o carregador O que nos faz mer-gulhar nas Noites Qual a mensagem aqui O livro sob muitos aspectos nos fala de coisas cotidianas

1) elas reconfiguram o cotidiano jogando com as barreiras morais e sociais estabelecidas superando as lsquolimitaccedilotildeesrsquo do real a ficccedilatildeo nos faz sair de noacutes mesmos e de nossas vidas

2) Mas as Noites nos dizem tambeacutem que precisamos prestar aten-ccedilatildeo a este cotidiano de aparecircncia comum Eacute necessaacuteria atenccedilatildeo agraves coisas ordinaacuterias pode ser que se encontre nelas coisas extraordinaacuterias Este eacute um fato particularmente moderno para um texto tatildeo antigo Mas isso natildeo se limita especificamente agraves Mil e uma noites o mesmo pode ser encontrado na literatura dita de maneira geral como lsquomedianarsquo

Pois as pessoas simples tecircm um papel consideraacutevel nas Noites pen-samos tambeacutem no personagem do empregado do matadouro de Bagdaacute arpoado por uma adoraacutevel jovem que decidiu jaacute que era traiacuteda pelo marido dormir com o mais sujo e abjeto homem da cidade A obra cria uma sociedade sonhada cujas fronteiras indevassaacuteveis satildeo constan-temente perpassadas uma sociedade em que escravos africanos fazem amor com lindas princesas sultanas onde carregadores satildeo seduzidos por jovens distintas e empregados de matadouros copulam com lindas mulheres Assim a tentaccedilatildeo desmoralizadora se exprime como uma fuga uma improvisaccedilatildeo literaacuteria entre a sentenccedila religiosa de abertura ldquoem nome de Deus o todo misericordioso o muito misericordiosordquo e a conclusatildeo das narrativas curtas sempre moral E Deus estaacute aqui sempre posto como testemunha e invocado para nos lembrar talvez que o di-vino se materializa tanto no excesso de moralidade quanto na tentaccedilatildeo desmoralizadora que o rosto de Deus se encontra tambeacutem no deboche na decadecircncia e na orgia Esta ideia eacute ainda mais fortalecida quando se restitui as experiecircncias conduzidas pelos Majdhucircb literalmente os ldquoaspirados em Deusrdquo tambeacutem chamados repreendidos que procuravam o seu Senhor bem amado dentro de experiecircncias que superavam todos os quadros morais estabelecidos (cf Bentounegraves Solt 1996 p 154-158) Repensemos neste quarteto de Omar Khayyam

Cada gosto de vinho que o Saki derramaNegligentemente para apagar os fogos de penaEm qualquer coraccedilatildeo doloroso Louvaccedilotildees agravequele que ofereceUm tal remeacutedio para consolo de sua melancolia (2005 p 69)

Interpretamos sobretudo este vinho como uma metaacutefora miacutestica ou como praacutetica voluntaacuteria de embriaguez tendo em vista uma aproxima-ccedilatildeo de Deus O ecircxtase estaacute assim natildeo muito longe da surpresa do des-lumbramento e espanto Jogar com uma ordem estabelecida que eacute res-peitada interiorizada e as Mil e uma maneiras de transgredi-las pois a transgressatildeo eacute um dos ingredientes essenciais ao drama e um dos aspec-tos que mais datildeo interesse ao texto Ela natildeo eacute proacutepria agraves Noites tambeacutem estaacute presente no romance de Ariosto no qual a traiccedilatildeo se daacute com um anatildeo disforme O fantaacutestico e o sobrenatural satildeo caminhos para a supe-raccedilatildeo do real o transgredir a lei tais funccedilotildees se aproximando daquelas apontadas por Torodov Noacutes podemos ver no fantaacutestico na forma como

ele se expressa nas Noites uma linha de fuga no sentido deleuziano do termo que permite escapar no espaccedilo de um instante literaacuterio agrave censu-ra se jogando sutilmente contra as interdiccedilotildees das autoridades

7 Agrave guisa de conclusatildeo a submissatildeo moralizadora ou quando a literatura marcha obediente

De fato ao fim eacute bem a moral que daacute a tocircnica nas Noites e a cons-tante e breve reconquista dos territoacuterios do imaginaacuterio do fantaacutestico do maravilhoso Eacute necessaacuterio repensar continuamente esta literatura como Adab no duplo sentido de educadora e moralizadora De harmonizar o ser com o mundo e os outros Se repensarmos por exemplo Simbad do mar24 que encontra um outro Simbad carregador Aquele conta a este que um dia perdeu sua fortuna e decidiu abandonar tudo para partir apoacutes lembrar-se da sentenccedila do rei Salomatildeo ldquotrecircs coisas satildeo preferiacuteveis a trecircs outras o dia da morte ao dia do nascimento um cachorro vivo a um leatildeo morto e a tumba agrave miseacuteriardquo Eis uma amarga liccedilatildeo de moral ao outro Simbad o simples carregador acabrunhado pela vida e pelo ardor de sua tarefa Uma liccedilatildeo ainda mais amarga se pensarmos no esquema narrativo invariaacutevel ao qual obedecem as aventuras de Simbad do mar ele nasce em meio agrave fortuna para depois perdecirc-la embarca para encon-trar uma tempestade ou uma agressatildeo naufraga e perde todas as suas mercadorias mas a sorte estaacute sempre a seu favor pois ele se arrisca Eacute Simbad do mar que embarca ou o Simbad simples carregador que sonha em fazecirc-lo Natildeo seria uma mensagem agraves pessoas humildes de Bagdaacute sobre a aceitaccedilatildeo de sua sorte e de natildeo se perder a esperanccedila de trabalhar e abraccedilar os riscos ldquoUns tecircm o cansaccedilo por lote e outros o repouso Uns satildeo felizes outros como eu mesmo vocacionados agrave maior pena e ao aviltamentordquo (Bencheikh Miquel 2007 p 354) E poucas paacute-ginas nos bastam para trazer esta liccedilatildeo

Eacute pelas provas que se atinge as honras pois ao se visar o que estaacute muito alto quantas noites sem sonho Deve mergulhar profundamente o que deseja encon-trar peacuterolas e merecer assim o poder e a riqueza Quem sonha a gloacuteria sem mer-gulhar na pena consome a existecircncia a buscar o impossiacutevel (p 356 ndash 539ordf noite)

24 A traduccedilatildeo literal do aacuterabe natildeo faz de Simbad um marinheiro mas um homem do mar no sentido de que ele usa o mar como um comerciante o mar nunca eacute um fim em si

Simbad ilustra se eacute necessaacuteria uma concepccedilatildeo da moral em terras do Islatilde em que a fortuna deve se conjugar com a salvaccedilatildeo a tal pon-to que quando a ilha se movimenta o capitatildeo do barco comeccedila a gri-tar a quem quiser ouvir ldquoabandonem seus bens e salvem suas almas Primeiro suas vidas Esta ilha na qual vocecircs estatildeo natildeo eacute uma ilhardquo (p 357) A ambivalecircncia da ilha entre imagem paradisiacuteaca e simulaccedilatildeo diaboacutelica eacute um motivo antigo Estamos face a uma alegoria a ilha eacute tambeacutem o diabo que simula o paraiacuteso Eacute preciso se referir agraves primei-ras linhas da Icircle deserte et autres textes de Deleuze sobre a persistecircncia desta imagem na literatura das diferenccedilas entre ilha continental e ilha oceacircnica esclarecendo esta geografia imaginaacuteria que tanto se aproxima como se distancia de noacutes mesmos

Os geoacutegrafos dizem que haacute dois tipos de ilhas Eacute uma informaccedilatildeo preciosa para a imaginaccedilatildeo pois se encontra aqui uma confirmaccedilatildeo do que ela sabia de outra parte [] As ilhas continentais satildeo ilhas acidentais ilhas derivadas elas estatildeo separadas do continente nascidas de uma desarticulaccedilatildeo erosatildeo fratura e sobrevivem ao afundamento do que as mantinha As ilhas oceacircnicas satildeo ilhas originaacuterias essenciais de uma parte satildeo constituiacutedas de corais se nos apresen-ta como um verdadeiro organismo de outra surge de erupccedilotildees submarinas trazendo para o ar livre um movimento das profundezas umas emergem lenta-mente outras desaparecem e retornam sem que tenhamos tempo de anexaacute-las [] Essa atraccedilatildeo que o homem tem pelas ilhas retoma este duplo movimento que as produz Sonhar as ilhas com anguacutestia ou alegria pouco importa eacute so-nhar que noacutes nos separamos que jaacute estamos separados longe dos continentes que estamos soacutes e perdidos ndash ou eacute sonhar que reiniciamos a partir do zero que recriamos e recomeccedilamos (Deleuze 2002 p 11)

Enfim eacute preciso entender que os grandes episoacutedios que compotildeem as Mil e uma noites satildeo construiacutedos sobre um modelo elaborado que tecircm em vista finalidades altamente morais Pensamos no tintureiro desonesto da 930ordf noite Este personagem velhaco mentiroso na alma e que nunca se envergonha das vilezas que faz aos outros exige o pagamento antes do trabalho gasta o dinheiro e pede aos clientes que retornem para pegar seus pertences no outro dia em dias consecutivos pretextando o nascimento do filho ou a visita de convidados Depois quando natildeo tem mais argumentos diz que a roupa fora roubada quando estava estendida Se o cliente eacute bom diz um ldquoDeus providenciaraacute a sua substituiccedilatildeordquo se eacute menos influenciaacutevel causa um escacircndalo mas sem obter nada mesmo se queixando ao juiz Pouco a pouco o ruiacutedo se expande em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas desonestas do tintureiro atraindo a atenccedilatildeo sobre ele Pouco a pouco vai sendo posto de lado seus negoacutecios declinam e por fim seraacute simultaneamente queimado e afogado Mais que uma liccedilatildeo de moral vinculada aos negoacutecios comerciais vemos aqui como as Noites aspiram a esta liccedilatildeo de conseacutequentialisme demonstrando sequencialmente os efeitos gerados por uma accedilatildeo e a partir dela o valor moral da mesma O fantaacutes-tico eacute ornamento mas igualmente uma fuga salutar diante de um neces-saacuterio retorno a uma realidade que pedia moralidade e Adab

REFEREcircNCIAS

AMIROU Rachid Imaginaire touristique et sociabiliteacute du voyage Paris PUF 1995

BACHELARD Gaston La formation de lrsquoesprit scientifique Paris Vrin 1971

AVERROES LrsquoIslam et la raison Trad Marc Geoffroy Paris Garnier-Flammarion 2000

BERCHET Jean-Claude Le Voyage en Orient anthologie des voyageurs franccedilais au XIXe siegravecle Paris Robert Laffont 1985

BOURDIEU Pierre WACQUANT Loiumlc ldquoSur les ruses de la raison impeacuterialisterdquo in Actes de la recherche en sciences sociales Vol 121-122 mars 1998 (p109-118)

BOUTANG Pierre-Andreacute LrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuze (teacuteleacutefilm documentaire) Paris Arte (1988) 1996

CAILLOIS Roger Au cœur du fantastique Paris Gallimard 1965

CAPELLE Pierre Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature (tome 1) Paris Haut-coeur et Gayet Jeune 1824

CFMI - Centre de Formation des Musiciens Intevenants agrave lrsquoEacutecole Actes de colloque La musique un enseignement obligatoire Pourquoi comment Paris Lrsquoharmattan 2000

CHATEAUBRIAND Reneacute Itineacuteraire de Paris agrave Jeacuterusalem Paris Gallimard 1969

CORM Georges Orient-Occident La fracture imaginaire Paris La deacutecouverte 2005

DELEUZE Gilles Mille Plateaux ndash Capitalisme et schizophreacutenie 2 en collaboration avec GUATTARI Felix Paris Les eacuteditions de Minuit 1980

_________ Diffeacuterence et reacutepeacutetition Presses Universitaires de France Paris 1968

DERRIDA Jacques Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Paris Seuil 1967

FOUCAULT Michel Les mots et les choses Paris Gallimard 1990

FLAUBERT Gustave Correspondance 1 1830-1851 Paris Gallimard 1973

__________ Correspondances ressource en ligne de lrsquoUniversiteacute de Rouen URL httpflaubertuniv-rouenfrcorrespondanceconardlettres49bhtml (acessado em 14 de fevereiro de 2013)

__________Voyage en Eacutegypte Paris Grasset 1991

GERONIMI Martine ldquoLrsquoOrient geacuteographie imaginaire les eacutecrivains franccedilais et les villes de deacutesirrdquo in Teacuteoros 25-2 | 2006 13-18

HENTSCH Thierry LrsquoOrient imaginaire Paris Eacuteditions de Minuit 1988

ISSA Hossam ldquoLa Nahda ou le recircve de na nation eacutegyptienne de Muhammad Ali agrave Gamal Abdel Nasserrdquo in EacutegypteMonde arabe Premiegravere seacuterie Mutations [En ligne] mis en ligne le 08 juillet 2008 httpemarevuesorgindex1480html (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

LORCERIE Franccediloise ldquoLrsquoislam comme contre-identification franccedilaise trois momentsrdquo in LrsquoAnneacutee du Maghreb vol II 2007

LOVECRAFT Howard Phillips Eacutepouvante et surnaturel en litteacuterature Paris Bourgeois 1969

MOUSSA Sarga Le Voyage en Eacutegypte Anthologie des voyageurs europeacuteens de Bonaparte agrave lrsquooccupation anglaise Paris Robert Laffont 2004

NERVAL Geacuterard de Voyage en Orient Paris Flammarion 1980

RANCIERE Jacques Le partage du sensible Paris La fabrique 2000

SAIumlD Edward LrsquoOrientalisme LrsquoOrient creacuteeacute par lrsquoOccident Paris Seuil 1980

TOUALBI-THAALIBI Issam ldquoRegards sur la socieacuteteacute musulmane du ixe siegraveclerdquo in Revue europeacuteenne des sciences sociales [En ligne] 50-1 | 2012 mis en ligne le 15 juin 2015 httpressrevuesorg1208 (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

TOUFY Fahd ldquoAnges deacutemons et djinns en Islamrdquo in Geacutenies Anges et Deacutemons Paris Seuil 1972 (p 154-213)

Voyage en Orient Exposition de la Bibliothegraveque nationale de France (BNF) [httpexpositionsbnffrveoindexhtm] (acessado nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2013)

A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro(Doutoranda em Linguiacutestica ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Priscilla de Moraes Batista(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Luiacutes Nicolau Fagundes Varela (1871-1845) eacute considerado um dos grandes nomes do Romantismo brasileiro Poeta ambientado pela criacutetica entre a segunda e terceira geraccedilotildees suas obras versavam sobre temas como morte patriotismo religiatildeo e misticismo Em meio a esta produccedilatildeo haacute um conto especial que abarca elementos oniacutericos fantaacutesticos ora em tom gro-tesco ora sublime retomando o mito paradisiacuteaco de um Oriente perdido quase metafiacutesico imagem esteacutetica que percorre a histoacuteria da literatura por-tuguesa desde a eacutepoca dos Descobrimentos (Machado 1983) Encontrado por Batalha (2011) e publicado no livro O fantaacutestico brasileiro contos esque-cidos o conto As Bruxas de Fagundes Varela introduz o leitor do seacuteculo XIX no universo da bruxaria e feiticcedilaria do folclore europeu a partir da his-toacuteria de um grupo de argonautas portugueses que aportados em um cais satildeo surpreendidos pela presenccedila de mulheres velhas e medonhas no conveacutes de seu navio sendo estas referidas posteriormente como feiticeiras Eacute nesse momento que os personagens iniciam uma jornada lendaacuteria culminando com a constataccedilatildeo do capitatildeo da ida dos seus tripulantes agraves Iacutendias

Apoacutes essa breve introduccedilatildeo ao conto passemos agrave discussatildeo dos aspectos linguiacutesticos e literaacuterios responsaacuteveis por construir a diegese Logo no iniacutecio da narrativa deparamo-nos com o diaacutelogo que Fagundes Varela estabelece com importantes obras da literatura fantaacutestica Baseando-nos no dialogismo de Bakhtin (2005) conceito desenvolvi-do em Problemas da poeacutetica de Dostoievski observamos que o autor ao referenciaacute-las explicitamente para a dimensatildeo ficcional da histoacuteria de-marca quais satildeo os discursos esteacuteticos e literaacuterios que vatildeo se constituir como base para a construccedilatildeo do (seu) universo da bruxaria

Na Alemanha e na Escoacutecia elas [as bruxas] andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura e desprendem funeacutereas monodias ao ermo e aos venda-vais Foi assim que Fausto e Mefistoacutefeles as encontraram a subir a montanha na medonha noite dos Walpurgis que Shakespeare as pintou na desvairada trageacutedia do Macbeth que Hoffmann as apresentou a desoras entre a chuva e a tempestade aos lacrimosos olhos da triste amante de Anselmo o louco no conto doentio que denominou o - vaso de ouro eacute assim que Walter Scott coxo as fez aparecer em seus belos romances Na Franccedila poreacutem segundo as tradiccedilotildees coligidas por Emiacutelio Souvestre no ndash Foyer Breton ndash e Paulo Feval em suas lendas elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar lavar o sudaacuterio dos finados nas aacuteguas do rio ou ir danccedilar ao Sabbath o baile infernal alumiado pelo claratildeo sinistro das fosforescecircncias tendo por orquestra ndash o bramido das torrentes ndash o ronco de trovoada e os silvos da ventania (Varela 2011 p 53)

Entatildeo Fagundes Varela ao oferecer exemplos literaacuterios para basear a realidade da sua histoacuteria dialoga com o fundo aperceptivo (Bakhtin 1993) do universo dantesco de histoacuterias de bruxaria e feiticcedilaria pre-sentes em diversas obras da Alemanha EscoacuteciaInglaterra Franccedila e Portugal Uma vez que o autor faz referecircncia a esse imaginaacuterio esteacutetico de grande influecircncia na construccedilatildeo do arqueacutetipo coletivo da bruxaria mencionaremos algumas das vozes que ressoam e se entrelaccedilam de for-ma mais contundente com o enunciado total do conto

Iniciaremos pela Alemanha Entre as vozes que convoca tais como Hoffmann em Vaso de ouro ldquotriste amante de Anselmo o loucordquo Gottfried Burger o pai da poesia narrativa fantaacutestica neste paiacutes e Achim von Arnim escritor romacircntico de espectros destacaremos a de Goethe Em sua obra Fausto haacute referecircncia agrave noite dos Walpurgis a qual eacute comemorada entre 30 de abril e 1deg de Maio celebrada por cristatildeos e pagatildeos em vaacuterios paiacuteses aleacutem da Alemanha como Inglaterra Beacutelgica Holanda e Franccedila Essa referecircncia pode ser ilustrada na cena III do quadro XXI da parte inicial do livro inti-tulada Noite de Santa Walpurga na qual Mefistoacutefeles obriga Fausto a passar uma noite no monte de Brocken para assistir agrave celebraccedilatildeo dos Walpurgis

De Brocken ao rochedocorrer correr bruxedoOnde a cana jaacute loirejamas a espiga inda verdejatodo o bando unido sejaPosto de alto e todo manoeacute o senhor Dom Fulano

quem preside ao nosso arcanoPor cima da folha mais do pedregulhofestanccedila rasgada com todo o barulhoO bode tresanda fartum que enfeiticcedilae a bruxa casticcedila casticcedila e casticcedila (Goethe 2003 grifo nosso)

Passemos agora agraves vozes literaacuterias da Escoacutecia e Inglaterra Entre elas as de Walter Scott romancista histoacuterico Anna Radcliffe escritora de histoacuterias de fantasmas o corcel de Giaour25 tambeacutem trabalhado pela de Byron e a de Shakespeare em especial na sua obra Macbeth (1606) A referecircncia a esse livro eacute particularmente importante tendo em vista o universo da bruxaria nele trabalhado muito a fim ao conto de Varela Isso pode ser ilustrado neste excerto da peccedila shakespeariana em que Banquo ao conversar com Macbeth afirma

A que distacircncia em sua avaliaccedilatildeo senhor estamos de Forres O que satildeo essas figuras tatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fantaacutesticas e desvairadas em seus trajes a ponto de natildeo parecerem habitantes da terra e no entanto podemos ver que estatildeo sobre a terra Vivem vocecircs Ou seriam vocecircs alguma coisa que natildeo admi-te perguntas humanas Vocecircs parecem entender-me logo levando como fazem cada uma por sua vez seu dedo encarquilhado aos laacutebios emaciados Vocecircs tecircm toda a aparecircncia de mulheres e no entanto suas barbas proiacutebem-me de inter-pretar suas figuras como tal (Shakespeare 2012 p 18-9 grifos nossos)

Ao definir as trecircs bruxas como ldquotatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fan-taacutesticas e desvairadasrdquo de ldquodedo encarquilhadordquo ldquocom aparecircncia de mulhe-resrdquo figuras que ldquonatildeo admite[m] perguntas humanasrdquo Shakespeare atraveacutes de Banquo caracteriza essas criaturas como seres que oscilam entre o hu-mano e o natildeo-humano pois mesmo vivendo e habitando a terra haacute algo na natureza dessas criaturas que se afasta do natural Esses traccedilos podem ser tambeacutem visualizados no iniacutecio do conto quando Fagundes Varela afirma ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa suas palavras e accedilotildees cunhadas do torvo caraacuteter de uma sombria monomaniardquo (p 53 ndash grifos nossos) Esta uacuteltima expressatildeo ldquosombria mo-nomaniardquo ainda destaca a fixaccedilatildeo irracional doentia e grotesca desses seres

Varela ainda dialoga com outras vozes literaacuterias da Franccedila a saber Emiacutelio Souvestre ao mencionar o poema Foyer Breton que reuacutene vaacuterias

25 Eacute interessante notar que o nome ldquoGiaeurrdquo caracterizava o desprezo que os turcos tinham agravequeles que natildeo seguiam sua religiatildeo particularmente os cristatildeos

histoacuterias do folclore e da literatura popular da Bretanha e Paulo Feacuteval romancista mais conhecido no final do seacuteculo XIX A partir dessas refe-recircncias observamos que Fagundes Varela eacute um romacircntico que dialoga atraveacutes da retomada no seu texto com os grandes nomes do movimen-to em se utilizando por exemplo de temas populares e folcloacutericos mais proacuteximos do fantaacutestico e contraacuterios ao universo classicista tradicional

Haacute ainda outra voz de grande importacircncia para a elaboraccedilatildeo do fundo aperceptivo do conto Logo apoacutes ambientar o leitor quanto ao tema a ser abordado evoca-se uma lenda folcloacuterica da eacutepoca das Grandes Navegaccedilotildees divulgada nas terras portuguesas A referecircncia geograacutefica eacute oferecida quan-do o autor cita alguns locais de Portugal ndash Minho e Extremadura ndash onde tais supersticcedilotildees se encontram mais arraigadas ao folclore local ldquoentretanto em nossas tradiccedilotildees filhas quase todas das geacutelidas supersticcedilotildees do Minho e da Extremadura as bruxas natildeo satildeo revestidas desse caraacuteter de sublimes horrores que as faz tatildeo temidas nas campinas da Bretanha nas montanhas da Escoacutecia ou nas planiacutecies da Alemanhardquo (Varela 2011 p 53) Aqui o ter-mo entretanto delimita o imaginaacuterio das bruxas portuguesas das Grandes Navegaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves figuras diaboacutelicas citadas anteriormente

Apoacutes delimitar o fundo dialoacutegico do conto passemos para a anaacutelise do narrador e dos personagens Em relaccedilatildeo ao primeiro observamos a presenccedila do narrador heterodiegeacutetico (Batalha 2011) que natildeo participa da accedilatildeo (de grau zero) mas que conhece os fatos ao seu redor (oniscien-te) Por outro lado notamos que o autor abre um lsquoespaccedilorsquo no texto para se posicionar sobre o que estaacute relatando a saber as lendas que dispotildee para o leitor ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas [eacute estranho] contam que agrave noite elas rolam pela correnteza sentadas em alguiacutedares e coro-adas de floresrdquo (Varela 2011 p 54) Baseando-nos em Bakhtin (1993) observamos que nesse trecho Fagundes Varela mostra explicitamente a sua voz a partir da expressatildeo deslocada entre colchetes ldquoeacute estranhordquo re-velando sua visatildeo sobre a histoacuteria de dentro e fora do conto Nos dizeres da autora francesa Authier-Revuz (1982) estariacuteamos nos deparando com um comentaacuterio metoniacutemico isto eacute um entrelaccedilamento da enunciaccedilatildeo pois o autor alude a si e ao outro dentro do seu proacuteprio discurso abrindo uma brecha no seu enunciado quando emprega o verbo no plural contam (quem conta eles isto eacute os ditos mitos e folclores populares)

Eacute interessante notar que apoacutes essa demarcaccedilatildeo pontual da voz do autor na narrativa referindo-se ao imaginaacuterio dessas lendas oralizadas

ele relata ldquoeis uma das lendas mais conhecidasrdquo Aqui a diegese eacute tra-balhada de maneira antropoloacutegica mas com criatividade literaacuteria Isso significa que o leitor percebe que eacute lenda e por isso a teoria de Todorov sobre o fantaacutestico puro falha ao menos pontualmente Contudo eacute im-portante mencionarmos que no primeiro paraacutegrafo do conto haacute uma focalizaccedilatildeo mais proacutexima do maravilhoso todoroviano quando Varela descreve as bruxas como ldquomulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 2011 p 53) aceitando de antematildeo a presenccedila de leis distintas do real

Voltemos agora para os personagens A esse respeito o enredo eacute constituiacutedo por cinco marinheiros ndash Pedro Guilherme Teodoro Jacques e Gabriel ndash e uma quantidade indefinida de bruxas Sob a perspectiva bakhtiniana (1993) observamos que haacute uma uacutenica visatildeo de mundo co-letivizando as vozes do grupo dos marinheiros ldquoo marinheiro eacute um tipo estoico por natureza nada haacute que os aflija como tambeacutem nada haacute que os amedronterdquo (Varela 2011 p 55 grifo nosso) Nessa citaccedilatildeo relacionada a uma discussatildeo relativa ao sobrenatural saiacutemos do horror propriamen-te dito no momento em que estes marinheiros apresentam caracteriacutesti-cas dos heroacuteis mitoloacutegicos claacutessicos impassiacuteveis inabalaacuteveis em suma incapazes da experiecircncia do medo

Por outro lado as bruxas satildeo caracterizadas ora como grotescas ora sublimes Hugo (2007) na obra Do grotesco e do sublime permite-nos compreender esses polos como parte da dinacircmica do pensamento esteacute-tico romacircntico pois a sua junccedilatildeo ofereceria novo iacutempeto agrave arte Para ele o grotesco o disforme e o horriacutevel datildeo descanso ao que eacute belo e para se admirar esse ldquobelordquo seria preciso um contraste uma comparaccedilatildeo

Nesse conto observamos que o grotesco e o sublime satildeo elementos predominantes na caracterizaccedilatildeo das bruxas os quais por sua vez intensificam o universo fantaacutestico-maravilhoso assim o trabalho de Varela com o grotesco se configura a partir de uma mescla de elementos heterogecircneos que daacute vazatildeo a uma experiecircncia abismal (Kayser 2008) como ilustram os excertos abaixo

As bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernal (Varela 2011 p 53 grifos nossos)

Os aspectos destas taacutertareas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa [] (p 53 grifo nosso)

Pedro subiu e chegando agrave escotilha viu uma multidatildeo de mulheres velhas e medonhas que entravam umas atraacutes das outras pulando e saltando a cavalo em cabos de vassouras (p 54 grifo nosso)

Entatildeo ele olhou para aquela turba invasora de sinistras personagens [] (p 54 grifo nosso)

As moccedilas transformaram-se logo em hediondas velhas sem contudo perder as riquezas que lhes tinham dado sem duacutevida seus misteriosos amantes e cavalgando o claacutessico cabo de vassoura lanccedilaram-se ao mar e desaparece-ram (p 57 grifo nosso)

Desse modo o grotesco eacute configurado como um traccedilo marcante da obra se inserindo especialmente no tratamento que eacute dado agraves invasoras Contudo em um determinado ponto da histoacuteria no momento em que as bruxas invadem a embarcaccedilatildeo modifica-se sua aparecircncia horriacutevel e grotesca e elas tornam-se belas criaturas Segundo Hugo (2007) o gro-tesco pode ser visto como um ponto de partida para se chegar ao belo Logo esse movimento ndash do feio para o belo ndash proporciona uma expansatildeo vivacidade e emoccedilatildeo ao objeto artiacutestico Nessa perspectiva observamos a passagem do grotesco para o sublime no universo do insoacutelito a partir de algumas descriccedilotildees tais como em ldquoos marinheiros correram para a proa e viram em vez das megeras que Pedro enxergara um bando de moccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo (p 55 grifo nosso)

Eacute interessante notarmos que esse aspecto sublime da beleza pode se constituir como um simulacro funcionando atraveacutes de uma falsa aparecircncia Ora as bruxas possuem uma ldquosombria monomaniardquo (Varela 2011 p 53) ou seja predomina entre elas o desejo doentio de serem eternamente jovens e belas ldquoas bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e ventu-ras da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 194 p 53 grifo nosso) Essa beleza eacute portanto estranha e grotes-ca porque eacute sedutora e ilusoacuteria artifiacutecio do sobrenatural para ldquoenganarrdquo os marinheiros Logo o grotesco e sublime satildeo aspectos que funcionam na diegese como iacutendices que potencializam o caraacuteter insoacutelito da obra

Antes de concluirmos a anaacutelise da caracterizaccedilatildeo dessas bruxas observemos que elas satildeo construiacutedas no conto como seres livres e

independentes sexualmente detentoras de um grande poder sensual e de encanto eroacutetico como se vecirc nas seguintes imagens

[] elas andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura [] (p 53 gri-fos nossos)

[] elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar [] (p 53 grifo nosso)

[] se transformam em belas moccedilas apossam-se dos navios erguem as acircn-coras e vatildeo por aiacute afora seduzir os rapazes entregar-se em horrenda lubri-cidade aos braccedilos deles ndash incendidos de um amor vertiginoso e funesto (p 54 grifos nossos)

Nesses trechos notamos a presenccedila da liberdade via erotismo re-lacionada tambeacutem ao imaginaacuterio romacircntico de quebra do decoro e das femmes fatales oitocentistas Ademais o universo dessas bruxas osci-la em torno de um movimento entre o sagrado e o profano26 (Priore 1994) evocando mulheres proacuteximas a uma pureza quase casta e virginal ndash ldquomoccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo ndash mas ao mesmo tempo envoltas em uma atmosfera misteriosa e erotizada

Ainda a respeito da polarizaccedilatildeo grotesco x sublime observamos que esse movimento de expansatildeo do disforme para o que estaacute na forma do belo destaca-se na configuraccedilatildeo peculiar do tempo e espaccedilo narrativos O cronotopo eacute diluiacutedo por alguns processos narrativos tiacutepicos do fantaacutestico

Entretanto o navio natildeo perdia tempo - corria corria corria e na desabrida carreira como o luacutegubre cavaleiro de Burger deixava atraacutes de si a terra as ilhas as aacutervores e as nuvens como um bando de aves fugitivas A cada porccedilatildeo de espaccedilo que rompia ndash o ar tornava-se mais azul e carregado as estrelas maiores e mais viacutevidas No zimboacuterio imenso do firmamento a lua se equilibrava como uma lacircmpada de prata inundada de nardo na cuacutepula dos templos orientais As ondas erguiam-se como Leviathans em cujo dorso escamoso brincavam os raios de uma luz fosforescente e a embarcaccedilatildeo de-senhava-se raacutepida e fugaz nas aacuteguas como a sombra do corcel de Giaeur nas plantas do ervaccedilal (Varela 2011 p 55 grifos nossos)

Nesse excerto observamos que o tempo passa raacutepido e o navio li-teralmente ldquovoardquo O espaccedilo e tempo satildeo assim expandidos atraveacutes do

26 O movimento de oscilaccedilatildeo do sagrado e do profano estaacute ligado tambeacutem agrave dinacircmica do grotesco e do sublime

processo de repeticcedilatildeo de palavras ndash corria corria corria ndash e por meio do paralelo do navio com o ldquocorcel de Giaourrdquo (dialogismo mostrado com o poema de Byron) A referecircncia agrave ldquocuacutepula dos templos orientaisrdquo sina-liza a viagem ateacute a Iacutendia e representa a passagem da razatildeo europeia ao maravilhoso desconhecido do Oriente Potencializando o universo fan-taacutestico do conto esta regiatildeo eacute descrita com termos que evocam o lon-giacutenquo o metafiacutesico o abstrato um sonho que ldquoparecerdquo nunca ter se re-alizado mas que se presentifica efetivamente como se eacute revelado ao final do conto a partir do diaacutelogo entre o capitatildeo e o grupo de marinheiros

Machado (1983) em sua obra O mito do Oriente na literatura por-tuguesa explica que este espaccedilo geograacutefico tambeacutem em liacutengua portu-guesa veio sendo apropriado literariamente como um mito ao longo dos seacuteculos por autores do passado como Joatildeo de Barros Camotildees Diogo do Couto entre outros ateacute a contemporaneidade (Antero de Quental Eccedila de Queiroacutes etc) Segundo Machado desde a eacutepoca dos Descobrimentos haacute uma constante elaboraccedilatildeo desse tema que de tan-to circular tornou-se parte da nossa memoacuteria coletiva imprimindo-se na nossa histoacuteria como um arqueacutetipo O olhar negativo em relaccedilatildeo ao Oriente por conta da secular dominaccedilatildeo moura na peniacutensula ibeacuterica eacute mitigado por estas maravilhas comuns ao imaginaacuterio europeu poten-cializadas pela movecircncia das grandes navegaccedilotildees

No conto de Varela a chegada do navio agraves Iacutendias pelos ares eacute des-crita da seguinte forma

Depois de assim voar o navio por algum tempo parou finalmente junto de umas costas alvas e extensas coroadas de uma vegetaccedilatildeo fantaacutestica e titacirc-nia As feiticeiras pularam logo ao mar e comeccedilaram a correr para a terra com tal desembaraccedilo como se pisassem uma campina firme e segura Os ldquomarsouinsrdquo ficaram estaacuteticos e perplexos alguns minutos poreacutem como ndash marinheiro eacute capaz de desembestar ateacute o quinto inferno e palestrar com o proacuteprio Satan soltaram os escaleres e remaram para a praia Chegando sen-tiram uma como harmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e desconcertados que vinha de longe nas asas de uma aacuterea teacutepida e suave ferir-lhes o ouvido Caminharam para o lugar de onde partia o ruiacutedo agrave medida poreacutem que se adiantavam um perfume voluptuoso e sensual desconhecido embora vinha-lhes amenizar os sentidos umas aacutervores enormes gigantescas cujos fastiacutegios pareciam espanejar as nuvens levantavam-se diante deles mu-dos silenciosos como os fantasmas de Anna Radcliff como os espectros de Achim DrsquoArnim (Varela 2011 p 56 grifos nossos)

Observamos nessa descriccedilatildeo o fasciacutenio pela descoberta de um paraiacuteso o qual os marinheiros soacute depois saberatildeo tratar-se das Iacutendias Esse ambiente ndash que de certa forma torna lsquofantaacutesticarsquo a Ilha das Amores camoniana ndash revela traccedilos miacutesticos de orientalismo maacutegico e exotista uma ldquoharmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e des-concertadosrdquo sente-se o cheiro de ldquoum perfume voluptuoso e sensual desconhecidordquo haacute aacutervores ldquoenormes gigantescasrdquo etc Tais imagens se aproximam das elaboradas por Joatildeo de Barros em suas crocircnicas segun-do Machado (1983) este autor se concentra na evocaccedilatildeo da descoberta conquista e descriccedilatildeo minuciosa das terras orientais Isso se daacute porque ele eacute um ldquohumanista estaacuteticordquo ndash diferente de Damiatildeo de Goacuteis que viajou muito ao longo da vida ndash a substituir o conhecimento in loco por uma ldquoelaborada retoacuterica claacutessica evocativa do longiacutenquordquo (p 22) que ganha proporccedilotildees miacuteticas

A partir da chegada dos marinheiros a essa terra ldquodesconhecidardquo observamos que durante a descriccedilatildeo do ambiente haacute elementos que caracterizam uma ornamentaccedilatildeo de caraacuteter grotesco e a influecircncia oriental construiacuteda pelo emprego de expressotildees como ldquoedifiacutecio amplo e colossalrdquo ldquomaacutermore pretordquo ldquosacadas douradasrdquo ldquoarabescos fantaacutesticosrdquo ldquofumo do incensordquo ldquoecos rudes e selvagensrdquo ldquosolidotildeesrdquo e ldquonoiterdquo

Os nossos homens adiantavam-se mais e deram entatildeo de rosto com um edi-fiacutecio amplo e colossal todo de maacutermore preto coberto de torreotildees sacadas douradas cornijas e arabescos fantaacutesticos Pelas infinitas fileiras de janeli-nhas ou antes seteiras se pendurava uma multidatildeo de lampiotildees multicores e saiacutea em turbilhatildeo o fumo do incenso e dos alvos uma orquestra desconhe-cida expandia seus ecos rudes e selvagens que se iam morrer pelas solidotildees e pela noite (Varela p 56 ndash grifos nossos)

Em seguida os argonautas se deparam com mais um elemento po-tencializador do gecircnero fantaacutestico a saber um ritual de danccedila como espaccedilo maacutegico de grande semelhanccedila com a danccedila do ventre a qual eacute considerada por muitos a primeira danccedila da humanidade Sari (2011) traz algumas contribuiccedilotildees a esse respeito em sua Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre na qual afirma que sua origem se daacute como um ritual sagrado uma vez que as mulheres danccedilavam para a Deusa-Matildee Inana siacutembolo da reproduccedilatildeo fertilidade e em especial relacio-nada ao crescimento dos gratildeos durante o plantio Surgida no Paleoliacutetico

na regiatildeo da Sumeacuteria ndash e natildeo no Egito como muitos pensam ndash as dan-ccedilarinas como satildeo por noacutes chamadas eram as grandes sacerdotisas dos templos e uma vez que Inana era extremamente feminina seus rituais baseavam-se na sexualidade fertilidade e no ventre a partir de teacutecnicas que norteavam a danccedila sagrada como os movimentos peacutelvicos Essa movimentaccedilatildeo do corpo da sacerdotisa-danccedilarina eacute evocada pelo nar-rador do conto

Fora do edifiacutecio sobre um vasto terreiro ardia uma enorme fogueira em torno da qual homens e mulheres de olhos negros e cintilantes face redonda e bronzeada danccedilavam ao som de instrumentos estranhos e refletiam ao claratildeo da fogueira suas figuras extravagantes na fachada de maacutermore polido do palaacutecio e faziam tremular pelo ar as compridas abas de suas vestimentas vermelhas e amarelas Havia tambeacutem moccedilas belas embora excessivamente trigueiras que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmente no gesti-cular lacircnguido e voluptuoso de uma danccedila desconhecida suas grinaldas e cin-turotildees eram ornados de pequenos luzeiros palidamente azulados Uma ala de homens feios e carrancudos cercava esta exoacutetica companhia e completava o quadro (Varela 2011 p 56-57 - grifos nossos)

Notamos claramente a descriccedilatildeo da movimentaccedilatildeo do corpo da danccedilarina do ventre a partir das expressotildees ldquomoccedilas belas que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmenterdquo e ldquogesticular lacircnguido e volup-tuosordquo Aleacutem disso as caracterizaccedilotildees das vestes dessas mulheres ndash ldquosuas grinaldas e cinturotildees eram ornados de pequenos luzeirosrdquo ndash ratificam a imagem da danccedilarina oriental Todos esses elementos relacionados ao mundo oriental27 potencializam o fantaacutestico

Eacute interessante notar que o leitor eacute paulatinamente inserido no universo fantaacutestico-maravilhoso da trama construiacutedo em torno da nar-rativa oriental de Varela segundo Todorov (2008) no subgecircnero fantaacutes-tico-maravilhoso daacute-se a aceitaccedilatildeo do sobrenatural apoacutes a duacutevida e as ambiguidades fantaacutesticas

27 De acordo com Sari (2011) ldquoas primeiras guerras e consequentemente os primeiros impeacuterios formam o conjunto de fatores que difundiram o culto a deusa e a danccedila peacutelvi-ca ritualiacutestica [] [Ademais houve] seis grandes impeacuterios que participaram ativamente na divulgaccedilatildeo e expansatildeo dos rituais da danccedila impeacuterio Sumeriano Assiacuterio Persa o impeacuterio de Alexandre o grande Romano e o principal o impeacuterio Otomanordquo (p 13)

Quando ao meio dia chegou o capitatildeo os marinheiros contaram o ocorrido e como prova mostraram as plantas que tinham apanhado O comandante tomou-as e pocircs-se a examinaacute-las com atenccedilatildeo misturada de pasmo inexpri-miacutevel depois entregando-as disse - Sabeis voacutes outros onde estivestes esta noite - Natildeo meu capitatildeo responderam os marujos- Pois estivestes na Iacutendia- Na Iacutendia Na Iacutendia Gritaram os marujos estuacutepidos de espanto (Varela 2011 p 57)

Nesse trecho flagramos a presenccedila do fantaacutestico-maravilhoso no momento em que o comandante aceita a histoacuteria contada pelos seus su-bordinados como algo ocorrido de fato evidenciando assim a presenccedila de novas leis na natureza e o estranhamento dos marinheiros eacute logo posto em suspensatildeo Aleacutem disso no final do conto encontramos iacutendices que confirmam este universo de forma incontestaacutevel

Esta eacute a canela filha legiacutetima da Aacutesia esta outra o cravo esta a baunilha e fi-nalmente esta de cujo nome natildeo me recordo agora eacute um excelente remeacutedio que natildeo cresce em nenhuma outra parte do mundo a natildeo ser ali A descriccedilatildeo que me fizestes desses homens morenos e trajados de estranhas roupagens natildeo faz senatildeo confirmar o que digo Aquele edifiacutecio de maacutermores eacute um pa-laacutecio de priacutencipe aquelas moccedilas de grinaldas e cinturotildees brilhantes satildeo as virgens indianas que cozem os vaga-lumes e luciacuteolas as suas vestimentas aqueles homens armados satildeo os guardas e soldados do priacutencipe Natildeo haacute duvida por artimanhas do diabo em menos de uma noite fostes agrave Iacutendia e voltastes (Varela 2011 p 58)

Desse modo um sobrenatural que eacute aceito se apresenta como fator determinante para a narrativa Ademais nesse trecho a voz do coman-dante se mistura com a do narrador ou seja deparamo-nos com um hibridismo (Bakhtin 1993) entre essas vozes uma vez que o narrador parece tomar a posiccedilatildeo do comandante tambeacutem como o seu posiciona-mento Isso significa que haacute uma imbricaccedilatildeo entre o que o comandante e o narrador pensam sobre o universo maravilhoso ficcional

Baseando-nos em Machado (1983) notamos que a diegese se constitui como uma ficccedilatildeo miacutetica do Oriente elaborada a partir do contexto mental dos Descobrimentos em que aparentemente a proacute-pria realidade adquire conotaccedilotildees maravilhosas aos olhos de hoje Assim ainda conforme Machado (1983) haacute ldquouma certa tendecircncia da cultura oitocentista que pretende retomar a liccedilatildeo dos viajantes aacutevidos

ao mesmo tempo de exoacutetico e de conhecimento cientiacuteficordquo (p 82) Assim a junccedilatildeo entre o passado miacutetico (histoacuterico) a esteacutetica fantaacutestica oitocentista (literaacuteria) aliada agraves imagens (do ponto de vista histoacuterico e literaacuterio) de um Oriente miacutetico que eacute tanto renascentista quanto ro-macircntico configuram um conto fantaacutestico-maravilhoso importante e original dentro da literatura oitocentista brasileira

REFEREcircNCIAS

AUTHIER-REVUZ Jaqueline ldquoHeterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva elementos para uma abordagem do outro no discursordquo In Entre a transparecircncia e a opacidade um estudo enunciativo do sentido Porto Alegre EDIPUCRS [1982] 2004

BAKHTIN Mikhail ldquoO discurso no romancerdquo In BAKHTIN Mikhail Questotildees de Literatura e de esteacutetica a teoria do romance Satildeo Paulo Unesp Hucitec [1975] 1993 (p 71-163)

______ Problemas da Poeacutetica de Dostoievski Trad Paulo Bezerra 3ordf ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

GOETHE Johann Wolfgang von Fausto Trad Antoacutenio Feliciano de Castilho eBooksBrasil 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwebooksbrasilorgeLibrisfaustogoethehtml21gt (acesso em 02 de fevereiro de 2013)

HUGO Victor Do grotesco e sublime Satildeo Paulo Perspectiva 2007

KAYSER Wolfgang O grotesco Satildeo Paulo Perspectiva 2008

MACHADO Aacutelvaro Manoel O mito do Oriente na Literatura Portuguesa Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1983

PRIORE May Del A mulher na histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Contexto 1994

SARI Nassih Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre 2011 Disponiacutevel em lt httpwwwcentraldancadoventrecombr gt (acesso em 12 de julho de 2011)

SHAKESPEARE William Macbeth Trad Beatriz Vieacutegas-Faria Porto Alegre LampPM Pocket 2012

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Satildeo Paulo Perspectiva 2008

VARELA Fagundes ldquoAs Bruxasrdquo in BATALHA Maria Cristina (org) O fantaacutestico brasileiro contos esquecidos Rio de Janeiro Editora Caeteacutes 2011 (p 53-58)

O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier

Thiago Joseacute Costa Pininga(Mestrando em Teoria da Literatura ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Escrito em 1840 o conto Peacute de muacutemia narra a histoacuteria de um perso-nagem flacircneur que ao passar em uma loja de antiguidades tem a ideia de comprar um objeto para lhe servir de peso-de-papel aos seus ldquoesboccedilos de versosrdquo encontrando um verdadeiro peacute de muacutemia que se descreve como da princesa Hermonthis28 Nesta descriccedilatildeo trabalhada por um autor consi-derado um dos fundadores do parnasianismo francecircs tatildeo rica em detalhes esteacuteticos (a exemplo do que ocorre em poemas dessa escola a exemplo de Vaso chinecircs do poeta brasileiro Alberto de Oliveira) teriacuteamos o poder in-consciente e fantaacutestico de dar vida aos objetos de sua admiraccedilatildeo

Se a descriccedilatildeo minuciosa e amorosa faz com que determinado ob-jeto ganhe ldquovidardquo como dito acima isso significa que ele (o objeto) de-veria ser construiacutedo como se estivesse nas matildeos e diante dos olhos do leitor ndash natildeo apenas um texto verbal ndash mas como um fantasma29

Em outros contos fantaacutesticos deste autor encontramos caracteriacutesti-cas semelhantes entre eles A cafeteira e Ocircnfale Tais objetos sejam eles uma cafeteira uma tapeccedilaria ou um peacute mumificado satildeo considerados de grande beleza (ou menos uacuteteis que belos) e por isso tecircm ou merecem uma existecircncia proacutepria isto eacute fantasmagoacuterica natildeo fugindo assim de uma ldquoArte pela Arterdquo ndash termo cunhado por Gautier ndash na medida em que o culto agrave forma permite uma separaccedilatildeo do suporte material em termos

28 A referecircncia a uma princesa do Egito eacute indireta Hermonthis eacute o nome de uma cidade do Antigo Egito e natildeo propriamente o nome de uma princesa Contudo eacute exatamente a cidade que Cleoacutepatra tornaraacute sua capital Vale verificar que a construccedilatildeo do nome Cleoacutepatra significa ldquoGloacuteria do pairdquo ou ldquoAmada por seu pairdquo Ao longo da narrativa percebe-se entatildeo uma associaccedilatildeo de Cleoacutepatra a Hermonthis uma vez que seria esta a ldquoamada por seu pairdquo

29 De fato Theacuteophile Gautier antes de seguir a carreira literaacuteria expressava o desejo de ser pintor

pragmaacuteticos Desse modo a escolha do autor em escrever contos fan-taacutesticos natildeo foge agrave sua escolha esteacutetica pelo contraacuterio aprofunda-a Um caso exemplar eacute o conto Peacute de muacutemia em que como dito ao procurar um objeto uacutetil que servisse para peso-de-papel se constata que o peacute estaacute vivo saltitante e agrave procura da dona O fantaacutestico e suas consequecircn-cias fazem o personagem mudar de opiniatildeo sobre a utilidade do referido objeto embora continue lhe conferindo uma aura estetizada

O protagonista eacute em duas passagens do texto um possiacutevel poeta na primeira passagem pela fala do vendedor que diz ironicamente ldquoHa ha ha para um peso-de-papel ideia original ideia de artistardquo (Gautier 1999 p106 ndash grifo meu) e na segunda no momento em que o perso-nagem retorna agrave sua casa ldquoPara aproveitaacute-la imediatamente pousei o peacute da divina princesa Hermonthis sobre um maccedilo de papel esboccedilos de versos mosaico indecifraacutevel de rasurasrdquo (p 107) Um personagem poeta natildeo apenas porque escreve versos mas tambeacutem por possuir uma aura identificada pelo comerciante Eacute comum Gautier compor narrativas com personagens-artistas poetas atores pintores e ateacute mesmo escritores de contos fantaacutesticos (estes com clara intenccedilatildeo de humor) No conto Ocircnfale uma histoacuteria rococoacute o personagem assim se declara ldquoSe o bom homem pudesse ter previsto que eu abraccedilaria a [profissatildeo] de contista fantaacutesti-co sem duacutevida ter-me-ia posto pela porta afora e deserdado irrevogavel-mente []rdquo (p 51) Por sua vez a personagem feminina iconizada como muacutemia aparece como um textopoema isso porque como bem observa Ruth Silvano Brandatildeo ldquotoda ela eacute pura escritura grafada por sinais vaacuterios ou apagados como nos palimsestosrdquo (Brandatildeo 1996 p 19)

Eacute pela experiecircncia com o fantaacutestico aliada agrave esteacutetica da ldquoArte pela Arterdquo que o personagem eacute educado Jaacute natildeo trata aquele objeto da mesma maneira em primeiro lugar porque ele parece estar vivo em segundo porque a muacutemia (que eacute descrita agora sem um dos peacutes) faz a troca de seu peacute solto por uma estatueta ndash e esta constituiria a prova de que aquele acontecimento teria sido real e natildeo um sonho Entre a primeira experiecircn-cia e a uacuteltima o personagem eacute levado em uma viagem aparentemente real ateacute o Antigo Egito na qual tambeacutem aprende liccedilotildees natildeo somente artiacutesticas como espirituais (morais) a fim de constatar que somente a boa arte a arte de qualidade a arte que transcende eacute capaz de durar pela eternidade

A mudanccedila no personagem ocorre natildeo somente em um niacutevel ar-tiacutestico mas tambeacutem se gerando consequecircncias morais Muito embora

associe-se o parnasiano a um sentido amoral vemos que Gautier utiliza a moralidade ao escrever seus contos fantaacutesticos Por exemplo no conto O cavaleiro duplo em que existe um confronto entre o bem e o mal e o primeiro sai vencedor depois de uma luta de vida ou morte entre os dois personagens gecircmeos com o bom terminando vencedor no conto Dois atores para um papel onde um ator se envaidece de ser o melhor interprete da personagem de diabo para uma peccedila em cartaz ateacute que o mesmo aparece e toma seu lugar no palco quase o matando e por uacuteltimo citamos um de seus contos mais famosos A morte enamorada em que se descreve toda uma moral ligada ao catolicismo Os trecircs contos citados trabalham profundas conotaccedilotildees espirituais a noccedilatildeo de bem e mal e os castigos por soberba e arrogacircncia Todos os seus protagonistas acabam salvos e aprendendo uma liccedilatildeo

Em Peacute de muacutemia verificamos que a mudanccedila de atitude do per-sonagem eacute tambeacutem espiritual ou seja moral tendo em vista que esta acontece na perspectiva dos debates entre Oriente e Ocidente e pelo vieacutes de uma formaccedilatildeoconselho para jovens poetas sobre dar utilida-de agrave beleza30 Este conto foi escrito em 1840 periacuteodo em que a Franccedila dominava econocircmica e politicamente suas colocircnias no Oriente e jaacute ti-nha passado por importantes experiecircncias orientalizantes no norte da Aacutefrica Gautier francecircs ambienta seu conto em seu paiacutes de origem res-saltando um fantaacutestico egiacutepcio que irrompe de uma pacata atmosfera burguesa reproduzindo um imaginaacuterio comum agrave eacutepoca verificada pelo estudioso Edward Said no livro Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente

O Oriente foi orientalizado natildeo soacute porque se descobriu que ele era lsquoorien-talrsquo em todos aqueles aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu meacutedio do seacuteculo XIX mas tambeacutem porque podia ser ndash isto eacute ndash per-mitia ser feito oriental Haacute muito pouca anuecircncia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert com uma cortesatilde egiacutepcia tenha produzido um modelo amplamente influente da mulher oriental ela nunca falou de si mes-ma nunca representou suas emoccedilotildees presenccedila ou histoacuteria Ele falou por ela e a representou (Said 1990 p 17 ndash grifos do autor)

30 Sabrina Baltor nos informa que ldquoTheacuteophile Gautier torna-se um exemplo para Flaubert Baudelaire jovens escritores que nunca o viram capitular perante a arte social ou burguesa []rdquo (1997 p 22)

Longe de ser neutro Gautier ndash que influenciou Flaubert inclusive com a ideia de ldquoArte pela Arterdquo ndash vai explorar justamente o comeacutercio entre Ocidente e Oriente em um primeiro momento de modo realista Nos primeiros paraacutegrafos ele alerta para o fato de que na capital france-sa estava em moda ndash e em grande nuacutemero ndash determinados tipos de lojas locais de vendas de objetos raros onde se comprava itens de todas as culturas e civilizaccedilotildees do mundo em sua maioria antiguidades sendo o comerciante do conto identificado como um tipo oriental (ldquoA curvatura do nariz tinha uma silhueta aquilina que lembrava o tipo oriental ou judeurdquo Gautier 1999 p 104 ndash grifo meu) Desde jaacute Gautier natildeo esconde que a relaccedilatildeo seraacute mercantilista O diaacutelogo que segue entre o comercian-te e o poeta revela o misticismo do primeiro e o ceticismo do segundo

O comerciante se utiliza de argumentos fantaacutesticos sobre o possiacutevel uso desrespeitoso do objeto ressaltando que os nobres egiacutepcios ficariam zangados ao saberem que o peacute de sua amada filha poderia servir como um simples peso-de-papel ldquoele [o faraoacute] que mandava cavar uma mon-tanha de granito para colocar nela o triplo esquife pintado e dourado coberto de hieroacuteglifos com belas pinturas do julgamento das almasrdquo (Gautier p106) Contudo o poeta ceacutetico insiste na compra e consegue adquiri-la com o que tinha nos bolsos Revela-se aqui a situaccedilatildeo de su-perioridade do ocidental e a consequente inferioridade do oriental que vecirc suas crenccedilas serem rebaixadas ao niacutevel do profano utilitaacuterio estando o objeto em questatildeo disponiacutevel a qualquer um que pagasse e natildeo a al-gueacutem que pudesse compreender seu verdadeiro valor

Eacute a este tipo de superioridade e dominaccedilatildeo que Edward Said denuncia como orientalismo ldquoideia da identidade europeia como sendo superior em comparaccedilatildeo com todos os povos e culturas natildeo-europeusrdquo (Said 1990 p 19) Aqui superioridade eacute tanto uma questatildeo econocircmi-ca quanto ideoloacutegica primeiro porque a relaccedilatildeo entre Franccedila e Oriente eacute aquela entre colocircnia e colonizados pautada em relaccedilotildees comerciais desiguais Em segundo lugar para manter e sustentar esta relaccedilatildeo era necessaacuterio manter uma ideologia que dizia ser a Franccedila a representante da ciecircncia e do progresso ocidentais (basta lembrar que floresciam nesta eacutepoca as teorias do filoacutesofo francecircs Auguto Comte o Curso de filosofia positiva eacute publicado entre 1830 e 1842) sendo o Oriente apenas um lu-gar repleto de misticismo ingecircnuo e ultrapassado O proacuteprio persona-gem do comerciante natildeo se mostra como o mais respeitoso pelas coisas

do Oriente nas entrelinhas desconfia-se que estava interessando em revelando uma crenccedila e seu respeito por ela somente fazer subir o preccedilo do objeto Caso contraacuterio natildeo colocaria a peccedila em exposiccedilatildeo

Seraacute apenas no diaacutelogo travado com a muacutemia da princesa (que fala em seu idioma antigo estranhamente compreendido pelo protagonista) que veremos a presenccedila ou tentativa de uma voz que fala por si mesma a reve-lar seu ponto de vista e sua triste histoacuteria (em comparaccedilatildeo com a oriental de Flaubert que natildeo tinha voz nem histoacuteria) A partir desse diaacutelogo se inicia uma mudanccedila em relaccedilatildeo ao mundo oriental num processo gradual de saiacuteda do fantaacutestico e inserccedilatildeo no maravilhoso Ora o conceito de orien-talismo eacute definido entre outros como ldquoum estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Orienterdquo (Said p 15) contudo em Gautier vemos tratar-se menos de um domiacutenio do que uma reestruturaccedilatildeo de saldo positivo e imaginativo Por fim demonstra-se que tal domiacutenio natildeo eacute possiacutevel ndash porque natildeo haacute domiacutenio sobre a experiecircncia fantaacutestica

A noccedilatildeo de Oriente eacute entatildeo transfigurada por Gautier O conto se iniciava com um discurso que parecia apontar aos leitores a presenccedila da noccedilatildeo de superioridade do europeu moderno ateacute entrar em cena o fantaacutes-tico que potildee em duacutevida a proacutepria crenccedila na ciecircncia e na razatildeo ocidentais

A pesquisadora Sabrina Baltor (1997 p 136) nos informa que ldquona obra de Gautier nota-se certo fasciacutenio pelo povo egiacutepcio natildeo eacute agrave toa que dois contos e um romance tecircm como cenaacuterio a terra dos faraoacutes Une nuit de Cleacuteopacirctre (1838) Le pied de momie (1840) e Le roman de La momie (1857)rdquo portanto trata-se de um autor que admira os temas orientais em seu aspecto artiacutestico ou seja de um segmento capaz de ensinar-lhe a cultivar a beleza e a sua duraccedilatildeo

Historicamente depois de grande acuacutemulo de experiecircncias de expe-diccedilotildees europeias ao Oriente que natildeo eram necessariamente criadas tendo em vista objetivos artiacutesticos e sim de comeacutercio de conhecimento cientiacute-fico ou estrateacutegia militar foram as obras literaacuterias contudo que popula-rizaram de maneira mais eficiente o Oriente (o orientalismo) ao europeu segundo nos informa Said ao que acrescentamos o fato de o fantaacutestico nestas eacutepocas ter se tornado um gecircnero popular de grande apelo puacuteblico

Os motivos de Gautier no entanto para aleacutem de conquistar leitores faacuteceis buscavam a experimentaccedilatildeo ao trabalhar ideais ligados agrave pere-nidade da arte bem como a criacutetica a uma sociedade empenhada em valores utilitaacuterios e burgueses sem espiritualidade A valorizaccedilatildeo da arte

egiacutepcia especialmente a da mumificaccedilatildeo que sobreviveu por milecircnios mostrava por contraste que a arte de sua eacutepoca era de niacutevel inferior ba-seada em modismos A soluccedilatildeo era uma volta ao passado para tentar re-cuperar algo que se perdeu daiacute a escolha pelo Egito Antigo Por sua vez no niacutevel esteacutetico natildeo haveria conflitos porque as descriccedilotildees estetizadas caracteriacutesticas dos parnasianos natildeo sofriam perdas pelo contraacuterio ga-nhavam mais vida tornavam-se mais ldquoreaisrdquo

Depois que acorda (e o motivo do sonho eacute recorrente natildeo soacute fan-taacutestico mas tambeacutem neste conto tornando-o ambiacuteguo) o personagem-poeta passa sensorialmente em especial atraveacutes do olfato a descobrir que algo andava errado em sua casa A escolha deste sentido eacute signifi-cativa quando se trata de visotildees do Oriente trabalhadas por franceses lembremos dos versos de Baudelaire amigo famoso de Gautier em As flores do mal31 ldquoCom a fluidez daquilo que jamais termina Como o almiacutescar o incenso e as resinas do Oriente Que a gloacuteria exaltam dos sentidos e da menterdquo (Baudelaire 2006 p 127 ndash grifo meu) Em outra ocasiatildeo da narrativa tambeacutem se afirma sinestesicamente ldquoO sonho do Egito era a eternidade seus odores tecircm a solidez do granito e duram outro tantordquo (Gautier 1999 p 108 ndash grifo meu)

A partir destes odores diferentes o protagonista afirma ldquosentir al-guma coisa que se parecia muito com o terrorrdquo (p 109 ndash grifo meu) pois o peacute estava saltitando Ele tambeacutem observa nesta hora a proacutepria prin-cesa saltitando e teme por sua vida Apoacutes o suspense a princesa revela sua triste histoacuteria alguns ladrotildees invadiram seu sarcoacutefago e roubaram toda sua riqueza de modo que natildeo tinha dinheiro sequer para comprar seu peacute de volta As mercadorias roubadas acabariam indo parar nas lojas de antiguidades citadas anteriormente nada mais restava agrave princesa a natildeo ser a piedade do poeta Tudo que havia de valioso no Oriente fora levado por conquistadores e vendido como curiosidade exoacutetica para as diversas partes do mundo que poderiam pagar por ele32

31 As flores do mal foram dedicadas com ecircnfase a Theacuteophile Gautier ldquoAo poeta impecaacute-vel ao perfeito maacutegico das letras francesas a meu cariacutessimo e veneradiacutessimo mestre e amigo Theacuteophile Gautier com os sentimentos da mais profunda humildade dedico estas flores doentiasrdquo

32 Este tema do comeacuterciotraacutefico de produtos do Egito Antigo continua atual sendo por exemplo trabalhado por autores como o recifense Fernando Monteiro no ro-mance A muacutemia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Globo 2001)

Convencido da triste histoacuteria da princesa e por medo do que lhe aconteceria caso se negasse a ajudaacute-la acaba lhe restituindo o membro perdido Em agradecimento a princesa-muacutemia o leva como dito para uma viagem ateacute o Antigo Egito na qual conhece todas as belezas das piracircmides entre outras Ateacute chegar ao Faraoacute que tambeacutem agradecido lhe concede um desejo O poeta com uma ironia muito tiacutepica dos contos fantaacutesticos de matriz hoffmanniana escolhe a ldquomatildeordquo da princesa33 Mas ele eacute acordado por um amigo e parece descobrir que tudo natildeo foi um sonho (ldquoo fantaacutestico ocupa o tempo desta incertezardquo ndash Todorov 1970 p 15) porque a estaacutetua deixada pela princesa em troca do peacute ainda estava laacute

No final do conto a razatildeo volta ao seu estado inicial de poder ex-plicar o ocorrido de modo natural tudo efetivamente natildeo passara de um sonho (Todorov denomina de gecircnero Estranho o sobrenatural explicado por via do sonho) Por outro lado vemos que o que interessa Gautier eacute a metaacutefora da relaccedilatildeo do artista com sua produccedilatildeo criativa que se fosse perfeita ganharia vida Ora a perfeiccedilatildeo pela forma soacute poderia resultar em um fantasma que eacute pura forma sem mateacuteria A muacutemia aleacutem de ser uma bela estaacutetua eacute tambeacutem um texto ldquoA princesa eacute grafia marcada por traccedilos da ordem do resiacuteduo verbal resiacuteduo mnecircmico nunca traduzido ou recuperaacutevel porque para sempre perdido como ocorre com as primeiras experiecircncias psiacutequicasrdquo (Brandatildeo 1996 p 20) Quiccedilaacute o peacute de muacutemia natildeo fosse um poema esquecido um rascunho (natildeo seria o hieroacuteglifo neste conto um tipo de rascunho do autor) acima dos outros papeacuteis

Eacute somente pela experiecircncia fantaacutestica que haacute uma inversatildeo de va-lores inesperada diante do personagem e dos leitores O fantaacutestico estaacute aleacutem da ciecircncia e obriga a caminhar pelo desconhecido pelo que ainda natildeo eacute enquadrado em algum tipo de conhecimento seguro e explicaacute-vel pelas leis da razatildeo O orientalismo eacute reestruturado com um saldo positivo para o Oriente pois faz reconhecer ao europeu moderno que sua razatildeo natildeo eacute capaz de descobrir tudo e seu controle e domiacutenio estatildeo enfraquecidos por este meio Natildeo eacute somente ao conhecimento tradi-cional e agrave estrutura da sociedade (mercantilista x miacutestica) que Gautier faz sua criacutetica pois ao afirmar a arte egiacutepcia como arte de beleza mais duradoura que a ocidental (diz o Faraoacute ldquominha filha duraraacute mais do que uma estaacutetua de bronzerdquo [p115]) ele quer com isso dizer que o Oriente

33 ldquoA matildeo pelo peacute parecia-me uma recompensa antiteacutetica de bastante gostordquo (1999 p114)

tem mais para nos ensinar se quisermos aprender em termos de Arte e Cultura

De fato o fantaacutestico tambeacutem se liga agrave noccedilatildeo de ldquoArte pela Arterdquo numa outra espeacutecie de culto agrave forma que se daacute pela autorreferencialidade A princesa pode ser vista pelo menos de quatro maneiras Estaacutetua Muacutemia Princesa e Texto (pois estava completamente adornada de hieroacuteglifos) O modo de apresentaccedilatildeo vai do tratamento de objeto ao tratamento hu-mano natildeo esquecendo contudo a modalizaccedilatildeo fantaacutestica (Muacutemia viva)

Existe aqui portanto um ensaio de respeito pelo Outro enquanto Outro ou seja em suas diferenccedilas que natildeo satildeo as diferenccedilas criadas aprioristicamente apesar de obviamente ser Gautier um europeu que tambeacutem torna fantaacutestico o Oriente O desconhecimento eacute o que provoca medo e terror pois inibe qualquer accedilatildeo ou a interpreta desde jaacute como perigo na grande maioria das vezes sem efetivamente ser perigosa A morte eacute um exemplo de experiecircncia desconhecida Mas natildeo haacute mortes neste conto ndash embora exista no miacutenimo uma ldquonatureza-mortardquo

REFEREcircNCIAS

AMARAL Ana Carolina Bianco ldquoA moderna hesitaccedilatildeo fantaacutestica em O Peacute de Muacutemia de Gautierrdquo in Revista Travessias Interativas Ribeiratildeo Preto UNESP 2011 (p 8-18)

BALTOR Sabrina Ribeiro A opccedilatildeo de Theacuteophile Gautier pelo conto fantaacutestico In I Encontro Nacional O Insoacutelito como Questatildeo na Narrativa Ficcional UERJ 2009 Mesa Redonda Rio de Janeiro DialogartsUERJ 2009 (p 78-84)

BALTOR Sabrina Ribeiro Literatura plaacutestica e Arte pela Arte nas narrativas de Theacuteophile Gautier Tese (Doutorado) Rio de Janeiro UFRJ 1997

BAUDELAIRE Charles As Flores do Mal Trad Ivan Junqueira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2006

BRANDAtildeO Ruth Silvano Literatura e psicanaacutelise Rio Grande do Sul UFRS 1996

GAUTIER Theacuteophile Contos Fantaacutesticos Trad Geraldo Gerson de Souza Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Coleccedilatildeo Debates Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 1970

ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de

Edgar Allan Poe

Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Os homens que exercem a profissatildeo de jornalista parecem consti-tuiacutedos como os deuses de Walhalla que se cortavam em pedaccedilos todos os dias e acordavam com perfeita sauacutede todas as manhatildes

(Edgar Allan Poe Marginalia34)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) esteve durante toda sua vida profissional ligado a jornais e a revistas literaacuterias norte-americanos dentre os quais o Southern Literary Messenger de Richmond a Burtonrsquos Gentlemanrsquos Magazine a Grahamrsquos Magazine e o The pionner da Filadeacutelfia Realizando breves contribuiccedilotildees ou atuando como editor nesses perioacutedicos Poe adentrou em um domiacutenio de pro-duccedilatildeo de literatura veloz muitas vezes voltada apenas a satisfazer as exi-gecircncias do puacuteblico e que certamente atendia aos interesses comerciais dos editores Essa carreira suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros podemos dizer se fez quase apesar dele mesmo Com efei-to Poe natildeo hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofiacutecio era a poesia Assim em 1845 aos 36 anos escreve

Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar em qualquer ocasiatildeo um esforccedilo seacuterio naquilo que sob mais felizes circuns-tacircncias teria sido a carreira de minha escolha Para mim a poesia natildeo tem sido uma finalidade mas uma paixatildeo e as paixotildees deveriam merecer reverecircn-cia natildeo devem nem podem ser excitadas agrave vontade com vista agraves mesquinhas compensaccedilotildees ou louvores ainda mais mesquinhos da humanidade35

Deliberadamente Poe idealizava as formas de criaccedilatildeo artiacutestico-li-teraacuterias constituiacutedas sob a loacutegica do campo artiacutestico como um ldquomundo

34 Ver em Poe (1999c p 176 1984 p 1223 e seg) 35 Poe (1999c p 19 2004a p 715)

econocircmico invertidordquo36 como mais tarde escreveria o socioacutelogo fran-cecircs Pierre Bourdieu (2002) quer dizer o campo da arte que opera pela primordial negaccedilatildeo dos interesses econocircmicos Apesar disso no en-tanto o escritor norte-americano natildeo deixaria de reconhecer a grande transformaccedilatildeo intelectual que promoviam os jornais e as revistas lite-raacuterias permitindo a difusatildeo do conhecimento Allan Poe assim como outros homens de sua eacutepoca ndash e ateacute mais que alguns deles ndash foi sensiacutevel agraves profundas modificaccedilotildees sociais ocasionadas pela ascensatildeo da induacutes-tria e pelas formas de divisatildeo do trabalho as quais resultaram em uma diminuiccedilatildeo do tempo livre passiacutevel de ser empregado para apreciaccedilatildeo de arte em meados do seacuteculo XIX

Deste modo ainda que de sua parte pudesse haver certo constrangi-mento na adoccedilatildeo de alguma funcionalidade em seus textos ndash pelo menos eacute o que alguns dos relatos nos fazem crer ndash ainda que tal constrangimento pudesse ser percebido Poe natildeo deixaria de reconhecer a importacircncia de tais adaptaccedilotildees no plano dos procedimentos da obra articulando o cam-po de produccedilatildeo e o de recepccedilatildeo dos objetos literaacuterios Eacute o que podemos ler em um excerto de sua coluna ldquoMarginaliardquo (ldquoNotas agrave margemrdquo)

O progresso realizado em alguns anos pelas lsquorevistasrsquo e lsquomagazinesrsquo natildeo deve ser interpretado como quereriam certos criacuteticos Natildeo eacute uma decadecircncia do gosto ou das letras americanas Eacute antes um sinal dos tempos eacute o primeiro indiacutecio de uma era em que se caminharaacute para o que eacute breve condensado bem dirigido e se iraacute abandonar a bagagem volumosa eacute o advento do jornalismo e a decadecircncia da dissertaccedilatildeo Comeccedila-se a preferir a artilharia ligeira agraves gran-des peccedilas Natildeo afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que haacute um seacuteculo mas indubitavelmente eles o tecircm mais aacutegil mais raacutepido mais reto mais metoacutedico menos pesado De um lado o fundo dos pensamentos se enriqueceu Haacute mais fatos conhecidos e registrados mais coisa para refletir Somos inclinados a enfeixar o maacuteximo possiacutevel de ideias no miacutenimo de volume a espelhaacute-las o mais rapidamente que pudermos Daiacute nosso jornalismo atual daiacute tambeacutem nossa profusatildeo de magazines37

36 ldquoVerdadeiro desafio a todas as formas de economismo a ordem literaacuteria (etc) que progressivamente se instituiu ao fim de um longo e lento processo de autonomizaccedilatildeo apresenta-se como um mundo econocircmico invertido aqueles que nele entram tecircm interesse no desinteresse como a profecia e especialmente a profecia de infortuacutenio que segundo Weber prova sua autenticidade pelo fato de que natildeo proporciona ne-nhuma remuneraccedilatildeo a ruptura hereacutetica com as tradiccedilotildees artiacutesticas em vigor encon-tra seu criteacuterio de autenticidade no desinteresserdquo (Bourdieu 2002 p 245)

37 Edgar Allan Poe (1999c p 165)

Assim natildeo obstante sua inserccedilatildeo nesses magazines como jorna-lista poder ter sido ideologicamente contraacuteria agraves suas pretensotildees en-quanto escritor Edgar Allan Poe pocircde recolher desse campo natildeo soacute a renda necessaacuteria ao seu sustento mas a praacutetica de uma literatura veloz fundamental ao campo jornaliacutestico na produccedilatildeo de papers e contos Principalmente pocircde recolher dele um vasto material para suas criacuteticas sobre os maus escritores seus contemporacircneos De fato apesar de ter construiacutedo sua literatura a partir das condiccedilotildees disponiacuteveis dentro desse mesmo campo de atuaccedilatildeo Poe como assinala Braulio Tavares (2010) tinha manifesta intenccedilatildeo de superar a maneira como outros jornalistas procediam e de produzir um gecircnero literaacuterio que ainda que respondes-se agrave necessidade do puacuteblico e dos editores ndash para o funcionamento dos perioacutedicos ndash pudesse ter qualidade esteacutetica

Em muitos de seus contos a exemplo de ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo ldquoUma trapalhadardquo ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o dia-bordquo e A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o escritor trabalhou ques-totildees pertinentes agrave produccedilatildeo da literatura sobretudo a partir de uma refle-xatildeo de sua proacutepria obra e de seus procedimentos38 O uacuteltimo conto centro deste estudo A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade que data de 1845 eacute uma saacutetiraparoacutedia ao Livro das mil e uma noites construiacuteda a partir da ideia de que o mundo literaacuterio teria permanecido em ignoracircncia a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroiacutena Sherazade ndash contrariamente agrave versatildeo orientalista conhecida Nesta conforme resume Mamede Mustafa Jarouche tradutor drsquoAs mil e uma noites para o portuguecircs

Um rei chamado Sahriyar [] membro de poderosa dinastia descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo Em crise esse rei sai pelo mundo iniciando uma busca que eacute tambeacutem de fundo espiritual ele quer saber se existe neste mundo algueacutem mais infeliz do que ele A resposta eacute positiva com um agravante ningueacutem pode conter as mulheres ndash eacute o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido Entatildeo ele retorna para o seu reino deci-dido a tomar uma medida draacutestica e violenta casar-se a cada noite com uma mulher diferente mandando mataacute-la na manhatilde seguinte

38 De forma bem particular Poe trabalha o chiste ou ldquoironia autorreflexivardquo (ver a respeito Sena [2010]) aleacutem de se lanccedilar agrave criacutetica de seus adversaacuterios ficcionalmente dando-lhes emprego nas ediccedilotildees do Dial Down-Easter North American Quarterly Humdrum Seus colegas de profissatildeo vatildeo desde o editor-chefe da Blackwood aos jorna-listas que colaboram em revistas cobrando ldquoum centavo por linhardquo nos contos ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo e ldquoO anjo do bizarrordquo respectivamente

Depois de muitas mortes e pacircnico entre as famiacutelias daacute-se a intervenccedilatildeo da heroiacutena ela eacute filha do vizir mais importante do reino possui grande cultura e inteligecircncia chama-se Sahrazad [] e elaborou uma estrateacutegia infaliacutevel por meio das histoacuterias que vai sucessivamente noite apoacutes noite desfiando diante de um rei a princiacutepio assustado mas depois cada vez mais seduzido e encan-tado (Jarouche 2006 p 9)

Contrariamente em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroiacutena empe-nhando-se assim em trazer agrave tona a lsquoverdade dos fatosrsquo a partir das infor-maccedilotildees encontradas no guia fictiacutecio ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo [ldquoTellmenow Isitsoumlornotrdquo] inserido na heranccedila enciclopedista do Ocidente (enxergan-do no Oriente um ldquooutrordquo) e agrave moda da produccedilatildeo jornaliacutestica do seacuteculo XIX No conto Poe torna risiacuteveis as formas de produccedilatildeo e de recepccedilatildeo dos elementos maravilhosos e realistas a partir de um efeito de estranha-mento diegeacutetico que termina por colocar agrave prova os mesmos conceitos o realismo o maravilhoso literaacuterio a miacutemesis e sobretudo as formas de produccedilatildeo acesso e recepccedilatildeo do conhecimento em sua eacutepoca

A visatildeo criacutetica da praacutetica de contemporacircneos nos perioacutedicos lhe for-neceu certo humor em seus escritos esse sendo aqui compreendido mais como disposiccedilatildeo ou estado de espiacuterito do que realmente um caraacuteter risiacute-vel mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes Dizemos isso porque em grande parte dos contos em que Poe se serve da saacutetira ou paroacutedia em relaccedilatildeo aos seus colegas de profissatildeo encontramos mais disposiccedilatildeo a um provaacutevel riso amargo ndash possivelmente por atentar para a perfeita existecircncia desses literatos que natildeo tinham escruacutepulos em descum-prir as regras do ldquomundo econocircmico invertidordquo acima mencionado ndash do que a inegaacutevel conjuntura formal que permitiria o riso deliberado ainda que esse seja sempre factual ou neo-factualmente possiacutevel39 Sem conde-nar completamente a existecircncia desse tipo de literatura contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superaccedilatildeo natildeo soacute das obras de outros como tambeacutem das suas Edgar Allan Poe produziu textos voltados agraves possibilidades de tipificaccedilatildeo que esse domiacutenio discursivo permitia O conto curto como se sabe foi o resultado mais profiacutecuo que encontrou

39 Sobre isso admitimos sem duacutevida que o riso possui nuances sobre as quais a esteacuteti-ca ainda natildeo encontrou uma definiccedilatildeo universal sem refutaccedilatildeo se eacute que seja possiacutevel tal coisa ainda que devamos considerar os frutiacuteferos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Henri Bergson dentre outros teoacutericos

nessa inquiriccedilatildeo em muito uma tentativa de suscitar uma impressatildeo cen-tralizada no leitor ou aquilo que nomeou ldquounidade de efeitordquo40

Mas voltemos ao risiacutevel Pois ainda que Poe tenha atingido mais no-toriedade nos seacuteculos posteriores agrave sua morte pela produccedilatildeo de histoacuterias de crime misteacuterio e horror ele plasmou uma singular obra de contos sa-tiacutericos humoriacutesticos e grotescos Essa tessitura textual se configura para noacutes ldquometacomunicativardquo tendo por assunto do discurso ldquoa relaccedilatildeo entre os falantesrdquo ou os participantes de determinado evento seja ele literaacuterio ou natildeo conforme a elucidaccedilatildeo de Gregory Bateson (2002 p 87) ndash neste caso pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risiacuteveis como campo de criacutetica (e de defesa de criacuteticas) Igual estrateacutegia ocorre em ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo no qual o Poe-narrador defende-se da acusaccedilatildeo de que suas histoacuterias natildeo tenham uma ldquomoralrdquo ela estaacute laacute porque os criacute-ticos literaacuterios daratildeo um jeito de encontraacute-la ldquoQuando chegar a ocasiatildeo apropriada tudo o que o cavalheiro pretendia seraacute trazido agrave luz no Dial ou Down-Easter juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde ndash e assim tudo vai dar certo no fimrdquo (Poe 2002 p 71)

Esse caraacuteter metacomunicativo se tornou para noacutes uma importan-te interrogaccedilatildeo Pois esta noccedilatildeo natildeo abrange questotildees unicamente for-mais mas principalmente as regras do jogo linguiacutestico-literaacuterio que satildeo indispensaacuteveis ao funcionamento do texto ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que elencados a um niacutevel formal em muito se assemelham aos de seus contos ldquoseacuteriosrdquo a exemplo de sua aproximaccedilatildeo com a literatura fantaacutestica maravilho-sa ou de crimes aleacutem de seu uso particular do grotesco Sua narrativa constante em primeira pessoa uma discussatildeo em torno de alguma ideia filosoacutefica descriccedilotildees raras de espaccedilo salvo em casos necessaacuterios agrave die-gese uma possiacutevel ldquounidade de efeitordquo guiando os procedimentos estilo retoacuterico natildeo raras vezes solene Seu jogo poreacutem eacute elaborado a partir de 40 A unidade de efeito eacute um dos conceitos elaborados por Poe em ensaios como A fi-

losofia da composiccedilatildeo para traduzir a busca de um autor por abarcar dentro de uma obra uma impressatildeo escolhida desde antes de sua concepccedilatildeo com vistas a provocar no leitor um efeito caracteriacutestico Todos os procedimentos escolhidos girariam em torno desse uacutenico efeito tendo-se o desenlace em vista mas apoiando-se principal-mente sobre o aacutepice da obra A unidade de efeito eacute assim um preacute-monitoramento formal da expressividade da obra

inter-relaccedilotildees entre tais procedimentos diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de ldquoum centavo por linhardquo41 estando contudo ele mesmo inserido em um contexto em que como observa Joseacute Ribeiro (1996 p 11) ldquoa loacutegica da relaccedilatildeo empresa ver-sus consumidor na qual a imprensa perioacutedica estaacute inserida faz com que empreendimentos criativos em busca de novas fatias de mercado (natildeo garantidas de antematildeo) sejam adotados cautelosamenterdquo Esse jornalis-mo como Poe o vecirc desvirtua barateia ou mesmo vulgariza o conheci-mento e eacute tambeacutem fonte profiacutecua de erros ainda que em casos positivos possa ser de grande valia agrave difusatildeo do conhecimento Poe ndash eacute importante insistir ndash natildeo era avesso agrave ampla produccedilatildeo de publicaccedilotildees jornaliacutesticas (homens que satildeo retalhados e se levantam ilesos na outra manhatilde) mas admitia que a sua proliferaccedilatildeo tornava confuso o acesso a fontes fiaacuteveis

Em um primeiro momento a leitura drsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas dentro daquela que o autor constroacutei em forma de saacutetira drsquoAs mil e uma noites e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irocircnico Afinal propor uma narrativa maravilhosa a partir de um vieacutes risiacutevel natildeo seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista Poreacutem afastamo-nos dessa compreensatildeo por trecircs razotildees A primeira eacute o uso constante do insoacutelito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe mesmo quando nosso escritor recorria a um esclarecimento final apelando agrave ob-jetividade dos fatos42 A segunda justificativa encontra-se na epiacutegrafe de A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade ldquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeo velho ditadordquo (Poe 2010 p 156) [ldquotruth is stranger than fictionrdquo] Este ditado foi uma vez citado por Poe na coluna ldquoMarginaliardquo

lsquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeorsquo eacute de tal modo um refratildeo para sempre na boca dos desinformados que estes o citam como poderiam ci-tar qualquer outra proposiccedilatildeo que lhes parecesse paradoxal ndash pela mera propriedade de paradoxo Pessoas que leem nunca citam o ditado porque puros truiacutesmos natildeo merecem ser mencionados Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno Ele era um homem de

41 Como escreve no conto ldquoO anjo do bizarrordquo42 Ou seja quanto optava pelo estranho ou pelo maravilhoso segundo as teorias todo-

rovianas jaacute que ao fantaacutestico quase natildeo recorre salvo em raros contos como ldquoO gato pretordquo conforme observa o mesmo criacutetico

gecircnio mas suas linhas foram um fracasso eacute claro uma vez que as realidades do planeta detalhados na mais prosaica linguagem envergonham e confun-dem bastante todas as fantasias acessoacuterias do poeta43 (Poe 1984 p 1328)

Assim o ldquoparadoxordquo apresentado pelo ldquovelho ditadordquo tantas vezes repetido por pessoas desinformadas que natildeo leem natildeo levaria em conta uma das caracteriacutesticas principais da ficccedilatildeo pois como no longo poema de seu amigo sobre o planeta Saturno a necessidade de verossimilhanccedila externa (descriccedilatildeo da realidade empiacuterica) natildeo deixaria espaccedilo para a imaginaccedilatildeo para as fantasias que se tornam desta forma apenas aces-soacuterias ao poema Por fim a terceira justificativa se situa na proacutepria orga-nizaccedilatildeo narrativa do conto pela dubiedade que Poe estabelece a partir da construccedilatildeo de alguns niacuteveis na narrativa e pela proacutepria existecircncia de trecircs narradores o autor empiacuterico o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem Envolvidos na realidade empiacuterica ou insoacutelita aqueles niacuteveis satildeo construiacutedos em relaccedilatildeo ao contexto de produccedilatildeo lite-raacuteria norte-americano no seacuteculo XIX Entendemos que seraacute proveitoso compreender as regras do jogo literaacuterio que Poe estabelece com seus leitores aleacutem de observarmos como se procede a autorreflexatildeo criativa de Poe no conto A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade

O narrador deste conto embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literaacuterio ateacute entatildeo parece no entanto em mui-tos momentos natildeo ter tido acesso ao proacuteprio livro que critica As mil e uma noites pois comete ldquoenganosrdquo e supressotildees em relaccedilatildeo agrave narra-tiva oriental Assim por exemplo menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto44 e um rato azul quando na verdade aquela intitulada ldquoO mercador e o gecircniordquo inicia a sequecircn-cia de noites da heroiacutena Mas muito aleacutem de uma brincadeira com a narrativa parodiada esta eacute possivelmente uma resposta de Poe a uma paroacutedia feita de seu conto ldquoO gato pretordquo no ano de 184445 atestando em certa medida o desprezo na recepccedilatildeo pela elaboraccedilatildeo fantaacutestica do conto Uma reaccedilatildeo como essa por outro lado assinalaria ainda uma 43 (traduccedilatildeo livre)44 Mais uma vez assinalamos a ironia que Poe apresenta ao puacuteblico leitor e aos seus com-

panheiros de trabalho remetendo-se a uma obra de seu proacuteprio cunho ldquoO gato pretordquo45 De acordo com Thomas Mabbott (em POE Edgar Allan The Collected Works of

Edgar Allan Poe mdash Vol III Tales and Sketches [Org MABBOTT Thomas Ollive] 1978)

vez sua imersatildeo apesar de si mesmo no contexto supramencionado da produccedilatildeo jornaliacutestico-literaacuteria norte-americana com as suas limitaccedilotildees agrave criaccedilatildeo de novas formas literaacuterias e novas tipologias narrativas

Reconstroacutei-se desse modo a narrativa oriental a ldquoversatildeo usual da histoacuteriardquo permeando-a de ironias tanto no que diz respeito aos possiacuteveis maravilhoso ficccedilatildeo cientiacutefica ou realismo quanto na apreensatildeo formal dos acontecimentos Por exemplo as condiccedilotildees do cumprimento do voto do sultatildeo de matar suas esposas ao amanhecer satildeo descritas em termos ligados automaticamente ao contexto geneacuterico da ldquocultura orientalrdquo par-ticularmente de sua religiatildeo posta em paridade com a honra masculina traiacuteda do personagem a primeira natildeo mais sendo levada tatildeo a seacuterio

Devemos relembrar que na versatildeo usual da histoacuteria certo monarca tendo bons motivos para sentir ciuacutemes de sua rainha natildeo somente mandou ma-taacute-la mas fez um voto ndash por sua barba e pela do profeta ndash de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domiacutenios e no dia seguinte entregaacute-la agraves matildeos do carrasco Tendo cumprido esse voto durante muitos anos ao peacute da letra e com reli-giosa pontualidade e meacutetodo que lhe conferia grande meacuterito como homem de sentimentos pios e de excelente juiacutezo foi interrompido uma tarde (sem duacutevida quando estava rezando) por uma visita de seu gratildeo-vizir a cuja filha parece havia ocorrido uma ideia (Poe 2010 p 156-7 grifos nossos)

Buscando restabelecer a ldquoverdade dos fatosrdquo pela existecircncia do ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo ndash o qual a partir apenas de uma consulta de uma leitura e de uma recepccedilatildeo ingecircnuas pode desconstruir todo um co-nhecimento literaacuterio e cultural secular baseado natildeo se sabe exatamente em quecirc ndash o narrador comeccedila

Tendo tido ocasiatildeo no curso de algumas investigaccedilotildees sobre o Oriente de consultar o Diacutegame Eassinhounatildeo obra que eacute de algum modo pouco conhe-cida [] natildeo foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literaacuterio tinha ateacute entatildeo permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir Sherazade tal como eacute descrita nas Mil e uma noites e que o desenlace ali dado natildeo totalmente inexato ateacute certo ponto merece pelo menos censura por natildeo ter ido muito mais aleacutemrdquo46 (p 156 grifos do autor)

Eacute importante observar o grifo sobre este uacuteltimo termo ndash ldquodesen-lacerdquo ndash centro da proposiccedilatildeo de uma nova organizaccedilatildeo para o conto e

46 (Poe 2004a p 369)

indicativo da plena eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos ao enredo O narrador natildeo o indica poreacutem como incorreto mas apenas como precipitado Ora uma das razotildees para que tal conclusatildeo natildeo funcione eacute para o narrador o fato de ela ser idealizada em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica ldquoeacute sem duacute-vida excessivamente mais proacutepria e agradaacutevel mas infelizmente como a maior parte das coisas agradaacuteveis eacute mais agradaacutevel que verdadeirardquo (p 158) Quando conclui sua apresentaccedilatildeo do conto e passa a palavra para Sherazade a narrativa desta seraacute contudo permeada por uma boa pitada de realismo em sentido negativo introduzido nas reaccedilotildees do Sultatildeo Suas contiacutenuas interrupccedilotildees seu ronco sua descrenccedila em relaccedilatildeo ao que ouve sua tosse para advertir sua esposa de que estaacute indo longe demais em ter-mos imaginativos vecircm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa seja em sentido temaacutetico seja textual Isso torna o encaminhamento do ldquoplanordquo de Sherazade menos simples do que pareceria na narrativa oriental ndash pois sob qual pretexto conseguiria a heroiacutena a atenccedilatildeo de seu marido e a suspensatildeo de sua pena capital Apenas pela adequaccedilatildeo do Sultatildeo ao jogo literaacuterio sua compreensatildeo de que a narrativa de Sherazade inscreve-se na ficccedilatildeo servindo portanto para o deleite esteacutetico e artiacutestico Tal natildeo ocorre no conto poeiano pois a ilusatildeo da narrativa eacute chamada constantemente agrave consciecircncia da realidade empiacuterica Se o sultatildeo em As mil e uma noites eacute um ldquobom leitorrdquo ou me-lhor um bom ouvinte pois compreende a ficcionalidade do texto literaacute-rio sem buscar apenas sua comprovaccedilatildeo nrsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poreacutem ele deseja apenas ver sua realidade empiacuterica sendo refletida ali ldquondash Conversa fiada ndash exclamou o reirdquo (p 166)

Sherazade narra assim uma sequecircncia de fatos impressionantes ma-ravilhosos a seu marido e a sua irmatilde que comporiam a oitava aventura de ldquoSimbad o Marujordquo ocorrida em sua velhice quando satildeo indicadas na versatildeo oriental apenas sete O fundo desse enredo seraacute contudo um diaacute-logo com a modernidade por um vieacutes cientificista cujos acontecimentos satildeo apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora mas so-bretudo virtualmente por seus ouvintes Os acontecimentos ldquomodernosrdquo seratildeo assim narrados agrave moda das noites da Araacutebia (Arabian nights) promo-vendo uma visatildeo dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caraacuteter empiacuterico por noacutes leitores de Poe A narrativa portanto natildeo visa um imediato reconhecimento mas um estranhamento inicial e a progressiva ldquovisualizaccedilatildeordquo e compreensatildeo de objetos bem conhecidos do seacuteculo XIX e

de curiosidades da natureza Eacute exemplo marcante a descriccedilatildeo de um navio a vapor pelo olhar da heroiacutena e pelo reconhecimento quase automaacutetico de Simbad de se tratar de um ldquomonstrordquo47 De fato o estilo da descriccedilatildeo parece ser mais adequado a um monstro (mariacutetimo) e se utiliza dos termos que integram a descriccedilatildeo maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compre-ensatildeo do real (os espinhos a barriga seu incomensuraacutevel tamanho)

Quando aquela coisa chegou mais perto noacutes a distinguimos perfeitamente Seu cumprimento era igual ao de trecircs das mais altas aacutervores que existem e era tatildeo largo como o grande salatildeo de audiecircncias de vosso palaacutecio oh o mais sublime e munificente dos califas Seu corpo diferente do dos demais peixes comuns era tatildeo soacutelido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da aacutegua com exceccedilatildeo de uma estreita lis-ta cor de sangue que o circundava completamente A barriga que flutuava abaixo da superfiacutecie e a qual soacute podiacuteamos vislumbrar de vez e quando ao erguer-se e cair do monstro ao sabor das ondas estava inteiramente coberta de escamas metaacutelicas de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebulo-so As costas eram chatas e quase brancas e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo (p 160)48

Ou ainda

[] Deixando aquela ilha disse Simbad ndash pois Sherazade deve compre-ender-se natildeo deu atento agrave incivil interrupccedilatildeo de seu marido ndash deixando aquela ilha chegamos a outra onde as florestas eram de soacutelidas pedras e tatildeo duras que reduziam os machados mais bem temperados com que tentaacuteva-mos derrubaacute-las (p 163)

[Nota de rodapeacute do autor] lsquoUma das mais notaacuteveis curiosidades do Texas eacute uma floresta petrificada perto das cabeceiras do rio Pasigno Consiste de vaacuterias centenas de aacutervores em posiccedilatildeo ereta todas transformadas em pedra Algumas aacutervores agora crescendo satildeo parcialmente petrificadas Este eacute um fato espantoso para os filoacutesofos da natureza e deve levaacute-los a modificar a teoria existente da petrificaccedilatildeorsquo (p 169) 49

47 O ldquomonstrordquo eacute para Poe em outras narrativas mais ligadas ao estranhamento fantaacutes-tico aleacutem de um indicativo de proporccedilotildees agigantadas signo do estranhamento e da incompreensatildeo diante da narrativa da natureza de um objeto ou de um ser Assim no conto ldquoA esfingerdquo temos a descriccedilatildeo de um ldquomonstrordquo assim como em ldquoO gato pretordquo temos a descoberta do narrador-personagem de ele mesmo se tratar de um ldquomonstrordquo pelos crimes que jamais havia imaginado poder cometer

48 (Poe 2004a p 372)49 (Poe 2004a p 375)

Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosoacuteficos como ldquoZadigrdquo e ldquoBaboucrdquo ndash o deslocamento da re-alidade da Europa do seacuteculo XVIII a um lugar longiacutenquo geralmente um paiacutes oriental para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relaccedilotildees sociais sobretudo francesas Poe organiza a narrati-va de modo que a ilusatildeo de seu leitor tambeacutem seja chamada agrave realidade Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima voltado ao mara-vilhoso exclamatoacuterio altamente descritivo pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos poreacutem estranhos Poe insere notas de rodapeacute atestando sua ldquoveracidaderdquo ndash indicando suas fontes ndash ldquoKennedyrdquo ldquo(Murray p 215 Phil Edit)rdquo ldquoMagazine Colonial de Simmonardquo No entan-to em alguns momentos Poe deixa-as de lado ou simplesmente a fonte verificada natildeo estaacute ldquocorretardquo como quando cita o Alcoratildeo

ndash Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensatildeo e prodigiosa solidez mas que natildeo obstante se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres50

ndash Isto agora eu acredito ndash disse o rei ndash porque jaacute li antes algo dessa espeacutecie num livro (p 166)

[Nota de rodapeacute do autor] A terra eacute sustentada por uma vaca de cor azul tendo chifres em nuacutemero de quatrocentos (Alcoratildeo) (p 172) 51

De acordo com Braulio Tavares esta imagem natildeo se encontra no Alcoratildeo Como resultado temos que se por um lado podemos dar ldquocre-dibilidaderdquo a algumas das informaccedilotildees e fontes que Poe menciona ndash o que demanda de seus leitores certa lsquocrenccedilarsquo no escritor e algum posi-cionamento sobre suas intenccedilotildees em elaborar desta forma seu texto ndash por outro o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado Simultaneamente Edgar Poe ironiza as proacute-prias possibilidades limitadas de crenccedila de alguns de seus leitores pois o Sultatildeo apenas pode crer ldquonaquilo que jaacute leu num livrordquo ndash livro este dotado de estatuto de ldquoverdade empiacutericardquo

50 E ainda uma vez Poe ri de tudo e de todos do Oriente e muito possivelmente da base de sua religiosidade (geneacuterica) e da crenccedila unilateral nas imagens que com-potildeem aquele livro sagrado

51 (Poe 2004a p 379)

A grande questatildeo que se impotildee nesse momento eacute a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empiacuterica dentro da verdade textual ou uma perfeita correlaccedilatildeo entre ambas Desconfiar da uacuteltima seria o papel do legiacutetimo leitor de ldquoliteraturardquo Conforme observa Anco Vieira (sp)

como toda forma de conhecimento a literatura mdash e as artes de maneira ge-ral mdash tambeacutem encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos imitando o referente (representando o que poderia acontecer) fingindo (construindo enunciados natildeo-seacuterios) plasmando uma realidade e uma ver-dade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o referente nada obstante se valer deste enquanto mateacuteria) O resultado desse modo de se relacionar com os signos eacute que na literatura o leitor ao ler um poema eacute levado a decifrar e a recifrar permanentemente o verso e no caso da prosa a se deparar com o sentido polissecircmico que as estoacuterias narradas encerram

Assim a relaccedilatildeo com a verdade empiacuterica se daacute enquanto mateacuteria lite-raacuteria na forma de referente ou seja enquanto possibilidade ndash na premissa aristoteacutelica ldquoo que poderia acontecerrdquo em um caraacuteter mais universal do que particular O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapeacute terem ou natildeo se sucedido natildeo seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual ou de verossimilhanccedila interna mas sim o natildeo existente ldquocompromissordquo de verdade entre o autor seus enunciados e o processo de recepccedilatildeo Eacute indi-ferente se as informaccedilotildees satildeo fiaacuteveis ou natildeo na realidade pois ldquonatildeo vem ao caso que estejamos informados de sua verdaderdquo (Vieira sp) Assim o fato de as referecircncias ao Alcoratildeo de as citaccedilotildees retiradas dos Magazines Asiaacuteticos e manuais de fisiologia serem verdadeiras ou falsas em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica natildeo interferiria no estatuto literaacuterio do texto

ndash Pare ndash disse o rei ndash Natildeo posso suportar isso e natildeo o suporto Vocecirc jaacute me provocou terriacutevel dor de cabeccedila com suas mentiras O dia tambeacutem pelo que vejo estaacute comeccedilando a raiar Haacute quanto tempo temos estado casados Minha consciecircncia estaacute ficando perturbada de novo E depois essa uacuteltima histoacuteria do dromedaacuterio Pensa que sou maluco Em resumo vocecirc pode muito bem levantar-se e ser estrangulada (p 168)52

A condenaccedilatildeo da narradora-personagem Sherazade pela incom-preensatildeo de seu marido no tocante ao caraacuteter ficcional de sua inven-ccedilatildeo ndash o qual se confunde para ele com a ldquomentirardquo ou seja a maacute-feacute na narrativa ndash termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da

52 (Poe 2004a p 382)

produccedilatildeo literaacuteria e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a ima-ginaccedilatildeo a fantasia o maravilhoso e possivelmente uma mais especiacutefica ficccedilatildeo cientiacutefica da qual Edgar Allan Poe eacute considerado um dos ldquopaisrdquo baseada na mescla do imaginaacuterio romacircntico de seu gecircnio e trabalho poeacutetico e da difusatildeo de novas tecnologias em meados do seacuteculo XIX O consolo amargo que emana do texto (intra e extra-textualmente) suge-rindo-se o desprezo de um grupo de leitores e criacuteticos que visa apenas a verificaccedilatildeo da verdade empiacuterica dentro da verdade textual estaria situ-ado no deleite esteacutetico perdido no prazer verdadeiramente literaacuterio que resta assim para uns poucos privilegiados

[Sherazade] recebeu contudo grande consolaccedilatildeo (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da histoacuteria permanecia ainda inacabada e que a petulacircncia do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa privando-o de muitas aventuras incon-cebiacuteveis (p 169)53

REFEREcircNCIAS

BATESON Gregory ldquoUma teoria sobre brincadeira e fantasiardquo In RIBEIRO B T GARCEZ M P (org) Sociolinguiacutestica Interacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 (p 85-105)

BOUDIEU Pierre As regras da arte Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

JAROUCHE Mamede Mustafa ldquoPrefaacuteciordquo In Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordfEd Satildeo Paulo Globo 2006

Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordf Ed Satildeo Paulo Globo 2006

POE Edgar Allan ldquoMarginaliardquo In Essays and Reviews New York Library of America 1984 (p 1223 e seg)

______ ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999a (p 101-114)

______ ldquoO princiacutepio poeacuteticordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999b (p 75-99)

53 (Poe 2004a p 382)

______ ldquoMarginaliardquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999c (p 165-186)

______ ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo In Assassinatos na rua Morgue e outras histoacuterias de crime e misteacuterio Trad William Lagos Porto Alegre LampPM 2002 (p 69-86)

______ ldquoThe Thousand-and-Second Tale of Scheherazaderdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004a (p 369-382)

______ ldquoNever bet the devil your headrdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004b (p 469-475)

______ ldquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazaderdquo In POE Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (Org) Contos obscuros de Edgar Allan Poe Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 156-173)

RIBEIRO Joseacute Imprensa e ficccedilatildeo no seacuteculo XIX Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym Satildeo Paulo Editora UNESP 1996

SENA Andreacute de Visotildees do ultrarromantismo melancolia literaacuteria e modo ultrarromacircntico Recife Editora UFPE 2010

SUASSUNA Ariano Introduccedilatildeo agrave Esteacutetica Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2011

TAVARES Braulio ldquoPosfaacutecio ndash A sombra luminosa (A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade)rdquo In POE Edgar Allan Contos Obscuros de Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (org) Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 181-207)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2010

______ As estruturas narrativas Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 2011

VIEIRA Anco Maacutercio Tenoacuterio O que eacute e o que natildeo eacute literatura [texto ineacutedito no prelo]

Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff

Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Atualmente temos visto surgir vaacuterias releituras de contos de fadas tradicionais em diversos tipos de suportes artiacutesticos ao mesmo tempo em que observamos uma grande mudanccedila no caraacuteter de personagens de cunho fantaacutestico que ateacute o romantismo foram tidos como horren-dos e assombrados e no seacuteculo XXI tecircm se confundido e se asseme-lhado com alguns personagens de contos de fadas Eacute o caso de alguns monstros a exemplo dos vampiros que viraram sensaccedilatildeo no univer-so mais infantil e juvenil como personagens pop A aproximaccedilatildeo dos personagens desses dois gecircneros nos motivou agrave busca de suas origens e uma anaacutelise sobre a possiacutevel interseccedilatildeo entre o conto fantaacutestico e o conto de fada

A partir de um estudo sobre a teoria dos gecircneros passando pelas definiccedilotildees e caracterizaccedilotildees tanto do fantaacutestico como do conto de fadas percebemos que os dois tecircm uma mesma origem secular A origem dos contos de fadas eacute bem antiga pois satildeo em sua maioria histoacuterias que fo-ram recolhidas da tradiccedilatildeo oral de diversas culturas por pesquisadores e escritores ndash tais como Perrault e os irmatildeos Grimm ndash e por isso encontra-mos em muitos casos mais de uma versatildeo de uma mesma histoacuteria (que faziam parte de culturas diferentes) Haacute registros no Egito antigo de nar-rativas que deram origem ao que noacutes conhecemos hoje como contos de fadas e foram sendo recontadas por pessoas que as disseminaram pelo mundo atraveacutes dos seacuteculos como confirma Coelho (2012 p 36) ldquoessas diversas fontes levadas atraveacutes dos tempos para diferentes regiotildees por peregrinos viajantes invasores foram-se misturando umas agraves outras e criando as diferentes formas narrativasrdquo Esse eacute um forte exemplo da for-ccedila arquetiacutepica do mito permanecendo e sobrevivendo a guerras pragas viagens e mesmo mudanccedilas de idioma e de cultura

Ao consolidar-se como gecircnero literaacuterio em fins do seacuteculo XVIII e iniacutecios do XIX o conto de fadas passa a ser dividido em dois subgecircneros Os que tecircm sua origem nas histoacuterias populares chamados de contos de fa-das tradicionais e os que nascem da imaginaccedilatildeo de um autor conhecidos como contos de fadas artiacutesticos Para a teoacuterica Karin Volobuef (1999) o conto de fadas popular consiste em narrativas que representam a natureza essencial do ser humano e do mundo Satildeo exemplos disso agraves referecircncias aos vaacuterios periacuteodos da vida desde o nascimento passando por dificul-dades casamentos recompensas e morte tambeacutem agraves diferentes classes sociais sempre mostrando pastores miseraacuteveis ou a realeza aleacutem de uma diversidade humana e de representaccedilotildees arquetiacutepicas da natureza Ainda segundo essa autora ldquoo conto de fadas eacute moldado pela raacutepida sequecircncia de acontecimentos e quase nenhuma descriccedilatildeordquo (p 54)

Observamos ainda nessas histoacuterias populares certa uniformidade quanto agrave construccedilatildeo de personagens De acordo com Luumlthi (apud Volobuef p 54) haacute sempre a presenccedila de um heroacutei ou heroiacutena que vai enfrentar difi-culdades um oponente que vecircm desestabilizar o equiliacutebrio inicial e impor obstaacuteculos um adjunto podendo aparecer como um ser sobrenatural e que vem ajudar o heroacutei aleacutem de algumas figuras opostas ao heroacutei e uma pessoa resgatada pelo protagonista Eacute importante notar que ldquoos personagens sem-pre satildeo planos e imutaacuteveis dividem-se em bons e maus e recebem nomes geneacutericos que natildeo os individualizam (Maria priacutencipe lenhador avoacute lobo)rdquo (Volobuef p 54) e eacute comum que o que os identifica seja uma caracteriacutestica exterior como eacute o caso de Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve

Jaacute os contos artiacutesticos tecircm como caracteriacutestica principal a de tra-duzir ldquoa individualidade poeacutetica de um dado escritorrdquo (Volobuef 1999 p 57) apresentando uma forma mais definida uma estrutura estetica-mente complexa Esse tipo de conto implica em uma forma fixa que foi estruturada pelo autor do texto enquanto que os contos populares podem ser contados de memoacuteria e podem variar de acordo com a pes-soa que o narra jaacute que haacute a possibilidade de remodelaccedilatildeo da histoacuteria Poreacutem eacute importante remarcar que apesar de o conto artiacutestico apresen-tar uma estrutura definida eacute comum que ele absorva ldquocom frequecircncia elementos temaacuteticos da narrativa popularrdquo (Volobuef p 57)

O conto de fadas artiacutestico entatildeo se mostra mais proacuteximo dos con-tos fantaacutesticos que se popularizam na eacutepoca romacircntica assim como os contos de fadas Segundo o teoacuterico Tzvetan Todorov o fenocircmeno

fantaacutestico surge da ambiguidade e da incerteza Para ele haacute trecircs condi-ccedilotildees para o fantaacutestico a primeira seria o leitor considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e buscar uma interpre-taccedilatildeo natural ou sobrenatural para os acontecimentos da narrativa A segunda seria a hesitaccedilatildeo da proacutepria personagem (esta eacute uma condiccedilatildeo que natildeo precisa ser satisfeita para que haja o fantaacutestico) E por fim o leitor adotar uma perspectiva do texto especiacutefica que natildeo seja nem ldquopo-eacuteticardquo nem ldquoalegoacutericardquo como muitas vezes satildeo construiacutedos os contos de fadas (lembrando tambeacutem da existecircncia de contos de fadas populares a exemplo de As moedas furtadas coletados pelos irmatildeos Grimm que trabalham sugestotildees e elipses associadas ao fantaacutestico torodoviano)

Diferentemente de Todorov Ceserani (2006) natildeo trata o fantaacutestico como um gecircnero mas sim um modo literaacuterio em que elementos retoacutericos determinadas temaacuteticas atraveacutes de combinaccedilotildees e empregos especiacuteficos associados ainda a estrateacutegias narrativas e artifiacutecios formais o caracteri-zariam enquanto tal Entre eles haacute a posiccedilatildeo de relevo dos procedimentos narrativos no corpo da narraccedilatildeo utilizado tanto pelos contos fantaacutesticos tradicionais como pelos contos de fadas artiacutesticos Isso se daacute levando-se em consideraccedilatildeo que o fantaacutestico surge com uma base na experiecircncia nar-rativa do seacuteculo XVIII a qual explorou inuacutemeras potencialidades antes inexistentes ou pouco definidas Observamos no modo fantaacutestico um jogo bem estruturado de cenas e enredos e um ldquo[] gosto por contar casos de lsquoaventurarsquordquo (p 68) Mas tambeacutem eacute presente ldquoo destaque a manipulaccedilatildeo consciente e paroacutedica dos procedimentos narrativos o gosto por colocar relevo e explicitar todos os mecanismos da ficccedilatildeordquo (p 69)

Para corroborar com essa escolha de tratar de ambos os contos de fa-das e fantaacutestico nos servimos das ideias de Marcus Mazzari discutidas na apresentaccedilatildeo agrave nova ediccedilatildeo do livro Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (2012) de Jacob e Wilhelm Grimm Mazzari concorda com o fato de que os eventos maravilhosos nos contos de fadas populares satildeo vistos de forma inteiramente natural (convergindo para as ideias de Todorov sobre o Maravilhoso) e informa que o trabalho dos Grimm natildeo se restringiu a anotar as histoacuterias que escutavam mas tambeacutem realizaram um trabalho extenso de pesquisa filoloacutegica e mesmo de reescrita Jacob Grimm por exemplo tenta definir que os seus Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (no original Kinder und Hausmaumlrchen) seriam expressatildeo de uma ldquopoesia da Naturezardquo criaccedilatildeo anocircnima e espontacircnea Ele proacuteprio tenta

dividir sua produccedilatildeo em contos populares (Volksmaumlrchen) que foram os coletados das narrativas orais e os contos artiacutesticos (Kunstmaumlrchen) his-toacuterias elaboradas a partir de sua proacutepria criatividade assim como teremos posteriormente as produccedilotildees de Hans Christian Andersen e as de Oscar Wilde divisatildeo esta que tambeacutem foi usada por Volobuef

Eacute interessante observar que apesar de os contos de fadas particular-mente os contos dos Grimm terem atualmente um grande apelo infantil eles natildeo foram escritos particularmente para crianccedilas mostrando vaacuterias vezes um caraacuteter assustador grotesco bem como uma seacuterie de referecircn-cias ligada agrave sexualidade Mas desde o lanccedilamento das primeiras ediccedilotildees (1812 e 1815) os contos dos Grimm chamaram a atenccedilatildeo das crianccedilas e isso gerou uma autocensura assim nas ediccedilotildees posteriores Wilhelm Grimm que ficou responsaacutevel pelas reediccedilotildees buscou retirar das histoacute-rias vaacuterios elementos que julgou inadequados para o puacuteblico infantil

Tratemos agora de dois exemplos literaacuterios concretos para discutir de maneira pontual as relaccedilotildees entre os universos da oralidade folcloacute-rica e do fantaacutestico O vampiro (1816) de John Polidori (1795-1821) e O califa cegonha (1825) de Wilhelm Hauff (1802-1827) Neste segundo em especial veremos um exemplo de conto de fadas artiacutestico que se aproxima de um maravilhoso caro ao Livro das mil e uma noites num franco processo de intertextualidade

O conto de Polidori tem como substrato as lendas folcloacutericas sobre monstros oriundos de regiotildees recocircnditas da Europa contudo se origina de sua proacutepria criatividade e eacute inspirado num texto inacabado de Lord Byron a quem servia como meacutedico particular e parceiro de aventuras

Percebemos em vaacuterios trechos dessa histoacuteria uma das primeiras sobre vampiros em liacutengua inglesa exemplos de crendices do povo neste caso de uma Greacutecia oitocentista de cultura potencialmente orientali-zante (estando sob o domiacutenio dos turcos) locus horrendus distinto dos espaccedilos ligados agrave razatildeo ocidental Eacute nesta ambiecircncia que os habitantes da Greacutecia narram ao protagonista do conto em viagem os estranhos acontecimentos que se passavam no lugar

[] Ianthe ficava ao lado observando os efeitos maacutegicos do laacutepis desenhando cenaacuterios de sua terra ela entatildeo descrevia para ele danccedilas de roda ao ceacuteu aber-to com todos os tons vibrantes da memoacuteria jovem [] transmitia-lhe as his-toacuterias sobrenaturais conhecidas por sua ama A seacuterie de crenccedilas aparentes na-quilo que narrava despertou o interesse de Aubrey [] (Polidori 2010 p 59)

Podemos observar claramente nesse trecho a forte influecircncia que o autor sofre das narrativas orais natildeo soacute em relaccedilatildeo ao tema principal do conto (o vampirismo) mas tambeacutem no proacuteprio enredo da histoacuteria que trata de crenccedilas e personifica os medos que as pessoas tinham do des-conhecido num soacute personagem o famigerado vampiro lord Ruthven

Este conto todavia apesar dos iacutendices que o ligam ao maravilho-so das culturas orais e folcloacutericas eacute marcado por um sobrenatural bem mais proacuteximo do fantaacutestico Lord Ruthven eacute descrito como um homem diferente a um tempo nobre e excecircntrico de perfil e feiccedilotildees belas mas com cores morticcedilas Eacute por isso que tanto pode atrair as mulheres como tambeacutem causar profundo horror a outras especialmente pelo olhar Desde o iniacutecio inquieta e desperta a desconfianccedila do leitor servindo de elo aparente agraves fantasmagorias que passam a ocorrer

A presenccedila de seres e acontecimentos sobrenaturais eacute comum aos contos de fadas e fantaacutesticos poreacutem o caraacuteter assustador que obra de Polidori confere a esses elementos estaacute ligado ao gecircnero fantaacutestico Essa natureza apavorante que o conto imprime ao personagem sobrenatural por exemplo eacute reforccedilada pelas duacutevidas tanto do leitor como do protago-nista da histoacuteria Aubrey que continuamente se pergunta a respeito das caracteriacutesticas estranhas de Ruthven

Durante o conto o protagonista transita de um mundo em que natildeo se acredita em vampiros e acontecimentos sobrenaturais para outro em que estas coisas satildeo reais Por outro lado com tal aparente descoberta ele passa a soacute pensar nisso uma monomania que o leva agrave loucura ndash mais um elemento que aparece constantemente no fantaacutestico como possiacute-vel explicaccedilatildeo para a sobrenaturalidade Eacute por isso que O vampiro se distancia do maravilhoso ligado aos contos de fadas e se aproxima da definiccedilatildeo todoroviana de fantaacutestico-estranho na qual a explicaccedilatildeo para os elementos sobrenaturais eacute a loucura ou o sonho

Como sabemos os aspectos duacutebios e ambiacuteguos satildeo a principal caracte-riacutestica do gecircnero fantaacutestico segundo Todorov o que nos faz considerar essa obra de Polidori como conto fantaacutestico tambeacutem Assim percebemos nela uma convergecircncia entre os gecircneros do conto artiacutestico e do conto fantaacutestico

Em relaccedilatildeo ao segundo conto para tratarmos de uma obra de cunho maravilhoso com aproximaccedilatildeo do Livro das mil e uma noites nos basearemos nas obras do alematildeo Wilhelm Hauff Ao analisarmos o seu livro Maumlrchen numa traduccedilatildeo integral para o francecircs pudemos

notar vaacuterias caracteriacutesticas que corroboram tal estudo O livro eacute dividi-do em partes mais extensas que satildeo fragmentadas em contos menores agrave maneira oriental Nos deteremos na narrativa de Lrsquohistoire du calife cigogne54 que faz parte da coletacircnea La caravane A obra de Hauff foi produzida no contexto das pesquisas e publicaccedilotildees dos irmatildeos Grimm acompanhadas pela traduccedilatildeo e difusatildeo do Livro das mil e uma noites assim o jovem alematildeo sofreu influecircncia desse imaginaacuterio maacutegico ligado ao Oriente ao publicar em 1826 sua referida obra

Em La caravane conta-se a histoacuteria de um grupo de viajantes que atravessa o deserto voltando de Meca para Bagdaacute Ao receber a compa-nhia de um viajante estrangeiro os homens comeccedilam a se contar histoacute-rias para passar mais raacutepido o tempo E assim durante o dia eles para-vam de cavalgar e narravam pequenas histoacuterias esperando o pocircr do sol periacuteodo menos quente para prosseguirem viagem Como em As mil e uma noites eles utilizam a estrateacutegia das narrativas para permanecerem vivos Eacute numa dessas histoacuterias que se narra o acontecido com o califa cegonha que iremos analisar a seguir

Primeiramente podemos observar que o conto trata de pessoas marcadas pelas suas classes sociais um califa um vizir e uma princesa por exemplo Como vimos eacute recorrente nos contos de fadas a imagem dos personagens a partir de seu papel na sociedade O califa e seu vizir compram uma pequena caixa com um poacute e uma escritura em liacutengua desconhecida Ao buscarem saber do que se tratava descobrem com a ajuda de um saacutebio que a partir daquele poacute eles poderiam transfor-mar-se em qualquer animal e uma vez metamorfoseados conseguiriam compreender-lhes todas as falas Animados com a ideia eles se trans-formam em cegonhas mas apoacutes terem desobedecido agrave norma de natildeo rirem esquecem o que devem falar para voltarem a ser humanos

Encontramos assim mais um elemento bastante recorrente nos contos de fadas e mesmo agraves narrativas das Mil e uma noites que seria a metamorfose de humanos em animais Mais uma vez essa metamor-fose aparece como uma espeacutecie de maldiccedilatildeo que prende o personagem Interessante observar que no iniacutecio do conto o califa sente-se muito fe-liz e presenteado com o dom de poder se transformar em animal como verifica-se no trecho do manuscrito que o califa comprou 54 A histoacuteria do califa cegonha (as traduccedilotildees de Hauff seratildeo a partir de agora de minha

autoria vertidas do francecircs)

Homem tu que encontras esta [caixa] agradeces agrave Allah por sua graccedila Aquele que usar um pouco do tabaco contido nesta caixa e disser ao mesmo tempo Mutabor poderaacute se transformar em qualquer animal e compreenderaacute a liacutengua dos animais (Hauff 1998 p 23)

Assim o califa e o vizir resolvem utilizar a magia em si proacuteprios bem como o tipo de animal que iratildeo se tornar no caso dessa histoacuteria a maldiccedilatildeo eacute natildeo poder voltar a ser humano Diferentemente do que observamos em vaacuterios contos de fadas tradicionais no texto de Hauff o personagem se metamorfoseia em animal por vontade proacutepria e mes-mo com certa vaidade em poder fazecirc-lo

Podemos reconhecer na histoacuteria do califa cegonha certa moral jaacute que transformados neste animal o protagonista e o seu vizir encontram uma coruja que se diz ser uma princesa encantada pelo mesmo homem que lhes vendeu o poacute maacutegico A princesa pode ajudaacute-los a encontrar o tal mago que faraacute com que eles descubram como voltar a ser humanos enquanto que ela proacutepria poderaacute voltar a ser princesa caso um deles a aceite como esposa Atraveacutes do elemento da metamorfose se estabelece um importante intertexto com as narrativas do Livro das mil e uma noi-tes a exemplo de uma presente na 50ordf noite quando a filha do rei luta contra um gecircnio e os dois mudam diversas vezes de forma

Ao ajudar a princesa que se revela uma bela jovem e ser ajudado por ela o califa e o vizir conseguem voltar a sua forma humana e re-tornam para a cidade de Bagdaacute onde o povo encontrava-se muito in-feliz por acreditar na morte de seu governante Ao chegarem agrave cidade os protagonistas descobrem que o mago que os transformou tinha lhe usurpado o trono mas acaba punido Encontramos mais uma vez o famoso ldquofelizes para semprerdquo presente nos contos de fadas

Observamos que tambeacutem na obra de Hauff a foacutermula das narrati-vas orais se repete um heroacutei vive bem e eacute apresentado a um conflito do qual consegue sair e dele ainda ganha alguma recompensa Tambeacutem em relaccedilatildeo aos personagens apresentados identificamos semelhanccedilas com os contos populares O califa se caracteriza como o heroacutei o mago que se apresenta primeiramente como um mascate eacute o oponente O vizir eacute o personagem adjunto enquanto que a princesa se apresenta como a pessoa que eacute resgatada pelo heroacutei e ao mesmo tempo recompensa

Eacute possiacutevel observar na obra de Hauff a forte presenccedila do elemento maravilhoso bem representado entre outros motivos pelo poacute maacutegico que

permite a transformaccedilatildeo em animal e os personagens natildeo apresentam ne-nhum tipo de estranhamento ao descobrirem tais possibilidades Eacute o mes-mo que acontece nas Aventuras de Alice no paiacutes das Maravilhas de Lewis Carroll quando a protagonista que vivia no mundo que conhecemos eacute transportada para um paiacutes em que o maravilhoso aparece como o natural das coisas Para a personagem lagarta com quem conversa em determina-da passagem originaacuteria do paiacutes das Maravilhas natildeo eacute estranho a pessoa mudar de tamanho constantemente isso constitui uma novidade para a garota contudo logo aceita Entatildeo natildeo haacute quebra da realidade daquele lugar jaacute que o Maravilhoso parte de uma coerecircncia e verossimilhanccedila que lhe satildeo tiacutepicas distinto por exemplo do sobrenatural inquietante do con-to de Polidori Isso eacute o que acontece tambeacutem em Lrsquohistoire du calife cigogne pois no universo em que vivem os personagens a magia eacute algo verossiacutemil natildeo proporcionando nenhuma quebra da realidade que conheciam

Percebemos entatildeo na narrativa de Hauff uma grande proximida-de com o Maravilhoso puro todoroviano que acredita nos elementos maacutegicos e transfiguradores como inatos agrave realidade Sabemos que o ele-mento maravilhoso jaacute era comum nas histoacuterias populares sobre fadas mas aqui lhe eacute acrescentado uma descriccedilatildeo mais detalhada do que a das narrativas puramente orais e folcloacutericas a exemplo do trecho da trans-formaccedilatildeo dos dois seres humanos em cegonhas

Suas pernas comeccedilaram a reduzir de volume para se tornarem finas e ver-melhas as belas babouches [pantufas orientais] amarelas do califa e do seu companheiro se transformaram em patas de cegonhas seus braccedilos tornaram-se asas seus pescoccedilos se alongaram desproporcionalmente suas barbas desa-pareceram e seus corpos se cobriram de penas delicadas (Hauff 1998 p 24)

Normalmente esse tipo de descriccedilatildeo mais detalhada natildeo eacute encon-trada nas narrativas populares o que facilita sua classificaccedilatildeo como conto artiacutestico

A narrativa de Hauff sofre como vimos grande influecircncia do orientalismo O cenaacuterio e os personagens selecionados para a histoacuteria demonstram facilmente a presenccedila do imaginaacuterio dessa cultura e drsquoAs mil e uma noites Em La caravane temos a presenccedila em vaacuterios niacuteveis das narrativas orais o que nos remete tanto agraves histoacuterias de Sherazade mas tambeacutem aos contos populares recolhidos pelos Grimm tendo ainda como base sua proacutepria imaginaccedilatildeo

REFEREcircNCIAS

AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura Volume I Coimbra Livraria Almedina 1991

CESERANI Remo O Fantaacutestico Curitiba Editora UFPR 2006

COELHO Nelly Novaes O Conto de Fadas siacutembolos mitos arqueacutetipos 4ordf ed Satildeo Paulo Paulinas 2012

HAUFF Wilhelm Contes Arles Babel 1998

Livro das mil e uma noites Trad de Mamede Mustafa Jarouche (Vol 1) Satildeo Paulo Globo 2012

MAZZARI Marcus ldquoO bicentenaacuterio de um claacutessico poesia do maravilhoso em versatildeo originalrdquo In GRIMM Jacob GRIMM Wilhelm Contos maravilhosos infantis e domeacutesticos (1812-1815) Satildeo Paulo Cosac Naify 2012

POLIDORI John ldquoO Vampirordquo in SILVA Alexander (org) Contos claacutessicos de vampiro Satildeo Paulo Hedra 2010 (p 51-77)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 4ordf ed Satildeo Paulo Perspectiva 2010

VOLOBUEF Karin Frestas e arestas a prosa de ficccedilatildeo do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas

Julia Troncoso(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Heloiacutesa Seixas eacute uma escritora carioca que iniciou sua carreira na aacuterea em que se formou jornalismo Hoje com diversos livros publica-dos eacute em sua obra de estreacuteia (uma coletacircnea de contos) Pente de Vecircnus que consta Iacuteblis conto que foi novamente compilado a outras narrativas fantaacutesticas por Braulio Tavares em Paacuteginas de sombra ndash contos fantaacutesti-cos brasileiros Em Iacuteblis conhecemos Camila uma pesquisadora da cul-tura islacircmica Seixas nos conta com detalhes o fluxo de consciecircncia de Camila durante o dia em que ela retorna a Paris onde mora

O estilo de Heloiacutesa Seixas se desenvolve de uma maneira na qual o elemento fantaacutestico eacute de forma um pouco abrupta inserido em uma narrativa que em sua quase totalidade eacute realistaimpressionista Grande parte do corpo do texto eacute dedicada a criar uma imagem do perfil psi-coloacutegico de Camila Esse recurso jaacute havia sido registrado por Todorov ldquo[] natildeo haacute de fato aqui nenhuma preparaccedilatildeo para o fantaacutestico antes de sua brusca irrupccedilatildeo (o que precede eacute mais uma anaacutelise psicoloacutegica indireta do narrador)rdquo (Todorov 2010 p 31) Seixas natildeo deixa seu tex-to fugir do fantaacutestico para ser definido como estranho ou maravilhoso Permanece entatildeo equilibrado entre esse dois gecircneros sem se compro-meter com um ou outro

O que acontece eacute a gradual e delicada inserccedilatildeo de elementos inquie-tantes e misteriosos na trama num trabalho de verticalizaccedilatildeo psicoloacute-gica A presenccedila dos elementos duacutebios surge logo nas primeiras linhas ldquoo cheiro adocicado do lodordquo (Seixas 2003 p117) Aleacutem de minaretes trecircmulos Minaretes satildeo grandes siacutembolos da cultura islacircmica usados para chamar seus fieis para rezar nas diferentes horas do dia Sua altura permite que as mesquitas sejam localizadas de muito longe agraves vezes existem vaacuterios deles que costumam ser expressivamente mais altos do

que as proacuteprias mesquitas Os alicerces dessas torres satildeo construiacutedos em cima das mais profundas e impenetraacuteveis rochas e a base delas em geral natildeo costuma ficar proacutexima da superfiacutecie estando sedimentadas em soacuteli-do chatildeo E no entanto em Iacuteblis os minaretes satildeo trecircmulos

Seixas prossegue ao longo do conto pormenorizando sobre os pequenos prazeres de Camila Todos de alguma maneira camuflados e contidos dentro da figura muito polida muito distante da protagonista

Camila senta-se com satisfaccedilatildeo alisando com a matildeo a toalha de linho bran-co que recobre a mesinha O arranjo do centro delicado como um iquebana reuacutene trecircs bototildees de rosas-chaacute e alguns ramos de uma folhagem vaporosa que lhe parece avenca Ao vecirc-la sentar-se sozinha a mesa o garccedilom se apro-xima soliacutecito e retira trecircs dos quatro pratos ali dispostos Sob os pratos de louccedila branca com desenhos de flores em baixo-relevo haacute um descanso de metal redondo que daacute agrave porcelana matizes prateados [] Alcachofras Nada mais delicioso do que um tenro coraccedilatildeo de alcachofra devorado com voluacutepia depois da tortura das folhas em que eacute preciso cravar os dentes para obter apenas uma pequena amostra sofrida e efecircmera (p120 grifo meu)

Seixas cria um tratado sobre os pequenos prazeres de Camila mui-tos deles com conotaccedilotildees sexuais Eacute sobre o sistema dos prazeres e dos desprazeres que Freud afirma que tambeacutem a repressatildeo pode vir a ser apreciada como prazer Segundo ele eacute dessa maneira que os prazeres neuroacuteticos acontecem Pela repressatildeo esses desejos satildeo mantidos sub-consciente e temporariamente afastados da possibilidade de satisfaccedilatildeo

No curso das coisas acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatiacuteveis em seus objetivos ou exigecircn-cias com os remanescentes que podem combinar-se na unidade inclusi-va do ego Os primeiros satildeo entatildeo expelidos dessa unidade pelo processo de repressatildeo mantidos em niacuteveis inferiores de desenvolvimento psiacutequico e afastados de iniacutecio da possibilidade de satisfaccedilatildeo Se subsequumlentemente alcanccedilam ecircxito ndash como tatildeo facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos ndash em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfa-ccedilatildeo direta ou substitutiva esse acontecimento que em outros casos seria uma oportunidade de prazer eacute sentida pelo ego como desprazer Em con-sequumlecircncia do velho conflito que terminou pela repressatildeo uma nova ruptura ocorreu no princiacutepio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforccedilando-se de acordo com o princiacutepio por obter novo prazer Os pormenores do processo pelo qual a repressatildeo transforma uma possibi-lidade de prazer numa fonte de desprazer ainda natildeo estatildeo claramente com-preendidos ou natildeo podem ser claramente representados natildeo haacute duacutevida

poreacutem de que todo desprazer neuroacutetico eacute dessa espeacutecie ou seja um prazer que natildeo pode ser sentido como tal (Freud p3)

Eacute por isso a despeito de para o leitor Camila aparentar sentir prazer naquela situaccedilatildeo que ela fica tatildeo hesitante Torna-se claro no re-lato das primeiras experiecircncias sexuais dela que a personagem vivencia o prazer como sendo de alguma maneira iliacutecito

Era laacute o local dos encontros secretos Fora Pamela quem comeccedilara tudo mas Camila costumava ficar ainda mais excitada do que ela Os encontros eram sempre na hora da sesta quando todos da casa dormiam e o silecircncio zumbia como moscas ao sol Sentavam-se as duas no monte de feno na parte de traacutes do galpatildeo e esperavam a respiraccedilatildeo suspensa Logo ouviam os passos Era ele E o menino surgia por detraacutes do feno com seu corpo magro e alto o olhar assustado o rosto infantil Natildeo teria mais do que treze anos dois anos mais velho do que as meninas portanto Parecia sempre intimidado diante delas mas soacute ateacute que comeccedilasse a brincadeira Assim que chegava tirava o chapeacuteu e rolava-o nas matildeos desconcertado Era sempre Pamela quem dava a primeira ordem ndash Senta aqui Ele obedecia Camila afastava-se abrindo lugar para ele entre as duas Lembrava-se bem da primeira vez que acon-tecera Quando o jovem barqueiro se ajeitara no feno ao seu lado Camila olhara para suas matildeos as unhas enegrecidas e experimentara um estranho prazer (Seixas p 118 ndash grifo meu)

Se esse trecho natildeo fosse suficiente fica bastante claro no terceiro re-lato que Camila enfrenta um embate interno para ter a coragem de satis-fazer a este anseio iacutentimo ldquoSim natildeo adianta negar eacute o que vocecirc quer Seraacute como da uacuteltima vez a uacuteltima vez foi uma loucura natildeo sei o que se passa comigo eu Vocecirc gosta Seus modos finos seu charme aristocraacutetico sua ele-gacircncia de princesa tudo isso eacute uma farsardquo (p121 ndash grifos da autora) Em suma Heloiacutesa Seixas esmiuacuteccedila o perfil psicoloacutegico de Camila dando ao leitor acesso ao sistema de prazeres da personagem para no final o ecircxtase de Camila coincidir com o cliacutemax do livro Isso auxilia no efeito fantaacutestico que permanece ao final do conto pois natildeo se pode definir se o ecircxtase eacute sexual ou da morte endossando o dito freudiano de que

Se tomarmos como verdade que natildeo conhece exceccedilatildeo o fato de tudo o que vive morrer por razotildees internas tornar-se mais uma vez inorgacircnico sere-mos entatildeo compelidos a dizer que ldquoo objetivo de toda vida eacute a morterdquo e voltando o olhar para traacutes que ldquoas coisas inanimadas existiram antes das vivasrdquo (Freud p17)

Existe uma opiniatildeo generalizada de que o medo e o terror satildeo pro-vocados pelo desconhecido ldquoA mais antiga e forte emoccedilatildeo da humani-dade eacute o medo e o mais antigo medo eacute do desconhecido Poucos psi-coacutelogos negaram esse fato e a verdade dessa premissa estabelece para sempre a genuinidade e dignidade do conto inquietante de terror como forma literaacuteriardquo (Lovecraft apud Ceserani 2006 p71)

O problema nessa afirmaccedilatildeo eacute que ela eacute um pouco ambiacutegua Porque se pode facilmente interpretar que o novo faz parte unicamen-te do desconhecido Eacute claro que a hipoacutetese tem que ser testada mas o que de fato provoca o medo eacute o oculto o que ainda se estaacute por conhe-cer (no aparentemente conhecido e no totalmente desconhecido) O teatro grego entendeu isso e forjou uma das grandes regras dramatuacuter-gicas a de natildeo morrer no palco Toda cena que provocasse terror era contada natildeo mostrada E eacute claro a imaginaccedilatildeo do puacuteblico dava con-torno e definiccedilatildeo com seus proacuteprios temores Tambeacutem no cinema essa regra foi entendida Hitchcock por sua vez foi um grande apreciador dessa teacutecnica Ocultar e deixar a mente do espectador preencher com a sua proacutepria imaginaccedilatildeo aquilo de horriacutevel que natildeo era mostrado Foi igualmente o mesmo princiacutepio que transformou Tubaratildeo em um grande claacutessico Diante da peacutessima qualidade dos robocircs (animatroni-cs) que havia tornado o seu filme cocircmico Spielberg decidiu voltar agrave sala de ediccedilatildeo e mostrar o miacutenimo possiacutevel Por isso que a contribui-ccedilatildeo de Freud em seu O estranho (1919) eacute tatildeo interessante porque ele observa por meio do estudo do vocabulaacuterio muitos dos recursos utilizados por escritores para fazer literatura inquietante Parece mes-mo que esta eacute uma aacuterea da literatura especialmente propensa a ser de interesse psicanaliacutetico pois eacute tatildeo recorrente nesses textos o fluxo de consciecircncias alteradas

Nessa obra Freud traccedila longa digressatildeo acerca da palavra alematilde unheimlich Ele aborda as diversas acepccedilotildees que essa palavra tem naque-la liacutengua (arcaicas e contemporacircneas ao autor) as palavras familiares a ela suas diferentes traduccedilotildees para outras liacutenguas tambeacutem europeacuteias e por sua vez os diferentes significados dessas traduccedilotildees Esse largo panorama nos permite visualizar sua abrangecircncia e complexidade Un eacute em alematildeo prefixo de negaccedilatildeo todavia heimlich ndash secreto recocircndito furtivo ndash natildeo eacute oposto a unheimlich ndash assustador angustiante aterrori-zante ndash e sim a heimisch ndash paacutetrio domeacutestico do mesmo paiacutes Contudo

heimlich em liacutengua arcaica tinha os mesmo significados de heimisch em liacutengua moderna55

Por outro lado ele [Freud] faz notar que no termo existe forte ambivalecircn-cia e tambeacutem certa vagueza assim como uma notaacutevel ambivalecircncia existe no termo heimlich que parece de fato ter duas aacutereas de significado duas ldquoes-feras de representaccedilatildeo principaisrdquo (uma mais arcaica outra mais moderna) ldquoque sem serem antiteacuteticas satildeo todavia muito estranhas uma agrave outra a esfera da familiaridade da comodidade e a do lsquoesconderrsquo do manter fechadordquo No uso corrente unheimlich eacute o contraacuterio do primeiro significado Poreacutem basta consultar o vocabulaacuterio histoacuterico da liacutengua alematilde de Grimm para descobrir que as ambiguumlidades de significado tambeacutem de heimlich satildeo amplas e existem ligaccedilotildees profundas entre as duas aacutereas de significado (que pode indicar ldquoo lugar livre da influecircncia de fantasmasrdquo mas tambeacutem ldquoescondidordquo ldquoperigosordquo ldquofechado para a consciecircnciardquo ldquoinconscienterdquo e assim por diante) Heimlich pode portanto ter o mesmo significado de unheimlich como acontece com outras palavras indo-europeacuteias que ambiguamente remetem a significados ou funccedilotildees contrapostas pode-se pensar por exemplo em ldquohoacutespederdquo que possui alguma afinidade semacircntica com heimlich (Ceserani 2006 p 137-138)

Logo fica clara a intimidade que o conceito de Estranho tem com o de familiar Para Freud o Estranho acontece quando se entra em con-tato com algo de familiar visto por uma nova perspectiva Quanto mais familiar maior a surpresa de reparar uma nova camada de significado O ato de ver algo completamente novo geralmente natildeo se atrela a expec-tativas gerando um efeito inquietante distinto A experiecircncia do deacutejagrave vu eacute um claro exemplo de inquietaccedilatildeo aflorada pela familiaridade

[] Deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna Essa categoria de coisas assusta-doras construiria entatildeo o estranho e deve ser indiferente a questatildeo de saber se o que eacute estranho era em si originalmente assustador ou se trazia outro afeto Em segundo lugar se eacute essa na verdade a natureza secreta do estra-nho pode-se compreender porque o uso linguumliacutestico se estendeu da Heimlich para o seu oposto das Unheimlich pois esse estranho natildeo eacute nada novo ou alheio poreacutem algo que eacute familiar e haacute muito estabelecido na mente e que somente se alienou desta atraveacutes do processo de repressatildeo (Freud 1919 p 13 ndash traduccedilatildeo minha)

55 Haacute de se observar tambeacutem que hoje em teoria da literatura aquilo que Freud cha-mou de Unheimlich embora ainda seja traduzido como Estranho eacute na verdade facil-mente entendido como Fantaacutestico

Em Iacuteblis a familiaridade de Camila com a situaccedilatildeo e com o Islatilde eacute o que provoca o efeito inquietante no final do conto Ela conhece um homem na estaccedilatildeo de trem que recorda a ilustraccedilatildeo de um militante da jihad de um livro que estava lendo Este homem aparece novamente no mesmo vagatildeo de trem que ocupava ocasiatildeo em que deixa cair proacuteximo a Camila seu passaporte (sugere-se que ela suspeita que tal ato tenha sido proposital no intuito de um possiacutevel contato posterior) O desco-nhecido ao mesmo tempo a fascina e aterroriza fazendo com que perca seu centramento Muitas discussotildees angustiadas ocorrem no plano psi-coloacutegico mas haacute o momento final da confrontaccedilatildeo que se daacute no plano real pela via do sexo Tudo enfim que nos surpreende como estranho se aproxima de memoacuterias que noacutes conscientemente ou natildeo temos

[] E eacute assim num aacutetimo como um relacircmpago que corta os ceacuteus que ela se recorda Iacuteblis Iacuteblis na literatura islacircmica quer dizer Vecircnus a estrela da manhatilde Camila abre ainda mais os olhos sentindo em sua espinha um frio de morte Vecircnus o elo entre a luz e as trevas siacutembolo de Luacutecifer Luacutecifer o anjo caiacutedo democircnio entre trevas e luz Os olhos quase saltando das oacuterbitas Camila tenta gritar mas as matildeos grossas e quentes rodeiam sua garganta com firmeza (Seixas 2003 p 123)

Nessa cena aquilo que era apenas siacutembolo assume plena e tangiacutevel funccedilatildeo (funccedilatildeo em sentido freudiano quando o imaginaacuterio se faz realida-de) Logo o limiar entre realidade e crenccedila se extingue Camila antes fa-miliar a estes siacutembolos eacute tomada entatildeo por essa sensaccedilatildeo arrebatadora de estranhamento Se ela natildeo os reconhecesse esse efeito nunca aconteceria pois natildeo teria a capacidade de notar o caraacuteter extraordinaacuterio da situaccedilatildeo

Freud acredita que existe uma espeacutecie de intuiccedilatildeo animista em todo ser humano que eacute reprimida mas que pode manifestar-se diante de algo que nos inquieta

Haacute mais um ponto de aplicaccedilatildeo geral que gostaria de acrescentar embora estritamente falando tenha sido incluiacutedo no que jaacute foi dito acerca do ani-mismo e dos modos de accedilatildeo do mecanismo mental que foram superados mas penso que merece destaque especial Refiro-me a que um estranho efei-to se apresenta quando se extingue a distinccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo e realidade como algo que ateacute entatildeo consideraacutevamos imaginaacuterio surge diante de noacutes na realidade ou quando um siacutembolo assume plenas funccedilotildees da coisa que simboliza e assim por diante Eacute esse elemento que contribui natildeo pouco para o estranho efeito ligado agraves praacuteticas maacutegicas (Freud 1919 p 15)

A despeito da tradiccedilatildeo todoroviana na anaacutelise desse tipo de litera-tura ser muitas vezes voltada para a questatildeo dos limites do Fantaacutestico a verdade eacute que no conto de Heloiacutesa Seixas essa questatildeo se torna secundaacute-ria Iacuteblis pode ser lido como um siacutembolo do Fantaacutestico O tiacutetulo do livro tem origem na literatura de expressatildeo islacircmica Iacuteblis eacute um dos muitos democircnios no Coratildeo que nesse contexto satildeo chamados de djinns Eles satildeo criaturas intermediaacuterias entre Deus e os Anjos que foram forjados a fogo por Deus de modo similar agrave criaccedilatildeo do Adatildeo biacuteblico (extraiacutedo do barro) No Islamismo haacute uma miriacuteade de djinns e todos eles tentam os seres humanos a cometer pecados de toda sorte De fato natildeo se dis-tanciam dos democircnios cristatildeos Iacuteblis se equivalendo ao Luacutecifer catoacutelico Em ambas as histoacuterias haacute uma querela entre Deus e IacuteblisLuacutecifer diante do amor que o primeiro dedica aos humanos seres que para esses de-mocircnios satildeo indignos e inferiores Sendo que no Coratildeo o djinn natildeo representa uma oposiccedilatildeo a Deus Para os islacircmicos Deus eacute superior a todas as coisas e nada o ameaccedila

Iacuteblis e Luacutecifer satildeo considerados anjos caiacutedos Seres de luz que desce-ram agraves trevas elo entre escuridatildeo e a claridade Eacute por isso que ambos satildeo simbolizados pela Estrela da Manhatilde Vecircnus Ela metaforiza um elemento noturno que insiste em permanecer no dia liame entre a luz e as trevas

Eacute por isso que Iacuteblis eacute o siacutembolo perfeito para a proacutepria Literatura Fantaacutestica Como explicado por Freud em relaccedilatildeo ao estranho e o familiar que geram um olhar despatriado alheio disforme ldquoessa refe-recircncia ao fator da repressatildeo permite-nos ademais compreender a defi-niccedilatildeo de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto natildeo obstante veio agrave luzrdquo (Freud 1919 p13) Tal qual IacuteblisLuacutecifer Eacute constante em todos esses elementos a dubiedade e vagueza entre as definiccedilotildees e limites ldquoo fantaacutestico ocorre na incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixa-se o fantaacutestico para entrar no gecircnero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantaacutestico eacute a hesitaccedilatildeo experimentada por um ser que soacute conhece as leis naturais face a um conhecimento aparentemente sobrenaturalrdquo (Todorov 2010 p 31)

Conscientemente ou natildeo Heloiacutesa Seixas criou um conto que utili-za recursos particularmente interessantes para a Literatura Fantaacutestica Iacuteblis eacute um exemplar ficcional brasileiro da contemporaneidade que em cenaacuterios exoacuteticos orientalistas e distantes nos mostra a forccedila descriti-va desta autora que cria universos viacutevidos e palpaacuteveis em confluecircncia

com a verticalidade psicoloacutegica A utilizaccedilatildeo desse siacutembolo-chave para o Islamismo foi um toque de Midas e abre inuacutemeras possibilidades in-terpretativas haja vista a variedade de leituras que esse texto tem em potencial junto agrave milenar literatura islacircmica

REFEREcircNCIAS

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad de Nilton Cezar Tridapalli Paranaacute UFPR Eduel 2006

FREUD Sigmund Aleacutem do Princiacutepio de Prazer Disponiacutevel em lthttplacanorgfreecomfreudtextosfalemdoprincipiodeprazerpdfgt (acessado em 25 de julho de 2013)

_________ The ldquoUncannyrdquo Disponiacutevel em lthttphomesieuedutrnozgenalpMCS490MediaCultureandTechnology-Readingsweek14-The20Uncanny-freudpdfgt (acessado em 22 de junho de 2013)

SEIXAS Heloiacutesa ldquoIacuteblisrdquo In TAVARES Braulio (org) Paacuteginas de Sombra ndash Contos fantaacutesticos brasileiros Rio de Janeiro Casa da Palavra 2003 (p 116-123)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Debates 2010

Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg

Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

O Romantismo alematildeo costuma ser subdividido em grupos nome-ados em conformidade com a cidade que os abrigava (Volobuef 1999) Esses grupos tinham semelhanccedilas que possibilitavam o enquadramento sob a eacutegide do movimento mas com caracteriacutesticas proacuteprias Elas natildeo eram excludentes entre si os artistas tinham a liberdade e verdadeira-mente nutriram o costume do tracircnsito e da assimilaccedilatildeo esteacutetica Ainda assim eacute possiacutevel traccedilar um panorama desses ciacuterculos literaacuterios

Entre os anos de 1806 e 1808 vemos o florescimento de uma se-gunda geraccedilatildeo do Romantismo alematildeo que se afastava dos preceitos da primeira geraccedilatildeo (Romantismo de Jena [1799]) no que esta tinha de primordial o egocentrismo e o cosmopolitismo (num sentido contraacuterio ao nacionalismo conservador de Heidelberg)

Poderiacuteamos basear esse comportamento pelo fato de que a segunda geraccedilatildeo presenciou a invasatildeo da Pruacutessia pelos exeacutercitos de Napoleatildeo experimentando as agruras da dominaccedilatildeo estrangeira o que teria des-pertado seu sentimento nacionalista e a desilusatildeo quanto agrave capacidade de atuaccedilatildeo do ldquoeurdquo (Volobuef 1999) Como provaacutevel consequecircncia dis-so o Romantismo de Heidelberg como ficou conhecido o ciacuterculo lite-raacuterio dessa geraccedilatildeo nutriu um interesse pelo passado histoacuterico do seu povo pela cultura popular e pela busca de uma nova mitologia extraiacuteda do universo folcloacuterico desenvolvendo tambeacutem trabalhos filoloacutegicos

Achim von Arnim atuou na cena literaacuteria da Alemanha em fins do seacuteculo XIX e comeccedilo do XX se destacando do ponto de vista da produ-ccedilatildeo ficcional e da criacutetica literaacuteria entre seus colegas do Romantismo de Heidelberg vindo a ser como hoje eacute reputado um dos maiores expoen-tes do Romantismo alematildeo e mundial (Manguel 2005)

No conto em questatildeo vemos muitos pontos deflagradores do Achim heidelberguiano De iniacutecio podemos observar que ele opta pela exposiccedilatildeo crua dos sentimentos torpes e negativos do ldquoeurdquo tais como vaidade ciuacuteme traiccedilatildeo ndash esta uacuteltima aliaacutes tema recorrente tanto em Achim quanto nas Mil e uma noites ndash sensualismo oportunismo im-pulsividade egoiacutesmo Dessa forma contrariando uma certa tendecircncia dos contos de horror que valorizam a atmosfera de medo e o cenaacuterio exterior ele natildeo caricaturiza seus personagens pelo contraacuterio eacute nestes que foca a imageacutetica do horror Eles satildeo seres humanos muito bem dese-nhados nas suas imperfeiccedilotildees nuances e caracteriacutesticas contraditoacuterias a exemplo de nossa perversa e adoraacutevel Meluumlck

Mais adiante quase no fim do conto veremos que o pano de fundo da Revoluccedilatildeo Francesa ndash a invasatildeo dos castelos o ateamento de fogo e a matanccedila dos aristocratas (presenciados entre outros pelos persona-gens Saintree Mathilde Meluumlck alguns dos quais seratildeo mortos) ndash vai ao encontro das ideias de Achim contraacuterias a este lado sangrento da Revoluccedilatildeo Ele como titular da corrente romacircntica de tendecircncia social na Alemanha natildeo deixa de trabalhar este cenaacuterio e a partir dele de-sencadear as accedilotildees derradeiras em seu conto Curiosamente o discurso inflamado de Meluumlck na segunda profecia (p 298) em relaccedilatildeo agrave morte que ocorreu na sua casa por conta da Revoluccedilatildeo eacute entendido por al-guns criacuteticos como a proacutepria voz de Achim Meluumlck eacute vista assim como alterego de Achim que diz por meio dela o que ele proacuteprio sentia e pensava agrave eacutepoca da Revoluccedilatildeo

Ademais percebemos no conto uma visatildeo clara relativa agraves diferen-ccedilas entre as massas e a aristocracia e sentimos que ele tende a dar relevo agrave generosidade ao exaltar a alma (tambeacutem) boa de Meluumlck tanto no comeccedilo do conto pela fama que ela ganha atraveacutes do magnetismo pes-soal e do talento de atriz e posteriormente pelo olhar do personagem Frenel que admira nela as raras palpitaccedilotildees de um bom coraccedilatildeo em desacordo com outras personagens mesquinhas

Vemos tambeacutem no conto como identificaccedilatildeo do Romantismo de Heildelberg o interesse peculiar do autor pelo Oriente ou seja Meluumlck que eacute tratada numa dimensatildeo que a aproxima da lenda popular ndash ten-decircncia proacutepria deste ciacuterculo e do misteacuterio a partir do qual o autor cons-troacutei atmosferas de horror literaacuterio Para se apoiar e trabalhar sobre os as-pectos ligados agrave cultura oral podemos inferir que o autor como outros

de sua eacutepoca foi achar no Oriente bons ingredientes para compor uma nova mitologia romacircntica associada aos seus reconhecidos trabalhos filoloacutegicos Uma tendecircncia do seacuteculo XIX na Europa que tem durado ateacute hoje no momento em que se reconfigura o Oriente ldquocomo ideacuteia conceito ou imagemrdquo (Said 1990 p 208)

Atentemos um pouco nesse Oriente inventado com a ajuda de Edward Said (1990 p 217-218) Historicamente a Franccedila e a Inglaterra foram as maiores colonizadoras do Oriente proacuteximo no seacuteculo XIX Aquele paiacutes no entanto teve uma presenccedila muito mais expedicionaacuteria e aventureira do que o engajado empreendimento de reconhecimento do Oriente feito pela Inglaterra ldquonatildeo tinham [escritores franceses] quais-quer pretensotildees em relaccedilatildeo agraves suas ideacuteias orientais a natildeo ser que elas [fossem] corroboradas por uma longa tradiccedilatildeo erudita (e natildeo existen-cial)rdquo (p 217 ndash grifo do autor) Assim a impressatildeo acerca dos orientais e de sua cultura trazida por esses paiacuteses ao Ocidente foi muito diferente e a que se perpetuou mais foi a visatildeo francesa atraveacutes de elementos li-gados agrave sensualidade fantasia e leveza em oposiccedilatildeo agrave visatildeo inglesa do Oriente mais realista

Edward Said afirma que

muitos dos primeiros aficionados do Oriente comeccedilaram saudando o Oriente como um salutar deacuterangement dos seus haacutebitos mentais e espirituais europeus O Oriente foi superestimado pelo seu panteiacutesmo pela sua espiri-tualidade pela sua estabilidade sua longevidade primitividade e assim por diante [] Mas quase sem exceccedilatildeo essa estima exagerada foi seguida por uma reaccedilatildeo subitamente o Oriente pareceu subumanizado antidemocraacuteti-co atrasado baacuterbaro etc (p 158 ndash grifos meus)

No seacuteculo XIX as expediccedilotildees Ocidente-Oriente e os diaacuterios de bor-do publicados eram muitos ndash o movimento contraacuterio era escasso ndash e tais viagens corroboravam juiacutezos de valor criados por um senso comum jaacute bem estabelecido

[] desse modo o uso da palavra oriental por um escritor [passa a ser] uma referecircncia suficiente para o leitor se identificar [com] um corpo especiacutefico de informaccedilatildeo sobre o Oriente [] parecia ter uma situaccedilatildeo epistemoloacutegica igual agrave da cronologia histoacuterica ou agrave da localizaccedilatildeo geograacutefica [] Os orien-tais raramente eram vistos ou olhados a visatildeo passava atraveacutes delesrdquo (p 212-213 ndash grifo meu)

Neste conto haacute um personagem o dr Frenel mencionado acima que eacute um ocidental-orientalista no sentido de que ele fez vaacuterias viagens para o Oriente e aprendeu muito sobre os seus costumes e segredos Ele encarna um certo poder o conhecimento do misteacuterio enquanto o de Meluumlck eacute a efetiva praacutetica do que eacute misterioso O misteacuterio no con-to mostra entatildeo toda sua forccedila Assim ele tem o importante papel de tornar Meluumlck e tudo que lhe rodeia mais fantaacutestico mais misterioso mais assustador em algumas passagens Sua visatildeo sobre Meluumlck eacute a um soacute tempo verdadeira e duvidosa gerando a ambiguidade fantaacutestica A proacutepria mente humana poderia justificar essa atitude como Said (p 64) diz ldquoeacute perfeitamente possiacutevel argumentar que alguns objetos distintivos satildeo feitos pela mente e que esses objetos embora pareccedilam existir objetivamente tecircm uma realidade apenas ficcionalrdquo

Haacute a partir daiacute uma separaccedilatildeo ostensiva entre eu e eles a partir da qual territoacuterios e mentalidades satildeo declarados diferentes E assim ldquotodo tipo de suposiccedilotildees associaccedilotildees e ficccedilotildees parece povoar o espaccedilo que estaacute fora do nosso proacutepriordquo (p 65) o que soacute contribui para o fantaacutes-tico Como Causo afirmou em relaccedilatildeo agrave ficccedilatildeo insoacutelita esta se trata de um jogo entre Eu e Outro do qual nascem novas percepccedilotildees podendo servir para o enriquecimento da visatildeo de mundo e do olhar sobre si mesmo num ldquoprocesso de apresentaccedilatildeo de realidades alternativas atra-veacutes das quais noacutes reavaliamos as nossas percepccedilotildees da realidade que compreendemosrdquo (2003 p 63)

Esta invenccedilatildeo do Outro serve em suma de enriquecimento ao proacute-prio imaginaacuterio com a reconstruccedilatildeo criativa das Mil e uma noites pelos autores do seacuteculo XIX conforme indica o proacuteprio Said (p 63) ldquoum re-sultado feliz [] foi que um nuacutemero estimaacutevel de importantes escritores durante o seacuteculo XIX era entusiasta do Oriente Eacute perfeitamente correto acho falar de um gecircnero de escrita orientalista tal como eacute exemplifica-do pelas obras de Hugo Goethe Nerval Flaubert Fitzgerald e similaresrdquo Hugo (apud Said p 61) completa este painel em texto escrito em 1829 ldquoau siegravecle de Louis XIV on eacutetait helleacuteniste maintenant on est orientalisterdquo

Podemos afirmar em conformidade com Causo (2003) que as suces-sotildees de acontecimentos fantaacutesticos que vatildeo sendo desencadeadas a partir do aparecimento de Meluumlck em Toulon (Franccedila) configuram uma viagem insoacutelita ldquouma sucessatildeo de eventos fantaacutesticos ou maravilhosos ocorri-dos dentro de uma progressatildeo no tempo e no espaccedilo e testemunhada

por personagens que tendem a se manter de um evento a outro [] A natureza do evento ou fato fantaacutestico ou maravilhoso pode ser divina demoniacuteaca ou misteriosardquo (p 77) Essa uacuteltima natureza estaria ligada ao conto em questatildeo e tambeacutem por isso eacute que se encaixa na categoria de fantaacutestico proposta por Todorov (2008) visto que aleacutem de deixar esses fatos no terreno do natildeo explicado e da incerteza como eacute mister ao gecircnero natildeo vemos marcaccedilotildees no texto suficientes para atribuir a esses eventos uma causa especiacutefica o que os desencadeia eacute um misteacuterio

Rosemary Jackson (apud Causo 2003 p78) reforccedila a ideia do fan-taacutestico como algo misterioso que desorienta quanto agrave realidade racional quando afirma que ldquojoga com as dificuldades de interpretaccedilatildeo de eventoscoisas como objetos ou como imagens assim desorientando a categoriza-ccedilatildeo do leitor sobre o realrdquo E podemos apontar como exemplo desse ldquojogordquo o fato de o narrador colocar esses eventos fantaacutesticos sempre em discus-satildeo com tentativas de explicaccedilotildees cientiacuteficas geralmente desencadeadas por ele proacuteprio ou pelo personagem Saintree e nunca se conseguir uma explicaccedilatildeo final O jogo de tentativa e frustraccedilatildeo confunde e faz o leitor se perguntar sobre o que eacute real e como algo fora do natural pode ocorrer Eacute isso que o fantaacutestico pretende conforme Todorov (2008)

Apesar disso podemos encontrar em Meluumlck vaacuterios elementos que o aproximam tambeacutem do maravilhoso Haacute fatos explicados segundo leis natildeo naturais ou puramente aceitos sem questionamentos Uma adora-ccedilatildeo por parte dos outros personagens orientada para Meluumlck simboliza uma fascinaccedilatildeo pelo Outro apoacutes um primeiro estranhamento Por ou-tro lado este e outros fatos estranhos poderiam ser tambeacutem frutos da real feiticcedilaria da protagonista o que endossaria o caraacuteter maravilhoso contudo fica delimitado sugerindo-se novamente o fantaacutestico O autor oscila propositalmente entre os dois gecircneros discutidos por Todorov

Outros fenocircmenos ligados ao maravilhoso seriam os acontecimentos estranhos ocorridos na casa de Saintree (cuja rotina parecia lsquomaacutegicarsquo) a se-melhanccedila fiacutesica com Meluumlck dos filhos dele com Mathilde entre outros

[] e Mathilde achava os olhos orientais e as longas pestanas de seus fi-lhos tatildeo encantadores que esquecia seu enigmaacutetico misteacuterio [] O mane-quim entatildeo tinha de apertar nos braccedilos uma crianccedila apoacutes a outra todas se divertiam e nenhuma achava isso mais prodigioso do que as mil outras coisas que diariamente lhes causavam estranheza por serem novidade [] (Arnim 2005 p 297)

Assim detectamos elementos hiacutebridos neste conto que poderiam aproximaacute-lo do subgecircnero fantaacutestico-maravilhoso todoroviano

Meluumlck eacute uma mulher da Araacutebia O intertexto com As mil e uma noites eacute leve mas evidente Numa vista geral por essas histoacuterias encontramos o mote da mulher capaz de tudo do pior ateacute para salvar a honra ou o amor Mas tal perspectiva tem uma tendecircncia a se harmonizar no decorrer dos contos orientais Vemos tambeacutem a traiccedilatildeo feminina como uma toacutepica for-te jaacute que os homens seriam os apaixonados obcecados Vai se articulando assim a misoginia atrelada agrave forccedila feminina dentro de um imaginaacuterio de sensualidade proacuteprio de expressiva parte da literatura aacuterabe

Vemos em tudo isso o reflexo direto da figura de Meluumlck agraves vezes e contraditoriamente uma mulher sem escruacutepulos que para conquistar Saintree parece ter lhe enfeiticcedilado enquanto ele passava uma tarde em sua casa Uma vez laacute sentia-se como se natildeo pudesse sair inebriado pri-vado de si numa ldquodoce prisatildeordquo (p 289) Mulher que ao ser rejeitada pelo mesmo roubou literalmente seu coraccedilatildeo numa feiticcedilaria cuja descri-ccedilatildeo causa horror (p 294-295) A traiccedilatildeo referida no caso das Noites tambeacutem ocorre aqui mas natildeo eacute ele o obcecado Soacute o maravilhoso per-mite que ele possa ficar a ela atado por conta do coraccedilatildeo extraiacutedo natildeo de maneira metafoacuterica (p 296) A obcecada eacute ela mas a protagonista pro-voca nele a mesma dependecircncia amorosa O sensualismo em Meluumlck mesmo que natildeo seja tatildeo expliacutecito quanto nos contos aacuterabes aparece em meio a uma atmosfera oniacuterica e sinesteacutesica em que o aroma das flores as texturas dos tecidos e a intensidade das cores colaboram na criaccedilatildeo de um sonho oriental com sugestotildees eroacuteticas (p 288)

Para Carroll (1999 p 39) no horror haacute sempre um monstro repug-nante sendo esta a condiccedilatildeo sine qua non dessa ficccedilatildeo ldquo[] a reaccedilatildeo afe-tiva do personagem ao monstruoso nas histoacuterias de horror natildeo eacute sim-plesmente uma questatildeo de medochoque ou seja de ficar aterrorizado com algo que ameaccedila ser perigoso Pelo contraacuterio a ameaccedila mistura-se agrave repugnacircncia agrave naacuteusea e agrave repulsardquo Notamos no conto em questatildeo um choque inicial um espanto em alguns momentos de fantaacutestico mas natildeo a naacuteusea e tambeacutem natildeo haacute um monstro configurado segundo os termos do horror de Carroll

O escritor e criacutetico Lovecraft afirma que ldquoo criteacuterio do fantaacutestico natildeo se situa na obra a natildeo ser na experiecircncia particular do leitor e essa expe-riecircncia deve ser o medordquo (apud Todorov p 20) Em relaccedilatildeo agrave atmosfera

de horror que o leitor pode detectar vemos em Meluumlck nossa profetisa particular da Araacutebia residir o estranhamento ela eacute o proacuteprio Oriente

Por sua vez Stephen King (1981) desenvolve uma leitura diferencia-da da de Carroll nos esclarecendo que pontos de tensatildeo e motivos que conduzem o leitor a uma experiecircncia esteacutetica do medo natildeo precisam ser necessariamente horripilantes jaacute que aquele eacute muitas vezes encontrado nas entrelinhas das histoacuterias No conto em questatildeo temos descriccedilotildees expliacutecitas que causam medo no leitor todas em relaccedilatildeo aos misteacuterios de Meluumlck ou agraves cenas da Revoluccedilatildeo mas o horror eacute detectado sempre nas entrelinhas no natildeo dito Isso fica claro na figura do duplo que eacute trabalha-da pela narrativa no caso um manequim que agraves vezes parece ganhar vida sob o comando da protagonista Ele natildeo configura o monstro sobrenatu-ral expliacutecito de acordo com as teorias de Carroll mas a tiacutepica inquieta-ccedilatildeo do duplo fantaacutestico o autocircmato estudado por Freud (apud Ceserani 2006 p 25-26) apreendida a partir de entrelinhas e ambiguidades

Ao ouvir perguntas sobre o paradeiro da condessa Meluumlck agarrou a quase desmaiada Mathilde agrave forccedila e levou-a ao soacutetatildeo onde o manequim articulado estava guardado Usando pela uacuteltima vez sua arte conduziu a condessa ateacute o manequim que a estreitou com uma forccedila imutaacutevel em seus braccedilos frios como os de um esqueleto Meluumlck ordenou-lhe que ficasse em silecircncio ou estaria morta mas a advertecircncia era desnecessaacuteria pois Mathilde calava caiacuteda em profundo desmaio (Arnim p 302)

Esse aspecto mentalpsicoloacutegico que foi tatildeo bem trabalhado por E T A Hoffmann ao qual muito bem nos chama atenccedilatildeo Freud pode tambeacutem ser entendido em certa medida em Todorov (p 60) quando ele fala do ldquopandeterminismordquo que teria como consequecircncia natural a ldquopansignificaccedilatildeordquo Nesse pensamento o pandeterminismo natildeo estaacute proacute-ximo agrave loucura ou ao entorpecimento causado por drogas como ele explica mas ldquosignifica que o limite entre o fiacutesico e o mental entre a ma-teacuteria e o espiacuterito entre a coisa e a palavra deixa de ser fechadordquo

Ceserani (p 25-26) nos diz que o duplo estaria associado agrave aliena-ccedilatildeo do homem num mundo que ele proacuteprio criou em que parte de sua proacutepria personalidade eacute reprimida Surgem assim fantasmagorias que o deixam obsessivo e transtornado As relaccedilotildees entre os seres vivos e os autocircmatos toacutepica que estaacute ligada a uma seacuterie de experimentaccedilotildees teacutec-nicas do seacuteculo XVIII (criaccedilatildeo de maacutequinas capazes de imitar os gestos

humanos) e teatrais (marionetes quadros vivos) coloca em pauta a preo-cupaccedilatildeo com os problemas da personalidade e identidade da consciecircncia humana do eu e do outro da estabilidade mental do duplo enfim

O manequim imita assustadoramente os movimentos de Saintree (p 287) e salva Mathilde da morte no soacutetatildeo da casa (p 303) Nas duas ocasiotildees atua como uma extensatildeo de Meluumlck no primeiro caso para impressionar seu amado no segundo para libertar sua amiga dos revo-lucionaacuterios que iriam mataacute-la Na polaridade negativa ou positiva age com uma estranheza ora fantaacutestica ora maravilhosa endossando os po-deres orientais de Meluumlck ldquoprofetisa particular da Araacutebiardquo que nos des-cortina os misteacuterios do Outro numa criaccedilatildeo ligada ao insoacutelito Eacute nesta encruzilhada que observamos mais um belo exemplo de conto de hor-ror vindo do Romantismo engajado de Heildelberg que traz o mundo fantaacutestico e maravilhoso tatildeo caro agraves Mil e uma noites

ldquoO outro eacute o eu que eu menos conheccedilomas eacute o que mais me fascinardquo

(Manuella Mirna)

REFEREcircNCIAS

CARROLL Noeumll A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coraccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Papirus 1999

CAUSO Roberto de Sousa Ficccedilatildeo cientiacutefica fantasia e horror no Brasil 1875 a 1950 Belo Horizonte Editora UFMG 2003

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad Nilton Cezar Tridapalli Curitiba UFPR 2006

KING Stephen Danccedila Macabra Satildeo Paulo Editora Ponto de Leitura 1981

MANGUEL Alberto (org) Contos de Horror do seacuteculo XIX Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2008

VOLOBUEF Karin Frestas e Arestas a prosa do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval

Lucila Nogueira(Profordf Drordf Departamento de Letras ndashUniversidade Federal de Pernambuco)

Eacute antes do oacutepio que a minhrsquoalma eacute doenteSentir a vida convalesce e estiolaEu vou buscar ao oacutepio que consolaUm oriente ao oriente do Oriente

(Fernando Pessoa)

Conforme Edward W Said (1990) o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra a Franccedila e o Oriente que vem representar natildeo apenas o sinal da soberania europeacuteia como as diversas consequecircncias de haverem esses paiacuteses dominado o mediterracircneo oriental desde o final do seacuteculo XVII Na verdade o orientalismo vinha promover a diferenccedila entre o racional e o familiar e o irracional e o estranho Em termos de estudos eruditos conside-ra-se que o orientalismo comeccedilou sua existecircncia com a decisatildeo do Conselho de Viena em 1312 de estabelecer uma seacuterie de caacutetedras de aacuterabe grego hebraico e siacuterio em Paris Oxford Bolonha Avignon e Salamanca (Said p 60)

Por outro lado eacute possiacutevel falar de um gecircnero orientalista presente nas obras de Hugo Nerval e Flaubert que deriva em uma mitologia flutuante do Oriente Veja-se o Itineraacuterio de Chateaubriand a Viagem ao Oriente de Lamartine tambeacutem as de Flaubert e de Nerval A uma certa altura a referecircncia oriental ultrapassa o calendaacuterio judeu e cristatildeo e atinge os mapas da Iacutendia da China do Japatildeo e da Sumeacuteria Entatildeo vai tratar o orientalista moderno do resgate da obscuridade e estranha-mento distinguidos pelos estudiosos anteriores No que concerne aos escritores iratildeo surgir aqueles para quem a viagem real ou metafoacuterica ao Oriente eacute a realizaccedilatildeo de algum projeto profundamente sentido e urgente eacute o caso por exemplo de Geacuterard de Nerval

A influecircncia do Oriente vai ser sinocircnima de uma oportunidade de libertaccedilatildeo como ocorre no livro As Orientais de Victor Hugo O Oriente passa a ser poesia impetuosidade melancolia o magnetismo da viagem aliado a uma possessatildeo de novas imagens Os peregrinos franceses ao contraacuterio dos ingleses iam ao Oriente com o sentido agudo de perda e natildeo de soberania Perseguiam memoacuterias ruiacutenas correspondecircncias ocultas segredos esquecidos formas literaacuterias encontradas em seu apo-geu imaginativo como ocorre com Geacuterard de Nerval (Said p 177)

A viagem de Nerval ao Oriente foi feita atraveacutes da de Lamartine e a deste atraveacutes da de Chateaubriand Para Lamartine sua viagem ao Oriente em 1883 consistiu numa grande atitude de sua vida interior porque ela consistia na paacutetria da sua imaginaccedilatildeo atestando a grandeza da Aacutesia diante da pequenez da Greacutecia Em contraste com Lamartine va-mos encontrar Flaubert e Nerval que chegaram ao Oriente preparados por uma grande leitura dos claacutessicos O proacuteprio Nerval afirmou em As filhas do fogo que tudo que ele sabia sobre o Oriente se baseava numa remota lembranccedila da sua educaccedilatildeo escolar ndash no entanto a leitura da sua viagem ao Oriente desmente isso embora seu conhecimento seja menos sistemaacutetico que o de Flaubert O fato eacute que esses dois escritores (Nerval em 1842-43 e Flaubert em 1849-50) deram agraves suas visitas ao Oriente um uso pessoal e esteacutetico maior que qualquer outro viajante do seacuteculo XIX Eles pertencem agravequele grupo romacircntico que cultua as imagens de lu-gares exoacuteticos gostos sado-masoquistas fascinaccedilatildeo pelo macabro pelo segredo e pelo ocultismo e em suas obras valorizaram figuras femininas fatais como Cleoacutepatra e Salomeacute Levaram para o Oriente uma mitologia pessoal Flaubert em busca de uma terra natal e Nerval seguindo os traccedilos de seus sonhos Assim tanto para um como para outro o Oriente era um lugar de deacutejagrave vu um lugar para o qual se voltavam com frequ-ecircncia mesmo depois que acabava a viagem (Said p 188) O alcance da obra oriental dos dois ultrapassa os limites do orientalismo ortodoxo O orientalismo de Flaubert estaacute tambeacutem nos Cadernos de Viagem na pri-meira versatildeo de A tentaccedilatildeo de Santo Antonio em Herodias Salammbocirc e nas numerosas notas de leitura

Jaacute Nerval criou a sua Viagem ao Oriente como uma coletacircnea de no-tas de esboccedilos histoacuterias e fragmentos de viagens seu Oriente tambeacutem pode ser encontrado em As Quimeras nas cartas parte de sua ficccedilatildeo e outros escritos em prosa Ele reconhece o Oriente como o paiacutes dos

sonhos e ilusotildees Conforme Edward Said Nerval investe a si mesmo no Oriente produzindo natildeo tanto uma narrativa noveliacutestica quanto uma intenccedilatildeo perpeacutetua ndash nunca plenamente realizada ndash de fundir a mente agrave accedilatildeo fiacutesica Essa antinarrativa essa peregrinaccedilatildeo eacute uma guinada na di-reccedilatildeo contraacuteria agrave finalidade discursiva do tipo concebido por escritores anteriores sobre o Oriente

Observa Said ainda que ligado fiacutesica e solidariamente ao Oriente Nerval vagueia informalmente por entre as suas riquezas e a sua atmos-fera cultural (e principalmente feminina) localizando no Egito espe-cialmente aquele materno ldquocentro ao mesmo tempo misterioso e aces-siacutevelrdquo do qual deriva toda a sabedoria (Said p 190) ldquoLembra Michel Butor que vagando pelas ruas e pelos arredores do Cairo de Beirute ou de Constantinopla Nerval estaacute sempre agrave espera de qualquer coisa que lhe permita sentir a caverna que se estende por baixo de Roma Atenas e Jerusaleacutemrdquo (p 190)

Natildeo haacute equivalentes ingleses para as obras orientais de Chateaubriand Lamartine Nerval e Flaubert Os especialistas de Nerval sabem que estamos diante de duas viagens uma que eacute mista imagina-da unida com a de outros autores outra formada por textos e versos jaacute publicados em jornais revistas e livros ldquoEacute uma impressatildeo dolorosa escreveu Nerval cada dia mais distante de perder cidade a cidade de paiacutes a paiacutes todo esse belo universo que se acredita criar jovens pela lei-turahelliprdquo (Nerval 1998)

Este eacute o Oriente de Nerval buscando uma resposta para o desco-nhecido O Oriente carrega o paroxismo entre a autoridade do real e a vontade do sonho este combate faz do poeta um visionaacuterio de uma humanidade inocente e primitiva Pertence ao sonho ou agrave vida o sol negro da melancolia em derredor do autor que viaja em sua proacutepria companhia essa viagem que eacute apenas uma metaacutefora de seus sonhos de leituras o Oriente se constitui num mundo agrave parte cumulado de seres e de coisas que se transformam em accedilotildees poeacuteticas

Para penetrar na alma e no segredo do Oriente Nerval decide aprender aacuterabe A mulher eacute um ser agrave parte e o coraccedilatildeo do poeta cami-nha seguidamente na vontade de se reencontrar As deusas orientais como Astarte e Iacutesis ganham relevo em meio aos ecircxtases miacutesticos e so-brenaturais assim como os duplos se revelam pares misteriosos onde ainda vibra o eco de mundos desaparecidos

Do Liacutebano a Constantinopla chamada geralmente por Nerval de Istambul ele se instala e vive como flacircneur dando ao seu texto uma in-tensidade que o Liacutebano natildeo pocircde oferecer Eacute o Oriente que vai assegurar a comunhatildeo coacutesmica Nerval teraacute trecircs fontes principais a Biacuteblia o Islatilde e a Maccedilonaria Na verdade a sua viagem eacute decididamente um romance e ele proacuteprio reconheceu que assim gostava de conduzir sua vida (como um ro-mance) O Oriente surge diante desse visionaacuterio como o princiacutepio de toda uma vida anterior que nele encontra seu signo supremo e sua confirmaccedilatildeo

Em 1842 Nerval inicia sua viagem ao Oriente percorrendo a ilha de Malta o Cairo Beirute Chipre Rhodes Esmirna Constantinopla Triste o seu retorno ningueacutem o esperava ao cabo da sua peregrinaccedilatildeo Retorna a Paris com escala na Itaacutelia nos primeiros dias de 1844 Publica Mulheres do Cairo que seraacute a primeira versatildeo de Viagens ao Oriente Em janeiro de 1848 publica Cenas da vida oriental I Em 1850 As noi-tes do Ramazatilde Cenas da vida oriental II As mulheres do Liacutebano Em 1851 Viagens ao Oriente em 52 Os Iluminados em 53 Pequenos cas-telos da Boecircmia e Siacutelvia Neste ano tambeacutem eacute publicado por Dumas El Desdichado em 1854 publica As filhas do fogo e As Quimeras Em maio sai da cliacutenica em que estivera o ano anterior e vai para a Alemanha de onde ele volta em estado de grande confusatildeo mental no mecircs de ju-lho Escreve Aureacutelia e prepara a ediccedilatildeo de Pandora Em janeiro de 1855 Nerval eacute encontrado enforcado na Rua da Velha Lanterna

Flaubert aos quatorze anos se referiu ao Oriente do sol brilhante do ceacuteu azul dos minaretes dourados dos pagodes de pedra o Oriente com a sua poesia o Oriente com seus perfumes suas caravanas nas areias suas esmeraldas suas flores seus jardins de laranjas Flaubert so-nhou com os laacutebios das mulheres puras com os grandes olhos negros que teriam amor soacute para ele sonhou com a pele morena das mulheres da Aacutesia (Flaubert 2006 p 7)

O tema do Oriente se interioriza quer voltando-se ao passado quer de modo intemporal Flaubert conheceraacute o Egito a Palestina a Siacuteria Bagdaacute Babilocircnia Ispahan Teeratilde Trebizonda e Constantinopla Flaubert constituiu um dossiecirc de 178 paacuteginas sobre a viagem agrave Peacutersia e em sua biblioteca constam livros como Viajantes antigos e modernos de Edward Chacon e Livros sagrados do Oriente traduzido por Guillaume Pauper em 1840 leu a Viagem ao Egito e agrave Siacuteria de Volney e consultou tambeacutem Sobre os modos e costumes dos egiacutepcios modernos de Edward

W Lane publicado em 1837 Acontece que contrariamente a muitos viajantes dos seacuteculos XVIII e XIX Flaubert natildeo faz estardalhaccedilo de sua erudiccedilatildeo em Viagem ao Oriente Ele tinha consciecircncia de que a descri-ccedilatildeo eacute um elemento importante do gecircnero viagem mas ao mesmo tempo sentia a impotecircncia das palavras diante da beleza

Um escritor eacute aquele que tem uma percepccedilatildeo diferenciada do real que usa de uma conexatildeo analoacutegica em suas expressotildees que vecirc sinais de advertecircncia em episoacutedios de sua vida o que pode ocorrer com algum deliacuterio ou eventualmente alguma mania de grandeza O escritor pro-cura reconstruir a sua identidade perdida falando agraves vezes sozinho a mais alta poesia o canto mais sublime Com um destino forccedilosamente poacutestumo Nerval soacute teraacute seu talento reconhecido no seacuteculo XX graccedilas a Proust e aos surrealistas No entanto seus doze sonetos satildeo suficientes para assegurar sua gloacuteria Um deles eacute El Desdichado

El Desdichado

Je suis le Teacutenebreux le Veuf lrsquoInconsoleacuteLe prince drsquoAquitaine agrave la tour abolieMa seule Eacutetoile est morte et mon luth constelleacutePorte le Soleil noir de la Meacutelancholie

Dans la Nuit du Tombeau toi qui mrsquoas consoleacuteRends moi le Pausilippe et la mer drsquoItalieLa Fleur qui plaisait tant agrave mon coeur deacutesoleacuteEt la Treille ougrave le Pampre agrave la Vigne srsquoallie

Suis je Amour ou Phoebus ndash Lusignan ou BironMon front est rouge encor du baiser de la ReineJrsquoai dormi dans la Grotte ougrave verdit la syregravene

Et jrsquoai deux fois vivant traverseacute lrsquoAcheronModulant et chantant sur la lyre drsquoOrpheacuteeLes soupirs de la Sainte ndash et les cris de la Feacutee

El Desdichado

Eu sou o Tenebroso o Viuacutevo o InconsoladoO priacutencipe da Aquitania na torre da abuliaMinha Estrela eacute a morte e meu luto estrelado Dissemina o Sol negro da Melancolia

Na Noite da Queda tu que me consolasteMe entregaste o mar da Itaacutelia e o PolisipoA Flor que amou tanto o meu coraccedilatildeo desoladoE a Videira onde o Pacircntano agrave rosa se alia

Sou Amor ou sou Phebo ndash Lusignan ou BironMinha fronte ainda eacute rubra do beijo da RainhaAdormeci na caverna onde nada a sereia

E duas vezes vivo atravessei o AcheronModulando e cantando na lira de OrfeuOs gritos da fada ndash e os suspiros da Santa

Publicado pela primeira vez em 10 de dezembro de 1853 por Dumas este poema parece ser contemporacircneo da segunda crise de lou-cura de Nerval (agosto e setembro de 1853) e dele existem dois ma-nuscritos Este eacute o mais ceacutelebre dos sonetos nervalianos e representa tambeacutem a crise do sujeito liacuterico e da poesia O primeiro quarteto oferece uma identidade que natildeo eacute social nem histoacuterica mas absoluta A morte da estrela e o sol negro surgem como se fossem um apocalipse que leva o locutor agraves trevas do fim No segundo quarteto restitui ao inconsola-do o passado trazendo uma contradiccedilatildeo violenta pelo uso da sintaxe Vem uma figura de consolaccedilatildeo do universo napolitano que pode ser uma referecircncia de iacutendices autobiograacuteficos Amor voltado agraves trevas os amantes natildeo podem se ver e o poeta se encontra na gruta da sereia Quanto ao uacuteltimo terceto o poeta se identifica com Orfeu desce aos infernos e constroacutei um monstro fabuloso e poeacutetico a Quimera O Sol Negro da Melancolia jaacute aparecia em Viagem ao Oriente e evoca a gravu-ra de Duumlrer A sereia na gruta representa a figura do paganismo sendo que essa gruta eacute o lugar por excelecircncia da Quimera sereia ou dragatildeo

Geacuterard Nerval acreditava na metempsicose a passagem da alma de um corpo a outro apoacutes a morte Seu livro Aureacutelia se abre com a afir-maccedilatildeo de que o sonho eacute uma segunda vida Aos vinte anos lanccedilou uma traduccedilatildeo do Fausto de Goethe que iria servir para a sinfonia de Berlioz Aos vinte e um anos jaacute era reconhecido no acircmbito literaacuterio e junto com Theophile Gautier publicava um folhetim dramaacutetico na imprensa Suas composiccedilotildees literaacuterias fazem renascer o mito do eterno feminino que sempre o perseguiu encontrado nas novelas Siacutelvia e Aureacutelia Estes livros representam a figuraccedilatildeo do contraste embora revele a sugestatildeo de um

sofrimento verdadeiro O muro das visotildees eacute um subterracircneo que se ilu-mina como se o sonho se derramasse na vida real

Sim encontramos em Nerval essa brutal oscilaccedilatildeo entre dois mun-dos o real e o imaginaacuterio assim como a transfiguraccedilatildeo de sua proacutepria vida em um mito que abarca todo o destino dos seus semelhantes Conquista metafiacutesica mito universal discurso fantaacutestico de premoni-ccedilotildees visotildees obsessotildees vida real e imaginaacuteria no crivo da linguagem Trecircs aspetos chamam a atenccedilatildeo a noccedilatildeo de uma supra-racionalidade a fusatildeo da linguagem inconsciente com a literaacuteria e a recusa da funccedilatildeo enunciativa das palavras Os elementos que formam a supra-racionalida-de que domina a obra de Nerval satildeo essencialmente a presenccedila animada do som as visotildees as transposiccedilotildees miacuteticas ou poeacuteticas as recordaccedilotildees bem como a fusatildeo da linguagem do consciente e do inconsciente Os textos fantaacutesticos de Nerval se revestem de consideraccedilotildees radicais que nunca se aproximam do que Coleridge designava ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do natildeo crerrdquo ingrediente baacutesico do gecircnero A vida de Nerval eacute sua obra e no seu estilo visionaacuterio as coisas jaacute natildeo existem em discordacircncia com as palavras que as designam elas se reuacutenem de modo indissociaacutevel

Entre as lendas que circulam no cemiteacuterio parisiense Pegravere Lachaise uma delas se refere a Nerval que em 1855 foi encontrado enforcado com desenhos e marcas de siacutembolos ocultos no peito O lugar onde teria ocorrido o pretenso suiciacutedio oscila entre as grades de um hospiacutecio de um albergue ou de um esgoto Comenta-se ser o mais bem vestido entre os fantasmas a se evaporar por traacutes de seu tuacutemulo apoacutes o passeio noturno

ldquoEu sou um mestre em fantasmagoriasrdquo dizia Rimbaud Eacute no roman-tismo alematildeo que vamos encontrar uma reflexatildeo mais profunda entre vi-satildeo e imaginaccedilatildeo Vale lembrar Novalis quando diz que ldquoo pensamento e a vista se assemelhamrdquo A faculdade de pressentir o futuro e a de recordar o passado tem relaccedilotildees com a faculdade de ver agrave distacircncia Para Goethe a luz eacute a proacutepria substacircncia do universo e a energia produtora do mundo

As diferentes formas de adivinhaccedilatildeo se fundamentam sobre a obser-vaccedilatildeo de superfiacutecies refletoras daiacute que o espelho se relacione com aconte-cimentos futuros pessoas mortas ou ausentes temas distantes Daiacute que a visatildeo no espelho se constitua um mediador dum fantasma no Testamento a Orfeu e em O sangue de um Poeta de Jean Cocteau ligado ao movimen-to surrealista atravessar o espelho significa o ingresso no reino da morte A obra despreocupada com a verossimilhanccedila nos leva ao outro lado do

espelho em clima de estranheza para um espaccedilo bidimensional como o do sonho e natildeo tridimensional como o de nossa percepccedilatildeo

O fantaacutestico diminui os limites que circunscrevem a vida huma-na aliaacutes como lembra Bachelard nem o pensamento cientiacutefico estaacute ao abrigo de motivaccedilotildees irracionais baseadas em raiacutezes inconscientes De modo que o renascimento desse irracional vai surgir sobre vaacuterias nomenclaturas como o estranho o sobrenatural o maravilhoso a ficccedilatildeo cientiacutefica o fantaacutestico puro O fantaacutestico vai tratar de acontecimentos inexplicaacuteveis pelas leis naturais que questionam a percepccedilatildeo ordinaacuteria da realidade O fantaacutestico eacute ambiacuteguo e inquietante envolvendo sempre algum dilema misterioso quando surge no seacuteculo XVIII vem marcado pela nova do orientalismo nos contos por exemplo de Jacques Cazotte Seu livro O Diabo amoroso eacute uma mistura do real com o irreal o heroacutei Aacutelvaro natildeo sabe distinguir sonho de realidade

A idade de ouro do fantaacutestico pode ser considerada no seacuteculo XIX Esse fantaacutestico oriundo do romantismo traz marcas do roman noir per-meado do sobrenatural e do gosto pelo demoniacuteaco O roman noir inglecircs produziu no seacuteculo XVIII obras como O castelo de Otranto de Horaacutecio Walpole e Os misteacuterios de Udolfo de Ann Radcliffe neles eram constan-tes o macabro e o terror fantasmas conventos abandonados cemiteacuterios ao luar William Beckford escreve Vathek dentro da moda do orientalis-mo mas tambeacutem com episoacutedios noirs Os contos de Hoffmann satildeo des-cobertos na Franccedila em torno de 1830 e vatildeo influenciar bastante Nodier Gautier e Nerval

Nervoso exaltado depressivo epileacutetico opiocircmano Nodier eacute o pre-cursor de uma longa seacuterie de escritores com sensibilidade exacerbada Maravilhoso sonho e misteacuterio se fundem em um texto em que se exal-ta a loucura Theacuteophile Gautier grande admirador de Hoffmann seraacute influenciado pelas teorias de Swedenborg e pelo espiritismo Muitas de suas histoacuterias contam um amor impossiacutevel entre o ser vivo e o fantasma

O nosso Geacuterard Nerval vai ter a sua proacutepria vida invadida pelos fantasmas Aleacutem da admiraccedilatildeo a Hoffmann traduz muito jovem o Fausto de Goethe Em 1841 tem sua primeira crise nervosa em 1843 viaja ao Oriente e passa a acreditar na reencarnaccedilatildeo em 1851 o poeta tem uma nova crise e passa a observar e registrar sua experiecircncia do sonho e da loucura surgem as obras que testemunham seu itineraacuterio espiritual atormentado Daiacute que se diga que Aureacutelia eacute menos um conto

fantaacutestico do que uma aventura espiritual mas sua originalidade con-siste na fusatildeo fantaacutestica do sonho e da realidade misturando fatos e sua existecircncia com visotildees e alucinaccedilotildees fazendo com que o leitor atravesse da realidade ao sonho ldquoO sonho eacute uma segunda vidardquo ele diz e comple-menta ldquoEu decidi registrar o sonho e conhecer o seu segredordquo

Referecircncias

ARNOLD Paul Esoteacuterisme de Baudelaire Paris Librairie Philosophique J Vrin 1972

BAUDELAIRE Charles Ensaios sobre Edgar Allan Poe Satildeo Paulo Iacutecone Editora 2003

_____ Les fleurs du mal ndash Le Spleen de Paris Paris Ed Hatier 2000

CAMPRA Rosalba Territorios de la Ficcioacuten ndash Lo Fantaacutestico Madrid Editorial Renacimiento 2008

EHRSAM Jean et Veronique (Org) La Litteacuterature Fantastique en France Paris Ed Hatier 1985

FLAUBERT Gustave Voyage en Orient (1849-1851) Paris Eacutedittions Gallimard 2006

GAUTIER Theacuteophile Baudelaire Satildeo Paulo Boitempo Editorial 2001

_____ Contos fantaacutesticos Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

GRUumlNEWALD Joseacute Lino (Org) Poetas franceses do seacuteculo XIX Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira 1921

MILNER Max La fantasmagoriacutea Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1990

NERVAL Geacuterard de Aureacutelia Satildeo Paulo Icone Editora 1986

_____ La Bohegraveme Galante Paris Renecirc Hilsum Ed 1932

_____ Les Chimegraveres ndash La Bohecircme Galante Petit Chacircteaux de Bohecircme Paris Eacutedittions Gallimard 2005

_____ Pandora 2ordf ed Barcelona Tusquets Editores 1980

_____ Siacutelvia Rio de Janeiro Ed Rocco 1986

_____ Voyage en Orient Franccedila Eacutedittions Gallimard 2003

POE Edgar Les poegravemes Paris Eacutedittions Gallimard 1982

SAID Edward Orientalismo - O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1975

YERLES Pierre LITS Marc (Orgs) Le Fantastique Bruxelles Didier Hatier 1990

Rua Acadecircmico Heacutelio Ramos 20 | Vaacuterzea Recife - PE CEP 50740-530 Fones (0xx81) 21268397 | 21268930 | Fax (0xx81) 21268395wwwufpebredufpe | livrariaedufpecombr | editoraufpebr

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

O ifrit [] correu em direccedilatildeo agrave jovem mas ela rapida-

mente arrancou um fi o de cabelo balanccedilou-o na matildeo bal-

buciou algo entredentes e o fi o se transformou numa espa-

da afi ada com a qual ela golpeou o leatildeo cortando-o em duas

partes As duas partes saiacuteram voando mas restou a cabeccedila

que se transformou em escorpiatildeo A jovem por sua vez ado-

tou a forma de uma enorme serpente e por algum tempo

travou violenta luta com o escorpiatildeo mas logo o escorpiatildeo

se transformou em abutre e voou para fora do palaacutecio en-

tatildeo a serpente virou aacuteguia e voou no encalccedilo do abutre de-

saparecendo por algum tempo Mas logo o chatildeo se fendeu

dele saindo um gato malhado que gritou roncou e rosnou

atraacutes do gato saiu um lobo preto lutaram no palaacutecio por

algum tempo e entatildeo o lobo derrotou o gato este gritou

e se transformou numa larva que rastejou e entrou numa

romatilde jogada ao lado da fonte a romatilde inchou ateacute fi car do

tamanho de uma melancia listrada ao passo que o lobo se

transformava num galo branco como a neve A romatilde saiu

voando e caiu no maacutermore da parte mais elevada do saguatildeo

espatifou-se e seus gratildeos se espalharam todos []

Livro das mil e uma noites

(50a noite trad Mamede Mustafa Jarouche)

  • Prefaacutecio (Andreacute de Sena)
  • Breves consideraccedilotildees sobre os conceitos lsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites (Mamede Mustafa Jarouche)
  • Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford (Alfredo Cordiviola)
  • O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente (Andreacute de Sena)
  • Borges leitor de As mil e uma noites (Dariacuteo Sanchez)
  • O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas (Joseacute Alberto Miranda Poza)
  • Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites (Oussama Naouar)
  • A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente (Rafaela Queiroz F Cordeiro amp Priscilla de Moraes Batista)
  • O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier (Thiago Pininga)
  • ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de Edgar Allan Poe (Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim)
  • Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff (Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira)
  • Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas (Julia Troncoso)
  • Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg (Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute)
  • O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval (Lucila Nogueira)
Page 4: Literatura Fantástica e Orientalismo

ASSOCIACcedilAtildeO BRASILEIRADAS EDITORAS UNIVERSITAacuteRIAS

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio ou pro cesso especialmente por sistemas graacuteficos microfiacutelmicos fotograacuteficos reprograacuteficos fonograacuteficos e viacutedeograacute ficos Vedada a memorizaccedilatildeo eou a recuperaccedilatildeo total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusatildeo de qualquer parte da obra em qualquer programa jusciberneacutetico Essas proibiccedilotildees aplicam- se tambeacutem agraves caracteriacutesticas graacuteficas da obra e agrave sua editoraccedilatildeo

Creacuteditos

Diagramaccedilatildeo e capa Tamyres Siqueira

Ilustraccedilatildeo da orelha (escolha do organizadorautor Andreacute de Sena) ldquoSheacuteheacuterazade continua son histoirerdquo de 1928 por Virginia Frances Sterrett

Impressatildeo e acabamento EDUFPE

Prefaacutecio

Os artigos que compotildeem este Literatura fantaacutestica e orientalismo foram gerados para apresentaccedilatildeo durante o 2ordm Congresso de Literatura Fantaacutestica de Pernambuco (2ordm CLIF-PE) ocorrido entre os dias 05 e 08 de marccedilo de 2013 na Universidade Federal de Pernambuco organizado pelo Belvidera ndash Nuacutecleo de Estudos Oitocentistas do Departamento de Letras da referida instituiccedilatildeo por mim coordenado

O evento teve como tema principal ldquoA influecircncia do Livro das mil e uma noites e do imaginaacuterio orientalista na construccedilatildeo do conto fantaacutesti-co ocidentalrdquo e mobilizou centenas de estudiosos e interessados de todo o paiacutes nos miniauditoacuterios do Centro de Artes e Comunicaccedilatildeo (CAC) no auditoacuterio do Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas e no Hall do CAC (onde aconteceu mais uma ediccedilatildeo do movimentado Salatildeo de Arte Fantaacutestica de Pernambuco) Em quatro dias de atividades intensas o 2ordm CLIF-PE contou com trecircs conferecircncias 50 palestras e comunicaccedilotildees mostras de arte lanccedilamentos de livros aleacutem de dois minicursos

Entre os conferencistas o Prof Dr Mamede Mustafa Jarouche res-ponsaacutevel pela primeira traduccedilatildeo direta do aacuterabe ao portuguecircs do Livro das mil e uma noites que discutiu os inuacutemeros aspectos ligados ao so-brenatural e ao sobre-humano nesta milenar obra a corroborar com o surgimento de toda uma literatura de cunho imaginativo do seacuteculo XVIII aos dias atuais em acircmbito ocidental aleacutem do Prof Dr Alberto Miranda Poza medievalista espanhol que discutiu o acircmbito do mara-vilhoso na concepccedilatildeo do Libro de Apolonio e do miacutestico sufi Sheikh Muhammad Ragip (SP) que tratou de temas como a religiosidade do Islatilde e a literatura miacutestica sufi

A perspectiva interdisciplinar foi outro foco do 2ordm CLIF-PE desde a abertura do evento comandada pelo alauacutede aacuterabe do Prof Dr Oussama Naouar e pela expressiva interpretaccedilatildeo teatral da atriz pernambucana Vanessa Sueidy (como Sherazade) de trechos das Mil e uma noites O

evento contou ainda com a mostra competitiva de artes plaacutesticas de seu Salatildeo de Arte Fantaacutestica (pintura e escultura) aleacutem das mostras de fo-tografia e curtas-metragens com a participaccedilatildeo de dezenas de artistas de outros cursos da UFPE e da cidade Os dois minicursos trabalha-ram perspectivas ligadas ao fantaacutestico e ao orientalismo ldquoCurso-oficina de aacuterabe claacutessico para iniciantes sons letras e signos leitura da surata de abertura do Alcoratildeordquo (ministrado pelos Profs Drs Vicente Masip e Fatiha Dechicha) e ldquoO burro de ouro e o fantaacutestico As metamorfoses de Apuleiordquo (ministrado pelo Prof Ms Everton Natividade)

Para a realizaccedilatildeo do evento e publicaccedilatildeo deste livro mais uma con-tribuiccedilatildeo do Departamento de Letras da UFPE e do Nuacutecleo Belvidera ao estudo do fantaacutestico e temas afins no Brasil agradecemos todo o apoio recebido do proacuteprio Departamento aleacutem da Editora da UFPE da FACEPE que possibilitou a vinda dos conferencistas Mamede Mustafa Jarouche e Sheikh Muhammad Ragip ao Recife pela ampla cobertura da imprensa nos quatro dias do 2ordm CLIF-PE e a todos os participan-tes palestrantes artistas puacuteblico em geral e membros da Comissatildeo Organizadora

Prof Dr Andreacute de SenaRecife agosto de 2013

Breves consideraccedilotildees sobre os conceitoslsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites

Mamede Mustafa Jarouche(Prof Dr Departamento de liacutengua e literatura aacuterabe ndash

FFLCH ndash Universidade de Satildeo Paulo)

Eacute sobejamente reconhecido que o Livro das mil e uma noites em aacuterabe Kitaacuteb Alf Layla wa Layla eacute composto de camadas narrativas que somente a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica baseada nos manuscritos hoje dis-poniacuteveis da obra pode devassar e mesmo assim de maneira insatisfatoacute-ria pois satildeo consabidas conforme tem acentuado a criacutetica mais recente as limitaccedilotildees impostas de um lado pela proacutepria forma ldquomanuscritardquo a narrativas cuja produccedilatildeo natildeo visava prioritariamente a leitura (ou pelo menos natildeo a leitura conforme eacute hoje concebida) e de outro lado pela configuraccedilatildeo de sentido especiacutefica de cada conjunto narrativo tomado isoladamente em seu tempo e espaccedilo de funcionamento

Aqui a proposta eacute a partir do que a criacutetica filoloacutegica convencionou chamar de ldquoramo siacuteriordquo desse livro pensar o funcionamento em seu interior dos conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb traduziacuteveis como ldquoespantosordquo ldquoinsoacutelitordquo ldquoestranhordquo ldquoassombrosordquo Evitemos cuidadosamente por ora o termo ldquofantaacutesticordquo ao qual a criacutetica prestigiosa de Tzvetan Todorov conferiu um sentido plenamente consolidado em nossos dias e que natildeo se aplica agraves narrativas do Livro das mil e uma noites pois pressupotildee na verdade textos e leitores que soacute existem a partir do seacuteculo XIX

Conveacutem de iniacutecio ressaltar que ao propor o ramo siacuterio estaacute-se pro-pondo simultaneamente as narrativas mais antigas desse livro e as que em geral constam dos seus mais diversos e desencontrados manuscri-tos Embora contestada aqui e acolaacute ela ainda eacute bastante funcional para referir tais narrativas

Retomando os conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb com toda a sua gama de possibilidades tradutoacuterias seria conveniente neste ponto citar um au-tor aacuterabe do seacuteculo XIII Zakariyya Alqazwiacuteni Trata-se de um trecho do seu notoacuterio tratado cosmogocircnico intitulado lsquoAjaacutersquoib Almakhluqaacutet wa

Gharaacutersquoib Almawjudaacutet traduziacutevel como As mais espantosas criaturas e os mais assombrosos existentes e comumente conhecido a partir de sua versatildeo francesa como Maravilhas da Criaccedilatildeo Eacute um trecho da abertura da obra quando ele disserta sobre os propoacutesitos do seu trabalho

Quando Deus altiacutessimo determinou que eu me distanciasse de minha casa e terra natal e me separasse de meus familiares e de meu lar entreguei-me agrave leitura de livros seguindo o parecer de quem dissera ldquoo melhor companheiro em todos os tempos eacute o meu livrordquo Assim estava eu mergulhado na obser-vaccedilatildeo das coisas espantosas (lsquoajaacutersquoib) da accedilatildeo de Deus altiacutessimo sobre as suas criaturas e as coisas assombrosas (gharaacutersquoib) de suas invenccedilotildees sobre o que inventou tal como ele orientou quando disse [no Alcoratildeo] ldquoAcaso natildeo veem o ceacuteu sobre eles como o construiacutemos e adornamosrdquo O que se pretende aiacute natildeo eacute o revolver das pupilas ou algo que o valha pois isso os quadruacutepedes tambeacutem fazem Aqueles que do ceacuteu natildeo enxergam senatildeo o azul e da terra senatildeo o poacute satildeo semelhantes aos quadruacutepedes e ateacute mesmo inferiores a eles e mais estuacutepidos pois tal como disse Deus [no Alcoratildeo] ldquoeles tecircm coraccedilotildees com os quais natildeo compreendem e tecircm olhosrdquo e completou ldquoesses satildeo como gado e ainda mais extraviadosrdquo O que se pretende com o ldquoolharrdquo eacute a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis a observaccedilatildeo dos sensiacuteveis e a indagaccedilatildeo acerca da sabedoria [que os rege] bem como o que lhes sucede a fim de chegar agrave sua verdade pois eles satildeo o motivo dos prazeres mundanos e das venturas do aleacutem Foi por isso que o profeta [Muhammad] disse ldquoOacute Deus mostre-me as coisas tais como satildeordquo e toda vez que nelas prestava atenccedilatildeo se tornava mais iluminado inspirado e protegido por Deus Foi por isso que ele tambeacutem disse ldquoReflitam sobre a criaccedilatildeo de Deusrdquo E a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis natildeo eacute proporcionada senatildeo a quem tenha experiecircncia com os saberes e as matemaacuteticas e apoacutes o aperfeiccediloamento do caraacuteter e o polimento da alma Nesse momento entatildeo se lhe abre a clarividecircncia e ele enxerga em meio agrave totalidade do que eacute espantoso aquilo que visto parcialmente seria incompreensiacutevel e que se fosse narrado a outrem o deixaria desconfiado Como eacute excelente quem disse

ldquoOuvi algo espantoso que eu considerava um espectro do sono ou deliacuterio de um contomas quando o analisei percebi sua verdade e desde entatildeo jaacute vi milhares destas liccedilotildeesrdquo

Tais reflexotildees servem logo de saiacuteda para uma indagaccedilatildeo seria ra-zoaacutevel falar em elementos ldquosobrenaturaisrdquo nas Noites Sobrenatural sa-bemo-lo eacute ldquomaacutegicordquo estaacute fora das leis naturais ou a elas se impotildee E as ldquoleis naturaisrdquo pertencem obviamente ao domiacutenio da ciecircncia Estamos diante portanto de um conceito historicamente mutaacutevel Quando numa histoacuteria qualquer das Noites (ou de qualquer outro conjunto narrativo da

eacutepoca) aparece um gecircnio aprisionado haacute seacuteculos pelo rei Salomatildeo uma ponderaccedilatildeo a se fazer eacute como reagiria um leitor ou ouvinte do seacuteculo XIV por exemplo a isso Embora o fato certamente lhe fosse espantoso e admiraacutevel isso natildeo o tornaria em absoluto ldquosobrenaturalrdquo dado que semelhante ocorrecircncia fazia parte do horizonte de expectativas e possi-bilidades de entatildeo Era possiacutevel ponto Logo natildeo era sobrenatural Mas claro tratava-se de criaturas por assim dizer ldquosobre-humanasrdquo isto eacute cuja forccedila superava em muito a do ser humano Em todo caso a expressatildeo ldquosobrenaturalrdquo deve aqui ser tomada cum grano salis

Mas retomemos o processo de deflagraccedilatildeo das Noites eacute uma nar-rativa que constitui os seus receptores preferenciais como que os tipifi-cando o rei Shahriyar e a menina Dunyazad um molde pronto e outro inacabado De um lado a recepccedilatildeo experiente que extrai liccedilotildees cuida-dosa prevenida moldada pelo muito que vivenciou previamente (natildeo se deve olvidar que o grau zero de psicologia das Noites faz com que os seus personagens sejam constituiacutedos por suas experiecircncias apenas) do outro a recepccedilatildeo descuidada quase inconsequente (ldquoque histoacuteria diver-tidardquo afirma ela a todo instante mesmo quando se narram as maiores atrocidades) e em certo sentido ldquopurardquo pois livre de prevenccedilotildees

A propoacutesito a narrativa tambeacutem constitui a sua narradora Para aleacutem de sua mera articulaccedilatildeo oral ela possui uma histoacuteria que excluin-do-lhe o proacuteprio corpo e em certa medida lhe ocultando a feminilidade daacute-lhe todos os contornos de saacutebia descrevendo os livros que lera e a forma como os entendeu

Contudo do ponto de vista estrito da loacutegica que se impotildee agrave narra-dora Shahrazad sua irmatilde Dunyazad natildeo passa de um simulacro de re-cepccedilatildeo uma vez que o receptor preferencial eacute o rei Shahriyar seu marido de cuja boa vontade em uacuteltima instacircncia depende a continuaccedilatildeo da sua vida Com isso tem-se um receptor que rei e marido se relaciona conco-mitantemente agrave arte de governar de um lado e agrave arte de amar de outro lado e em cujos acircmbitos ele se vecirc em maus lenccediloacuteis sua presumiacutevel defi-ciecircncia na arte de amar aqui entendida em sentido lato torna-o viacutetima de adulteacuterio (que ele tambeacutem praticaraacute a seguir vitimando outra criatura igualmente eacute o que se supotildee inaacutebil nessa arte) e como consequecircncia as-sassino de mulheres o que evidencia uma outra deficiecircncia sua agora na arte de governar Estamos portanto diante de uma personagem deficien-te nesses dois quesitos fundamentais para a sua constituiccedilatildeo enquanto tal

Descobrir-se viacutetima de adulteacuterio faz o rei Shahriyar sair vagando pelo mundo acompanhado de seu irmatildeo mais novo e menos poderoso Shahzaman tambeacutem vitimado pela mesma desdita Ambos se encontram com a mulher de um gecircnio a qual os obriga a possuiacute-la sexualmente De uma soacute tacada colaboram para aumentar o nuacutemero de viacutetimas da mesma infacircmia que os atingira descobrindo na proacutepria carne o que a proacutepria mulher do gecircnio lhes enuncia os desejos femininos satildeo tatildeo inevitaacuteveis quanto o destino Essa amarga revelaccedilatildeo os espanta e assombra mais do que a presenccedila do gecircnio que simplesmente os assusta pois se trata de criatura sobre-humana cujo poder era imensamente superior ao deles

A primeira histoacuteria contada por Shahrazad para a sua dupla de ouvin-tes conteacutem em seu bojo mais trecircs histoacuterias Em resumo eacute a histoacuteria de um mercador inocente ameaccedilado por um ser monstruososobrenaturalsobre-humano e que acaba salvo por trecircs velhos que lhe contam histoacuterias sobre seres tambeacutem monstruosossobrenaturaissobre-humanos Tais histoacuterias satildeo consideradas ldquodivertidasrdquo por Dunyazad ao passo que o rei Shahriyar demonstra preocupaccedilatildeo com o seu desfecho o que se deve agrave analogia dessa histoacuteria com a situaccedilatildeo vivida por ele por Shahrazad e pelas mulheres que ele jaacute mandou matar E a analogia esse jogo de espelhamento das realidades do mundo eacute em si mesmo muito mais espantosa e assombrosa do que a existecircncia de seres sobre-humanos e a ocorrecircncia de eventos sobrenaturais

Outra histoacuteria significativa para os propoacutesitos desta breve explana-ccedilatildeo eacute a do carregador e das trecircs damas de Bagdaacute situada entre as noites 28 e 69 do ramo siacuterio Nela se acumulam os temas da obscenidade e do sobrenatural Um humilde carregador do mercado de Bagdaacute vai parar na mansatildeo de trecircs irmatildes beliacutessimas jovens e pelo visto solteiras Apoacutes a ocorrecircncia de praacuteticas obscenas de grau vaacuterio entre eles surgem agrave porta da casa trecircs dervixes caolhos e logo em seguida o califa Harun Arrashid em pessoa com seu vizir Jaacutelsquofar e seu escravo Masrur todos os trecircs disfar-ccedilados de mercadores Como seria de se esperar cada um dos dervixes tem a sua histoacuteria para narrar Natildeo vou resumi-las aqui mas direi que na histoacuteria do primeiro dervixe os elementos sobrenaturais aparecem mas natildeo satildeo determinantes para o desfecho Na histoacuteria do segundo dervixe o sobrenatural se mostra fundamental para o desfecho E na histoacuteria do terceiro dervixe a accedilatildeo humana eacute mais determinante do que o sobrenatural Em seguida das trecircs irmatildes duas contam suas histoacuterias a primeira das quais natildeo conteacutem elementos sobrenaturais ao passo que

na segunda o sobrenatural estaacute na metamorfose No final o califa inter-veacutem investido da sua funccedilatildeo de califa propriamente dita e natildeo mais sob disfarce e entatildeo todas as coisas satildeo repostas em seus devidos lugares ficando aiacute evidente que o texto o constitui como o governante ideal que exerce com a mesma eficaacutecia o domiacutenio sobre o mundo material e sobre o mundo sobrenatural ou seja das coisas sobre-humanas

Em seguida narra-se a histoacuteria das trecircs maccedilatildes que natildeo apresen-ta nenhum elemento sobrenatural limitando-se a mostrar a extrema crueldade e injusticcedila de que os homens satildeo capazes quando agem sob o domiacutenio da paixatildeo desenfreada A vida do elemento deflagrador disso tudo um escravo eacute trocada por uma narrativa a dos vizires Nuruddin e Badruddin noites 72-101 na qual o sobrenatural conquanto ocorra com intensidade tem importacircncia secundaacuteria quando comparado com as analogias que ndash estas sim ndash satildeo fundamentais e das quais decorre todo o ldquoespantosordquo e ldquoassombrosordquo dessa histoacuteria

Em seguida tem-se a histoacuteria do corcunda do rei da China noites 102-170 cujas peripeacutecias satildeo notaacuteveis O corcunda eacute morto aparente-mente pela accedilatildeo de um alfaiate que incrimina um meacutedico judeu que por sua vez incrimina um despenseiro muccedilulmano que por sua vez in-crimina um corretor cristatildeo Uma porccedilatildeo de eventos que seria ocioso narrar coloca todos esses homens diante do sultatildeo o qual encolerizado com a perda do seu bufatildeo predileto exige que lhe contem histoacuterias tatildeo espantosas quanto a da sua morte Seguidamente o corretor cristatildeo de-pois o despenseiro muccedilulmano e finalmente o meacutedico judeu contam as suas histoacuterias as quais satildeo consideradas insuficientes e rejeitadas pelo sultatildeo que se limita a dizer a cada um ldquoNatildeo essa sua histoacuteria natildeo eacute es-pantosa como a do corcundardquo Nenhuma das trecircs narrativas observe-se conteacutem nem sobrenatural nem analogias Eacute somente a uacuteltima narrativa do alfaiate ndash que com efeito fora o verdadeiro responsaacutevel pela morte do corcunda ndash repleta de peripeacutecias e de subhistoacuterias que agrada ao sultatildeo e o leva a perdoaacute-los pela suposta morte do corcunda

A avaliaccedilatildeo do sultatildeo pode ser tambeacutem tomada como um guia dos princiacutepios que em uacuteltima instacircncia regiam a valorizaccedilatildeo ou natildeo de uma dada narrativa no contexto das Noites Natildeo seraacute aqui possiacutevel nem se-ria razoaacutevel resumir tais histoacuterias e nos limitaremos a observar que no caso das trecircs narrativas rejeitadas pelo sultatildeo ndash e consequentemente por ele consideradas sem qualidade ndash todas consistem naquilo que hoje

podemos chamar grosso modo de narrativa ldquorealistardquo na qual os eventos se datildeo numa pura relaccedilatildeo de sucessividade natildeo mais Essa pura sucessivi-dade era entatildeo considerada banal e insossa incapaz de levar a surpresa do espantoso e do assombroso ao espiacuterito dos ouvintes Como comparaccedilatildeo seraacute uacutetil pensar na narrativa que antecede a histoacuteria do corcunda a supra-citada histoacuteria dos dois vizires irmatildeo Nuruddin e Badruddin bem como na narrativa que sucede as trecircs fracassadas contada pelo alfaiate

A qualidade da narrativa dos dois vizires reside na incidecircncia ao lado da sucessividade que se espera de qualquer narrativa da simultaneidade Os eventos se datildeo de maneira sucessiva e simultacircnea e tal simultaneidade se reveste de dois aspectos a planejada fruto da urdidura humana e a aleatoacuteria fruto da accedilatildeo do destino Eacute preciso de qualquer modo ler essa histoacuteria em sua totalidade para perceber tal relaccedilatildeo E na histoacuteria narrada pelo alfaiate no interior da qual estaacute a do barbeiro e dos seus seis irmatildeos o que sobressai para aleacutem da simultaneidade verificaacutevel na sucessivida-de dos eventos narrados eacute tambeacutem a repeticcedilatildeo e a acumulaccedilatildeo freneacuteti-ca das peripeacutecias Disso resulta que da perspectiva das Noites o melhor rendimento narrativo estaraacute na exploraccedilatildeo da sucessividade temporal previsiacutevel em qualquer narraccedilatildeo de eventos acompanhada da simulta-neidade (sempre posta em analogia) desses eventos tudo isso na maior quantidade possiacutevel para gerar os efeitos de acumulaccedilatildeo e de repeticcedilatildeo que parecem ser tatildeo apreciados pelos ouvintes e leitores da eacutepoca Tem-se entatildeo que o espantoso e o assombroso de tais narrativas natildeo se encon-tram exatamente nos eventos narrados mas sim na sua disposiccedilatildeo o que faz da proacutepria teacutecnica narrativa a fonte de todos os espantos e de todos os assombros os quais por sua vez satildeo a mateacuteria mesma das reflexotildees do homem sobre a sua condiccedilatildeo e seu mundo consistindo enfim naquilo que nos faz humanos e nas palavras de Alqazwiacuteni vai aleacutem do azul do ceacuteu e da poeira da terra diferenciando-nos dos quadruacutepedes e de outras bestas que infestam nas mais variadas formas o planeta

Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford

Alfredo Cordiviola(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Em uma discreta rua do bairro de Kensington em Londres uma discreta casa conserva a memoacuteria de Frederick Leighton Membro de uma famiacutelia favorecida por sua riqueza e por seus viacutenculos com a aris-tocracia britacircnica Leighton chegou a ser um dos pintores mais consa-grados da eacutepoca vitoriana Honrado com o tiacutetulo de Lord pela rainha e com vaacuterios precircmios nos salotildees anuais de pintura presidente da Royal Academy of Arts Leighton passou longas temporadas de formaccedilatildeo em Roma e em Paris e fez numerosas viagens particularmente pelos pa-iacuteses aacuterabes Esteve na Argeacutelia no Marrocos em Egito no Liacutebano na Turquia da sua viagem a Siacuteria em 1873 trouxe uma magniacutefica coleccedilatildeo de azulejos dos seacuteculos XV e XVI que poucos anos depois serviriam para transformar uma das partes da sua casa em um espaccedilo encantado fruto de outras dimensotildees e de outros mundos

A casa de Kensington foi sua residecircncia e seu estuacutedio tambeacutem um lugar de reclusatildeo para um homem solitaacuterio que cultivava a privacidade e o recato Nesse espaccedilo em 1877 Leighton manda construir o Arab Hall um suntuoso recinto pensado para albergar sua vasta coleccedilatildeo de objetos de arte e curiosidades acumulados em mais de vinte anos de excursotildees por terras distantes Com seus azulejos de Damasco e outras peccedilas tra-zidas de longe (algumas delas aportadas por seu amigo Richard Burton o explorador e tradutor das Mil e uma noites) o Hall foi desenhado pelo arquiteto George Aitchison Tatildeo consagrado pelas instacircncias oficiais como seu cliente Aitchison seria um professor conceituado e presidente do Royal Institute of British Architects mas natildeo se dedicava aos projetos domeacutesticos era especialista em construir os grandes templos que o enge-nho vitoriano e a circulaccedilatildeo do capital demandavam como estaccedilotildees de trem cais de embarque e armazeacutens Neste caso contou com a colaboraccedilatildeo

de destacados ceramistas escultores e artesatildeos que se encarregaram das colunas dos capiteacuteis dos frisos das gelosias e das luminaacuterias que com-punham o cenaacuterio O modelo a ser seguido e livremente adaptado na construccedilatildeo do pavilhatildeo era a Sala della fontana de La Zisa um palaacutecio do seacuteculo XII situado em Palermo na Siciacutelia No sul italiano La Zisa era um produto das muacuteltiplas influecircncias (gregas bizantinas aacuterabes normandas longobardas) que atravessaram o espaccedilo mediterracircneo ao longo dos seacute-culos Na Inglaterra o Hall imaginado por Leighton era uma fantasia ar-quitetural que revelava um gosto de eacutepoca e a evocaccedilatildeo de um lugar de muitos lugares de nenhum lugar denominado ldquoOrienterdquo

Leighton passou os uacuteltimos trinta anos da sua vida na casa rodea-do pela disciplinada beleza das reminiscecircncias chinesas japonesas in-dianas e principalmente aacuterabes que se multiplicavam pelos cocircmodos Objetos moacuteveis e decoraccedilotildees naturalizavam o exotismo e criavam rea-lidades que estavam igualmente distantes do Cairo ou de Sind como da densa atmosfera da industrializaccedilatildeo vitoriana Iacutentimas e privadas essas realidades natildeo eram muito diferentes daquelas que em grande escala eram criadas por essa espetacular invenccedilatildeo do seacuteculo XIX a Exposiccedilatildeo Universal Paraiacutesos da fantasmagoria lugares de peregrinaccedilatildeo para a mercadoria fetiche como definia Walter Benjamin as Exposiccedilotildees Universais constituem a partir do grandioso evento celebrado no Crystal Palace de Londres em 1851 o magno teatro onde se articulam os modos do progresso e da teacutecnica As Exposiccedilotildees reuacutenem o exoacutetico e o visionaacuterio a invenccedilatildeo e a ciecircncia o cataacutelogo das riquezas naturais a serem exploradas pela astuacutecia humana e os curiosos ornamentos e sin-gularidades que as periferias proporcionam Satildeo as vitrines do Impeacuterio onde o Impeacuterio se reconhece e se legitima como motor da Histoacuteria e como garante da ordem mundial Uma casa como a de Leighton pode ser vista como uma versatildeo em miniatura para consumo privado e se-leto desses grandes espetaacuteculos O espaccedilo domeacutestico exclui por defini-ccedilatildeo a participaccedilatildeo das massas e natildeo estaacute pautado pelas maravilhas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica como as feacuterias universais mas pelos usos da arte determinados pelo criteacuterio esteacutetico do colecionador Obedece contudo a um mesmo princiacutepio importar o Outro que eacute trazido de longe como passado convertido em reliacutequia Importar para resignificar o tempo pre-sente e para convalidar assim em acircmbitos amplos ou restritos as hie-rarquias geopoliacuteticas que regem a produccedilatildeo de sentidos na metroacutepole

Essas apropriaccedilotildees de um Oriente transido pela convenccedilatildeo e trans-formado em Outro natildeo obedecem por certo a uma invenccedilatildeo de Leighton e distam muito de ser exclusividade da expansatildeo vitoriana Pelo contraacute-rio o Arab Hall pode ser visto como um exemplo emblemaacutetico de um vasto processo que tinha comeccedilado muito antes e que nesse momento da segunda metade do seacuteculo XIX jaacute estava plenamente consolidado no imaginaacuterio ocidental Com a expansatildeo imperial (inglesa e francesa em particular) e com os fluxos econocircmicos e culturais mobilizados pelo co-lonialismo essa profusa porccedilatildeo do globo que se estende de Tanger ateacute Damasco jaacute vinha despertando ao longo do seacuteculo anterior todo tipo de fasciacutenios e de espantos na cosmovisatildeo europeia Esse incerto Oriente (que podia comeccedilar tambeacutem em Veneza na Espanha na Greacutecia) jaacute fora e con-tinuaria sendo incessantemente descrito por discursos imagens e pres-supostos para consumo domeacutestico das esferas metropolitanas Discursos e imagens que enquanto ampliavam o nuacutemero de informaccedilotildees dados e referecircncias impunham tambeacutem um prisma que delimitava e confirmava as perspectivas e fantasias preestabelecidas Cada vez mais esse Oriente setecentista significava barbaacuterie primitivismo misteacuterio sensualidade in-dolecircncia Nessa trama de postulados e de intervenccedilotildees (que serviriam de antecedentes precisos para a devoccedilatildeo romacircntica e para a imaginaccedilatildeo vitoriana) estatildeo inseridos acontecimentos muito diversos que por sua vez emitem intensas reverberaccedilotildees que seratildeo outra vez recicladas e reinven-tadas em outros domiacutenios Acontecimentos mais ou menos transcenden-tais mais ou menos influentes e tatildeo diversos entre si como a traduccedilatildeo das Mil e uma noites feita a partir de diversos manuscritos antigos e de narra-tivas provavelmente inventadas ou apoacutecrifas por Antoine Galland entre 1704 e 1707 ou as teorias sobre a Histoacuteria de Hegel as escavaccedilotildees arque-oloacutegicas em Palmyra as maquinaccedilotildees de Voltaire as peccedilas de porcelana ilustradas com reminiscecircncias turcas e as pinturas de Van Mour sobre a vida no Impeacuterio Otomano as elucubraccedilotildees dos savants que participaram nas campanhas napoleocircnicas no Egito a odalisca de Ingres E tambeacutem o Vathek de William Beckford

Nascido em Wiltshire em 1760 no seio de uma aristocraacutetica famiacutelia que gerenciava vastas plantaccedilotildees de accediluacutecar na Jamaica Beckford cumpre as etapas caracteriacutesticas da sua classe (educaccedilatildeo esmerada fluecircncia em liacutenguas breve incursatildeo pela poliacutetica participaccedilatildeo no Grand Tour) poreacutem eacute mais conhecido por suas excentricidades que definiam tanto sua vida

privada como tambeacutem sua trajetoacuteria de colecionador literato compositor musical e propulsor de curiosos projetos arquitetocircnicos Destes o mais curioso foi a construccedilatildeo na propriedade familiar da Fonthill Abbey uma fantasia neogoacutetica desenhada pelo arquiteto James Wyatt Construiacuteda com extrema celeridade e inapropriados materiais durante os primeiros anos do seacuteculo XIX a imponente abadia da qual soacute resta uma miacutenima parte foi um monumento de fragilidade que apenas resistiu alguns anos antes de colapsar definitivamente Mais duradoura foi uma torre neoclaacutes-sica em Bath a Landsdown Tower erigida como refuacutegio para si e para suas copiosas coleccedilotildees A torre eacute o uacutenico exemplo dos devaneios ediliacutecios de Beckford que ainda sobrevive Hoje alberga um museu no cemiteacuterio anexo se encontra o tuacutemulo de granito do autor

Heterodoxo e cosmopolita Beckford faleceu em 1844 O obituaacuterio do Bath and Cheltenham Gazette informa que ldquofor more than 40 years he has relinquished Parliamentary honours and other public duties devoting him-self to retirement but not unprofitablyrdquo1 Poderia quiccedilaacute ter sido somente lembrado como um dos tantos diletantes de uma eacutepoca propiacutecia para ex-travagacircncias e hedonismos Mas escreveu o Vathek uma obra lida durante deacutecadas com avidez (entre muitos outros por Byron Keats Swinburne e Mallarmeacute) que aprimorou definitivamente sua fama Foi redigida em pou-cos dias e em francecircs no ano de 1782 e traduzida ao inglecircs em 1786 por Samuel Henley como An Arabian Tale from a Unpublished Manuscript ndash um manuscrito tatildeo imaginaacuterio como as aventuras narradas no romance que ficou rapidamente conhecido pelo tiacutetulo do seu protagonista Como Al-Whatiq o califa dos abaacutessidas do seacuteculo IX em que a personagem estaacute livremente inspirada o califa Vathek estava possuiacutedo por uma vontade ab-soluta de conhecimento que foi como para Fausto primeiro uma virtude e depois sua perdiccedilatildeo Movido por esse afatilde insaciaacutevel o califa renega do Islatilde constroacutei uma torre para adivinhar os segredos do ceacuteu pratica toda classe de maldades e excessos Horrores indefinidos prodiacutegios artes maacutegicas enti-dades malignas e paisagens abissais se multiplicam no seu caminho Viaja procurando algo que natildeo haveraacute de achar por lugares fantaacutesticos e sinistros Apesar de tudo ainda recebe uma uacuteltima chance de se redimir que desper-diccedila A histoacuteria chega assim a um final inevitaacutevel como o narrador informa

1 Bath and Cheltenham Gazette May 8 1844 p 3 Disponiacutevel em Beckfordiana The William Beckford Website (httpbeckfordc18netbeckfordianahtml)

Thus the Caliph Vathek who for the sake of empty pomp and forbidden power had sullied himself with a thousand crimes became a prey to grief without end and remorse without mitigation2

Vathek acaba no inferno nesse inferno subterracircneo que Borges con-siderou o mais atroz de toda a literatura escrita ateacute entatildeo Lembremos que o autor argentino evoca infernos onde acontecem fatos atrozes como o de Dante mas os distingue de infernos que satildeo em si mesmos atrozes como este imaginado por Beckford Nesse sentido o compara com aquelas peculiares gravuras que Piranesi tinha elaborado alguns anos antes a seacuterie das Carceri dacuteinvenzione proacutedigas em estranhos ins-trumentos que parecem maacutequinas de torturas em corredores e esca-darias que natildeo levam a parte alguma em salas labiriacutenticas e em seres fantasmais que deambulam sem propoacutesito pelas sombras3

O breve e pobre resumo do romance que apresentamos no paraacute-grafo anterior omite os esplendores e surpresas as ironias e o erotis-mo que tanto cativaram os leitores mas pelo menos ajuda a instalar o Vathek na encruzilhada de duas tradiccedilotildees a goacutetica e a ldquoorientalistardquo O romance interpela ambas as mitologias e precisamente no modo em que as perpassa reside sua singularidade Passagens subterracircneas seres macabros tensotildees sexuais eventos sobrenaturais e horrores variados conformam a base da literatura goacutetica que se consagra no seacuteculo XVIII a partir da tremenda popularidade atingida pela obra de Horace Walpole O Castelo de Otranto (1764) O revival medievalista jaacute vinha se manifes-tando no paisagismo e na arquitetura em poucas deacutecadas particular-mente na Inglaterra mas tambeacutem na Franccedila na Alemanha e em outras partes da Europa o ldquogoacuteticordquo forneceria durante grande parte do XIX um mecanismo exemplar de reapropriaccedilatildeo e reinvenccedilatildeo de passados e de imaginaacuterias continuidades com o tempo presente Dos apoacutecrifos poemas de Ossian a Tennyson e Walter Scott de Ruskin aos preacute-rafa-elitas atraveacutes do goacutetico e seus apelos se invocava um tempo imutaacutevel em que prevaleciam a espiritualidade e os valores constantes os laccedilos de sangue e a prosaacutepia O goacutetico tambeacutem era um antiacutedoto que protegia

2 Beckford William Vathek Fourth Edition Revised and Corrected London Clarke 1824 p 227

3 Borges Jorge Luis ldquoSobre o Vathek de William Beckfordrdquo em Obras completas Buenos Aires Emeceacute 1986 (p 729-732)

tanto da insensiacutevel frieza das linhas retas cultivadas pelo neoclassicismo quanto das incertezas da industrializaccedilatildeo com suas obscuras paisagens urbanas dominadas pela maacutequina e o carvatildeo Tradiccedilatildeo monarquia na-cionalismo eram evidenciados em forma fantasmaacutetica pelas aboacutebadas pelas torres e agulhas pelos vitrais e pelos interiores altos e luminosos que obrigavam a elevar a visatildeo Natildeo eacute casual que o neogoacutetico passasse a adquirir um estatuto quase hegemocircnico na arquitetura da eacutepoca Nisto Walpole tambeacutem seria pioneiro ao dotar sua mansatildeo de Strawberry Hill com as caracteriacutesticas de outros tempos propiciando um estilo que iria se repetir ateacute a saciedade nas construccedilotildees civis do periacuteodo vitoriano Das Houses of Parliament desenhadas por Augustus Pugin um dos princi-pais expoentes do movimento ateacute os museus estaccedilotildees de trem igrejas e residecircncias particulares cada cidade parecia obrigada a ter seus mo-numentos neogoacuteticos Paradoxalmente essa invocaccedilatildeo do passado era a forma de ser modernos de estar plena e cabalmente inseridos no tempo que correspondia viver o tempo do impeacuterio e da naccedilatildeo triunfantes

Com sua fugaz abadia Beckford tambeacutem pratica esse gesto devocio-nal para o passado Essa construccedilatildeo fazia parte do theatrum mundi insta-lado nos seus domiacutenios de Fonthill A extensa propriedade servia como palco ideal para criar uma aura de privacidade que fomentava os rumores e as censuras da sociedade e para reunir uma das coleccedilotildees de obras de arte mobiacutelia e livros raros mais importantes da sua eacutepoca A abadia livre-mente influenciada pelas catedrais que tanto admirara nas suas estadias em Portugal pode ser vista tambeacutem como uma peccedila de ficccedilatildeo como um reservatoacuterio de tesouros e suntuosidades que concretizava e tornava vi-siacuteveis as incontaacuteveis maravilhas do palaacutecio do califa Vathek A simbiose entre as fantasias goacuteticas e orientais que constituiacuteam o arcabouccedilo do ro-mance se materializava assim mais uma vez aquela simbiose de palavras agora estava feita de pedras ornamentos e ostentaccedilotildees em fim

Eacute evidente que se Vathek incorpora e prefigura a vocaccedilatildeo pelo goacutetico por sua temaacutetica sua atmosfera e seus personagens manifesta tambeacutem um iacutempar fasciacutenio pelo Oriente Um fasciacutenio que se refletia no modo de vida e nas preferecircncias esteacuteticas do seu autor mas que natildeo obedecia ape-nas a um gosto iacutentimo nem a uma mera extravaganza Pelo contraacuterio do seacuteculo XVIII ao XIX esse interesse pelos orientes da imaginaccedilatildeo fa-zia parte do Zeitgeist e teria tatildeo longas repercussotildees como as produzidas pela redescoberta do goacutetico Se o Arab Hall de Leighton era um exemplo

concreto e superabundante desse interesse eacute tambeacutem a prova de que o Oriente evocado pelas andanccedilas e o traacutegico final de Vathek continuava mais vivo do que nunca vaacuterias deacutecadas depois da apariccedilatildeo do romance Mas seria um erro pensar que se tratava simplesmente de uma moda ou de uma frivolidade passageira Se neogoacuteticos e orientalismos deixam sua marca na literatura nos edifiacutecios nos haacutebitos nos artefatos e nas artes visuais eacute porque fornecem o mais apropriado dos espelhos onde a eacutepoca se vecirc a si mesma do modo em que precisa se ver hierarquizando passados legitimando presentes e subalternizando o Outro

Nessas composiccedilotildees de identidades e de diferenccedilas cabe ao ldquoOrienterdquo cumprir um papel fundamental Os escritos de Edward Said4 muito tecircm contribuiacutedo para mapear e desmontar os fundamentos epistemoloacutegicos que sustentam essas composiccedilotildees Criticado por enfatizar dicotomias e praticar reducionismos natildeo haacute como negar que Said constitui referecircncia inevitaacutevel quando se trata de reelaborar a mecacircnica do mesmo e do outro que define saberes e praacuteticas emanadas na oacuterbita dos imperialismos Uma mecacircnica que adquire conotaccedilotildees peculiares no contexto da modernidade iluminista quando a ldquoEuropardquo se consagra a si mesma como estaacutegio mais avanccedilado da evoluccedilatildeo uniacutevoca e linear da espeacutecie humana e a globalizaccedilatildeo depende do comeacutercio escravagista o racismo comeccedila a ser legitimado pelo discurso cientiacutefico e expediccedilotildees como a de Cook e Bouganville parecem completar a inspeccedilatildeo e o ldquodescobrimentordquo de todo o planeta Uma mecacircnica contudo que remete a tempos conflitos e dominaccedilotildees anteriores e que no seacuteculo XVIII jaacute contava com uma longa histoacuteria

A partir dos desdobramentos dessa longa histoacuteria (que eacute a histoacuteria da expansatildeo do ldquoOcidenterdquo pelo Mediterracircneo e pelo mundo) certas ideias sobre outras regiotildees e outras culturas do planeta vatildeo lentamente se legitimando mediante as mais diversas descriccedilotildees e representaccedilotildees Versotildees oferecidas pelos relatos dos viajantes pelos desenhos dos car-toacutegrafos pelas definiccedilotildees dos historiadores e teoacutelogos pelas paraacutebolas e ficccedilotildees contribuem para forjar diversas imagens homogecircneas das terras e das populaccedilotildees situadas nos antiacutepodas de locais de enunciaccedilatildeo que se concebem a si mesmos por mandato divino por dominacircncia militar ou por ambas as coisas como expressatildeo de uma superioridade civilizatoacuteria

4 Em particular Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001) e Cultura e imperialismo (Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995) O primeiro foi originalmente publicado em 1978 e o segundo em 1993

Essas imagens que traccedilam fronteiras e estabelecem oposiccedilotildees e anti-nomias haveratildeo de adquirir uma dimensatildeo muito mais hegemocircnica e de alcance global quando a partir do seacuteculo XV a ocidentalizaccedilatildeo passa a ser o motor central da geopoliacutetica planetaacuteria A expansatildeo europeia e a con-solidaccedilatildeo de uma modernidade capitalista intimamente vinculada com o colonialismo redefinem mais uma vez e com profundas consequecircncias ulteriores as hierarquias entre as partes do mundo Seraacute esse um mun-do definido e naturalizado como assimeacutetrico e marcadamente dicotocircmi-co pelo conjunto de discursos e praacuteticas que configuram isso que Aniacutebal Quijano denomina colonialidade Enquanto o colonialismo (o efetivo do-miacutenio poliacutetico e econocircmico) eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da colonialida-de esta garante a produccedilatildeo e a perduraccedilatildeo dos pressupostos simboacutelicos e epistemoloacutegicos que asseguram e consolidam a dominaccedilatildeo A coloniali-dade estabelece matrizes de poder relativas agrave produccedilatildeo de conhecimento agraves relaccedilotildees de trabalho e aos viacutenculos intersubjetivos que excedem a de-finiccedilatildeo de soberania de uma naccedilatildeo sobre outra e que perduram mesmo depois dos processos de independecircncia que marcam a histoacuteria das antigas colocircnias durante os seacuteculos XIX e XX Assim o colonialismo antecede agrave colonialidade e propicia sua disseminaccedilatildeo pelas sociedades mas a colo-nialidade natildeo desaparece com a ruptura da ordem imperial nem com a emergecircncia do estado-naccedilatildeo autocircnomo Desta forma uma noccedilatildeo como a de ldquopureza de sanguerdquo que subalterniza os indiviacuteduos e lhes impotildee um lugar determinado na trama social e a ideia de ldquoeurocentrismordquo que ex-pande a subordinaccedilatildeo no plano global satildeo dois dos instrumentos que a colonialidade inserta no sistema-mundo O racismo impotildee um criteacuterio de classificaccedilatildeo universal cujo fundamento uacuteltimo eacute o eurocentrismo Como afirma Quijano

El eurocentrismo por lo tanto no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o soacutelo de los dominantes del capitalismo mundial sino del conjunto de los educados bajo su hegemoniacutea Se trata de la perspectiva cog-nitiva producida en el largo tiempo del conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonialmoderno y que naturaliza la experiencia de las gentes en este patroacuten de poder5

5 Quijano Anibal ldquoColonialidad del Poder y Clasificacioacuten Socialrdquo em Castro-Goacutemez Santiago Grosfoguel Ramoacuten (eds) El Giro Decolonial reflexiones para una di-versidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo global Bogotaacute Pontificia Universidad Javeriana 2007 (p93-126 p 94)

O revivalismo goacutetico e o deslumbramento orientalista natildeo podem ser percebidos fora desses paracircmetros culturais impostos pelo eurocen-trismo e a expansatildeo do ldquoOcidenterdquo Os impeacuterios consolidados e emer-gentes se deixam seduzir por outros lugares e outros tempos enquan-to postulam um padratildeo de universalidade que atende a seus proacuteprios interesses O ldquoOrienterdquo as chinoiseries a seda o chaacute e a porcelana os enigmas e o algodatildeo da Iacutendia as estampas japonesas satildeo incorporados assim a um fluxo de apreciaccedilotildees e de demandas Seria injusto contudo supor que essas apropriaccedilotildees se reduzem agrave perpeacutetua fetichizaccedilatildeo da di-ferenccedila ou que satildeo uma simples consequecircncia da necessidade capitalista de abrir novos mercados Como em todo tracircnsito promovido pelas di-versas e progressivas mundializaccedilotildees da histoacuteria a operacionalizaccedilatildeo do perifeacuterico dentro das oacuterbitas centrais por um lado confirma o estereoacuteti-po e impotildee o recurso da miacutemica mas pode acabar tambeacutem provocando uma ampliaccedilatildeo das fronteiras do cognosciacutevel um elogio da margem e um questionamento do monologismo

Algo disto haacute no Vathek poderia ter sido um de tantos romances previsiacuteveis e acaba sendo um exemplo de heterotopia que parece implo-dir desde dentro mesmo das convenccedilotildees goacuteticas e orientalistas os luga-res comuns de toda enunciaccedilatildeo Talvez seja um exerciacutecio feito por um excecircntrico ocioso e libertino uma obra quiccedilaacute menor que na histoacuteria das letras represente como escreve Borges ldquothe perfume and suppliance of a minuterdquo Mas com sua cornucoacutepia de dicccedilotildees imagens e mitologias eacute tambeacutem um texto que foi replicado transformado e dissolvido em outras obras e por outros autores que no seacuteculo XIX ampliaram as pos-sibilidades da literatura e as possibilidades que a literatura dispotildee para inventar e descrever o real Algo do Vathek estaacute em Coleridge em de Quincey em Baudelaire em Burton em Wells Algo do Vathek perdura nos umbrosos neogoacuteticos de proviacutencia e no refinado sossego da casa de Leighton Ou nas vozes e expectativas que parecem ecoar diante de cada novo leitor das Mil e uma noites E tambeacutem nas conotaccedilotildees cer-tamente mais complexas e mais polissecircmicas que a palavra ldquoOrienterdquo foi adquirindo no mundo Natildeo eacute pouco para um mero romance que foi escrito em um lugar chamado Fonthill em trecircs dias e duas noites daquele remoto ano de 1782

O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente

Andreacute de Sena(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco Belvidera)

De maneira ostensiva ou praesentia in absentia eacute fato que o Oriente veio revelando vaacuterios de seus prismas jaacute nas pioneiras manifestaccedilotildees literaacuterias em acircmbito ocidental natildeo raras vezes fomentando incoacutegnitas O personagem Dioniso de As bacantes (406 aC) de Euriacutepides ndash apenas um dentre os vaacuterios exemplos que se poderia enumerar no espectro do mais puro aticismo ndash nos serviria de iacutecone para este precursor fasciacutenio que o meacutedio Oriente suscitou ainda nos tempos claacutessicos carnalizan-do os misteacuterios e belezas ora sedutores ora aterrorizantes da ldquoditosa Araacutebiardquo (Euriacutepedes 2004 p 220) Natildeo agrave toa eacute Dioniso ndash filho de Zeus mas educado por ninfas asiaacuteticas ndash o conhecido potencializador de ele-mentos maacutegicos e estranhos da fase heroica dos Hinos homeacutericos aos palcos traacutegicos da era de Peacutericles sem contar com sua presenccedila como motivo plaacutestico nos famosos vasos negros de figurinhas vermelhas A trageacutedia euripidiana apesar de propalar a noccedilatildeo de meacutetron de respei-to humano agraves hierarquias divinas estaacute repleta de acontecimentos que ensaiam a ruptura da propalada verossimilhanccedila associada agrave miacutemese aristoteacutelica veras fantasmagorias que vatildeo do controle telepaacutetico do deus em relaccedilatildeo ao coro das bacantes passando pelas sugestotildees do insoacutelito (terremotos incecircndios mutaccedilotildees fiacutesicas e efeitos oacuteticos que confundem os outros personagens) ateacute o elogio da licantropia

Se Pembroke (1998 p 356) afirma que as dinastias que precederam Zeus na Teogonia hesioacutedica teriam como provaacuteveis modelos mitos me-sopotacircmicos e anatoacutelicos por sua vez Momigliano (1998 p 184) argu-menta que foram os contatos com naccedilotildees orientais que deram impulso ao proacuteprio surgimento da historiografia grega Assim a ponte que vai do mythos ao logos na mundivisatildeo ocidental tem no Oriente um de seus encraves Natildeo eacute por outro motivo que Platatildeo nrsquoA repuacuteblica em meio agraves

discussotildees filosoacuteficas referentes agrave origem e essecircncia da Justiccedila vista como um bem em si natildeo prescindiraacute da utilizaccedilatildeo do mito ndash no caso um que tem a Liacutedia como cenaacuterio principal caminho atraveacutes do qual os gregos entraram em contato com o Oriente proacuteximo sua tirania riquezas e ma-gia ndash para ilustrar sua argumentaccedilatildeo repleto de elementos maravilhosos

A permissatildeo a que me refiro seria especialmente significativa se eles [o justo e o injusto] recebessem o poder que teve outrora segundo se conta o antepas-sado de Giges o Liacutedio Este homem era pastor a serviccedilo do rei que naquela eacutepoca governava a Liacutedia Certo dia durante uma violenta tempestade acom-panhada de um terremoto o solo fendeu-se e formou-se um precipiacutecio perto do lugar onde o seu rebanho pastava Tomado de assombro desceu ao fundo do abismo e entre outras maravilhas que a lenda enumera viu um cavalo de bronze oco cheio de pequenas aberturas debruccedilando-se para o interior viu um cadaacutever que parecia maior do que o de um homem e que tinha na matildeo um anel de ouro de que se apoderou depois partiu sem levar mais nada Com esse anel no dedo foi assistir agrave assembleacuteia habitual dos pastores que se reali-zava todos os meses para informar ao rei o estado dos seus rebanhos Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros virou sem querer o engaste do anel para o interior da matildeo imediatamente se tornou invisiacutevel aos seus vizinhos que falaram dele como se natildeo encontrasse ali Assustado apalpou novamen-te o anel virou o engaste para fora e tornou-se visiacutevel Tendo-se apercebido disso repetiu a experiecircncia para ver se o anel tinha realmente esse poder reproduziu-se o mesmo prodiacutegio virando o engaste para dentro tornava-se invisiacutevel para fora visiacutevel [] (Platatildeo 1999 p 44-45)

O mesmo fasciacutenio que jamais se desobrigou da atraccedilatildeo pelo estra-nho se aprofundaraacute ainda mais durante o culto periacuteodo alexandrino em que se conjugaram como nunca Ocidente e Oriente ateacute desembocar no fausto das cortes romanas o imperador Filipe (244-249 dC) era aacutera-be e como lembra Irwin (2008 p 26) uma das Saacutetiras de Juvenal acusa ironicamente esta influecircncia do Oriente no Ocidente na etapa latina ao afirmar que ldquoo rio Orontes [um rio na Siacuteria] veio desaguar no Tibrerdquo

Na Idade Meacutedia por exemplo os textos teoacutericos de Dante acusam a leitura e a influecircncia de Averroacuteis (um dos maiores comentadores de Aristoacuteteles) e Avicena As obras deste uacuteltimo comeccedilaram a ser traduzidas do aacuterabe ao latim em Toledo e refletiram-se em inuacutemeros outros livros gerados nas universidades de Oxford e Paris com o detalhe de que boa parte da ciecircncia islacircmica conforme Irwin (p 41) natildeo configuraria exata-mente lsquociecircnciarsquo como hoje a compreendemos muitos textos originais aacutera-bes eram dedicados agrave ldquoastrologia alquimia numerologia omplatoscopia

(adivinhaccedilatildeo a partir das rachaduras nos ossos calcinados de carneiros) geomancia (adivinhaccedilatildeo a partir de marcas na areia) haruspicaccedilatildeo (adi-vinhaccedilatildeo a partir de entranhas) e praacuteticas obscuras de natureza semelhan-terdquo O estudo da matemaacutetica aacuterabe servia para a arquitetura baliacutestica e engenharia mas tambeacutem como auxiliar da astrologia e todo um pensa-mento maacutegico ligado a uma natureza fantaacutestica que aceitava a existecircncia de talismatildes maacutegicos e receitas para venenos que podiam atuar a grandes distacircncias Segundo Irwin (p 42) o poliacutemata Abu Yusuf Yaqub ibn Ishaq Al-Kindi que viveu em Bagdaacute no seacuteculo IX era um dos autores mais lidos e admirados no periacuteodo medieval pelos saacutebios europeus e boa parte de sua obra se baseava em princiacutepios maacutegicos

Em De Radiis (ldquoSobre os raiosrdquo) tratado que sobreviveu [nos dias atuais] somente em sua traduccedilatildeo latina do seacuteculo XII Al-Kindi expocircs uma visatildeo essencialmente maacutegica do universo na qual radiaccedilotildees ocultas provenientes dos astros influenciavam os assuntos humanos Cada astro exercia uma in-fluecircncia sobre um grupo especiacutefico de objetos Embora os raios estelares fos-sem de suma importacircncia tudo no universo emitia raios Do mesmo modo segundo De Radiis as palavras possuiacuteam poderes maacutegicos especialmente se fossem proferidas sob conjunccedilotildees estelares particularmente favoraacuteveis e associadas ao uso de imagens talismacircnicas e ao sacrifiacutecio de animais com finalidade maacutegica [] Outras obras de al-Kindi que foram traduzidas trata-vam da astrologia e do poder de previsatildeo dos sonhos (p 42)

Tais prospecccedilotildees haveriam de influenciar o pensamento miacutestico e a sabedoria hermeacutetica de autores europeus da dimensatildeo de um Nicolau de Cusa (1401-1464) e um Pico della Mirandola (1463-1494) funda-mentais para a filosofia renascentista Do universo da teacutecnica ao plano das ideias a influecircncia aacuterabe foi decisiva e natildeo se pode perder de vista ainda a possibilidade de que a ciecircncia lsquomaacutegicarsquo registrada pela erudiccedilatildeo aacuterabe do medievo tambeacutem tenha se infiltrado em suas produccedilotildees liga-das ao orbe ficcional ndash ao menos tal como hoje o compreendemos

As tentativas proto-renascentistas de Toledo ndash mais proacuteximas do uni-verso da liacutengua portuguesa ndash plasmadas nas traduccedilotildees e difusatildeo da ciecircn-cia e alquimia aacuterabes na passagem da Alta para a Baixa Idade Meacutedia tive-ram ampla repercussatildeo no Ocidente Ainda segundo o orientalista Irwin (p 43) dada a quantidade de material ocultista sendo traduzida e estuda-da em Toledo a cidade acabou adquirindo uma reputaccedilatildeo para a feiticcedilaria e a magia negra (fato aludido por exemplo em liacutengua portuguesa no

teatro de Gil Vicente vide o Auto das fadas uma das peccedilas mais lsquofantaacutes-ticasrsquo da produccedilatildeo vicentina de 1511) E natildeo eram apenas textos ocultis-tas que vinham sendo decodificados em Toledo sabe-se que na corte de Afonso X o Saacutebio havia uma traduccedilatildeo de contos orientais maravilhosos pertencentes ao ciclo hindu do Panchatantra (200 aC) que provava a existecircncia naquele lugar de um puacuteblico aacutevido natildeo apenas pela poesia galaico-portuguesa especialmente a de cunho marianista mas tambeacutem pela fantasia orientalista Muitos autores do Ocidente influenciar-se-atildeo pelos estilos narrativos do Oriente a exemplo do catalatildeo Raimundo Luacutelio (1232-1315) autor de Blanquerna segundo Irwin (p 58) obra composta numa narrativa ldquodivaganterdquo ldquojuncada de faacutebulas e contos a maior parte dos quais parece derivar de originais aacuterabesrdquo conhecidos pelo ldquoencaixe de histoacuteriasrdquo e Bocaccio (1331-1375) cujo Decameratildeo apresenta diversos intertextos com o Livro das mil e uma noites

As contaminaccedilotildees intertextuais natildeo param por aiacute Eacute conheci-da a pletora miacutetica que a obra de viajantes como Sir John Mandeville Ludovico Varthema Marco Polo (que levou o Oriente para aleacutem do Oriente) e outros trouxe agrave luz do dia ainda no periacuteodo medievo cor-roborando mutatis mutandis na criaccedilatildeo de um Oriente maravilhoso gerador de outras regras naturais

Tais maravilhas descritivas chegavam inclusive a ser atestadas com as memorabilia coletadas durante as viagens e trazidas agrave Europa para cons-tituir as primeiras vitrines de maravilhas ou gabinetes de curiosidades precursores dos museus modernos nos seacuteculos XVII e XVIII ldquocoleccedilotildees de artefatos raros antiguidades e simulaccedilotildees de monstros pela arte da ta-xidermiardquo (Irwin p 66) O imaginaacuterio miacutetico orientalista tambeacutem estava presente na literatura em liacutengua portuguesa como eacute prova novamente a obra de Gil Vicente que situa seu monstro Monderigon da Comeacutedia sobre a divisa da cidade de Coimbra (1527) como oriundo dos ldquodesertos da Armecircniardquo e a estranha taccedila que D Duardos exibe e atraveacutes da qual en-canta Fleacuterida em Dom Duardos (1522) como vinda da Turquia

Somando-se outras inuacutemeras obras que constituiacuteram gecircneros hiacute-bridos entre as narrativas informativas de viagem e a ficccedilatildeo fantaacutesti-ca escritas por aventureiros (aventura no melhor sentido da palavra incluindo o literaacuterio) da eacutepoca renascentista que insistiam em revelar as espantosas maravilhas do Oriente (Giambattista Ramusio Samuel Purchas Jean Thenaud Pierre Belon Ogier Ghiselin de Busbecq Nicolas

de Nicolay Guillaume Postel etc) observa-se a gradual constataccedilatildeo da existecircncia concreta de um espaccedilo fiacutesico que parecia natildeo se submeter agraves leis naturais vigentes na banda ocidental Segundo Irwin (p 86)

O Oriente era superior ao Ocidente porque o paraiacuteso terrestre tinha se lo-calizado laacute [Postel] citava comprovaccedilotildees da excelecircncia oriental como por exemplo o borametz um arbusto oriental que dava cordeiros como frutos ou outra aacutervore oriental que produzia patildeo vinho seda vinagre e oacuteleo (Pico della Mirandola abrigava noccedilotildees vagamente semelhantes acerca do Oriente pois acreditava que o sol era mais forte na parte leste do mundo onde pro-duzia pedras preciosas perfumes leotildees tigres e elefantes)

Natildeo custa lembrar que os proacuteprios aacuterabes desenvolviam suas nar-rativas de viagem repletas de elementos sobrenaturais e maacutegicos tam-beacutem compondo gecircneros hiacutebridos e assegurando uma visatildeo e um anseio mais utoacutepicos (sendo a utopia atemporal mesmo que empiricamente localizaacutevel no tempo e no universo das ideias) do que propriamente a configuraccedilatildeo de um zeitgeist medievalrenascentista numa relaccedilatildeo de ontologia No tratado geograacutefico Peacuterola de espantos e singularidades de assombros observa-se a possibilidade de um oriente maacutegico aos proacute-prios aacuterabes associado agrave China Segundo Jarouche (2010 p 40) texto de autoria duvidosa cuja elaboraccedilatildeo se situa entre os seacuteculos XIV e XV traz a expressatildeo ldquoChina da Chinardquo semelhante a outra que aparece no Livro das mil e uma noites (ldquoNas peniacutensulas da Iacutendia e da Indochinardquo) revelando todo um imaginaacuterio ligado agraves regiotildees extremas do globo O proacuteprio Jarouche (2010 p 40) traduz trechos deste tratado numa nota de sua ediccedilatildeo das Noites nos quais podemos observar esta percepccedilatildeo de lsquoorientalismo dos orientaisrsquo tambeacutem eivado de histoacuterias maravilhosas

Quanto agrave China da China ela fica no fim do mundo a Oriente natildeo existindo depois dela senatildeo o mar oceano A capital da Grande China se chama Assilagrave As notiacutecias desse povo natildeo nos chegam devido agrave grande distacircncia e conta-se que o rei deles caso natildeo tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas natildeo eacute considerado rei E se o rei deles tiver muitos filhos e morrer seu reino natildeo seraacute herdado senatildeo por aquele que for o mais haacutebil na pintura e no desenho

Em seu excelente estudo intitulado Pelo amor ao saber (2006) que visou revelar um orientalismo diverso do olhar negativista sobre o tema a exemplo do proposto por Edward Said na obra Orientalismo (1978)

Robert Irwin analisou vaacuterias etapas histoacutericas e as leituras distintas que as mesmas propuseram em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves realidades poliacutetica soacutecio-econocircmica e antropoloacutegica dos povos aacuterabes mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave sua literatura Por exemplo a par de um crescente domiacutenio da liacutengua aacuterabe por parte dos filoacutelogos renascentistas e posteriormente iluministas observou-se tambeacutem a necessidade de compreender a rica literatura oriental (incluindo-se a persa) num amaacutelgama com os gecircne-ros e formas claacutessicas que vinham sendo retomados atraveacutes da imitatio classicista num momento em que as proacuteprias liacutenguas vernaacuteculas euro-peacuteias eram confrangidas pela superioridade cientiacutefica do latim

Quando nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XVIII William Jones traduziu obras aacuterabes e persas com o objetivo de apresentaacute-las a um puacuteblico inglecircs era inevitaacutevel que tentasse adequar as estrofes orientais aos gecircneros claacutessicos e assim ele se entusiasmava com ldquopastoraisrdquo ldquoeacuteclogasrdquo persas e assim por diante [] Por outro lado quem estava entediado com as grandes obras da antiguidade e achava que as artes e os conhecimentos dos antigos gregos e romanos tinham sido supervalorizados (e esses eram uma minoria vocife-rante) agarrava-se agrave literatura oriental como algo que fornecia um tesouro de novas imagens modos de expressatildeo e heroacuteis que poderiam proporcionar uma fuga agraves restriccedilotildees dos precedentes claacutessicos (Irwin p 103)

Contudo aos poucos e apesar da normatividade tiacutepica destas eacutepocas uma nova percepccedilatildeo de que outros gecircneros e formas literaacuterias poderiam ampliar a visatildeo artiacutestica foi se consolidando entre o puacuteblico leitor culto Na fase iluminista a descoberta do Livro das mil e uma noi-tes pelo Ocidente associou-se entre outros exemplos agrave assimilaccedilatildeo de Shakespeare por Lessing e de Rousseau por Herder fazendo brotar os primeiros veios das correntes preacute-romacircnticas Isso eacute corroborado por Kidson (p 418) quando afirma

Essa mudanccedila de fidelidade coincidiu com uma alteraccedilatildeo resoluta nas refle-xotildees sobre o que eacute ou natildeo eacute arte e sobre seu lugar no espectro da experiecircncia humana Ateacute o seacuteculo XVIII a teoria artiacutestica preocupara-se de modo mais ou menos exclusivo com a noccedilatildeo do ideal que em certo sentido se traduzi-ria como a pretensatildeo de conhecimento do mundo

Foi entatildeo com o despertar do que este criacutetico chama de ldquoo ele-mento subjetivo da experiecircncia esteacuteticardquo que o maravilhosofantaacutes-tico oriental veio se consolidar peremptoriamente no imaginaacuterio

artiacutestico do Ocidente Daacute-se uma aparente contradiccedilatildeo apoacutes o livro de Winckelmann sobre a cultura claacutessica ldquoa curiosidade que jaacute esta-va levando os europeus a se lanccedilarem em busca da arte grega genuiacutena tambeacutem os levou a outros lugares e logo os colocou diante de obras de imaginaccedilatildeo agraves quais simplesmente natildeo se aplicava o acervo de ideias criacuteticas que haviam herdadordquo (Kidson p 437)

Nesta busca muito contribuiacuteram dois autores franceses que no iniacutecio do seacuteculo XVIII realizaram duas grandes experiecircncias ligadas agrave literatura oriental admiradas pelos leitores da eacutepoca O primeiro foi Bartheacuteleacutemy drsquoHerbelot (1625-1695) com sua Bibliothegraveque orientale uma das maiores coletacircneas de textos em prosa e poesia vertidas do aacuterabe no Ocidente O segundo ainda mais importante (mas cuja obra teve o terreno preparado pela Bibliothegraveque) foi Antoine Galland (1646-1715) com sua famosa traduccedilatildeo do Livro das mil e uma noites em tomos publicados de 1704 a 1707 Pode-se dizer que a traduccedilatildeo de Galland ndash a que se somaram outras como a capitaneada em liacutengua inglesa por sir William Hay Macnaghten entre 1814 e 1818 a ediccedilatildeo alematilde de Breslau em doze volumes organizada por Maximilian Habicht e Heinrich Fleischer (entre 1825 e 1843) a de Edward William Lane que saiu entre 1838 e 1841 a do aventureiro e diplomata sir Richard Burton (1885) ndash inspiraraacute todo o preacute-romantismo e romantismo europeus e serviraacute como uma das fontes para o surgimento tanto da novela goacutetica como do fantaacutestico setecentista e oitocentista Como afirma Irwin (p 141) DrsquoHerbelot e Galland foram os primeiros orientalistas a se dedicar com seriedade agrave literatura secular do Oriente Meacutedio e a traduccedilatildeo de Galland das Noites tornou-se rapidamente um enorme sucesso de vendas sendo logo convertida para outros idiomas europeus O mais interessante eacute que Galland acalentava uma certa visatildeo antropoloacutegica em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites indiretamente corroborando (ou quando muito sugerindo) aquela naturalidade da sobrenaturalidade delegada ao Oriente pelos autores ocidentais do medievo e do Renascimento em pleno contexto racionalista Segundo Irwin (p 141)

[Galland] pretendia que sua traduccedilatildeo da coleccedilatildeo de histoacuterias medievais [das Noites] fosse natildeo apenas uma diversatildeo literaacuteria mas tambeacutem uma obra de instruccedilatildeo que informaria aos leitores como era o modo de vida dos povos orientais e com esse objetivo inseriu numerosos comentaacuterios explicativos em sua traduccedilatildeo Na introduccedilatildeo ao primeiro volume ele escreveu que parte

do prazer de ler essas histoacuterias estava em tomar conhecimento ldquodos costu-mes e maneiras dos orientais bem como das cerimocircnias tanto pagatildes como maometanas pois essas coisas estatildeo mais bem descritas nesses contos que nos relatos de escritores e viajantesrdquo

Eacute bem conhecida a influecircncia que o Livro das mil e uma noites operaraacute nas primeiras narrativas goacuteticas sendo o caso de Vathek de William Beckford o mais paradigmaacutetico (Beckford por sinal estudava o aacuterabe e chegou a traduzir alguns trechos das Noites sendo por algum tempo detentor de um dos mais importantes manuscritos deste livro atualmente guardado na Biblioteca Bodleiana de Oxford) Teoacutericos des-tacados do primeiro romantismo alematildeo (ciacuterculo de Jena) a exemplo de Friedrich Schlegel que definiram pioneiramente o proacuteprio movimento eram grandes conhecedores da obra e a liam no original aacuterabe A lis-ta de autores romacircnticos e fantaacutesticos que buscaram atraveacutes da visatildeo libertaacuteria proporcionada pela literatura aacuterabe e mais especificamente o Livro das mil e uma noites a possibilidade de criaccedilatildeo de seus proacute-prios temas personagens e enredos mirabolantes eacute infinita Potocki Byron Chateaubriand Coleridge Gautier Nerval Tieck Jean-Paul Hoffmann Poe Carvalhal Borges eacute mais difiacutecil encontrar quem natildeo tenha homenageado o Oriente em suas obras ligadas ao fantaacutestico do que o contraacuterio e mais de uma tese jaacute deve ter sido escrita sobre o tema Essa influecircncia eacute em grande parte citada literalmente ou entatildeo traba-lhada na forma de intertextos reescrituras e ateacute paroacutedias

Todorov na Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica se mostra inquieto di-versas vezes em relaccedilatildeo agrave classificaccedilatildeo das Noites tratando-as como ldquocontos maravilhosos mais do que contos de fadasrdquo (2007 p 60) ressaltando-lhes os aspectos de ldquomaravilhoso hiperboacutelicordquo (em que ldquofenocircmenos satildeo sobrenatu-rais soacute por suas dimensotildees superiores agraves que nos resultam familiaresrdquo ndash p 60) ldquomaravilhoso exoacuteticordquo (nos ldquoacontecimentos sobrenaturais [que apare-cemsatildeo descritos] sem apresentaacute-los como taisrdquo ndash p 61) ldquomaravilhoso ins-trumentalrdquo (na existecircncia de ldquoadiantamentos teacutecnicos irrealizaacuteveis na eacutepoca descrita mas depois de tudo perfeitamente possiacuteveisrdquo ndash p 62) e assim por diante O criacutetico buacutelgaro analisa ainda a linguagem e os procedimentos nar-rativos das Noites prenhes de sugestotildees fantaacutesticas e maravilhosas (efetiva-mente mais maravilhosas do que fantaacutesticas segundo sua teoria) e por fim chega agrave constataccedilatildeo de que exigiriam ldquoum estudo especialrdquo (p 60) que seria hipoteticamente escrito noutra ocasiatildeo

A associaccedilatildeo de Todorov das Noites a um princiacutepio maravilhoso estaacute a meu ver correta Mas ndash poderiacuteamos acrescentar ndash um maravilhoso que por sua vez fecundou o fantaacutestico se nos reportarmos novamente agraves cha-ves de leitura deste autor Como dito a influecircncia que as Noites exerceram na imaginaccedilatildeo literaacuteria setecentista e oitocentista chegando agrave contempo-raneidade eacute clara visto que a maior parte dos procedimentos narrativos e de um imaginaacuterio desconstrutor da noccedilatildeo cartesiana de real ndash apesar da jaacute propalada naturalidade da sobrenaturalidade (ldquosobre-humanidaderdquo na boa expressatildeo cunhada pelo tradutor brasileiro das Noites Mamede Mustafa Jarouche durante sua conferecircncia no 2ordm CLIF-PE noccedilatildeo de uma medida acima do humano mas dentro da natureza) existente no contexto do original aacuterabe que aparece natildeo raro sob a forma chistosa ndash tiacutepicos do modo fantaacutestico jaacute estatildeo presentes na obra Em suma o Livro das mil e uma noites antecipa padrotildees e caracteriacutesticas caros ao discurso fantaacutestico dentre os quais poderiacuteamos enumerar alguns

bullcerta visatildeo associada a um estranhamento pela repeticcedilatildeo de acontecimentos

bullo inesperado o inusitado

bulla completa quebra da verossimilhanccedila e decoro classicistas funda-mentais para a compreensatildeo de uma lsquonovarsquo verossimilhanccedila imanen-te agrave obra literaacuteria

bullo chiste a metalinguagem o prazer da e pela narrativa (lembremo-nos do caso do xeique que tendo poupada sua vida por um agressivo ifrit opta em permanecer no local em que seria morto apenas pelo pra-zer de ouvir novas histoacuterias de outros condenados que tambeacutem tenta-vam pela narrativa de suas proacuteprias aventuras delirantes se salvar)

bullas relaccedilotildees inusuais (infinitas bastando-nos lembrar do caso dos peixes coloridos que toda vez que eram postos numa panela inicia-vam a falar ao tempo que se abria uma fenda na parede e dela saiacutea uma estranha mulher repetidamente mas sem elos causais explici-tados no texto gerando-se percepccedilotildees e sugestotildees aleatoacuterias) tais re-laccedilotildees tambeacutem adentram o territoacuterio das metaacuteforas poeacuteticas ainda mais evidenciadas pelas traduccedilotildees em outros idiomas que custam a chegar ao sentido original do aacuterabe (veja-se a descriccedilatildeo de uma per-sonagem atraveacutes de siacutemiles aparentemente esdruacutexulos mas capazes

de despertar novas imagens poeacuteticas ldquoEla fazia o sol iluminado se envergonhar e parecia uma estrela brilhando no alto ou um pavilhatildeo de ouro ou uma noiva desvelada ou um peixe egiacutepcio na fonte ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite []rdquo ndash 2010 p 113)

bulla mistura de reinos (lembremo-nos do priacutencipe que era metade hu-mano metade pedra negra) o grotesco

bullreinvenccedilotildees e relativizaccedilotildees do tempo (num dos melhores episoacute-dios das Noites tenta-se recriar perfeitamente em todos os detalhes um dia completo do passado ocorrido 12 anos antes) quebras tem-porais e de espaccedilo nonsense exaltaccedilatildeo do novo e do excecircntrico pela viagem o inquietante familiar (no sentido do unheimlich freudiano a exemplo da descoberta de novas e insuspeitas paisagens numa geo-grafia ateacute entatildeo considerada familiar e totalmente apreendida nova-mente no caso do lago dos peixes coloridos)

bullexerciacutecio do coloquialismo cultura popular possiacuteveis leituras textu-ais moralistas e alegoacutericas que contudo natildeo eclipsam o sentimento do estranho e do fantaacutestico sentimento de infinito atraveacutes de uma histoacuteria infinita gerada pelo gecircnio imaginativo de Sahrazad (noccedilatildeo de partes distintas relatos diversos ndash incluindo a mistura de gecircneros poesia e prosa bem como prosa poeacutetica ndash enfeixados num todo que eacute coeso a seu modo aparentemente uma estrutura lsquoem abertorsquo progressiva)

A partir destas e de outras caracteriacutesticas presentes ao texto das Noites cuja liccedilatildeo a literatura fantaacutestica ulterior saberaacute aprender po-deremos analisar elementos intertextuais em uma infinidade de casos Muito longe de tentar esgotar o assunto elencarei a tiacutetulo ilustrativo trecircs exemplos ou maneiras baacutesicas pelos quais alguns autores reescre-veram o Livro das mil e uma noites primeiramente irei explorar proce-dimentos e sugestotildees intertextuais a partir de alguns vislumbres da obra do contista alematildeo E T A Hoffmann (1776-1822) depois um exemplo de recorte e reconstituiccedilatildeo utilizando excertos de um conto do escritor portuguecircs Aacutelvaro do Carvalhal (1844-1868) e por uacuteltimo um caso de escritura completa re-modalizada num conto do escritor norte-ameri-cano Edward Lucas White (1866-1934) A escolha destes autores e sua ordem natildeo satildeo aleatoacuterias e revelam neste recorte cronoloacutegico como a influecircncia do orientalismo maacutegico natildeo cessa de fins do seacuteculo XVIII ateacute chegarmos ao seacuteculo XX (e obviamente tambeacutem nos dias atuais)

Assim em meio agrave apologia do grotesco evidenciada pelas Noites seria possiacutevel antever naquele curioso corcunda do episoacutedio do casamento de Dadruddin Hasan de Basra o precursor duma longa linhagem de perso-nagens bufotildees que seraacute trabalhada pelo fantaacutestico autoconsciente a exem-plo do famoso Pequeno Zacarias vulgo Cinaacutebrio de E T A Hoffmann A pergunta natildeo eacute descabida e a leitura atenta das Noites sugeriraacute mais de um intertexto em relaccedilatildeo agraves obras do genial contista alematildeo Por exemplo em meio agrave aventura do cristatildeo com o rei da China (episoacutedio narrado nas Noites) descreve-se um aposento composto por um jardim maacutegico que tambeacutem poderia antecipar o jardim das serpentinas hoffmannianas

O almocreve me conduziu ateacute a casa paguei-lhe um quarto de dinar ele re-cebeu e foi-se embora Bati agrave porta e fui recebido por duas pequenas meni-nas brancas que me disseram ldquoEm nome de Deus entre pois nossa patroa natildeo dormiu esta noite tal a alegria por sua vindardquo Adentrei o paacutetio e me vi diante de uma casa agrave qual se acessava subindo sete degraus e que tinha por toda a sua circunferecircncia janelas dando para um jardim com todos os gecircne-ros de frutas e aves com coacuterregos abundantes que eram uma diversatildeo para os olhos no centro havia uma fonte e em cada um de seus quatro acircngulos uma cobra de ouro vermelho tranccedilado da boca das quatro cobras fluiacutea uma aacutegua que parecia ser peacuterola e gema (2010 p 283)

Compare-se agora este excerto do Livro das mil e uma noites com outro presente na ldquoSexta vigiacuteliardquo do conto O vaso de ouro de Hoffmann

Quando Anselmo olhou para as plantas e aacutervores pareceu-lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente Agrave sombra densa dos ciprestes reluziam ba-cias de maacutermore de onde afloravam estranhas estaacutetuas que salpicavam raios cristalinos que caiacuteam sobre brilhantes corolas de liacuterios vozes singulares ressoa-vam e sussurravam atraveacutes do bosque de plantas extraordinaacuterias e um esplecircn-dido perfume espalhava-se como ondas O arquivista desaparecera e Anselmo soacute avistava uma enorme corbelha de ardentes liacuterios cor de puacuterpura e de fogo Extasiado pela visatildeo pelo doce perfume do jardim encantado Anselmo esta-cou completamente enfeiticcedilado (Hoffmann 1993 p 40)

Tais anaacutelises satildeo importantes para observarmos ateacute que ponto a ima-ginaccedilatildeo romacircntica recriou ndash obviamente com criatividade autoral ndash o Livro das mil e uma noites Ao falar em procedimentos e sugestotildees inter-textuais refiro-me aos intertextos que satildeo sugeridos em relaccedilatildeo agraves Noites pelos textos fantaacutesticos posteriores sem que haja uma clara marcaccedilatildeo de que delas proviriam A influecircncia estaacute laacute mas soacute podemos cogitaacute-la nas

entrelinhas O mais proacuteximo que observamos dessa marca inicial ou iacutendi-ce no conto O vaso de ouro se encontra num excerto da ldquoTerceira vigiacuteliardquo Apoacutes a narraccedilatildeo de histoacuterias delirantes referentes a liacuterios maacutegicos e perso-nificaccedilotildees alquiacutemicas como a do ldquojovem Phosphorusrdquo efetivada pelo es-tudante Anselmo responde-lhe o escrivatildeo Heerbrand ldquolsquoPermita-me caro senhor arquivista mas isto natildeo passa de frivolidades orientaisrsquordquo (p 21) as-sociando chistosamente a narrativa fantaacutestica descrita anteriormente aos desbordamentos imaginativos da escrita aacuterabe (a influecircncia das Noites na obra de Hoffmann estaacute diluiacuteda das mais diversas maneiras relatei apenas um breve exemplo para ilustrar a noccedilatildeo de sugestatildeo intertextual)

A influecircncia das Noites se torna mais evidente quando as obras fantaacutes-ticas citam-nas nominalmente Em liacutengua portuguesa poderemos explo-rar alguns trechos do conto oitocentista A febre do jogo em que Aacutelvaro do Carvalhal ndash o autor que mais se aproximou em Portugal do romantismo imaginativo e espectral tiacutepico das culturas germacircnica e anglo-saxatilde ndash natildeo soacute acusa nominalmente tal intertexto mas tambeacutem retira um trecho completo das Noites e o adapta a sua proacutepria histoacuteria Observemos alguns elementos e a dicccedilatildeo goacutetica do conto hauridos tambeacutem de outras leituras romacircnticas

Laacute fora desprendia a tempestade as borrascosas asas pelo entenebrecido espaccedilo Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas vidraccedilas O ceacuteu abrasava-se em clarotildees efeacutemeros E a terra revolvia-se accediloitada pelos iacutempe-tos recrudescentes de sucessivos furacotildees A imobilidade sombria das cate-drais antigas dos torreotildees cocircnicos de mourisca faacutebrica dos zimboacuterios dos edifiacutecios circulares e colossais iluminada a espaccedilos pelas fosforescecircncias paacutelidas dos relacircmpagos dava ao espectaacuteculo um luacutegubre caraacutecter Dir-se-ia que o abismo vomitara legiotildees de democircnios que ameaccedilavam este nosso acanhado canto do mundo com um formidaacutevel torvelinho reduzindo-o a arena de vertiginosas coreias (Carvalhal 2004 p 23)

A febre do jogo configura o tiacutepico conto influenciado pela peccedila no-turna (Nachtstuumlck) alematilde a explorar os desvatildeos psicoloacutegicos dos per-sonagens juntamente agraves descriccedilotildees distoacutepicas dos loci horrendi A certa altura Mariano seu atormentado protagonista afirma ldquopintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas grandezas de um conto das mil e uma noitesrdquo (p 28) associando nomeadamente as excentri-cidades luacutegubres da diegese ao universo ficcional das Noites inclusive como afirmado reconstituindo-as em vaacuterios momentos de sua proacutepria trama narrativa Quando Mariano segue o espectro do pai que acabara de

assassinar ndash numa lsquocatabase goacuteticarsquo que por sinal jaacute fora sugerida entre outras por algumas ldquonoitesrdquo (capiacutetulos) do ramo siacuterio do Livro das mil e uma noites (narrativas do primeiro e terceiro dervixes) ndash adentra um antigo templo aacuterabe remodelado pelo cristianismo e eacute tomado por visotildees extaacuteticas e aterrorizantes soacute finalizadas quando aparentemente eacute trazido de volta a si (sugerindo-se fantasticamente que toda a experiecircncia preacutevia natildeo passara de deliacuterio) estando agora na cidade de Naacutepoles Daacute-se entatildeo o que chamei de reconstituiccedilatildeo ou seja a recriaccedilatildeo de um trecho original das Noites (somente um trecho ou trechos ndash eacute bom destacar) numa outra diegese autoral e ineacutedita que em todo o caso acusa textualmente esta influecircncia Leiamos o excerto do conto de Carvalhal

De repente paro esmagado num ciacuterculo de ferro Ergue-se um brado solu-ccedilante e comprimido Vozes confusas troavam de cada lado Olhei Caiacuteam sobre mim os raios tisnadores de um sol brilhante Estava no zeacutenite o sol De todas as partes acelerada se ajuntava a populaccedila Alguns homens natildeo poucos cheios de suor e de cansaccedilo reprimiam-me nos braccedilos atleacuteticos Entre esses homens descobri minha matildee que desalinhada e lacrimosa cla-mava estorcendo os braccedilos em veemente dor- Louco loucoCravei nela os olhos estupefactoAquele brado de uma afliccedilatildeo de matildee arrefeceu-me ateacute agrave ponta dos cabelosTentei reflectir mas faltaram-me ideias Tentei recordar mas natildeo tive me-moacuteria O que eu tinha era o vaacutecuo na cabeccedila Poreacutem natildeo sei como compe-netrei-me da medonha verdadeEnvergonhado quis furtar-me agraves vistas dos curiosos E soacute nesse instante reparei que estava nu Eu Nu de dia numa praccedila puacuteblica Como acreditaacute-lo Estava nu Mas trazia pendente dos ombros a coberta esfarrapada do meu leito como um manto real- Louco louco repeti entatildeo num choro coleacuterico de desespero atroz E espumando de raiva rolei de chofre exacircnime nos braccedilos que me prendiam- Luacutecio foi a minha primeira exclamaccedilatildeo ao volver agrave existecircncia - Onde estou eu foi a minha primeira perguntaLuacutecio de peacute agrave cabeceira da minha cama estava embevecido em minuciosa anaacutelise Parecia determinado a natildeo perder uma soacute das fases por que ia pas-sando a doenccedila nem algum novo sintoma que acaso se revelasse- Desconheccedilo esta casa Onde estamos prossegui- Em Naacutepoles- Naacutepoles- Justamente [] (p 45-46)

A modalizaccedilatildeo fantaacutestica do conto de Carvalhal transforma agora pelo aparente vieacutes da loucura e do deliacuterio o personagem Luacutecio Durante todo o conto agira e fora descrito agrave semelhanccedila do Mefistoacutefeles goethia-no sendo o responsaacutevel por toda a sorte de horrores que se abateu sobre Mariano A partir deste momento sugere-se um amigo fiel que ao lado da matildee do protagonista teme pela sauacutede mental do mesmo Fica no ar a duacutevida seraacute toda esta cena mais um dos ardis do diaboacutelico Luacutecio O que importa eacute a presenccedila da recriaccedilatildeo das Noites jaacute que na narraccedilatildeo de um dos capiacutetulos da obra ldquoOs vizires Nuruddin Ali do Cairo e seu filho Badruddin Hasan de Basrardquo aparece a mesma cena

[] O dia se iluminou a alvorada irrompeu e os portotildees de Damasco fo-ram abertos As pessoas saiacuteram e viram Badruddin Hasan jovem gracioso com roupas miacutenimas barrete descoberto e tuacutenica sem os calccedilotildees Exausto devido agrave noite em claro agrave procissatildeo com os ciacuterios e ao peso que carregara o jovem dormia estirado e roncava [] Disse um outro [popular] ldquoCoitados dos filhos do povo Vejam o que aconteceu a esse rapaz Estava bebendo talvez e quis parar e ir cuidar da vida mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu assim pelado Ou quem sabe talvez tenha confundido a porta de sua casa com o portatildeo da cidade e encontrando-o trancado dormiu aqui mesmordquo [] Badruddin Hasan acordou e vendo-se diante dos portotildees de uma cidade cercado por homens de toda espeacutecie ficou atarantado e per-guntou ldquoOnde estou minha gente O que tecircm vocecircsrdquo Responderam ldquoNoacutes encontramos vocecirc aqui deitado na hora da chamada para a oraccedilatildeo da alvo-rada Eacute soacute o que sabemos a seu respeito Onde vocecirc dormiu esta noiterdquo Ele respondeu ldquoPor Deus minha gente que esta noite eu estava dormindo do Cairordquo Algueacutem disse ldquoOuccedilam soacuterdquo Outro disse ldquoDeem-lhe um tapa com forccedilardquo E todos lhe disseram ldquoMeu filho vocecirc estaacute doido Dormir no Cairo em acordar em Damascordquo [] Outro disse ldquoEle estaacute loucordquo e todos grita-ram ldquoloucordquo e agrave forccedila resolveram que ele enlouquecera [] (p 239)

O leitor das Noites sabe que Hasan fora transportado pelos ares por ifrits de uma cidade a outra dentro da perspectiva maravilhosa mas o personagem natildeo tem ideia disso pois estava dormindo no momento do rapto e chega a cogitar posteriormente que realmente sonhara es-tando em Damasco todo o dia e a vida anterior no Cairo gerando-se o nonsense Jaacute o texto de Carvalhal natildeo apresenta iacutendice preacutevio algum sugerindo que a brusca passagem de uma cidade a outra poderia ser uma ilusatildeo gerada pela alienaccedilatildeo de Mariano sem maiores explicaccedilotildees A bricolagem intertextual corrobora os aspectos delirantes e fantaacutesti-cos (pela indefiniccedilatildeo do que realmente ocorreu com o protagonista) do

conto de Carvalhal mas como afirmado compotildee apenas uma passa-gem episoacutedica de A febre do jogo da maior importacircncia eacute verdade con-tudo sem assegurar a totalidade da diegese

Passemos agora a explorar por fim um caso em que a escritura comple-ta re-modalizada em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites ocorre a partir de um conto de Edgar Lucas White intitulado Amina que apesar de escrito na primeira deacutecada do seacuteculo XX faz uso de procedimentos tiacutepicos do horror e fantaacutestico oitocentistas tomando ainda como base o exotismo orientalista que existiu sob as mais diversas faces em todo o seacuteculo XIX

Amina eacute totalmente baseada em uma das histoacuterias das Noites em que se narra o aparecimento de um suposto ente sobrenatural em meio ao caravanccedilarai e agraves ruiacutenas de cidades antigas intitulada ldquoO filho de rei e a ogrardquo Cumpre transcrevecirc-la integralmente na voz do pescador que a conta ao rei Yunan

Conta-se oacute rei venturoso que certo rei tinha um filho que era grande aman-te de caccediladas Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai o qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz Certo dia saiacuteram ambos e cavalgaram ateacute o deserto O jovem descortinou uma presa e o vizir lhe disse ldquoPegue-a corra atraacutes dessa caccedilardquo O jovem foi atraacutes do animal mas perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto sem saber para que lado ir nem que rumo tomar Entatildeo eis que viu uma jovem chorando no caminho Perguntou-lhe ldquoDe onde vocecirc eacuterdquo Ela respondeu ldquoSou filha de um dos reis da Iacutendia Estava neste deserto cavalgando minha montaria quando fui dominada pelo sono e distraiacuteda caiacute do animal Agora estou longe de todos e assustadardquo Ouvindo as palavras da moccedila o filho do rei lamentou-lhe a situaccedilatildeo e colocou-a na garupa de seu cavalo avanccedilando ateacute topar com umas ruiacutenas A moccedila entatildeo lhe disse ldquoMeu senhor eu pre-ciso satisfazer uma necessidade logo alirdquo e o rapaz a ajudou a descavalgar Ela entrou nas ruiacutenas e o filho do rei foi atraacutes sem saber o que ela era Observando-a poreacutem descobriu tratar-se de uma ogra que fora dizer aos seus filhotes ldquoEu lhes trouxe um jovem bonito e gordinhordquo Os filhotes dis-seram ldquoTraga-o logo mamatildeezinha para que pastemos em seu ventrerdquo Disse o vizir ao ouvir o diaacutelogo deles o rapaz ficou apavorado seus mem-bros se contraiacuteram e temendo por sua vida ele retornouDisse o vizir a ogra saiu atraacutes dele e lhe perguntou ldquoO que vocecirc tem Por que estaacute com medordquo Entatildeo ele se queixou da situaccedilatildeo que estava enfrentan-do e concluiu ldquoIrei sofrer uma injusticcedilardquo Ela lhe disse ldquoSe estaacute para sofrer uma injusticcedila entatildeo peccedila ajuda a Deus altiacutessimo e ele o livraraacute do mal que vocecirc temerdquoDisse o vizir o jovem ergueu as matildeos para o ceacuteu [] e disse ldquoOacute Deus faccedila-me triunfar contra o meu inimigo lsquopois voacutes de tudo sois capazrsquordquo

Disse o vizir quando a ogra ouviu a suacuteplica deixou-o em paz O jovem che-gou satildeo e salvo ateacute o pai e lhe contou a histoacuteria do vizir isto eacute que fora ele que lhe ordenara correr atraacutes da caccedila sucedendo-lhe entatildeo tudo aquilo com a ogra O rei mandou convocar o vizir e executou-o (p 84-85)

Destarte o que constitui um breve episoacutedio narrativa dentro de ou-tra na 15ordf e 16ordf noites do Livro das mil e uma noites (ramo siacuterio) seraacute utilizado para enformar a diegese completa do conto de White consubs-tanciando a diferenccedilagradaccedilatildeo que parte do universo oral e folcloacuterico das ldquoformas simplesrdquo (segundo a terminologia do criacutetico literaacuterio Andreacute Jolles [1976]) passando pelo pioneiro registro literaacuterio das Noites ateacute culminar numa reescritura re-modalizada e autoral no caso o conto Amina

Publicado originalmente na revista The Bellman em 1ordm de junho de 1907 Amina conta a histoacuteria do personagem Waldo um ocidental que se encontra numa pesquisa de campo no deserto em meio agraves milenaacuterias ruiacutenas de civilizaccedilotildees antigas Jaacute na primeira frase da narrativa perce-be-se a atmosfera de pesadelo que entretece a diegese a revelar que a realidade pode assumir graus fantaacutesticos ldquoWaldo cara a cara com a re-alidade do inacreditaacutevel ndash como ele mesmo teria dito ndash estava comple-tamente estupefato Em silecircncio ele deixou-se conduzir pelo cocircnsul do teacutepido escuro do interior pela porta em ruiacutenas ateacute o calor e a claridade ofuscante do desertordquo (White 2007 p 147)

O leitor eacute apresentado in media res a este cenaacuterio desolado que atinge a extensatildeo dos sonhos Trecircs personagens principais Waldo o cocircnsul e Hassan parecem perdidos ao tempo que buscam se defender ou mesmo extirpar certos animais estranhos que aparentemente Waldo observara algum tempo antes

- Hassan ndash [disse o cocircnsul] observe aquiHassan disse algo em persa- Quantos filhotes havia ndash o cocircnsul perguntou a WaldoWaldo nada respondeu- Quantos pequenos vocecirc viu ndash o cocircnsul voltou a perguntar- Vinte ou mais ndash Waldo conseguiu responder- Isso eacute impossiacutevel ndash o cocircnsul retrucou- Parecia haver 16 ou 18 ndash Waldo corrigiu-se Hassan sorriu e resmungou O cocircnsul pegou duas armas das matildeos do guia entregou a Waldo a dele e os dois caminharam ao redor da tumba [] (p 147)

Logo em seguida o aspecto sobrenatural destes seres eacute posto em evidecircncia no momento em que os personagens decidem se separar para caccedilaacute-los O atocircnito Waldo diferentemente do cocircnsul e de Hassan ainda insiste em natildeo acreditar que a experiecircncia anterior poderia ser fruto de sua imaginaccedilatildeo sendo repreendido pelo referido cocircnsul por esta atitude

[] Fique atento ao seu redor Existe a chance quase remota de o macho retor-nar durante o dia ndash eles costumam ser notiacutevagos mas esse covil eacute excepcional [] Vocecirc natildeo deve ter nenhum tipo de sentimentalismo tolo em relaccedilatildeo agrave se-melhanccedila que esses animais possam ter com os seres humanos Atire e atire para matar Natildeo apenas eacute nosso dever exterminaacute-los mas seraacute muito perigoso para noacutes se natildeo o fizermos

Uma gradaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao sobrenatural existe se atentarmos agraves ca-racteriacutesticas destes trecircs personagens que de certa forma iconizam alguns gecircnerossubgecircneros propostos pela teoria todoroviana Hassan o nativo de fala persa poderia representar o olhar do Maravilhoso puro a aceita-ccedilatildeo completa da existecircncia de leis outras talvez desacreditadas em situa-ccedilotildees e topografias distintas O cocircnsul poderia ter refletido inicialmente o olhar do Estranho do ocidental que precisou encontrar certas soluccedilotildees ou respostas para que a existecircncia do insoacutelito fosse explicada de maneira racional e dentro das leis naturais posteriormente abandonadas com a presentificaccedilatildeo efetiva do sobrenatural e o consequente aparecimento do Fantaacutestico-maravilhoso (em que haacute primeiro a hesitaccedilatildeo fantaacutestica se-guida pela aceitaccedilatildeo do Maravilhoso) E por fim na maior parte do texto a experiecircncia do olhar do Fantaacutestico pela ambiguidadeduacutevida instigadas pelo personagem Waldo Contudo eacute importante observar o sobrenatural aceito por Hassan e pelo cocircnsul eacute trabalhado numa via de negatividade que eacute bem diversa por exemplo do Maravilhoso puro dos contos de fa-das aproximando Amina das tiacutepicas narrativas de horror A associaccedilatildeo que o cocircnsul faz dos animais-monstros com a suposta aparecircncia humana revela que o sobrenatural permanece de maneira disfoacuterica e atraveacutes de uma inquietaccedilatildeo trabalhada pela experienciaccedilatildeo do medo Eacute o medo que faz com que ocidentais e orientais se unam em prol do total extermiacutenio destes seres ainda segundo a visatildeo do cocircnsul

Haacute pouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanas po-reacutem nos poucos pontos em que a opiniatildeo puacuteblica existe ela atua com pron-tidatildeo e vigor Se haacute um assunto sobre o qual natildeo haacute discordacircncia eacute que eacute

incumbecircncia de todos os homens ajudar a erradicar essas criaturas O velho costume biacuteblico de apedrejar ateacute a morte eacute o modo de linchar os nativos por aqui Esses asiaacuteticos modernos satildeo capazes de aplicaacute-lo a qualquer pessoa considerada negligente no combate a esses monstros Se deixarmos um de-les escapar e as pessoas ficarem sabendo podemos dar iniacutecio a um surto de preconceito racial que vai ser difiacutecil enfrentar Portanto atire sem hesitaccedilatildeo ou piedade - Entendi- Natildeo me importa se vocecirc entende ou natildeo ndash disse o cocircnsul ndash Quero que vocecirc aja Atire se for preciso e de modo certeiro ndash E partiu (p 148-149)

Eacute interessante como se pode observar nas entrelinhas deste excerto a discussatildeo da outridade OcidenteOriente pela modalizaccedilatildeo fantaacutesti-ca O olhar colonial se adensa no momento em que se fala da ldquopouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanasrdquo e trata do tema do preconceito racial entrevisto nas possiacuteveis sublevaccedilotildees dos coloni-zados inserindo-se ainda o ritual do apedrejamento dentro do contexto especiacutefico do conto Ateacute que ponto aquela insistente frase a corroborar com as usuais toacutepicas do discurso imperialista ldquoatire sem hesitaccedilatildeo ou piedaderdquo poderia ser associada a essa relaccedilatildeo de outridade De fato a sabedoria do sobrenatural de Hassan e o olhar de simpatia que o narra-dor tem para com este personagem subalterno natildeo chega a desconstruir o discurso da superioridade europeia Mas o que importa para a presen-te anaacutelise eacute o fato de que o cocircnsul pede a Waldo um pragmatismo que continua por via oposta a endossar o olhar fantaacutestico deste uacuteltimo eacute preciso agir e natildeo compreender Destarte continuamos no territoacuterio do insoacutelito potencializado pelas novas marcaccedilotildees que o texto ofereceraacute relativas agrave passagem do Ocidente para o Oriente

Na manhatilde de sua aventura inesqueciacutevel Waldo acordou cedo As experiecircn-cias de suas viagens ao mar as visotildees de Gibraltar em Port Said no canal em Suez em Aden em Muscat e em Basrah propiciaram uma transiccedilatildeo ina-dequada entre a regularidade decorosa da vida escolar e domeacutestica na Nova Inglaterra e a maravilha daquelas imensidotildees deseacuterticas e suas paisagens de tirar o focirclego Tudo parecia irreal mas a veracidade daquela estranheza o perturbava tanto que ele natildeo conseguia sentir-se agrave vontade nem dormir profundamente em uma barraca Depois de deitar-se passava muito tempo acordado e levanta-va cedo como naquela manhatilde no iniacutecio do falso alvorecer (p 149)

A teacutecnica do sfumato das artes plaacutesticas mistura sutil de matizes e gra-dientes sem transiccedilotildees abruptas natildeo poderia ser associada a esta passagem A movecircncia Ocidente-Oriente eacute acompanhada por uma seacuterie de fenocircme-nos estranhos que gera uma quebra ontoloacutegica em relaccedilatildeo ao real atraveacutes de choques inesperados que acabam inserindo o personagem Waldo num estado quase delirante corroborado pelo sol ostensivo falta de sono esgo-tamento nervoso ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas (costuma beber ldquoconhaque purordquo ndash p 147) procedimentos caros ao gecircneromodo fantaacutestico

Durante a noite em meio ao acampamento Waldo sente necessida-de de passear e contemplar pessoalmente no deserto as constelaccedilotildees e o famoso pleniluacutenio tatildeo decantado pelo Livro das mil e uma noites em me-taacuteforas liacutericas geralmente associadas agrave beleza feminina Sua relaccedilatildeo com o deserto eacute um tanto contraditoacuteria ansiava uma experiecircncia de libertaccedilatildeo e a realidade se mostrava contraacuteria opressora Pensava que o perigo maior da viagem de exploraccedilatildeo seriam os soldados curdos logo desmistificados como paciacuteficos Na realidade os perigos eram outros como deu a enten-der Hassan o personagem mediador entre o visiacutevel e o invisiacutevel

Hassan falava um pouco de inglecircs e contava-lhe histoacuterias sobre espiacuteritos ma-lignos espectros e outros estranhos seres lendaacuterios sobre o democircnio das ruiacute-nas surgindo como ser humano falando todos os idiomas sempre agrave procura de infieacuteis sobre a mulher cujos peacutes eram virados com os calcanhares para a frente levando os imprudentes a um poccedilo onde os afogava sobre os fan-tasmas malignos dos salteadores mortos mais terriacuteveis que os vivos sobre o espiacuterito incorporado em um burro ou em uma gazela levando seus persegui-dores agrave beira do precipiacutecio parecendo continuar a correr sobre uma areia que natildeo passava de uma simples miragem que se dissolvia [] (p 151)

O sobrenatural aparece aqui numa de suas facetas literaacuterias mais carac-teriacutesticas ligada agrave oralidade A cultura lsquoprimitivarsquo a ele associada eivada de crendices antiteacuteticas ao logos natildeo raras vezes na experiecircncia do insoacutelito in-verte a polaridade e passa a funcionar justamente como logos dentro do so-brenatural toacutepica relativamente comum das histoacuterias de horror Os perigos iniciais ldquovagos e imaginaacuteriosrdquo (p 151) acabaratildeo ganhando concretude em meio ao deserto locus geralmente propiacutecio ao intervalo que vai da imagi-naccedilatildeo agrave miragem um natildeo-lugar ou espaccedilo com outra dinacircmica de tempo

Olhou ao redor contemplando aquela vasta desolaccedilatildeo e o ceacuteu de um azul-turquesa uniforme arqueando-se sobre o deserto Montanhas avermelhadas e

distantes pareciam amontoar-se sobre colinas mais proacuteximas que enchiam a paisagem amarela sem diminuir-lhe a monotonia Areia e rochas com poucos galhos finos formavam a paisagem em volta alterada aqui e ali pela presenccedila de ruiacutenas brancas ou acinzentadas Natildeo fazia muito tempo que o sol nascera mas a superfiacutecie toda do deserto tremulava com o calor [] (p 152)

Eacute nesta fronteira cronotoacutepica cuja luminosidade excessiva mais con-funde do que refrata mimeticamente o aspecto das coisas que lhe apa-receraacute entatildeo a figura esquisita de uma mulher em meio agraves ruiacutenas com-postas por ldquotumbas preacute-histoacutericas asiaacuteticas persas partas sassacircnidas e muccedilulmanasrdquo (p 151) Novamente observamos as modalizaccedilotildees tiacutepicas do fantaacutestico e do horror que intentam causar estranhamento no leitor

Todas as mulheres do vilarejo que ele jaacute vira usavam ldquoyashmaksrdquo ou alguma espeacutecie de pano ou veacuteu para cobrir o rosto Aquela mulher estava sem veacuteu e sem qualquer pano na cabeccedila Usava um tipo de veste marrom-amarelada que cobria seu corpo do pescoccedilo aos calcanhares sem marcar-lhe a cintura Seus peacutes apesar da areia escaldante estavam descalccedilosAo perceber a presenccedila de Waldo ela parou e olhou para ele que lhe de-volveu o olhar Ele notou que a posiccedilatildeo dos peacutes da mulher natildeo parecia com a dos europeus natildeo se voltavam para fora mas com os lados de dentro paralelos Ela natildeo usava tornozeleiras e pulseiras nem colar ou brincos Ele achou que os braccedilos dela eram os mais musculosos que jaacute tinha visto em um ser humano As unhas eram pontudas e longas tanto nas matildeos quanto nos peacutes Seu cabelo era preto curto e desgrenhado mas mesmo assim ela natildeo parecia selvagem Seus olhos sorriam e seus laacutebios esboccedilavam um sorriso apesar de natildeo se separarem sem mostrar os dentes por traacutes deles (p 152)

Nestas descriccedilotildees meticulosas das caracteriacutesticas inquietantes da personagem observamos como White reescreveu amiudadamente o epi-soacutedio do Livro das mil e uma noites contudo sem lhe alterar substancial-mente o enredo O priacutencipe aacuterabe se transformou em Waldo um ator-mentado ocidental perdido em meio agraves vastidotildees dos desertos do Oriente acompanhado por personagens secundaacuterios que natildeo existiam no texto original O encontro com uma mulher solitaacuteria se daacute no mesmo locus en-quanto ambos estatildeo perdidos (lembremos tambeacutem que a personagem da mulher solitaacuteria em meio aos bosques a se revelar ulteriormente como o diabo a um nobre eacute comum nas novelas medievais de cavalaria europeia) A oraccedilatildeo do priacutencipe aacuterabe que repele a ogra seraacute em Amina substituiacuteda por um tiro certeiro do personagem cocircnsul que abateraacute a mulher-mons-tro no justo momento em que teria matado Waldo juntamente aos filhos

Entatildeo como se daraacute a re-modalizaccedilatildeo anunciada anteriormente que o conto de White operaraacute em relaccedilatildeo ao texto original Ela estaacute configu-rada basicamente na maneira como o maravilhoso do episoacutedio do Livro das mil e uma noites se converteraacute em horror autoconsciente em Amina pelo modus operandi do estranhamento a gerar um sem-nuacutemero de en-trechos A mulher-monstro de White por exemplo conversa com Waldo em inglecircs contudo ldquoenquanto ela falava seus laacutebios natildeo se abriamrdquo (p 152) Ela se comunica ldquocantarolando as palavrasrdquo (p 153) e eacute descrita no ato de se mover em todo o potencial de uma escritura de estranhamento

Ela se locomovia sem fazer barulho e com rapidez Waldo mal conseguia acompanhaacute-la No percurso Waldo por vezes seguia atraacutes e notava como suas vestes cobriam suas costas a cintura estreita e os quadris bem forma-dos Sempre que se apressava e conseguia alcanccedilaacute-la ele a olhava com curio-sidade um tanto confuso por sua cintura tatildeo bem definida atraacutes natildeo ter uma forma definida na frente por seu contorno do pescoccedilo aos joelhos totalmente sem forma sob as roupas natildeo marcar sua cintura natildeo sugerir firmeza ou flacidez Da mesma maneira observava o brilho em seus olhos e os laacutebios extremamente vermelhos e finos (p 153)

Este monstro sai das classificaccedilotildees e dualismos tiacutepicos natildeo eacute nem ldquocristatildeordquo nem ldquomuccedilulmanordquo como diz o texto mas uma terceira coisa inominada Se diz pertencente ao ldquopovo livrerdquo e tal expressatildeo natildeo seraacute explicada a posteriori fazendo com que permaneccedilamos em leituras po-lissecircmicas A carga de horror criada pela narrativa eacute excepcional fazendo com que Amina se constitua em paradigma do gecircnero ainda mais pela vertente do orientalismo A certa altura a personagem homocircnima afirma conhecer a localizaccedilatildeo do acampamento de Waldo que este ansiava reen-contrar sugerindo tambeacutem nas elipses das modalizaccedilotildees do horror que andava rondando suas cercanias e observando os protagonistas de manei-ra incoacutegnita O texto eacute eliacuteptico por natildeo explicitar nada sempre sugerindo possibilidades Ao adentrar a caverna em que a mulher parecia habitar na realidade uma antiga tumba profanada coisas estranhas embora pos-siacuteveis (dentro das medidas do real empiacuterico) passam a ocorrer (Waldo a seguira antes de retornar ao acampamento no intuito de beber aacutegua)

Por um momento ficou cego pela transiccedilatildeo do brilho insistente do deserto para a sombra do interior da tumba []Agrave medida que seus olhos se acostumaram com a falta de luz ele teve um tal susto que ficou em peacute Parecia que por todos os lados aquele espaccedilo estava

fervilhante de crianccedilas nuas Levando em conta sua inexperiecircncia avaliou que elas tinham 2 anos de idade mas moviam-se com a destreza de garotos de 8 ou 10 anos - De quem satildeo essas crianccedilas ndash ele perguntou- Minhas- Todas suas- Todas minhas ndash ela respondeu de modo curioso- Mas haacute vinte delas ndash ele gritou- Vocecirc conta mal no escuro ndash ela disse ndash Haacute menos do que isso- Mas com certeza haacute uma duacutezia ndash ele disse rodando sobre si cercado pelas crianccedilas que danccedilavam e saltavam agrave sua volta- O povo livre tem famiacutelias grandes ndash ela explicou- Mas todos parecem ter a mesma idade ndash Waldo exclamou com a liacutengua seca em contato com o ceacuteu da bocaEla riu um riso desagradaacutevel batendo as matildeos Ela estava entre ele e a por-ta e como a maior parte da luz vinha da porta ele natildeo conseguia ver seus laacutebios []Waldo estava confuso e sentou-se novamente As crianccedilas circularam a seu redor conversando rindo brincando fazendo ruiacutedos que mostravam sua alegria [] (p 154-155)

Eacute esta a modalizaccedilatildeo a que me refiro relativa agrave escritura de estra-nhamento Poderemos observar simples crianccedilas entrevistas no ato de brincar nesta atmosfera de estranhamento criada pela linguagem Num determinado trecho acusa-se textualmente a influecircncia das Noites

- Qual eacute o seu nome ndash ele perguntou- Amina ndash ela respondeu - Eacute um nome da histoacuteria das ldquoMil e uma noitesrdquo ndash ele disse- Das histoacuterias tolas dos crentes ndash disse ela com desdeacutem ndash O povo livre natildeo sabe nada a respeito dessas bobagens ndash Seus laacutebios fechados e o murmuacuterio entre as siacutelabas proferidas o deixaram ainda mais surpreso quando ela cur-vou os laacutebios sem abri-los (p 154)

Edgar Lucas White segundo Tavares (2007 p 146) se inspirava nos proacuteprios pesadelos para compor muitos de seus contos fantaacutesticos reuni-dos nas obras The song of the sirens and other stories (1919) e Lukundoo and other stories (1927) A citaccedilatildeo nominal das Noites homenageia o texto original e ficamos tentados a encontrar em Amina um princiacutepio de recep-ccedilatildeo de leitor posteriormente potencializado pelo inconsciente durante o sono Segundo a nota do tradutor Jarouche (2010 p 85) a palavra ldquoogrardquo por ele utilizada em sua versatildeo das Noites traduziria imperfeitamente

o termo aacuterabe ldquogulardquo que designa na mitologia beduiacutena ldquoum ser sobre-humano capaz de mudar de figura e que se alimenta de carne huma-na Segundo uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao profeta Muhammad a simples menccedilatildeo a Deus bastaria para afugentaacute-lordquo sendo para isso invocado um excerto do Alcoratildeo (668) pelo personagem do priacutencipe aacuterabe como vis-to anteriormente no excerto das Noites O sentido de maravilhoso desta obra possibilita a inserccedilatildeo paciacutefica de uma ldquogulardquo (natildeo haacute aqui associaccedilatildeo agrave palavra lsquogularsquo em liacutengua portuguesa no sentido de fome desmesurada) agrave realidade diegeacutetica Jaacute o texto de White quebra esta possibilidade ao acrescentar toda a disforia de uma ontologia natildeo pacificada mesmo com a morte e revelaccedilatildeo final do monstro Waldo oscila ateacute o fim da narrativa a respeito da natureza teriomorfa e sobrenatural de Amina

- Bem na hora meu garoto ndash disse [o cocircnsul] ndash Ela estava prestes a atacarEle levantou o cano da arma e com ela mexeu no corpo- Bem morta ndash ele disse ndash Que sorte Geralmente satildeo precisos trecircs ou quatro balas para abater um deles Eu jaacute vi uma delas matar um homem mesmo tendo levado dois tiros nos pulmotildees - Vocecirc assassinou esta mulher ndash Waldo perguntou irado - Assassinar ndash o cocircnsul perguntou ndash Assassinar Olhe para istoEle ajoelhou-se e abriu os laacutebios fechados deixando agrave mostra natildeo dentes humanos mas pequenos incisivos dentes afiados bem separados e caninos longos e sobrepostos como os de um galgo uma denticcedilatildeo carniacutevora ame-accediladora e perigosa Ele sentiu medo mas mesmo assim a forma e a aparecircncia da mulher ainda o deixavam horrorizado tocado por sua semelhanccedila humana- Vocecirc atira em mulheres que tecircm dentes longos ndash Waldo insistiu revoltado com a morte terriacutevel que presenciara- Eacute difiacutecil convencecirc-lo ndash o cocircnsul disse ndash Vocecirc chama isto de mulherEle arrancou as roupas do cadaacuteverWaldo ficou aterrorizado O que ele viu natildeo foi a parte da frente do corpo de uma mulher mas sim o lado de baixo de uma loba prenhe ou de uma porca branca em sua segunda gestaccedilatildeo do pescoccedilo agrave genitaacutelia dez ubres em duas fileiras machucados grossos e flaacutecidos- Que tipo de criatura eacute essa ndash ele perguntou increacutedulo- Um ldquoghoulrdquo [gula] um espiacuterito maligno meu filho ndash o cocircnsul respondeu calmamente quase sussurrando - Pensei que eles natildeo existissem ndash Waldo disse ndash Achei que fossem lendas que natildeo houvesse nenhum deles- Posso acreditar que natildeo exista nenhum em Rhode Island ndash o cocircnsul disse ndash Estamos na Peacutersia e a Peacutersia fica na Aacutesia (p 156)

Como afirmado a ambiguidade fantaacutestica eacute levada ateacute o final com a revelaccedilatildeo do monstro e a aceitaccedilatildeo do sobrenatural Em todo o caso a meu ver em Amina esta aceitaccedilatildeo eacute distinta do Fantaacutestico-maravilhoso todoroviano pois se buscou ateacute este momento a criaccedilatildeo de uma atmos-fera em que a experiecircncia do medo se faz tocircnica e mesmo a explicaccedilatildeo do sobrenatural ligada em uacuteltima instacircncia agrave extinccedilatildeo do monstro natildeo possibilitou sua diluiccedilatildeo antes se obteacutem aquela antevisatildeo negativa do cos-mos e da vida analisada pelas teorias lovecraftianas a respeito do horror autoconsciente Lembro por uacuteltimo que os referidos procedimentos e su-gestotildees intertextuais os recortes e reconstituiccedilotildees e as escrituras completas e re-modalizadas ligadas ao Livro das mil e uma noites entre vaacuterios outros processos de intertextualidade poderatildeo ser encontrados em todas as eacutepo-cas autores e literaturas e colhi apenas trecircs exemplos (teoacutericos e ficcionais) para ilustrar tal fato Concluo com o adoraacutevel bordatildeoleitmotiv da irmatilde de Sahrazad Dinarzad (tatildeo importante quanto a contadora de histoacuterias eacute aquela que fomenta sua continuidade e corrobora no processo atraveacutes de uma recepccedilatildeo embevecida) em homenagem agraves Noites ldquoPor Deus ma-ninha se acaso vocecirc natildeo estiver dormindo conte-me uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar acordados esta noiterdquo []

REFEREcircNCIAS

CARVALHAL Aacutelvaro do Contos Fixaccedilatildeo do texto e posfaacutecio de Gianluca Miraglia Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2004

EURIacutePIDES ldquoLas bacantesrdquo In EacuteSQUILO SOacuteFOCLES EURIacutePIDES Obras completas Trad Joseacute Alsina [et al] Madrid Catedra 2004 (p 215-254)

HOFFMANN E T A Contos fantaacutesticos Trad Claudia Cavalcanti Rio de Janeiro Imago 1993

IRWIN Robert Pelo amor ao saber os orientalistas e seus inimigos Trad Waldeacutea Barcellos Satildeo Paulo Record 2008

JOLLES Andreacute Formas simples Trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Cultrix 1976

KIDSON Peter ldquoArtes plaacutesticasrdquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 435-463)

Livro das mil e uma noites Trad Mamede Mustafa Jarouche 4 volumes Satildeo Paulo Editora Globo 2010 (6ordf reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo de 2006 ndash volume 01) 2006 (2ordf ed ndash volume 02) 2007 (volume 03) 2012 (volume 04)

LOVECRAFT H P O horror sobrenatural em literatura Trad Celson M Paciornik Satildeo Paulo Iluminuras 2008

MOMIGLIANO Arnaldo ldquoHistoacuteria e biografiardquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 181-210)

PLATAtildeO A repuacuteblica Trad Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

PEMBROKE S G ldquoMitordquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 335-358)

TAVARES Braulio ldquoAminardquo In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 146)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 1ordf reimp da 3ordf ed de 2004 Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2007

WHITE Edgar Lucas Amina Trad Carolina Caires Coelho In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 147-156)

Borges leitor de As mil e uma noites

Dariacuteo Sanchez(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

ldquoese libro capaz de tantas metamorfosisrdquo

Jorge Luis Borges eacute talvez o mais universal dos escritores hispa-no-americanos como fica demonstrado natildeo soacute pela importacircncia de sua obra mas tambeacutem pela singularidade de sua pessoa que tem inspirado desde a introduccedilatildeo a um tratado antropoloacutegico de Michel Foucault ateacute o personagem central num romance de Umberto Eco Eacute fato que no caso deste portentoso escritor obra e homem se confundem na sua impor-tacircncia e originalidade

Borges escreveu poemas contos e ensaios muitos dos quais satildeo hoje ndash apenas 27 anos depois de sua morte ndash verdadeiros claacutessicos da literatura universal bastando mencionar tiacutetulos como El Aleph ou Pierre Menard autor del Quijote Mas natildeo eacute soacute pela sua liacutempida prosa e seu verso reflexivo que esse autor argentino eacute mundialmente reconhecido tambeacutem sua original concepccedilatildeo da literatura tem despertado o interesse de especialistas e neoacutefitos concepccedilatildeo que vai muito aleacutem do cacircnone ocidental ao abranger outras literaturas ndash com lugar de destaque para a literatura oriental ndash e especialmente vai aleacutem da obra literaacuteria incor-porando nela o processo de leitura o exerciacutecio da traduccedilatildeo a praacutetica da escritura e o transcorrer da vida

Para Borges a literatura estaacute nos leitores e natildeo nas obras ou seus autores Longe de ser um objeto de conhecimento (como tanto gostam de pensaacute-la os teoacutericos e especialistas) a literatura eacute um processo uma praacutetica que acontece cada vez que um leitor percorre reconta traduz ou relembra um livro lido Eacute na (re)leitura onde radica o valor da obra literaacuteria releitura que permite novas criaccedilotildees novas versotildees novas his-toacuterias novas vidas ou mortes ateacute

Essa importacircncia da leitura por cima da obra fica demonstrada em afirmaccedilotildees como as seguintes ldquoClaacutesico no es un libro que necesaria-mente posee tales o cuales meacuteritos es un libro que las generaciones de los hombres urgidas por diversas razones leen con previo fervor y con una misteriosa lealtadrdquo (Borges 1993I p 151) ou ldquoUn libro es maacutes que una estructura verbal es el diaacutelogo que entabla con su lector y la intencioacuten que impone a su voz y las cambiantes y durables imaacutegenes que deja en su memoria (Borges 1993I p 125) Ou ainda ldquoUna literatura difiere de otra menos por el texto que por la manera de ser leiacutedardquo (Borges 1993I p 125) Ler com fervor e lealdade ou armazenar imagens na memoacuteria eis definiccedilotildees da literatura segundo Borges E como os leitores das obras satildeo muacuteltiplos e muacuteltiplas suas lembranccedilas e fervores a literatura eacute uma mateacuteria muacuteltipla infinita ldquoPor el hecho de que el poema es inagotable Y se confunde con la suma de las criaturas Y no llegaraacute jamaacutes al uacuteltimo verso Y variacutea seguacuten los hombresrdquo (Borges 1993II p 315)

Desde tal concepccedilatildeo as frequentes referecircncias de Borges agrave compilaccedilatildeo de relatos orientais conhecida como As mil e uma noites (ou ldquoAs mil noites e uma noiterdquo como ele preferia) natildeo eacute soacute mais uma mostra de sua exoacutetica erudiccedilatildeo mas uma confirmaccedilatildeo ancestral de sua teoria da literatura como processo interminaacutevel de leitura De fato ainda que no espaccedilo da oralidade (e a oralidade eacute tatildeo literaacuteria para Borges quanto a escrita bastando-nos lem-brar de suas histoacuterias de ldquocompadritosrdquo) Sherazade eacute uma leitora que conta suas leituras ao sultatildeo que por sua vez eacute outro leitor Como tambeacutem satildeo leitores os histoacutericos compiladores da lenda original que foram agregando novos relatos e os tradutores ocidentais que natildeo soacute agregaram ou retiraram elementos mas que enriqueceram a obra com os estilos de sua liacutengua e de sua eacutepoca As mil e uma noites eacute a obra interminaacutevel por antonomaacutesia (a Never ending story como eacute o tiacutetulo do romance de Michael Ende) e por isso fascinou Borges por ser a soma do que eacute a literatura na sua concepccedilatildeo uma prolongaccedilatildeo infinita de leituras e escrituras

A paixatildeo de Borges por As mil e uma noites fica evidente em vaacuterios de seus escritos e na sua obsessiva comparaccedilatildeo das diversas versotildees para descobrir aquilo que os compiladores e tradutores tinham agregado ou extraiacutedo do texto original Genotexto intertexto subtexto (para usar palavras tatildeo caras aos especialistas) a compilaccedilatildeo oriental aparece na obra do autor argentino de maneira expliacutecita como inspiraccedilatildeo objeto de estudo eou referecircncia bibliograacutefica e de maneira impliacutecita na estrutura

ou elaboraccedilatildeo de alguns relatos Bem no comeccedilo de seu ofiacutecio como escritor publica um artigo sobre Los traductores de Las mil y una noches e pelo menos cinco relatos fazem referecircncia direta ao livro Alguien El sur Historia de los dos que sontildearon El libro de arena e Historia de los dos reyes y los dos laberintos aleacutem do poema Metaacuteforas de las mil y una noches Mas seraacute no luacutecido ensaio intitulado Las mil y una noches que Borges sintetizaraacute melhor seu sentir sobre a referida obra

O texto foi lido pelo seu autor no Teatro Coliseo de Buenos Aires em junho de 1977 dentro de um ciclo de conferencias que foram publicadas em 1980 sob o tiacutetulo de Siete noches Nele Borges susteacutem que para falar desse livro eacute necessaacuterio fazer referecircncia a alguns antecedentes do acontecimento da consciecircncia de Oriente em Ocidente tais como a conquista da Peacutersia e Iacutendia por Alexandre Magno (que deixou de ser grego para se converter em persa) e as narraccedilotildees de Marco Polo sobre Kublai Khan entre outros vaacuterios

Falando concretamente da obra aacuterabe Borges nos lembra de que no seacuteculo XV foi reunida em Alexandria uma seacuterie de faacutebulas de origem hindu persa e asiaacutetica as quais jaacute escritas em aacuterabe foram compiladas no Cairo A matriz ou nuacutecleo central eacute a Iacutendia depois na Peacutersia satildeo modificadas e arabizadas e passam ao Egito em finais do seacuteculo XV onde eacute realizada a primeira compilaccedilatildeo sob o tiacutetulo de As mil e uma noi-tes tiacutetulo que remete ao infinito e semelhante segundo ele agrave expressatildeo inglesa ldquoforever and a dayrdquo Para Borges a origem do livro eacute comparaacutevel agraves catedrais goacuteticas que satildeo obras de geraccedilotildees de homens Milhares de autores provavelmente ldquoconfabulatores nocturnirdquo (contadores noturnos de histoacuterias) escreveram As mil e uma noites mas nenhum deles pensou que estava conformando um livro tatildeo valioso para a humanidade

A primeira versatildeo europeia eacute de 1704 na traduccedilatildeo francesa de Antoine Galland o que foi um acontecimento capital para as literaturas europeias regidas entatildeo pelos preceitos neoclaacutessicos E aqui expressa Borges uma afirmaccedilatildeo de vital importacircncia se natildeo para nossa tese da li-teratura como processo para a motivaccedilatildeo de um Congresso de literatura fantaacutestica que trata da influecircncia de literatura do Oriente no Ocidente Diz Borges que ldquocon el movimiento romaacutentico el Oriente entra plenamente en la conciencia de Europardquo E mais para frente agrega ldquoPodriacuteamos decir que el movimiento romaacutentico empieza en aquel instante en que alguien en Normandiacutea o Pariacutes lee Las mil y una noches Estaacute saliendo del mundo legislado por Boileau estaacute entrando en el mundo de la libertad romaacutenticardquo

(Borges 1993III p 234 e 240) Ou seja que o Romantismo produz e se produz pela influecircncia do Oriente e se temos presente que o Romantismo eacute a grande revoluccedilatildeo da arte ocidental e origem de toda a arte moderna poderiacuteamos inferir que a presenccedila de Oriente eacute uma caracteriacutestica da arte moderna Uma evidecircncia disso seria precisamente aquilo que chama-mos de fantaacutestico que se faz um traccedilo presente e constante na literatura ocidental a partir do Romantismo ou em outras palavras a partir da pre-senccedila do Oriente da leitura de As mil e uma noites

No ensaio sobre Os tradutores das mil e uma noites Borges compara as diversas versotildees ocidentais do texto aacuterabe Adverte que aquela primei-ra traduccedilatildeo de Galland realizada nos albores do seacuteculo XVIII apesar de ter eliminado o conteuacutedo eroacutetico deu um destaque suficiente agrave dimensatildeo maacutegica da histoacuteria cativando os franceses da eacutepoca limitados pela pre-ceptiva poeacutetica Mais de um seacuteculo depois a traduccedilatildeo inglesa de Lane ainda que sendo mais literal tambeacutem suspende os elementos eroacuteticos pois sua intenccedilatildeo era fazer um livro familiar e soacute a versatildeo de Burton nessa liacutengua vai-se ocupar de incorporar o erotismo proacuteprio do texto original A versatildeo alematilde de Littmann destacada como a melhor pela Enciclopeacutedia Britacircnica eacute descartada porque nela falta a subjetividade presente nas tra-duccedilotildees anteriores subjetividade que eacute mais importante que uma suposta literalidade Diz Borges ldquolas versiones de Burton e de Mardrus e incluso de Galland soacutelo se dejan concebir despueacutes de una literatura Cualesquiera que sean sus lacras o sus meacuteritos esas obras caracteriacutesticas presuponen un rico proceso interiorrdquo (Borges 1993I p 412) Ou seja que agrave traduccedilatildeo (assim como agrave leitura) natildeo importa a literalidade ou fidelidade mas o seu valor literaacuterio pela subjetividade entendida como presenccedila do leitor Natildeo vamos falar aqui das consequecircncias que tal afirmaccedilatildeo tem para os estudos de traduccedilatildeo (outros jaacute tem feito isso com amplitude) soacute queremos desta-car que as traduccedilotildees de As mil e uma noites interessam a Borges pela no-vidade pela variaccedilatildeo pela recriaccedilatildeo da obra original daiacute que a traduccedilatildeo seja literatura no sentido de processo de leitura

No mesmo ensaio de Sete noites Borges conta que a histoacuteria de Aladim natildeo aparece no texto aacuterabe-persa soacute na traduccedilatildeo francesa e agrega a anedota da ldquoadmiraacutevel memoacuteria inventivardquo de De Quincey que parte de Galland para se referir a uma histoacuteria diferente Mas natildeo soacute foram os tradutores com sua literatura Galland com seu relato de Aladim De Quincey com sua ldquomemoacuteria inventivardquo ou Stevenson com

suas New Arabian Nights os que acrescentaram elementos ao texto ori-ginal tambeacutem o mesmo Borges fez isso escrevendo um dos relatos de As mil e uma noites confirmando assim natildeo soacute a fascinaccedilatildeo do portenho pela obra aacuterabe mas a maacutegica que envolve essa compilaccedilatildeo

Em 1939 Borges realiza uma resenha da traduccedilatildeo do livro aacuterabe de Richard Burton para a revista El hogar na qual escreve ldquoDe las notas que Burton agregoacute a su famosa traduccioacuten del libro Las mil y una noches traslado esta curiosa leyenda Se intitula Historia de los dos reyes y los dos laberintosrdquo (Borges apud Sardegna 2005 sp) E a continuaccedilatildeo se refere agrave histoacuteria de um rei da Babilocircnia que encerra um rei aacuterabe num confuso labirinto do qual este consegue escapar e depois leva preso agravequele rei e o abandona no deserto um labirinto sem corredores e sem portas Soacute que como conta Miguel Sardegna a histoacuteria natildeo tinha sido omitida da traduccedilatildeo francesa de Galland e resgatada posteriormente na traduccedilatildeo inglesa de Burton como disse Borges aos leitores da revista na realidade a histoacuteria foi a contribuiccedilatildeo de Borges ao livro oriental A citaccedilatildeo de obras e autores supostamente apoacutecrifos seraacute recorrente na obra do escritor argentino soacute que nesse caso particular permite-lhe contribuir com a obra convertendo-lhe numa nova Sherazade No final o referido conto aparece anos depois como ldquoLos dos reyes y los dos la-berintosrdquo na compilaccedilatildeo de contos titulada El Aleph

E em Historia universal de la infacircmia aparece o conto ldquoHistoria de los dos que sontildearonrdquo com uma anotaccedilatildeo final que diz ldquo(Del Libro de las 1001 Noches noche 351)rdquo (Borges 1993I p 339) Com efeito trata-se da citaccedilatildeo completa de um dos contos do livro aacuterabe que trata de um homem que depois de um sonho decide ir a Peacutersia procurando for-tuna mas ali eacute detido e interrogado por um capitatildeo que apoacutes ouvir o relato do sonho e da fortuna ri do homem e conta-lhe que ele tambeacutem sonha com um quintal no Cairo onde supostamente acharaacute uma for-tuna Eacute bom lembrar que eacute essa mesma histoacuteria a base do best-seller de Paulo Coelho O Alquimista Mas o interessante em todas essas novas versotildees e reescrituras eacute a confirmaccedilatildeo do que diz o mesmo Borges ldquoLas mil y una noches no han muerto El infinito tiempo de Las mil y una noches prosigue su camino [] Casi podriacuteamos hablar de muchos libros titulados Las mil y una nochesrdquo (Borges 1993III p 241)

Mas a ficccedilatildeo borgiana a fantaacutestica ficccedilatildeo borgiana vai aleacutem da citaccedilatildeo e da invenccedilatildeo de mais um relato para se ocupar de ficcionalizar a origem

do livro esse momento no qual o primeiro contador o primeiro ldquoconfa-bulator nocturnirdquo comeccedila essa catedral goacutetica esse livro interminaacutevel Em ldquoAlguienrdquo escrito em finais da deacutecada de 1980 encontramos o relato dessa origem primeira Por sua brevidade vamos citar o conto inteiro

Balkh Nishapur Alejandriacutea no importa el nombre Podemos imaginar un zoco una taberna un patio de altos miradores velados un riacuteo que ha repetido los rostros de las generaciones Podemos imaginar asimismo un jardiacuten polvo-riento porque el desierto no estaacute lejos Se ha formado una rueda y un hombre habla No nos es dado descifrar (los reinos y los siglos son muchos) el vago turbante los ojos aacutegiles la piel cetrina y la voz aacutespera que articula prodigios Tampoco eacutel nos ve somos demasiados Narra la historia del primer jeque y de la gacela o la de aquel Ulises que se apodoacute Es-Sindibad del Mar El hombre habla y gesticula No sabe (otros lo sabraacuten) que es del linaje de los confabulalores nocturni de los rapsodas de la noche que Alejandro Bicorne congregaba para solaz de sus vigilias No sabe (nunca lo sabraacute) que es nues-tro bienhechor Cree hablar para unos pocos y unas monedas y en un perdi-do ayer entreteje el Libro de las Mil y Una Noches (Borges 1991III p 171)

A histoacuteria eacute de uma siacutentese maravilhosa Mas quero chamar a aten-ccedilatildeo para quando diz ldquoTampoco eacutel nos ve somos demasiadosrdquo referecircncia necessaacuteria aos leitores que como os autores do livro aacuterabe satildeo presentes e anocircnimos De novo a literatura soacute acontece com as duas presenccedilas que apesar dos muitos reinos e seacuteculos se encontram no momento da leitura aquele momento em que ocorre aquilo que eacute chamado de Literatura

Voltando agrave conferecircncia em Buenos Aires ao tentar definir o Oriente Borges descarta o criteacuterio geograacutefico e diz que as conotaccedilotildees dessa palavra satildeo devidas agrave compilaccedilatildeo oriental a ideia de As mil e uma noites eacute a ideia de Oriente e vice-versa Diz que para o Oriente natildeo eacute importante a histoacuteria como sucessatildeo de fatos e agrega ldquoSe piensa que la literatura y la poesiacutea son procesos eternos Creo que en lo esencial tienen razoacutenrdquo (Borges 1991III p 237) Ou seja a literatura eacute uma construccedilatildeo de muacuteltiplos autoresleitores uma prolongaccedilatildeo infinita ou interminaacutevel como satildeo o Oriente e As mil e uma noites mundos construiacutedos de ldquoumas quantas figuras arquetiacutepicasrdquo

O arqueacutetipo outra ideia fundamental do universo borgiano presente na obra oriental e relacionada com essa nossa inferecircncia de que natildeo satildeo os autores (com nome proacuteprio) mas os leitores anocircnimos os que fazem a literatura E essas ideias de infinito de eternidade de prolongamento in-terminaacutevel de arqueacutetipos estatildeo todas refletidas ainda na estrutura do texto

aacuterabe na qual temos um relato dentro de outro relato que pela sua vez nos leva a outro relato e tudo isso incluiacutedo num relato maior Labirintos ver-bais dos quais tanto gostava Borges E para abranger este prolongamento infinito de versotildees e relatos eacute possiacutevel usar uma metaacutefora dele mesmo ldquoSe llamaba el Libro de Arena porque ni el libro ni la arena tienen ni principio ni finrdquo (Borges 1991III p 69) As mil e uma noites seria o livro de areia E a analogia entre ambas as histoacuterias natildeo eacute forccedilada pois o personagem do rela-to esconde o livro de areia atraacutes dos seus exemplares de As mil e uma noites

Para Borges no referido ensaio a maacutegica e os sonhos satildeo inerentes agrave nossa ideia de Oriente e de As mil e uma noites a maacutegica entendi-da como uma causalidade diferente devida a objetos ou situaccedilotildees com poder particular (como no caso da famosa lacircmpada e seu gecircnio) e os sonhos pensados como uma revelaccedilatildeo de outra realidade outra reali-dade que pode ser a literaacuteria que pode ser a realidade (como no caso jaacute referido de ldquoLos dos que sontildearonrdquo) E nessas afirmaccedilotildees sobre a maacutegica e os sonhos parecem estar as dicas para a leitura de um dos seus relatos mais importantes no qual aparece bem presente a compilaccedilatildeo aacuterabe

El sur conta a histoacuteria de Juan Dahlmann um homem culto bibliote-caacuterio que sofre um acidente enquanto estaacute lendo um raro exemplar de As mil e uma noites e deve ser internado num sanatoacuterio Estando ali ou depois de sair dali (o relato permite as duas leituras sonho ou realidade) ele vai ateacute seu siacutetio no interior da Argentina onde eacute forccedilado a entrar numa briga com faca com um homem ruacutestico que interrompe sua leitura da recopilaccedilatildeo oriental No desenlace o protagonista opta pela morte nessa briga ao estilo dos valentes gauacutechos O texto pode ser lido como uma alegoria da oposiccedilatildeo entre as letras e as armas ou entre a famiacutelia paterna alematilde e a famiacutelia mater-na argentina do personagem principal Mas o que me interessa natildeo eacute esse tipo de anaacutelise mas o fato de que o agir do personagem estaacute determinado de vaacuterias maneiras pela literatura ou seja pela leitura como ato fiacutesico e mental Ou em outras palavras pela magia e o sonho

Satildeo vaacuterios os momentos nos quais o relato anuncia este prolonga-mento ou transformaccedilatildeo da vida em literatura ndash fazendo da literatura um processo uma coisa viva uma atividade No niacutevel do fiacutesico (e do maacutegico) o primeiro personagem sofre o acidente que o leva ao sana-toacuterio e mais tarde eacute convidado agrave briga na taverna enquanto se encontra lendo As mil e uma noites Sua concentraccedilatildeo na leitura do texto aacuterabe eacute interrompida duas vezes pelo acidente e pelos homens na taverna e

nos dois casos a interrupccedilatildeo tem desenlace traacutegico Jaacute no plano mental (e do sonho) a leitura influencia a visatildeo de mundo do personagem com os pesadelos da convalescenccedila ateacute o ponto de permitir-lhe prolongar a vida (na realidade ou no sonho) como se fosse um relato Ou seja no final da vida o leitor decide ser personagem literaacuterio prolongando ou concretizando suas diversas leituras num ato A literatura a leitura aparecem como um prolongamento da vida de Juan Dalhmann assim como Sherazade prolongou sua vida contando relatos Eacute verdade que em El sur esse prolongamento acaba com a morte e que o modelo dessa morte eacute a literatura gauchesca mas soacute pela maacutegica ou pelo sonho da lei-tura eacute possiacutevel fazer essa escolha final Entatildeo esse leitor de As mil e uma noites decide se fazer relato ou em outras palavras dar vida agrave literatura

Satildeo vaacuterios os relatos borgianos nos quais a literatura eacute a origem da realidade como Tloumln Uqbar Orbis Tertius que conta a histoacuteria de um planeta criado partindo das descriccedilotildees de uma enciclopeacutedia Obviamente a ideia de El sur eacute mais modesta um homem decide morrer de maneira literaacuteria sua morte pode ser um sonho ou uma realidade tanto faz por-que os sonhos diz Borges satildeo mais reais que a vida E o mesmo entatildeo poderia ser dito da literatura Natildeo eacute casual que o personagem esteja len-do As mil e uma noites (nada na literatura de Borges ndash nem na vida ndash eacute casualidade) El Sur seria um novo relato da literatura gauchesca ou um conto sul-americano na compilaccedilatildeo oriental De qualquer jeito mais um paraacutegrafo dessa narrativa interminaacutevel e infinita que eacute a vida

No final noacutes somos uma narraccedilatildeo e nossa vida eacute soacute mais um re-lato das mil e uma noites das infinitas noites que satildeo a mesma noite Porque a literatura natildeo estaacute nas obras mas nos leitores nas lembranccedilas e projeccedilotildees com que vivemos dia apoacutes dia nas incontaacuteveis versotildees que satildeo feitas de relatos anteriores no relato que fazemos de noacutes mesmos chamado vida Somos a paacutegina de um livro de infinitos autores

REFEREcircNCIAS

BORGES Jorge Luis Obras completas Volumen I II III Buenos Aires Emeceacute Editores 1993

SARDEGNA Miguel ldquoLas mil y una noches de Robert Luis Stevensonrdquo In Revista Axololt Antildeo 3 nordm 18 Buenos Aires 2007 httprevistaaxolotlcomarotrassent18htm (Acesso em 21 de abril de 2013)

O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio

europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas

Joseacute Alberto Miranda Poza(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Apresentaccedilatildeo do Libro de Apolonio

Conforme Pablo Cabantildeas o Libro de Apolonio eacute uma das obras mais belas da literatura medieval espanhola constituindo ldquoun poema que sorprende al lector tanto por su teacutecnica casi perfecta como por su subyugante plasticidad narrativardquo (1998 p 9) Aproximar-se hoje agrave leitura do Libro de Apolonio supotildee intentar valorar as circunstacircncias histoacutericas em que foi escrito os coacutedigos culturais da eacutepoca em que seu autor se movia e mostrar o tipo de leitor-ouvinte para quem o poema foi composto (Corbella 1992)

Para comeccedilar do autor do texto natildeo sabemos nada embora exis-tam as informaccedilotildees que podem ser deduzidas a partir do proacuteprio texto Como afirma Uriacutea (2000 p 27) ldquoestamos ante un caso de anonimia absolutardquo Aleacutem disso natildeo devemos confundir em ecdoacutetica autor (do texto) com copista amanuense (do manuscrito) Nesse sentido o ma-nuscrito uacutenico conservado do Libro de Apolonio ndash Coacutedice Escurialense III-K-4 ndash eacute uma coacutepia com muitos erros e diferentes rasuras que afetam letras siacutelabas e palavras Pela grafia e algumas caracteriacutesticas linguiacutesti-cas a coacutepia eacute datada como sendo de 1390 e a liacutengua foi modernizada pelo copista Apresenta traccedilos do catalatildeo e do aragonecircs que comprome-tem o cocircmputo silaacutebico e o ritmo o que indica que esses traccedilos seriam do copista e natildeo do autor originaacuterio que escreveu em castelhano do seacuteculo XIII (Giroacuten Alconchel 2002)

Considerando as influecircncias latinas e gregas do texto podemos chegar agrave conclusatildeo conforme Alvar (1976 p 66) de que o autor era homem que possuiacutea uma grande cultura De fato numa passagem da obra ele caracteriza a figura de Apolocircnio como homem de letras

como intelectual com referecircncias a fontes culturais e literaacuterias da eacutepoca (Cabantildeas 1998 p 45)

Encerroacutese Apolonio en sus salas privadasdonde teniacutea escritos e historias comentadasleyoacute sus argumentos las hazantildeas pasadascaldeas y latinas tres veces repasadas

Conhecia a tradiccedilatildeo da Odisseia que comeccedila com Homero e vai ree-laborar-se nas novelas de viagens e aventuras da eacutepoca bizantina mas tam-beacutem conhecia a literatura em liacutengua latina que imitava alguns autores egreacute-gios Com todos esses elementos tatildeo variados o autor anocircnimo conseguiu criar sua obra original muito aleacutem da contingecircncia de um empreacutestimo

Pero nada surge de la nada la cultura es un lento quehacer Y la serie innu-merable de coautores del relato nos manifiesta la personalidad de cada uno de ellos [hellip] Al final tenemos un texto que es el resultado de otros muchos (Alvar 1976 p 67)

O autor portanto era homem de letras o que vale tanto como di-zer na eacutepoca cleacuterigo O cristianismo teve um papel essencial em todo Ocidente ao longo do medievo em especial para o que agora nos inte-ressa cabe ressaltar sua relevacircncia na transmissatildeo cultural conformou ndash para bem ou para mal ndash o pensamento e a vida social de toda a Europa Ocidental Por isso natildeo eacute estranho que a geografia arquitetocircnica nos ofe-reccedila inclusive atualmente a presenccedila constante de uma igreja em cada cidade ou aldeia cuja origem se encontra na inveterada tradiccedilatildeo que se deu ao longo de todo o medievo todas as cidades medievais possuiacuteam sua igreja e ao redor dela distribuiacutea-se o resto da populaccedilatildeo de onde surge por sua vez o conceito de paroacutequia Mas natildeo soacute as igrejas como lugar de culto e siacutembolo ideoloacutegico e aglutinador que presidia a vida social no incipiente meio urbano mas tambeacutem no campo no acircmbito rural os mos-teiros desenvolveram uma funccedilatildeo absolutamente primordial na histoacuteria da cultura Porque neles natildeo se ensinava apenas doutrina mas tambeacutem se conservavam e elaboravam (copiavam traduziam) textos de obras lite-raacuterias da Antiguidade (Miranda Poza 2011 p 163)

Os monges que conviviam no seio dos mosteiros eram submeti-dos a diversas regras como observar as horas destinadas agrave oraccedilatildeo agrave leitura e ao estudo das Sagradas Escrituras o cultivo do horto cuidar

dos doentes mas muito em especial desenvolviam o ingente labor de copiar no scriptorium da biblioteca do mosteiro manuscritos em latim e no percurso do tempo tambeacutem em liacutenguas romacircnicas A conhecida obra de Umberto Eco O nome da rosa constitui um magniacutefico exemplo de reconstruccedilatildeo da vida daqueles monges naqueles mosteiros medie-vais Contudo como jaacute indicamos em outro lugar (Miranda Poza 2007 p 124) o vocaacutebulo ldquoclereciacuteardquo nem sempre designava de forma exclusiva o acircmbito religioso Cleacuterigo no medievo designava o homem letrado estudioso embora a maior parte entre os que estudavam fosse efetiva-mente religiosa

Nesse sentido duas anotaccedilotildees devem ser feitas A primeira com re-laccedilatildeo ao tiacutetulo do livro Como a maior parte dos escritos dos seacuteculos XIII e XIV no tiacutetulo aparece o termo ldquolivrordquo cujo sentido natildeo era apenas ldquovo-lume formado por folhas de papel ou vitelardquo mas tambeacutem apresentava o significado de ldquomarco ordenador de certo conteuacutedo textualrdquo O poeta ainda diz que quer componer un romance de nueva maestria (Cabantildeas 1998 p 41) onde ldquoromancerdquo significaria natildeo soacute ldquopoema natildeo latinordquo mas ldquotexto de verossimilitude natildeo histoacuterica com desenvolvimento argumen-tativo e literaacuteriordquo em outras palavras de ficccedilatildeo (Michael 1986 p 510) A segunda das anotaccedilotildees faz referecircncia agrave expressatildeo ldquonueva maestriacuteardquo Com efeito o texto pertence a um novo gecircnero na poesia peninsular medieval em liacutengua neolatina o Mester de Clereciacutea Aproximadamente desde comeccedilos do seacuteculo XIII ateacute finais do seacuteculo XIV surgiram em Castela uma seacuterie de obras escritas total ou parcialmente em estrofes de quatro versos alexandrinos (de 14 siacutelabas no cocircmputo hispacircnico e 12 no cocircmputo portuguecircs-francecircs) com rima consoante e uma cesura ou pausa na metade do verso (respectivamente na seacutetima ou sexta siacutela-ba conforme o cocircmputo meacutetrico de referecircncia)6 Uma nova forma que caracteriza uma nova poesia A primeira obra que apresenta esta nova forma de poesia este novo ofiacutecio esta nova arte (ou mester) foi a versatildeo

6 Haacute uma diferenccedila como podemos apreciar na meacutetrica das tradiccedilotildees espanhola e por-tuguesa Na tradiccedilatildeo espanhola todo verso que termina em palavra oxiacutetona acrescenta uma siacutelaba no cocircmputo Destarte natildeo haacute por exemplo versos monossiacutelabos na meacutetrica espanhola porque todo monossiacutelabo eacute forccedilosamente tocircnico oxiacutetono com valor meacutetri-co duplo (Masip 2002 p 58) Por sua vez a meacutetrica portuguesa apenas toma em conta na uacuteltima palavra do verso a uacuteltima siacutelaba tocircnica de forma que um verso acabado em voz paroxiacutetona contaria com uma siacutelaba a menos do que na tradiccedilatildeo meacutetrica espanhola

castelhana do Libro de Alexandre obra anocircnima do seacuteculo XIII anterior ao Libro de Apolonio que copiava reproduzia ou recriava o Roman de Alexandre francecircs Para Goacutemez Moreno (1984) confrontando o proacutelogo do Libro de Alexandre com os de outras obras principalmente francesas clereciacutea significava entre os poetas do seacuteculo XIII ldquomoralidaderdquo mais ldquoverdade histoacutericardquo mais ldquocapacidade de traduccedilatildeordquo mais ldquoconhecimento das artes meacutetricasrdquo Os primeiros versos do texto que fundava o novo gecircnero contecircm a definiccedilatildeo formal da cuaderna viacutea que caracterizaraacute o movimento (Cantildeas Murillo 1983 p 85)

Mester traygo fermoso non es de joglariacuteaMester es sen pecado ca es de clereciacuteaFablar curso rimado por la quaderna viaA siacutellabas cunctadas ca es grand maestria

A estrofe eacute composta por versos alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas conforme o tipo de contagem) que se repetem regularmente na estro-fe de quatro versos divididos em duas partes simeacutetricas denominadas hemistiacutequios que constam de 7 (ou 6) siacutelabas cada um7 No primeiro hemistiacutequio para manter o ritmo do verso aparece um acento secundaacute-rio na sexta siacutelaba (uacuteltima na contagem portuguesa) de forma paralela ao que ocorre no segundo hemistiacutequio (Masip 2002 p 88) A cesura se manifesta na declamaccedilatildeo por uma breve pausa e nas ediccedilotildees criacuteticas ou filoloacutegicas eacute comum o costume de reproduzir um espaccedilo em branco en-tre os dois hemistiacutequios apoacutes a cesura conforme se mostra no esquema a seguir (Miranda Poza 2007 p 125)

7 O professor Vicente Masip (2002 p 65-66) define os versos alexandrinos dentro da epiacutegrafe correspondente aos tetradecassiacutelabos espanhoacuteis (tridecassiacutelabos portu-gueses) com estas palavras ldquoPoseen catorce siacutelabas meacutetricas en espantildeol y doce en portugueacutes distribuidas en dos hemistiquios de siete (seis en portugueacutes) Se llaman asiacute debido al Roman dacuteAlexandre poema franceacutes de la segunda mitad del siglo XIII usado por el autor del Libro de Alexandre espantildeol del siglo XIII El verso alejandrino fue usado por los poetas cultos del ldquoMester de Clereciacuteardquo durante los siglos XIII y XIV con el objetivo de oponer una forma regular de ldquosiacutelabas contadasrdquo a la irregularidad meacutetrica de los trovadores populares del ldquoMester de Juglariacuteardquo Este tipo de verso fue abandonado a partir del siglo XVI (exceptuando el famoso soneto a la Santiacutesima Virgen Mariacutea de Pedro Espinosa [1578-1650]) y soacutelo fue retomado en el siglo XVIII convirtieacutendose raacutepidamente en metro preferido de los romaacutenticos junto con el ende-casiacutelabo (decassiacutelabo portuguecircs)rdquo

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute acuteMes ter tray go fer mo so non es de jo gla riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteMes ter es sen pe ca do ca es de cle re ciacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteFa blar cur so ri ma do por la qua der na viacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteA siacute lla bas cunc ta das ca es grand ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Observemos como as estrofes de ldquonueva maestriardquo do Libro de Apolonio reproduzem exatamente o mesmo esquema formal8

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute (+ 1) acuteEn el nom bre de Dios τ de San ta Ma riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutesi e llos me gui a ssen es tu di ar que rriacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutecon po ner hun ro man ccedile de nue ua ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutedel Buen rey A po lo nio τ de su cor te siacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

8 Aos efeitos de contagem de siacutelabas tomamos como referecircncia na ocasiatildeo a ediccedilatildeo filoloacutegica mais fiel ao original de Dolores Corbella (1992 p 71)

Cabe perguntar-se agora uma vez abordada a caracterizaccedilatildeo do texto no que tange aos aspectos formais sobre a originalidade do autor no con-texto medieval descrito acima A intertextualidade eacute inevitaacutevel Primeiro em termos gerais como indicam Todorov (1972 p 28) ldquotodo lo nuevo en literatura no es sino material antiguo vuelto a forjarrdquo ou Claudio Guilleacuten (1985 p 220) ldquono hay literatura sin aceptacioacuten realizacioacuten transforma-cioacuten o transgresioacuten de unos modelos arquetiacutepicosrdquo Com efeito aleacutem do recurso retoacuterico agrave verossimilitude que faz o proacuteprio autor ao longo do texto ndash miradlo en la historia si a miacute no me creeacuteis (Cabantildeas 1998 p 94) ndash na literatura medieval se parte de outro conceito de literalidade diferente do que hoje temos De fato De Bruyne (1988 p 15) afirma

No se debe esperar que la Edad Media aporte definiciones nuevas u origi-nales los medievales [hellip] se dan por satisfechos con lo que encuentran en los textos antiguos pues [hellip] eacutestos no soacutelo transmiten el pensamiento de los Antiguos sino que son la evidencia del sentido comuacuten que es tambieacuten el buen sentido

Na Idade Meacutedia o texto singular responde a uma alteridade o que faz que ele esteja sempre definido em relaccedilatildeo aos demais onde eacute tatildeo importan-te a assimilaccedilatildeo quanto a transformaccedilatildeo a imitaccedilatildeo quanto a originalidade (Corbella 1992) Nesse contexto histoacuterico-cultural o medievo eacute uma ldquocul-tura textualizadardquo (Lotman 1979 p 26-27) onde eacute tatildeo real o mundo das coisas como o mundo dos signos a realidade vivida como a lida

2 Conteuacutedo do Livro de Apolonio A histoacuteria de Apolocircnio rei de Tiro

O professor Pablo Cabantildeas (1998 p 15-30) descreve de forma cer-teira o prolixo argumento do Libro de Apolonio estabelecendo ateacute sete partes diferenciadas entrelaccediladas atraveacutes de haacutebeis estrofes de transi-ccedilatildeo que conduzem o leitor-ouvinte pela conturbada histoacuteria dos prota-gonistas da trama embora no corpo do texto natildeo exista nenhuma divi-satildeo formal da primeira linha do manuscrito ateacute a uacuteltima Natildeo em vatildeo o argumento da obra responde a uma estrutura semelhante agrave novela bizantina gecircnero equivalente durante as centuacuterias medievais ao que em nossos dias poderia representar uma novela de aventuras cujo remoto precedente se encontra naquela (Alborg 1997 p132) Essas estrofes de

transiccedilatildeo asseguram a coerecircncia textual e ajudam o leitor no acompa-nhamento da trama Apenas dois exemplos

Pero del Rey Antioco quiero dejar de hablarquiero la narracioacuten a Apolonio tornarEn Tarso lo dejamos debemos recordar (Cabantildeas 1998 p 50)

Dejemos a la dama guarde su monasteriosirva su iglesia y rece los salmos del salterioVolvamos a Apolonio con nuestro ministeriollevoacute en las aventuras un infortunio serio (Cabantildeas 1998 p 88)

O resumo do argumento poderia ser o seguinte

[I] Antiacuteoco rei da Antioquia fica viuacutevo e acaba dormindo com sua proacutepria filha Uma mulher aconselha agrave filha que oculte o pecado Procurada como futura esposa por priacutencipes vizinhos o rei consegue manter a situaccedilatildeo sem ser revelada mediante um ardil (ldquodo diabordquo) pro-potildee aos postulantes a resoluccedilatildeo de um enigma Se natildeo adivinhassem a resposta certa seriam decapitados como de fato aconteceu com alguns pretendentes Ateacute que chegou Apolocircnio rei de Tiro que daacute com a res-posta certa que esconde a vergonha mas o rei Antiacuteoco diz que essa res-posta eacute uma grande afronta poreacutem lhe outorga alguns dias para buscar uma nova soluccedilatildeo Apolocircnio sabendo que ele estaacute certo foge com medo de ser executado e em natildeo havendo outra resposta possiacutevel ao enigma comeccedila assim o peacuteriplo aventureiro

[II] Antiacuteoco fica irado com a fugida de Apolocircnio e envia a Tiro um criado para assassinaacute-lo mas Apolocircnio jaacute tinha fugido a Tarso com criados e provisotildees

[III] Apolocircnio se estabelece em Tarso salvando a cidade da pobre-za com o que consegue a gratidatildeo dos moradores Mas temeroso de Antiacuteoco parte para Pentapolin Ocorre um temporal Apenas ele conse-gue se salvar chegando agarrado a uma tabua ateacute a praia onde eacute resgata-do por um pescador que o acolhe compartilhando o pouco que ele tem Recuperado Apolocircnio vai ateacute a cidade e joga bola com outros jovens

destacando-se no jogo pela sua classe e habilidade no que eacute advertido pelo rei Architrastes o qual o convida a jantar No jantar conhece a filha do rei Luciana que toca admiravelmente para ele Apolocircnio seraacute o fu-turo mestre da filha e pouco depois seu marido Com Luciana graacutevida chegam notiacutecias da morte de Antiacuteoco e da filha dele pelo qual Apolocircnio prepara uma viagem para recuperar o reino de Antioquia Luciana o acompanha apesar de seu estado O parto se adianta por causa da via-gem e morre (aparentemente) no parto O corpo eacute jogado ao mar apesar da oposiccedilatildeo de Apolocircnio pela supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo conveniente e ricamente disposto num caixatildeo com instruccedilotildees para seu enterro caso chegasse porventura ateacute terra firme

[IV] Com efeito o caixatildeo chega ateacute Eacutefeso descoberto na praia por um meacutedico que com a ajuda do seu assistente consegue reviver a dama Uma vez de volta agrave vida Luciana manda construir um mosteiro onde serviraacute a Deus

[V] Apolocircnio abalado pela perda da sua esposa volta a Tarso Natildeo se daacute a conhecer Pede a Estrangilo que cuide da sua filha Tarsiana pois ele vai morar no Egito

[VI] Morto Estrangilo Dioniacutesia a esposa dele manda matar Tarsiana para favorecer a proacutepria filha Fracassa porque no momento da tentativa de execuccedilatildeo chegam uns ladrotildees que raptam Tarsiana e a levam para ser vendida no mercado Eacute vendida a um proxeneta mas o primeiro cliente Antinaacutegona o senhor da cidade eacute convencido pelo rogo da donzela para natildeo maculaacute-la Posteriormente isso mesmo acon-teceraacute com os sucessivos clientes que seratildeo convencidos pela beleza do seu canto tendo sempre a proteccedilatildeo de Antiacutegona que juraraacute amor pater-no por ela

[VII] Volta Apolocircnio para ter notiacutecias da sua filha Dioniacutesia lhe diz que ela morreu mas as laacutegrimas do heroacutei natildeo brotam diante do falso tuacutemulo Embarca em direccedilatildeo a Tiro na sua busca Antinaacutegora visita o navio de Apolocircnio que natildeo participa da festa de recepccedilatildeo e fica isola-do no seu camarote Para tentar consolar Apolocircnio Antinaacutegora chama Tarsiana Depois de longa conversa entre os dois Apolocircnio descobre

que se trata realmente da sua filha Felicidade Consente o casamento dela com Antinaacutegora Feito o casoacuterio Apolocircnio planeja visitar Tarso e voltar a Tiro mas uma apariccedilatildeo em sonhos lhe aconselha ir ateacute Eacutefeso no templo que dizem de Diana A abadessa eacute realmente Luciana Apolocircnio recupera seu reino e mostra sua generosidade com quem lhe ajudou O final do texto eacute de teor claramente moralizante fugacidade das coisas do mundo terrestre caducidade da vida e solicitaccedilatildeo da graccedila e da miseri-coacuterdia de Deus

3 Fontes primaacuterias do Libro de Apolonio

Cerca de 100 manuscritos satildeo os textos conservados sobre a his-toacuteria de Apolocircnio alguns deles de tradiccedilatildeo claacutessica latina nos quais se falava da incineraccedilatildeo praacutetica abandonada paulatinamente no mundo ocidental a partir do seacuteculo IV quando o Cristianismo se converteu em religiatildeo oficial Aparecem tambeacutem contiacutenuos elementos pagatildeos como invocaccedilotildees a Netuno alusotildees a Apolo e a esposa de Apolocircnio aguarda sua chegada no templo de Diana Fala-se entatildeo em ecdoacutetica da exis-tecircncia do hipertexto datado no seacuteculo V ou VI a partir do qual se for-maram cinco ramos ou versotildees gerais

bullA Historia Apollonii Regis Tyri

bullA Gesta Apollonii Regis Tyri metrica

bullO Phanteon de Godofredo de Viterbo em versos latinos escrito entre 1186 e 1191 espeacutecie de histoacuteria universal na qual se inclui ao lado de outros relatos a histoacuteria de Apolocircnio

bullA Gesta Romanorum que inclui no capiacutetulo 153 a histoacuteria de Apolocircnio De tribulatione temporali que in gaudium sempiternum postremo commutabitur

bullOs Carmina Burana breve texto poeacutetico latino de comeccedilos do seacuteculo XIII onde Apolocircnio narra sumariamente em seis estrofes as aventuras da sua vida

Mas natildeo soacute devemos tomar em conta suas origens latinas A per-meabilidade da cultura claacutessica permite supor a existecircncia preacutevia de

um texto ainda mais antigo que remontaria agrave eacutepoca helecircnica (Corbella 1992 p 27) Com efeito foram achados paralelismos entre a histoacuteria de Apolocircnio e algumas obras de Xenofonte aleacutem claro eacute do inequiacutevoco caraacuteter odisseico acima evocado tanto pela estrutura do poema quanto pelos numerosos topoi que depois seratildeo conservados e repetidos ao lon-go dos seacuteculos Poreacutem a histoacuteria natildeo copia a Odisseia mas tem temas que satildeo dela situaccedilotildees que procedem de velhos peacuteriplos a caminho de Iacutetaca e isso cria um clima que eacute impossiacutevel negar

Contudo pense-se na caracterizaccedilatildeo que no Libro de Apolonio eacute dada ao protagonista tratado como um heroacutei mas ao mesmo tempo como um perfeito cavaleiro que em palavras de Manuel Alvar (1989 p 51 63) ldquoparticipa de una postura espiritual que es goacuteticardquo ldquoApolonio presenta esa otra faz del siglo XIII en la que el hombre se preocupa por el hombre en la que se siente atraiacutedo por los problemas de su realidad y su tiempordquo

Portanto quanto agrave originalidade do texto podemos dizer que o fato da trama novelesca natildeo ser outra coisa do que uma seacuterie de possiacuteveis lugares comuns natildeo afeta a proacutepria existecircncia do relato Certo eacute que cada um dos episoacutedios do texto pode ter um antecedente ou uma rela-ccedilatildeo com motivos mais ou menos difundidos mas o que temos diante dos nossos olhos eacute uma criatura iacutempar e singular Um caso egreacutegio da literatura espanhola o Lazarillo de Tormes tambeacutem natildeo apareceu do nada contos proveacuterbios tipos situaccedilotildees Mas Alvar pergunta eacute apenas isso o Lazarillo

En verdad que puede parecer postiza la historia de Antioco que los temas del incesto abundan por doquier que la compra de doncellas por rufianes explotadores no es nunca novedad [hellip] pero nada de ello sirve para explicar la Historia Apollonii mucho menos para entender la naturaleza poeacutetica del Libro espantildeol y su encanto (Alvar 1976 p 47)

4 A intertextualidade no Libro de Apolonio

41 A tradiccedilatildeo grega

Artiles (1976 p 15) como outros criacuteticos jaacute mencionados como Alborg (1997) afirmava que o Libro de Apolonio ldquoes una novela bizan-tina versificada metida en caacutenones de cuaderna viacuteardquo E efetivamente como ocorre nas novelas gregas deste gecircnero o poema mistura elemen-tos da literatura sentimental e novelesca amores impossiacuteveis e viagens tempestuosas perdas e reencontros

O mar seraacute a evasatildeo de previsiacuteveis males ou representaraacute o senti-mento de vontade de aventuras Assim raciocina Apolocircnio quando de-cide sair de Tiro e adentrar o mar aventurando-se no desconhecido nos misteacuterios e expondo-se a eventuais perigos longe da tranquilidade que lhe proporcionava seu reino (Cabantildeas 1998 p 59)

Viviacutea en mi reino regalado y honradono conociacutea penas viviacutea descansadoteniacuteame por torpe y por menoscabadoporque por muchas tierras no habiacutea viajado

No diaacutelogo platocircnico Feacutedon fala-se dos misteacuterios que os heroacuteis dos relatos lendaacuterios natildeo souberam acatar e por isso seguiram os caminhos da dor (Alvar 1976 p 49)

oὐ μέντοι rsquoαλλὰ τόδε γέ τίς μοι δοκεῖ ὡ Κέβης εὖ λέγεσθαι τὸ θεους εἰναι ἡμῶν τοὺς ἐπιμελουμενους καὶ ἡμας τοὺς ἀνθρώπους ἐν τῶν κτημάτων τοὶς θεοῖς εἶναι [Aquilo dos misteacuterios de que noacutes homens nos encontra-mos numa espeacutecie de caacutercere que nos eacute vedado abrir para escapar Uma coisa pelo menos Cebete me parece bem enunciada que os deuses satildeo nos-sos guardiotildees e noacutes homens propriedade deles]9

Agrave tradiccedilatildeo da Odisseia responde o relato autobiograacutefico dos heroacuteis Surgem as aventuras e desventuras dos protagonistas tanto no Libro como nas novelas gregas Haacute muito tempo que foi dito que as nove-las gregas satildeo uma espeacutecie de sequecircncias cinematograacuteficas (Rattenbury 1935 pp XXII e XCII) que nos conduzem de um cenaacuterio para outro de

9 Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico Feacutedon Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia)

aventura em aventura e noacutes ndash simples espectadores ndash corremos atraacutes da dor dos heroacuteis Mas aleacutem disso a vida dos protagonistas eacute a muacutesica ambiente que faz vibrar as estrofes do Libro ou move a compaixatildeo dos leitores natildeo eacute a vida como peripeacutecia mas a autobiografia contemplada como passado remoto que move o leitor numa identificaccedilatildeo de simpa-tia ateacute aqueles heroacuteis golpeados pelo destino

Tambeacutem como na Odisseia no Libro de Apolonio os companheiros do heroacutei morrem e apenas ele se salva e consegue chegar agrave praia agarra-do numa tabua

Libro de Apolonio Odisseia

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echarDe vestido y calzado pobre estaba al llegara Pentapolin tierra donde hubo de arribar

ἧος ὁ ταῦθ᾽ ὣρμαινε κατὰ φρέναα καὶ κατὰ θυμὁνὧρσε δ᾽ ἐπὶ μέγα κῦμα Ποσειδάων ἐνοχθωνδεινόν τ᾽ ἀργαλέον τε κατηρεφές ἤλασε δ᾽ αὐτόνὡς δ᾽ ἄνεμος ζαης ἠἲων θημῶνα τινάξῃκαρφαλέων τὰ μὲν ἂρ τε διεσκέδασ᾽ ἂλλυδις ἂλλῃὥς τῆς δούρατα μακρὰ διεσκέδασ᾽ αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςἀμφ᾽ ένὶ δούρατι βαῖνε κέληθ᾽ ώς ἵππον ἐλαύνων

Fez surgir logo Posido que a terra sa-code uma vaga cheia de grandes peri-gos que se arca e sobre ele desaba Bem como vento impetuoso que monte de palha desmancha para levaacute-lo em re-moinho de um lado para outro desfeito dessa maneira o mar forte os pranchotildees espalhou Odisseu monta num deles tal como se fosse cavalo de pista

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 57) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 V vv 365-372) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 108)

Como Apolocircnio quando natildeo tem roupas adequadas para entrar no palaacutecio de Archistrastes Ulisses ataviado pobremente tambeacutem fica no umbral da sua proacutepria casa

Libro de Apolonio Odisseia

Apolonio por miedo de la Corte enojarno teniacutea vestido nada con que adornarno quiso de verguumlenza en el palacio entrarretornoacute hasta la puerta y comenzoacute a llorar

ἀγχίμολον δὲ μετ᾽ αὐτὸν ἐδύσετο δώματ᾽ [Ὀδυσσεύςπτωχῷ λευγαλέω ἐναλίκιος ἠδὲ γέροντισκηπτόμενος τὰ δὲ λυγρὰ περὶ εἴματα ἓστοἷζε δ᾽ ἐπὶ μελίνου οὐδοῦ ἔντοσθε θυράωνκλινάμενος σταθμω κυπαρισσίνω ὃν ποτε τέκτωνξέσσεν ἐπισταμένως καὶ ἐπὶ στάθμην ἴθυνην

[Entra na sala depois do porqueiro o divino Odisseu desfigurado num velho pedinte de miacutesero aspecto num pau firmado cobrindo-lhe o corpo uns andrajos trazia Sobre a soleira de freixo da porta de dentro assentando-se no umbral o corpo encostou de cipreste que o artiacutefice outrora com muito engenho lavrara tomando as medidas com fio]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 63) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XVII vv 336-341) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 297)

Como na Odisseia a muacutesica serve para envolver o relato das aven-turas dos heroacuteis Assim Demoacutedoco o aedo movido por um impulso di-vino faz chorar a Ulisses pelo qual Alciacutenoo decide suspender seu can-to para natildeo perturbar o convidado Paralelamente no Libro Apolocircnio chora de pena e natildeo se deleita diferentemente dos presentes com os cantos de Luciana filha de Architrastes

Libro de Apolonio Odisseia

Comenzoacute Apolonio de suspiros cargadodijo toda su pena por lo que hubo pasadodoacutende estaacuten tierra y reino coacutemo era llamadobien lo escuchoacute la dama teniendo gran agrado

Los altos y los bajos todos de ella deciacuteanLa dama y la vihuela tan bien se sucediacuteanque lo tienen a hazantildea todos los que lo oiacuteanHizo otros ejercicios que mucho maacutes valiacutean

Alabaacutendola todos Apolonio callabaPensando estuvo el rey por queacute eacutel no hablabaLe preguntoacute y le dijo que se maravillabaque con todos los otros tan mal de acuerdo [estaba

ταῦτ᾿ ἂρ᾿ ἀοιδὸς ἂειδε περικλυτός αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςτήκετο δάκρυ δ᾿ ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάςὡς δὲ γυνή κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσαὁς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσινἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἧμαρ

ldquoκέκλυτε Φαιήκων ἡμήτορες ἠδὲ μέδοντεςΔημόδοκος δ᾿ ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειανοὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ᾿ ἀείδει

[Isso narrava o famoso cantor Odisseu entrementes liquefa-zia-se em laacutegrimas tendo ba-nhadas as faces como mulher abraccedilada no corpo do caro ma-rido que sucumbisse a lutar jun-to aos muros e seus moradores a defendecirc-la e a seus filhos da sorte do dia impiedoso [] Pare portanto o cantor porque ale-gres fiquemos noacutes todos]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 66-67) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 521-525) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 536-538) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 150-151)

Apolocircnio enfim comeccedila sua peregrinaccedilatildeo por terras de Egito da mesma forma que no relato eacutepico de Homero tambeacutem Ulisses dirige suas naves ateacute o Egito

Libro de Apolonio Odisseia

laquoTe encomiendo la hija te la doy a criarcon su ama Licoacuterides que la sabraacute guardarno quiero los cabellos ni las untildeas cortarhasta que casamiento bueno le pueda dar

laquoHasta que yo esto pueda cumplir y prepararel reino de Antioco yo le quiero dejarAhora ni en Pentapolin ni en Tiro quiero entrarIreacute hasta Egipto donde quiero mientras estarraquo

μῆνα γὰρ οἷον ἔμεινα τεταρπόμενος τεκέεσσινκουριδίῃ τ᾽ ἀλόχω καὶ κτήμασιν αὐτὰρ ἔπειταΑἴγυπτὸνδε με θυμὸς ἀνώγει ναυτίλλεσθαι

[Um mecircs somente fiquei deleitando-me ao lado dos filhos da que esposei quando virgem pois logo depois de algum tempo me manda o peito viajar outra vez para o Egito distante]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 91) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XIV vv 244-246) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 244)

42 A tradiccedilatildeo latina

Como no caso da grega a tradiccedilatildeo latina se faz presente em diversas pas-sagens do Libro de Apolonio Jaacute foi dito que a muacutesica e quem a interpreta o vate as habilidades musicais em geral satildeo traccedilos positivos caracterizadores do heroacutei Isso mesmo se narra na tradiccedilatildeo claacutessica latina dentre outros na fi-gura de Oviacutedio Nas Tristia ele mesmo se apresenta para a posteridade como poeta relevante na introduccedilatildeo agrave sua obra (Oviacutedio 1997 p 66) Ille ego qui fuerim tenerorum lusor amorum Quem legis ut noris accipe posteritas10

Natildeo resulta estranho portanto que Apolocircnio chegue a ser compa-rado pelo autor do Libro com o poeta Orfeu um dos grandes mitos da tradiccedilatildeo claacutessica (Cabantildeas 1998 p 68)

Todos por una boca deciacutean y afirmabanque ni Apolo ni Orfeo mejor que eacuteste tocabanel cantar de la dama al que mucho alababanante eacuteste de Apolonio en nada lo apreciaban

Com efeito nas Metamorfoses Oviacutedio narra a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Receacutem-casada a jovem Euriacutedice eacute mordida por uma cobra

10 ldquoVem conhecer posteridade o poeta que fui De amores ternos o poeta que ora lecircsrdquo (Oviacutedio 1997 p 67) ldquoSabei oacute Posteridade para que me conheccedilas que sou aquele que fui cantor dos ternos amores que lecircsrdquo (Naso 1952 p173)

e morre Nam nupta per herbas dum noua Naiadum turba comitata uagatur occidit im talum serpentis dente recepto (Ovidio Nasoacuten 1994 p171)11 Depois de chorar a morte da amada no mundo terreno o excel-so poeta decide descer ao Estige e consegue convencer Perseacutefone atra-veacutes do seu belo canto e suas doces palavras para devolver Euriacutedice ao mundo dos mortais Quem satis ad superas postquam Rhodopeiumlus auras defleuit uates ne non temptaret et umbras ad Styga Taenaria est ausus descendere porta (Ovidio Nasoacuten 1994 p 171)12 Comovidos os deuses das trevas concedem o pedido do vate

Talia dicentem neruosque ad uerba mouentemexsangues flebant animae []Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama estEumenidum maduisse genas nec regia coniuxsustinet oranti nec qui regit ima negareEurydicenque uocant13

(Ovidio Nasoacuten 1994 p173)

Poreacutem a libertaccedilatildeo eacute concedida sob uma condiccedilatildeo natildeo voltar os olhos para a amada ateacute sair do Averno Hanc simul et legem Rhodopeiumlus accipit Orpheus ne flectat retro sua lumina donet Auernas exierit ual-les aut irrita dona futura (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)14 Quando che-gavam no limite dos dois mundos temeroso de que ela pudesse enfra-quecer Orfeu voltou seu rosto para Euriacutedice e no mesmo instante ela caiu no abismo Nec procul afuerunt telluris margine summae hic ne deficeret metuens auidusque uidendi flexit amans oacuteculos et protinus illa relapsa est (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)15 Portanto o canto de Apolocircnio

11 ldquoEuriacutedice pouco depois do casamento quando passeava com as ninfas suas compa-nheiras [] pisou em uma cobra foi mordida no peacute e morreurdquo (Bulfinch 2001 p 224)

12 ldquoOrfeu cantou seu pesar para todos quantos respiram na atmosfera superior deuses e homens e nada conseguindo resolveu procurar a esposa na regiatildeo dos mortos Desceu por uma gruta situada ao lado do promontoacuterio de Teacutenaro e chegou ao reino do Estigerdquo (Bulfinch 2001 p 224-226)

13 ldquoEnquanto cantava estas ternas palavras os proacuteprios fantasmas derramavam laacutegri-mas [] Entatildeo pela primeira vez segundo se diz as faces das Fuacuterias umedeceram-se de laacutegrimas Proseacuterpina natildeo pocircde resistir e o proacuteprio Plutatildeo cedeu Euriacutedice foi cha-madardquo (Bulfinch 2001 p 226)

14 ldquoOrfeu teve permissatildeo de levaacute-la consigo com uma condiccedilatildeo a de que natildeo se voltaria para olhaacute-la enquanto natildeo tivessem chegado agrave atmosfera superiorrdquo (Bulfinch 2001 p 226)

15 ldquoateacute quase atingirem as risonhas regiotildees do mundo superior quando Orfeu num momento de esquecimento para certificar-se de que Euriacutedice o estava seguindo olhou para traacutes e Euriacutedice foi entatildeo arrebatadardquo (Bulfinch 2001 p 226)

eacute aqui comparado com a excelecircncia do famoso poeta que foi capaz de comover ateacute as divindades das trevas

Outro episoacutedio do Libro nos aproxima da mitologia claacutessica Quando viacutetima do naufraacutegio pobre e exausto Apolocircnio eacute hospedado por um hu-milde pescador que vai compartilhar com ele o pouco que tem o heroacutei pro-mete recompensaacute-lo no futuro pela sua boa accedilatildeo (Cabantildeas 1998 p 58-59)

El rey con gran verguumlenza porque pobre estuvierafue hacia el pescador salioacutele a la esperalaquomdashiexclDios te salve mdashle dijo como cosa primeraRespondioacute el pescador de sabrosa maneralaquomdashAmigo mdashdijo el reymdash tuacute bien lo puedes verPobre y necesitado estoy no traigo haberAsiacute Dios te bendiga que te pueda placerque comprendas mi pena y la quieras saberlaquoTan pobre cual tuacute ves desnudo y desdichadode un buen reino soy rey muy rico y potentadode la ciudad de Tiro donde era muy amadodiacutecenme Apolonio por nombre sentildealadoraquoSu vestido partioacute maacutes tarde con su espadadio al rey la mitad lo llevoacute a su posadaLe dio de cenar cuanto pudo no escondioacute nadaPor un hueacutesped ninguna cena fue mejor dada

Tambeacutem nas Metamorfoses a histoacuteria de Filecircmon e Baucis pode re-presentar perfeitamente um antecedente textual deste episoacutedio Filecircmon eacute um velho camponecircs marido de Baucis que recebeu junto com esta a visita de Juacutepiter que se apresentou de incoacutegnito na casa deles

Iuppiter hunc specie mortali cumque parenteuenit Atlantiades positis caduficer alis mille domos adiere locum requiemque petentesmille domos clausere serae tamen una recepitparua quidem stipulis et canna tecta palustrised pia Baucis anus parilique aetate Philemonilla sunt annis iuncti iuuenalibus16

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 120-121)

16 ldquoCerta vez Juacutepiter sob forma humana visitou a regiatildeo em companhia de Mercuacuterio (o do caduceu) sem suas asas Apresentaram-se como viajantes fatigados a muitas portas pro-curando abrigo e reposo mas encontraram todas fechadas Afinal uma moradia humil-de acolheu-os uma pequena choupana onde uma piedosa velha Baucis e seu marido Filecircmon unidos quando jovens haviam envelhecido juntosrdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

Uma vez revelada a sua verdadeira identidade ndash lsquodirsquo que lsquosumus meritasque luet uicina poenas inpiarsquo dixerunt lsquouobis inmunibus huius esse mali dabiturrsquo (Ovidio Nasoacuten 1994 p 123)17 o casal foi recom-pensado pelos deuses da mesma forma que aqueles que natildeo os recebe-ram adequadamente foram punidos e morreram afogados O pedido do casal aos deuses foi morrer no mesmo dia para nunca eles sentirem respectivamente falta do outro

lsquoDicite iuste senex et femina coniuge iustodigna quid optetisrsquo []lsquoet quoniam concordes egimus annosauferat hora duos eadem nec coniugis umquambusta meae uideam neu sim tumulandus ab illarsquo18

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 124)

No Libro de Apolonio por sua vez na parte final do poema o protago-nista tambeacutem recompensaraacute seu hoacutespede ricamente (Cabantildeas 1998 p 132)

Por todos los trabajos que le habiacutean venidono olvidoacute el convenio que habiacutea prometidorecordoacute al pescador que lo habiacutea acogidoel que hubo con eacutel el mantillo partidoDios que vive y reina tres y uno llamadodepare un tal hueacutesped a todo hombre cuitadobien haya tal hueacutesped cuerpo tan acordadoque tan buen galardoacuten da a un hospedado

43 Orientalismo

Vaacuterios satildeo os traccedilos que denunciam a influecircncia oriental no Libro de Apolonio Jaacute foi comentada acima a proximidade temaacutetica com rela-ccedilatildeo agrave literatura de aventuras os livros de viagens e a novela bizantina (Artiles 1976 Alborg 1997) Contudo algumas outras caracteriacutesticas acrescentam seu grau de intertextualidade com o mundo oriental

17 ldquondash Somos deuses Esta aldeia inospitaleira sofreraacute a pena de sua impiedaderdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

18 ldquomdash Excelente velho e tu mulher digna de tal marido dizei-me quais satildeo os vosso desejos Que favor quereis de noacutes [] E como passamos toda a nossa vida com amor e concoacuterdia desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida e que eu natildeo viva para ver o tuacutemulo de Baucis nem ela para ver o meurdquo (Bulfinch 2001 p 64)

O primeiro aspecto que merece destaque eacute sem duacutevida no arran-que da histoacuteria de Apolocircnio o enigma como ardil que os pretenden-tes devem resolver para desposarem a filha do rei Antiacuteoco (Cabantildeas 1998 p 43-44)

La verdura del ramo es como la raiacutezde carne de mi madre engrueso mi cervizAquel que adivinase este enigma felizeacutese tendriacutea la hija del rey emperatrizldquoTuacute eres la raiacutez tu hija el ramaltuacute pereces por ella en pecado mortalpues hereda la hija toda deuda carnalla cual tuacute y su madre teniacuteais comunalrdquo

Natildeo eacute contudo o uacutenico exemplo de adivinhaccedilatildeo ou enigma ao longo do poema De fato em outro momento destacado da obra quando o heroacutei descobre que Tarsiana eacute sua filha esta para entretecirc-lo traccedila uma seacuterie de adivinhaccedilotildees que Apolocircnio haveria de resolver (Cabantildeas 1998 p 113)

ldquomdashUnas pocas preguntas te quiero preguntarSi tuacute me las supieses en razoacuten contestarllevareacute la ganancia que me mandaste darsi no me respondieres quieacuterotela dejarldquoDime cuaacutel es la casa ndashpreguntoacute la criadandashque nunca se estaacute queda siempre anda laceradalos hueacutespedes son mudos da voces la posadaSi esto adivinases te quedareacute obligadardquoldquomdashEsto ndashdijo Apoloniondash yo lo voy ideandoel riacuteo es la casa que corre murmurandolos peces son los hueacutespedes que siempre estaacuten callandoEacutesta estaacute terminada ve otra preguntandordquo

As adivinhaccedilotildees satildeo conhecidas por todos os povos desde os pri-moacuterdios e no geral referem coisas comuns de faacutecil compreensatildeo pelo que apresentam um caraacuteter essencialmente popular Contudo sua ori-gem eacute oriental onde muitas vezes expressavam os mais elevados pen-samentos ldquolas maacutes antiguas que se conocen pertenecen a la eacutepoca ba-biloacutenica y aparecen escritas en tablillasrdquo (Rasero Chacoacuten 2004 p 227) Exemplos de adivinhaccedilotildees ou enigmas aparecem em textos biacuteblicos no Alcoratildeo na mitologia grega e nos manuscritos sacircnscritos

Capiacutetulo agrave parte merece a referecircncia sobre a lapidaccedilatildeo como cas-tigo imposto ao proxeneta ndash vino un hombre malo sentildeor de soldaderas pensoacute en ganar con eacutesta ganancias tan sentildeeras (Cabantildeas 1998 p 98) ndash que explorava Tarsiana

No quisieron el ruego poner en otro plazoremovioacutese el concejo como un santildeudo mazobuscaron al traidor echaacuteronle el lazomataacuteronlo con piedras cual rapaz de mal trazo (Cabantildeas 1998 p 122)

A praacutetica da lapidaccedilatildeo era habitual nas tradiccedilotildees preacutevias ao Alcoratildeo no Oriente e de comum aplicaccedilatildeo O primeiro maacutertir cristatildeo Satildeo Estevatildeo morreu lapidado Saulo de Tarso o futuro Satildeo Paulo dedicado na eacutepoca agrave perseguiccedilatildeo dos cristatildeos participou passivamente da lapi-daccedilatildeo observando a cena De fato na Biacuteblia as referecircncias a lapidaccedilotildees satildeo numerosas envolvendo quase sempre assuntos relacionados com atitudes haacutebitos e atividades sexuais

Se um homem se casa com uma mulher e apoacutes coabitar com ela comeccedila a detestaacute-la imputando-lhe atos vergonhosos e difamando-a publicamente dizendo ldquoCasei-me com esta mulher mas quando me aproximei dela natildeo encontrei os sinais da sua virgindaderdquo [] se a denuacutencia for verdadeira se natildeo acharem as provas da virgindade da jovem levaratildeo a jovem ateacute a por-ta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejaratildeo ateacute que morra (Deuteronocircmio 22 13-21)

Se houver uma jovem virgem prometida a um homem e um homem a encontra na cidade e se deita com ela trareis ambos agrave porta da cidade e os apedrejareis ateacute que morram a jovem por natildeo ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher do seu proacuteximo (Deuteronocircmio 22 23-24)

Iahweh falou a Moiseacutes e disse Tira fora do acampamento aquele que pronun-ciou a maldiccedilatildeo Todos aqueles que o ouviram poratildeo suas matildeos sobre a cabeccedila dele e toda a comunidade o apedrejaraacute (Leviacutetico 24 13-14)

Mais conhecido eacute o episoacutedio da mulher aduacuteltera (Joatildeo 8 3-11)

Os escribas e os fariseus trazem entatildeo uma mulher surpreendida em adul-teacuterio e colocando-a no meio dizem-lhe ldquoMestre esta mulher foi surpre-endida em flagrante delito de adulteacuterio Na Lei Moiseacutes nos ordena apedre-jar tais mulheres Tu pois que dizesrdquo [] Quem dentre voacutes estiver sem

pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra Eles ouvindo isso saiacuteram um apoacutes do outro a comeccedilar pelos mais velhos [] Entatildeo erguendo-se Jesus lhe disse ldquoMulher onde estatildeo eles Ningueacutem te condenourdquo Disse ela ldquoNingueacutem Senhorrdquo Disse entatildeo Jesus ldquoNem eu te condeno Vai e de agora em diante natildeo peques maisrdquo

Por fim um uacuteltimo traccedilo de orientalismo no texto de caraacuteter aber-tamente literaacuterio e muito mais claro e direto as referecircncias inequiacutevocas agraves Mil e uma noites Com efeito como Sherazade Tarsiana consegue no caso continuar virgem atraveacutes de suas habilidades musicais que con-vencem os homens que pagam para passar a noite com ela No texto oriental Sherazade contaraacute a seu marido o sultatildeo Shariar graccedilas a sua imaginaccedilatildeo desbordante a histoacuteria de Ali Babaacute e depois viratildeo outras igualmente fantaacutesticas durante mil e uma noites histoacuterias que ela deixa interrompidas quando amanhece para continuar na noite seguinte atre-lando-as a novas histoacuterias O sultatildeo absolutamente fascinado suspen-deraacute a execuccedilatildeo prevista ndash para evitar uma eventual traiccedilatildeo que tinha sofrido com outra mulher ndash jaacute que planejava a morte de uma virgem do seu hareacutem por dia (Riquer amp Valverde 1991 vol 3 p 65-66) No Libro de Apolonio satildeo narradas as habilidades de Tarsiana com os sucessivos clientes do bordel comeccedilando pelo primeiro deles que foi o senhor da cidade Antinaacutegora o qual pagou um alto preccedilo em troca da virgindade e que no final da obra acabaraacute sendo seu esposo

ldquoYo puedo por tu hecho perder ventura y hadocaeraacutes por mal cuerpo tuacute en mortal pecadoHombre eres de valor que estaacutes siempre encumbradosobre hueacuterfana pobre no hagas desaguisadordquo

ldquomdashDama bien entiendo esto que me deciacutesde buena parte sois de linaje veniacutesesta peticioacuten que vos a miacute pediacutesveacuteolo por derecho pues bien lo concluiacutes

ldquoEl precio que dariacutea para con vos pecaros lo quiero de gracia ofrecer y donarque si vos no pudiereis por el ruego escaparal que con vos entrare dadlo para apartar

ldquoSi vos con esta mantildea os podeacuteis defendermientras lo miacuteo durare no os faltaraacute haberrdquo (Cabantildeas 1998 p 100-101)

Tarsiana com o dinheiro de Antinaacutegora consegue convencer o proxeneta para ela aprender outro ofiacutecio de cantora trovadora e assim ele ficaria mais rico e ela honrada

ldquoSentildeor si de ti fuese lo que pido otorgadootro mester sabiacutea que es maacutes sin pecadoque es maacutes ganancioso y es maacutes honrado

ldquoSi tuacute me lo otorgas por la tu cortesiacuteaque me ponga en estudio de esa maestriacuteacuanto tuacute me pidieses yo tanto te dariacuteatuacute tendriacuteas ganancia y yo no pecariacuteardquo

Luego al otro diacutea casi de madrugadalevantoacutese la dama ricamente adornadatomoacute la viola buena y bien templaday salioacute al mercado a tocar por soldada

Tan bien supo la dama su cosa prepararque sabiacutea a su amo la ganancia aumentarRiendo y bromeando con el su buen mirarsuacutepose aunque nintildea del pecado apartar (Cabantildeas 1998 p 102-103)

Eis aqui portanto um exemplo de adaptaccedilatildeo medieval de um velho motivo oriental o que vai nos conduzir ateacute a seguinte epiacutegrafe os traccedilos de medievalismo no processo de recepccedilatildeo e transmissatildeo dos textos pagatildeos

5 O medievalismo do Libro de Apolonio originalidade imitaccedilatildeo adaptaccedilatildeo

Toda obra eacute filha do seu tempo O Libro de Apolonio como dito natildeo seraacute uma exceccedilatildeo A Idade Meacutedia foi um periacuteodo longo e conturbado es-pecialmente se considerarmos a encruzilhada representada pelo Ocidente frente ao Oriente no acircmbito da espiritualidade o Cristianismo frente ao Islam Mas antes de tudo havia uma forte cultura pagatilde de tradiccedilatildeo gre-co-romana aleacutem de muitas outras que depois com a volta do olhar para o homem no Renascimento ndash e ainda muito depois no Romantismo ndash retornaratildeo agraves versotildees originais longe de qualquer adaptaccedilatildeo

Nesse sentido a originalidade do texto radica em apresentar-nos uma tensatildeo entre o local a adaptaccedilatildeo agrave cultura castelhana e o universal a cultura e a lenda de tradiccedilatildeo claacutessica que inclui inequiacutevocos traccedilos orientais e pagatildeos Em outras palavras o medievo realizou uma adap-taccedilatildeo e imitaccedilatildeo de foacutermulas tipos e motivos que se repetiram por toda Europa e que representaram a reatualizaccedilatildeo de registros claacutessicos

O primeiro elemento caracterizador dessa adaptaccedilatildeo medieval como foi jaacute parcialmente apontado vem da matildeo da religiosidade e do imaginaacuterio cristatildeo Em palavras de Le Goff (1983 p 57)

Toda toma de conciencia en la Edad Media se hace por y a traveacutes de la religioacuten ndashen el plano de la espiritualidadndash Podriacutea definirse casi una mentalidad me-dieval por la imposibilidad de expresarse al margen de referencias religiosas

Assim por exemplo uma reinterpretaccedilatildeo das contiacutenuas viagens de Apolocircnio desde esta perspectiva do leitor medieval pode ser aleacutem do arqueacutetipo da dinacircmica da vida do exiacutelio voluntaacuterio a de entender a vida como um percurso ateacute a outra vida o Aleacutem Nesse sentido a pere-grinatio vitae eacute siacutembolo do cristianismo que potildee em evidecircncia o caraacuteter transitoacuterio de toda situaccedilatildeo

Mas jaacute em referecircncia direta ao texto se compararmos o poema es-panhol com a fonte latina que lhe serve como base a Historia Apollonii Regis Tyri surpreende de imediato a grande quantidade de referecircncias religiosas que observamos Com efeito o poema castelhano modifica o espiacuterito pagatildeo da Historia latina Manuel Alvar (1976 p 142) elaborou na sua ediccedilatildeo criacutetica um documentado estudo contendo de um lado as vozes que fazem referecircncia a costumes deuses festas ou crenccedilas pagatildeos (soacute como amostra ampulla uini Apollo Diana Neptunus sepulcrum templa) e do outro as vozes cristatildes correspondentes ndash natildeo necessaria-mente equivalentes das anteriores ermitantildeo santo cleacuterigos monasterio descomulgado pecado nintildea en pecado rayo del diablo etc

Sem entrar nos aspectos puramente leacutexicos jaacute estudados pelo pres-tigioso filoacutelogo espanhol seria bom mergulharmos nessas adaptaccedilotildees de caraacuteter religioso para uma melhor compreensatildeo da dimensatildeo ide-oloacutegica que este tipo de obra representava A primeira e mais eviden-te resulta da cristianizaccedilatildeo dos primeiros versos do poema (Cabantildeas 1998 p 41)

En el nombre de Dios y de Santa Mariacuteasi ellos me guiasen estudiar querriacuteacomponer un romance de nueva maestriacuteadel buen rey Apolonio y su cortesiacutea

Esses primeiros versos satildeo precisamente os que os poetas claacutessicos de-dicavam como invocaccedilatildeo agrave Musa fonte inspiradora como por exemplo para natildeo perder o fio de Homero na Iliacuteada (1965 p 59) Μῆνιν ἂειδε θεά Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος ουλομένην19 ou tambeacutem na Odisseia (1965 p 131) Ἀνδρα μοι ἔννεπε Μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ πλάγχθη20 E para concluir soacute neste primeiro instante podemos ir do Alfa ao Ocircmega isto eacute do iniacutecio ao teacutermino do Libro Laacute encontramos um final moralizante dentro da mais genuiacutena doutrina cristatilde (Cabantildeas 1998 p 135)

Muerto estaacute Apolonio todos morir debemospor aquello que amamos el final no olvidemosPor lo que aquiacute hicieacuteremos allaacute recibiremosallaacute iremos todos siempre de aquiacute saldremos

Dejemos la palabra la razoacuten no alarguemospocos seraacuten los diacuteas que aquiacute moraremosCuando de aquiacute salgamos iquestqueacute ropa llevaremossi no al festiacuten de Dios de Aqueacutel en que creemos

El Sentildeor que gobierna los vientos y la marEacutel nos deacute la su gracia y Eacutel se digne guiary asiacute nos deje tales cosas pensar y obrarque por la su merced podamos escaparEl que tuviere seso responda y diga ameacuten

E ainda para completar natildeo falta o momento de moralizaccedilatildeo no meio da obra cumprindo com o princiacutepio de exemplaridade medieval modelo de conduta e comportamento para aprendizado de todos os exempla21 O esquema eacute simples parte-se do caso particular narrado e se generaliza em termos de moral cristatilde modelo de comportamento

19 ldquoCanta-me oacute deusa do Peleio Aquiles A ira tenazrdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portu-guesa de Manuel Odorico Mendes [2004 p 25])

20 ldquoMusa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito peregrinourdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes [2000 p 28])

21 No proacutelogo do Conde Lucanor Don Juan Manuel explica o intuito da sua obra Et porque cada home aprende mejor aquello de que se maacutes paga por ende el que alguna cosa quiere

Confunda Dios tal rey de tan mala mesuraviviacutea en pecado e ideaba locuramatar queriacutea al hombre que dijera corduraa aqueacutel que resolvioacute la adivinanza oscura

Esto mismo acontece con todos los pecadoslos unos con los otros van todos enlazadosSi no fueren aprisa los unos enmendadosotros muchos mayores son luego acumulados (Cabantildeas 1998 p 48-49)

Nada de novo portanto no panorama que poderia entatildeo oferecer o contexto medieval Em palavras de Blanco Aguinaga (2000 I p 75) rdquoEl Libro de Apolonio [hellip] se relaciona con los esquemas de la vieja novela bizan-tina de aventuras y viajes de final feliz y con las habituales moralizacionesrdquo

Os fenoacutemenos meteoroloacutegicos que governam o mar eram na eacutepica claacutessica atribuiacutedos a divindades pagatildes Como eacute loacutegico o anocircnimo autor do Libro de Apolonio atribui ao Deus cristatildeo esses avatares e a Ele se encomenda para pedir a proteccedilatildeo do heroacutei e de todos noacutes

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echar (Cabantildeas 1998 p 57)

Soacute nesse contexto de adaptaccedilatildeo cristatilde da mitologia pagatilde que vimos apontando pode justificar-se a suposta crueldade do Deus misericordioso e justo cristatildeo frente agrave arbitrariedade das deidades greco-latinas muitas

mostrar a otro deacutebegelo mostrar en la manera que entendiere que seraacute maacutes pagado el que la ha de aprender Et porque muchos homes las cosas sotiles non les caben en los entendimien-tos nin las entienden bien [hellip] yo don Juan fijo del infante don Manuel [hellip] compuesto de las maacutes fermosas palabras que yo pude et entre las palabras entremetiacute algunos ejem-plos de que se podriacutean aprovechar los que los oyeren (Don Juan Manuel 1977 p 13-14)

vezes interessadas apenas em resolver seus proacuteprios confrontos tomando como refeacutens de suas accedilotildees os homens mortais Afora eacute claro a evidente contradiccedilatildeo que se produz em relaccedilatildeo agrave dupla atitude de Deus atribuiacuteda pelo autor do texto agrave sorte de Apolocircnio nos versos destacados da passa-gem acima Outras vezes as tempestades convenientemente guiadas por Deus provocam o acaso que permite o reencontro dos personagens

La tempestad cogioacutelos y el mal temporalsacoacutelos de camino la borrasca mortalechoacutelos su ventura y el Rey espiritualen la villa que pasa Tarsiana mucho mal (Cabantildeas 1998 p 106)

Contudo agraves vezes os fenocircmenos adversos da natureza satildeo atribuiacute-dos ao diabo e natildeo a Deus

laquoDile que muerto estaacute Antioco y enterradoCon eacutel murioacute la hija que lo llevoacute al pecadodestruyoacutelos a ambos un rayo del diabloraquo (Cabantildeas 1998 p76)

A adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio religioso cristatildeo do medievo obriga a forccedilar situaccedilotildees como aquela em que Architrastes rei de Pentapolin daacute sua benccedilatildeo a Apolocircnio e sua filha Luciana quando partem para Antioquia uma vez mortos o rei Antiacuteoco e sua filha Bendiacutejolos a en-trambos con su derecha mano rogoacute al Creador que estaacute en lo maacutes alto que Eacutel guiase a su hija en invierno y veranohellip (Cabantildeas 1998 p 78)

Contudo como vaacuterios seacuteculos depois vai acontecer de novo no per-curso da historia da literatura universal a mistura de influecircncias deixa notar sua presenccedila nesta encruzilhada de culturas e imaginaacuterios Assim no aacutepice do teatro barroco espanhol pode parecer surpreendente a for-ma como Calderoacuten de la Barca em La vida es suentildeo conjuga o fatalismo do horoacutescopo e a providecircncia cristatilde (Alborg 1997 p 690) Lapesa amp Ruiz Ramoacuten falam nesse sentido de ldquooposiciones de contrastesrdquo (1983 p 430) Com efeito Calderoacuten nos apresenta horoacutescopos pressaacutegios e vaticiacutenios que prognosticam os futuros contingentes os astroacutelogos ou judiciaacuterios sabedores de matemaacuteticas sutis julgando signos astrais pre-dizem os influxos de estrelas e planetas Mas as previsotildees dos homens por saacutebios que eles sejam resultam inuacuteteis para preservar-se do ditado

por poderes supremos que regem o acontecer ndash embora nem sempre seja assim como confessa Victor Hugo no prefaacutecio de Notre-Dame de Paris22 ndash onde emerge a grande oposiccedilatildeo ceacuteu fado No Libro de Apolonio o fado o ἀναγκή citado por Victor Hugo caracterizador dos heroacuteis eacutepicos e de outros futuros convive diretamente com o Espiacuterito Santo (Cabantildeas 1998 p 88)

La gente desolada y su rey descasadopasaron su trayecto maldiciendo del hadoEl Espiacuteritu Santo los guioacute sosegadoasiacute el mar arribaron a Tarso sitio amado

Essa mesma oposiccedilatildeo de contrastes ou encruzilhada cultural justifica enfim o episoacutedio que narra a supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo do navio que obriga a desova no mar do corpo de Luciana aparentemente morto o que configu-ra por sua vez um novo foco na trama aventureira do protagonista

ldquoAntes de pocas horas si el cuerpo retenemoshabremos muerto todos librarnos no podremossi la madre perdemos buena hija tenemosmal haces Apolonio que asiacute permanecemosrdquo (Cabantildeas 1998 p 81)

Mas ainda como texto medieval participa de referecircncias desenvol-vidas na sua proacutepria eacutepoca isto eacute autenticamente contemporacircneas e que seratildeo evocadas e imortalizadas pouco tempo depois nas recopilaccedilotildees de romances populares agrupados sob a comum denominaccedilatildeo de Romancero Viejo Entendam-se aqui as expressotildees ldquoromancerdquo e ldquoRomancero Viejordquo exatamente nos termos como as define Masip (2002 pp 112 e 134) ldquopo-emas de tipo narrativo o liacuterico populares producidos entre la seguntad mitad del siglo XIV y todo el siglo XV [] Pueden dividirse en tradi-cionales que evocan los cantares de gesta [] y juglarescosrdquo Nestes ro-mances aparecem motivos e referecircncias intertextuais correspondentes a certos costumes e usos da eacutepoca dos cavaleiros medievais Nesse sentido compare-se o castigo que Apolocircnio ameaccedila infligir na pessoa que ousasse 22 ldquoIl y a quelques anneacutees quacuteen visitant ou pour mieux dire en furetent Notre-Dame

lacuteauteur de ce livre trouva dans un recoin obscur de lacuteune des tours ce mot graveacute agrave la main sur le mur ANAacuteΓKH Ces majuscules grecques () e surtout le sens lugrube et fatal quacuteelles renferment frappegraverent vivement lacuteauteur () Cacuteest sur ce mot quacuteon a fait ce livrerdquo (Hugo 1904 sp)

incomodaacute-lo quando se encontrava atribulado apoacutes receber a falsa notiacute-cia da morte da sua filha com o castigo que por vinganccedila pessoal rece-beu Don Galvaacuten quando foi morto e que aparece descrito em detalhes no Romance de Gaiferos y Galvaacuten datado de 1547

Libro de Apolonio Romance de Gaiferos y Galvaacuten

Al fondo de la nave en rincoacuten apartadoechoacutese en un lecho el rey tan desgraciadojuroacute que quien le hablase seriacutea mal pagadode uno de sus pies seriacutea mutilado

La muerte que eacutel les dijera mancilla es de la [escucharmdashCoacutertenle el pie del estribo la mano del [gavilaacutensaacutequenle ambos los ojos por maacutes segu-ro andary el dedo y el corazoacuten traeacutedmelo por sentildeal

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 107) Citamos pela ediccedilatildeo de Wolf amp Hofmann (1856 II p 222-225)

6 O Libro de Apolonio intertextualidade e literatura comparada Ontem e hoje

A anaacutelise do Libro de Apolonio nos conduz ateacute a conclusatildeo de que ele constitui um claro exemplo do que representou o medievo do ponto de vista literaacuterio e cultural natildeo apenas na Peniacutensula Ibeacuterica mas tam-beacutem no resto da Europa O imaginaacuterio europeu medieval foi consti-tuindo-se sustentado sim na ideologia do cristianismo mas ao mesmo tempo adaptando toda uma tradiccedilatildeo claacutessica pagatilde que na sua versatildeo greco-latina trazia ecos inequiacutevocos do Oriente De um lado Bizacircncio e o antigo impeacuterio oriental romano de outro as influecircncias da cultura semiacutetica aacuterabe e hebraica que chegaram agrave Peniacutensula Ibeacuterica a partir do seacuteculo VIII e que ainda permaneciam em pleno apogeu no seacuteculo XIII eacutepoca da elaboraccedilatildeo do Libro Traziam como consequecircncia uma mistura de motivos e toacutepicos que hoje devemos ser capazes de apreciar e valorar na justa medida em especial quando abordamos a sempre difiacutecil tarefa de compreender um texto antigo

Ao longo das paacuteginas acima foram levantados vaacuterios elementos diferentes entre si de origens tambeacutem bem diversas mas que o anocircni-mo autor ndash homem culto cleacuterigo que inaugurava um novo gecircnero ou

mester de clereciacutea em liacutengua romacircnica e natildeo em latim ndash soube mesclar de forma admiraacutevel e que noacutes hoje desde nosso imaginaacuterio e nossa concepccedilatildeo do mundo devemos saber interpretar sob os coacutedigos da eacutepo-ca na qual foi escrito o poema

A imediata influecircncia de uma histoacuteria sobre o rei Apolocircnio escrita em latim e que circulava pelas bibliotecas dos mosteiros medievais da eacutepoca Historia Apollonii Regis Tyri natildeo compromete a originalidade do texto que nos oferece o autor A Iliacuteada e a Odisseia se fazem presentes em numerosas passagens do Libro e ainda achamos traccedilos que vinculam o texto com os livros de viagens e aventuras e com toda a rica tradiccedilatildeo da novela bizantina Os ecos do conto fantaacutestico oriental representados aqui pelo episoacutedio de Tarsiana trovadora quando eacute vendida ao proxene-ta ndash cujo nome natildeo eacute revelado em momento nenhum como tampouco o nome da filha de Antiacuteoco maculada pelo incesto ndash que eacute capaz com a doccedilura de suas palavras primeiro e a graccedila de seu canto depois de preservar sua virgindade ainda nesse contexto tatildeo adverso remetem agraves habilidades de Sherazade nas Mil e uma noites

Contudo a obra natildeo deixa de ser filha do seu tempo e como tal natildeo faltam caracteriacutesticas e traccedilos puramente medievais como a religiosidade cristianizando as divindades greco-latinas que regem os fenocircmenos at-mosfeacutericos as tempestades e os destinos dos protagonistas quando nave-gam pelo traiccediloeiro mar seja punindo na trama do texto aos pecadores ndash inclusive infligindo-lhes castigos que ora nos levam ateacute episoacutedios biacuteblicos ora nos revelam costumes dos cavaleiros medievais que depois ilustraratildeo o Romancero viejo ndash e beneficiando os que se comportam conforme a mo-ral cristatilde seja enfim atraveacutes das dicas moralizantes que o autor espalha ao longo do texto em primeira pessoa oferecidas ao leitor-ouvinte o que por sua vez nos conduz ateacute a literatura dos exempla medievais

Mas ainda a contribuiccedilatildeo do texto natildeo olha apenas para a histoacute-ria ou a sua contemporaneidade Com efeito algumas personagens do Libro mesmo secundaacuterias podem ser consideradas como a semente de outras futuras estas de indubitaacutevel relevacircncia para a literatura hispacircnica e universal Assim a velha ama que criou a filha de Antiacuteoco e que lhe recomenda natildeo acusar o pai pelo incesto cometido encontra-se na base da Trotaconventos do Libro de buen amor de Juan Ruiz (seacuteculo XIV) e sobretudo representa um esboccedilo do que haveraacute de ser a Celestina de Fernando de Rojas nos albores do Humanismo espanhol (1499)

Por fim muito depois da eacutepoca na qual foi escrito o Libro a gra-ccedila a personalidade e a inteligecircncia que enfeitam Tarsiana tecircm muito a ver com a personagem da gitanilla das Novelas ejemplares de Miguel de Cervantes e sem duacutevida jaacute no acircmbito universal aleacutem da literatura escrita em liacutengua espanhola com a cigana Esmeralda de Notre-Dame de Paris de Victor Hugo

REFEREcircNCIAS

A Biacuteblia de Jerusaleacutem Traduccedilatildeo do texto em liacutengua portuguesa diretamente dos originais Satildeo Paulo Ediccedilotildees Paulinas 1989

ALBORG JL Historia de la Literatura Espantildeola Tomo I Edad Media y Renacimiento 2ordf edicioacuten ampliada Madrid Gredos 1997

ALVAR M Apolonio cleacuterigo entendido In Symposium in honorem prof M de Riquer Barcelona Edicions del Quaderns Crema 1989 (p 51-73)

ARTILES J El ldquoLibro de Apoloniordquo poema espantildeol del siglo XIII Madrid Gredos 1976

BLANCO AGUINAGA C RODRIacuteGUEZ PUEacuteRTOLAS J ZAVALA IM Historia social de la literatura espantildeola (en lengua castellana) 3ordf ed Madrid Akal 2000

BRUYNE E de La esteacutetica de la Edad Media Madrid Visor 1988

BULFINCH Th O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Faacutebula) Histoacuterias de Deuses e Heroacuteis 13ordf ed Trad David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Ediouro 2001

CALDEROacuteN DE LA BARCA P La vida es suentildeo Ed de Antonio Rey Hazas Barcelona Vicens Vives 2000

CERVANTES M de El Licenciado Vidriera y otras novelas ejemplares Madrid Salvat Editores Alianza Editorial 1969

DON JUAN MANUEL El Libro de Patronio e por otro nombre El Conde Lucanor 13ordf ed Madrid Espasa-Calpe 1977

GIROacuteN ALCONCHEL JL Comentario de textos de clereciacutea Alexandre y Apolonio Madrid Arco Libros 2002

GOacuteMEZ MORENO Aacute Notas al proacutelogo del Libro de Alexandre Revista de Literatura XLVI 1984 (p 117-127)

GUILLEacuteN C Entre lo uno y lo diverso Barcelona Criacutetica 1985

HODOI ELEKTRONIKAI Du texte agrave lacutehypertexte Homegravere Odysseacutee Traduction franccedilaise Paris E Flammarion 1937 Disponiacutevel no endereccedilo da Internet mercurefltruclacbeHodoiconcordancesintrohtmHomere (Acessado em 21 de fevereiro de 2013)

HOMERO Iliacuteada Texto integral Trad Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Martin Claret 2004

_____ Odisseia Trad Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2000

_____ Nueva Antologiacutea de la Iliacuteada y la Odisea Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos 1965

LAPESA R RUIZ RAMOacuteN F Calderoacuten traacutegico In RICO F (org) Historia y Criacutetica de la Literatura Espantildeola Vol 31 Primer Suplemento Siglo de Oro Barroco Ed Aurora Egido Barcelona Criacutetica 1983 (p 430-435)

LE GOFF J Tiempo trabajo y cultura en el occidente medieval Madrid Taurus 1983

Libro de Alexandre Edicioacuten preparada por Jesuacutes Cantildeas Murillo Madrid Editora Nacional 1983

Libro de Apolonio Texto iacutentegro en versioacuten del Dr D Pablo Cabantildeas Madrid Castalia 1998

Libro de Apolonio Edicioacuten de Dolores Corbella Madrid Caacutetedra 1992

Libro de Apolonio Edicioacuten de Manuel Alvar Madrid Fundacioacuten Juan March Castalia 1976

LOTMAN Y ESCUELA DE TARTUacute Semioacutetica de la cultura Madrid Caacutetedra 1979

MASIP V Manual de poesiacutea espantildeola y portuguesa Recife AECI Bagaccedilo 2002

MICHAEL I Epic to Romance to Novel Problems of the Genre Identification Bulletin of the John Rylandacutes University Library of Manchester nordm 68 1986 (p 498-527)

MIRANDA POZA JA La Edad Media en Europa como marco para el estudio de la eacutepoca literaria medieval In MIRANDA POZA JA (org) Estudios Hispaacutenicos Recife Editora Universitaacuteria da UFPE 2011 (p 159-169)

_____ Poesiacutea Espantildeola Medieval (II) El Mester de Clereciacutea In MIRANDA POZA JA RODRIGUES JPM (orgs) Estudios de Lengua y Literatura Espantildeola Recife APEEPE PROEXT Departamento de Letras ndash UFPE 2007 (p 123-140)

NASO PO Tristium 2ordf ed Trad literal de Augusto Velloso Rio de Janeiro Ediccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Simotildees 1952

OVIacuteDIO Poemas da carne e do exiacutelio Seleccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Joseacute Paulo Paes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

OVIDIO NASOacuteN P Metamorfosis Texto revisado y traducido por Antonio Ruiz de Elvira 3 vols Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientiacuteficas 1994

RASERO CHACOacuteN J Adivinanzas y trabalenguas Posibilidades didaacutecticas In BARCIA MENDO E (coord) La tradicioacuten oral en Extremadura Meacuterida Junta de Extremadura ndash Consejeriacutea de Educacioacuten Ciencia y Tecnologiacutea 2004 (p 221-247)

RATTENBURY RM Prologue a Les Eacutethiopiques de Heliodore Texte eacutetabli par RM Rattenbury ET TW Lumb et traduit par J Maillon Paris Collection decircs Universiteacutes de France 1935

RIQUER M VALVERDE JM Historia de la Literatura Universal Barcelona Planeta 1991

ROJAS F de La CelestinaTragicomedia de Calisto y Melibea 4ordf ed Introduccioacuten de Stephen Gilman Edicioacuten y notas de Dorothy S Severin Madrid Alianza Editorial 2003

RUIZ J El libro de buen amor Madrid Edimat Libros 1999

TODOROV Tz Introduccioacuten a la literatura fantaacutestica Buenos Aires Tiempo Contemporaacuteneo 1972

URIacuteA I Panorama criacutetico del mester de clereciacutea Madrid Castalia 2000

Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico ldquoFedatildeordquo Trad Carlos Alberto Nunes Creacuteditos Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia) Disponiacutevel no endereccedilo da Internet HTTPbregroupscomgroupacropolis (Acessado em 20 de fevereiro de 2013)

WOLF FJ HOFMANN C Primavera y flor de romances o Coleccioacuten de los maacutes viejos y maacutes populares romances castellanos 2 vols Berlin A Asher amp Co 1856 Disponiacutevel na Internet no endereccedilohttpdeptswashingtoneduhispromoptionalballadactionphpigrh=0087amppublisher=Wolf201856b (Acessado em 24 de fevereiro de 2013)

Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e

a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites

Oussama Naouar(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Consideraccedilotildees epistemoloacutegicas introdutoacuterias das evidecircncias obscuras das Mil e uma noites

As Mil e uma e noites assombram nosso imaginaacuterio relativo ao Oriente como para nos lembrar que eacute necessaacuterio guardar uma certa acuidade associada aos objetos muito evidentes Pois com efeito exis-tem duas sortes de objetos delicados para o pesquisador De uma parte os objetos desconhecidos totalmente novos pelo menos segundo acre-ditamos de outra os muito evidentes e ceacutelebres

Os primeiros tecircm que ser buscados continuamente Se trata para noacutes de natildeo somente os achar mas tambeacutem de lhes tirar sua aparente virginda-de sobretudo relativa como temos de admitir Portanto esta concepccedilatildeo de objeto novo eacute na maioria das vezes epistemologicamente confusa Ela atende ao olhar de um pesquisador que se debruccedila a partir de uma eacutepoca particular sobre um elemento que atrai nossa atenccedilatildeo Esta virgindade eacute ainda uma propriedade construiacuteda sobre o objeto de pesquisa pois de fato ela se elabora a partir do cruzamento de uma ou mais articulaccedilotildees definidas como novas num momento histoacuterico particular no quadro de uma episteme Sabemos a partir de Foucault que a episteme faz referecircncia agrave sistematizaccedilatildeo das regras de construccedilatildeo dos objetos sujeitos e concei-tos postulando que haacute um elemento dos saberes (no sentido de elemento aquaacutetico por exemplo) que impotildee aos objetos do saber o modo de ser determinado (cf Foucault 1990 p 13) Portanto esta construccedilatildeo mesma implica uma ruptura desconstruccedilatildeo para tornar novamente inteligiacutevel esta formalizaccedilatildeo do objeto de pesquisa

A outra categoria eacute composta destes objetos do cotidiano comuns que natildeo brilham mais por sua novidade tanto que natildeo se deixam mais

interrogar Aqui o esclarecimento foucaultiano continua pertinen-te Mas pode ser necessaacuterio conjugaacute-lo agraves meditaccedilotildees de um Gaston Bachelard recordando esta ceacutelebre frase de La formation de lrsquoesprit scientifique que precisa ldquonoacutes conhecemos contra um conhecimento an-teriorrdquo (Bachelard 1971 p 14) Nessa perspectiva o conhecimento soacute eacute possiacutevel a partir da superaccedilatildeo de um conhecimento anterior o qual nesta aproximaccedilatildeo epistemoloacutegica aparece necessariamente como um limite um oposto um obstaacuteculo As mil e uma noites fazem parte destes uacuteltimos objetos Pois este texto que natildeo cessa de nos fascinar noacutes o apreendemos somente pelas tramas do passado Esta constataccedilatildeo natildeo deixa de nos lembrar que ao encontro do conhecimento o espiacuterito se revela sob o peso da idade pois nunca eacute jovem mas sempre velho pelos seus preconceitos e nessas circunstacircncias acessar o conhecimento ldquoeacute espiritualmente rejuvenescer eacute aceitar uma mutaccedilatildeo brusca que deve contradizer o passadordquo (Bachelard 1971 p 14) Ora noacutes sabemos a que ponto as Mil e uma noites satildeo um objeto eterno sempre revisitado sempre fascinante mas que pode esconder atraacutes de suas evidecircncias uma parte profunda de obscuridade As Mil e uma noites uma vez que o efeito exoacutetico tenha passado nos enseja a perguntar sobre suas evidecircn-cias obscuras Acalentado sob uma apreensatildeo ingecircnua e reconfortante este questionamento chama o espiacuterito ceacutetico agrave desconstruccedilatildeo

Com efeito muitas ideias preconcebidas englobam indistintamente Sherazade Oriente Mil e uma noites hareacutens e outros objetos de nossa imaginaccedilatildeo Em relaccedilatildeo a estas ideias Bergson indica pertinentemen-te que nosso espiacuterito possui uma irresistiacutevel tendecircncia a considerar como mais clara a ideacuteia que lhe serve continuamente Esta forma de ldquoeconomia mentalrdquo explica em parte porque se constitui num conjunto de ideacuteias preconceitos e opiniotildees que acabam escondendo a comple-xidade e a singularidade de uma produccedilatildeo literaacuteria Uma exigecircncia de superaccedilatildeo de questionamento se configura ao reacutes de nossas opiniotildees pois ldquoa opiniatildeo pensa mal ela natildeo pensa ela traduz necessidades em conhecimentos Designando os objetos pela utilidade ela se proiacutebe de os conhecer Natildeo se pode fundar nada sobre a opiniatildeo temos antes de tudo que a destruir Ela eacute o primeiro obstaacuteculo a superarrdquo (Bachelard 1971 p 14) Um olhar filosoacutefico ao texto eacute sobretudo pertinente se acei-tarmos que a filosofia pode se referendar como remeacutedio agrave opiniatildeo pois da opiniatildeo agrave asneira haacute um pequeno passo um breve resvalar Opiniatildeo

e asneira entreteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima conivente e profunda tambeacutem como bem dizia Gilles Deleuze em seu Abeacuteceacutedaire ldquoa filosofia impede a asneira de ser tatildeo grande como poderia ser se natildeo houvesse a filosofiardquo (in Boutang 1988) Eis um argumento de peso

Portanto estes enviesamentos epistemoloacutegicos natildeo satildeo proacuteprios so-mente agraves Mil e uma noites bem ao contraacuterio Tal constataccedilatildeo em torno da obra literaacuteria ilustra uma problemaacutetica bem mais ampla proacutepria ao orientalismo Edward Saiumld teoacuterico da literatura e figura importante dos estudos poacutes-coloniais cuja pena nos deu Orientalisme lrsquoOrient creacutee par lrsquoOccident funda esta corrente a partir da concepccedilatildeo do Oriente como objeto de uma criaccedilatildeo ldquoO Oriente como uma criaccedilatildeo do Ocidente seu duplo seu contraacuterio a encarnaccedilatildeo dos seus medos e de seu sentimento de superioridade a um soacute tempo a carne de um corpo do qual aspiraria a ser o espiacuteritordquo (Saiumld 1980 p 23)

Agrave luz desta citaccedilatildeo natildeo podemos deixar de repensar os quadros dos trecircs ceacutelebres Eugegravenes ndash Delacroix Girardet e Fromentin ndash ou ainda a inspiraccedilatildeo que atravessa as obras picturais do brasileiro Oscar Pereira da Silva Nelas vemos se materializar esta carne certamente oriental que traz ao contraacuterio e por traacutes dessas personagens figuradas um es-piacuterito fundamentalmente ocidental tudo participa dessa constataccedilatildeo as posturas as cenas e a distribuiccedilatildeo dos papeis Mas a grande contri-buiccedilatildeo de Saiumld continua na re-inscriccedilatildeo destes liames como construtos epistemologicamente falando A literatura a arte e mais largamente a esteacutetica no sentido de partage du sensible como a nomeia Jacques Ranciegravere (2000) se tornam reveladores da relaccedilatildeo complexa que rege esta geografia de um imaginaacuterio proacuteprio agrave oposiccedilatildeo Oriente-Ocidente

Pois eacute necessaacuterio admitir que o orientalismo natildeo se limita somen-te a uma corrente esteacutetica nem mesmo artiacutestica ou literaacuteria mas a ldquoum cacircmbio dinacircmico entre autores individuais e vastos empreendimentos poliacuteticos formados pelos impeacuterios britacircnico francecircs e americano sobre o territoacuterio intelectual e imaginaacuteriordquo (Saiumld 1980 p 27) Dito de outra for-ma as obras e produccedilotildees esteacuteticas do orientalismo vatildeo a par com projetos poliacuteticos e geopoliacuteticos proacuteprios ao colonialismo Intelectual e imaginaacuterio eis certamente o coraccedilatildeo da confrontaccedilatildeo que poderia se prolongar em Razatildeo e Emoccedilatildeo racionalidade e misticismo Estas oposiccedilotildees natildeo conti-nuam menos ideoloacutegicas como nos indica Jacques Derrida (1967) Jaacute que inscritas no prolongamento da dicotomia Oriente-Ocidente e agrave imagem

do exemplo Carne-Espiacuterito evocada anteriormente estas oposiccedilotildees teste-munham um limite da histoacuteria do pensamento que consistiu em conceber o mundo como um sistema de oposiccedilatildeo a declinar ao infinito em que um dos elementos eacute sempre pensado como um ldquoparasitardquo um ldquoacidenterdquo um ldquoexcrementordquo (Derrida 1967 p 415)

Este movimento pendular entre poetizaccedilatildeo e desilusatildeo se ilustra entre os escritores franceses que realizaram a experiecircncia concreta do Oriente Pensemos na decepccedilatildeo de um Chateaubriand que escrevia em descobrindo a Alexandria ldquoAlexandria me pareceu o lugar mais triste e desolado da terrardquo (1969 p 63) Ele diraacute de Jerusaleacutem

A paisagem ao redor da cidade eacute medonha quanta desolaccedilatildeo e quanta mi-seacuteria Nesta pilha de escombros que chamam uma cidade a gente do paiacutes se deu ao prazer de dar nomes de ruas a passagens desertas As casas parecem presiacutedios ou sepulcros Agrave vista destas casas de pedras nos perguntamos se natildeo constituem monumentos confusos de um cemiteacuterio no meio do deserto Entre na cidade nada vos consolaraacute da tristeza exterior voacutes vos perdereis nas pequenas ruas natildeo pavimentadas que sobem e descem sobre um solo desigual e voacutes andareis entre ondas de poeira ou entre pedras que rolam (Chateaubriand 1969 p 87)

Estamos bem longe do Oriente sonhado e os golpes da realidade pa-recem dolorosos Da mesma forma eacute faacutecil pensar que Jerusaleacutem cidade sagrada por excelecircncia ilustra este espiacuterito ocidental dentro de uma car-ne oriental elevada agrave escala de uma cidade Mais que em outro lugar o imaginaacuterio interfere com o intelectual ao ponto de poder distinguir no orientalismo uma forma desviada de cruzada esteacutetica onde o territoacuterio cobiccedilado escapa sempre em meio a todas as brechas a todas as incursotildees

Mas eacute talvez Flaubert que se demarca mais deste grupo de escritores viajantes ele que numa carta escrita a sua matildee revela uma decepccedilatildeo toda paradoxal que busca o autecircntico passando pelo crivo do imaginaacuterio ldquoEacute no Cairo que o Oriente comeccedila Alexandria eacute muito mesclada de euro-peus para que a cor local seja bem purardquo (1973 p 182) Notemos aqui como desta frase curta emana uma tensatildeo fundamental e proacutepria do oci-dente colonial que opotildee autenticidade e alteridade Quanto agrave Jerusaleacutem sua decepccedilatildeo soacute cresceria Em outra correspondecircncia Flaubert indica

Jerusaleacutem eacute uma vala cercada por muralhas Tudo aiacute apodrece Os ca-chorros mortos nas ruas as religiotildees nas igrejas Haacute muita quantidade de

excremento e ruiacutenas O Santo Sepulcro eacute uma aglomeraccedilatildeo em meio a todas as maldiccedilotildees possiacuteveis Num pequeno espaccedilo haacute uma igreja armecircnia uma grega uma latina e uma copta Tudo isso se injuriando se maldizendo do fundo da alma e calccedilando o vizinho a propoacutesito de candelabros tapetes e quadros ndash que quadros (Flaubert 1973 p 227)

Uma cidade caoticamente ldquosantardquo ao menos na aparecircncia onde o odor da morte nos pega pela garganta Onde estatildeo os perfumes do Oriente neste cenaacuterio meio fuacutenebre meio maldito Este Oriente que deveria revitalizar o ldquocorpordquo entorpecido do Ocidente parece deslizar agraves avessas da realidade em direccedilatildeo a um imaginaacuterio que de fato natildeo mais existe Geacuterard de Nerval escreve em 1867 depois de sua viagem de 1843

O Egito eacute uma vasta tumba eacute a impressatildeo que me passou ao aportar nesta praia de Alexandria que com suas ruiacutenas e seus montiacuteculos oferece aos olhos tuacutemulos espalhados sobre uma terra de cinzas [] Eu teria amado mais as lembranccedilas da antiguidade grega mas tudo isso foi destruiacutedo arra-sado e se tornou irreconheciacutevel (Nerval 1980 p 83)

Satildeo provavelmente os tuacutemulos de suas proacuteprias ilusotildees que expli-cam esta persistecircncia de uma apreciaccedilatildeo lsquomoacuterbidarsquo do Oriente de uma funesta decepccedilatildeo Tais citaccedilotildees satildeo esclarecedoras por nos fazerem ob-servar a maneira como intelectual e imaginaacuterio se imbricam quando se trata do Oriente Tambeacutem cremos que para noacutes estudiosos de literatu-ra eacute importante apreender o Oriente assumindo esta tensatildeo constituti-va Eacute soacute se perguntando fundamentalmente sobre este paradoxo que faz da imagem do Oriente a realizaccedilatildeo muitas vezes mais ldquofictiacuteciardquo de uma busca intelectual e imaginaacuteria que pode se esboccedilar as premissas de uma apreciaccedilatildeo mais justa do Oriente Ter em mente que este imaginaacuterio eacute um dos elementos constitutivos de nossa episteme integrando suas dimensotildees religiosa e miacutestica satildeo ambas posturas que nos permitem natildeo perder de vista os desvios de nossa apreensatildeo Pois olhar o Oriente caminha a par de uma vontade de dobrar o mundo numa ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo para retomar a expressatildeo de Martine Geronimi (2006)

Na admiraccedilatildeo e no elogio ldquoda suntuosidade das cores e dos perfu-mes do Orienterdquo clichecirc tiacutepico se faz necessaacuterio perceber os murmuacuterios de uma nostalgia profunda aquela dos valores perdidos da Europa Em sua obra Orient-Occident La fracture imaginaire Georges Corm (2005) nos lembra que ldquoa imagem de uma Europa que perdeu sua alma em

busca do progresso material vai comeccedilar a se cristalizar A idealizaccedilatildeo do Oriente de sua miacutestica de seu senso de honra de seu desprezo su-posto aos valores materiais vai se estabelecerrdquo Mas paradoxalmente a superioridade ocidental colonial ressurge continuamente Eacute de certa maneira um fenocircmeno que se encontra algures entre os exilados por exemplo nesta idealizaccedilatildeo perpeacutetua do paiacutes de origem Como fascina-ccedilatildeo assimeacutetrica feita de admiraccedilatildeo e recusa o orientalismo soacute podia coincidir sob mais de um aspecto agrave empresa colonial aquela mesma que se apropriava ldquocivilizandordquo

2 Do universal vindo de algures as Mil e uma noites em partilha

Mas esta ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo natildeo tem soacute desvantagens Ela parece dar mesmo que de maneira meio desviada creacutedito ao Oriente Apesar de todas as duacutevidas que levanta atualmente a humanidade sobre o mun-do aacuterabe sobre esta ferida narciacutesica que ele arrasta durante seacuteculos ferida de uma grande civilizaccedilatildeo passada que desaprendeu a se reno-var as Mil e uma noites ao lado da espiritualidade sufi soube guardar os favores do Ocidente E aqui temos outro dos grandes paradoxos do Oriente se invertermos o sentido da relaccedilatildeo em sua ligaccedilatildeo consigo proacuteprio e com o Ocidente Pois parece que o divino que trouxe um eacutelan civilizador importante agraves sociedades araacutebico-mulccedilumanas tornou-se um fardo deixando mais atuais estas linhas do filoacutesofo andaluz Averroacuteis (1126-1198) conhecido no mundo aacuterabe como Ibn el Rushd

Natildeo existe nenhuma contradiccedilatildeo entre verdade religiosa e verdade racional pois todas as duas vecircm de Deus qualquer um que interditar os fieacuteis dotados de razatildeo a iniciaccedilatildeo aos escritos filosoacuteficos da Antiguidade os teraacute distan-ciado de uma porta a qual o Islatilde chama e de um meio de permitir melhor conhecer a Deus (2000 p 99)

Desde o seacuteculo XII portanto o divoacutercio entre espiritualidade e pen-samento entre a doutrina e as artes entre a crenccedila e o saber soacute se dilatou no Oriente As diferentes tentativas para redourar o brasatildeo do mundo aacuterabe se tornaram letra morta se o julgarmos por sua atualidade As mais recentes sendo aquelas da Nahda literalmente o renascimento empresa cujas figuras mais conhecidas satildeo Tahtacircwi Jamacircl al-Dicircn al-Afghacircni ou

ainda Muhammad Abduh (cf Issa 2008) Estes uacuteltimos tiveram o meacute-rito de tentar reformar o mundo aacuterabe se negando em se inscrever num orientalismo caricatural No que ele comporta de caricatura o orienta-lismo se apresenta como a resultante de uma empresa de elaboraccedilatildeo de fronteiras tanto a fascinaccedilatildeo do Oriente se fundamenta tambeacutem numa ideologia da diferenciaccedilatildeo a basear-se principalmente sobre a superiori-dade ocidental e indo-europeacuteia A polecircmica que opocircs violentamente Al-Afghacircni a Renan ilustra paradigmaticamente esta confusatildeo dos registros da eacutepoca oitocentista (cf Lorcerie 2007 p 509-536)

E portanto se o mundo de hoje como o de ontem adula esta li-teratura deve se basear em algumas razotildees Eacute na viagem e na recepccedilatildeo que as Mil e uma noites conquistaram as suas credenciais E se podemos por um lado criticar um apelo exotista sobre o texto por outro a obra se enriqueceu do ponto de vista aacuterabe por conta deste interesse ocidental A histoacuteria nos ensina que a circulaccedilatildeo dos textos das representaccedilotildees e das ideias participa da promoccedilatildeo destas ao tempo que lhe recorta de sua historicidade do fato de ldquoa neutralizaccedilatildeo do contexto histoacuterico que resul-ta da circulaccedilatildeo internacional dos textos e do esquecimento correlativo das condiccedilotildees histoacutericas de origemrdquo (Bourdieu Wacquant 1998 p 17) Eacute necessaacuterio lembrar que as Mil e uma noites eram consideradas como pertencentes a uma literatura secundaacuteria e eacute de maneira paradoxal ao prisma do Ocidente que a obra se valorou E se ela eacute apresentada como a obra que ilustra a sensibilidade e o imaginaacuterio do mundo aacuterabe por ex-celecircncia continua pertencendo a um patrimocircnio de literatura lsquoprofanarsquo tambeacutem correntemente chamado no mundo aacuterabe de ldquomedianardquo ou seja intermediaacuteria entre as obras-primas literaacuterias e as obras mais populares a exemplo dos contos orais Inicialmente os contos que circulavam no mundo aacuterabe natildeo continham ainda os acreacutescimos trazidos por Antoine Galland que eram de fato contos siacuterios relatados por informantes anocirc-nimos como eacute exemplo a histoacuteria de Ali Baba et les quarante voleurs ou ainda Aladin Entatildeo foi necessaacuterio posteriormente traduzir do francecircs ao aacuterabe estes acreacutescimos para disponibilizaccedilatildeo dos leitores aacuterabes Da mesma maneira sabemos que a histoacuteria de Sherazade eacute de origem india-na e a composiccedilatildeo das Mil e uma noites da forma como as conhecemos hoje corresponde mais ou menos segundo as versotildees agravequela em circu-laccedilatildeo durante o seacuteculo XV e natildeo durante o seacuteculo X

Este interesse persistente pelas Mil e uma noites se exprime igual-mente na Franccedila como testemunha a mais recente exposiccedilatildeo organiza-da pelo Institut du Monde Arabe de Paris O cataacutelogo da exposiccedilatildeo ape-sar de uma vontade perceptiacutevel de superar as representaccedilotildees comuns convoca os argumentos habituais em favor da obra extraordinaire sur-prenant faisant le lien entre lrsquoOrient et lrsquoOccident Universelle ou ainda veacutehicule de mythologies et des croyances propres agrave lrsquoOrient Aqui por-tanto seremos tentados a dizer veiacuteculo das mitologias e crenccedilas igual-mente proacuteprias ao Ocidente Pois de fato esta obra que parece se erigir numa lsquoliteratura de reconciliaccedilatildeorsquo foi escolhida como tal por uma soacute das partes segundo criteacuterios esteacuteticos certo colorido bem distantes do que poderiam ser os gostos orientais

Portanto as Mil e uma noites satildeo continuamente objeto de uma redescoberta como eacute testemunha mesmo o assunto deste evento (2ordm CLIF-PE) Por quecirc Porque esse texto eacute de certa maneira viacutetima de sua celebridade um dos maiores da literatura mundial e eacute preciso reconhececirc-lo resguardando a problemaacutetica de sua inscriccedilatildeo na heranccedila orientalista como um texto fundador natildeo sendo o uacutenico ndash pois haacute muitos outros a Eneida de Virgiacutelio a Epopeia de Gilgamesh Nassr Eddin Juhah este bufatildeo sufi o Kalevala a Iliacuteada e a Odisseia o Ramayana e o Mahabarata E cre-mos ainda que esta dimensatildeo universal emancipada dos particularismos do Oriente e do Ocidente revela todo o interesse do texto

3 As Mil e uma noites entre a forccedila moralizadora e a tentaccedilatildeo desmoralizadora

Mas o que satildeo ao final as Mil e uma noites Onde buscar sua uni-dade Seria difiacutecil definir claramente o que satildeo elas tanto difere sua tonalidade de um texto a outro Das narrativas de viagem agraves pequenas histoacuterias lendaacuterias passando por contos em que se sobressaem aspec-tos fesceninos elas representam uma soma de gecircneros diferentes sob um quadro que sumariza um conjunto sobretudo disparatado epopeia conto histoacuteria blagues faacutebulas proveacuterbios etc As primeiras leituras dos contos das Mil e uma noites no seacuteculo X as classificavam entre os con-tos morais do gecircnero mediano destinados agrave populaccedilatildeo geral inferiores a outras obras a exemplo de Kalicircla wa Dimna que pertenciam ao gecircnero

do espelho de priacutencipes destinado agrave educaccedilatildeo moral e poliacutetica dos per-sonagens da alta nobreza sobre os passos do Roman drsquoAlexandre 23

Este paralelo entre Kalicircla wa Dimna eacute pertinente pois nela se en-contra tambeacutem um contador o conselheiro e filoacutesofo Bilpaiuml que ilustra as consequecircncias de um comportamento numa histoacuteria cujos prota-gonistas satildeo animais especialmente os chacais que datildeo nome ao livro Estas histoacuterias acabam numa liccedilatildeo moral e natildeo deixaram de inspirar moralistas como La Fontaine no seacuteculo XVII Todavia pensar as Mil e uma noites como um texto unicamente de educaccedilatildeo moral parece difiacute-cil jaacute que nem todas as histoacuterias se concluem numa proposta de mora-lismo mesmo que olhando amiuacutede se constate rapidamente que o bem sempre triunfa do mal e mesmo quando o fraco perde no momento em que o mal parece triunfar

Por conseguinte um contorno etimoloacutegico fortalece a pertinecircncia desta perspectiva A literatura eacute chamada Adab em aacuterabe termo que designa o prolongamento da educaccedilatildeo no sentido de dececircncia Haacute uma continuidade entre literatura e educaccedilatildeo estebelecida em torno de uma ideia de conveniecircncia do que eacute decente e conveniente A pessoa edu-cada eacute qualificada de Mutaadab ou seja aquele que tem Adab A par-tir disso se desenha claramente aqui o ideal filosoacutefico do Antropos que cabe ao homem letrado o homem conveniente eacute aquele que harmoniza seu ser com o mundo e os outros Ele alcanccedila por sua dececircncia educa-ccedilatildeo e cultura literaacuteria uma forma de harmonizaccedilatildeo do exterior com o interior e vice-versa

Esta virtude educativa das letras e da cultura literaacuteria se encontra reivindicada em outras obras E isso pode ser associado mais largamen-te a uma das caracteriacutesticas do conto o que explica tambeacutem a atraccedilatildeo por esta forma no seacuteculo XIX Pensamos em Pierre Capelle que em seu Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature cujo subtiacutetulo expliacutecito nos diz Choix de penseacutees ingeacutenieuses et sublimes de dissertations et de deacutefinitions extraites des plus ceacutelegravebres moralistes poegravetes et savants pour

23 A obra Kalila wa Dimma era destinada agrave educaccedilatildeo moral e agrave iniciaccedilatildeo poliacutetica da no-breza Cada capiacutetulo eacute aberto com um diaacutelogo entre o rei Dablishim e seu conselheiro-filoacutesofo Bilpai Tais perguntas discutem essencialmente as consequecircncias de um com-portamento que em seguida eacute ilustrado atraveacutes de uma histoacuteria com dois protagonistas os chacais Kalila e Dimna A influecircncia desta obra foi grande tanto nas Noites como sobre os livros de Shhname de Firdusi do miacutestico Rumi e tambeacutem dos moralistas

servir de deacutelassement aux eacutetudes former le cœur orner lrsquoesprit et nourrir la meacutemoire des jeunes gens Nada mais Pierre Capelle nos diz

De todos os gecircneros de poesia o conto eacute sem contradiccedilotildees aquele que mais se aproxima da natureza ele eacute a expressatildeo ingecircnua ele deve tomar de empreacutestimo todos os ornamentos [] Os contos podem tambeacutem ter os seus tanto eles pin-tam nossos ridiacuteculos com o fim de nos corrigir tal eacute o objeto dos contos morais que atacam nossos erros com o intuito de nos curar ndash eacute o desejo dos contos filosoacuteficos [] Nos perguntamos que paiacutes foi o berccedilo dos contos uns dizem que teria sido a Greacutecia dando como provas as faacutebulas milesianas e as Noites Aacuteticas outros nomeiam a Araacutebia citando como testemunhos os contos aacuterabes outros tambeacutem os fazem vir da Peacutersia e reclamam em favor de sua opiniatildeo as Mil e uma noites Erudiccedilatildeo mal aplicada os contos nasceram deles mesmos sobretu-do onde existiram homens ociosos (1824 p 3-4)

Mas as Mil e uma noites natildeo satildeo simples contos eacute a literatura de to-dos os possiacuteveis que se encontra aiacute reunida Tambeacutem esta perspectiva de re-inscriccedilatildeo do texto em sua finalidade educativa e moral se revela heu-riacutestica Eacute necessaacuterio compreender as Noites como uma criaccedilatildeo literaacuteria que evolui no seio de uma tensatildeo constitutiva entre uma forccedila moraliza-dora do texto e uma tentaccedilatildeo desmoralizadora tantas vezes explicitada Esta hipoacutetese permite retomar todo o aporte ldquoeducativordquo da obra pois com efeito deste ponto de vista haacute um duplo movimento paradoxal que potildee a seu serviccedilo o fantaacutestico O fantaacutestico se torna o instrumento que permite a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora numa obra que serve por fim a finalidades altamente morais

4 O fantaacutestico ou a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora

Falta-nos definir delimitar o fantaacutestico Para isso a convocaccedilatildeo de Tzvetan Todorov (1970) se tornou um pedaacutegio conceitual uma passa-gem quase inevitaacutevel Vamos apresentar esta referecircncia para depois nos distanciarmos para um importante reajuste que consistiraacute inicialmente em apreender o fantaacutestico sem cair num dos riscos acima delimitados especialmente o do anacronismo

De fato hoje num mundo que eacute o nosso e que natildeo comporta em absoluto djins lacircmpadas maacutegicas nem tapetes voadores se formos expostos a percebecirc-los teremos duas alternativas ou se trata de uma

ilusatildeo dos sentidos produto da imaginaccedilatildeo e as leis do mundo continu-am intactas ou o evento aconteceu realmente como parte integrante da realidade mas esta realidade nos revela paradoxalmente leis desconhe-cidas Pensemos por exemplo na ilha flutuante de Simbad Ela eacute ilusoacute-ria ou existe realmente Segundo Todorov o fantaacutestico ocupa o espaccedilo da incerteza desde que escolhamos uma ou outra dessas possibilidades para entrar em gecircneros vizinhos o estranho ou o maravilhoso

O fantaacutestico segundo Todorov eacute assim esta hesitaccedilatildeo que expe-rimenta um sujeito em relaccedilatildeo agraves leis naturais frente a um evento de aparecircncia sobrenatural Pertence a este gecircnero toda obra fundada ldquosobre uma hesitaccedilatildeo do leitor um leitor que se identifica agrave personagem prin-cipal quanto agrave natureza de um evento estranho Esta hesitaccedilatildeo pode se resolver seja ao se admitir que o evento pertence agrave realidade seja porque se decide que eacute fruto da imaginaccedilatildeo ou o resultado de uma ilusatildeo dito de outra maneira pode-se decidir que o evento aconteceu ou natildeordquo (p 165) Estamos frente a um verdadeiro trabalho conceitual jaacute que (a) a definiccedilatildeo discrimina o real e (b) delimita claramente sua descriccedilatildeo tendo-se em vista ainda o esclarecimento das condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do gecircnero (o leitor deve acreditar na concretude dos fatos e na realidade dos personagens a hesitaccedilatildeo tambeacutem deve ser vivenciada por um dos personagens e enfim o leitor tem que recusar interpretaccedilotildees alegoacutericas e poeacuteticas acerca dos acontecimentos) Noacutes reteremos aqui uma dimen-satildeo subversiva que potildee o real e a razatildeo em suspensatildeo

As Mil e uma noites estatildeo situadas numa encruzilhada entre o ma-ravilhoso o estranho e o fantaacutestico De fato se tentarmos superar os dois obstaacuteculos do etnocentrismo e do anacronismo temos que admitir que a concepccedilatildeo do fantaacutestico contemporacircnea natildeo eacute a mesma da eacutepoca e das regiotildees de produccedilatildeo dos textos que compotildeem as Noites Por outro lado ainda hoje eacute admitido pela maioria das pessoas de expressatildeo muccedilul-mana que Deus criou de uma parte homens e de outra djins Os djins satildeo assim realidades ontologicamente subjetivas mas julgados como intriacutensecos ao mundo (cf Toufy 1972 pp 154-213) Esta anaacutelise se apoacuteia sobre os numerosos exemplos no texto Tomemos um caso seme-lhante para ilustrar esta tensatildeo anacrocircnica no episoacutedio da ilha flutuante de Simbad Na eacutepoca este tipo de ilha eacute possibilitada por uma crenccedila partilhada ou seja apoiada pela realidade noacutes encontramos descriccedilotildees nos bestiaacuterios medievais de lugares como este O episoacutedio de Simbad eacute

fantaacutestico natildeo pela ilha em si mas pelas experiecircncias que ocorrem nela Da mesma forma as exegeses do Ocidente segundo a ciecircncia da eacutepoca descrevem a existecircncia de uma ilha flutuante Mas nunca se trata de um fantaacutestico puro ou austero que se daacute a ver no texto e isso pode ser repercutido como um dos traccedilos caracteriacutesticos das Mil e uma noites uma obra que sabe associar o fantaacutestico e o bom senso de uma parte o maravilhoso e o humor de outra

5 Quando o inuacutetil eacute fantaacutestico

Na ordem de nosso cotidiano o que nos liga agrave existecircncia agrave vida satildeo as coisas ldquoditasrdquo uacuteteis O que relatamos transmitimos para a preserva-ccedilatildeo da vida natildeo satildeo a priori pequenas histoacuterias Mas aqui o que eacute rela-tado nas Noites satildeo coisas que pertencem ao passional ao divertimento e ao fantaacutestico O grande paradoxo eacute que satildeo coisas fuacuteteis que valem uma vida Aqui reside uma articulaccedilatildeo importante e um entrecruza-mento do fantaacutestico com a educaccedilatildeo

Pois para muitos de noacutes o que nos move eacute uma certa razatildeo instru-mental Muitos poderiam se perguntar sobre a utilidade de um tal congres-so para falar ainda mais de literatura fantaacutestica Eacute preciso para alimentar aqui nosso percurso reflexivo trazer dois elementos capazes de esclare-cer esta problemaacutetica Inicialmente uma anedota relatada por Philippe Meirieu numa palestra consagrada agraves praacuteticas artiacutesticas no ensino puacutebli-co (CFMI 2000) Ele cita um episoacutedio histoacuterico descoberto por Patrick Mendelsohn nos arquivos da Universidade de Berna ndash que natildeo tem nada a ver com as Mil e uma noites Estamos entre 1940 e 1941 num inverno particularmente rigoroso na fronteira entre a Suiacuteccedila e a Alemanha Uma patrulha de soldados suiacuteccedilos estaacute perdida nesta fronteira no frio na neve e em meio agrave tempestade Natildeo haacute comida e os celulares ainda natildeo tinham sido inventados Na verdade pressentem com ansiedade a presenccedila da morte A situaccedilatildeo eacute traacutegica ateacute que um dos soldados acha nos bolsos um pedaccedilo de mapa e graccedilas a ele reencontram o caminho e retornam ao quartel Ali satildeo interrogados e dizem como conseguiram sair da situaccedilatildeo graccedilas agravequele pedaccedilo de mapa e como suas vidas estavam por um fio Ao se examinar atentamente o pedaccedilo haacute a descoberta se tratava de um mapa de outra cadeia montanhosa distante os Pirineus

Continuando a ilustrar este paradoxo penso ainda nas pinturas ru-pestres do Brejo da Madre de Deus e laacute o que se acha agarrado ao cume das pedras Pinturas rupestres Assim o que nossos questionamentos captam eacute o que explica que pessoas que tinham de enfrentar muitas difi-culdades frio fome sede ausecircncia de um conforto que qualificariacuteamos de miacutenimo hoje pudessem encontrar tempo e igualmente inspiraccedilatildeo ne-cessaacuterios para perder tempo em pintar natildeo os planos da futura cidade nem um recenseamento mas cenas da vida altamente estetizadas

Para compreender isto temos de lembrar das primeiras paacuteginas criadas pela pena de Leacutevi-Strauss em sua ceacutelebre Introduction agrave la penseacutee sauvage em que se pergunta sobre as razotildees pelas quais os iacuten-dios deixavam frutas e plantas uacuteteis preferindo plantas nauseabundas chegando agrave seguinte conclusatildeo ldquoas espeacutecies animais e vegetais natildeo satildeo conhecidas tanto por sua utilidade elas satildeo decretadas uacuteteis ou interes-santes porque satildeo de antematildeo conhecidasrdquo (Leacutevi-Strauss 1962 p 21) O que nos faz viver o que nos determina natildeo eacute contrariamente ao que cremos a eficaacutecia imediata Eacute a ordem simboacutelica pela qual inscrevemos os objetos comportamentos e situaccedilotildees que vivemos

Uma das explicaccedilotildees que podemos trazer em relaccedilatildeo ao grande su-cesso da figura de Sherazade reside no fato de que para salvar sua vida como ela proacutepria afirma relata coisas espantosas e surpreendentes Que coisas As que natildeo se destinam agrave nossa razatildeo mas agraves paixotildees e afetos Histoacuterias fantaacutesticas que ligam Sherazade agrave vida histoacuterias inuacuteteis eacute ne-cessaacuterio guardar no espiacuterito para perceber aqui uma articulaccedilatildeo muitas vezes insuspeita entre as Mil e uma noites e a educaccedilatildeo Esta tomada de consciecircncia materializa como o uacutetil se cindiu do fantaacutestico na educa-ccedilatildeo pensemos no que fizemos a geraccedilotildees de crianccedilas espontaneamente apaixonadas por mapas de tesouros o sonho de ilhas misteriosas conti-nentes desconhecidos e cidades submersas transformadas em geraccedilotildees que odeiam a Geografia

Sherazade cuja vida eacute ameccedilada natildeo encontra outra estrateacutegia que a de arriscaacute-la com coisas divertidas ela potildee sua vida ao risco da compo-siccedilatildeo literaacuteria A figura de Sherazade se constitui assim em uma cativa paradoxalmente ldquonocircmaderdquo em sentido deleuziano Eacute aquela que passa o tempo a fugir dos ldquoagenciamentos territorializadosrdquo Natildeo nos conta uma histoacuteria natildeo realiza uma viagem uacutenica Natildeo vai de um soacute iniacutecio a um soacute fim Sherazade ilustra um caminho em que os pontos satildeo sempre

submetidos ao proacuteprio trajeto E pode ser neste sentido que Sherazade conforma a desterritorializaccedilatildeo por excelecircncia a de uma nocircmade que cativa natildeo para de movimentar as fronteiras Ela navega pela vista mos-trando ao mesmo tempo as qualidades de uma inteligecircncia que evo-lui numa multiplicidade qualitativa nos lembrando que ldquoa navegaccedilatildeo nocircmade empiacuterica e complexa faz intervir os ventos barulhos cores e sons do marrdquo (Deleuze Guattari 1980 p 599) Noacutes sabemos tambeacutem que o que verdadeiramente seduziu desde o seacuteculo XIX os autores e criadores dos diferentes campos artiacutesticos foi certamente a metaacutefora do autor frente o imperativo da criaccedilatildeo O escritor o compositor o autor eacute aquele que deve encontrar diariamente um tema uma histoacuteria para viver e para sobreviver Dito de outra forma o inuacutetil vale igualmente a vida do autor

6 Da tentaccedilatildeo desmoralizadora

Se expressa nas Mil e uma noites uma tentaccedilatildeo desmoralizadora de superar as barreiras e delimitaccedilotildees estabelecidas pela sociedade igualmente no registro da hierarquia social Pensemos na 9ordf noite por exemplo onde vemos se realizar o impensaacutevel numa sociedade em que o estatuto social eacute fortemente delimitado O que se trata aqui eacute o cotidia-no aspectos que poderemos classificar de lsquoordinaacuteriosrsquo Estamos em um mercado aacuterabe (souk) qualquer pessoa hoje ainda pode imaginar uma atmosfera tiacutepica se identificando com o carregador O que nos faz mer-gulhar nas Noites Qual a mensagem aqui O livro sob muitos aspectos nos fala de coisas cotidianas

1) elas reconfiguram o cotidiano jogando com as barreiras morais e sociais estabelecidas superando as lsquolimitaccedilotildeesrsquo do real a ficccedilatildeo nos faz sair de noacutes mesmos e de nossas vidas

2) Mas as Noites nos dizem tambeacutem que precisamos prestar aten-ccedilatildeo a este cotidiano de aparecircncia comum Eacute necessaacuteria atenccedilatildeo agraves coisas ordinaacuterias pode ser que se encontre nelas coisas extraordinaacuterias Este eacute um fato particularmente moderno para um texto tatildeo antigo Mas isso natildeo se limita especificamente agraves Mil e uma noites o mesmo pode ser encontrado na literatura dita de maneira geral como lsquomedianarsquo

Pois as pessoas simples tecircm um papel consideraacutevel nas Noites pen-samos tambeacutem no personagem do empregado do matadouro de Bagdaacute arpoado por uma adoraacutevel jovem que decidiu jaacute que era traiacuteda pelo marido dormir com o mais sujo e abjeto homem da cidade A obra cria uma sociedade sonhada cujas fronteiras indevassaacuteveis satildeo constan-temente perpassadas uma sociedade em que escravos africanos fazem amor com lindas princesas sultanas onde carregadores satildeo seduzidos por jovens distintas e empregados de matadouros copulam com lindas mulheres Assim a tentaccedilatildeo desmoralizadora se exprime como uma fuga uma improvisaccedilatildeo literaacuteria entre a sentenccedila religiosa de abertura ldquoem nome de Deus o todo misericordioso o muito misericordiosordquo e a conclusatildeo das narrativas curtas sempre moral E Deus estaacute aqui sempre posto como testemunha e invocado para nos lembrar talvez que o di-vino se materializa tanto no excesso de moralidade quanto na tentaccedilatildeo desmoralizadora que o rosto de Deus se encontra tambeacutem no deboche na decadecircncia e na orgia Esta ideia eacute ainda mais fortalecida quando se restitui as experiecircncias conduzidas pelos Majdhucircb literalmente os ldquoaspirados em Deusrdquo tambeacutem chamados repreendidos que procuravam o seu Senhor bem amado dentro de experiecircncias que superavam todos os quadros morais estabelecidos (cf Bentounegraves Solt 1996 p 154-158) Repensemos neste quarteto de Omar Khayyam

Cada gosto de vinho que o Saki derramaNegligentemente para apagar os fogos de penaEm qualquer coraccedilatildeo doloroso Louvaccedilotildees agravequele que ofereceUm tal remeacutedio para consolo de sua melancolia (2005 p 69)

Interpretamos sobretudo este vinho como uma metaacutefora miacutestica ou como praacutetica voluntaacuteria de embriaguez tendo em vista uma aproxima-ccedilatildeo de Deus O ecircxtase estaacute assim natildeo muito longe da surpresa do des-lumbramento e espanto Jogar com uma ordem estabelecida que eacute res-peitada interiorizada e as Mil e uma maneiras de transgredi-las pois a transgressatildeo eacute um dos ingredientes essenciais ao drama e um dos aspec-tos que mais datildeo interesse ao texto Ela natildeo eacute proacutepria agraves Noites tambeacutem estaacute presente no romance de Ariosto no qual a traiccedilatildeo se daacute com um anatildeo disforme O fantaacutestico e o sobrenatural satildeo caminhos para a supe-raccedilatildeo do real o transgredir a lei tais funccedilotildees se aproximando daquelas apontadas por Torodov Noacutes podemos ver no fantaacutestico na forma como

ele se expressa nas Noites uma linha de fuga no sentido deleuziano do termo que permite escapar no espaccedilo de um instante literaacuterio agrave censu-ra se jogando sutilmente contra as interdiccedilotildees das autoridades

7 Agrave guisa de conclusatildeo a submissatildeo moralizadora ou quando a literatura marcha obediente

De fato ao fim eacute bem a moral que daacute a tocircnica nas Noites e a cons-tante e breve reconquista dos territoacuterios do imaginaacuterio do fantaacutestico do maravilhoso Eacute necessaacuterio repensar continuamente esta literatura como Adab no duplo sentido de educadora e moralizadora De harmonizar o ser com o mundo e os outros Se repensarmos por exemplo Simbad do mar24 que encontra um outro Simbad carregador Aquele conta a este que um dia perdeu sua fortuna e decidiu abandonar tudo para partir apoacutes lembrar-se da sentenccedila do rei Salomatildeo ldquotrecircs coisas satildeo preferiacuteveis a trecircs outras o dia da morte ao dia do nascimento um cachorro vivo a um leatildeo morto e a tumba agrave miseacuteriardquo Eis uma amarga liccedilatildeo de moral ao outro Simbad o simples carregador acabrunhado pela vida e pelo ardor de sua tarefa Uma liccedilatildeo ainda mais amarga se pensarmos no esquema narrativo invariaacutevel ao qual obedecem as aventuras de Simbad do mar ele nasce em meio agrave fortuna para depois perdecirc-la embarca para encon-trar uma tempestade ou uma agressatildeo naufraga e perde todas as suas mercadorias mas a sorte estaacute sempre a seu favor pois ele se arrisca Eacute Simbad do mar que embarca ou o Simbad simples carregador que sonha em fazecirc-lo Natildeo seria uma mensagem agraves pessoas humildes de Bagdaacute sobre a aceitaccedilatildeo de sua sorte e de natildeo se perder a esperanccedila de trabalhar e abraccedilar os riscos ldquoUns tecircm o cansaccedilo por lote e outros o repouso Uns satildeo felizes outros como eu mesmo vocacionados agrave maior pena e ao aviltamentordquo (Bencheikh Miquel 2007 p 354) E poucas paacute-ginas nos bastam para trazer esta liccedilatildeo

Eacute pelas provas que se atinge as honras pois ao se visar o que estaacute muito alto quantas noites sem sonho Deve mergulhar profundamente o que deseja encon-trar peacuterolas e merecer assim o poder e a riqueza Quem sonha a gloacuteria sem mer-gulhar na pena consome a existecircncia a buscar o impossiacutevel (p 356 ndash 539ordf noite)

24 A traduccedilatildeo literal do aacuterabe natildeo faz de Simbad um marinheiro mas um homem do mar no sentido de que ele usa o mar como um comerciante o mar nunca eacute um fim em si

Simbad ilustra se eacute necessaacuteria uma concepccedilatildeo da moral em terras do Islatilde em que a fortuna deve se conjugar com a salvaccedilatildeo a tal pon-to que quando a ilha se movimenta o capitatildeo do barco comeccedila a gri-tar a quem quiser ouvir ldquoabandonem seus bens e salvem suas almas Primeiro suas vidas Esta ilha na qual vocecircs estatildeo natildeo eacute uma ilhardquo (p 357) A ambivalecircncia da ilha entre imagem paradisiacuteaca e simulaccedilatildeo diaboacutelica eacute um motivo antigo Estamos face a uma alegoria a ilha eacute tambeacutem o diabo que simula o paraiacuteso Eacute preciso se referir agraves primei-ras linhas da Icircle deserte et autres textes de Deleuze sobre a persistecircncia desta imagem na literatura das diferenccedilas entre ilha continental e ilha oceacircnica esclarecendo esta geografia imaginaacuteria que tanto se aproxima como se distancia de noacutes mesmos

Os geoacutegrafos dizem que haacute dois tipos de ilhas Eacute uma informaccedilatildeo preciosa para a imaginaccedilatildeo pois se encontra aqui uma confirmaccedilatildeo do que ela sabia de outra parte [] As ilhas continentais satildeo ilhas acidentais ilhas derivadas elas estatildeo separadas do continente nascidas de uma desarticulaccedilatildeo erosatildeo fratura e sobrevivem ao afundamento do que as mantinha As ilhas oceacircnicas satildeo ilhas originaacuterias essenciais de uma parte satildeo constituiacutedas de corais se nos apresen-ta como um verdadeiro organismo de outra surge de erupccedilotildees submarinas trazendo para o ar livre um movimento das profundezas umas emergem lenta-mente outras desaparecem e retornam sem que tenhamos tempo de anexaacute-las [] Essa atraccedilatildeo que o homem tem pelas ilhas retoma este duplo movimento que as produz Sonhar as ilhas com anguacutestia ou alegria pouco importa eacute so-nhar que noacutes nos separamos que jaacute estamos separados longe dos continentes que estamos soacutes e perdidos ndash ou eacute sonhar que reiniciamos a partir do zero que recriamos e recomeccedilamos (Deleuze 2002 p 11)

Enfim eacute preciso entender que os grandes episoacutedios que compotildeem as Mil e uma noites satildeo construiacutedos sobre um modelo elaborado que tecircm em vista finalidades altamente morais Pensamos no tintureiro desonesto da 930ordf noite Este personagem velhaco mentiroso na alma e que nunca se envergonha das vilezas que faz aos outros exige o pagamento antes do trabalho gasta o dinheiro e pede aos clientes que retornem para pegar seus pertences no outro dia em dias consecutivos pretextando o nascimento do filho ou a visita de convidados Depois quando natildeo tem mais argumentos diz que a roupa fora roubada quando estava estendida Se o cliente eacute bom diz um ldquoDeus providenciaraacute a sua substituiccedilatildeordquo se eacute menos influenciaacutevel causa um escacircndalo mas sem obter nada mesmo se queixando ao juiz Pouco a pouco o ruiacutedo se expande em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas desonestas do tintureiro atraindo a atenccedilatildeo sobre ele Pouco a pouco vai sendo posto de lado seus negoacutecios declinam e por fim seraacute simultaneamente queimado e afogado Mais que uma liccedilatildeo de moral vinculada aos negoacutecios comerciais vemos aqui como as Noites aspiram a esta liccedilatildeo de conseacutequentialisme demonstrando sequencialmente os efeitos gerados por uma accedilatildeo e a partir dela o valor moral da mesma O fantaacutes-tico eacute ornamento mas igualmente uma fuga salutar diante de um neces-saacuterio retorno a uma realidade que pedia moralidade e Adab

REFEREcircNCIAS

AMIROU Rachid Imaginaire touristique et sociabiliteacute du voyage Paris PUF 1995

BACHELARD Gaston La formation de lrsquoesprit scientifique Paris Vrin 1971

AVERROES LrsquoIslam et la raison Trad Marc Geoffroy Paris Garnier-Flammarion 2000

BERCHET Jean-Claude Le Voyage en Orient anthologie des voyageurs franccedilais au XIXe siegravecle Paris Robert Laffont 1985

BOURDIEU Pierre WACQUANT Loiumlc ldquoSur les ruses de la raison impeacuterialisterdquo in Actes de la recherche en sciences sociales Vol 121-122 mars 1998 (p109-118)

BOUTANG Pierre-Andreacute LrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuze (teacuteleacutefilm documentaire) Paris Arte (1988) 1996

CAILLOIS Roger Au cœur du fantastique Paris Gallimard 1965

CAPELLE Pierre Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature (tome 1) Paris Haut-coeur et Gayet Jeune 1824

CFMI - Centre de Formation des Musiciens Intevenants agrave lrsquoEacutecole Actes de colloque La musique un enseignement obligatoire Pourquoi comment Paris Lrsquoharmattan 2000

CHATEAUBRIAND Reneacute Itineacuteraire de Paris agrave Jeacuterusalem Paris Gallimard 1969

CORM Georges Orient-Occident La fracture imaginaire Paris La deacutecouverte 2005

DELEUZE Gilles Mille Plateaux ndash Capitalisme et schizophreacutenie 2 en collaboration avec GUATTARI Felix Paris Les eacuteditions de Minuit 1980

_________ Diffeacuterence et reacutepeacutetition Presses Universitaires de France Paris 1968

DERRIDA Jacques Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Paris Seuil 1967

FOUCAULT Michel Les mots et les choses Paris Gallimard 1990

FLAUBERT Gustave Correspondance 1 1830-1851 Paris Gallimard 1973

__________ Correspondances ressource en ligne de lrsquoUniversiteacute de Rouen URL httpflaubertuniv-rouenfrcorrespondanceconardlettres49bhtml (acessado em 14 de fevereiro de 2013)

__________Voyage en Eacutegypte Paris Grasset 1991

GERONIMI Martine ldquoLrsquoOrient geacuteographie imaginaire les eacutecrivains franccedilais et les villes de deacutesirrdquo in Teacuteoros 25-2 | 2006 13-18

HENTSCH Thierry LrsquoOrient imaginaire Paris Eacuteditions de Minuit 1988

ISSA Hossam ldquoLa Nahda ou le recircve de na nation eacutegyptienne de Muhammad Ali agrave Gamal Abdel Nasserrdquo in EacutegypteMonde arabe Premiegravere seacuterie Mutations [En ligne] mis en ligne le 08 juillet 2008 httpemarevuesorgindex1480html (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

LORCERIE Franccediloise ldquoLrsquoislam comme contre-identification franccedilaise trois momentsrdquo in LrsquoAnneacutee du Maghreb vol II 2007

LOVECRAFT Howard Phillips Eacutepouvante et surnaturel en litteacuterature Paris Bourgeois 1969

MOUSSA Sarga Le Voyage en Eacutegypte Anthologie des voyageurs europeacuteens de Bonaparte agrave lrsquooccupation anglaise Paris Robert Laffont 2004

NERVAL Geacuterard de Voyage en Orient Paris Flammarion 1980

RANCIERE Jacques Le partage du sensible Paris La fabrique 2000

SAIumlD Edward LrsquoOrientalisme LrsquoOrient creacuteeacute par lrsquoOccident Paris Seuil 1980

TOUALBI-THAALIBI Issam ldquoRegards sur la socieacuteteacute musulmane du ixe siegraveclerdquo in Revue europeacuteenne des sciences sociales [En ligne] 50-1 | 2012 mis en ligne le 15 juin 2015 httpressrevuesorg1208 (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

TOUFY Fahd ldquoAnges deacutemons et djinns en Islamrdquo in Geacutenies Anges et Deacutemons Paris Seuil 1972 (p 154-213)

Voyage en Orient Exposition de la Bibliothegraveque nationale de France (BNF) [httpexpositionsbnffrveoindexhtm] (acessado nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2013)

A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro(Doutoranda em Linguiacutestica ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Priscilla de Moraes Batista(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Luiacutes Nicolau Fagundes Varela (1871-1845) eacute considerado um dos grandes nomes do Romantismo brasileiro Poeta ambientado pela criacutetica entre a segunda e terceira geraccedilotildees suas obras versavam sobre temas como morte patriotismo religiatildeo e misticismo Em meio a esta produccedilatildeo haacute um conto especial que abarca elementos oniacutericos fantaacutesticos ora em tom gro-tesco ora sublime retomando o mito paradisiacuteaco de um Oriente perdido quase metafiacutesico imagem esteacutetica que percorre a histoacuteria da literatura por-tuguesa desde a eacutepoca dos Descobrimentos (Machado 1983) Encontrado por Batalha (2011) e publicado no livro O fantaacutestico brasileiro contos esque-cidos o conto As Bruxas de Fagundes Varela introduz o leitor do seacuteculo XIX no universo da bruxaria e feiticcedilaria do folclore europeu a partir da his-toacuteria de um grupo de argonautas portugueses que aportados em um cais satildeo surpreendidos pela presenccedila de mulheres velhas e medonhas no conveacutes de seu navio sendo estas referidas posteriormente como feiticeiras Eacute nesse momento que os personagens iniciam uma jornada lendaacuteria culminando com a constataccedilatildeo do capitatildeo da ida dos seus tripulantes agraves Iacutendias

Apoacutes essa breve introduccedilatildeo ao conto passemos agrave discussatildeo dos aspectos linguiacutesticos e literaacuterios responsaacuteveis por construir a diegese Logo no iniacutecio da narrativa deparamo-nos com o diaacutelogo que Fagundes Varela estabelece com importantes obras da literatura fantaacutestica Baseando-nos no dialogismo de Bakhtin (2005) conceito desenvolvi-do em Problemas da poeacutetica de Dostoievski observamos que o autor ao referenciaacute-las explicitamente para a dimensatildeo ficcional da histoacuteria de-marca quais satildeo os discursos esteacuteticos e literaacuterios que vatildeo se constituir como base para a construccedilatildeo do (seu) universo da bruxaria

Na Alemanha e na Escoacutecia elas [as bruxas] andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura e desprendem funeacutereas monodias ao ermo e aos venda-vais Foi assim que Fausto e Mefistoacutefeles as encontraram a subir a montanha na medonha noite dos Walpurgis que Shakespeare as pintou na desvairada trageacutedia do Macbeth que Hoffmann as apresentou a desoras entre a chuva e a tempestade aos lacrimosos olhos da triste amante de Anselmo o louco no conto doentio que denominou o - vaso de ouro eacute assim que Walter Scott coxo as fez aparecer em seus belos romances Na Franccedila poreacutem segundo as tradiccedilotildees coligidas por Emiacutelio Souvestre no ndash Foyer Breton ndash e Paulo Feval em suas lendas elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar lavar o sudaacuterio dos finados nas aacuteguas do rio ou ir danccedilar ao Sabbath o baile infernal alumiado pelo claratildeo sinistro das fosforescecircncias tendo por orquestra ndash o bramido das torrentes ndash o ronco de trovoada e os silvos da ventania (Varela 2011 p 53)

Entatildeo Fagundes Varela ao oferecer exemplos literaacuterios para basear a realidade da sua histoacuteria dialoga com o fundo aperceptivo (Bakhtin 1993) do universo dantesco de histoacuterias de bruxaria e feiticcedilaria pre-sentes em diversas obras da Alemanha EscoacuteciaInglaterra Franccedila e Portugal Uma vez que o autor faz referecircncia a esse imaginaacuterio esteacutetico de grande influecircncia na construccedilatildeo do arqueacutetipo coletivo da bruxaria mencionaremos algumas das vozes que ressoam e se entrelaccedilam de for-ma mais contundente com o enunciado total do conto

Iniciaremos pela Alemanha Entre as vozes que convoca tais como Hoffmann em Vaso de ouro ldquotriste amante de Anselmo o loucordquo Gottfried Burger o pai da poesia narrativa fantaacutestica neste paiacutes e Achim von Arnim escritor romacircntico de espectros destacaremos a de Goethe Em sua obra Fausto haacute referecircncia agrave noite dos Walpurgis a qual eacute comemorada entre 30 de abril e 1deg de Maio celebrada por cristatildeos e pagatildeos em vaacuterios paiacuteses aleacutem da Alemanha como Inglaterra Beacutelgica Holanda e Franccedila Essa referecircncia pode ser ilustrada na cena III do quadro XXI da parte inicial do livro inti-tulada Noite de Santa Walpurga na qual Mefistoacutefeles obriga Fausto a passar uma noite no monte de Brocken para assistir agrave celebraccedilatildeo dos Walpurgis

De Brocken ao rochedocorrer correr bruxedoOnde a cana jaacute loirejamas a espiga inda verdejatodo o bando unido sejaPosto de alto e todo manoeacute o senhor Dom Fulano

quem preside ao nosso arcanoPor cima da folha mais do pedregulhofestanccedila rasgada com todo o barulhoO bode tresanda fartum que enfeiticcedilae a bruxa casticcedila casticcedila e casticcedila (Goethe 2003 grifo nosso)

Passemos agora agraves vozes literaacuterias da Escoacutecia e Inglaterra Entre elas as de Walter Scott romancista histoacuterico Anna Radcliffe escritora de histoacuterias de fantasmas o corcel de Giaour25 tambeacutem trabalhado pela de Byron e a de Shakespeare em especial na sua obra Macbeth (1606) A referecircncia a esse livro eacute particularmente importante tendo em vista o universo da bruxaria nele trabalhado muito a fim ao conto de Varela Isso pode ser ilustrado neste excerto da peccedila shakespeariana em que Banquo ao conversar com Macbeth afirma

A que distacircncia em sua avaliaccedilatildeo senhor estamos de Forres O que satildeo essas figuras tatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fantaacutesticas e desvairadas em seus trajes a ponto de natildeo parecerem habitantes da terra e no entanto podemos ver que estatildeo sobre a terra Vivem vocecircs Ou seriam vocecircs alguma coisa que natildeo admi-te perguntas humanas Vocecircs parecem entender-me logo levando como fazem cada uma por sua vez seu dedo encarquilhado aos laacutebios emaciados Vocecircs tecircm toda a aparecircncia de mulheres e no entanto suas barbas proiacutebem-me de inter-pretar suas figuras como tal (Shakespeare 2012 p 18-9 grifos nossos)

Ao definir as trecircs bruxas como ldquotatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fan-taacutesticas e desvairadasrdquo de ldquodedo encarquilhadordquo ldquocom aparecircncia de mulhe-resrdquo figuras que ldquonatildeo admite[m] perguntas humanasrdquo Shakespeare atraveacutes de Banquo caracteriza essas criaturas como seres que oscilam entre o hu-mano e o natildeo-humano pois mesmo vivendo e habitando a terra haacute algo na natureza dessas criaturas que se afasta do natural Esses traccedilos podem ser tambeacutem visualizados no iniacutecio do conto quando Fagundes Varela afirma ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa suas palavras e accedilotildees cunhadas do torvo caraacuteter de uma sombria monomaniardquo (p 53 ndash grifos nossos) Esta uacuteltima expressatildeo ldquosombria mo-nomaniardquo ainda destaca a fixaccedilatildeo irracional doentia e grotesca desses seres

Varela ainda dialoga com outras vozes literaacuterias da Franccedila a saber Emiacutelio Souvestre ao mencionar o poema Foyer Breton que reuacutene vaacuterias

25 Eacute interessante notar que o nome ldquoGiaeurrdquo caracterizava o desprezo que os turcos tinham agravequeles que natildeo seguiam sua religiatildeo particularmente os cristatildeos

histoacuterias do folclore e da literatura popular da Bretanha e Paulo Feacuteval romancista mais conhecido no final do seacuteculo XIX A partir dessas refe-recircncias observamos que Fagundes Varela eacute um romacircntico que dialoga atraveacutes da retomada no seu texto com os grandes nomes do movimen-to em se utilizando por exemplo de temas populares e folcloacutericos mais proacuteximos do fantaacutestico e contraacuterios ao universo classicista tradicional

Haacute ainda outra voz de grande importacircncia para a elaboraccedilatildeo do fundo aperceptivo do conto Logo apoacutes ambientar o leitor quanto ao tema a ser abordado evoca-se uma lenda folcloacuterica da eacutepoca das Grandes Navegaccedilotildees divulgada nas terras portuguesas A referecircncia geograacutefica eacute oferecida quan-do o autor cita alguns locais de Portugal ndash Minho e Extremadura ndash onde tais supersticcedilotildees se encontram mais arraigadas ao folclore local ldquoentretanto em nossas tradiccedilotildees filhas quase todas das geacutelidas supersticcedilotildees do Minho e da Extremadura as bruxas natildeo satildeo revestidas desse caraacuteter de sublimes horrores que as faz tatildeo temidas nas campinas da Bretanha nas montanhas da Escoacutecia ou nas planiacutecies da Alemanhardquo (Varela 2011 p 53) Aqui o ter-mo entretanto delimita o imaginaacuterio das bruxas portuguesas das Grandes Navegaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves figuras diaboacutelicas citadas anteriormente

Apoacutes delimitar o fundo dialoacutegico do conto passemos para a anaacutelise do narrador e dos personagens Em relaccedilatildeo ao primeiro observamos a presenccedila do narrador heterodiegeacutetico (Batalha 2011) que natildeo participa da accedilatildeo (de grau zero) mas que conhece os fatos ao seu redor (oniscien-te) Por outro lado notamos que o autor abre um lsquoespaccedilorsquo no texto para se posicionar sobre o que estaacute relatando a saber as lendas que dispotildee para o leitor ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas [eacute estranho] contam que agrave noite elas rolam pela correnteza sentadas em alguiacutedares e coro-adas de floresrdquo (Varela 2011 p 54) Baseando-nos em Bakhtin (1993) observamos que nesse trecho Fagundes Varela mostra explicitamente a sua voz a partir da expressatildeo deslocada entre colchetes ldquoeacute estranhordquo re-velando sua visatildeo sobre a histoacuteria de dentro e fora do conto Nos dizeres da autora francesa Authier-Revuz (1982) estariacuteamos nos deparando com um comentaacuterio metoniacutemico isto eacute um entrelaccedilamento da enunciaccedilatildeo pois o autor alude a si e ao outro dentro do seu proacuteprio discurso abrindo uma brecha no seu enunciado quando emprega o verbo no plural contam (quem conta eles isto eacute os ditos mitos e folclores populares)

Eacute interessante notar que apoacutes essa demarcaccedilatildeo pontual da voz do autor na narrativa referindo-se ao imaginaacuterio dessas lendas oralizadas

ele relata ldquoeis uma das lendas mais conhecidasrdquo Aqui a diegese eacute tra-balhada de maneira antropoloacutegica mas com criatividade literaacuteria Isso significa que o leitor percebe que eacute lenda e por isso a teoria de Todorov sobre o fantaacutestico puro falha ao menos pontualmente Contudo eacute im-portante mencionarmos que no primeiro paraacutegrafo do conto haacute uma focalizaccedilatildeo mais proacutexima do maravilhoso todoroviano quando Varela descreve as bruxas como ldquomulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 2011 p 53) aceitando de antematildeo a presenccedila de leis distintas do real

Voltemos agora para os personagens A esse respeito o enredo eacute constituiacutedo por cinco marinheiros ndash Pedro Guilherme Teodoro Jacques e Gabriel ndash e uma quantidade indefinida de bruxas Sob a perspectiva bakhtiniana (1993) observamos que haacute uma uacutenica visatildeo de mundo co-letivizando as vozes do grupo dos marinheiros ldquoo marinheiro eacute um tipo estoico por natureza nada haacute que os aflija como tambeacutem nada haacute que os amedronterdquo (Varela 2011 p 55 grifo nosso) Nessa citaccedilatildeo relacionada a uma discussatildeo relativa ao sobrenatural saiacutemos do horror propriamen-te dito no momento em que estes marinheiros apresentam caracteriacutesti-cas dos heroacuteis mitoloacutegicos claacutessicos impassiacuteveis inabalaacuteveis em suma incapazes da experiecircncia do medo

Por outro lado as bruxas satildeo caracterizadas ora como grotescas ora sublimes Hugo (2007) na obra Do grotesco e do sublime permite-nos compreender esses polos como parte da dinacircmica do pensamento esteacute-tico romacircntico pois a sua junccedilatildeo ofereceria novo iacutempeto agrave arte Para ele o grotesco o disforme e o horriacutevel datildeo descanso ao que eacute belo e para se admirar esse ldquobelordquo seria preciso um contraste uma comparaccedilatildeo

Nesse conto observamos que o grotesco e o sublime satildeo elementos predominantes na caracterizaccedilatildeo das bruxas os quais por sua vez intensificam o universo fantaacutestico-maravilhoso assim o trabalho de Varela com o grotesco se configura a partir de uma mescla de elementos heterogecircneos que daacute vazatildeo a uma experiecircncia abismal (Kayser 2008) como ilustram os excertos abaixo

As bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernal (Varela 2011 p 53 grifos nossos)

Os aspectos destas taacutertareas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa [] (p 53 grifo nosso)

Pedro subiu e chegando agrave escotilha viu uma multidatildeo de mulheres velhas e medonhas que entravam umas atraacutes das outras pulando e saltando a cavalo em cabos de vassouras (p 54 grifo nosso)

Entatildeo ele olhou para aquela turba invasora de sinistras personagens [] (p 54 grifo nosso)

As moccedilas transformaram-se logo em hediondas velhas sem contudo perder as riquezas que lhes tinham dado sem duacutevida seus misteriosos amantes e cavalgando o claacutessico cabo de vassoura lanccedilaram-se ao mar e desaparece-ram (p 57 grifo nosso)

Desse modo o grotesco eacute configurado como um traccedilo marcante da obra se inserindo especialmente no tratamento que eacute dado agraves invasoras Contudo em um determinado ponto da histoacuteria no momento em que as bruxas invadem a embarcaccedilatildeo modifica-se sua aparecircncia horriacutevel e grotesca e elas tornam-se belas criaturas Segundo Hugo (2007) o gro-tesco pode ser visto como um ponto de partida para se chegar ao belo Logo esse movimento ndash do feio para o belo ndash proporciona uma expansatildeo vivacidade e emoccedilatildeo ao objeto artiacutestico Nessa perspectiva observamos a passagem do grotesco para o sublime no universo do insoacutelito a partir de algumas descriccedilotildees tais como em ldquoos marinheiros correram para a proa e viram em vez das megeras que Pedro enxergara um bando de moccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo (p 55 grifo nosso)

Eacute interessante notarmos que esse aspecto sublime da beleza pode se constituir como um simulacro funcionando atraveacutes de uma falsa aparecircncia Ora as bruxas possuem uma ldquosombria monomaniardquo (Varela 2011 p 53) ou seja predomina entre elas o desejo doentio de serem eternamente jovens e belas ldquoas bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e ventu-ras da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 194 p 53 grifo nosso) Essa beleza eacute portanto estranha e grotes-ca porque eacute sedutora e ilusoacuteria artifiacutecio do sobrenatural para ldquoenganarrdquo os marinheiros Logo o grotesco e sublime satildeo aspectos que funcionam na diegese como iacutendices que potencializam o caraacuteter insoacutelito da obra

Antes de concluirmos a anaacutelise da caracterizaccedilatildeo dessas bruxas observemos que elas satildeo construiacutedas no conto como seres livres e

independentes sexualmente detentoras de um grande poder sensual e de encanto eroacutetico como se vecirc nas seguintes imagens

[] elas andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura [] (p 53 gri-fos nossos)

[] elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar [] (p 53 grifo nosso)

[] se transformam em belas moccedilas apossam-se dos navios erguem as acircn-coras e vatildeo por aiacute afora seduzir os rapazes entregar-se em horrenda lubri-cidade aos braccedilos deles ndash incendidos de um amor vertiginoso e funesto (p 54 grifos nossos)

Nesses trechos notamos a presenccedila da liberdade via erotismo re-lacionada tambeacutem ao imaginaacuterio romacircntico de quebra do decoro e das femmes fatales oitocentistas Ademais o universo dessas bruxas osci-la em torno de um movimento entre o sagrado e o profano26 (Priore 1994) evocando mulheres proacuteximas a uma pureza quase casta e virginal ndash ldquomoccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo ndash mas ao mesmo tempo envoltas em uma atmosfera misteriosa e erotizada

Ainda a respeito da polarizaccedilatildeo grotesco x sublime observamos que esse movimento de expansatildeo do disforme para o que estaacute na forma do belo destaca-se na configuraccedilatildeo peculiar do tempo e espaccedilo narrativos O cronotopo eacute diluiacutedo por alguns processos narrativos tiacutepicos do fantaacutestico

Entretanto o navio natildeo perdia tempo - corria corria corria e na desabrida carreira como o luacutegubre cavaleiro de Burger deixava atraacutes de si a terra as ilhas as aacutervores e as nuvens como um bando de aves fugitivas A cada porccedilatildeo de espaccedilo que rompia ndash o ar tornava-se mais azul e carregado as estrelas maiores e mais viacutevidas No zimboacuterio imenso do firmamento a lua se equilibrava como uma lacircmpada de prata inundada de nardo na cuacutepula dos templos orientais As ondas erguiam-se como Leviathans em cujo dorso escamoso brincavam os raios de uma luz fosforescente e a embarcaccedilatildeo de-senhava-se raacutepida e fugaz nas aacuteguas como a sombra do corcel de Giaeur nas plantas do ervaccedilal (Varela 2011 p 55 grifos nossos)

Nesse excerto observamos que o tempo passa raacutepido e o navio li-teralmente ldquovoardquo O espaccedilo e tempo satildeo assim expandidos atraveacutes do

26 O movimento de oscilaccedilatildeo do sagrado e do profano estaacute ligado tambeacutem agrave dinacircmica do grotesco e do sublime

processo de repeticcedilatildeo de palavras ndash corria corria corria ndash e por meio do paralelo do navio com o ldquocorcel de Giaourrdquo (dialogismo mostrado com o poema de Byron) A referecircncia agrave ldquocuacutepula dos templos orientaisrdquo sina-liza a viagem ateacute a Iacutendia e representa a passagem da razatildeo europeia ao maravilhoso desconhecido do Oriente Potencializando o universo fan-taacutestico do conto esta regiatildeo eacute descrita com termos que evocam o lon-giacutenquo o metafiacutesico o abstrato um sonho que ldquoparecerdquo nunca ter se re-alizado mas que se presentifica efetivamente como se eacute revelado ao final do conto a partir do diaacutelogo entre o capitatildeo e o grupo de marinheiros

Machado (1983) em sua obra O mito do Oriente na literatura por-tuguesa explica que este espaccedilo geograacutefico tambeacutem em liacutengua portu-guesa veio sendo apropriado literariamente como um mito ao longo dos seacuteculos por autores do passado como Joatildeo de Barros Camotildees Diogo do Couto entre outros ateacute a contemporaneidade (Antero de Quental Eccedila de Queiroacutes etc) Segundo Machado desde a eacutepoca dos Descobrimentos haacute uma constante elaboraccedilatildeo desse tema que de tan-to circular tornou-se parte da nossa memoacuteria coletiva imprimindo-se na nossa histoacuteria como um arqueacutetipo O olhar negativo em relaccedilatildeo ao Oriente por conta da secular dominaccedilatildeo moura na peniacutensula ibeacuterica eacute mitigado por estas maravilhas comuns ao imaginaacuterio europeu poten-cializadas pela movecircncia das grandes navegaccedilotildees

No conto de Varela a chegada do navio agraves Iacutendias pelos ares eacute des-crita da seguinte forma

Depois de assim voar o navio por algum tempo parou finalmente junto de umas costas alvas e extensas coroadas de uma vegetaccedilatildeo fantaacutestica e titacirc-nia As feiticeiras pularam logo ao mar e comeccedilaram a correr para a terra com tal desembaraccedilo como se pisassem uma campina firme e segura Os ldquomarsouinsrdquo ficaram estaacuteticos e perplexos alguns minutos poreacutem como ndash marinheiro eacute capaz de desembestar ateacute o quinto inferno e palestrar com o proacuteprio Satan soltaram os escaleres e remaram para a praia Chegando sen-tiram uma como harmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e desconcertados que vinha de longe nas asas de uma aacuterea teacutepida e suave ferir-lhes o ouvido Caminharam para o lugar de onde partia o ruiacutedo agrave medida poreacutem que se adiantavam um perfume voluptuoso e sensual desconhecido embora vinha-lhes amenizar os sentidos umas aacutervores enormes gigantescas cujos fastiacutegios pareciam espanejar as nuvens levantavam-se diante deles mu-dos silenciosos como os fantasmas de Anna Radcliff como os espectros de Achim DrsquoArnim (Varela 2011 p 56 grifos nossos)

Observamos nessa descriccedilatildeo o fasciacutenio pela descoberta de um paraiacuteso o qual os marinheiros soacute depois saberatildeo tratar-se das Iacutendias Esse ambiente ndash que de certa forma torna lsquofantaacutesticarsquo a Ilha das Amores camoniana ndash revela traccedilos miacutesticos de orientalismo maacutegico e exotista uma ldquoharmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e des-concertadosrdquo sente-se o cheiro de ldquoum perfume voluptuoso e sensual desconhecidordquo haacute aacutervores ldquoenormes gigantescasrdquo etc Tais imagens se aproximam das elaboradas por Joatildeo de Barros em suas crocircnicas segun-do Machado (1983) este autor se concentra na evocaccedilatildeo da descoberta conquista e descriccedilatildeo minuciosa das terras orientais Isso se daacute porque ele eacute um ldquohumanista estaacuteticordquo ndash diferente de Damiatildeo de Goacuteis que viajou muito ao longo da vida ndash a substituir o conhecimento in loco por uma ldquoelaborada retoacuterica claacutessica evocativa do longiacutenquordquo (p 22) que ganha proporccedilotildees miacuteticas

A partir da chegada dos marinheiros a essa terra ldquodesconhecidardquo observamos que durante a descriccedilatildeo do ambiente haacute elementos que caracterizam uma ornamentaccedilatildeo de caraacuteter grotesco e a influecircncia oriental construiacuteda pelo emprego de expressotildees como ldquoedifiacutecio amplo e colossalrdquo ldquomaacutermore pretordquo ldquosacadas douradasrdquo ldquoarabescos fantaacutesticosrdquo ldquofumo do incensordquo ldquoecos rudes e selvagensrdquo ldquosolidotildeesrdquo e ldquonoiterdquo

Os nossos homens adiantavam-se mais e deram entatildeo de rosto com um edi-fiacutecio amplo e colossal todo de maacutermore preto coberto de torreotildees sacadas douradas cornijas e arabescos fantaacutesticos Pelas infinitas fileiras de janeli-nhas ou antes seteiras se pendurava uma multidatildeo de lampiotildees multicores e saiacutea em turbilhatildeo o fumo do incenso e dos alvos uma orquestra desconhe-cida expandia seus ecos rudes e selvagens que se iam morrer pelas solidotildees e pela noite (Varela p 56 ndash grifos nossos)

Em seguida os argonautas se deparam com mais um elemento po-tencializador do gecircnero fantaacutestico a saber um ritual de danccedila como espaccedilo maacutegico de grande semelhanccedila com a danccedila do ventre a qual eacute considerada por muitos a primeira danccedila da humanidade Sari (2011) traz algumas contribuiccedilotildees a esse respeito em sua Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre na qual afirma que sua origem se daacute como um ritual sagrado uma vez que as mulheres danccedilavam para a Deusa-Matildee Inana siacutembolo da reproduccedilatildeo fertilidade e em especial relacio-nada ao crescimento dos gratildeos durante o plantio Surgida no Paleoliacutetico

na regiatildeo da Sumeacuteria ndash e natildeo no Egito como muitos pensam ndash as dan-ccedilarinas como satildeo por noacutes chamadas eram as grandes sacerdotisas dos templos e uma vez que Inana era extremamente feminina seus rituais baseavam-se na sexualidade fertilidade e no ventre a partir de teacutecnicas que norteavam a danccedila sagrada como os movimentos peacutelvicos Essa movimentaccedilatildeo do corpo da sacerdotisa-danccedilarina eacute evocada pelo nar-rador do conto

Fora do edifiacutecio sobre um vasto terreiro ardia uma enorme fogueira em torno da qual homens e mulheres de olhos negros e cintilantes face redonda e bronzeada danccedilavam ao som de instrumentos estranhos e refletiam ao claratildeo da fogueira suas figuras extravagantes na fachada de maacutermore polido do palaacutecio e faziam tremular pelo ar as compridas abas de suas vestimentas vermelhas e amarelas Havia tambeacutem moccedilas belas embora excessivamente trigueiras que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmente no gesti-cular lacircnguido e voluptuoso de uma danccedila desconhecida suas grinaldas e cin-turotildees eram ornados de pequenos luzeiros palidamente azulados Uma ala de homens feios e carrancudos cercava esta exoacutetica companhia e completava o quadro (Varela 2011 p 56-57 - grifos nossos)

Notamos claramente a descriccedilatildeo da movimentaccedilatildeo do corpo da danccedilarina do ventre a partir das expressotildees ldquomoccedilas belas que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmenterdquo e ldquogesticular lacircnguido e volup-tuosordquo Aleacutem disso as caracterizaccedilotildees das vestes dessas mulheres ndash ldquosuas grinaldas e cinturotildees eram ornados de pequenos luzeirosrdquo ndash ratificam a imagem da danccedilarina oriental Todos esses elementos relacionados ao mundo oriental27 potencializam o fantaacutestico

Eacute interessante notar que o leitor eacute paulatinamente inserido no universo fantaacutestico-maravilhoso da trama construiacutedo em torno da nar-rativa oriental de Varela segundo Todorov (2008) no subgecircnero fantaacutes-tico-maravilhoso daacute-se a aceitaccedilatildeo do sobrenatural apoacutes a duacutevida e as ambiguidades fantaacutesticas

27 De acordo com Sari (2011) ldquoas primeiras guerras e consequentemente os primeiros impeacuterios formam o conjunto de fatores que difundiram o culto a deusa e a danccedila peacutelvi-ca ritualiacutestica [] [Ademais houve] seis grandes impeacuterios que participaram ativamente na divulgaccedilatildeo e expansatildeo dos rituais da danccedila impeacuterio Sumeriano Assiacuterio Persa o impeacuterio de Alexandre o grande Romano e o principal o impeacuterio Otomanordquo (p 13)

Quando ao meio dia chegou o capitatildeo os marinheiros contaram o ocorrido e como prova mostraram as plantas que tinham apanhado O comandante tomou-as e pocircs-se a examinaacute-las com atenccedilatildeo misturada de pasmo inexpri-miacutevel depois entregando-as disse - Sabeis voacutes outros onde estivestes esta noite - Natildeo meu capitatildeo responderam os marujos- Pois estivestes na Iacutendia- Na Iacutendia Na Iacutendia Gritaram os marujos estuacutepidos de espanto (Varela 2011 p 57)

Nesse trecho flagramos a presenccedila do fantaacutestico-maravilhoso no momento em que o comandante aceita a histoacuteria contada pelos seus su-bordinados como algo ocorrido de fato evidenciando assim a presenccedila de novas leis na natureza e o estranhamento dos marinheiros eacute logo posto em suspensatildeo Aleacutem disso no final do conto encontramos iacutendices que confirmam este universo de forma incontestaacutevel

Esta eacute a canela filha legiacutetima da Aacutesia esta outra o cravo esta a baunilha e fi-nalmente esta de cujo nome natildeo me recordo agora eacute um excelente remeacutedio que natildeo cresce em nenhuma outra parte do mundo a natildeo ser ali A descriccedilatildeo que me fizestes desses homens morenos e trajados de estranhas roupagens natildeo faz senatildeo confirmar o que digo Aquele edifiacutecio de maacutermores eacute um pa-laacutecio de priacutencipe aquelas moccedilas de grinaldas e cinturotildees brilhantes satildeo as virgens indianas que cozem os vaga-lumes e luciacuteolas as suas vestimentas aqueles homens armados satildeo os guardas e soldados do priacutencipe Natildeo haacute duvida por artimanhas do diabo em menos de uma noite fostes agrave Iacutendia e voltastes (Varela 2011 p 58)

Desse modo um sobrenatural que eacute aceito se apresenta como fator determinante para a narrativa Ademais nesse trecho a voz do coman-dante se mistura com a do narrador ou seja deparamo-nos com um hibridismo (Bakhtin 1993) entre essas vozes uma vez que o narrador parece tomar a posiccedilatildeo do comandante tambeacutem como o seu posiciona-mento Isso significa que haacute uma imbricaccedilatildeo entre o que o comandante e o narrador pensam sobre o universo maravilhoso ficcional

Baseando-nos em Machado (1983) notamos que a diegese se constitui como uma ficccedilatildeo miacutetica do Oriente elaborada a partir do contexto mental dos Descobrimentos em que aparentemente a proacute-pria realidade adquire conotaccedilotildees maravilhosas aos olhos de hoje Assim ainda conforme Machado (1983) haacute ldquouma certa tendecircncia da cultura oitocentista que pretende retomar a liccedilatildeo dos viajantes aacutevidos

ao mesmo tempo de exoacutetico e de conhecimento cientiacuteficordquo (p 82) Assim a junccedilatildeo entre o passado miacutetico (histoacuterico) a esteacutetica fantaacutestica oitocentista (literaacuteria) aliada agraves imagens (do ponto de vista histoacuterico e literaacuterio) de um Oriente miacutetico que eacute tanto renascentista quanto ro-macircntico configuram um conto fantaacutestico-maravilhoso importante e original dentro da literatura oitocentista brasileira

REFEREcircNCIAS

AUTHIER-REVUZ Jaqueline ldquoHeterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva elementos para uma abordagem do outro no discursordquo In Entre a transparecircncia e a opacidade um estudo enunciativo do sentido Porto Alegre EDIPUCRS [1982] 2004

BAKHTIN Mikhail ldquoO discurso no romancerdquo In BAKHTIN Mikhail Questotildees de Literatura e de esteacutetica a teoria do romance Satildeo Paulo Unesp Hucitec [1975] 1993 (p 71-163)

______ Problemas da Poeacutetica de Dostoievski Trad Paulo Bezerra 3ordf ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

GOETHE Johann Wolfgang von Fausto Trad Antoacutenio Feliciano de Castilho eBooksBrasil 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwebooksbrasilorgeLibrisfaustogoethehtml21gt (acesso em 02 de fevereiro de 2013)

HUGO Victor Do grotesco e sublime Satildeo Paulo Perspectiva 2007

KAYSER Wolfgang O grotesco Satildeo Paulo Perspectiva 2008

MACHADO Aacutelvaro Manoel O mito do Oriente na Literatura Portuguesa Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1983

PRIORE May Del A mulher na histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Contexto 1994

SARI Nassih Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre 2011 Disponiacutevel em lt httpwwwcentraldancadoventrecombr gt (acesso em 12 de julho de 2011)

SHAKESPEARE William Macbeth Trad Beatriz Vieacutegas-Faria Porto Alegre LampPM Pocket 2012

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Satildeo Paulo Perspectiva 2008

VARELA Fagundes ldquoAs Bruxasrdquo in BATALHA Maria Cristina (org) O fantaacutestico brasileiro contos esquecidos Rio de Janeiro Editora Caeteacutes 2011 (p 53-58)

O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier

Thiago Joseacute Costa Pininga(Mestrando em Teoria da Literatura ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Escrito em 1840 o conto Peacute de muacutemia narra a histoacuteria de um perso-nagem flacircneur que ao passar em uma loja de antiguidades tem a ideia de comprar um objeto para lhe servir de peso-de-papel aos seus ldquoesboccedilos de versosrdquo encontrando um verdadeiro peacute de muacutemia que se descreve como da princesa Hermonthis28 Nesta descriccedilatildeo trabalhada por um autor consi-derado um dos fundadores do parnasianismo francecircs tatildeo rica em detalhes esteacuteticos (a exemplo do que ocorre em poemas dessa escola a exemplo de Vaso chinecircs do poeta brasileiro Alberto de Oliveira) teriacuteamos o poder in-consciente e fantaacutestico de dar vida aos objetos de sua admiraccedilatildeo

Se a descriccedilatildeo minuciosa e amorosa faz com que determinado ob-jeto ganhe ldquovidardquo como dito acima isso significa que ele (o objeto) de-veria ser construiacutedo como se estivesse nas matildeos e diante dos olhos do leitor ndash natildeo apenas um texto verbal ndash mas como um fantasma29

Em outros contos fantaacutesticos deste autor encontramos caracteriacutesti-cas semelhantes entre eles A cafeteira e Ocircnfale Tais objetos sejam eles uma cafeteira uma tapeccedilaria ou um peacute mumificado satildeo considerados de grande beleza (ou menos uacuteteis que belos) e por isso tecircm ou merecem uma existecircncia proacutepria isto eacute fantasmagoacuterica natildeo fugindo assim de uma ldquoArte pela Arterdquo ndash termo cunhado por Gautier ndash na medida em que o culto agrave forma permite uma separaccedilatildeo do suporte material em termos

28 A referecircncia a uma princesa do Egito eacute indireta Hermonthis eacute o nome de uma cidade do Antigo Egito e natildeo propriamente o nome de uma princesa Contudo eacute exatamente a cidade que Cleoacutepatra tornaraacute sua capital Vale verificar que a construccedilatildeo do nome Cleoacutepatra significa ldquoGloacuteria do pairdquo ou ldquoAmada por seu pairdquo Ao longo da narrativa percebe-se entatildeo uma associaccedilatildeo de Cleoacutepatra a Hermonthis uma vez que seria esta a ldquoamada por seu pairdquo

29 De fato Theacuteophile Gautier antes de seguir a carreira literaacuteria expressava o desejo de ser pintor

pragmaacuteticos Desse modo a escolha do autor em escrever contos fan-taacutesticos natildeo foge agrave sua escolha esteacutetica pelo contraacuterio aprofunda-a Um caso exemplar eacute o conto Peacute de muacutemia em que como dito ao procurar um objeto uacutetil que servisse para peso-de-papel se constata que o peacute estaacute vivo saltitante e agrave procura da dona O fantaacutestico e suas consequecircn-cias fazem o personagem mudar de opiniatildeo sobre a utilidade do referido objeto embora continue lhe conferindo uma aura estetizada

O protagonista eacute em duas passagens do texto um possiacutevel poeta na primeira passagem pela fala do vendedor que diz ironicamente ldquoHa ha ha para um peso-de-papel ideia original ideia de artistardquo (Gautier 1999 p106 ndash grifo meu) e na segunda no momento em que o perso-nagem retorna agrave sua casa ldquoPara aproveitaacute-la imediatamente pousei o peacute da divina princesa Hermonthis sobre um maccedilo de papel esboccedilos de versos mosaico indecifraacutevel de rasurasrdquo (p 107) Um personagem poeta natildeo apenas porque escreve versos mas tambeacutem por possuir uma aura identificada pelo comerciante Eacute comum Gautier compor narrativas com personagens-artistas poetas atores pintores e ateacute mesmo escritores de contos fantaacutesticos (estes com clara intenccedilatildeo de humor) No conto Ocircnfale uma histoacuteria rococoacute o personagem assim se declara ldquoSe o bom homem pudesse ter previsto que eu abraccedilaria a [profissatildeo] de contista fantaacutesti-co sem duacutevida ter-me-ia posto pela porta afora e deserdado irrevogavel-mente []rdquo (p 51) Por sua vez a personagem feminina iconizada como muacutemia aparece como um textopoema isso porque como bem observa Ruth Silvano Brandatildeo ldquotoda ela eacute pura escritura grafada por sinais vaacuterios ou apagados como nos palimsestosrdquo (Brandatildeo 1996 p 19)

Eacute pela experiecircncia com o fantaacutestico aliada agrave esteacutetica da ldquoArte pela Arterdquo que o personagem eacute educado Jaacute natildeo trata aquele objeto da mesma maneira em primeiro lugar porque ele parece estar vivo em segundo porque a muacutemia (que eacute descrita agora sem um dos peacutes) faz a troca de seu peacute solto por uma estatueta ndash e esta constituiria a prova de que aquele acontecimento teria sido real e natildeo um sonho Entre a primeira experiecircn-cia e a uacuteltima o personagem eacute levado em uma viagem aparentemente real ateacute o Antigo Egito na qual tambeacutem aprende liccedilotildees natildeo somente artiacutesticas como espirituais (morais) a fim de constatar que somente a boa arte a arte de qualidade a arte que transcende eacute capaz de durar pela eternidade

A mudanccedila no personagem ocorre natildeo somente em um niacutevel ar-tiacutestico mas tambeacutem se gerando consequecircncias morais Muito embora

associe-se o parnasiano a um sentido amoral vemos que Gautier utiliza a moralidade ao escrever seus contos fantaacutesticos Por exemplo no conto O cavaleiro duplo em que existe um confronto entre o bem e o mal e o primeiro sai vencedor depois de uma luta de vida ou morte entre os dois personagens gecircmeos com o bom terminando vencedor no conto Dois atores para um papel onde um ator se envaidece de ser o melhor interprete da personagem de diabo para uma peccedila em cartaz ateacute que o mesmo aparece e toma seu lugar no palco quase o matando e por uacuteltimo citamos um de seus contos mais famosos A morte enamorada em que se descreve toda uma moral ligada ao catolicismo Os trecircs contos citados trabalham profundas conotaccedilotildees espirituais a noccedilatildeo de bem e mal e os castigos por soberba e arrogacircncia Todos os seus protagonistas acabam salvos e aprendendo uma liccedilatildeo

Em Peacute de muacutemia verificamos que a mudanccedila de atitude do per-sonagem eacute tambeacutem espiritual ou seja moral tendo em vista que esta acontece na perspectiva dos debates entre Oriente e Ocidente e pelo vieacutes de uma formaccedilatildeoconselho para jovens poetas sobre dar utilida-de agrave beleza30 Este conto foi escrito em 1840 periacuteodo em que a Franccedila dominava econocircmica e politicamente suas colocircnias no Oriente e jaacute ti-nha passado por importantes experiecircncias orientalizantes no norte da Aacutefrica Gautier francecircs ambienta seu conto em seu paiacutes de origem res-saltando um fantaacutestico egiacutepcio que irrompe de uma pacata atmosfera burguesa reproduzindo um imaginaacuterio comum agrave eacutepoca verificada pelo estudioso Edward Said no livro Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente

O Oriente foi orientalizado natildeo soacute porque se descobriu que ele era lsquoorien-talrsquo em todos aqueles aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu meacutedio do seacuteculo XIX mas tambeacutem porque podia ser ndash isto eacute ndash per-mitia ser feito oriental Haacute muito pouca anuecircncia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert com uma cortesatilde egiacutepcia tenha produzido um modelo amplamente influente da mulher oriental ela nunca falou de si mes-ma nunca representou suas emoccedilotildees presenccedila ou histoacuteria Ele falou por ela e a representou (Said 1990 p 17 ndash grifos do autor)

30 Sabrina Baltor nos informa que ldquoTheacuteophile Gautier torna-se um exemplo para Flaubert Baudelaire jovens escritores que nunca o viram capitular perante a arte social ou burguesa []rdquo (1997 p 22)

Longe de ser neutro Gautier ndash que influenciou Flaubert inclusive com a ideia de ldquoArte pela Arterdquo ndash vai explorar justamente o comeacutercio entre Ocidente e Oriente em um primeiro momento de modo realista Nos primeiros paraacutegrafos ele alerta para o fato de que na capital france-sa estava em moda ndash e em grande nuacutemero ndash determinados tipos de lojas locais de vendas de objetos raros onde se comprava itens de todas as culturas e civilizaccedilotildees do mundo em sua maioria antiguidades sendo o comerciante do conto identificado como um tipo oriental (ldquoA curvatura do nariz tinha uma silhueta aquilina que lembrava o tipo oriental ou judeurdquo Gautier 1999 p 104 ndash grifo meu) Desde jaacute Gautier natildeo esconde que a relaccedilatildeo seraacute mercantilista O diaacutelogo que segue entre o comercian-te e o poeta revela o misticismo do primeiro e o ceticismo do segundo

O comerciante se utiliza de argumentos fantaacutesticos sobre o possiacutevel uso desrespeitoso do objeto ressaltando que os nobres egiacutepcios ficariam zangados ao saberem que o peacute de sua amada filha poderia servir como um simples peso-de-papel ldquoele [o faraoacute] que mandava cavar uma mon-tanha de granito para colocar nela o triplo esquife pintado e dourado coberto de hieroacuteglifos com belas pinturas do julgamento das almasrdquo (Gautier p106) Contudo o poeta ceacutetico insiste na compra e consegue adquiri-la com o que tinha nos bolsos Revela-se aqui a situaccedilatildeo de su-perioridade do ocidental e a consequente inferioridade do oriental que vecirc suas crenccedilas serem rebaixadas ao niacutevel do profano utilitaacuterio estando o objeto em questatildeo disponiacutevel a qualquer um que pagasse e natildeo a al-gueacutem que pudesse compreender seu verdadeiro valor

Eacute a este tipo de superioridade e dominaccedilatildeo que Edward Said denuncia como orientalismo ldquoideia da identidade europeia como sendo superior em comparaccedilatildeo com todos os povos e culturas natildeo-europeusrdquo (Said 1990 p 19) Aqui superioridade eacute tanto uma questatildeo econocircmi-ca quanto ideoloacutegica primeiro porque a relaccedilatildeo entre Franccedila e Oriente eacute aquela entre colocircnia e colonizados pautada em relaccedilotildees comerciais desiguais Em segundo lugar para manter e sustentar esta relaccedilatildeo era necessaacuterio manter uma ideologia que dizia ser a Franccedila a representante da ciecircncia e do progresso ocidentais (basta lembrar que floresciam nesta eacutepoca as teorias do filoacutesofo francecircs Auguto Comte o Curso de filosofia positiva eacute publicado entre 1830 e 1842) sendo o Oriente apenas um lu-gar repleto de misticismo ingecircnuo e ultrapassado O proacuteprio persona-gem do comerciante natildeo se mostra como o mais respeitoso pelas coisas

do Oriente nas entrelinhas desconfia-se que estava interessando em revelando uma crenccedila e seu respeito por ela somente fazer subir o preccedilo do objeto Caso contraacuterio natildeo colocaria a peccedila em exposiccedilatildeo

Seraacute apenas no diaacutelogo travado com a muacutemia da princesa (que fala em seu idioma antigo estranhamente compreendido pelo protagonista) que veremos a presenccedila ou tentativa de uma voz que fala por si mesma a reve-lar seu ponto de vista e sua triste histoacuteria (em comparaccedilatildeo com a oriental de Flaubert que natildeo tinha voz nem histoacuteria) A partir desse diaacutelogo se inicia uma mudanccedila em relaccedilatildeo ao mundo oriental num processo gradual de saiacuteda do fantaacutestico e inserccedilatildeo no maravilhoso Ora o conceito de orien-talismo eacute definido entre outros como ldquoum estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Orienterdquo (Said p 15) contudo em Gautier vemos tratar-se menos de um domiacutenio do que uma reestruturaccedilatildeo de saldo positivo e imaginativo Por fim demonstra-se que tal domiacutenio natildeo eacute possiacutevel ndash porque natildeo haacute domiacutenio sobre a experiecircncia fantaacutestica

A noccedilatildeo de Oriente eacute entatildeo transfigurada por Gautier O conto se iniciava com um discurso que parecia apontar aos leitores a presenccedila da noccedilatildeo de superioridade do europeu moderno ateacute entrar em cena o fantaacutes-tico que potildee em duacutevida a proacutepria crenccedila na ciecircncia e na razatildeo ocidentais

A pesquisadora Sabrina Baltor (1997 p 136) nos informa que ldquona obra de Gautier nota-se certo fasciacutenio pelo povo egiacutepcio natildeo eacute agrave toa que dois contos e um romance tecircm como cenaacuterio a terra dos faraoacutes Une nuit de Cleacuteopacirctre (1838) Le pied de momie (1840) e Le roman de La momie (1857)rdquo portanto trata-se de um autor que admira os temas orientais em seu aspecto artiacutestico ou seja de um segmento capaz de ensinar-lhe a cultivar a beleza e a sua duraccedilatildeo

Historicamente depois de grande acuacutemulo de experiecircncias de expe-diccedilotildees europeias ao Oriente que natildeo eram necessariamente criadas tendo em vista objetivos artiacutesticos e sim de comeacutercio de conhecimento cientiacute-fico ou estrateacutegia militar foram as obras literaacuterias contudo que popula-rizaram de maneira mais eficiente o Oriente (o orientalismo) ao europeu segundo nos informa Said ao que acrescentamos o fato de o fantaacutestico nestas eacutepocas ter se tornado um gecircnero popular de grande apelo puacuteblico

Os motivos de Gautier no entanto para aleacutem de conquistar leitores faacuteceis buscavam a experimentaccedilatildeo ao trabalhar ideais ligados agrave pere-nidade da arte bem como a criacutetica a uma sociedade empenhada em valores utilitaacuterios e burgueses sem espiritualidade A valorizaccedilatildeo da arte

egiacutepcia especialmente a da mumificaccedilatildeo que sobreviveu por milecircnios mostrava por contraste que a arte de sua eacutepoca era de niacutevel inferior ba-seada em modismos A soluccedilatildeo era uma volta ao passado para tentar re-cuperar algo que se perdeu daiacute a escolha pelo Egito Antigo Por sua vez no niacutevel esteacutetico natildeo haveria conflitos porque as descriccedilotildees estetizadas caracteriacutesticas dos parnasianos natildeo sofriam perdas pelo contraacuterio ga-nhavam mais vida tornavam-se mais ldquoreaisrdquo

Depois que acorda (e o motivo do sonho eacute recorrente natildeo soacute fan-taacutestico mas tambeacutem neste conto tornando-o ambiacuteguo) o personagem-poeta passa sensorialmente em especial atraveacutes do olfato a descobrir que algo andava errado em sua casa A escolha deste sentido eacute signifi-cativa quando se trata de visotildees do Oriente trabalhadas por franceses lembremos dos versos de Baudelaire amigo famoso de Gautier em As flores do mal31 ldquoCom a fluidez daquilo que jamais termina Como o almiacutescar o incenso e as resinas do Oriente Que a gloacuteria exaltam dos sentidos e da menterdquo (Baudelaire 2006 p 127 ndash grifo meu) Em outra ocasiatildeo da narrativa tambeacutem se afirma sinestesicamente ldquoO sonho do Egito era a eternidade seus odores tecircm a solidez do granito e duram outro tantordquo (Gautier 1999 p 108 ndash grifo meu)

A partir destes odores diferentes o protagonista afirma ldquosentir al-guma coisa que se parecia muito com o terrorrdquo (p 109 ndash grifo meu) pois o peacute estava saltitando Ele tambeacutem observa nesta hora a proacutepria prin-cesa saltitando e teme por sua vida Apoacutes o suspense a princesa revela sua triste histoacuteria alguns ladrotildees invadiram seu sarcoacutefago e roubaram toda sua riqueza de modo que natildeo tinha dinheiro sequer para comprar seu peacute de volta As mercadorias roubadas acabariam indo parar nas lojas de antiguidades citadas anteriormente nada mais restava agrave princesa a natildeo ser a piedade do poeta Tudo que havia de valioso no Oriente fora levado por conquistadores e vendido como curiosidade exoacutetica para as diversas partes do mundo que poderiam pagar por ele32

31 As flores do mal foram dedicadas com ecircnfase a Theacuteophile Gautier ldquoAo poeta impecaacute-vel ao perfeito maacutegico das letras francesas a meu cariacutessimo e veneradiacutessimo mestre e amigo Theacuteophile Gautier com os sentimentos da mais profunda humildade dedico estas flores doentiasrdquo

32 Este tema do comeacuterciotraacutefico de produtos do Egito Antigo continua atual sendo por exemplo trabalhado por autores como o recifense Fernando Monteiro no ro-mance A muacutemia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Globo 2001)

Convencido da triste histoacuteria da princesa e por medo do que lhe aconteceria caso se negasse a ajudaacute-la acaba lhe restituindo o membro perdido Em agradecimento a princesa-muacutemia o leva como dito para uma viagem ateacute o Antigo Egito na qual conhece todas as belezas das piracircmides entre outras Ateacute chegar ao Faraoacute que tambeacutem agradecido lhe concede um desejo O poeta com uma ironia muito tiacutepica dos contos fantaacutesticos de matriz hoffmanniana escolhe a ldquomatildeordquo da princesa33 Mas ele eacute acordado por um amigo e parece descobrir que tudo natildeo foi um sonho (ldquoo fantaacutestico ocupa o tempo desta incertezardquo ndash Todorov 1970 p 15) porque a estaacutetua deixada pela princesa em troca do peacute ainda estava laacute

No final do conto a razatildeo volta ao seu estado inicial de poder ex-plicar o ocorrido de modo natural tudo efetivamente natildeo passara de um sonho (Todorov denomina de gecircnero Estranho o sobrenatural explicado por via do sonho) Por outro lado vemos que o que interessa Gautier eacute a metaacutefora da relaccedilatildeo do artista com sua produccedilatildeo criativa que se fosse perfeita ganharia vida Ora a perfeiccedilatildeo pela forma soacute poderia resultar em um fantasma que eacute pura forma sem mateacuteria A muacutemia aleacutem de ser uma bela estaacutetua eacute tambeacutem um texto ldquoA princesa eacute grafia marcada por traccedilos da ordem do resiacuteduo verbal resiacuteduo mnecircmico nunca traduzido ou recuperaacutevel porque para sempre perdido como ocorre com as primeiras experiecircncias psiacutequicasrdquo (Brandatildeo 1996 p 20) Quiccedilaacute o peacute de muacutemia natildeo fosse um poema esquecido um rascunho (natildeo seria o hieroacuteglifo neste conto um tipo de rascunho do autor) acima dos outros papeacuteis

Eacute somente pela experiecircncia fantaacutestica que haacute uma inversatildeo de va-lores inesperada diante do personagem e dos leitores O fantaacutestico estaacute aleacutem da ciecircncia e obriga a caminhar pelo desconhecido pelo que ainda natildeo eacute enquadrado em algum tipo de conhecimento seguro e explicaacute-vel pelas leis da razatildeo O orientalismo eacute reestruturado com um saldo positivo para o Oriente pois faz reconhecer ao europeu moderno que sua razatildeo natildeo eacute capaz de descobrir tudo e seu controle e domiacutenio estatildeo enfraquecidos por este meio Natildeo eacute somente ao conhecimento tradi-cional e agrave estrutura da sociedade (mercantilista x miacutestica) que Gautier faz sua criacutetica pois ao afirmar a arte egiacutepcia como arte de beleza mais duradoura que a ocidental (diz o Faraoacute ldquominha filha duraraacute mais do que uma estaacutetua de bronzerdquo [p115]) ele quer com isso dizer que o Oriente

33 ldquoA matildeo pelo peacute parecia-me uma recompensa antiteacutetica de bastante gostordquo (1999 p114)

tem mais para nos ensinar se quisermos aprender em termos de Arte e Cultura

De fato o fantaacutestico tambeacutem se liga agrave noccedilatildeo de ldquoArte pela Arterdquo numa outra espeacutecie de culto agrave forma que se daacute pela autorreferencialidade A princesa pode ser vista pelo menos de quatro maneiras Estaacutetua Muacutemia Princesa e Texto (pois estava completamente adornada de hieroacuteglifos) O modo de apresentaccedilatildeo vai do tratamento de objeto ao tratamento hu-mano natildeo esquecendo contudo a modalizaccedilatildeo fantaacutestica (Muacutemia viva)

Existe aqui portanto um ensaio de respeito pelo Outro enquanto Outro ou seja em suas diferenccedilas que natildeo satildeo as diferenccedilas criadas aprioristicamente apesar de obviamente ser Gautier um europeu que tambeacutem torna fantaacutestico o Oriente O desconhecimento eacute o que provoca medo e terror pois inibe qualquer accedilatildeo ou a interpreta desde jaacute como perigo na grande maioria das vezes sem efetivamente ser perigosa A morte eacute um exemplo de experiecircncia desconhecida Mas natildeo haacute mortes neste conto ndash embora exista no miacutenimo uma ldquonatureza-mortardquo

REFEREcircNCIAS

AMARAL Ana Carolina Bianco ldquoA moderna hesitaccedilatildeo fantaacutestica em O Peacute de Muacutemia de Gautierrdquo in Revista Travessias Interativas Ribeiratildeo Preto UNESP 2011 (p 8-18)

BALTOR Sabrina Ribeiro A opccedilatildeo de Theacuteophile Gautier pelo conto fantaacutestico In I Encontro Nacional O Insoacutelito como Questatildeo na Narrativa Ficcional UERJ 2009 Mesa Redonda Rio de Janeiro DialogartsUERJ 2009 (p 78-84)

BALTOR Sabrina Ribeiro Literatura plaacutestica e Arte pela Arte nas narrativas de Theacuteophile Gautier Tese (Doutorado) Rio de Janeiro UFRJ 1997

BAUDELAIRE Charles As Flores do Mal Trad Ivan Junqueira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2006

BRANDAtildeO Ruth Silvano Literatura e psicanaacutelise Rio Grande do Sul UFRS 1996

GAUTIER Theacuteophile Contos Fantaacutesticos Trad Geraldo Gerson de Souza Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Coleccedilatildeo Debates Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 1970

ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de

Edgar Allan Poe

Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Os homens que exercem a profissatildeo de jornalista parecem consti-tuiacutedos como os deuses de Walhalla que se cortavam em pedaccedilos todos os dias e acordavam com perfeita sauacutede todas as manhatildes

(Edgar Allan Poe Marginalia34)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) esteve durante toda sua vida profissional ligado a jornais e a revistas literaacuterias norte-americanos dentre os quais o Southern Literary Messenger de Richmond a Burtonrsquos Gentlemanrsquos Magazine a Grahamrsquos Magazine e o The pionner da Filadeacutelfia Realizando breves contribuiccedilotildees ou atuando como editor nesses perioacutedicos Poe adentrou em um domiacutenio de pro-duccedilatildeo de literatura veloz muitas vezes voltada apenas a satisfazer as exi-gecircncias do puacuteblico e que certamente atendia aos interesses comerciais dos editores Essa carreira suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros podemos dizer se fez quase apesar dele mesmo Com efei-to Poe natildeo hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofiacutecio era a poesia Assim em 1845 aos 36 anos escreve

Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar em qualquer ocasiatildeo um esforccedilo seacuterio naquilo que sob mais felizes circuns-tacircncias teria sido a carreira de minha escolha Para mim a poesia natildeo tem sido uma finalidade mas uma paixatildeo e as paixotildees deveriam merecer reverecircn-cia natildeo devem nem podem ser excitadas agrave vontade com vista agraves mesquinhas compensaccedilotildees ou louvores ainda mais mesquinhos da humanidade35

Deliberadamente Poe idealizava as formas de criaccedilatildeo artiacutestico-li-teraacuterias constituiacutedas sob a loacutegica do campo artiacutestico como um ldquomundo

34 Ver em Poe (1999c p 176 1984 p 1223 e seg) 35 Poe (1999c p 19 2004a p 715)

econocircmico invertidordquo36 como mais tarde escreveria o socioacutelogo fran-cecircs Pierre Bourdieu (2002) quer dizer o campo da arte que opera pela primordial negaccedilatildeo dos interesses econocircmicos Apesar disso no en-tanto o escritor norte-americano natildeo deixaria de reconhecer a grande transformaccedilatildeo intelectual que promoviam os jornais e as revistas lite-raacuterias permitindo a difusatildeo do conhecimento Allan Poe assim como outros homens de sua eacutepoca ndash e ateacute mais que alguns deles ndash foi sensiacutevel agraves profundas modificaccedilotildees sociais ocasionadas pela ascensatildeo da induacutes-tria e pelas formas de divisatildeo do trabalho as quais resultaram em uma diminuiccedilatildeo do tempo livre passiacutevel de ser empregado para apreciaccedilatildeo de arte em meados do seacuteculo XIX

Deste modo ainda que de sua parte pudesse haver certo constrangi-mento na adoccedilatildeo de alguma funcionalidade em seus textos ndash pelo menos eacute o que alguns dos relatos nos fazem crer ndash ainda que tal constrangimento pudesse ser percebido Poe natildeo deixaria de reconhecer a importacircncia de tais adaptaccedilotildees no plano dos procedimentos da obra articulando o cam-po de produccedilatildeo e o de recepccedilatildeo dos objetos literaacuterios Eacute o que podemos ler em um excerto de sua coluna ldquoMarginaliardquo (ldquoNotas agrave margemrdquo)

O progresso realizado em alguns anos pelas lsquorevistasrsquo e lsquomagazinesrsquo natildeo deve ser interpretado como quereriam certos criacuteticos Natildeo eacute uma decadecircncia do gosto ou das letras americanas Eacute antes um sinal dos tempos eacute o primeiro indiacutecio de uma era em que se caminharaacute para o que eacute breve condensado bem dirigido e se iraacute abandonar a bagagem volumosa eacute o advento do jornalismo e a decadecircncia da dissertaccedilatildeo Comeccedila-se a preferir a artilharia ligeira agraves gran-des peccedilas Natildeo afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que haacute um seacuteculo mas indubitavelmente eles o tecircm mais aacutegil mais raacutepido mais reto mais metoacutedico menos pesado De um lado o fundo dos pensamentos se enriqueceu Haacute mais fatos conhecidos e registrados mais coisa para refletir Somos inclinados a enfeixar o maacuteximo possiacutevel de ideias no miacutenimo de volume a espelhaacute-las o mais rapidamente que pudermos Daiacute nosso jornalismo atual daiacute tambeacutem nossa profusatildeo de magazines37

36 ldquoVerdadeiro desafio a todas as formas de economismo a ordem literaacuteria (etc) que progressivamente se instituiu ao fim de um longo e lento processo de autonomizaccedilatildeo apresenta-se como um mundo econocircmico invertido aqueles que nele entram tecircm interesse no desinteresse como a profecia e especialmente a profecia de infortuacutenio que segundo Weber prova sua autenticidade pelo fato de que natildeo proporciona ne-nhuma remuneraccedilatildeo a ruptura hereacutetica com as tradiccedilotildees artiacutesticas em vigor encon-tra seu criteacuterio de autenticidade no desinteresserdquo (Bourdieu 2002 p 245)

37 Edgar Allan Poe (1999c p 165)

Assim natildeo obstante sua inserccedilatildeo nesses magazines como jorna-lista poder ter sido ideologicamente contraacuteria agraves suas pretensotildees en-quanto escritor Edgar Allan Poe pocircde recolher desse campo natildeo soacute a renda necessaacuteria ao seu sustento mas a praacutetica de uma literatura veloz fundamental ao campo jornaliacutestico na produccedilatildeo de papers e contos Principalmente pocircde recolher dele um vasto material para suas criacuteticas sobre os maus escritores seus contemporacircneos De fato apesar de ter construiacutedo sua literatura a partir das condiccedilotildees disponiacuteveis dentro desse mesmo campo de atuaccedilatildeo Poe como assinala Braulio Tavares (2010) tinha manifesta intenccedilatildeo de superar a maneira como outros jornalistas procediam e de produzir um gecircnero literaacuterio que ainda que respondes-se agrave necessidade do puacuteblico e dos editores ndash para o funcionamento dos perioacutedicos ndash pudesse ter qualidade esteacutetica

Em muitos de seus contos a exemplo de ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo ldquoUma trapalhadardquo ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o dia-bordquo e A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o escritor trabalhou ques-totildees pertinentes agrave produccedilatildeo da literatura sobretudo a partir de uma refle-xatildeo de sua proacutepria obra e de seus procedimentos38 O uacuteltimo conto centro deste estudo A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade que data de 1845 eacute uma saacutetiraparoacutedia ao Livro das mil e uma noites construiacuteda a partir da ideia de que o mundo literaacuterio teria permanecido em ignoracircncia a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroiacutena Sherazade ndash contrariamente agrave versatildeo orientalista conhecida Nesta conforme resume Mamede Mustafa Jarouche tradutor drsquoAs mil e uma noites para o portuguecircs

Um rei chamado Sahriyar [] membro de poderosa dinastia descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo Em crise esse rei sai pelo mundo iniciando uma busca que eacute tambeacutem de fundo espiritual ele quer saber se existe neste mundo algueacutem mais infeliz do que ele A resposta eacute positiva com um agravante ningueacutem pode conter as mulheres ndash eacute o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido Entatildeo ele retorna para o seu reino deci-dido a tomar uma medida draacutestica e violenta casar-se a cada noite com uma mulher diferente mandando mataacute-la na manhatilde seguinte

38 De forma bem particular Poe trabalha o chiste ou ldquoironia autorreflexivardquo (ver a respeito Sena [2010]) aleacutem de se lanccedilar agrave criacutetica de seus adversaacuterios ficcionalmente dando-lhes emprego nas ediccedilotildees do Dial Down-Easter North American Quarterly Humdrum Seus colegas de profissatildeo vatildeo desde o editor-chefe da Blackwood aos jorna-listas que colaboram em revistas cobrando ldquoum centavo por linhardquo nos contos ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo e ldquoO anjo do bizarrordquo respectivamente

Depois de muitas mortes e pacircnico entre as famiacutelias daacute-se a intervenccedilatildeo da heroiacutena ela eacute filha do vizir mais importante do reino possui grande cultura e inteligecircncia chama-se Sahrazad [] e elaborou uma estrateacutegia infaliacutevel por meio das histoacuterias que vai sucessivamente noite apoacutes noite desfiando diante de um rei a princiacutepio assustado mas depois cada vez mais seduzido e encan-tado (Jarouche 2006 p 9)

Contrariamente em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroiacutena empe-nhando-se assim em trazer agrave tona a lsquoverdade dos fatosrsquo a partir das infor-maccedilotildees encontradas no guia fictiacutecio ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo [ldquoTellmenow Isitsoumlornotrdquo] inserido na heranccedila enciclopedista do Ocidente (enxergan-do no Oriente um ldquooutrordquo) e agrave moda da produccedilatildeo jornaliacutestica do seacuteculo XIX No conto Poe torna risiacuteveis as formas de produccedilatildeo e de recepccedilatildeo dos elementos maravilhosos e realistas a partir de um efeito de estranha-mento diegeacutetico que termina por colocar agrave prova os mesmos conceitos o realismo o maravilhoso literaacuterio a miacutemesis e sobretudo as formas de produccedilatildeo acesso e recepccedilatildeo do conhecimento em sua eacutepoca

A visatildeo criacutetica da praacutetica de contemporacircneos nos perioacutedicos lhe for-neceu certo humor em seus escritos esse sendo aqui compreendido mais como disposiccedilatildeo ou estado de espiacuterito do que realmente um caraacuteter risiacute-vel mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes Dizemos isso porque em grande parte dos contos em que Poe se serve da saacutetira ou paroacutedia em relaccedilatildeo aos seus colegas de profissatildeo encontramos mais disposiccedilatildeo a um provaacutevel riso amargo ndash possivelmente por atentar para a perfeita existecircncia desses literatos que natildeo tinham escruacutepulos em descum-prir as regras do ldquomundo econocircmico invertidordquo acima mencionado ndash do que a inegaacutevel conjuntura formal que permitiria o riso deliberado ainda que esse seja sempre factual ou neo-factualmente possiacutevel39 Sem conde-nar completamente a existecircncia desse tipo de literatura contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superaccedilatildeo natildeo soacute das obras de outros como tambeacutem das suas Edgar Allan Poe produziu textos voltados agraves possibilidades de tipificaccedilatildeo que esse domiacutenio discursivo permitia O conto curto como se sabe foi o resultado mais profiacutecuo que encontrou

39 Sobre isso admitimos sem duacutevida que o riso possui nuances sobre as quais a esteacuteti-ca ainda natildeo encontrou uma definiccedilatildeo universal sem refutaccedilatildeo se eacute que seja possiacutevel tal coisa ainda que devamos considerar os frutiacuteferos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Henri Bergson dentre outros teoacutericos

nessa inquiriccedilatildeo em muito uma tentativa de suscitar uma impressatildeo cen-tralizada no leitor ou aquilo que nomeou ldquounidade de efeitordquo40

Mas voltemos ao risiacutevel Pois ainda que Poe tenha atingido mais no-toriedade nos seacuteculos posteriores agrave sua morte pela produccedilatildeo de histoacuterias de crime misteacuterio e horror ele plasmou uma singular obra de contos sa-tiacutericos humoriacutesticos e grotescos Essa tessitura textual se configura para noacutes ldquometacomunicativardquo tendo por assunto do discurso ldquoa relaccedilatildeo entre os falantesrdquo ou os participantes de determinado evento seja ele literaacuterio ou natildeo conforme a elucidaccedilatildeo de Gregory Bateson (2002 p 87) ndash neste caso pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risiacuteveis como campo de criacutetica (e de defesa de criacuteticas) Igual estrateacutegia ocorre em ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo no qual o Poe-narrador defende-se da acusaccedilatildeo de que suas histoacuterias natildeo tenham uma ldquomoralrdquo ela estaacute laacute porque os criacute-ticos literaacuterios daratildeo um jeito de encontraacute-la ldquoQuando chegar a ocasiatildeo apropriada tudo o que o cavalheiro pretendia seraacute trazido agrave luz no Dial ou Down-Easter juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde ndash e assim tudo vai dar certo no fimrdquo (Poe 2002 p 71)

Esse caraacuteter metacomunicativo se tornou para noacutes uma importan-te interrogaccedilatildeo Pois esta noccedilatildeo natildeo abrange questotildees unicamente for-mais mas principalmente as regras do jogo linguiacutestico-literaacuterio que satildeo indispensaacuteveis ao funcionamento do texto ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que elencados a um niacutevel formal em muito se assemelham aos de seus contos ldquoseacuteriosrdquo a exemplo de sua aproximaccedilatildeo com a literatura fantaacutestica maravilho-sa ou de crimes aleacutem de seu uso particular do grotesco Sua narrativa constante em primeira pessoa uma discussatildeo em torno de alguma ideia filosoacutefica descriccedilotildees raras de espaccedilo salvo em casos necessaacuterios agrave die-gese uma possiacutevel ldquounidade de efeitordquo guiando os procedimentos estilo retoacuterico natildeo raras vezes solene Seu jogo poreacutem eacute elaborado a partir de 40 A unidade de efeito eacute um dos conceitos elaborados por Poe em ensaios como A fi-

losofia da composiccedilatildeo para traduzir a busca de um autor por abarcar dentro de uma obra uma impressatildeo escolhida desde antes de sua concepccedilatildeo com vistas a provocar no leitor um efeito caracteriacutestico Todos os procedimentos escolhidos girariam em torno desse uacutenico efeito tendo-se o desenlace em vista mas apoiando-se principal-mente sobre o aacutepice da obra A unidade de efeito eacute assim um preacute-monitoramento formal da expressividade da obra

inter-relaccedilotildees entre tais procedimentos diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de ldquoum centavo por linhardquo41 estando contudo ele mesmo inserido em um contexto em que como observa Joseacute Ribeiro (1996 p 11) ldquoa loacutegica da relaccedilatildeo empresa ver-sus consumidor na qual a imprensa perioacutedica estaacute inserida faz com que empreendimentos criativos em busca de novas fatias de mercado (natildeo garantidas de antematildeo) sejam adotados cautelosamenterdquo Esse jornalis-mo como Poe o vecirc desvirtua barateia ou mesmo vulgariza o conheci-mento e eacute tambeacutem fonte profiacutecua de erros ainda que em casos positivos possa ser de grande valia agrave difusatildeo do conhecimento Poe ndash eacute importante insistir ndash natildeo era avesso agrave ampla produccedilatildeo de publicaccedilotildees jornaliacutesticas (homens que satildeo retalhados e se levantam ilesos na outra manhatilde) mas admitia que a sua proliferaccedilatildeo tornava confuso o acesso a fontes fiaacuteveis

Em um primeiro momento a leitura drsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas dentro daquela que o autor constroacutei em forma de saacutetira drsquoAs mil e uma noites e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irocircnico Afinal propor uma narrativa maravilhosa a partir de um vieacutes risiacutevel natildeo seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista Poreacutem afastamo-nos dessa compreensatildeo por trecircs razotildees A primeira eacute o uso constante do insoacutelito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe mesmo quando nosso escritor recorria a um esclarecimento final apelando agrave ob-jetividade dos fatos42 A segunda justificativa encontra-se na epiacutegrafe de A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade ldquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeo velho ditadordquo (Poe 2010 p 156) [ldquotruth is stranger than fictionrdquo] Este ditado foi uma vez citado por Poe na coluna ldquoMarginaliardquo

lsquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeorsquo eacute de tal modo um refratildeo para sempre na boca dos desinformados que estes o citam como poderiam ci-tar qualquer outra proposiccedilatildeo que lhes parecesse paradoxal ndash pela mera propriedade de paradoxo Pessoas que leem nunca citam o ditado porque puros truiacutesmos natildeo merecem ser mencionados Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno Ele era um homem de

41 Como escreve no conto ldquoO anjo do bizarrordquo42 Ou seja quanto optava pelo estranho ou pelo maravilhoso segundo as teorias todo-

rovianas jaacute que ao fantaacutestico quase natildeo recorre salvo em raros contos como ldquoO gato pretordquo conforme observa o mesmo criacutetico

gecircnio mas suas linhas foram um fracasso eacute claro uma vez que as realidades do planeta detalhados na mais prosaica linguagem envergonham e confun-dem bastante todas as fantasias acessoacuterias do poeta43 (Poe 1984 p 1328)

Assim o ldquoparadoxordquo apresentado pelo ldquovelho ditadordquo tantas vezes repetido por pessoas desinformadas que natildeo leem natildeo levaria em conta uma das caracteriacutesticas principais da ficccedilatildeo pois como no longo poema de seu amigo sobre o planeta Saturno a necessidade de verossimilhanccedila externa (descriccedilatildeo da realidade empiacuterica) natildeo deixaria espaccedilo para a imaginaccedilatildeo para as fantasias que se tornam desta forma apenas aces-soacuterias ao poema Por fim a terceira justificativa se situa na proacutepria orga-nizaccedilatildeo narrativa do conto pela dubiedade que Poe estabelece a partir da construccedilatildeo de alguns niacuteveis na narrativa e pela proacutepria existecircncia de trecircs narradores o autor empiacuterico o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem Envolvidos na realidade empiacuterica ou insoacutelita aqueles niacuteveis satildeo construiacutedos em relaccedilatildeo ao contexto de produccedilatildeo lite-raacuteria norte-americano no seacuteculo XIX Entendemos que seraacute proveitoso compreender as regras do jogo literaacuterio que Poe estabelece com seus leitores aleacutem de observarmos como se procede a autorreflexatildeo criativa de Poe no conto A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade

O narrador deste conto embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literaacuterio ateacute entatildeo parece no entanto em mui-tos momentos natildeo ter tido acesso ao proacuteprio livro que critica As mil e uma noites pois comete ldquoenganosrdquo e supressotildees em relaccedilatildeo agrave narra-tiva oriental Assim por exemplo menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto44 e um rato azul quando na verdade aquela intitulada ldquoO mercador e o gecircniordquo inicia a sequecircn-cia de noites da heroiacutena Mas muito aleacutem de uma brincadeira com a narrativa parodiada esta eacute possivelmente uma resposta de Poe a uma paroacutedia feita de seu conto ldquoO gato pretordquo no ano de 184445 atestando em certa medida o desprezo na recepccedilatildeo pela elaboraccedilatildeo fantaacutestica do conto Uma reaccedilatildeo como essa por outro lado assinalaria ainda uma 43 (traduccedilatildeo livre)44 Mais uma vez assinalamos a ironia que Poe apresenta ao puacuteblico leitor e aos seus com-

panheiros de trabalho remetendo-se a uma obra de seu proacuteprio cunho ldquoO gato pretordquo45 De acordo com Thomas Mabbott (em POE Edgar Allan The Collected Works of

Edgar Allan Poe mdash Vol III Tales and Sketches [Org MABBOTT Thomas Ollive] 1978)

vez sua imersatildeo apesar de si mesmo no contexto supramencionado da produccedilatildeo jornaliacutestico-literaacuteria norte-americana com as suas limitaccedilotildees agrave criaccedilatildeo de novas formas literaacuterias e novas tipologias narrativas

Reconstroacutei-se desse modo a narrativa oriental a ldquoversatildeo usual da histoacuteriardquo permeando-a de ironias tanto no que diz respeito aos possiacuteveis maravilhoso ficccedilatildeo cientiacutefica ou realismo quanto na apreensatildeo formal dos acontecimentos Por exemplo as condiccedilotildees do cumprimento do voto do sultatildeo de matar suas esposas ao amanhecer satildeo descritas em termos ligados automaticamente ao contexto geneacuterico da ldquocultura orientalrdquo par-ticularmente de sua religiatildeo posta em paridade com a honra masculina traiacuteda do personagem a primeira natildeo mais sendo levada tatildeo a seacuterio

Devemos relembrar que na versatildeo usual da histoacuteria certo monarca tendo bons motivos para sentir ciuacutemes de sua rainha natildeo somente mandou ma-taacute-la mas fez um voto ndash por sua barba e pela do profeta ndash de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domiacutenios e no dia seguinte entregaacute-la agraves matildeos do carrasco Tendo cumprido esse voto durante muitos anos ao peacute da letra e com reli-giosa pontualidade e meacutetodo que lhe conferia grande meacuterito como homem de sentimentos pios e de excelente juiacutezo foi interrompido uma tarde (sem duacutevida quando estava rezando) por uma visita de seu gratildeo-vizir a cuja filha parece havia ocorrido uma ideia (Poe 2010 p 156-7 grifos nossos)

Buscando restabelecer a ldquoverdade dos fatosrdquo pela existecircncia do ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo ndash o qual a partir apenas de uma consulta de uma leitura e de uma recepccedilatildeo ingecircnuas pode desconstruir todo um co-nhecimento literaacuterio e cultural secular baseado natildeo se sabe exatamente em quecirc ndash o narrador comeccedila

Tendo tido ocasiatildeo no curso de algumas investigaccedilotildees sobre o Oriente de consultar o Diacutegame Eassinhounatildeo obra que eacute de algum modo pouco conhe-cida [] natildeo foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literaacuterio tinha ateacute entatildeo permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir Sherazade tal como eacute descrita nas Mil e uma noites e que o desenlace ali dado natildeo totalmente inexato ateacute certo ponto merece pelo menos censura por natildeo ter ido muito mais aleacutemrdquo46 (p 156 grifos do autor)

Eacute importante observar o grifo sobre este uacuteltimo termo ndash ldquodesen-lacerdquo ndash centro da proposiccedilatildeo de uma nova organizaccedilatildeo para o conto e

46 (Poe 2004a p 369)

indicativo da plena eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos ao enredo O narrador natildeo o indica poreacutem como incorreto mas apenas como precipitado Ora uma das razotildees para que tal conclusatildeo natildeo funcione eacute para o narrador o fato de ela ser idealizada em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica ldquoeacute sem duacute-vida excessivamente mais proacutepria e agradaacutevel mas infelizmente como a maior parte das coisas agradaacuteveis eacute mais agradaacutevel que verdadeirardquo (p 158) Quando conclui sua apresentaccedilatildeo do conto e passa a palavra para Sherazade a narrativa desta seraacute contudo permeada por uma boa pitada de realismo em sentido negativo introduzido nas reaccedilotildees do Sultatildeo Suas contiacutenuas interrupccedilotildees seu ronco sua descrenccedila em relaccedilatildeo ao que ouve sua tosse para advertir sua esposa de que estaacute indo longe demais em ter-mos imaginativos vecircm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa seja em sentido temaacutetico seja textual Isso torna o encaminhamento do ldquoplanordquo de Sherazade menos simples do que pareceria na narrativa oriental ndash pois sob qual pretexto conseguiria a heroiacutena a atenccedilatildeo de seu marido e a suspensatildeo de sua pena capital Apenas pela adequaccedilatildeo do Sultatildeo ao jogo literaacuterio sua compreensatildeo de que a narrativa de Sherazade inscreve-se na ficccedilatildeo servindo portanto para o deleite esteacutetico e artiacutestico Tal natildeo ocorre no conto poeiano pois a ilusatildeo da narrativa eacute chamada constantemente agrave consciecircncia da realidade empiacuterica Se o sultatildeo em As mil e uma noites eacute um ldquobom leitorrdquo ou me-lhor um bom ouvinte pois compreende a ficcionalidade do texto literaacute-rio sem buscar apenas sua comprovaccedilatildeo nrsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poreacutem ele deseja apenas ver sua realidade empiacuterica sendo refletida ali ldquondash Conversa fiada ndash exclamou o reirdquo (p 166)

Sherazade narra assim uma sequecircncia de fatos impressionantes ma-ravilhosos a seu marido e a sua irmatilde que comporiam a oitava aventura de ldquoSimbad o Marujordquo ocorrida em sua velhice quando satildeo indicadas na versatildeo oriental apenas sete O fundo desse enredo seraacute contudo um diaacute-logo com a modernidade por um vieacutes cientificista cujos acontecimentos satildeo apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora mas so-bretudo virtualmente por seus ouvintes Os acontecimentos ldquomodernosrdquo seratildeo assim narrados agrave moda das noites da Araacutebia (Arabian nights) promo-vendo uma visatildeo dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caraacuteter empiacuterico por noacutes leitores de Poe A narrativa portanto natildeo visa um imediato reconhecimento mas um estranhamento inicial e a progressiva ldquovisualizaccedilatildeordquo e compreensatildeo de objetos bem conhecidos do seacuteculo XIX e

de curiosidades da natureza Eacute exemplo marcante a descriccedilatildeo de um navio a vapor pelo olhar da heroiacutena e pelo reconhecimento quase automaacutetico de Simbad de se tratar de um ldquomonstrordquo47 De fato o estilo da descriccedilatildeo parece ser mais adequado a um monstro (mariacutetimo) e se utiliza dos termos que integram a descriccedilatildeo maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compre-ensatildeo do real (os espinhos a barriga seu incomensuraacutevel tamanho)

Quando aquela coisa chegou mais perto noacutes a distinguimos perfeitamente Seu cumprimento era igual ao de trecircs das mais altas aacutervores que existem e era tatildeo largo como o grande salatildeo de audiecircncias de vosso palaacutecio oh o mais sublime e munificente dos califas Seu corpo diferente do dos demais peixes comuns era tatildeo soacutelido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da aacutegua com exceccedilatildeo de uma estreita lis-ta cor de sangue que o circundava completamente A barriga que flutuava abaixo da superfiacutecie e a qual soacute podiacuteamos vislumbrar de vez e quando ao erguer-se e cair do monstro ao sabor das ondas estava inteiramente coberta de escamas metaacutelicas de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebulo-so As costas eram chatas e quase brancas e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo (p 160)48

Ou ainda

[] Deixando aquela ilha disse Simbad ndash pois Sherazade deve compre-ender-se natildeo deu atento agrave incivil interrupccedilatildeo de seu marido ndash deixando aquela ilha chegamos a outra onde as florestas eram de soacutelidas pedras e tatildeo duras que reduziam os machados mais bem temperados com que tentaacuteva-mos derrubaacute-las (p 163)

[Nota de rodapeacute do autor] lsquoUma das mais notaacuteveis curiosidades do Texas eacute uma floresta petrificada perto das cabeceiras do rio Pasigno Consiste de vaacuterias centenas de aacutervores em posiccedilatildeo ereta todas transformadas em pedra Algumas aacutervores agora crescendo satildeo parcialmente petrificadas Este eacute um fato espantoso para os filoacutesofos da natureza e deve levaacute-los a modificar a teoria existente da petrificaccedilatildeorsquo (p 169) 49

47 O ldquomonstrordquo eacute para Poe em outras narrativas mais ligadas ao estranhamento fantaacutes-tico aleacutem de um indicativo de proporccedilotildees agigantadas signo do estranhamento e da incompreensatildeo diante da narrativa da natureza de um objeto ou de um ser Assim no conto ldquoA esfingerdquo temos a descriccedilatildeo de um ldquomonstrordquo assim como em ldquoO gato pretordquo temos a descoberta do narrador-personagem de ele mesmo se tratar de um ldquomonstrordquo pelos crimes que jamais havia imaginado poder cometer

48 (Poe 2004a p 372)49 (Poe 2004a p 375)

Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosoacuteficos como ldquoZadigrdquo e ldquoBaboucrdquo ndash o deslocamento da re-alidade da Europa do seacuteculo XVIII a um lugar longiacutenquo geralmente um paiacutes oriental para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relaccedilotildees sociais sobretudo francesas Poe organiza a narrati-va de modo que a ilusatildeo de seu leitor tambeacutem seja chamada agrave realidade Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima voltado ao mara-vilhoso exclamatoacuterio altamente descritivo pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos poreacutem estranhos Poe insere notas de rodapeacute atestando sua ldquoveracidaderdquo ndash indicando suas fontes ndash ldquoKennedyrdquo ldquo(Murray p 215 Phil Edit)rdquo ldquoMagazine Colonial de Simmonardquo No entan-to em alguns momentos Poe deixa-as de lado ou simplesmente a fonte verificada natildeo estaacute ldquocorretardquo como quando cita o Alcoratildeo

ndash Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensatildeo e prodigiosa solidez mas que natildeo obstante se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres50

ndash Isto agora eu acredito ndash disse o rei ndash porque jaacute li antes algo dessa espeacutecie num livro (p 166)

[Nota de rodapeacute do autor] A terra eacute sustentada por uma vaca de cor azul tendo chifres em nuacutemero de quatrocentos (Alcoratildeo) (p 172) 51

De acordo com Braulio Tavares esta imagem natildeo se encontra no Alcoratildeo Como resultado temos que se por um lado podemos dar ldquocre-dibilidaderdquo a algumas das informaccedilotildees e fontes que Poe menciona ndash o que demanda de seus leitores certa lsquocrenccedilarsquo no escritor e algum posi-cionamento sobre suas intenccedilotildees em elaborar desta forma seu texto ndash por outro o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado Simultaneamente Edgar Poe ironiza as proacute-prias possibilidades limitadas de crenccedila de alguns de seus leitores pois o Sultatildeo apenas pode crer ldquonaquilo que jaacute leu num livrordquo ndash livro este dotado de estatuto de ldquoverdade empiacutericardquo

50 E ainda uma vez Poe ri de tudo e de todos do Oriente e muito possivelmente da base de sua religiosidade (geneacuterica) e da crenccedila unilateral nas imagens que com-potildeem aquele livro sagrado

51 (Poe 2004a p 379)

A grande questatildeo que se impotildee nesse momento eacute a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empiacuterica dentro da verdade textual ou uma perfeita correlaccedilatildeo entre ambas Desconfiar da uacuteltima seria o papel do legiacutetimo leitor de ldquoliteraturardquo Conforme observa Anco Vieira (sp)

como toda forma de conhecimento a literatura mdash e as artes de maneira ge-ral mdash tambeacutem encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos imitando o referente (representando o que poderia acontecer) fingindo (construindo enunciados natildeo-seacuterios) plasmando uma realidade e uma ver-dade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o referente nada obstante se valer deste enquanto mateacuteria) O resultado desse modo de se relacionar com os signos eacute que na literatura o leitor ao ler um poema eacute levado a decifrar e a recifrar permanentemente o verso e no caso da prosa a se deparar com o sentido polissecircmico que as estoacuterias narradas encerram

Assim a relaccedilatildeo com a verdade empiacuterica se daacute enquanto mateacuteria lite-raacuteria na forma de referente ou seja enquanto possibilidade ndash na premissa aristoteacutelica ldquoo que poderia acontecerrdquo em um caraacuteter mais universal do que particular O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapeacute terem ou natildeo se sucedido natildeo seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual ou de verossimilhanccedila interna mas sim o natildeo existente ldquocompromissordquo de verdade entre o autor seus enunciados e o processo de recepccedilatildeo Eacute indi-ferente se as informaccedilotildees satildeo fiaacuteveis ou natildeo na realidade pois ldquonatildeo vem ao caso que estejamos informados de sua verdaderdquo (Vieira sp) Assim o fato de as referecircncias ao Alcoratildeo de as citaccedilotildees retiradas dos Magazines Asiaacuteticos e manuais de fisiologia serem verdadeiras ou falsas em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica natildeo interferiria no estatuto literaacuterio do texto

ndash Pare ndash disse o rei ndash Natildeo posso suportar isso e natildeo o suporto Vocecirc jaacute me provocou terriacutevel dor de cabeccedila com suas mentiras O dia tambeacutem pelo que vejo estaacute comeccedilando a raiar Haacute quanto tempo temos estado casados Minha consciecircncia estaacute ficando perturbada de novo E depois essa uacuteltima histoacuteria do dromedaacuterio Pensa que sou maluco Em resumo vocecirc pode muito bem levantar-se e ser estrangulada (p 168)52

A condenaccedilatildeo da narradora-personagem Sherazade pela incom-preensatildeo de seu marido no tocante ao caraacuteter ficcional de sua inven-ccedilatildeo ndash o qual se confunde para ele com a ldquomentirardquo ou seja a maacute-feacute na narrativa ndash termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da

52 (Poe 2004a p 382)

produccedilatildeo literaacuteria e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a ima-ginaccedilatildeo a fantasia o maravilhoso e possivelmente uma mais especiacutefica ficccedilatildeo cientiacutefica da qual Edgar Allan Poe eacute considerado um dos ldquopaisrdquo baseada na mescla do imaginaacuterio romacircntico de seu gecircnio e trabalho poeacutetico e da difusatildeo de novas tecnologias em meados do seacuteculo XIX O consolo amargo que emana do texto (intra e extra-textualmente) suge-rindo-se o desprezo de um grupo de leitores e criacuteticos que visa apenas a verificaccedilatildeo da verdade empiacuterica dentro da verdade textual estaria situ-ado no deleite esteacutetico perdido no prazer verdadeiramente literaacuterio que resta assim para uns poucos privilegiados

[Sherazade] recebeu contudo grande consolaccedilatildeo (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da histoacuteria permanecia ainda inacabada e que a petulacircncia do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa privando-o de muitas aventuras incon-cebiacuteveis (p 169)53

REFEREcircNCIAS

BATESON Gregory ldquoUma teoria sobre brincadeira e fantasiardquo In RIBEIRO B T GARCEZ M P (org) Sociolinguiacutestica Interacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 (p 85-105)

BOUDIEU Pierre As regras da arte Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

JAROUCHE Mamede Mustafa ldquoPrefaacuteciordquo In Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordfEd Satildeo Paulo Globo 2006

Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordf Ed Satildeo Paulo Globo 2006

POE Edgar Allan ldquoMarginaliardquo In Essays and Reviews New York Library of America 1984 (p 1223 e seg)

______ ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999a (p 101-114)

______ ldquoO princiacutepio poeacuteticordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999b (p 75-99)

53 (Poe 2004a p 382)

______ ldquoMarginaliardquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999c (p 165-186)

______ ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo In Assassinatos na rua Morgue e outras histoacuterias de crime e misteacuterio Trad William Lagos Porto Alegre LampPM 2002 (p 69-86)

______ ldquoThe Thousand-and-Second Tale of Scheherazaderdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004a (p 369-382)

______ ldquoNever bet the devil your headrdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004b (p 469-475)

______ ldquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazaderdquo In POE Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (Org) Contos obscuros de Edgar Allan Poe Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 156-173)

RIBEIRO Joseacute Imprensa e ficccedilatildeo no seacuteculo XIX Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym Satildeo Paulo Editora UNESP 1996

SENA Andreacute de Visotildees do ultrarromantismo melancolia literaacuteria e modo ultrarromacircntico Recife Editora UFPE 2010

SUASSUNA Ariano Introduccedilatildeo agrave Esteacutetica Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2011

TAVARES Braulio ldquoPosfaacutecio ndash A sombra luminosa (A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade)rdquo In POE Edgar Allan Contos Obscuros de Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (org) Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 181-207)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2010

______ As estruturas narrativas Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 2011

VIEIRA Anco Maacutercio Tenoacuterio O que eacute e o que natildeo eacute literatura [texto ineacutedito no prelo]

Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff

Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Atualmente temos visto surgir vaacuterias releituras de contos de fadas tradicionais em diversos tipos de suportes artiacutesticos ao mesmo tempo em que observamos uma grande mudanccedila no caraacuteter de personagens de cunho fantaacutestico que ateacute o romantismo foram tidos como horren-dos e assombrados e no seacuteculo XXI tecircm se confundido e se asseme-lhado com alguns personagens de contos de fadas Eacute o caso de alguns monstros a exemplo dos vampiros que viraram sensaccedilatildeo no univer-so mais infantil e juvenil como personagens pop A aproximaccedilatildeo dos personagens desses dois gecircneros nos motivou agrave busca de suas origens e uma anaacutelise sobre a possiacutevel interseccedilatildeo entre o conto fantaacutestico e o conto de fada

A partir de um estudo sobre a teoria dos gecircneros passando pelas definiccedilotildees e caracterizaccedilotildees tanto do fantaacutestico como do conto de fadas percebemos que os dois tecircm uma mesma origem secular A origem dos contos de fadas eacute bem antiga pois satildeo em sua maioria histoacuterias que fo-ram recolhidas da tradiccedilatildeo oral de diversas culturas por pesquisadores e escritores ndash tais como Perrault e os irmatildeos Grimm ndash e por isso encontra-mos em muitos casos mais de uma versatildeo de uma mesma histoacuteria (que faziam parte de culturas diferentes) Haacute registros no Egito antigo de nar-rativas que deram origem ao que noacutes conhecemos hoje como contos de fadas e foram sendo recontadas por pessoas que as disseminaram pelo mundo atraveacutes dos seacuteculos como confirma Coelho (2012 p 36) ldquoessas diversas fontes levadas atraveacutes dos tempos para diferentes regiotildees por peregrinos viajantes invasores foram-se misturando umas agraves outras e criando as diferentes formas narrativasrdquo Esse eacute um forte exemplo da for-ccedila arquetiacutepica do mito permanecendo e sobrevivendo a guerras pragas viagens e mesmo mudanccedilas de idioma e de cultura

Ao consolidar-se como gecircnero literaacuterio em fins do seacuteculo XVIII e iniacutecios do XIX o conto de fadas passa a ser dividido em dois subgecircneros Os que tecircm sua origem nas histoacuterias populares chamados de contos de fa-das tradicionais e os que nascem da imaginaccedilatildeo de um autor conhecidos como contos de fadas artiacutesticos Para a teoacuterica Karin Volobuef (1999) o conto de fadas popular consiste em narrativas que representam a natureza essencial do ser humano e do mundo Satildeo exemplos disso agraves referecircncias aos vaacuterios periacuteodos da vida desde o nascimento passando por dificul-dades casamentos recompensas e morte tambeacutem agraves diferentes classes sociais sempre mostrando pastores miseraacuteveis ou a realeza aleacutem de uma diversidade humana e de representaccedilotildees arquetiacutepicas da natureza Ainda segundo essa autora ldquoo conto de fadas eacute moldado pela raacutepida sequecircncia de acontecimentos e quase nenhuma descriccedilatildeordquo (p 54)

Observamos ainda nessas histoacuterias populares certa uniformidade quanto agrave construccedilatildeo de personagens De acordo com Luumlthi (apud Volobuef p 54) haacute sempre a presenccedila de um heroacutei ou heroiacutena que vai enfrentar difi-culdades um oponente que vecircm desestabilizar o equiliacutebrio inicial e impor obstaacuteculos um adjunto podendo aparecer como um ser sobrenatural e que vem ajudar o heroacutei aleacutem de algumas figuras opostas ao heroacutei e uma pessoa resgatada pelo protagonista Eacute importante notar que ldquoos personagens sem-pre satildeo planos e imutaacuteveis dividem-se em bons e maus e recebem nomes geneacutericos que natildeo os individualizam (Maria priacutencipe lenhador avoacute lobo)rdquo (Volobuef p 54) e eacute comum que o que os identifica seja uma caracteriacutestica exterior como eacute o caso de Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve

Jaacute os contos artiacutesticos tecircm como caracteriacutestica principal a de tra-duzir ldquoa individualidade poeacutetica de um dado escritorrdquo (Volobuef 1999 p 57) apresentando uma forma mais definida uma estrutura estetica-mente complexa Esse tipo de conto implica em uma forma fixa que foi estruturada pelo autor do texto enquanto que os contos populares podem ser contados de memoacuteria e podem variar de acordo com a pes-soa que o narra jaacute que haacute a possibilidade de remodelaccedilatildeo da histoacuteria Poreacutem eacute importante remarcar que apesar de o conto artiacutestico apresen-tar uma estrutura definida eacute comum que ele absorva ldquocom frequecircncia elementos temaacuteticos da narrativa popularrdquo (Volobuef p 57)

O conto de fadas artiacutestico entatildeo se mostra mais proacuteximo dos con-tos fantaacutesticos que se popularizam na eacutepoca romacircntica assim como os contos de fadas Segundo o teoacuterico Tzvetan Todorov o fenocircmeno

fantaacutestico surge da ambiguidade e da incerteza Para ele haacute trecircs condi-ccedilotildees para o fantaacutestico a primeira seria o leitor considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e buscar uma interpre-taccedilatildeo natural ou sobrenatural para os acontecimentos da narrativa A segunda seria a hesitaccedilatildeo da proacutepria personagem (esta eacute uma condiccedilatildeo que natildeo precisa ser satisfeita para que haja o fantaacutestico) E por fim o leitor adotar uma perspectiva do texto especiacutefica que natildeo seja nem ldquopo-eacuteticardquo nem ldquoalegoacutericardquo como muitas vezes satildeo construiacutedos os contos de fadas (lembrando tambeacutem da existecircncia de contos de fadas populares a exemplo de As moedas furtadas coletados pelos irmatildeos Grimm que trabalham sugestotildees e elipses associadas ao fantaacutestico torodoviano)

Diferentemente de Todorov Ceserani (2006) natildeo trata o fantaacutestico como um gecircnero mas sim um modo literaacuterio em que elementos retoacutericos determinadas temaacuteticas atraveacutes de combinaccedilotildees e empregos especiacuteficos associados ainda a estrateacutegias narrativas e artifiacutecios formais o caracteri-zariam enquanto tal Entre eles haacute a posiccedilatildeo de relevo dos procedimentos narrativos no corpo da narraccedilatildeo utilizado tanto pelos contos fantaacutesticos tradicionais como pelos contos de fadas artiacutesticos Isso se daacute levando-se em consideraccedilatildeo que o fantaacutestico surge com uma base na experiecircncia nar-rativa do seacuteculo XVIII a qual explorou inuacutemeras potencialidades antes inexistentes ou pouco definidas Observamos no modo fantaacutestico um jogo bem estruturado de cenas e enredos e um ldquo[] gosto por contar casos de lsquoaventurarsquordquo (p 68) Mas tambeacutem eacute presente ldquoo destaque a manipulaccedilatildeo consciente e paroacutedica dos procedimentos narrativos o gosto por colocar relevo e explicitar todos os mecanismos da ficccedilatildeordquo (p 69)

Para corroborar com essa escolha de tratar de ambos os contos de fa-das e fantaacutestico nos servimos das ideias de Marcus Mazzari discutidas na apresentaccedilatildeo agrave nova ediccedilatildeo do livro Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (2012) de Jacob e Wilhelm Grimm Mazzari concorda com o fato de que os eventos maravilhosos nos contos de fadas populares satildeo vistos de forma inteiramente natural (convergindo para as ideias de Todorov sobre o Maravilhoso) e informa que o trabalho dos Grimm natildeo se restringiu a anotar as histoacuterias que escutavam mas tambeacutem realizaram um trabalho extenso de pesquisa filoloacutegica e mesmo de reescrita Jacob Grimm por exemplo tenta definir que os seus Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (no original Kinder und Hausmaumlrchen) seriam expressatildeo de uma ldquopoesia da Naturezardquo criaccedilatildeo anocircnima e espontacircnea Ele proacuteprio tenta

dividir sua produccedilatildeo em contos populares (Volksmaumlrchen) que foram os coletados das narrativas orais e os contos artiacutesticos (Kunstmaumlrchen) his-toacuterias elaboradas a partir de sua proacutepria criatividade assim como teremos posteriormente as produccedilotildees de Hans Christian Andersen e as de Oscar Wilde divisatildeo esta que tambeacutem foi usada por Volobuef

Eacute interessante observar que apesar de os contos de fadas particular-mente os contos dos Grimm terem atualmente um grande apelo infantil eles natildeo foram escritos particularmente para crianccedilas mostrando vaacuterias vezes um caraacuteter assustador grotesco bem como uma seacuterie de referecircn-cias ligada agrave sexualidade Mas desde o lanccedilamento das primeiras ediccedilotildees (1812 e 1815) os contos dos Grimm chamaram a atenccedilatildeo das crianccedilas e isso gerou uma autocensura assim nas ediccedilotildees posteriores Wilhelm Grimm que ficou responsaacutevel pelas reediccedilotildees buscou retirar das histoacute-rias vaacuterios elementos que julgou inadequados para o puacuteblico infantil

Tratemos agora de dois exemplos literaacuterios concretos para discutir de maneira pontual as relaccedilotildees entre os universos da oralidade folcloacute-rica e do fantaacutestico O vampiro (1816) de John Polidori (1795-1821) e O califa cegonha (1825) de Wilhelm Hauff (1802-1827) Neste segundo em especial veremos um exemplo de conto de fadas artiacutestico que se aproxima de um maravilhoso caro ao Livro das mil e uma noites num franco processo de intertextualidade

O conto de Polidori tem como substrato as lendas folcloacutericas sobre monstros oriundos de regiotildees recocircnditas da Europa contudo se origina de sua proacutepria criatividade e eacute inspirado num texto inacabado de Lord Byron a quem servia como meacutedico particular e parceiro de aventuras

Percebemos em vaacuterios trechos dessa histoacuteria uma das primeiras sobre vampiros em liacutengua inglesa exemplos de crendices do povo neste caso de uma Greacutecia oitocentista de cultura potencialmente orientali-zante (estando sob o domiacutenio dos turcos) locus horrendus distinto dos espaccedilos ligados agrave razatildeo ocidental Eacute nesta ambiecircncia que os habitantes da Greacutecia narram ao protagonista do conto em viagem os estranhos acontecimentos que se passavam no lugar

[] Ianthe ficava ao lado observando os efeitos maacutegicos do laacutepis desenhando cenaacuterios de sua terra ela entatildeo descrevia para ele danccedilas de roda ao ceacuteu aber-to com todos os tons vibrantes da memoacuteria jovem [] transmitia-lhe as his-toacuterias sobrenaturais conhecidas por sua ama A seacuterie de crenccedilas aparentes na-quilo que narrava despertou o interesse de Aubrey [] (Polidori 2010 p 59)

Podemos observar claramente nesse trecho a forte influecircncia que o autor sofre das narrativas orais natildeo soacute em relaccedilatildeo ao tema principal do conto (o vampirismo) mas tambeacutem no proacuteprio enredo da histoacuteria que trata de crenccedilas e personifica os medos que as pessoas tinham do des-conhecido num soacute personagem o famigerado vampiro lord Ruthven

Este conto todavia apesar dos iacutendices que o ligam ao maravilho-so das culturas orais e folcloacutericas eacute marcado por um sobrenatural bem mais proacuteximo do fantaacutestico Lord Ruthven eacute descrito como um homem diferente a um tempo nobre e excecircntrico de perfil e feiccedilotildees belas mas com cores morticcedilas Eacute por isso que tanto pode atrair as mulheres como tambeacutem causar profundo horror a outras especialmente pelo olhar Desde o iniacutecio inquieta e desperta a desconfianccedila do leitor servindo de elo aparente agraves fantasmagorias que passam a ocorrer

A presenccedila de seres e acontecimentos sobrenaturais eacute comum aos contos de fadas e fantaacutesticos poreacutem o caraacuteter assustador que obra de Polidori confere a esses elementos estaacute ligado ao gecircnero fantaacutestico Essa natureza apavorante que o conto imprime ao personagem sobrenatural por exemplo eacute reforccedilada pelas duacutevidas tanto do leitor como do protago-nista da histoacuteria Aubrey que continuamente se pergunta a respeito das caracteriacutesticas estranhas de Ruthven

Durante o conto o protagonista transita de um mundo em que natildeo se acredita em vampiros e acontecimentos sobrenaturais para outro em que estas coisas satildeo reais Por outro lado com tal aparente descoberta ele passa a soacute pensar nisso uma monomania que o leva agrave loucura ndash mais um elemento que aparece constantemente no fantaacutestico como possiacute-vel explicaccedilatildeo para a sobrenaturalidade Eacute por isso que O vampiro se distancia do maravilhoso ligado aos contos de fadas e se aproxima da definiccedilatildeo todoroviana de fantaacutestico-estranho na qual a explicaccedilatildeo para os elementos sobrenaturais eacute a loucura ou o sonho

Como sabemos os aspectos duacutebios e ambiacuteguos satildeo a principal caracte-riacutestica do gecircnero fantaacutestico segundo Todorov o que nos faz considerar essa obra de Polidori como conto fantaacutestico tambeacutem Assim percebemos nela uma convergecircncia entre os gecircneros do conto artiacutestico e do conto fantaacutestico

Em relaccedilatildeo ao segundo conto para tratarmos de uma obra de cunho maravilhoso com aproximaccedilatildeo do Livro das mil e uma noites nos basearemos nas obras do alematildeo Wilhelm Hauff Ao analisarmos o seu livro Maumlrchen numa traduccedilatildeo integral para o francecircs pudemos

notar vaacuterias caracteriacutesticas que corroboram tal estudo O livro eacute dividi-do em partes mais extensas que satildeo fragmentadas em contos menores agrave maneira oriental Nos deteremos na narrativa de Lrsquohistoire du calife cigogne54 que faz parte da coletacircnea La caravane A obra de Hauff foi produzida no contexto das pesquisas e publicaccedilotildees dos irmatildeos Grimm acompanhadas pela traduccedilatildeo e difusatildeo do Livro das mil e uma noites assim o jovem alematildeo sofreu influecircncia desse imaginaacuterio maacutegico ligado ao Oriente ao publicar em 1826 sua referida obra

Em La caravane conta-se a histoacuteria de um grupo de viajantes que atravessa o deserto voltando de Meca para Bagdaacute Ao receber a compa-nhia de um viajante estrangeiro os homens comeccedilam a se contar histoacute-rias para passar mais raacutepido o tempo E assim durante o dia eles para-vam de cavalgar e narravam pequenas histoacuterias esperando o pocircr do sol periacuteodo menos quente para prosseguirem viagem Como em As mil e uma noites eles utilizam a estrateacutegia das narrativas para permanecerem vivos Eacute numa dessas histoacuterias que se narra o acontecido com o califa cegonha que iremos analisar a seguir

Primeiramente podemos observar que o conto trata de pessoas marcadas pelas suas classes sociais um califa um vizir e uma princesa por exemplo Como vimos eacute recorrente nos contos de fadas a imagem dos personagens a partir de seu papel na sociedade O califa e seu vizir compram uma pequena caixa com um poacute e uma escritura em liacutengua desconhecida Ao buscarem saber do que se tratava descobrem com a ajuda de um saacutebio que a partir daquele poacute eles poderiam transfor-mar-se em qualquer animal e uma vez metamorfoseados conseguiriam compreender-lhes todas as falas Animados com a ideia eles se trans-formam em cegonhas mas apoacutes terem desobedecido agrave norma de natildeo rirem esquecem o que devem falar para voltarem a ser humanos

Encontramos assim mais um elemento bastante recorrente nos contos de fadas e mesmo agraves narrativas das Mil e uma noites que seria a metamorfose de humanos em animais Mais uma vez essa metamor-fose aparece como uma espeacutecie de maldiccedilatildeo que prende o personagem Interessante observar que no iniacutecio do conto o califa sente-se muito fe-liz e presenteado com o dom de poder se transformar em animal como verifica-se no trecho do manuscrito que o califa comprou 54 A histoacuteria do califa cegonha (as traduccedilotildees de Hauff seratildeo a partir de agora de minha

autoria vertidas do francecircs)

Homem tu que encontras esta [caixa] agradeces agrave Allah por sua graccedila Aquele que usar um pouco do tabaco contido nesta caixa e disser ao mesmo tempo Mutabor poderaacute se transformar em qualquer animal e compreenderaacute a liacutengua dos animais (Hauff 1998 p 23)

Assim o califa e o vizir resolvem utilizar a magia em si proacuteprios bem como o tipo de animal que iratildeo se tornar no caso dessa histoacuteria a maldiccedilatildeo eacute natildeo poder voltar a ser humano Diferentemente do que observamos em vaacuterios contos de fadas tradicionais no texto de Hauff o personagem se metamorfoseia em animal por vontade proacutepria e mes-mo com certa vaidade em poder fazecirc-lo

Podemos reconhecer na histoacuteria do califa cegonha certa moral jaacute que transformados neste animal o protagonista e o seu vizir encontram uma coruja que se diz ser uma princesa encantada pelo mesmo homem que lhes vendeu o poacute maacutegico A princesa pode ajudaacute-los a encontrar o tal mago que faraacute com que eles descubram como voltar a ser humanos enquanto que ela proacutepria poderaacute voltar a ser princesa caso um deles a aceite como esposa Atraveacutes do elemento da metamorfose se estabelece um importante intertexto com as narrativas do Livro das mil e uma noi-tes a exemplo de uma presente na 50ordf noite quando a filha do rei luta contra um gecircnio e os dois mudam diversas vezes de forma

Ao ajudar a princesa que se revela uma bela jovem e ser ajudado por ela o califa e o vizir conseguem voltar a sua forma humana e re-tornam para a cidade de Bagdaacute onde o povo encontrava-se muito in-feliz por acreditar na morte de seu governante Ao chegarem agrave cidade os protagonistas descobrem que o mago que os transformou tinha lhe usurpado o trono mas acaba punido Encontramos mais uma vez o famoso ldquofelizes para semprerdquo presente nos contos de fadas

Observamos que tambeacutem na obra de Hauff a foacutermula das narrati-vas orais se repete um heroacutei vive bem e eacute apresentado a um conflito do qual consegue sair e dele ainda ganha alguma recompensa Tambeacutem em relaccedilatildeo aos personagens apresentados identificamos semelhanccedilas com os contos populares O califa se caracteriza como o heroacutei o mago que se apresenta primeiramente como um mascate eacute o oponente O vizir eacute o personagem adjunto enquanto que a princesa se apresenta como a pessoa que eacute resgatada pelo heroacutei e ao mesmo tempo recompensa

Eacute possiacutevel observar na obra de Hauff a forte presenccedila do elemento maravilhoso bem representado entre outros motivos pelo poacute maacutegico que

permite a transformaccedilatildeo em animal e os personagens natildeo apresentam ne-nhum tipo de estranhamento ao descobrirem tais possibilidades Eacute o mes-mo que acontece nas Aventuras de Alice no paiacutes das Maravilhas de Lewis Carroll quando a protagonista que vivia no mundo que conhecemos eacute transportada para um paiacutes em que o maravilhoso aparece como o natural das coisas Para a personagem lagarta com quem conversa em determina-da passagem originaacuteria do paiacutes das Maravilhas natildeo eacute estranho a pessoa mudar de tamanho constantemente isso constitui uma novidade para a garota contudo logo aceita Entatildeo natildeo haacute quebra da realidade daquele lugar jaacute que o Maravilhoso parte de uma coerecircncia e verossimilhanccedila que lhe satildeo tiacutepicas distinto por exemplo do sobrenatural inquietante do con-to de Polidori Isso eacute o que acontece tambeacutem em Lrsquohistoire du calife cigogne pois no universo em que vivem os personagens a magia eacute algo verossiacutemil natildeo proporcionando nenhuma quebra da realidade que conheciam

Percebemos entatildeo na narrativa de Hauff uma grande proximida-de com o Maravilhoso puro todoroviano que acredita nos elementos maacutegicos e transfiguradores como inatos agrave realidade Sabemos que o ele-mento maravilhoso jaacute era comum nas histoacuterias populares sobre fadas mas aqui lhe eacute acrescentado uma descriccedilatildeo mais detalhada do que a das narrativas puramente orais e folcloacutericas a exemplo do trecho da trans-formaccedilatildeo dos dois seres humanos em cegonhas

Suas pernas comeccedilaram a reduzir de volume para se tornarem finas e ver-melhas as belas babouches [pantufas orientais] amarelas do califa e do seu companheiro se transformaram em patas de cegonhas seus braccedilos tornaram-se asas seus pescoccedilos se alongaram desproporcionalmente suas barbas desa-pareceram e seus corpos se cobriram de penas delicadas (Hauff 1998 p 24)

Normalmente esse tipo de descriccedilatildeo mais detalhada natildeo eacute encon-trada nas narrativas populares o que facilita sua classificaccedilatildeo como conto artiacutestico

A narrativa de Hauff sofre como vimos grande influecircncia do orientalismo O cenaacuterio e os personagens selecionados para a histoacuteria demonstram facilmente a presenccedila do imaginaacuterio dessa cultura e drsquoAs mil e uma noites Em La caravane temos a presenccedila em vaacuterios niacuteveis das narrativas orais o que nos remete tanto agraves histoacuterias de Sherazade mas tambeacutem aos contos populares recolhidos pelos Grimm tendo ainda como base sua proacutepria imaginaccedilatildeo

REFEREcircNCIAS

AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura Volume I Coimbra Livraria Almedina 1991

CESERANI Remo O Fantaacutestico Curitiba Editora UFPR 2006

COELHO Nelly Novaes O Conto de Fadas siacutembolos mitos arqueacutetipos 4ordf ed Satildeo Paulo Paulinas 2012

HAUFF Wilhelm Contes Arles Babel 1998

Livro das mil e uma noites Trad de Mamede Mustafa Jarouche (Vol 1) Satildeo Paulo Globo 2012

MAZZARI Marcus ldquoO bicentenaacuterio de um claacutessico poesia do maravilhoso em versatildeo originalrdquo In GRIMM Jacob GRIMM Wilhelm Contos maravilhosos infantis e domeacutesticos (1812-1815) Satildeo Paulo Cosac Naify 2012

POLIDORI John ldquoO Vampirordquo in SILVA Alexander (org) Contos claacutessicos de vampiro Satildeo Paulo Hedra 2010 (p 51-77)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 4ordf ed Satildeo Paulo Perspectiva 2010

VOLOBUEF Karin Frestas e arestas a prosa de ficccedilatildeo do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas

Julia Troncoso(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Heloiacutesa Seixas eacute uma escritora carioca que iniciou sua carreira na aacuterea em que se formou jornalismo Hoje com diversos livros publica-dos eacute em sua obra de estreacuteia (uma coletacircnea de contos) Pente de Vecircnus que consta Iacuteblis conto que foi novamente compilado a outras narrativas fantaacutesticas por Braulio Tavares em Paacuteginas de sombra ndash contos fantaacutesti-cos brasileiros Em Iacuteblis conhecemos Camila uma pesquisadora da cul-tura islacircmica Seixas nos conta com detalhes o fluxo de consciecircncia de Camila durante o dia em que ela retorna a Paris onde mora

O estilo de Heloiacutesa Seixas se desenvolve de uma maneira na qual o elemento fantaacutestico eacute de forma um pouco abrupta inserido em uma narrativa que em sua quase totalidade eacute realistaimpressionista Grande parte do corpo do texto eacute dedicada a criar uma imagem do perfil psi-coloacutegico de Camila Esse recurso jaacute havia sido registrado por Todorov ldquo[] natildeo haacute de fato aqui nenhuma preparaccedilatildeo para o fantaacutestico antes de sua brusca irrupccedilatildeo (o que precede eacute mais uma anaacutelise psicoloacutegica indireta do narrador)rdquo (Todorov 2010 p 31) Seixas natildeo deixa seu tex-to fugir do fantaacutestico para ser definido como estranho ou maravilhoso Permanece entatildeo equilibrado entre esse dois gecircneros sem se compro-meter com um ou outro

O que acontece eacute a gradual e delicada inserccedilatildeo de elementos inquie-tantes e misteriosos na trama num trabalho de verticalizaccedilatildeo psicoloacute-gica A presenccedila dos elementos duacutebios surge logo nas primeiras linhas ldquoo cheiro adocicado do lodordquo (Seixas 2003 p117) Aleacutem de minaretes trecircmulos Minaretes satildeo grandes siacutembolos da cultura islacircmica usados para chamar seus fieis para rezar nas diferentes horas do dia Sua altura permite que as mesquitas sejam localizadas de muito longe agraves vezes existem vaacuterios deles que costumam ser expressivamente mais altos do

que as proacuteprias mesquitas Os alicerces dessas torres satildeo construiacutedos em cima das mais profundas e impenetraacuteveis rochas e a base delas em geral natildeo costuma ficar proacutexima da superfiacutecie estando sedimentadas em soacuteli-do chatildeo E no entanto em Iacuteblis os minaretes satildeo trecircmulos

Seixas prossegue ao longo do conto pormenorizando sobre os pequenos prazeres de Camila Todos de alguma maneira camuflados e contidos dentro da figura muito polida muito distante da protagonista

Camila senta-se com satisfaccedilatildeo alisando com a matildeo a toalha de linho bran-co que recobre a mesinha O arranjo do centro delicado como um iquebana reuacutene trecircs bototildees de rosas-chaacute e alguns ramos de uma folhagem vaporosa que lhe parece avenca Ao vecirc-la sentar-se sozinha a mesa o garccedilom se apro-xima soliacutecito e retira trecircs dos quatro pratos ali dispostos Sob os pratos de louccedila branca com desenhos de flores em baixo-relevo haacute um descanso de metal redondo que daacute agrave porcelana matizes prateados [] Alcachofras Nada mais delicioso do que um tenro coraccedilatildeo de alcachofra devorado com voluacutepia depois da tortura das folhas em que eacute preciso cravar os dentes para obter apenas uma pequena amostra sofrida e efecircmera (p120 grifo meu)

Seixas cria um tratado sobre os pequenos prazeres de Camila mui-tos deles com conotaccedilotildees sexuais Eacute sobre o sistema dos prazeres e dos desprazeres que Freud afirma que tambeacutem a repressatildeo pode vir a ser apreciada como prazer Segundo ele eacute dessa maneira que os prazeres neuroacuteticos acontecem Pela repressatildeo esses desejos satildeo mantidos sub-consciente e temporariamente afastados da possibilidade de satisfaccedilatildeo

No curso das coisas acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatiacuteveis em seus objetivos ou exigecircn-cias com os remanescentes que podem combinar-se na unidade inclusi-va do ego Os primeiros satildeo entatildeo expelidos dessa unidade pelo processo de repressatildeo mantidos em niacuteveis inferiores de desenvolvimento psiacutequico e afastados de iniacutecio da possibilidade de satisfaccedilatildeo Se subsequumlentemente alcanccedilam ecircxito ndash como tatildeo facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos ndash em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfa-ccedilatildeo direta ou substitutiva esse acontecimento que em outros casos seria uma oportunidade de prazer eacute sentida pelo ego como desprazer Em con-sequumlecircncia do velho conflito que terminou pela repressatildeo uma nova ruptura ocorreu no princiacutepio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforccedilando-se de acordo com o princiacutepio por obter novo prazer Os pormenores do processo pelo qual a repressatildeo transforma uma possibi-lidade de prazer numa fonte de desprazer ainda natildeo estatildeo claramente com-preendidos ou natildeo podem ser claramente representados natildeo haacute duacutevida

poreacutem de que todo desprazer neuroacutetico eacute dessa espeacutecie ou seja um prazer que natildeo pode ser sentido como tal (Freud p3)

Eacute por isso a despeito de para o leitor Camila aparentar sentir prazer naquela situaccedilatildeo que ela fica tatildeo hesitante Torna-se claro no re-lato das primeiras experiecircncias sexuais dela que a personagem vivencia o prazer como sendo de alguma maneira iliacutecito

Era laacute o local dos encontros secretos Fora Pamela quem comeccedilara tudo mas Camila costumava ficar ainda mais excitada do que ela Os encontros eram sempre na hora da sesta quando todos da casa dormiam e o silecircncio zumbia como moscas ao sol Sentavam-se as duas no monte de feno na parte de traacutes do galpatildeo e esperavam a respiraccedilatildeo suspensa Logo ouviam os passos Era ele E o menino surgia por detraacutes do feno com seu corpo magro e alto o olhar assustado o rosto infantil Natildeo teria mais do que treze anos dois anos mais velho do que as meninas portanto Parecia sempre intimidado diante delas mas soacute ateacute que comeccedilasse a brincadeira Assim que chegava tirava o chapeacuteu e rolava-o nas matildeos desconcertado Era sempre Pamela quem dava a primeira ordem ndash Senta aqui Ele obedecia Camila afastava-se abrindo lugar para ele entre as duas Lembrava-se bem da primeira vez que acon-tecera Quando o jovem barqueiro se ajeitara no feno ao seu lado Camila olhara para suas matildeos as unhas enegrecidas e experimentara um estranho prazer (Seixas p 118 ndash grifo meu)

Se esse trecho natildeo fosse suficiente fica bastante claro no terceiro re-lato que Camila enfrenta um embate interno para ter a coragem de satis-fazer a este anseio iacutentimo ldquoSim natildeo adianta negar eacute o que vocecirc quer Seraacute como da uacuteltima vez a uacuteltima vez foi uma loucura natildeo sei o que se passa comigo eu Vocecirc gosta Seus modos finos seu charme aristocraacutetico sua ele-gacircncia de princesa tudo isso eacute uma farsardquo (p121 ndash grifos da autora) Em suma Heloiacutesa Seixas esmiuacuteccedila o perfil psicoloacutegico de Camila dando ao leitor acesso ao sistema de prazeres da personagem para no final o ecircxtase de Camila coincidir com o cliacutemax do livro Isso auxilia no efeito fantaacutestico que permanece ao final do conto pois natildeo se pode definir se o ecircxtase eacute sexual ou da morte endossando o dito freudiano de que

Se tomarmos como verdade que natildeo conhece exceccedilatildeo o fato de tudo o que vive morrer por razotildees internas tornar-se mais uma vez inorgacircnico sere-mos entatildeo compelidos a dizer que ldquoo objetivo de toda vida eacute a morterdquo e voltando o olhar para traacutes que ldquoas coisas inanimadas existiram antes das vivasrdquo (Freud p17)

Existe uma opiniatildeo generalizada de que o medo e o terror satildeo pro-vocados pelo desconhecido ldquoA mais antiga e forte emoccedilatildeo da humani-dade eacute o medo e o mais antigo medo eacute do desconhecido Poucos psi-coacutelogos negaram esse fato e a verdade dessa premissa estabelece para sempre a genuinidade e dignidade do conto inquietante de terror como forma literaacuteriardquo (Lovecraft apud Ceserani 2006 p71)

O problema nessa afirmaccedilatildeo eacute que ela eacute um pouco ambiacutegua Porque se pode facilmente interpretar que o novo faz parte unicamen-te do desconhecido Eacute claro que a hipoacutetese tem que ser testada mas o que de fato provoca o medo eacute o oculto o que ainda se estaacute por conhe-cer (no aparentemente conhecido e no totalmente desconhecido) O teatro grego entendeu isso e forjou uma das grandes regras dramatuacuter-gicas a de natildeo morrer no palco Toda cena que provocasse terror era contada natildeo mostrada E eacute claro a imaginaccedilatildeo do puacuteblico dava con-torno e definiccedilatildeo com seus proacuteprios temores Tambeacutem no cinema essa regra foi entendida Hitchcock por sua vez foi um grande apreciador dessa teacutecnica Ocultar e deixar a mente do espectador preencher com a sua proacutepria imaginaccedilatildeo aquilo de horriacutevel que natildeo era mostrado Foi igualmente o mesmo princiacutepio que transformou Tubaratildeo em um grande claacutessico Diante da peacutessima qualidade dos robocircs (animatroni-cs) que havia tornado o seu filme cocircmico Spielberg decidiu voltar agrave sala de ediccedilatildeo e mostrar o miacutenimo possiacutevel Por isso que a contribui-ccedilatildeo de Freud em seu O estranho (1919) eacute tatildeo interessante porque ele observa por meio do estudo do vocabulaacuterio muitos dos recursos utilizados por escritores para fazer literatura inquietante Parece mes-mo que esta eacute uma aacuterea da literatura especialmente propensa a ser de interesse psicanaliacutetico pois eacute tatildeo recorrente nesses textos o fluxo de consciecircncias alteradas

Nessa obra Freud traccedila longa digressatildeo acerca da palavra alematilde unheimlich Ele aborda as diversas acepccedilotildees que essa palavra tem naque-la liacutengua (arcaicas e contemporacircneas ao autor) as palavras familiares a ela suas diferentes traduccedilotildees para outras liacutenguas tambeacutem europeacuteias e por sua vez os diferentes significados dessas traduccedilotildees Esse largo panorama nos permite visualizar sua abrangecircncia e complexidade Un eacute em alematildeo prefixo de negaccedilatildeo todavia heimlich ndash secreto recocircndito furtivo ndash natildeo eacute oposto a unheimlich ndash assustador angustiante aterrori-zante ndash e sim a heimisch ndash paacutetrio domeacutestico do mesmo paiacutes Contudo

heimlich em liacutengua arcaica tinha os mesmo significados de heimisch em liacutengua moderna55

Por outro lado ele [Freud] faz notar que no termo existe forte ambivalecircn-cia e tambeacutem certa vagueza assim como uma notaacutevel ambivalecircncia existe no termo heimlich que parece de fato ter duas aacutereas de significado duas ldquoes-feras de representaccedilatildeo principaisrdquo (uma mais arcaica outra mais moderna) ldquoque sem serem antiteacuteticas satildeo todavia muito estranhas uma agrave outra a esfera da familiaridade da comodidade e a do lsquoesconderrsquo do manter fechadordquo No uso corrente unheimlich eacute o contraacuterio do primeiro significado Poreacutem basta consultar o vocabulaacuterio histoacuterico da liacutengua alematilde de Grimm para descobrir que as ambiguumlidades de significado tambeacutem de heimlich satildeo amplas e existem ligaccedilotildees profundas entre as duas aacutereas de significado (que pode indicar ldquoo lugar livre da influecircncia de fantasmasrdquo mas tambeacutem ldquoescondidordquo ldquoperigosordquo ldquofechado para a consciecircnciardquo ldquoinconscienterdquo e assim por diante) Heimlich pode portanto ter o mesmo significado de unheimlich como acontece com outras palavras indo-europeacuteias que ambiguamente remetem a significados ou funccedilotildees contrapostas pode-se pensar por exemplo em ldquohoacutespederdquo que possui alguma afinidade semacircntica com heimlich (Ceserani 2006 p 137-138)

Logo fica clara a intimidade que o conceito de Estranho tem com o de familiar Para Freud o Estranho acontece quando se entra em con-tato com algo de familiar visto por uma nova perspectiva Quanto mais familiar maior a surpresa de reparar uma nova camada de significado O ato de ver algo completamente novo geralmente natildeo se atrela a expec-tativas gerando um efeito inquietante distinto A experiecircncia do deacutejagrave vu eacute um claro exemplo de inquietaccedilatildeo aflorada pela familiaridade

[] Deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna Essa categoria de coisas assusta-doras construiria entatildeo o estranho e deve ser indiferente a questatildeo de saber se o que eacute estranho era em si originalmente assustador ou se trazia outro afeto Em segundo lugar se eacute essa na verdade a natureza secreta do estra-nho pode-se compreender porque o uso linguumliacutestico se estendeu da Heimlich para o seu oposto das Unheimlich pois esse estranho natildeo eacute nada novo ou alheio poreacutem algo que eacute familiar e haacute muito estabelecido na mente e que somente se alienou desta atraveacutes do processo de repressatildeo (Freud 1919 p 13 ndash traduccedilatildeo minha)

55 Haacute de se observar tambeacutem que hoje em teoria da literatura aquilo que Freud cha-mou de Unheimlich embora ainda seja traduzido como Estranho eacute na verdade facil-mente entendido como Fantaacutestico

Em Iacuteblis a familiaridade de Camila com a situaccedilatildeo e com o Islatilde eacute o que provoca o efeito inquietante no final do conto Ela conhece um homem na estaccedilatildeo de trem que recorda a ilustraccedilatildeo de um militante da jihad de um livro que estava lendo Este homem aparece novamente no mesmo vagatildeo de trem que ocupava ocasiatildeo em que deixa cair proacuteximo a Camila seu passaporte (sugere-se que ela suspeita que tal ato tenha sido proposital no intuito de um possiacutevel contato posterior) O desco-nhecido ao mesmo tempo a fascina e aterroriza fazendo com que perca seu centramento Muitas discussotildees angustiadas ocorrem no plano psi-coloacutegico mas haacute o momento final da confrontaccedilatildeo que se daacute no plano real pela via do sexo Tudo enfim que nos surpreende como estranho se aproxima de memoacuterias que noacutes conscientemente ou natildeo temos

[] E eacute assim num aacutetimo como um relacircmpago que corta os ceacuteus que ela se recorda Iacuteblis Iacuteblis na literatura islacircmica quer dizer Vecircnus a estrela da manhatilde Camila abre ainda mais os olhos sentindo em sua espinha um frio de morte Vecircnus o elo entre a luz e as trevas siacutembolo de Luacutecifer Luacutecifer o anjo caiacutedo democircnio entre trevas e luz Os olhos quase saltando das oacuterbitas Camila tenta gritar mas as matildeos grossas e quentes rodeiam sua garganta com firmeza (Seixas 2003 p 123)

Nessa cena aquilo que era apenas siacutembolo assume plena e tangiacutevel funccedilatildeo (funccedilatildeo em sentido freudiano quando o imaginaacuterio se faz realida-de) Logo o limiar entre realidade e crenccedila se extingue Camila antes fa-miliar a estes siacutembolos eacute tomada entatildeo por essa sensaccedilatildeo arrebatadora de estranhamento Se ela natildeo os reconhecesse esse efeito nunca aconteceria pois natildeo teria a capacidade de notar o caraacuteter extraordinaacuterio da situaccedilatildeo

Freud acredita que existe uma espeacutecie de intuiccedilatildeo animista em todo ser humano que eacute reprimida mas que pode manifestar-se diante de algo que nos inquieta

Haacute mais um ponto de aplicaccedilatildeo geral que gostaria de acrescentar embora estritamente falando tenha sido incluiacutedo no que jaacute foi dito acerca do ani-mismo e dos modos de accedilatildeo do mecanismo mental que foram superados mas penso que merece destaque especial Refiro-me a que um estranho efei-to se apresenta quando se extingue a distinccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo e realidade como algo que ateacute entatildeo consideraacutevamos imaginaacuterio surge diante de noacutes na realidade ou quando um siacutembolo assume plenas funccedilotildees da coisa que simboliza e assim por diante Eacute esse elemento que contribui natildeo pouco para o estranho efeito ligado agraves praacuteticas maacutegicas (Freud 1919 p 15)

A despeito da tradiccedilatildeo todoroviana na anaacutelise desse tipo de litera-tura ser muitas vezes voltada para a questatildeo dos limites do Fantaacutestico a verdade eacute que no conto de Heloiacutesa Seixas essa questatildeo se torna secundaacute-ria Iacuteblis pode ser lido como um siacutembolo do Fantaacutestico O tiacutetulo do livro tem origem na literatura de expressatildeo islacircmica Iacuteblis eacute um dos muitos democircnios no Coratildeo que nesse contexto satildeo chamados de djinns Eles satildeo criaturas intermediaacuterias entre Deus e os Anjos que foram forjados a fogo por Deus de modo similar agrave criaccedilatildeo do Adatildeo biacuteblico (extraiacutedo do barro) No Islamismo haacute uma miriacuteade de djinns e todos eles tentam os seres humanos a cometer pecados de toda sorte De fato natildeo se dis-tanciam dos democircnios cristatildeos Iacuteblis se equivalendo ao Luacutecifer catoacutelico Em ambas as histoacuterias haacute uma querela entre Deus e IacuteblisLuacutecifer diante do amor que o primeiro dedica aos humanos seres que para esses de-mocircnios satildeo indignos e inferiores Sendo que no Coratildeo o djinn natildeo representa uma oposiccedilatildeo a Deus Para os islacircmicos Deus eacute superior a todas as coisas e nada o ameaccedila

Iacuteblis e Luacutecifer satildeo considerados anjos caiacutedos Seres de luz que desce-ram agraves trevas elo entre escuridatildeo e a claridade Eacute por isso que ambos satildeo simbolizados pela Estrela da Manhatilde Vecircnus Ela metaforiza um elemento noturno que insiste em permanecer no dia liame entre a luz e as trevas

Eacute por isso que Iacuteblis eacute o siacutembolo perfeito para a proacutepria Literatura Fantaacutestica Como explicado por Freud em relaccedilatildeo ao estranho e o familiar que geram um olhar despatriado alheio disforme ldquoessa refe-recircncia ao fator da repressatildeo permite-nos ademais compreender a defi-niccedilatildeo de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto natildeo obstante veio agrave luzrdquo (Freud 1919 p13) Tal qual IacuteblisLuacutecifer Eacute constante em todos esses elementos a dubiedade e vagueza entre as definiccedilotildees e limites ldquoo fantaacutestico ocorre na incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixa-se o fantaacutestico para entrar no gecircnero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantaacutestico eacute a hesitaccedilatildeo experimentada por um ser que soacute conhece as leis naturais face a um conhecimento aparentemente sobrenaturalrdquo (Todorov 2010 p 31)

Conscientemente ou natildeo Heloiacutesa Seixas criou um conto que utili-za recursos particularmente interessantes para a Literatura Fantaacutestica Iacuteblis eacute um exemplar ficcional brasileiro da contemporaneidade que em cenaacuterios exoacuteticos orientalistas e distantes nos mostra a forccedila descriti-va desta autora que cria universos viacutevidos e palpaacuteveis em confluecircncia

com a verticalidade psicoloacutegica A utilizaccedilatildeo desse siacutembolo-chave para o Islamismo foi um toque de Midas e abre inuacutemeras possibilidades in-terpretativas haja vista a variedade de leituras que esse texto tem em potencial junto agrave milenar literatura islacircmica

REFEREcircNCIAS

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad de Nilton Cezar Tridapalli Paranaacute UFPR Eduel 2006

FREUD Sigmund Aleacutem do Princiacutepio de Prazer Disponiacutevel em lthttplacanorgfreecomfreudtextosfalemdoprincipiodeprazerpdfgt (acessado em 25 de julho de 2013)

_________ The ldquoUncannyrdquo Disponiacutevel em lthttphomesieuedutrnozgenalpMCS490MediaCultureandTechnology-Readingsweek14-The20Uncanny-freudpdfgt (acessado em 22 de junho de 2013)

SEIXAS Heloiacutesa ldquoIacuteblisrdquo In TAVARES Braulio (org) Paacuteginas de Sombra ndash Contos fantaacutesticos brasileiros Rio de Janeiro Casa da Palavra 2003 (p 116-123)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Debates 2010

Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg

Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

O Romantismo alematildeo costuma ser subdividido em grupos nome-ados em conformidade com a cidade que os abrigava (Volobuef 1999) Esses grupos tinham semelhanccedilas que possibilitavam o enquadramento sob a eacutegide do movimento mas com caracteriacutesticas proacuteprias Elas natildeo eram excludentes entre si os artistas tinham a liberdade e verdadeira-mente nutriram o costume do tracircnsito e da assimilaccedilatildeo esteacutetica Ainda assim eacute possiacutevel traccedilar um panorama desses ciacuterculos literaacuterios

Entre os anos de 1806 e 1808 vemos o florescimento de uma se-gunda geraccedilatildeo do Romantismo alematildeo que se afastava dos preceitos da primeira geraccedilatildeo (Romantismo de Jena [1799]) no que esta tinha de primordial o egocentrismo e o cosmopolitismo (num sentido contraacuterio ao nacionalismo conservador de Heidelberg)

Poderiacuteamos basear esse comportamento pelo fato de que a segunda geraccedilatildeo presenciou a invasatildeo da Pruacutessia pelos exeacutercitos de Napoleatildeo experimentando as agruras da dominaccedilatildeo estrangeira o que teria des-pertado seu sentimento nacionalista e a desilusatildeo quanto agrave capacidade de atuaccedilatildeo do ldquoeurdquo (Volobuef 1999) Como provaacutevel consequecircncia dis-so o Romantismo de Heidelberg como ficou conhecido o ciacuterculo lite-raacuterio dessa geraccedilatildeo nutriu um interesse pelo passado histoacuterico do seu povo pela cultura popular e pela busca de uma nova mitologia extraiacuteda do universo folcloacuterico desenvolvendo tambeacutem trabalhos filoloacutegicos

Achim von Arnim atuou na cena literaacuteria da Alemanha em fins do seacuteculo XIX e comeccedilo do XX se destacando do ponto de vista da produ-ccedilatildeo ficcional e da criacutetica literaacuteria entre seus colegas do Romantismo de Heidelberg vindo a ser como hoje eacute reputado um dos maiores expoen-tes do Romantismo alematildeo e mundial (Manguel 2005)

No conto em questatildeo vemos muitos pontos deflagradores do Achim heidelberguiano De iniacutecio podemos observar que ele opta pela exposiccedilatildeo crua dos sentimentos torpes e negativos do ldquoeurdquo tais como vaidade ciuacuteme traiccedilatildeo ndash esta uacuteltima aliaacutes tema recorrente tanto em Achim quanto nas Mil e uma noites ndash sensualismo oportunismo im-pulsividade egoiacutesmo Dessa forma contrariando uma certa tendecircncia dos contos de horror que valorizam a atmosfera de medo e o cenaacuterio exterior ele natildeo caricaturiza seus personagens pelo contraacuterio eacute nestes que foca a imageacutetica do horror Eles satildeo seres humanos muito bem dese-nhados nas suas imperfeiccedilotildees nuances e caracteriacutesticas contraditoacuterias a exemplo de nossa perversa e adoraacutevel Meluumlck

Mais adiante quase no fim do conto veremos que o pano de fundo da Revoluccedilatildeo Francesa ndash a invasatildeo dos castelos o ateamento de fogo e a matanccedila dos aristocratas (presenciados entre outros pelos persona-gens Saintree Mathilde Meluumlck alguns dos quais seratildeo mortos) ndash vai ao encontro das ideias de Achim contraacuterias a este lado sangrento da Revoluccedilatildeo Ele como titular da corrente romacircntica de tendecircncia social na Alemanha natildeo deixa de trabalhar este cenaacuterio e a partir dele de-sencadear as accedilotildees derradeiras em seu conto Curiosamente o discurso inflamado de Meluumlck na segunda profecia (p 298) em relaccedilatildeo agrave morte que ocorreu na sua casa por conta da Revoluccedilatildeo eacute entendido por al-guns criacuteticos como a proacutepria voz de Achim Meluumlck eacute vista assim como alterego de Achim que diz por meio dela o que ele proacuteprio sentia e pensava agrave eacutepoca da Revoluccedilatildeo

Ademais percebemos no conto uma visatildeo clara relativa agraves diferen-ccedilas entre as massas e a aristocracia e sentimos que ele tende a dar relevo agrave generosidade ao exaltar a alma (tambeacutem) boa de Meluumlck tanto no comeccedilo do conto pela fama que ela ganha atraveacutes do magnetismo pes-soal e do talento de atriz e posteriormente pelo olhar do personagem Frenel que admira nela as raras palpitaccedilotildees de um bom coraccedilatildeo em desacordo com outras personagens mesquinhas

Vemos tambeacutem no conto como identificaccedilatildeo do Romantismo de Heildelberg o interesse peculiar do autor pelo Oriente ou seja Meluumlck que eacute tratada numa dimensatildeo que a aproxima da lenda popular ndash ten-decircncia proacutepria deste ciacuterculo e do misteacuterio a partir do qual o autor cons-troacutei atmosferas de horror literaacuterio Para se apoiar e trabalhar sobre os as-pectos ligados agrave cultura oral podemos inferir que o autor como outros

de sua eacutepoca foi achar no Oriente bons ingredientes para compor uma nova mitologia romacircntica associada aos seus reconhecidos trabalhos filoloacutegicos Uma tendecircncia do seacuteculo XIX na Europa que tem durado ateacute hoje no momento em que se reconfigura o Oriente ldquocomo ideacuteia conceito ou imagemrdquo (Said 1990 p 208)

Atentemos um pouco nesse Oriente inventado com a ajuda de Edward Said (1990 p 217-218) Historicamente a Franccedila e a Inglaterra foram as maiores colonizadoras do Oriente proacuteximo no seacuteculo XIX Aquele paiacutes no entanto teve uma presenccedila muito mais expedicionaacuteria e aventureira do que o engajado empreendimento de reconhecimento do Oriente feito pela Inglaterra ldquonatildeo tinham [escritores franceses] quais-quer pretensotildees em relaccedilatildeo agraves suas ideacuteias orientais a natildeo ser que elas [fossem] corroboradas por uma longa tradiccedilatildeo erudita (e natildeo existen-cial)rdquo (p 217 ndash grifo do autor) Assim a impressatildeo acerca dos orientais e de sua cultura trazida por esses paiacuteses ao Ocidente foi muito diferente e a que se perpetuou mais foi a visatildeo francesa atraveacutes de elementos li-gados agrave sensualidade fantasia e leveza em oposiccedilatildeo agrave visatildeo inglesa do Oriente mais realista

Edward Said afirma que

muitos dos primeiros aficionados do Oriente comeccedilaram saudando o Oriente como um salutar deacuterangement dos seus haacutebitos mentais e espirituais europeus O Oriente foi superestimado pelo seu panteiacutesmo pela sua espiri-tualidade pela sua estabilidade sua longevidade primitividade e assim por diante [] Mas quase sem exceccedilatildeo essa estima exagerada foi seguida por uma reaccedilatildeo subitamente o Oriente pareceu subumanizado antidemocraacuteti-co atrasado baacuterbaro etc (p 158 ndash grifos meus)

No seacuteculo XIX as expediccedilotildees Ocidente-Oriente e os diaacuterios de bor-do publicados eram muitos ndash o movimento contraacuterio era escasso ndash e tais viagens corroboravam juiacutezos de valor criados por um senso comum jaacute bem estabelecido

[] desse modo o uso da palavra oriental por um escritor [passa a ser] uma referecircncia suficiente para o leitor se identificar [com] um corpo especiacutefico de informaccedilatildeo sobre o Oriente [] parecia ter uma situaccedilatildeo epistemoloacutegica igual agrave da cronologia histoacuterica ou agrave da localizaccedilatildeo geograacutefica [] Os orien-tais raramente eram vistos ou olhados a visatildeo passava atraveacutes delesrdquo (p 212-213 ndash grifo meu)

Neste conto haacute um personagem o dr Frenel mencionado acima que eacute um ocidental-orientalista no sentido de que ele fez vaacuterias viagens para o Oriente e aprendeu muito sobre os seus costumes e segredos Ele encarna um certo poder o conhecimento do misteacuterio enquanto o de Meluumlck eacute a efetiva praacutetica do que eacute misterioso O misteacuterio no con-to mostra entatildeo toda sua forccedila Assim ele tem o importante papel de tornar Meluumlck e tudo que lhe rodeia mais fantaacutestico mais misterioso mais assustador em algumas passagens Sua visatildeo sobre Meluumlck eacute a um soacute tempo verdadeira e duvidosa gerando a ambiguidade fantaacutestica A proacutepria mente humana poderia justificar essa atitude como Said (p 64) diz ldquoeacute perfeitamente possiacutevel argumentar que alguns objetos distintivos satildeo feitos pela mente e que esses objetos embora pareccedilam existir objetivamente tecircm uma realidade apenas ficcionalrdquo

Haacute a partir daiacute uma separaccedilatildeo ostensiva entre eu e eles a partir da qual territoacuterios e mentalidades satildeo declarados diferentes E assim ldquotodo tipo de suposiccedilotildees associaccedilotildees e ficccedilotildees parece povoar o espaccedilo que estaacute fora do nosso proacutepriordquo (p 65) o que soacute contribui para o fantaacutes-tico Como Causo afirmou em relaccedilatildeo agrave ficccedilatildeo insoacutelita esta se trata de um jogo entre Eu e Outro do qual nascem novas percepccedilotildees podendo servir para o enriquecimento da visatildeo de mundo e do olhar sobre si mesmo num ldquoprocesso de apresentaccedilatildeo de realidades alternativas atra-veacutes das quais noacutes reavaliamos as nossas percepccedilotildees da realidade que compreendemosrdquo (2003 p 63)

Esta invenccedilatildeo do Outro serve em suma de enriquecimento ao proacute-prio imaginaacuterio com a reconstruccedilatildeo criativa das Mil e uma noites pelos autores do seacuteculo XIX conforme indica o proacuteprio Said (p 63) ldquoum re-sultado feliz [] foi que um nuacutemero estimaacutevel de importantes escritores durante o seacuteculo XIX era entusiasta do Oriente Eacute perfeitamente correto acho falar de um gecircnero de escrita orientalista tal como eacute exemplifica-do pelas obras de Hugo Goethe Nerval Flaubert Fitzgerald e similaresrdquo Hugo (apud Said p 61) completa este painel em texto escrito em 1829 ldquoau siegravecle de Louis XIV on eacutetait helleacuteniste maintenant on est orientalisterdquo

Podemos afirmar em conformidade com Causo (2003) que as suces-sotildees de acontecimentos fantaacutesticos que vatildeo sendo desencadeadas a partir do aparecimento de Meluumlck em Toulon (Franccedila) configuram uma viagem insoacutelita ldquouma sucessatildeo de eventos fantaacutesticos ou maravilhosos ocorri-dos dentro de uma progressatildeo no tempo e no espaccedilo e testemunhada

por personagens que tendem a se manter de um evento a outro [] A natureza do evento ou fato fantaacutestico ou maravilhoso pode ser divina demoniacuteaca ou misteriosardquo (p 77) Essa uacuteltima natureza estaria ligada ao conto em questatildeo e tambeacutem por isso eacute que se encaixa na categoria de fantaacutestico proposta por Todorov (2008) visto que aleacutem de deixar esses fatos no terreno do natildeo explicado e da incerteza como eacute mister ao gecircnero natildeo vemos marcaccedilotildees no texto suficientes para atribuir a esses eventos uma causa especiacutefica o que os desencadeia eacute um misteacuterio

Rosemary Jackson (apud Causo 2003 p78) reforccedila a ideia do fan-taacutestico como algo misterioso que desorienta quanto agrave realidade racional quando afirma que ldquojoga com as dificuldades de interpretaccedilatildeo de eventoscoisas como objetos ou como imagens assim desorientando a categoriza-ccedilatildeo do leitor sobre o realrdquo E podemos apontar como exemplo desse ldquojogordquo o fato de o narrador colocar esses eventos fantaacutesticos sempre em discus-satildeo com tentativas de explicaccedilotildees cientiacuteficas geralmente desencadeadas por ele proacuteprio ou pelo personagem Saintree e nunca se conseguir uma explicaccedilatildeo final O jogo de tentativa e frustraccedilatildeo confunde e faz o leitor se perguntar sobre o que eacute real e como algo fora do natural pode ocorrer Eacute isso que o fantaacutestico pretende conforme Todorov (2008)

Apesar disso podemos encontrar em Meluumlck vaacuterios elementos que o aproximam tambeacutem do maravilhoso Haacute fatos explicados segundo leis natildeo naturais ou puramente aceitos sem questionamentos Uma adora-ccedilatildeo por parte dos outros personagens orientada para Meluumlck simboliza uma fascinaccedilatildeo pelo Outro apoacutes um primeiro estranhamento Por ou-tro lado este e outros fatos estranhos poderiam ser tambeacutem frutos da real feiticcedilaria da protagonista o que endossaria o caraacuteter maravilhoso contudo fica delimitado sugerindo-se novamente o fantaacutestico O autor oscila propositalmente entre os dois gecircneros discutidos por Todorov

Outros fenocircmenos ligados ao maravilhoso seriam os acontecimentos estranhos ocorridos na casa de Saintree (cuja rotina parecia lsquomaacutegicarsquo) a se-melhanccedila fiacutesica com Meluumlck dos filhos dele com Mathilde entre outros

[] e Mathilde achava os olhos orientais e as longas pestanas de seus fi-lhos tatildeo encantadores que esquecia seu enigmaacutetico misteacuterio [] O mane-quim entatildeo tinha de apertar nos braccedilos uma crianccedila apoacutes a outra todas se divertiam e nenhuma achava isso mais prodigioso do que as mil outras coisas que diariamente lhes causavam estranheza por serem novidade [] (Arnim 2005 p 297)

Assim detectamos elementos hiacutebridos neste conto que poderiam aproximaacute-lo do subgecircnero fantaacutestico-maravilhoso todoroviano

Meluumlck eacute uma mulher da Araacutebia O intertexto com As mil e uma noites eacute leve mas evidente Numa vista geral por essas histoacuterias encontramos o mote da mulher capaz de tudo do pior ateacute para salvar a honra ou o amor Mas tal perspectiva tem uma tendecircncia a se harmonizar no decorrer dos contos orientais Vemos tambeacutem a traiccedilatildeo feminina como uma toacutepica for-te jaacute que os homens seriam os apaixonados obcecados Vai se articulando assim a misoginia atrelada agrave forccedila feminina dentro de um imaginaacuterio de sensualidade proacuteprio de expressiva parte da literatura aacuterabe

Vemos em tudo isso o reflexo direto da figura de Meluumlck agraves vezes e contraditoriamente uma mulher sem escruacutepulos que para conquistar Saintree parece ter lhe enfeiticcedilado enquanto ele passava uma tarde em sua casa Uma vez laacute sentia-se como se natildeo pudesse sair inebriado pri-vado de si numa ldquodoce prisatildeordquo (p 289) Mulher que ao ser rejeitada pelo mesmo roubou literalmente seu coraccedilatildeo numa feiticcedilaria cuja descri-ccedilatildeo causa horror (p 294-295) A traiccedilatildeo referida no caso das Noites tambeacutem ocorre aqui mas natildeo eacute ele o obcecado Soacute o maravilhoso per-mite que ele possa ficar a ela atado por conta do coraccedilatildeo extraiacutedo natildeo de maneira metafoacuterica (p 296) A obcecada eacute ela mas a protagonista pro-voca nele a mesma dependecircncia amorosa O sensualismo em Meluumlck mesmo que natildeo seja tatildeo expliacutecito quanto nos contos aacuterabes aparece em meio a uma atmosfera oniacuterica e sinesteacutesica em que o aroma das flores as texturas dos tecidos e a intensidade das cores colaboram na criaccedilatildeo de um sonho oriental com sugestotildees eroacuteticas (p 288)

Para Carroll (1999 p 39) no horror haacute sempre um monstro repug-nante sendo esta a condiccedilatildeo sine qua non dessa ficccedilatildeo ldquo[] a reaccedilatildeo afe-tiva do personagem ao monstruoso nas histoacuterias de horror natildeo eacute sim-plesmente uma questatildeo de medochoque ou seja de ficar aterrorizado com algo que ameaccedila ser perigoso Pelo contraacuterio a ameaccedila mistura-se agrave repugnacircncia agrave naacuteusea e agrave repulsardquo Notamos no conto em questatildeo um choque inicial um espanto em alguns momentos de fantaacutestico mas natildeo a naacuteusea e tambeacutem natildeo haacute um monstro configurado segundo os termos do horror de Carroll

O escritor e criacutetico Lovecraft afirma que ldquoo criteacuterio do fantaacutestico natildeo se situa na obra a natildeo ser na experiecircncia particular do leitor e essa expe-riecircncia deve ser o medordquo (apud Todorov p 20) Em relaccedilatildeo agrave atmosfera

de horror que o leitor pode detectar vemos em Meluumlck nossa profetisa particular da Araacutebia residir o estranhamento ela eacute o proacuteprio Oriente

Por sua vez Stephen King (1981) desenvolve uma leitura diferencia-da da de Carroll nos esclarecendo que pontos de tensatildeo e motivos que conduzem o leitor a uma experiecircncia esteacutetica do medo natildeo precisam ser necessariamente horripilantes jaacute que aquele eacute muitas vezes encontrado nas entrelinhas das histoacuterias No conto em questatildeo temos descriccedilotildees expliacutecitas que causam medo no leitor todas em relaccedilatildeo aos misteacuterios de Meluumlck ou agraves cenas da Revoluccedilatildeo mas o horror eacute detectado sempre nas entrelinhas no natildeo dito Isso fica claro na figura do duplo que eacute trabalha-da pela narrativa no caso um manequim que agraves vezes parece ganhar vida sob o comando da protagonista Ele natildeo configura o monstro sobrenatu-ral expliacutecito de acordo com as teorias de Carroll mas a tiacutepica inquieta-ccedilatildeo do duplo fantaacutestico o autocircmato estudado por Freud (apud Ceserani 2006 p 25-26) apreendida a partir de entrelinhas e ambiguidades

Ao ouvir perguntas sobre o paradeiro da condessa Meluumlck agarrou a quase desmaiada Mathilde agrave forccedila e levou-a ao soacutetatildeo onde o manequim articulado estava guardado Usando pela uacuteltima vez sua arte conduziu a condessa ateacute o manequim que a estreitou com uma forccedila imutaacutevel em seus braccedilos frios como os de um esqueleto Meluumlck ordenou-lhe que ficasse em silecircncio ou estaria morta mas a advertecircncia era desnecessaacuteria pois Mathilde calava caiacuteda em profundo desmaio (Arnim p 302)

Esse aspecto mentalpsicoloacutegico que foi tatildeo bem trabalhado por E T A Hoffmann ao qual muito bem nos chama atenccedilatildeo Freud pode tambeacutem ser entendido em certa medida em Todorov (p 60) quando ele fala do ldquopandeterminismordquo que teria como consequecircncia natural a ldquopansignificaccedilatildeordquo Nesse pensamento o pandeterminismo natildeo estaacute proacute-ximo agrave loucura ou ao entorpecimento causado por drogas como ele explica mas ldquosignifica que o limite entre o fiacutesico e o mental entre a ma-teacuteria e o espiacuterito entre a coisa e a palavra deixa de ser fechadordquo

Ceserani (p 25-26) nos diz que o duplo estaria associado agrave aliena-ccedilatildeo do homem num mundo que ele proacuteprio criou em que parte de sua proacutepria personalidade eacute reprimida Surgem assim fantasmagorias que o deixam obsessivo e transtornado As relaccedilotildees entre os seres vivos e os autocircmatos toacutepica que estaacute ligada a uma seacuterie de experimentaccedilotildees teacutec-nicas do seacuteculo XVIII (criaccedilatildeo de maacutequinas capazes de imitar os gestos

humanos) e teatrais (marionetes quadros vivos) coloca em pauta a preo-cupaccedilatildeo com os problemas da personalidade e identidade da consciecircncia humana do eu e do outro da estabilidade mental do duplo enfim

O manequim imita assustadoramente os movimentos de Saintree (p 287) e salva Mathilde da morte no soacutetatildeo da casa (p 303) Nas duas ocasiotildees atua como uma extensatildeo de Meluumlck no primeiro caso para impressionar seu amado no segundo para libertar sua amiga dos revo-lucionaacuterios que iriam mataacute-la Na polaridade negativa ou positiva age com uma estranheza ora fantaacutestica ora maravilhosa endossando os po-deres orientais de Meluumlck ldquoprofetisa particular da Araacutebiardquo que nos des-cortina os misteacuterios do Outro numa criaccedilatildeo ligada ao insoacutelito Eacute nesta encruzilhada que observamos mais um belo exemplo de conto de hor-ror vindo do Romantismo engajado de Heildelberg que traz o mundo fantaacutestico e maravilhoso tatildeo caro agraves Mil e uma noites

ldquoO outro eacute o eu que eu menos conheccedilomas eacute o que mais me fascinardquo

(Manuella Mirna)

REFEREcircNCIAS

CARROLL Noeumll A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coraccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Papirus 1999

CAUSO Roberto de Sousa Ficccedilatildeo cientiacutefica fantasia e horror no Brasil 1875 a 1950 Belo Horizonte Editora UFMG 2003

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad Nilton Cezar Tridapalli Curitiba UFPR 2006

KING Stephen Danccedila Macabra Satildeo Paulo Editora Ponto de Leitura 1981

MANGUEL Alberto (org) Contos de Horror do seacuteculo XIX Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2008

VOLOBUEF Karin Frestas e Arestas a prosa do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval

Lucila Nogueira(Profordf Drordf Departamento de Letras ndashUniversidade Federal de Pernambuco)

Eacute antes do oacutepio que a minhrsquoalma eacute doenteSentir a vida convalesce e estiolaEu vou buscar ao oacutepio que consolaUm oriente ao oriente do Oriente

(Fernando Pessoa)

Conforme Edward W Said (1990) o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra a Franccedila e o Oriente que vem representar natildeo apenas o sinal da soberania europeacuteia como as diversas consequecircncias de haverem esses paiacuteses dominado o mediterracircneo oriental desde o final do seacuteculo XVII Na verdade o orientalismo vinha promover a diferenccedila entre o racional e o familiar e o irracional e o estranho Em termos de estudos eruditos conside-ra-se que o orientalismo comeccedilou sua existecircncia com a decisatildeo do Conselho de Viena em 1312 de estabelecer uma seacuterie de caacutetedras de aacuterabe grego hebraico e siacuterio em Paris Oxford Bolonha Avignon e Salamanca (Said p 60)

Por outro lado eacute possiacutevel falar de um gecircnero orientalista presente nas obras de Hugo Nerval e Flaubert que deriva em uma mitologia flutuante do Oriente Veja-se o Itineraacuterio de Chateaubriand a Viagem ao Oriente de Lamartine tambeacutem as de Flaubert e de Nerval A uma certa altura a referecircncia oriental ultrapassa o calendaacuterio judeu e cristatildeo e atinge os mapas da Iacutendia da China do Japatildeo e da Sumeacuteria Entatildeo vai tratar o orientalista moderno do resgate da obscuridade e estranha-mento distinguidos pelos estudiosos anteriores No que concerne aos escritores iratildeo surgir aqueles para quem a viagem real ou metafoacuterica ao Oriente eacute a realizaccedilatildeo de algum projeto profundamente sentido e urgente eacute o caso por exemplo de Geacuterard de Nerval

A influecircncia do Oriente vai ser sinocircnima de uma oportunidade de libertaccedilatildeo como ocorre no livro As Orientais de Victor Hugo O Oriente passa a ser poesia impetuosidade melancolia o magnetismo da viagem aliado a uma possessatildeo de novas imagens Os peregrinos franceses ao contraacuterio dos ingleses iam ao Oriente com o sentido agudo de perda e natildeo de soberania Perseguiam memoacuterias ruiacutenas correspondecircncias ocultas segredos esquecidos formas literaacuterias encontradas em seu apo-geu imaginativo como ocorre com Geacuterard de Nerval (Said p 177)

A viagem de Nerval ao Oriente foi feita atraveacutes da de Lamartine e a deste atraveacutes da de Chateaubriand Para Lamartine sua viagem ao Oriente em 1883 consistiu numa grande atitude de sua vida interior porque ela consistia na paacutetria da sua imaginaccedilatildeo atestando a grandeza da Aacutesia diante da pequenez da Greacutecia Em contraste com Lamartine va-mos encontrar Flaubert e Nerval que chegaram ao Oriente preparados por uma grande leitura dos claacutessicos O proacuteprio Nerval afirmou em As filhas do fogo que tudo que ele sabia sobre o Oriente se baseava numa remota lembranccedila da sua educaccedilatildeo escolar ndash no entanto a leitura da sua viagem ao Oriente desmente isso embora seu conhecimento seja menos sistemaacutetico que o de Flaubert O fato eacute que esses dois escritores (Nerval em 1842-43 e Flaubert em 1849-50) deram agraves suas visitas ao Oriente um uso pessoal e esteacutetico maior que qualquer outro viajante do seacuteculo XIX Eles pertencem agravequele grupo romacircntico que cultua as imagens de lu-gares exoacuteticos gostos sado-masoquistas fascinaccedilatildeo pelo macabro pelo segredo e pelo ocultismo e em suas obras valorizaram figuras femininas fatais como Cleoacutepatra e Salomeacute Levaram para o Oriente uma mitologia pessoal Flaubert em busca de uma terra natal e Nerval seguindo os traccedilos de seus sonhos Assim tanto para um como para outro o Oriente era um lugar de deacutejagrave vu um lugar para o qual se voltavam com frequ-ecircncia mesmo depois que acabava a viagem (Said p 188) O alcance da obra oriental dos dois ultrapassa os limites do orientalismo ortodoxo O orientalismo de Flaubert estaacute tambeacutem nos Cadernos de Viagem na pri-meira versatildeo de A tentaccedilatildeo de Santo Antonio em Herodias Salammbocirc e nas numerosas notas de leitura

Jaacute Nerval criou a sua Viagem ao Oriente como uma coletacircnea de no-tas de esboccedilos histoacuterias e fragmentos de viagens seu Oriente tambeacutem pode ser encontrado em As Quimeras nas cartas parte de sua ficccedilatildeo e outros escritos em prosa Ele reconhece o Oriente como o paiacutes dos

sonhos e ilusotildees Conforme Edward Said Nerval investe a si mesmo no Oriente produzindo natildeo tanto uma narrativa noveliacutestica quanto uma intenccedilatildeo perpeacutetua ndash nunca plenamente realizada ndash de fundir a mente agrave accedilatildeo fiacutesica Essa antinarrativa essa peregrinaccedilatildeo eacute uma guinada na di-reccedilatildeo contraacuteria agrave finalidade discursiva do tipo concebido por escritores anteriores sobre o Oriente

Observa Said ainda que ligado fiacutesica e solidariamente ao Oriente Nerval vagueia informalmente por entre as suas riquezas e a sua atmos-fera cultural (e principalmente feminina) localizando no Egito espe-cialmente aquele materno ldquocentro ao mesmo tempo misterioso e aces-siacutevelrdquo do qual deriva toda a sabedoria (Said p 190) ldquoLembra Michel Butor que vagando pelas ruas e pelos arredores do Cairo de Beirute ou de Constantinopla Nerval estaacute sempre agrave espera de qualquer coisa que lhe permita sentir a caverna que se estende por baixo de Roma Atenas e Jerusaleacutemrdquo (p 190)

Natildeo haacute equivalentes ingleses para as obras orientais de Chateaubriand Lamartine Nerval e Flaubert Os especialistas de Nerval sabem que estamos diante de duas viagens uma que eacute mista imagina-da unida com a de outros autores outra formada por textos e versos jaacute publicados em jornais revistas e livros ldquoEacute uma impressatildeo dolorosa escreveu Nerval cada dia mais distante de perder cidade a cidade de paiacutes a paiacutes todo esse belo universo que se acredita criar jovens pela lei-turahelliprdquo (Nerval 1998)

Este eacute o Oriente de Nerval buscando uma resposta para o desco-nhecido O Oriente carrega o paroxismo entre a autoridade do real e a vontade do sonho este combate faz do poeta um visionaacuterio de uma humanidade inocente e primitiva Pertence ao sonho ou agrave vida o sol negro da melancolia em derredor do autor que viaja em sua proacutepria companhia essa viagem que eacute apenas uma metaacutefora de seus sonhos de leituras o Oriente se constitui num mundo agrave parte cumulado de seres e de coisas que se transformam em accedilotildees poeacuteticas

Para penetrar na alma e no segredo do Oriente Nerval decide aprender aacuterabe A mulher eacute um ser agrave parte e o coraccedilatildeo do poeta cami-nha seguidamente na vontade de se reencontrar As deusas orientais como Astarte e Iacutesis ganham relevo em meio aos ecircxtases miacutesticos e so-brenaturais assim como os duplos se revelam pares misteriosos onde ainda vibra o eco de mundos desaparecidos

Do Liacutebano a Constantinopla chamada geralmente por Nerval de Istambul ele se instala e vive como flacircneur dando ao seu texto uma in-tensidade que o Liacutebano natildeo pocircde oferecer Eacute o Oriente que vai assegurar a comunhatildeo coacutesmica Nerval teraacute trecircs fontes principais a Biacuteblia o Islatilde e a Maccedilonaria Na verdade a sua viagem eacute decididamente um romance e ele proacuteprio reconheceu que assim gostava de conduzir sua vida (como um ro-mance) O Oriente surge diante desse visionaacuterio como o princiacutepio de toda uma vida anterior que nele encontra seu signo supremo e sua confirmaccedilatildeo

Em 1842 Nerval inicia sua viagem ao Oriente percorrendo a ilha de Malta o Cairo Beirute Chipre Rhodes Esmirna Constantinopla Triste o seu retorno ningueacutem o esperava ao cabo da sua peregrinaccedilatildeo Retorna a Paris com escala na Itaacutelia nos primeiros dias de 1844 Publica Mulheres do Cairo que seraacute a primeira versatildeo de Viagens ao Oriente Em janeiro de 1848 publica Cenas da vida oriental I Em 1850 As noi-tes do Ramazatilde Cenas da vida oriental II As mulheres do Liacutebano Em 1851 Viagens ao Oriente em 52 Os Iluminados em 53 Pequenos cas-telos da Boecircmia e Siacutelvia Neste ano tambeacutem eacute publicado por Dumas El Desdichado em 1854 publica As filhas do fogo e As Quimeras Em maio sai da cliacutenica em que estivera o ano anterior e vai para a Alemanha de onde ele volta em estado de grande confusatildeo mental no mecircs de ju-lho Escreve Aureacutelia e prepara a ediccedilatildeo de Pandora Em janeiro de 1855 Nerval eacute encontrado enforcado na Rua da Velha Lanterna

Flaubert aos quatorze anos se referiu ao Oriente do sol brilhante do ceacuteu azul dos minaretes dourados dos pagodes de pedra o Oriente com a sua poesia o Oriente com seus perfumes suas caravanas nas areias suas esmeraldas suas flores seus jardins de laranjas Flaubert so-nhou com os laacutebios das mulheres puras com os grandes olhos negros que teriam amor soacute para ele sonhou com a pele morena das mulheres da Aacutesia (Flaubert 2006 p 7)

O tema do Oriente se interioriza quer voltando-se ao passado quer de modo intemporal Flaubert conheceraacute o Egito a Palestina a Siacuteria Bagdaacute Babilocircnia Ispahan Teeratilde Trebizonda e Constantinopla Flaubert constituiu um dossiecirc de 178 paacuteginas sobre a viagem agrave Peacutersia e em sua biblioteca constam livros como Viajantes antigos e modernos de Edward Chacon e Livros sagrados do Oriente traduzido por Guillaume Pauper em 1840 leu a Viagem ao Egito e agrave Siacuteria de Volney e consultou tambeacutem Sobre os modos e costumes dos egiacutepcios modernos de Edward

W Lane publicado em 1837 Acontece que contrariamente a muitos viajantes dos seacuteculos XVIII e XIX Flaubert natildeo faz estardalhaccedilo de sua erudiccedilatildeo em Viagem ao Oriente Ele tinha consciecircncia de que a descri-ccedilatildeo eacute um elemento importante do gecircnero viagem mas ao mesmo tempo sentia a impotecircncia das palavras diante da beleza

Um escritor eacute aquele que tem uma percepccedilatildeo diferenciada do real que usa de uma conexatildeo analoacutegica em suas expressotildees que vecirc sinais de advertecircncia em episoacutedios de sua vida o que pode ocorrer com algum deliacuterio ou eventualmente alguma mania de grandeza O escritor pro-cura reconstruir a sua identidade perdida falando agraves vezes sozinho a mais alta poesia o canto mais sublime Com um destino forccedilosamente poacutestumo Nerval soacute teraacute seu talento reconhecido no seacuteculo XX graccedilas a Proust e aos surrealistas No entanto seus doze sonetos satildeo suficientes para assegurar sua gloacuteria Um deles eacute El Desdichado

El Desdichado

Je suis le Teacutenebreux le Veuf lrsquoInconsoleacuteLe prince drsquoAquitaine agrave la tour abolieMa seule Eacutetoile est morte et mon luth constelleacutePorte le Soleil noir de la Meacutelancholie

Dans la Nuit du Tombeau toi qui mrsquoas consoleacuteRends moi le Pausilippe et la mer drsquoItalieLa Fleur qui plaisait tant agrave mon coeur deacutesoleacuteEt la Treille ougrave le Pampre agrave la Vigne srsquoallie

Suis je Amour ou Phoebus ndash Lusignan ou BironMon front est rouge encor du baiser de la ReineJrsquoai dormi dans la Grotte ougrave verdit la syregravene

Et jrsquoai deux fois vivant traverseacute lrsquoAcheronModulant et chantant sur la lyre drsquoOrpheacuteeLes soupirs de la Sainte ndash et les cris de la Feacutee

El Desdichado

Eu sou o Tenebroso o Viuacutevo o InconsoladoO priacutencipe da Aquitania na torre da abuliaMinha Estrela eacute a morte e meu luto estrelado Dissemina o Sol negro da Melancolia

Na Noite da Queda tu que me consolasteMe entregaste o mar da Itaacutelia e o PolisipoA Flor que amou tanto o meu coraccedilatildeo desoladoE a Videira onde o Pacircntano agrave rosa se alia

Sou Amor ou sou Phebo ndash Lusignan ou BironMinha fronte ainda eacute rubra do beijo da RainhaAdormeci na caverna onde nada a sereia

E duas vezes vivo atravessei o AcheronModulando e cantando na lira de OrfeuOs gritos da fada ndash e os suspiros da Santa

Publicado pela primeira vez em 10 de dezembro de 1853 por Dumas este poema parece ser contemporacircneo da segunda crise de lou-cura de Nerval (agosto e setembro de 1853) e dele existem dois ma-nuscritos Este eacute o mais ceacutelebre dos sonetos nervalianos e representa tambeacutem a crise do sujeito liacuterico e da poesia O primeiro quarteto oferece uma identidade que natildeo eacute social nem histoacuterica mas absoluta A morte da estrela e o sol negro surgem como se fossem um apocalipse que leva o locutor agraves trevas do fim No segundo quarteto restitui ao inconsola-do o passado trazendo uma contradiccedilatildeo violenta pelo uso da sintaxe Vem uma figura de consolaccedilatildeo do universo napolitano que pode ser uma referecircncia de iacutendices autobiograacuteficos Amor voltado agraves trevas os amantes natildeo podem se ver e o poeta se encontra na gruta da sereia Quanto ao uacuteltimo terceto o poeta se identifica com Orfeu desce aos infernos e constroacutei um monstro fabuloso e poeacutetico a Quimera O Sol Negro da Melancolia jaacute aparecia em Viagem ao Oriente e evoca a gravu-ra de Duumlrer A sereia na gruta representa a figura do paganismo sendo que essa gruta eacute o lugar por excelecircncia da Quimera sereia ou dragatildeo

Geacuterard Nerval acreditava na metempsicose a passagem da alma de um corpo a outro apoacutes a morte Seu livro Aureacutelia se abre com a afir-maccedilatildeo de que o sonho eacute uma segunda vida Aos vinte anos lanccedilou uma traduccedilatildeo do Fausto de Goethe que iria servir para a sinfonia de Berlioz Aos vinte e um anos jaacute era reconhecido no acircmbito literaacuterio e junto com Theophile Gautier publicava um folhetim dramaacutetico na imprensa Suas composiccedilotildees literaacuterias fazem renascer o mito do eterno feminino que sempre o perseguiu encontrado nas novelas Siacutelvia e Aureacutelia Estes livros representam a figuraccedilatildeo do contraste embora revele a sugestatildeo de um

sofrimento verdadeiro O muro das visotildees eacute um subterracircneo que se ilu-mina como se o sonho se derramasse na vida real

Sim encontramos em Nerval essa brutal oscilaccedilatildeo entre dois mun-dos o real e o imaginaacuterio assim como a transfiguraccedilatildeo de sua proacutepria vida em um mito que abarca todo o destino dos seus semelhantes Conquista metafiacutesica mito universal discurso fantaacutestico de premoni-ccedilotildees visotildees obsessotildees vida real e imaginaacuteria no crivo da linguagem Trecircs aspetos chamam a atenccedilatildeo a noccedilatildeo de uma supra-racionalidade a fusatildeo da linguagem inconsciente com a literaacuteria e a recusa da funccedilatildeo enunciativa das palavras Os elementos que formam a supra-racionalida-de que domina a obra de Nerval satildeo essencialmente a presenccedila animada do som as visotildees as transposiccedilotildees miacuteticas ou poeacuteticas as recordaccedilotildees bem como a fusatildeo da linguagem do consciente e do inconsciente Os textos fantaacutesticos de Nerval se revestem de consideraccedilotildees radicais que nunca se aproximam do que Coleridge designava ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do natildeo crerrdquo ingrediente baacutesico do gecircnero A vida de Nerval eacute sua obra e no seu estilo visionaacuterio as coisas jaacute natildeo existem em discordacircncia com as palavras que as designam elas se reuacutenem de modo indissociaacutevel

Entre as lendas que circulam no cemiteacuterio parisiense Pegravere Lachaise uma delas se refere a Nerval que em 1855 foi encontrado enforcado com desenhos e marcas de siacutembolos ocultos no peito O lugar onde teria ocorrido o pretenso suiciacutedio oscila entre as grades de um hospiacutecio de um albergue ou de um esgoto Comenta-se ser o mais bem vestido entre os fantasmas a se evaporar por traacutes de seu tuacutemulo apoacutes o passeio noturno

ldquoEu sou um mestre em fantasmagoriasrdquo dizia Rimbaud Eacute no roman-tismo alematildeo que vamos encontrar uma reflexatildeo mais profunda entre vi-satildeo e imaginaccedilatildeo Vale lembrar Novalis quando diz que ldquoo pensamento e a vista se assemelhamrdquo A faculdade de pressentir o futuro e a de recordar o passado tem relaccedilotildees com a faculdade de ver agrave distacircncia Para Goethe a luz eacute a proacutepria substacircncia do universo e a energia produtora do mundo

As diferentes formas de adivinhaccedilatildeo se fundamentam sobre a obser-vaccedilatildeo de superfiacutecies refletoras daiacute que o espelho se relacione com aconte-cimentos futuros pessoas mortas ou ausentes temas distantes Daiacute que a visatildeo no espelho se constitua um mediador dum fantasma no Testamento a Orfeu e em O sangue de um Poeta de Jean Cocteau ligado ao movimen-to surrealista atravessar o espelho significa o ingresso no reino da morte A obra despreocupada com a verossimilhanccedila nos leva ao outro lado do

espelho em clima de estranheza para um espaccedilo bidimensional como o do sonho e natildeo tridimensional como o de nossa percepccedilatildeo

O fantaacutestico diminui os limites que circunscrevem a vida huma-na aliaacutes como lembra Bachelard nem o pensamento cientiacutefico estaacute ao abrigo de motivaccedilotildees irracionais baseadas em raiacutezes inconscientes De modo que o renascimento desse irracional vai surgir sobre vaacuterias nomenclaturas como o estranho o sobrenatural o maravilhoso a ficccedilatildeo cientiacutefica o fantaacutestico puro O fantaacutestico vai tratar de acontecimentos inexplicaacuteveis pelas leis naturais que questionam a percepccedilatildeo ordinaacuteria da realidade O fantaacutestico eacute ambiacuteguo e inquietante envolvendo sempre algum dilema misterioso quando surge no seacuteculo XVIII vem marcado pela nova do orientalismo nos contos por exemplo de Jacques Cazotte Seu livro O Diabo amoroso eacute uma mistura do real com o irreal o heroacutei Aacutelvaro natildeo sabe distinguir sonho de realidade

A idade de ouro do fantaacutestico pode ser considerada no seacuteculo XIX Esse fantaacutestico oriundo do romantismo traz marcas do roman noir per-meado do sobrenatural e do gosto pelo demoniacuteaco O roman noir inglecircs produziu no seacuteculo XVIII obras como O castelo de Otranto de Horaacutecio Walpole e Os misteacuterios de Udolfo de Ann Radcliffe neles eram constan-tes o macabro e o terror fantasmas conventos abandonados cemiteacuterios ao luar William Beckford escreve Vathek dentro da moda do orientalis-mo mas tambeacutem com episoacutedios noirs Os contos de Hoffmann satildeo des-cobertos na Franccedila em torno de 1830 e vatildeo influenciar bastante Nodier Gautier e Nerval

Nervoso exaltado depressivo epileacutetico opiocircmano Nodier eacute o pre-cursor de uma longa seacuterie de escritores com sensibilidade exacerbada Maravilhoso sonho e misteacuterio se fundem em um texto em que se exal-ta a loucura Theacuteophile Gautier grande admirador de Hoffmann seraacute influenciado pelas teorias de Swedenborg e pelo espiritismo Muitas de suas histoacuterias contam um amor impossiacutevel entre o ser vivo e o fantasma

O nosso Geacuterard Nerval vai ter a sua proacutepria vida invadida pelos fantasmas Aleacutem da admiraccedilatildeo a Hoffmann traduz muito jovem o Fausto de Goethe Em 1841 tem sua primeira crise nervosa em 1843 viaja ao Oriente e passa a acreditar na reencarnaccedilatildeo em 1851 o poeta tem uma nova crise e passa a observar e registrar sua experiecircncia do sonho e da loucura surgem as obras que testemunham seu itineraacuterio espiritual atormentado Daiacute que se diga que Aureacutelia eacute menos um conto

fantaacutestico do que uma aventura espiritual mas sua originalidade con-siste na fusatildeo fantaacutestica do sonho e da realidade misturando fatos e sua existecircncia com visotildees e alucinaccedilotildees fazendo com que o leitor atravesse da realidade ao sonho ldquoO sonho eacute uma segunda vidardquo ele diz e comple-menta ldquoEu decidi registrar o sonho e conhecer o seu segredordquo

Referecircncias

ARNOLD Paul Esoteacuterisme de Baudelaire Paris Librairie Philosophique J Vrin 1972

BAUDELAIRE Charles Ensaios sobre Edgar Allan Poe Satildeo Paulo Iacutecone Editora 2003

_____ Les fleurs du mal ndash Le Spleen de Paris Paris Ed Hatier 2000

CAMPRA Rosalba Territorios de la Ficcioacuten ndash Lo Fantaacutestico Madrid Editorial Renacimiento 2008

EHRSAM Jean et Veronique (Org) La Litteacuterature Fantastique en France Paris Ed Hatier 1985

FLAUBERT Gustave Voyage en Orient (1849-1851) Paris Eacutedittions Gallimard 2006

GAUTIER Theacuteophile Baudelaire Satildeo Paulo Boitempo Editorial 2001

_____ Contos fantaacutesticos Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

GRUumlNEWALD Joseacute Lino (Org) Poetas franceses do seacuteculo XIX Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira 1921

MILNER Max La fantasmagoriacutea Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1990

NERVAL Geacuterard de Aureacutelia Satildeo Paulo Icone Editora 1986

_____ La Bohegraveme Galante Paris Renecirc Hilsum Ed 1932

_____ Les Chimegraveres ndash La Bohecircme Galante Petit Chacircteaux de Bohecircme Paris Eacutedittions Gallimard 2005

_____ Pandora 2ordf ed Barcelona Tusquets Editores 1980

_____ Siacutelvia Rio de Janeiro Ed Rocco 1986

_____ Voyage en Orient Franccedila Eacutedittions Gallimard 2003

POE Edgar Les poegravemes Paris Eacutedittions Gallimard 1982

SAID Edward Orientalismo - O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1975

YERLES Pierre LITS Marc (Orgs) Le Fantastique Bruxelles Didier Hatier 1990

Rua Acadecircmico Heacutelio Ramos 20 | Vaacuterzea Recife - PE CEP 50740-530 Fones (0xx81) 21268397 | 21268930 | Fax (0xx81) 21268395wwwufpebredufpe | livrariaedufpecombr | editoraufpebr

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

O ifrit [] correu em direccedilatildeo agrave jovem mas ela rapida-

mente arrancou um fi o de cabelo balanccedilou-o na matildeo bal-

buciou algo entredentes e o fi o se transformou numa espa-

da afi ada com a qual ela golpeou o leatildeo cortando-o em duas

partes As duas partes saiacuteram voando mas restou a cabeccedila

que se transformou em escorpiatildeo A jovem por sua vez ado-

tou a forma de uma enorme serpente e por algum tempo

travou violenta luta com o escorpiatildeo mas logo o escorpiatildeo

se transformou em abutre e voou para fora do palaacutecio en-

tatildeo a serpente virou aacuteguia e voou no encalccedilo do abutre de-

saparecendo por algum tempo Mas logo o chatildeo se fendeu

dele saindo um gato malhado que gritou roncou e rosnou

atraacutes do gato saiu um lobo preto lutaram no palaacutecio por

algum tempo e entatildeo o lobo derrotou o gato este gritou

e se transformou numa larva que rastejou e entrou numa

romatilde jogada ao lado da fonte a romatilde inchou ateacute fi car do

tamanho de uma melancia listrada ao passo que o lobo se

transformava num galo branco como a neve A romatilde saiu

voando e caiu no maacutermore da parte mais elevada do saguatildeo

espatifou-se e seus gratildeos se espalharam todos []

Livro das mil e uma noites

(50a noite trad Mamede Mustafa Jarouche)

  • Prefaacutecio (Andreacute de Sena)
  • Breves consideraccedilotildees sobre os conceitos lsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites (Mamede Mustafa Jarouche)
  • Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford (Alfredo Cordiviola)
  • O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente (Andreacute de Sena)
  • Borges leitor de As mil e uma noites (Dariacuteo Sanchez)
  • O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas (Joseacute Alberto Miranda Poza)
  • Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites (Oussama Naouar)
  • A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente (Rafaela Queiroz F Cordeiro amp Priscilla de Moraes Batista)
  • O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier (Thiago Pininga)
  • ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de Edgar Allan Poe (Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim)
  • Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff (Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira)
  • Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas (Julia Troncoso)
  • Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg (Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute)
  • O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval (Lucila Nogueira)
Page 5: Literatura Fantástica e Orientalismo

Prefaacutecio

Os artigos que compotildeem este Literatura fantaacutestica e orientalismo foram gerados para apresentaccedilatildeo durante o 2ordm Congresso de Literatura Fantaacutestica de Pernambuco (2ordm CLIF-PE) ocorrido entre os dias 05 e 08 de marccedilo de 2013 na Universidade Federal de Pernambuco organizado pelo Belvidera ndash Nuacutecleo de Estudos Oitocentistas do Departamento de Letras da referida instituiccedilatildeo por mim coordenado

O evento teve como tema principal ldquoA influecircncia do Livro das mil e uma noites e do imaginaacuterio orientalista na construccedilatildeo do conto fantaacutesti-co ocidentalrdquo e mobilizou centenas de estudiosos e interessados de todo o paiacutes nos miniauditoacuterios do Centro de Artes e Comunicaccedilatildeo (CAC) no auditoacuterio do Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas e no Hall do CAC (onde aconteceu mais uma ediccedilatildeo do movimentado Salatildeo de Arte Fantaacutestica de Pernambuco) Em quatro dias de atividades intensas o 2ordm CLIF-PE contou com trecircs conferecircncias 50 palestras e comunicaccedilotildees mostras de arte lanccedilamentos de livros aleacutem de dois minicursos

Entre os conferencistas o Prof Dr Mamede Mustafa Jarouche res-ponsaacutevel pela primeira traduccedilatildeo direta do aacuterabe ao portuguecircs do Livro das mil e uma noites que discutiu os inuacutemeros aspectos ligados ao so-brenatural e ao sobre-humano nesta milenar obra a corroborar com o surgimento de toda uma literatura de cunho imaginativo do seacuteculo XVIII aos dias atuais em acircmbito ocidental aleacutem do Prof Dr Alberto Miranda Poza medievalista espanhol que discutiu o acircmbito do mara-vilhoso na concepccedilatildeo do Libro de Apolonio e do miacutestico sufi Sheikh Muhammad Ragip (SP) que tratou de temas como a religiosidade do Islatilde e a literatura miacutestica sufi

A perspectiva interdisciplinar foi outro foco do 2ordm CLIF-PE desde a abertura do evento comandada pelo alauacutede aacuterabe do Prof Dr Oussama Naouar e pela expressiva interpretaccedilatildeo teatral da atriz pernambucana Vanessa Sueidy (como Sherazade) de trechos das Mil e uma noites O

evento contou ainda com a mostra competitiva de artes plaacutesticas de seu Salatildeo de Arte Fantaacutestica (pintura e escultura) aleacutem das mostras de fo-tografia e curtas-metragens com a participaccedilatildeo de dezenas de artistas de outros cursos da UFPE e da cidade Os dois minicursos trabalha-ram perspectivas ligadas ao fantaacutestico e ao orientalismo ldquoCurso-oficina de aacuterabe claacutessico para iniciantes sons letras e signos leitura da surata de abertura do Alcoratildeordquo (ministrado pelos Profs Drs Vicente Masip e Fatiha Dechicha) e ldquoO burro de ouro e o fantaacutestico As metamorfoses de Apuleiordquo (ministrado pelo Prof Ms Everton Natividade)

Para a realizaccedilatildeo do evento e publicaccedilatildeo deste livro mais uma con-tribuiccedilatildeo do Departamento de Letras da UFPE e do Nuacutecleo Belvidera ao estudo do fantaacutestico e temas afins no Brasil agradecemos todo o apoio recebido do proacuteprio Departamento aleacutem da Editora da UFPE da FACEPE que possibilitou a vinda dos conferencistas Mamede Mustafa Jarouche e Sheikh Muhammad Ragip ao Recife pela ampla cobertura da imprensa nos quatro dias do 2ordm CLIF-PE e a todos os participan-tes palestrantes artistas puacuteblico em geral e membros da Comissatildeo Organizadora

Prof Dr Andreacute de SenaRecife agosto de 2013

Breves consideraccedilotildees sobre os conceitoslsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites

Mamede Mustafa Jarouche(Prof Dr Departamento de liacutengua e literatura aacuterabe ndash

FFLCH ndash Universidade de Satildeo Paulo)

Eacute sobejamente reconhecido que o Livro das mil e uma noites em aacuterabe Kitaacuteb Alf Layla wa Layla eacute composto de camadas narrativas que somente a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica baseada nos manuscritos hoje dis-poniacuteveis da obra pode devassar e mesmo assim de maneira insatisfatoacute-ria pois satildeo consabidas conforme tem acentuado a criacutetica mais recente as limitaccedilotildees impostas de um lado pela proacutepria forma ldquomanuscritardquo a narrativas cuja produccedilatildeo natildeo visava prioritariamente a leitura (ou pelo menos natildeo a leitura conforme eacute hoje concebida) e de outro lado pela configuraccedilatildeo de sentido especiacutefica de cada conjunto narrativo tomado isoladamente em seu tempo e espaccedilo de funcionamento

Aqui a proposta eacute a partir do que a criacutetica filoloacutegica convencionou chamar de ldquoramo siacuteriordquo desse livro pensar o funcionamento em seu interior dos conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb traduziacuteveis como ldquoespantosordquo ldquoinsoacutelitordquo ldquoestranhordquo ldquoassombrosordquo Evitemos cuidadosamente por ora o termo ldquofantaacutesticordquo ao qual a criacutetica prestigiosa de Tzvetan Todorov conferiu um sentido plenamente consolidado em nossos dias e que natildeo se aplica agraves narrativas do Livro das mil e uma noites pois pressupotildee na verdade textos e leitores que soacute existem a partir do seacuteculo XIX

Conveacutem de iniacutecio ressaltar que ao propor o ramo siacuterio estaacute-se pro-pondo simultaneamente as narrativas mais antigas desse livro e as que em geral constam dos seus mais diversos e desencontrados manuscri-tos Embora contestada aqui e acolaacute ela ainda eacute bastante funcional para referir tais narrativas

Retomando os conceitos de lsquoajiacuteb e ghariacuteb com toda a sua gama de possibilidades tradutoacuterias seria conveniente neste ponto citar um au-tor aacuterabe do seacuteculo XIII Zakariyya Alqazwiacuteni Trata-se de um trecho do seu notoacuterio tratado cosmogocircnico intitulado lsquoAjaacutersquoib Almakhluqaacutet wa

Gharaacutersquoib Almawjudaacutet traduziacutevel como As mais espantosas criaturas e os mais assombrosos existentes e comumente conhecido a partir de sua versatildeo francesa como Maravilhas da Criaccedilatildeo Eacute um trecho da abertura da obra quando ele disserta sobre os propoacutesitos do seu trabalho

Quando Deus altiacutessimo determinou que eu me distanciasse de minha casa e terra natal e me separasse de meus familiares e de meu lar entreguei-me agrave leitura de livros seguindo o parecer de quem dissera ldquoo melhor companheiro em todos os tempos eacute o meu livrordquo Assim estava eu mergulhado na obser-vaccedilatildeo das coisas espantosas (lsquoajaacutersquoib) da accedilatildeo de Deus altiacutessimo sobre as suas criaturas e as coisas assombrosas (gharaacutersquoib) de suas invenccedilotildees sobre o que inventou tal como ele orientou quando disse [no Alcoratildeo] ldquoAcaso natildeo veem o ceacuteu sobre eles como o construiacutemos e adornamosrdquo O que se pretende aiacute natildeo eacute o revolver das pupilas ou algo que o valha pois isso os quadruacutepedes tambeacutem fazem Aqueles que do ceacuteu natildeo enxergam senatildeo o azul e da terra senatildeo o poacute satildeo semelhantes aos quadruacutepedes e ateacute mesmo inferiores a eles e mais estuacutepidos pois tal como disse Deus [no Alcoratildeo] ldquoeles tecircm coraccedilotildees com os quais natildeo compreendem e tecircm olhosrdquo e completou ldquoesses satildeo como gado e ainda mais extraviadosrdquo O que se pretende com o ldquoolharrdquo eacute a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis a observaccedilatildeo dos sensiacuteveis e a indagaccedilatildeo acerca da sabedoria [que os rege] bem como o que lhes sucede a fim de chegar agrave sua verdade pois eles satildeo o motivo dos prazeres mundanos e das venturas do aleacutem Foi por isso que o profeta [Muhammad] disse ldquoOacute Deus mostre-me as coisas tais como satildeordquo e toda vez que nelas prestava atenccedilatildeo se tornava mais iluminado inspirado e protegido por Deus Foi por isso que ele tambeacutem disse ldquoReflitam sobre a criaccedilatildeo de Deusrdquo E a reflexatildeo sobre os inteligiacuteveis natildeo eacute proporcionada senatildeo a quem tenha experiecircncia com os saberes e as matemaacuteticas e apoacutes o aperfeiccediloamento do caraacuteter e o polimento da alma Nesse momento entatildeo se lhe abre a clarividecircncia e ele enxerga em meio agrave totalidade do que eacute espantoso aquilo que visto parcialmente seria incompreensiacutevel e que se fosse narrado a outrem o deixaria desconfiado Como eacute excelente quem disse

ldquoOuvi algo espantoso que eu considerava um espectro do sono ou deliacuterio de um contomas quando o analisei percebi sua verdade e desde entatildeo jaacute vi milhares destas liccedilotildeesrdquo

Tais reflexotildees servem logo de saiacuteda para uma indagaccedilatildeo seria ra-zoaacutevel falar em elementos ldquosobrenaturaisrdquo nas Noites Sobrenatural sa-bemo-lo eacute ldquomaacutegicordquo estaacute fora das leis naturais ou a elas se impotildee E as ldquoleis naturaisrdquo pertencem obviamente ao domiacutenio da ciecircncia Estamos diante portanto de um conceito historicamente mutaacutevel Quando numa histoacuteria qualquer das Noites (ou de qualquer outro conjunto narrativo da

eacutepoca) aparece um gecircnio aprisionado haacute seacuteculos pelo rei Salomatildeo uma ponderaccedilatildeo a se fazer eacute como reagiria um leitor ou ouvinte do seacuteculo XIV por exemplo a isso Embora o fato certamente lhe fosse espantoso e admiraacutevel isso natildeo o tornaria em absoluto ldquosobrenaturalrdquo dado que semelhante ocorrecircncia fazia parte do horizonte de expectativas e possi-bilidades de entatildeo Era possiacutevel ponto Logo natildeo era sobrenatural Mas claro tratava-se de criaturas por assim dizer ldquosobre-humanasrdquo isto eacute cuja forccedila superava em muito a do ser humano Em todo caso a expressatildeo ldquosobrenaturalrdquo deve aqui ser tomada cum grano salis

Mas retomemos o processo de deflagraccedilatildeo das Noites eacute uma nar-rativa que constitui os seus receptores preferenciais como que os tipifi-cando o rei Shahriyar e a menina Dunyazad um molde pronto e outro inacabado De um lado a recepccedilatildeo experiente que extrai liccedilotildees cuida-dosa prevenida moldada pelo muito que vivenciou previamente (natildeo se deve olvidar que o grau zero de psicologia das Noites faz com que os seus personagens sejam constituiacutedos por suas experiecircncias apenas) do outro a recepccedilatildeo descuidada quase inconsequente (ldquoque histoacuteria diver-tidardquo afirma ela a todo instante mesmo quando se narram as maiores atrocidades) e em certo sentido ldquopurardquo pois livre de prevenccedilotildees

A propoacutesito a narrativa tambeacutem constitui a sua narradora Para aleacutem de sua mera articulaccedilatildeo oral ela possui uma histoacuteria que excluin-do-lhe o proacuteprio corpo e em certa medida lhe ocultando a feminilidade daacute-lhe todos os contornos de saacutebia descrevendo os livros que lera e a forma como os entendeu

Contudo do ponto de vista estrito da loacutegica que se impotildee agrave narra-dora Shahrazad sua irmatilde Dunyazad natildeo passa de um simulacro de re-cepccedilatildeo uma vez que o receptor preferencial eacute o rei Shahriyar seu marido de cuja boa vontade em uacuteltima instacircncia depende a continuaccedilatildeo da sua vida Com isso tem-se um receptor que rei e marido se relaciona conco-mitantemente agrave arte de governar de um lado e agrave arte de amar de outro lado e em cujos acircmbitos ele se vecirc em maus lenccediloacuteis sua presumiacutevel defi-ciecircncia na arte de amar aqui entendida em sentido lato torna-o viacutetima de adulteacuterio (que ele tambeacutem praticaraacute a seguir vitimando outra criatura igualmente eacute o que se supotildee inaacutebil nessa arte) e como consequecircncia as-sassino de mulheres o que evidencia uma outra deficiecircncia sua agora na arte de governar Estamos portanto diante de uma personagem deficien-te nesses dois quesitos fundamentais para a sua constituiccedilatildeo enquanto tal

Descobrir-se viacutetima de adulteacuterio faz o rei Shahriyar sair vagando pelo mundo acompanhado de seu irmatildeo mais novo e menos poderoso Shahzaman tambeacutem vitimado pela mesma desdita Ambos se encontram com a mulher de um gecircnio a qual os obriga a possuiacute-la sexualmente De uma soacute tacada colaboram para aumentar o nuacutemero de viacutetimas da mesma infacircmia que os atingira descobrindo na proacutepria carne o que a proacutepria mulher do gecircnio lhes enuncia os desejos femininos satildeo tatildeo inevitaacuteveis quanto o destino Essa amarga revelaccedilatildeo os espanta e assombra mais do que a presenccedila do gecircnio que simplesmente os assusta pois se trata de criatura sobre-humana cujo poder era imensamente superior ao deles

A primeira histoacuteria contada por Shahrazad para a sua dupla de ouvin-tes conteacutem em seu bojo mais trecircs histoacuterias Em resumo eacute a histoacuteria de um mercador inocente ameaccedilado por um ser monstruososobrenaturalsobre-humano e que acaba salvo por trecircs velhos que lhe contam histoacuterias sobre seres tambeacutem monstruosossobrenaturaissobre-humanos Tais histoacuterias satildeo consideradas ldquodivertidasrdquo por Dunyazad ao passo que o rei Shahriyar demonstra preocupaccedilatildeo com o seu desfecho o que se deve agrave analogia dessa histoacuteria com a situaccedilatildeo vivida por ele por Shahrazad e pelas mulheres que ele jaacute mandou matar E a analogia esse jogo de espelhamento das realidades do mundo eacute em si mesmo muito mais espantosa e assombrosa do que a existecircncia de seres sobre-humanos e a ocorrecircncia de eventos sobrenaturais

Outra histoacuteria significativa para os propoacutesitos desta breve explana-ccedilatildeo eacute a do carregador e das trecircs damas de Bagdaacute situada entre as noites 28 e 69 do ramo siacuterio Nela se acumulam os temas da obscenidade e do sobrenatural Um humilde carregador do mercado de Bagdaacute vai parar na mansatildeo de trecircs irmatildes beliacutessimas jovens e pelo visto solteiras Apoacutes a ocorrecircncia de praacuteticas obscenas de grau vaacuterio entre eles surgem agrave porta da casa trecircs dervixes caolhos e logo em seguida o califa Harun Arrashid em pessoa com seu vizir Jaacutelsquofar e seu escravo Masrur todos os trecircs disfar-ccedilados de mercadores Como seria de se esperar cada um dos dervixes tem a sua histoacuteria para narrar Natildeo vou resumi-las aqui mas direi que na histoacuteria do primeiro dervixe os elementos sobrenaturais aparecem mas natildeo satildeo determinantes para o desfecho Na histoacuteria do segundo dervixe o sobrenatural se mostra fundamental para o desfecho E na histoacuteria do terceiro dervixe a accedilatildeo humana eacute mais determinante do que o sobrenatural Em seguida das trecircs irmatildes duas contam suas histoacuterias a primeira das quais natildeo conteacutem elementos sobrenaturais ao passo que

na segunda o sobrenatural estaacute na metamorfose No final o califa inter-veacutem investido da sua funccedilatildeo de califa propriamente dita e natildeo mais sob disfarce e entatildeo todas as coisas satildeo repostas em seus devidos lugares ficando aiacute evidente que o texto o constitui como o governante ideal que exerce com a mesma eficaacutecia o domiacutenio sobre o mundo material e sobre o mundo sobrenatural ou seja das coisas sobre-humanas

Em seguida narra-se a histoacuteria das trecircs maccedilatildes que natildeo apresen-ta nenhum elemento sobrenatural limitando-se a mostrar a extrema crueldade e injusticcedila de que os homens satildeo capazes quando agem sob o domiacutenio da paixatildeo desenfreada A vida do elemento deflagrador disso tudo um escravo eacute trocada por uma narrativa a dos vizires Nuruddin e Badruddin noites 72-101 na qual o sobrenatural conquanto ocorra com intensidade tem importacircncia secundaacuteria quando comparado com as analogias que ndash estas sim ndash satildeo fundamentais e das quais decorre todo o ldquoespantosordquo e ldquoassombrosordquo dessa histoacuteria

Em seguida tem-se a histoacuteria do corcunda do rei da China noites 102-170 cujas peripeacutecias satildeo notaacuteveis O corcunda eacute morto aparente-mente pela accedilatildeo de um alfaiate que incrimina um meacutedico judeu que por sua vez incrimina um despenseiro muccedilulmano que por sua vez in-crimina um corretor cristatildeo Uma porccedilatildeo de eventos que seria ocioso narrar coloca todos esses homens diante do sultatildeo o qual encolerizado com a perda do seu bufatildeo predileto exige que lhe contem histoacuterias tatildeo espantosas quanto a da sua morte Seguidamente o corretor cristatildeo de-pois o despenseiro muccedilulmano e finalmente o meacutedico judeu contam as suas histoacuterias as quais satildeo consideradas insuficientes e rejeitadas pelo sultatildeo que se limita a dizer a cada um ldquoNatildeo essa sua histoacuteria natildeo eacute es-pantosa como a do corcundardquo Nenhuma das trecircs narrativas observe-se conteacutem nem sobrenatural nem analogias Eacute somente a uacuteltima narrativa do alfaiate ndash que com efeito fora o verdadeiro responsaacutevel pela morte do corcunda ndash repleta de peripeacutecias e de subhistoacuterias que agrada ao sultatildeo e o leva a perdoaacute-los pela suposta morte do corcunda

A avaliaccedilatildeo do sultatildeo pode ser tambeacutem tomada como um guia dos princiacutepios que em uacuteltima instacircncia regiam a valorizaccedilatildeo ou natildeo de uma dada narrativa no contexto das Noites Natildeo seraacute aqui possiacutevel nem se-ria razoaacutevel resumir tais histoacuterias e nos limitaremos a observar que no caso das trecircs narrativas rejeitadas pelo sultatildeo ndash e consequentemente por ele consideradas sem qualidade ndash todas consistem naquilo que hoje

podemos chamar grosso modo de narrativa ldquorealistardquo na qual os eventos se datildeo numa pura relaccedilatildeo de sucessividade natildeo mais Essa pura sucessivi-dade era entatildeo considerada banal e insossa incapaz de levar a surpresa do espantoso e do assombroso ao espiacuterito dos ouvintes Como comparaccedilatildeo seraacute uacutetil pensar na narrativa que antecede a histoacuteria do corcunda a supra-citada histoacuteria dos dois vizires irmatildeo Nuruddin e Badruddin bem como na narrativa que sucede as trecircs fracassadas contada pelo alfaiate

A qualidade da narrativa dos dois vizires reside na incidecircncia ao lado da sucessividade que se espera de qualquer narrativa da simultaneidade Os eventos se datildeo de maneira sucessiva e simultacircnea e tal simultaneidade se reveste de dois aspectos a planejada fruto da urdidura humana e a aleatoacuteria fruto da accedilatildeo do destino Eacute preciso de qualquer modo ler essa histoacuteria em sua totalidade para perceber tal relaccedilatildeo E na histoacuteria narrada pelo alfaiate no interior da qual estaacute a do barbeiro e dos seus seis irmatildeos o que sobressai para aleacutem da simultaneidade verificaacutevel na sucessivida-de dos eventos narrados eacute tambeacutem a repeticcedilatildeo e a acumulaccedilatildeo freneacuteti-ca das peripeacutecias Disso resulta que da perspectiva das Noites o melhor rendimento narrativo estaraacute na exploraccedilatildeo da sucessividade temporal previsiacutevel em qualquer narraccedilatildeo de eventos acompanhada da simulta-neidade (sempre posta em analogia) desses eventos tudo isso na maior quantidade possiacutevel para gerar os efeitos de acumulaccedilatildeo e de repeticcedilatildeo que parecem ser tatildeo apreciados pelos ouvintes e leitores da eacutepoca Tem-se entatildeo que o espantoso e o assombroso de tais narrativas natildeo se encon-tram exatamente nos eventos narrados mas sim na sua disposiccedilatildeo o que faz da proacutepria teacutecnica narrativa a fonte de todos os espantos e de todos os assombros os quais por sua vez satildeo a mateacuteria mesma das reflexotildees do homem sobre a sua condiccedilatildeo e seu mundo consistindo enfim naquilo que nos faz humanos e nas palavras de Alqazwiacuteni vai aleacutem do azul do ceacuteu e da poeira da terra diferenciando-nos dos quadruacutepedes e de outras bestas que infestam nas mais variadas formas o planeta

Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford

Alfredo Cordiviola(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Em uma discreta rua do bairro de Kensington em Londres uma discreta casa conserva a memoacuteria de Frederick Leighton Membro de uma famiacutelia favorecida por sua riqueza e por seus viacutenculos com a aris-tocracia britacircnica Leighton chegou a ser um dos pintores mais consa-grados da eacutepoca vitoriana Honrado com o tiacutetulo de Lord pela rainha e com vaacuterios precircmios nos salotildees anuais de pintura presidente da Royal Academy of Arts Leighton passou longas temporadas de formaccedilatildeo em Roma e em Paris e fez numerosas viagens particularmente pelos pa-iacuteses aacuterabes Esteve na Argeacutelia no Marrocos em Egito no Liacutebano na Turquia da sua viagem a Siacuteria em 1873 trouxe uma magniacutefica coleccedilatildeo de azulejos dos seacuteculos XV e XVI que poucos anos depois serviriam para transformar uma das partes da sua casa em um espaccedilo encantado fruto de outras dimensotildees e de outros mundos

A casa de Kensington foi sua residecircncia e seu estuacutedio tambeacutem um lugar de reclusatildeo para um homem solitaacuterio que cultivava a privacidade e o recato Nesse espaccedilo em 1877 Leighton manda construir o Arab Hall um suntuoso recinto pensado para albergar sua vasta coleccedilatildeo de objetos de arte e curiosidades acumulados em mais de vinte anos de excursotildees por terras distantes Com seus azulejos de Damasco e outras peccedilas tra-zidas de longe (algumas delas aportadas por seu amigo Richard Burton o explorador e tradutor das Mil e uma noites) o Hall foi desenhado pelo arquiteto George Aitchison Tatildeo consagrado pelas instacircncias oficiais como seu cliente Aitchison seria um professor conceituado e presidente do Royal Institute of British Architects mas natildeo se dedicava aos projetos domeacutesticos era especialista em construir os grandes templos que o enge-nho vitoriano e a circulaccedilatildeo do capital demandavam como estaccedilotildees de trem cais de embarque e armazeacutens Neste caso contou com a colaboraccedilatildeo

de destacados ceramistas escultores e artesatildeos que se encarregaram das colunas dos capiteacuteis dos frisos das gelosias e das luminaacuterias que com-punham o cenaacuterio O modelo a ser seguido e livremente adaptado na construccedilatildeo do pavilhatildeo era a Sala della fontana de La Zisa um palaacutecio do seacuteculo XII situado em Palermo na Siciacutelia No sul italiano La Zisa era um produto das muacuteltiplas influecircncias (gregas bizantinas aacuterabes normandas longobardas) que atravessaram o espaccedilo mediterracircneo ao longo dos seacute-culos Na Inglaterra o Hall imaginado por Leighton era uma fantasia ar-quitetural que revelava um gosto de eacutepoca e a evocaccedilatildeo de um lugar de muitos lugares de nenhum lugar denominado ldquoOrienterdquo

Leighton passou os uacuteltimos trinta anos da sua vida na casa rodea-do pela disciplinada beleza das reminiscecircncias chinesas japonesas in-dianas e principalmente aacuterabes que se multiplicavam pelos cocircmodos Objetos moacuteveis e decoraccedilotildees naturalizavam o exotismo e criavam rea-lidades que estavam igualmente distantes do Cairo ou de Sind como da densa atmosfera da industrializaccedilatildeo vitoriana Iacutentimas e privadas essas realidades natildeo eram muito diferentes daquelas que em grande escala eram criadas por essa espetacular invenccedilatildeo do seacuteculo XIX a Exposiccedilatildeo Universal Paraiacutesos da fantasmagoria lugares de peregrinaccedilatildeo para a mercadoria fetiche como definia Walter Benjamin as Exposiccedilotildees Universais constituem a partir do grandioso evento celebrado no Crystal Palace de Londres em 1851 o magno teatro onde se articulam os modos do progresso e da teacutecnica As Exposiccedilotildees reuacutenem o exoacutetico e o visionaacuterio a invenccedilatildeo e a ciecircncia o cataacutelogo das riquezas naturais a serem exploradas pela astuacutecia humana e os curiosos ornamentos e sin-gularidades que as periferias proporcionam Satildeo as vitrines do Impeacuterio onde o Impeacuterio se reconhece e se legitima como motor da Histoacuteria e como garante da ordem mundial Uma casa como a de Leighton pode ser vista como uma versatildeo em miniatura para consumo privado e se-leto desses grandes espetaacuteculos O espaccedilo domeacutestico exclui por defini-ccedilatildeo a participaccedilatildeo das massas e natildeo estaacute pautado pelas maravilhas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica como as feacuterias universais mas pelos usos da arte determinados pelo criteacuterio esteacutetico do colecionador Obedece contudo a um mesmo princiacutepio importar o Outro que eacute trazido de longe como passado convertido em reliacutequia Importar para resignificar o tempo pre-sente e para convalidar assim em acircmbitos amplos ou restritos as hie-rarquias geopoliacuteticas que regem a produccedilatildeo de sentidos na metroacutepole

Essas apropriaccedilotildees de um Oriente transido pela convenccedilatildeo e trans-formado em Outro natildeo obedecem por certo a uma invenccedilatildeo de Leighton e distam muito de ser exclusividade da expansatildeo vitoriana Pelo contraacute-rio o Arab Hall pode ser visto como um exemplo emblemaacutetico de um vasto processo que tinha comeccedilado muito antes e que nesse momento da segunda metade do seacuteculo XIX jaacute estava plenamente consolidado no imaginaacuterio ocidental Com a expansatildeo imperial (inglesa e francesa em particular) e com os fluxos econocircmicos e culturais mobilizados pelo co-lonialismo essa profusa porccedilatildeo do globo que se estende de Tanger ateacute Damasco jaacute vinha despertando ao longo do seacuteculo anterior todo tipo de fasciacutenios e de espantos na cosmovisatildeo europeia Esse incerto Oriente (que podia comeccedilar tambeacutem em Veneza na Espanha na Greacutecia) jaacute fora e con-tinuaria sendo incessantemente descrito por discursos imagens e pres-supostos para consumo domeacutestico das esferas metropolitanas Discursos e imagens que enquanto ampliavam o nuacutemero de informaccedilotildees dados e referecircncias impunham tambeacutem um prisma que delimitava e confirmava as perspectivas e fantasias preestabelecidas Cada vez mais esse Oriente setecentista significava barbaacuterie primitivismo misteacuterio sensualidade in-dolecircncia Nessa trama de postulados e de intervenccedilotildees (que serviriam de antecedentes precisos para a devoccedilatildeo romacircntica e para a imaginaccedilatildeo vitoriana) estatildeo inseridos acontecimentos muito diversos que por sua vez emitem intensas reverberaccedilotildees que seratildeo outra vez recicladas e reinven-tadas em outros domiacutenios Acontecimentos mais ou menos transcenden-tais mais ou menos influentes e tatildeo diversos entre si como a traduccedilatildeo das Mil e uma noites feita a partir de diversos manuscritos antigos e de narra-tivas provavelmente inventadas ou apoacutecrifas por Antoine Galland entre 1704 e 1707 ou as teorias sobre a Histoacuteria de Hegel as escavaccedilotildees arque-oloacutegicas em Palmyra as maquinaccedilotildees de Voltaire as peccedilas de porcelana ilustradas com reminiscecircncias turcas e as pinturas de Van Mour sobre a vida no Impeacuterio Otomano as elucubraccedilotildees dos savants que participaram nas campanhas napoleocircnicas no Egito a odalisca de Ingres E tambeacutem o Vathek de William Beckford

Nascido em Wiltshire em 1760 no seio de uma aristocraacutetica famiacutelia que gerenciava vastas plantaccedilotildees de accediluacutecar na Jamaica Beckford cumpre as etapas caracteriacutesticas da sua classe (educaccedilatildeo esmerada fluecircncia em liacutenguas breve incursatildeo pela poliacutetica participaccedilatildeo no Grand Tour) poreacutem eacute mais conhecido por suas excentricidades que definiam tanto sua vida

privada como tambeacutem sua trajetoacuteria de colecionador literato compositor musical e propulsor de curiosos projetos arquitetocircnicos Destes o mais curioso foi a construccedilatildeo na propriedade familiar da Fonthill Abbey uma fantasia neogoacutetica desenhada pelo arquiteto James Wyatt Construiacuteda com extrema celeridade e inapropriados materiais durante os primeiros anos do seacuteculo XIX a imponente abadia da qual soacute resta uma miacutenima parte foi um monumento de fragilidade que apenas resistiu alguns anos antes de colapsar definitivamente Mais duradoura foi uma torre neoclaacutes-sica em Bath a Landsdown Tower erigida como refuacutegio para si e para suas copiosas coleccedilotildees A torre eacute o uacutenico exemplo dos devaneios ediliacutecios de Beckford que ainda sobrevive Hoje alberga um museu no cemiteacuterio anexo se encontra o tuacutemulo de granito do autor

Heterodoxo e cosmopolita Beckford faleceu em 1844 O obituaacuterio do Bath and Cheltenham Gazette informa que ldquofor more than 40 years he has relinquished Parliamentary honours and other public duties devoting him-self to retirement but not unprofitablyrdquo1 Poderia quiccedilaacute ter sido somente lembrado como um dos tantos diletantes de uma eacutepoca propiacutecia para ex-travagacircncias e hedonismos Mas escreveu o Vathek uma obra lida durante deacutecadas com avidez (entre muitos outros por Byron Keats Swinburne e Mallarmeacute) que aprimorou definitivamente sua fama Foi redigida em pou-cos dias e em francecircs no ano de 1782 e traduzida ao inglecircs em 1786 por Samuel Henley como An Arabian Tale from a Unpublished Manuscript ndash um manuscrito tatildeo imaginaacuterio como as aventuras narradas no romance que ficou rapidamente conhecido pelo tiacutetulo do seu protagonista Como Al-Whatiq o califa dos abaacutessidas do seacuteculo IX em que a personagem estaacute livremente inspirada o califa Vathek estava possuiacutedo por uma vontade ab-soluta de conhecimento que foi como para Fausto primeiro uma virtude e depois sua perdiccedilatildeo Movido por esse afatilde insaciaacutevel o califa renega do Islatilde constroacutei uma torre para adivinhar os segredos do ceacuteu pratica toda classe de maldades e excessos Horrores indefinidos prodiacutegios artes maacutegicas enti-dades malignas e paisagens abissais se multiplicam no seu caminho Viaja procurando algo que natildeo haveraacute de achar por lugares fantaacutesticos e sinistros Apesar de tudo ainda recebe uma uacuteltima chance de se redimir que desper-diccedila A histoacuteria chega assim a um final inevitaacutevel como o narrador informa

1 Bath and Cheltenham Gazette May 8 1844 p 3 Disponiacutevel em Beckfordiana The William Beckford Website (httpbeckfordc18netbeckfordianahtml)

Thus the Caliph Vathek who for the sake of empty pomp and forbidden power had sullied himself with a thousand crimes became a prey to grief without end and remorse without mitigation2

Vathek acaba no inferno nesse inferno subterracircneo que Borges con-siderou o mais atroz de toda a literatura escrita ateacute entatildeo Lembremos que o autor argentino evoca infernos onde acontecem fatos atrozes como o de Dante mas os distingue de infernos que satildeo em si mesmos atrozes como este imaginado por Beckford Nesse sentido o compara com aquelas peculiares gravuras que Piranesi tinha elaborado alguns anos antes a seacuterie das Carceri dacuteinvenzione proacutedigas em estranhos ins-trumentos que parecem maacutequinas de torturas em corredores e esca-darias que natildeo levam a parte alguma em salas labiriacutenticas e em seres fantasmais que deambulam sem propoacutesito pelas sombras3

O breve e pobre resumo do romance que apresentamos no paraacute-grafo anterior omite os esplendores e surpresas as ironias e o erotis-mo que tanto cativaram os leitores mas pelo menos ajuda a instalar o Vathek na encruzilhada de duas tradiccedilotildees a goacutetica e a ldquoorientalistardquo O romance interpela ambas as mitologias e precisamente no modo em que as perpassa reside sua singularidade Passagens subterracircneas seres macabros tensotildees sexuais eventos sobrenaturais e horrores variados conformam a base da literatura goacutetica que se consagra no seacuteculo XVIII a partir da tremenda popularidade atingida pela obra de Horace Walpole O Castelo de Otranto (1764) O revival medievalista jaacute vinha se manifes-tando no paisagismo e na arquitetura em poucas deacutecadas particular-mente na Inglaterra mas tambeacutem na Franccedila na Alemanha e em outras partes da Europa o ldquogoacuteticordquo forneceria durante grande parte do XIX um mecanismo exemplar de reapropriaccedilatildeo e reinvenccedilatildeo de passados e de imaginaacuterias continuidades com o tempo presente Dos apoacutecrifos poemas de Ossian a Tennyson e Walter Scott de Ruskin aos preacute-rafa-elitas atraveacutes do goacutetico e seus apelos se invocava um tempo imutaacutevel em que prevaleciam a espiritualidade e os valores constantes os laccedilos de sangue e a prosaacutepia O goacutetico tambeacutem era um antiacutedoto que protegia

2 Beckford William Vathek Fourth Edition Revised and Corrected London Clarke 1824 p 227

3 Borges Jorge Luis ldquoSobre o Vathek de William Beckfordrdquo em Obras completas Buenos Aires Emeceacute 1986 (p 729-732)

tanto da insensiacutevel frieza das linhas retas cultivadas pelo neoclassicismo quanto das incertezas da industrializaccedilatildeo com suas obscuras paisagens urbanas dominadas pela maacutequina e o carvatildeo Tradiccedilatildeo monarquia na-cionalismo eram evidenciados em forma fantasmaacutetica pelas aboacutebadas pelas torres e agulhas pelos vitrais e pelos interiores altos e luminosos que obrigavam a elevar a visatildeo Natildeo eacute casual que o neogoacutetico passasse a adquirir um estatuto quase hegemocircnico na arquitetura da eacutepoca Nisto Walpole tambeacutem seria pioneiro ao dotar sua mansatildeo de Strawberry Hill com as caracteriacutesticas de outros tempos propiciando um estilo que iria se repetir ateacute a saciedade nas construccedilotildees civis do periacuteodo vitoriano Das Houses of Parliament desenhadas por Augustus Pugin um dos princi-pais expoentes do movimento ateacute os museus estaccedilotildees de trem igrejas e residecircncias particulares cada cidade parecia obrigada a ter seus mo-numentos neogoacuteticos Paradoxalmente essa invocaccedilatildeo do passado era a forma de ser modernos de estar plena e cabalmente inseridos no tempo que correspondia viver o tempo do impeacuterio e da naccedilatildeo triunfantes

Com sua fugaz abadia Beckford tambeacutem pratica esse gesto devocio-nal para o passado Essa construccedilatildeo fazia parte do theatrum mundi insta-lado nos seus domiacutenios de Fonthill A extensa propriedade servia como palco ideal para criar uma aura de privacidade que fomentava os rumores e as censuras da sociedade e para reunir uma das coleccedilotildees de obras de arte mobiacutelia e livros raros mais importantes da sua eacutepoca A abadia livre-mente influenciada pelas catedrais que tanto admirara nas suas estadias em Portugal pode ser vista tambeacutem como uma peccedila de ficccedilatildeo como um reservatoacuterio de tesouros e suntuosidades que concretizava e tornava vi-siacuteveis as incontaacuteveis maravilhas do palaacutecio do califa Vathek A simbiose entre as fantasias goacuteticas e orientais que constituiacuteam o arcabouccedilo do ro-mance se materializava assim mais uma vez aquela simbiose de palavras agora estava feita de pedras ornamentos e ostentaccedilotildees em fim

Eacute evidente que se Vathek incorpora e prefigura a vocaccedilatildeo pelo goacutetico por sua temaacutetica sua atmosfera e seus personagens manifesta tambeacutem um iacutempar fasciacutenio pelo Oriente Um fasciacutenio que se refletia no modo de vida e nas preferecircncias esteacuteticas do seu autor mas que natildeo obedecia ape-nas a um gosto iacutentimo nem a uma mera extravaganza Pelo contraacuterio do seacuteculo XVIII ao XIX esse interesse pelos orientes da imaginaccedilatildeo fa-zia parte do Zeitgeist e teria tatildeo longas repercussotildees como as produzidas pela redescoberta do goacutetico Se o Arab Hall de Leighton era um exemplo

concreto e superabundante desse interesse eacute tambeacutem a prova de que o Oriente evocado pelas andanccedilas e o traacutegico final de Vathek continuava mais vivo do que nunca vaacuterias deacutecadas depois da apariccedilatildeo do romance Mas seria um erro pensar que se tratava simplesmente de uma moda ou de uma frivolidade passageira Se neogoacuteticos e orientalismos deixam sua marca na literatura nos edifiacutecios nos haacutebitos nos artefatos e nas artes visuais eacute porque fornecem o mais apropriado dos espelhos onde a eacutepoca se vecirc a si mesma do modo em que precisa se ver hierarquizando passados legitimando presentes e subalternizando o Outro

Nessas composiccedilotildees de identidades e de diferenccedilas cabe ao ldquoOrienterdquo cumprir um papel fundamental Os escritos de Edward Said4 muito tecircm contribuiacutedo para mapear e desmontar os fundamentos epistemoloacutegicos que sustentam essas composiccedilotildees Criticado por enfatizar dicotomias e praticar reducionismos natildeo haacute como negar que Said constitui referecircncia inevitaacutevel quando se trata de reelaborar a mecacircnica do mesmo e do outro que define saberes e praacuteticas emanadas na oacuterbita dos imperialismos Uma mecacircnica que adquire conotaccedilotildees peculiares no contexto da modernidade iluminista quando a ldquoEuropardquo se consagra a si mesma como estaacutegio mais avanccedilado da evoluccedilatildeo uniacutevoca e linear da espeacutecie humana e a globalizaccedilatildeo depende do comeacutercio escravagista o racismo comeccedila a ser legitimado pelo discurso cientiacutefico e expediccedilotildees como a de Cook e Bouganville parecem completar a inspeccedilatildeo e o ldquodescobrimentordquo de todo o planeta Uma mecacircnica contudo que remete a tempos conflitos e dominaccedilotildees anteriores e que no seacuteculo XVIII jaacute contava com uma longa histoacuteria

A partir dos desdobramentos dessa longa histoacuteria (que eacute a histoacuteria da expansatildeo do ldquoOcidenterdquo pelo Mediterracircneo e pelo mundo) certas ideias sobre outras regiotildees e outras culturas do planeta vatildeo lentamente se legitimando mediante as mais diversas descriccedilotildees e representaccedilotildees Versotildees oferecidas pelos relatos dos viajantes pelos desenhos dos car-toacutegrafos pelas definiccedilotildees dos historiadores e teoacutelogos pelas paraacutebolas e ficccedilotildees contribuem para forjar diversas imagens homogecircneas das terras e das populaccedilotildees situadas nos antiacutepodas de locais de enunciaccedilatildeo que se concebem a si mesmos por mandato divino por dominacircncia militar ou por ambas as coisas como expressatildeo de uma superioridade civilizatoacuteria

4 Em particular Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente (Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001) e Cultura e imperialismo (Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995) O primeiro foi originalmente publicado em 1978 e o segundo em 1993

Essas imagens que traccedilam fronteiras e estabelecem oposiccedilotildees e anti-nomias haveratildeo de adquirir uma dimensatildeo muito mais hegemocircnica e de alcance global quando a partir do seacuteculo XV a ocidentalizaccedilatildeo passa a ser o motor central da geopoliacutetica planetaacuteria A expansatildeo europeia e a con-solidaccedilatildeo de uma modernidade capitalista intimamente vinculada com o colonialismo redefinem mais uma vez e com profundas consequecircncias ulteriores as hierarquias entre as partes do mundo Seraacute esse um mun-do definido e naturalizado como assimeacutetrico e marcadamente dicotocircmi-co pelo conjunto de discursos e praacuteticas que configuram isso que Aniacutebal Quijano denomina colonialidade Enquanto o colonialismo (o efetivo do-miacutenio poliacutetico e econocircmico) eacute a condiccedilatildeo de possibilidade da colonialida-de esta garante a produccedilatildeo e a perduraccedilatildeo dos pressupostos simboacutelicos e epistemoloacutegicos que asseguram e consolidam a dominaccedilatildeo A coloniali-dade estabelece matrizes de poder relativas agrave produccedilatildeo de conhecimento agraves relaccedilotildees de trabalho e aos viacutenculos intersubjetivos que excedem a de-finiccedilatildeo de soberania de uma naccedilatildeo sobre outra e que perduram mesmo depois dos processos de independecircncia que marcam a histoacuteria das antigas colocircnias durante os seacuteculos XIX e XX Assim o colonialismo antecede agrave colonialidade e propicia sua disseminaccedilatildeo pelas sociedades mas a colo-nialidade natildeo desaparece com a ruptura da ordem imperial nem com a emergecircncia do estado-naccedilatildeo autocircnomo Desta forma uma noccedilatildeo como a de ldquopureza de sanguerdquo que subalterniza os indiviacuteduos e lhes impotildee um lugar determinado na trama social e a ideia de ldquoeurocentrismordquo que ex-pande a subordinaccedilatildeo no plano global satildeo dois dos instrumentos que a colonialidade inserta no sistema-mundo O racismo impotildee um criteacuterio de classificaccedilatildeo universal cujo fundamento uacuteltimo eacute o eurocentrismo Como afirma Quijano

El eurocentrismo por lo tanto no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o soacutelo de los dominantes del capitalismo mundial sino del conjunto de los educados bajo su hegemoniacutea Se trata de la perspectiva cog-nitiva producida en el largo tiempo del conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonialmoderno y que naturaliza la experiencia de las gentes en este patroacuten de poder5

5 Quijano Anibal ldquoColonialidad del Poder y Clasificacioacuten Socialrdquo em Castro-Goacutemez Santiago Grosfoguel Ramoacuten (eds) El Giro Decolonial reflexiones para una di-versidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo global Bogotaacute Pontificia Universidad Javeriana 2007 (p93-126 p 94)

O revivalismo goacutetico e o deslumbramento orientalista natildeo podem ser percebidos fora desses paracircmetros culturais impostos pelo eurocen-trismo e a expansatildeo do ldquoOcidenterdquo Os impeacuterios consolidados e emer-gentes se deixam seduzir por outros lugares e outros tempos enquan-to postulam um padratildeo de universalidade que atende a seus proacuteprios interesses O ldquoOrienterdquo as chinoiseries a seda o chaacute e a porcelana os enigmas e o algodatildeo da Iacutendia as estampas japonesas satildeo incorporados assim a um fluxo de apreciaccedilotildees e de demandas Seria injusto contudo supor que essas apropriaccedilotildees se reduzem agrave perpeacutetua fetichizaccedilatildeo da di-ferenccedila ou que satildeo uma simples consequecircncia da necessidade capitalista de abrir novos mercados Como em todo tracircnsito promovido pelas di-versas e progressivas mundializaccedilotildees da histoacuteria a operacionalizaccedilatildeo do perifeacuterico dentro das oacuterbitas centrais por um lado confirma o estereoacuteti-po e impotildee o recurso da miacutemica mas pode acabar tambeacutem provocando uma ampliaccedilatildeo das fronteiras do cognosciacutevel um elogio da margem e um questionamento do monologismo

Algo disto haacute no Vathek poderia ter sido um de tantos romances previsiacuteveis e acaba sendo um exemplo de heterotopia que parece implo-dir desde dentro mesmo das convenccedilotildees goacuteticas e orientalistas os luga-res comuns de toda enunciaccedilatildeo Talvez seja um exerciacutecio feito por um excecircntrico ocioso e libertino uma obra quiccedilaacute menor que na histoacuteria das letras represente como escreve Borges ldquothe perfume and suppliance of a minuterdquo Mas com sua cornucoacutepia de dicccedilotildees imagens e mitologias eacute tambeacutem um texto que foi replicado transformado e dissolvido em outras obras e por outros autores que no seacuteculo XIX ampliaram as pos-sibilidades da literatura e as possibilidades que a literatura dispotildee para inventar e descrever o real Algo do Vathek estaacute em Coleridge em de Quincey em Baudelaire em Burton em Wells Algo do Vathek perdura nos umbrosos neogoacuteticos de proviacutencia e no refinado sossego da casa de Leighton Ou nas vozes e expectativas que parecem ecoar diante de cada novo leitor das Mil e uma noites E tambeacutem nas conotaccedilotildees cer-tamente mais complexas e mais polissecircmicas que a palavra ldquoOrienterdquo foi adquirindo no mundo Natildeo eacute pouco para um mero romance que foi escrito em um lugar chamado Fonthill em trecircs dias e duas noites daquele remoto ano de 1782

O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente

Andreacute de Sena(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco Belvidera)

De maneira ostensiva ou praesentia in absentia eacute fato que o Oriente veio revelando vaacuterios de seus prismas jaacute nas pioneiras manifestaccedilotildees literaacuterias em acircmbito ocidental natildeo raras vezes fomentando incoacutegnitas O personagem Dioniso de As bacantes (406 aC) de Euriacutepides ndash apenas um dentre os vaacuterios exemplos que se poderia enumerar no espectro do mais puro aticismo ndash nos serviria de iacutecone para este precursor fasciacutenio que o meacutedio Oriente suscitou ainda nos tempos claacutessicos carnalizan-do os misteacuterios e belezas ora sedutores ora aterrorizantes da ldquoditosa Araacutebiardquo (Euriacutepedes 2004 p 220) Natildeo agrave toa eacute Dioniso ndash filho de Zeus mas educado por ninfas asiaacuteticas ndash o conhecido potencializador de ele-mentos maacutegicos e estranhos da fase heroica dos Hinos homeacutericos aos palcos traacutegicos da era de Peacutericles sem contar com sua presenccedila como motivo plaacutestico nos famosos vasos negros de figurinhas vermelhas A trageacutedia euripidiana apesar de propalar a noccedilatildeo de meacutetron de respei-to humano agraves hierarquias divinas estaacute repleta de acontecimentos que ensaiam a ruptura da propalada verossimilhanccedila associada agrave miacutemese aristoteacutelica veras fantasmagorias que vatildeo do controle telepaacutetico do deus em relaccedilatildeo ao coro das bacantes passando pelas sugestotildees do insoacutelito (terremotos incecircndios mutaccedilotildees fiacutesicas e efeitos oacuteticos que confundem os outros personagens) ateacute o elogio da licantropia

Se Pembroke (1998 p 356) afirma que as dinastias que precederam Zeus na Teogonia hesioacutedica teriam como provaacuteveis modelos mitos me-sopotacircmicos e anatoacutelicos por sua vez Momigliano (1998 p 184) argu-menta que foram os contatos com naccedilotildees orientais que deram impulso ao proacuteprio surgimento da historiografia grega Assim a ponte que vai do mythos ao logos na mundivisatildeo ocidental tem no Oriente um de seus encraves Natildeo eacute por outro motivo que Platatildeo nrsquoA repuacuteblica em meio agraves

discussotildees filosoacuteficas referentes agrave origem e essecircncia da Justiccedila vista como um bem em si natildeo prescindiraacute da utilizaccedilatildeo do mito ndash no caso um que tem a Liacutedia como cenaacuterio principal caminho atraveacutes do qual os gregos entraram em contato com o Oriente proacuteximo sua tirania riquezas e ma-gia ndash para ilustrar sua argumentaccedilatildeo repleto de elementos maravilhosos

A permissatildeo a que me refiro seria especialmente significativa se eles [o justo e o injusto] recebessem o poder que teve outrora segundo se conta o antepas-sado de Giges o Liacutedio Este homem era pastor a serviccedilo do rei que naquela eacutepoca governava a Liacutedia Certo dia durante uma violenta tempestade acom-panhada de um terremoto o solo fendeu-se e formou-se um precipiacutecio perto do lugar onde o seu rebanho pastava Tomado de assombro desceu ao fundo do abismo e entre outras maravilhas que a lenda enumera viu um cavalo de bronze oco cheio de pequenas aberturas debruccedilando-se para o interior viu um cadaacutever que parecia maior do que o de um homem e que tinha na matildeo um anel de ouro de que se apoderou depois partiu sem levar mais nada Com esse anel no dedo foi assistir agrave assembleacuteia habitual dos pastores que se reali-zava todos os meses para informar ao rei o estado dos seus rebanhos Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros virou sem querer o engaste do anel para o interior da matildeo imediatamente se tornou invisiacutevel aos seus vizinhos que falaram dele como se natildeo encontrasse ali Assustado apalpou novamen-te o anel virou o engaste para fora e tornou-se visiacutevel Tendo-se apercebido disso repetiu a experiecircncia para ver se o anel tinha realmente esse poder reproduziu-se o mesmo prodiacutegio virando o engaste para dentro tornava-se invisiacutevel para fora visiacutevel [] (Platatildeo 1999 p 44-45)

O mesmo fasciacutenio que jamais se desobrigou da atraccedilatildeo pelo estra-nho se aprofundaraacute ainda mais durante o culto periacuteodo alexandrino em que se conjugaram como nunca Ocidente e Oriente ateacute desembocar no fausto das cortes romanas o imperador Filipe (244-249 dC) era aacutera-be e como lembra Irwin (2008 p 26) uma das Saacutetiras de Juvenal acusa ironicamente esta influecircncia do Oriente no Ocidente na etapa latina ao afirmar que ldquoo rio Orontes [um rio na Siacuteria] veio desaguar no Tibrerdquo

Na Idade Meacutedia por exemplo os textos teoacutericos de Dante acusam a leitura e a influecircncia de Averroacuteis (um dos maiores comentadores de Aristoacuteteles) e Avicena As obras deste uacuteltimo comeccedilaram a ser traduzidas do aacuterabe ao latim em Toledo e refletiram-se em inuacutemeros outros livros gerados nas universidades de Oxford e Paris com o detalhe de que boa parte da ciecircncia islacircmica conforme Irwin (p 41) natildeo configuraria exata-mente lsquociecircnciarsquo como hoje a compreendemos muitos textos originais aacutera-bes eram dedicados agrave ldquoastrologia alquimia numerologia omplatoscopia

(adivinhaccedilatildeo a partir das rachaduras nos ossos calcinados de carneiros) geomancia (adivinhaccedilatildeo a partir de marcas na areia) haruspicaccedilatildeo (adi-vinhaccedilatildeo a partir de entranhas) e praacuteticas obscuras de natureza semelhan-terdquo O estudo da matemaacutetica aacuterabe servia para a arquitetura baliacutestica e engenharia mas tambeacutem como auxiliar da astrologia e todo um pensa-mento maacutegico ligado a uma natureza fantaacutestica que aceitava a existecircncia de talismatildes maacutegicos e receitas para venenos que podiam atuar a grandes distacircncias Segundo Irwin (p 42) o poliacutemata Abu Yusuf Yaqub ibn Ishaq Al-Kindi que viveu em Bagdaacute no seacuteculo IX era um dos autores mais lidos e admirados no periacuteodo medieval pelos saacutebios europeus e boa parte de sua obra se baseava em princiacutepios maacutegicos

Em De Radiis (ldquoSobre os raiosrdquo) tratado que sobreviveu [nos dias atuais] somente em sua traduccedilatildeo latina do seacuteculo XII Al-Kindi expocircs uma visatildeo essencialmente maacutegica do universo na qual radiaccedilotildees ocultas provenientes dos astros influenciavam os assuntos humanos Cada astro exercia uma in-fluecircncia sobre um grupo especiacutefico de objetos Embora os raios estelares fos-sem de suma importacircncia tudo no universo emitia raios Do mesmo modo segundo De Radiis as palavras possuiacuteam poderes maacutegicos especialmente se fossem proferidas sob conjunccedilotildees estelares particularmente favoraacuteveis e associadas ao uso de imagens talismacircnicas e ao sacrifiacutecio de animais com finalidade maacutegica [] Outras obras de al-Kindi que foram traduzidas trata-vam da astrologia e do poder de previsatildeo dos sonhos (p 42)

Tais prospecccedilotildees haveriam de influenciar o pensamento miacutestico e a sabedoria hermeacutetica de autores europeus da dimensatildeo de um Nicolau de Cusa (1401-1464) e um Pico della Mirandola (1463-1494) funda-mentais para a filosofia renascentista Do universo da teacutecnica ao plano das ideias a influecircncia aacuterabe foi decisiva e natildeo se pode perder de vista ainda a possibilidade de que a ciecircncia lsquomaacutegicarsquo registrada pela erudiccedilatildeo aacuterabe do medievo tambeacutem tenha se infiltrado em suas produccedilotildees liga-das ao orbe ficcional ndash ao menos tal como hoje o compreendemos

As tentativas proto-renascentistas de Toledo ndash mais proacuteximas do uni-verso da liacutengua portuguesa ndash plasmadas nas traduccedilotildees e difusatildeo da ciecircn-cia e alquimia aacuterabes na passagem da Alta para a Baixa Idade Meacutedia tive-ram ampla repercussatildeo no Ocidente Ainda segundo o orientalista Irwin (p 43) dada a quantidade de material ocultista sendo traduzida e estuda-da em Toledo a cidade acabou adquirindo uma reputaccedilatildeo para a feiticcedilaria e a magia negra (fato aludido por exemplo em liacutengua portuguesa no

teatro de Gil Vicente vide o Auto das fadas uma das peccedilas mais lsquofantaacutes-ticasrsquo da produccedilatildeo vicentina de 1511) E natildeo eram apenas textos ocultis-tas que vinham sendo decodificados em Toledo sabe-se que na corte de Afonso X o Saacutebio havia uma traduccedilatildeo de contos orientais maravilhosos pertencentes ao ciclo hindu do Panchatantra (200 aC) que provava a existecircncia naquele lugar de um puacuteblico aacutevido natildeo apenas pela poesia galaico-portuguesa especialmente a de cunho marianista mas tambeacutem pela fantasia orientalista Muitos autores do Ocidente influenciar-se-atildeo pelos estilos narrativos do Oriente a exemplo do catalatildeo Raimundo Luacutelio (1232-1315) autor de Blanquerna segundo Irwin (p 58) obra composta numa narrativa ldquodivaganterdquo ldquojuncada de faacutebulas e contos a maior parte dos quais parece derivar de originais aacuterabesrdquo conhecidos pelo ldquoencaixe de histoacuteriasrdquo e Bocaccio (1331-1375) cujo Decameratildeo apresenta diversos intertextos com o Livro das mil e uma noites

As contaminaccedilotildees intertextuais natildeo param por aiacute Eacute conheci-da a pletora miacutetica que a obra de viajantes como Sir John Mandeville Ludovico Varthema Marco Polo (que levou o Oriente para aleacutem do Oriente) e outros trouxe agrave luz do dia ainda no periacuteodo medievo cor-roborando mutatis mutandis na criaccedilatildeo de um Oriente maravilhoso gerador de outras regras naturais

Tais maravilhas descritivas chegavam inclusive a ser atestadas com as memorabilia coletadas durante as viagens e trazidas agrave Europa para cons-tituir as primeiras vitrines de maravilhas ou gabinetes de curiosidades precursores dos museus modernos nos seacuteculos XVII e XVIII ldquocoleccedilotildees de artefatos raros antiguidades e simulaccedilotildees de monstros pela arte da ta-xidermiardquo (Irwin p 66) O imaginaacuterio miacutetico orientalista tambeacutem estava presente na literatura em liacutengua portuguesa como eacute prova novamente a obra de Gil Vicente que situa seu monstro Monderigon da Comeacutedia sobre a divisa da cidade de Coimbra (1527) como oriundo dos ldquodesertos da Armecircniardquo e a estranha taccedila que D Duardos exibe e atraveacutes da qual en-canta Fleacuterida em Dom Duardos (1522) como vinda da Turquia

Somando-se outras inuacutemeras obras que constituiacuteram gecircneros hiacute-bridos entre as narrativas informativas de viagem e a ficccedilatildeo fantaacutesti-ca escritas por aventureiros (aventura no melhor sentido da palavra incluindo o literaacuterio) da eacutepoca renascentista que insistiam em revelar as espantosas maravilhas do Oriente (Giambattista Ramusio Samuel Purchas Jean Thenaud Pierre Belon Ogier Ghiselin de Busbecq Nicolas

de Nicolay Guillaume Postel etc) observa-se a gradual constataccedilatildeo da existecircncia concreta de um espaccedilo fiacutesico que parecia natildeo se submeter agraves leis naturais vigentes na banda ocidental Segundo Irwin (p 86)

O Oriente era superior ao Ocidente porque o paraiacuteso terrestre tinha se lo-calizado laacute [Postel] citava comprovaccedilotildees da excelecircncia oriental como por exemplo o borametz um arbusto oriental que dava cordeiros como frutos ou outra aacutervore oriental que produzia patildeo vinho seda vinagre e oacuteleo (Pico della Mirandola abrigava noccedilotildees vagamente semelhantes acerca do Oriente pois acreditava que o sol era mais forte na parte leste do mundo onde pro-duzia pedras preciosas perfumes leotildees tigres e elefantes)

Natildeo custa lembrar que os proacuteprios aacuterabes desenvolviam suas nar-rativas de viagem repletas de elementos sobrenaturais e maacutegicos tam-beacutem compondo gecircneros hiacutebridos e assegurando uma visatildeo e um anseio mais utoacutepicos (sendo a utopia atemporal mesmo que empiricamente localizaacutevel no tempo e no universo das ideias) do que propriamente a configuraccedilatildeo de um zeitgeist medievalrenascentista numa relaccedilatildeo de ontologia No tratado geograacutefico Peacuterola de espantos e singularidades de assombros observa-se a possibilidade de um oriente maacutegico aos proacute-prios aacuterabes associado agrave China Segundo Jarouche (2010 p 40) texto de autoria duvidosa cuja elaboraccedilatildeo se situa entre os seacuteculos XIV e XV traz a expressatildeo ldquoChina da Chinardquo semelhante a outra que aparece no Livro das mil e uma noites (ldquoNas peniacutensulas da Iacutendia e da Indochinardquo) revelando todo um imaginaacuterio ligado agraves regiotildees extremas do globo O proacuteprio Jarouche (2010 p 40) traduz trechos deste tratado numa nota de sua ediccedilatildeo das Noites nos quais podemos observar esta percepccedilatildeo de lsquoorientalismo dos orientaisrsquo tambeacutem eivado de histoacuterias maravilhosas

Quanto agrave China da China ela fica no fim do mundo a Oriente natildeo existindo depois dela senatildeo o mar oceano A capital da Grande China se chama Assilagrave As notiacutecias desse povo natildeo nos chegam devido agrave grande distacircncia e conta-se que o rei deles caso natildeo tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas natildeo eacute considerado rei E se o rei deles tiver muitos filhos e morrer seu reino natildeo seraacute herdado senatildeo por aquele que for o mais haacutebil na pintura e no desenho

Em seu excelente estudo intitulado Pelo amor ao saber (2006) que visou revelar um orientalismo diverso do olhar negativista sobre o tema a exemplo do proposto por Edward Said na obra Orientalismo (1978)

Robert Irwin analisou vaacuterias etapas histoacutericas e as leituras distintas que as mesmas propuseram em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves realidades poliacutetica soacutecio-econocircmica e antropoloacutegica dos povos aacuterabes mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave sua literatura Por exemplo a par de um crescente domiacutenio da liacutengua aacuterabe por parte dos filoacutelogos renascentistas e posteriormente iluministas observou-se tambeacutem a necessidade de compreender a rica literatura oriental (incluindo-se a persa) num amaacutelgama com os gecircne-ros e formas claacutessicas que vinham sendo retomados atraveacutes da imitatio classicista num momento em que as proacuteprias liacutenguas vernaacuteculas euro-peacuteias eram confrangidas pela superioridade cientiacutefica do latim

Quando nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XVIII William Jones traduziu obras aacuterabes e persas com o objetivo de apresentaacute-las a um puacuteblico inglecircs era inevitaacutevel que tentasse adequar as estrofes orientais aos gecircneros claacutessicos e assim ele se entusiasmava com ldquopastoraisrdquo ldquoeacuteclogasrdquo persas e assim por diante [] Por outro lado quem estava entediado com as grandes obras da antiguidade e achava que as artes e os conhecimentos dos antigos gregos e romanos tinham sido supervalorizados (e esses eram uma minoria vocife-rante) agarrava-se agrave literatura oriental como algo que fornecia um tesouro de novas imagens modos de expressatildeo e heroacuteis que poderiam proporcionar uma fuga agraves restriccedilotildees dos precedentes claacutessicos (Irwin p 103)

Contudo aos poucos e apesar da normatividade tiacutepica destas eacutepocas uma nova percepccedilatildeo de que outros gecircneros e formas literaacuterias poderiam ampliar a visatildeo artiacutestica foi se consolidando entre o puacuteblico leitor culto Na fase iluminista a descoberta do Livro das mil e uma noi-tes pelo Ocidente associou-se entre outros exemplos agrave assimilaccedilatildeo de Shakespeare por Lessing e de Rousseau por Herder fazendo brotar os primeiros veios das correntes preacute-romacircnticas Isso eacute corroborado por Kidson (p 418) quando afirma

Essa mudanccedila de fidelidade coincidiu com uma alteraccedilatildeo resoluta nas refle-xotildees sobre o que eacute ou natildeo eacute arte e sobre seu lugar no espectro da experiecircncia humana Ateacute o seacuteculo XVIII a teoria artiacutestica preocupara-se de modo mais ou menos exclusivo com a noccedilatildeo do ideal que em certo sentido se traduzi-ria como a pretensatildeo de conhecimento do mundo

Foi entatildeo com o despertar do que este criacutetico chama de ldquoo ele-mento subjetivo da experiecircncia esteacuteticardquo que o maravilhosofantaacutes-tico oriental veio se consolidar peremptoriamente no imaginaacuterio

artiacutestico do Ocidente Daacute-se uma aparente contradiccedilatildeo apoacutes o livro de Winckelmann sobre a cultura claacutessica ldquoa curiosidade que jaacute esta-va levando os europeus a se lanccedilarem em busca da arte grega genuiacutena tambeacutem os levou a outros lugares e logo os colocou diante de obras de imaginaccedilatildeo agraves quais simplesmente natildeo se aplicava o acervo de ideias criacuteticas que haviam herdadordquo (Kidson p 437)

Nesta busca muito contribuiacuteram dois autores franceses que no iniacutecio do seacuteculo XVIII realizaram duas grandes experiecircncias ligadas agrave literatura oriental admiradas pelos leitores da eacutepoca O primeiro foi Bartheacuteleacutemy drsquoHerbelot (1625-1695) com sua Bibliothegraveque orientale uma das maiores coletacircneas de textos em prosa e poesia vertidas do aacuterabe no Ocidente O segundo ainda mais importante (mas cuja obra teve o terreno preparado pela Bibliothegraveque) foi Antoine Galland (1646-1715) com sua famosa traduccedilatildeo do Livro das mil e uma noites em tomos publicados de 1704 a 1707 Pode-se dizer que a traduccedilatildeo de Galland ndash a que se somaram outras como a capitaneada em liacutengua inglesa por sir William Hay Macnaghten entre 1814 e 1818 a ediccedilatildeo alematilde de Breslau em doze volumes organizada por Maximilian Habicht e Heinrich Fleischer (entre 1825 e 1843) a de Edward William Lane que saiu entre 1838 e 1841 a do aventureiro e diplomata sir Richard Burton (1885) ndash inspiraraacute todo o preacute-romantismo e romantismo europeus e serviraacute como uma das fontes para o surgimento tanto da novela goacutetica como do fantaacutestico setecentista e oitocentista Como afirma Irwin (p 141) DrsquoHerbelot e Galland foram os primeiros orientalistas a se dedicar com seriedade agrave literatura secular do Oriente Meacutedio e a traduccedilatildeo de Galland das Noites tornou-se rapidamente um enorme sucesso de vendas sendo logo convertida para outros idiomas europeus O mais interessante eacute que Galland acalentava uma certa visatildeo antropoloacutegica em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites indiretamente corroborando (ou quando muito sugerindo) aquela naturalidade da sobrenaturalidade delegada ao Oriente pelos autores ocidentais do medievo e do Renascimento em pleno contexto racionalista Segundo Irwin (p 141)

[Galland] pretendia que sua traduccedilatildeo da coleccedilatildeo de histoacuterias medievais [das Noites] fosse natildeo apenas uma diversatildeo literaacuteria mas tambeacutem uma obra de instruccedilatildeo que informaria aos leitores como era o modo de vida dos povos orientais e com esse objetivo inseriu numerosos comentaacuterios explicativos em sua traduccedilatildeo Na introduccedilatildeo ao primeiro volume ele escreveu que parte

do prazer de ler essas histoacuterias estava em tomar conhecimento ldquodos costu-mes e maneiras dos orientais bem como das cerimocircnias tanto pagatildes como maometanas pois essas coisas estatildeo mais bem descritas nesses contos que nos relatos de escritores e viajantesrdquo

Eacute bem conhecida a influecircncia que o Livro das mil e uma noites operaraacute nas primeiras narrativas goacuteticas sendo o caso de Vathek de William Beckford o mais paradigmaacutetico (Beckford por sinal estudava o aacuterabe e chegou a traduzir alguns trechos das Noites sendo por algum tempo detentor de um dos mais importantes manuscritos deste livro atualmente guardado na Biblioteca Bodleiana de Oxford) Teoacutericos des-tacados do primeiro romantismo alematildeo (ciacuterculo de Jena) a exemplo de Friedrich Schlegel que definiram pioneiramente o proacuteprio movimento eram grandes conhecedores da obra e a liam no original aacuterabe A lis-ta de autores romacircnticos e fantaacutesticos que buscaram atraveacutes da visatildeo libertaacuteria proporcionada pela literatura aacuterabe e mais especificamente o Livro das mil e uma noites a possibilidade de criaccedilatildeo de seus proacute-prios temas personagens e enredos mirabolantes eacute infinita Potocki Byron Chateaubriand Coleridge Gautier Nerval Tieck Jean-Paul Hoffmann Poe Carvalhal Borges eacute mais difiacutecil encontrar quem natildeo tenha homenageado o Oriente em suas obras ligadas ao fantaacutestico do que o contraacuterio e mais de uma tese jaacute deve ter sido escrita sobre o tema Essa influecircncia eacute em grande parte citada literalmente ou entatildeo traba-lhada na forma de intertextos reescrituras e ateacute paroacutedias

Todorov na Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica se mostra inquieto di-versas vezes em relaccedilatildeo agrave classificaccedilatildeo das Noites tratando-as como ldquocontos maravilhosos mais do que contos de fadasrdquo (2007 p 60) ressaltando-lhes os aspectos de ldquomaravilhoso hiperboacutelicordquo (em que ldquofenocircmenos satildeo sobrenatu-rais soacute por suas dimensotildees superiores agraves que nos resultam familiaresrdquo ndash p 60) ldquomaravilhoso exoacuteticordquo (nos ldquoacontecimentos sobrenaturais [que apare-cemsatildeo descritos] sem apresentaacute-los como taisrdquo ndash p 61) ldquomaravilhoso ins-trumentalrdquo (na existecircncia de ldquoadiantamentos teacutecnicos irrealizaacuteveis na eacutepoca descrita mas depois de tudo perfeitamente possiacuteveisrdquo ndash p 62) e assim por diante O criacutetico buacutelgaro analisa ainda a linguagem e os procedimentos nar-rativos das Noites prenhes de sugestotildees fantaacutesticas e maravilhosas (efetiva-mente mais maravilhosas do que fantaacutesticas segundo sua teoria) e por fim chega agrave constataccedilatildeo de que exigiriam ldquoum estudo especialrdquo (p 60) que seria hipoteticamente escrito noutra ocasiatildeo

A associaccedilatildeo de Todorov das Noites a um princiacutepio maravilhoso estaacute a meu ver correta Mas ndash poderiacuteamos acrescentar ndash um maravilhoso que por sua vez fecundou o fantaacutestico se nos reportarmos novamente agraves cha-ves de leitura deste autor Como dito a influecircncia que as Noites exerceram na imaginaccedilatildeo literaacuteria setecentista e oitocentista chegando agrave contempo-raneidade eacute clara visto que a maior parte dos procedimentos narrativos e de um imaginaacuterio desconstrutor da noccedilatildeo cartesiana de real ndash apesar da jaacute propalada naturalidade da sobrenaturalidade (ldquosobre-humanidaderdquo na boa expressatildeo cunhada pelo tradutor brasileiro das Noites Mamede Mustafa Jarouche durante sua conferecircncia no 2ordm CLIF-PE noccedilatildeo de uma medida acima do humano mas dentro da natureza) existente no contexto do original aacuterabe que aparece natildeo raro sob a forma chistosa ndash tiacutepicos do modo fantaacutestico jaacute estatildeo presentes na obra Em suma o Livro das mil e uma noites antecipa padrotildees e caracteriacutesticas caros ao discurso fantaacutestico dentre os quais poderiacuteamos enumerar alguns

bullcerta visatildeo associada a um estranhamento pela repeticcedilatildeo de acontecimentos

bullo inesperado o inusitado

bulla completa quebra da verossimilhanccedila e decoro classicistas funda-mentais para a compreensatildeo de uma lsquonovarsquo verossimilhanccedila imanen-te agrave obra literaacuteria

bullo chiste a metalinguagem o prazer da e pela narrativa (lembremo-nos do caso do xeique que tendo poupada sua vida por um agressivo ifrit opta em permanecer no local em que seria morto apenas pelo pra-zer de ouvir novas histoacuterias de outros condenados que tambeacutem tenta-vam pela narrativa de suas proacuteprias aventuras delirantes se salvar)

bullas relaccedilotildees inusuais (infinitas bastando-nos lembrar do caso dos peixes coloridos que toda vez que eram postos numa panela inicia-vam a falar ao tempo que se abria uma fenda na parede e dela saiacutea uma estranha mulher repetidamente mas sem elos causais explici-tados no texto gerando-se percepccedilotildees e sugestotildees aleatoacuterias) tais re-laccedilotildees tambeacutem adentram o territoacuterio das metaacuteforas poeacuteticas ainda mais evidenciadas pelas traduccedilotildees em outros idiomas que custam a chegar ao sentido original do aacuterabe (veja-se a descriccedilatildeo de uma per-sonagem atraveacutes de siacutemiles aparentemente esdruacutexulos mas capazes

de despertar novas imagens poeacuteticas ldquoEla fazia o sol iluminado se envergonhar e parecia uma estrela brilhando no alto ou um pavilhatildeo de ouro ou uma noiva desvelada ou um peixe egiacutepcio na fonte ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite []rdquo ndash 2010 p 113)

bulla mistura de reinos (lembremo-nos do priacutencipe que era metade hu-mano metade pedra negra) o grotesco

bullreinvenccedilotildees e relativizaccedilotildees do tempo (num dos melhores episoacute-dios das Noites tenta-se recriar perfeitamente em todos os detalhes um dia completo do passado ocorrido 12 anos antes) quebras tem-porais e de espaccedilo nonsense exaltaccedilatildeo do novo e do excecircntrico pela viagem o inquietante familiar (no sentido do unheimlich freudiano a exemplo da descoberta de novas e insuspeitas paisagens numa geo-grafia ateacute entatildeo considerada familiar e totalmente apreendida nova-mente no caso do lago dos peixes coloridos)

bullexerciacutecio do coloquialismo cultura popular possiacuteveis leituras textu-ais moralistas e alegoacutericas que contudo natildeo eclipsam o sentimento do estranho e do fantaacutestico sentimento de infinito atraveacutes de uma histoacuteria infinita gerada pelo gecircnio imaginativo de Sahrazad (noccedilatildeo de partes distintas relatos diversos ndash incluindo a mistura de gecircneros poesia e prosa bem como prosa poeacutetica ndash enfeixados num todo que eacute coeso a seu modo aparentemente uma estrutura lsquoem abertorsquo progressiva)

A partir destas e de outras caracteriacutesticas presentes ao texto das Noites cuja liccedilatildeo a literatura fantaacutestica ulterior saberaacute aprender po-deremos analisar elementos intertextuais em uma infinidade de casos Muito longe de tentar esgotar o assunto elencarei a tiacutetulo ilustrativo trecircs exemplos ou maneiras baacutesicas pelos quais alguns autores reescre-veram o Livro das mil e uma noites primeiramente irei explorar proce-dimentos e sugestotildees intertextuais a partir de alguns vislumbres da obra do contista alematildeo E T A Hoffmann (1776-1822) depois um exemplo de recorte e reconstituiccedilatildeo utilizando excertos de um conto do escritor portuguecircs Aacutelvaro do Carvalhal (1844-1868) e por uacuteltimo um caso de escritura completa re-modalizada num conto do escritor norte-ameri-cano Edward Lucas White (1866-1934) A escolha destes autores e sua ordem natildeo satildeo aleatoacuterias e revelam neste recorte cronoloacutegico como a influecircncia do orientalismo maacutegico natildeo cessa de fins do seacuteculo XVIII ateacute chegarmos ao seacuteculo XX (e obviamente tambeacutem nos dias atuais)

Assim em meio agrave apologia do grotesco evidenciada pelas Noites seria possiacutevel antever naquele curioso corcunda do episoacutedio do casamento de Dadruddin Hasan de Basra o precursor duma longa linhagem de perso-nagens bufotildees que seraacute trabalhada pelo fantaacutestico autoconsciente a exem-plo do famoso Pequeno Zacarias vulgo Cinaacutebrio de E T A Hoffmann A pergunta natildeo eacute descabida e a leitura atenta das Noites sugeriraacute mais de um intertexto em relaccedilatildeo agraves obras do genial contista alematildeo Por exemplo em meio agrave aventura do cristatildeo com o rei da China (episoacutedio narrado nas Noites) descreve-se um aposento composto por um jardim maacutegico que tambeacutem poderia antecipar o jardim das serpentinas hoffmannianas

O almocreve me conduziu ateacute a casa paguei-lhe um quarto de dinar ele re-cebeu e foi-se embora Bati agrave porta e fui recebido por duas pequenas meni-nas brancas que me disseram ldquoEm nome de Deus entre pois nossa patroa natildeo dormiu esta noite tal a alegria por sua vindardquo Adentrei o paacutetio e me vi diante de uma casa agrave qual se acessava subindo sete degraus e que tinha por toda a sua circunferecircncia janelas dando para um jardim com todos os gecircne-ros de frutas e aves com coacuterregos abundantes que eram uma diversatildeo para os olhos no centro havia uma fonte e em cada um de seus quatro acircngulos uma cobra de ouro vermelho tranccedilado da boca das quatro cobras fluiacutea uma aacutegua que parecia ser peacuterola e gema (2010 p 283)

Compare-se agora este excerto do Livro das mil e uma noites com outro presente na ldquoSexta vigiacuteliardquo do conto O vaso de ouro de Hoffmann

Quando Anselmo olhou para as plantas e aacutervores pareceu-lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente Agrave sombra densa dos ciprestes reluziam ba-cias de maacutermore de onde afloravam estranhas estaacutetuas que salpicavam raios cristalinos que caiacuteam sobre brilhantes corolas de liacuterios vozes singulares ressoa-vam e sussurravam atraveacutes do bosque de plantas extraordinaacuterias e um esplecircn-dido perfume espalhava-se como ondas O arquivista desaparecera e Anselmo soacute avistava uma enorme corbelha de ardentes liacuterios cor de puacuterpura e de fogo Extasiado pela visatildeo pelo doce perfume do jardim encantado Anselmo esta-cou completamente enfeiticcedilado (Hoffmann 1993 p 40)

Tais anaacutelises satildeo importantes para observarmos ateacute que ponto a ima-ginaccedilatildeo romacircntica recriou ndash obviamente com criatividade autoral ndash o Livro das mil e uma noites Ao falar em procedimentos e sugestotildees inter-textuais refiro-me aos intertextos que satildeo sugeridos em relaccedilatildeo agraves Noites pelos textos fantaacutesticos posteriores sem que haja uma clara marcaccedilatildeo de que delas proviriam A influecircncia estaacute laacute mas soacute podemos cogitaacute-la nas

entrelinhas O mais proacuteximo que observamos dessa marca inicial ou iacutendi-ce no conto O vaso de ouro se encontra num excerto da ldquoTerceira vigiacuteliardquo Apoacutes a narraccedilatildeo de histoacuterias delirantes referentes a liacuterios maacutegicos e perso-nificaccedilotildees alquiacutemicas como a do ldquojovem Phosphorusrdquo efetivada pelo es-tudante Anselmo responde-lhe o escrivatildeo Heerbrand ldquolsquoPermita-me caro senhor arquivista mas isto natildeo passa de frivolidades orientaisrsquordquo (p 21) as-sociando chistosamente a narrativa fantaacutestica descrita anteriormente aos desbordamentos imaginativos da escrita aacuterabe (a influecircncia das Noites na obra de Hoffmann estaacute diluiacuteda das mais diversas maneiras relatei apenas um breve exemplo para ilustrar a noccedilatildeo de sugestatildeo intertextual)

A influecircncia das Noites se torna mais evidente quando as obras fantaacutes-ticas citam-nas nominalmente Em liacutengua portuguesa poderemos explo-rar alguns trechos do conto oitocentista A febre do jogo em que Aacutelvaro do Carvalhal ndash o autor que mais se aproximou em Portugal do romantismo imaginativo e espectral tiacutepico das culturas germacircnica e anglo-saxatilde ndash natildeo soacute acusa nominalmente tal intertexto mas tambeacutem retira um trecho completo das Noites e o adapta a sua proacutepria histoacuteria Observemos alguns elementos e a dicccedilatildeo goacutetica do conto hauridos tambeacutem de outras leituras romacircnticas

Laacute fora desprendia a tempestade as borrascosas asas pelo entenebrecido espaccedilo Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas vidraccedilas O ceacuteu abrasava-se em clarotildees efeacutemeros E a terra revolvia-se accediloitada pelos iacutempe-tos recrudescentes de sucessivos furacotildees A imobilidade sombria das cate-drais antigas dos torreotildees cocircnicos de mourisca faacutebrica dos zimboacuterios dos edifiacutecios circulares e colossais iluminada a espaccedilos pelas fosforescecircncias paacutelidas dos relacircmpagos dava ao espectaacuteculo um luacutegubre caraacutecter Dir-se-ia que o abismo vomitara legiotildees de democircnios que ameaccedilavam este nosso acanhado canto do mundo com um formidaacutevel torvelinho reduzindo-o a arena de vertiginosas coreias (Carvalhal 2004 p 23)

A febre do jogo configura o tiacutepico conto influenciado pela peccedila no-turna (Nachtstuumlck) alematilde a explorar os desvatildeos psicoloacutegicos dos per-sonagens juntamente agraves descriccedilotildees distoacutepicas dos loci horrendi A certa altura Mariano seu atormentado protagonista afirma ldquopintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas grandezas de um conto das mil e uma noitesrdquo (p 28) associando nomeadamente as excentri-cidades luacutegubres da diegese ao universo ficcional das Noites inclusive como afirmado reconstituindo-as em vaacuterios momentos de sua proacutepria trama narrativa Quando Mariano segue o espectro do pai que acabara de

assassinar ndash numa lsquocatabase goacuteticarsquo que por sinal jaacute fora sugerida entre outras por algumas ldquonoitesrdquo (capiacutetulos) do ramo siacuterio do Livro das mil e uma noites (narrativas do primeiro e terceiro dervixes) ndash adentra um antigo templo aacuterabe remodelado pelo cristianismo e eacute tomado por visotildees extaacuteticas e aterrorizantes soacute finalizadas quando aparentemente eacute trazido de volta a si (sugerindo-se fantasticamente que toda a experiecircncia preacutevia natildeo passara de deliacuterio) estando agora na cidade de Naacutepoles Daacute-se entatildeo o que chamei de reconstituiccedilatildeo ou seja a recriaccedilatildeo de um trecho original das Noites (somente um trecho ou trechos ndash eacute bom destacar) numa outra diegese autoral e ineacutedita que em todo o caso acusa textualmente esta influecircncia Leiamos o excerto do conto de Carvalhal

De repente paro esmagado num ciacuterculo de ferro Ergue-se um brado solu-ccedilante e comprimido Vozes confusas troavam de cada lado Olhei Caiacuteam sobre mim os raios tisnadores de um sol brilhante Estava no zeacutenite o sol De todas as partes acelerada se ajuntava a populaccedila Alguns homens natildeo poucos cheios de suor e de cansaccedilo reprimiam-me nos braccedilos atleacuteticos Entre esses homens descobri minha matildee que desalinhada e lacrimosa cla-mava estorcendo os braccedilos em veemente dor- Louco loucoCravei nela os olhos estupefactoAquele brado de uma afliccedilatildeo de matildee arrefeceu-me ateacute agrave ponta dos cabelosTentei reflectir mas faltaram-me ideias Tentei recordar mas natildeo tive me-moacuteria O que eu tinha era o vaacutecuo na cabeccedila Poreacutem natildeo sei como compe-netrei-me da medonha verdadeEnvergonhado quis furtar-me agraves vistas dos curiosos E soacute nesse instante reparei que estava nu Eu Nu de dia numa praccedila puacuteblica Como acreditaacute-lo Estava nu Mas trazia pendente dos ombros a coberta esfarrapada do meu leito como um manto real- Louco louco repeti entatildeo num choro coleacuterico de desespero atroz E espumando de raiva rolei de chofre exacircnime nos braccedilos que me prendiam- Luacutecio foi a minha primeira exclamaccedilatildeo ao volver agrave existecircncia - Onde estou eu foi a minha primeira perguntaLuacutecio de peacute agrave cabeceira da minha cama estava embevecido em minuciosa anaacutelise Parecia determinado a natildeo perder uma soacute das fases por que ia pas-sando a doenccedila nem algum novo sintoma que acaso se revelasse- Desconheccedilo esta casa Onde estamos prossegui- Em Naacutepoles- Naacutepoles- Justamente [] (p 45-46)

A modalizaccedilatildeo fantaacutestica do conto de Carvalhal transforma agora pelo aparente vieacutes da loucura e do deliacuterio o personagem Luacutecio Durante todo o conto agira e fora descrito agrave semelhanccedila do Mefistoacutefeles goethia-no sendo o responsaacutevel por toda a sorte de horrores que se abateu sobre Mariano A partir deste momento sugere-se um amigo fiel que ao lado da matildee do protagonista teme pela sauacutede mental do mesmo Fica no ar a duacutevida seraacute toda esta cena mais um dos ardis do diaboacutelico Luacutecio O que importa eacute a presenccedila da recriaccedilatildeo das Noites jaacute que na narraccedilatildeo de um dos capiacutetulos da obra ldquoOs vizires Nuruddin Ali do Cairo e seu filho Badruddin Hasan de Basrardquo aparece a mesma cena

[] O dia se iluminou a alvorada irrompeu e os portotildees de Damasco fo-ram abertos As pessoas saiacuteram e viram Badruddin Hasan jovem gracioso com roupas miacutenimas barrete descoberto e tuacutenica sem os calccedilotildees Exausto devido agrave noite em claro agrave procissatildeo com os ciacuterios e ao peso que carregara o jovem dormia estirado e roncava [] Disse um outro [popular] ldquoCoitados dos filhos do povo Vejam o que aconteceu a esse rapaz Estava bebendo talvez e quis parar e ir cuidar da vida mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu assim pelado Ou quem sabe talvez tenha confundido a porta de sua casa com o portatildeo da cidade e encontrando-o trancado dormiu aqui mesmordquo [] Badruddin Hasan acordou e vendo-se diante dos portotildees de uma cidade cercado por homens de toda espeacutecie ficou atarantado e per-guntou ldquoOnde estou minha gente O que tecircm vocecircsrdquo Responderam ldquoNoacutes encontramos vocecirc aqui deitado na hora da chamada para a oraccedilatildeo da alvo-rada Eacute soacute o que sabemos a seu respeito Onde vocecirc dormiu esta noiterdquo Ele respondeu ldquoPor Deus minha gente que esta noite eu estava dormindo do Cairordquo Algueacutem disse ldquoOuccedilam soacuterdquo Outro disse ldquoDeem-lhe um tapa com forccedilardquo E todos lhe disseram ldquoMeu filho vocecirc estaacute doido Dormir no Cairo em acordar em Damascordquo [] Outro disse ldquoEle estaacute loucordquo e todos grita-ram ldquoloucordquo e agrave forccedila resolveram que ele enlouquecera [] (p 239)

O leitor das Noites sabe que Hasan fora transportado pelos ares por ifrits de uma cidade a outra dentro da perspectiva maravilhosa mas o personagem natildeo tem ideia disso pois estava dormindo no momento do rapto e chega a cogitar posteriormente que realmente sonhara es-tando em Damasco todo o dia e a vida anterior no Cairo gerando-se o nonsense Jaacute o texto de Carvalhal natildeo apresenta iacutendice preacutevio algum sugerindo que a brusca passagem de uma cidade a outra poderia ser uma ilusatildeo gerada pela alienaccedilatildeo de Mariano sem maiores explicaccedilotildees A bricolagem intertextual corrobora os aspectos delirantes e fantaacutesti-cos (pela indefiniccedilatildeo do que realmente ocorreu com o protagonista) do

conto de Carvalhal mas como afirmado compotildee apenas uma passa-gem episoacutedica de A febre do jogo da maior importacircncia eacute verdade con-tudo sem assegurar a totalidade da diegese

Passemos agora a explorar por fim um caso em que a escritura comple-ta re-modalizada em relaccedilatildeo ao Livro das mil e uma noites ocorre a partir de um conto de Edgar Lucas White intitulado Amina que apesar de escrito na primeira deacutecada do seacuteculo XX faz uso de procedimentos tiacutepicos do horror e fantaacutestico oitocentistas tomando ainda como base o exotismo orientalista que existiu sob as mais diversas faces em todo o seacuteculo XIX

Amina eacute totalmente baseada em uma das histoacuterias das Noites em que se narra o aparecimento de um suposto ente sobrenatural em meio ao caravanccedilarai e agraves ruiacutenas de cidades antigas intitulada ldquoO filho de rei e a ogrardquo Cumpre transcrevecirc-la integralmente na voz do pescador que a conta ao rei Yunan

Conta-se oacute rei venturoso que certo rei tinha um filho que era grande aman-te de caccediladas Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai o qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz Certo dia saiacuteram ambos e cavalgaram ateacute o deserto O jovem descortinou uma presa e o vizir lhe disse ldquoPegue-a corra atraacutes dessa caccedilardquo O jovem foi atraacutes do animal mas perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto sem saber para que lado ir nem que rumo tomar Entatildeo eis que viu uma jovem chorando no caminho Perguntou-lhe ldquoDe onde vocecirc eacuterdquo Ela respondeu ldquoSou filha de um dos reis da Iacutendia Estava neste deserto cavalgando minha montaria quando fui dominada pelo sono e distraiacuteda caiacute do animal Agora estou longe de todos e assustadardquo Ouvindo as palavras da moccedila o filho do rei lamentou-lhe a situaccedilatildeo e colocou-a na garupa de seu cavalo avanccedilando ateacute topar com umas ruiacutenas A moccedila entatildeo lhe disse ldquoMeu senhor eu pre-ciso satisfazer uma necessidade logo alirdquo e o rapaz a ajudou a descavalgar Ela entrou nas ruiacutenas e o filho do rei foi atraacutes sem saber o que ela era Observando-a poreacutem descobriu tratar-se de uma ogra que fora dizer aos seus filhotes ldquoEu lhes trouxe um jovem bonito e gordinhordquo Os filhotes dis-seram ldquoTraga-o logo mamatildeezinha para que pastemos em seu ventrerdquo Disse o vizir ao ouvir o diaacutelogo deles o rapaz ficou apavorado seus mem-bros se contraiacuteram e temendo por sua vida ele retornouDisse o vizir a ogra saiu atraacutes dele e lhe perguntou ldquoO que vocecirc tem Por que estaacute com medordquo Entatildeo ele se queixou da situaccedilatildeo que estava enfrentan-do e concluiu ldquoIrei sofrer uma injusticcedilardquo Ela lhe disse ldquoSe estaacute para sofrer uma injusticcedila entatildeo peccedila ajuda a Deus altiacutessimo e ele o livraraacute do mal que vocecirc temerdquoDisse o vizir o jovem ergueu as matildeos para o ceacuteu [] e disse ldquoOacute Deus faccedila-me triunfar contra o meu inimigo lsquopois voacutes de tudo sois capazrsquordquo

Disse o vizir quando a ogra ouviu a suacuteplica deixou-o em paz O jovem che-gou satildeo e salvo ateacute o pai e lhe contou a histoacuteria do vizir isto eacute que fora ele que lhe ordenara correr atraacutes da caccedila sucedendo-lhe entatildeo tudo aquilo com a ogra O rei mandou convocar o vizir e executou-o (p 84-85)

Destarte o que constitui um breve episoacutedio narrativa dentro de ou-tra na 15ordf e 16ordf noites do Livro das mil e uma noites (ramo siacuterio) seraacute utilizado para enformar a diegese completa do conto de White consubs-tanciando a diferenccedilagradaccedilatildeo que parte do universo oral e folcloacuterico das ldquoformas simplesrdquo (segundo a terminologia do criacutetico literaacuterio Andreacute Jolles [1976]) passando pelo pioneiro registro literaacuterio das Noites ateacute culminar numa reescritura re-modalizada e autoral no caso o conto Amina

Publicado originalmente na revista The Bellman em 1ordm de junho de 1907 Amina conta a histoacuteria do personagem Waldo um ocidental que se encontra numa pesquisa de campo no deserto em meio agraves milenaacuterias ruiacutenas de civilizaccedilotildees antigas Jaacute na primeira frase da narrativa perce-be-se a atmosfera de pesadelo que entretece a diegese a revelar que a realidade pode assumir graus fantaacutesticos ldquoWaldo cara a cara com a re-alidade do inacreditaacutevel ndash como ele mesmo teria dito ndash estava comple-tamente estupefato Em silecircncio ele deixou-se conduzir pelo cocircnsul do teacutepido escuro do interior pela porta em ruiacutenas ateacute o calor e a claridade ofuscante do desertordquo (White 2007 p 147)

O leitor eacute apresentado in media res a este cenaacuterio desolado que atinge a extensatildeo dos sonhos Trecircs personagens principais Waldo o cocircnsul e Hassan parecem perdidos ao tempo que buscam se defender ou mesmo extirpar certos animais estranhos que aparentemente Waldo observara algum tempo antes

- Hassan ndash [disse o cocircnsul] observe aquiHassan disse algo em persa- Quantos filhotes havia ndash o cocircnsul perguntou a WaldoWaldo nada respondeu- Quantos pequenos vocecirc viu ndash o cocircnsul voltou a perguntar- Vinte ou mais ndash Waldo conseguiu responder- Isso eacute impossiacutevel ndash o cocircnsul retrucou- Parecia haver 16 ou 18 ndash Waldo corrigiu-se Hassan sorriu e resmungou O cocircnsul pegou duas armas das matildeos do guia entregou a Waldo a dele e os dois caminharam ao redor da tumba [] (p 147)

Logo em seguida o aspecto sobrenatural destes seres eacute posto em evidecircncia no momento em que os personagens decidem se separar para caccedilaacute-los O atocircnito Waldo diferentemente do cocircnsul e de Hassan ainda insiste em natildeo acreditar que a experiecircncia anterior poderia ser fruto de sua imaginaccedilatildeo sendo repreendido pelo referido cocircnsul por esta atitude

[] Fique atento ao seu redor Existe a chance quase remota de o macho retor-nar durante o dia ndash eles costumam ser notiacutevagos mas esse covil eacute excepcional [] Vocecirc natildeo deve ter nenhum tipo de sentimentalismo tolo em relaccedilatildeo agrave se-melhanccedila que esses animais possam ter com os seres humanos Atire e atire para matar Natildeo apenas eacute nosso dever exterminaacute-los mas seraacute muito perigoso para noacutes se natildeo o fizermos

Uma gradaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao sobrenatural existe se atentarmos agraves ca-racteriacutesticas destes trecircs personagens que de certa forma iconizam alguns gecircnerossubgecircneros propostos pela teoria todoroviana Hassan o nativo de fala persa poderia representar o olhar do Maravilhoso puro a aceita-ccedilatildeo completa da existecircncia de leis outras talvez desacreditadas em situa-ccedilotildees e topografias distintas O cocircnsul poderia ter refletido inicialmente o olhar do Estranho do ocidental que precisou encontrar certas soluccedilotildees ou respostas para que a existecircncia do insoacutelito fosse explicada de maneira racional e dentro das leis naturais posteriormente abandonadas com a presentificaccedilatildeo efetiva do sobrenatural e o consequente aparecimento do Fantaacutestico-maravilhoso (em que haacute primeiro a hesitaccedilatildeo fantaacutestica se-guida pela aceitaccedilatildeo do Maravilhoso) E por fim na maior parte do texto a experiecircncia do olhar do Fantaacutestico pela ambiguidadeduacutevida instigadas pelo personagem Waldo Contudo eacute importante observar o sobrenatural aceito por Hassan e pelo cocircnsul eacute trabalhado numa via de negatividade que eacute bem diversa por exemplo do Maravilhoso puro dos contos de fa-das aproximando Amina das tiacutepicas narrativas de horror A associaccedilatildeo que o cocircnsul faz dos animais-monstros com a suposta aparecircncia humana revela que o sobrenatural permanece de maneira disfoacuterica e atraveacutes de uma inquietaccedilatildeo trabalhada pela experienciaccedilatildeo do medo Eacute o medo que faz com que ocidentais e orientais se unam em prol do total extermiacutenio destes seres ainda segundo a visatildeo do cocircnsul

Haacute pouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanas po-reacutem nos poucos pontos em que a opiniatildeo puacuteblica existe ela atua com pron-tidatildeo e vigor Se haacute um assunto sobre o qual natildeo haacute discordacircncia eacute que eacute

incumbecircncia de todos os homens ajudar a erradicar essas criaturas O velho costume biacuteblico de apedrejar ateacute a morte eacute o modo de linchar os nativos por aqui Esses asiaacuteticos modernos satildeo capazes de aplicaacute-lo a qualquer pessoa considerada negligente no combate a esses monstros Se deixarmos um de-les escapar e as pessoas ficarem sabendo podemos dar iniacutecio a um surto de preconceito racial que vai ser difiacutecil enfrentar Portanto atire sem hesitaccedilatildeo ou piedade - Entendi- Natildeo me importa se vocecirc entende ou natildeo ndash disse o cocircnsul ndash Quero que vocecirc aja Atire se for preciso e de modo certeiro ndash E partiu (p 148-149)

Eacute interessante como se pode observar nas entrelinhas deste excerto a discussatildeo da outridade OcidenteOriente pela modalizaccedilatildeo fantaacutesti-ca O olhar colonial se adensa no momento em que se fala da ldquopouca ou nenhuma solidariedade nas comunidades muccedilulmanasrdquo e trata do tema do preconceito racial entrevisto nas possiacuteveis sublevaccedilotildees dos coloni-zados inserindo-se ainda o ritual do apedrejamento dentro do contexto especiacutefico do conto Ateacute que ponto aquela insistente frase a corroborar com as usuais toacutepicas do discurso imperialista ldquoatire sem hesitaccedilatildeo ou piedaderdquo poderia ser associada a essa relaccedilatildeo de outridade De fato a sabedoria do sobrenatural de Hassan e o olhar de simpatia que o narra-dor tem para com este personagem subalterno natildeo chega a desconstruir o discurso da superioridade europeia Mas o que importa para a presen-te anaacutelise eacute o fato de que o cocircnsul pede a Waldo um pragmatismo que continua por via oposta a endossar o olhar fantaacutestico deste uacuteltimo eacute preciso agir e natildeo compreender Destarte continuamos no territoacuterio do insoacutelito potencializado pelas novas marcaccedilotildees que o texto ofereceraacute relativas agrave passagem do Ocidente para o Oriente

Na manhatilde de sua aventura inesqueciacutevel Waldo acordou cedo As experiecircn-cias de suas viagens ao mar as visotildees de Gibraltar em Port Said no canal em Suez em Aden em Muscat e em Basrah propiciaram uma transiccedilatildeo ina-dequada entre a regularidade decorosa da vida escolar e domeacutestica na Nova Inglaterra e a maravilha daquelas imensidotildees deseacuterticas e suas paisagens de tirar o focirclego Tudo parecia irreal mas a veracidade daquela estranheza o perturbava tanto que ele natildeo conseguia sentir-se agrave vontade nem dormir profundamente em uma barraca Depois de deitar-se passava muito tempo acordado e levanta-va cedo como naquela manhatilde no iniacutecio do falso alvorecer (p 149)

A teacutecnica do sfumato das artes plaacutesticas mistura sutil de matizes e gra-dientes sem transiccedilotildees abruptas natildeo poderia ser associada a esta passagem A movecircncia Ocidente-Oriente eacute acompanhada por uma seacuterie de fenocircme-nos estranhos que gera uma quebra ontoloacutegica em relaccedilatildeo ao real atraveacutes de choques inesperados que acabam inserindo o personagem Waldo num estado quase delirante corroborado pelo sol ostensivo falta de sono esgo-tamento nervoso ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas (costuma beber ldquoconhaque purordquo ndash p 147) procedimentos caros ao gecircneromodo fantaacutestico

Durante a noite em meio ao acampamento Waldo sente necessida-de de passear e contemplar pessoalmente no deserto as constelaccedilotildees e o famoso pleniluacutenio tatildeo decantado pelo Livro das mil e uma noites em me-taacuteforas liacutericas geralmente associadas agrave beleza feminina Sua relaccedilatildeo com o deserto eacute um tanto contraditoacuteria ansiava uma experiecircncia de libertaccedilatildeo e a realidade se mostrava contraacuteria opressora Pensava que o perigo maior da viagem de exploraccedilatildeo seriam os soldados curdos logo desmistificados como paciacuteficos Na realidade os perigos eram outros como deu a enten-der Hassan o personagem mediador entre o visiacutevel e o invisiacutevel

Hassan falava um pouco de inglecircs e contava-lhe histoacuterias sobre espiacuteritos ma-lignos espectros e outros estranhos seres lendaacuterios sobre o democircnio das ruiacute-nas surgindo como ser humano falando todos os idiomas sempre agrave procura de infieacuteis sobre a mulher cujos peacutes eram virados com os calcanhares para a frente levando os imprudentes a um poccedilo onde os afogava sobre os fan-tasmas malignos dos salteadores mortos mais terriacuteveis que os vivos sobre o espiacuterito incorporado em um burro ou em uma gazela levando seus persegui-dores agrave beira do precipiacutecio parecendo continuar a correr sobre uma areia que natildeo passava de uma simples miragem que se dissolvia [] (p 151)

O sobrenatural aparece aqui numa de suas facetas literaacuterias mais carac-teriacutesticas ligada agrave oralidade A cultura lsquoprimitivarsquo a ele associada eivada de crendices antiteacuteticas ao logos natildeo raras vezes na experiecircncia do insoacutelito in-verte a polaridade e passa a funcionar justamente como logos dentro do so-brenatural toacutepica relativamente comum das histoacuterias de horror Os perigos iniciais ldquovagos e imaginaacuteriosrdquo (p 151) acabaratildeo ganhando concretude em meio ao deserto locus geralmente propiacutecio ao intervalo que vai da imagi-naccedilatildeo agrave miragem um natildeo-lugar ou espaccedilo com outra dinacircmica de tempo

Olhou ao redor contemplando aquela vasta desolaccedilatildeo e o ceacuteu de um azul-turquesa uniforme arqueando-se sobre o deserto Montanhas avermelhadas e

distantes pareciam amontoar-se sobre colinas mais proacuteximas que enchiam a paisagem amarela sem diminuir-lhe a monotonia Areia e rochas com poucos galhos finos formavam a paisagem em volta alterada aqui e ali pela presenccedila de ruiacutenas brancas ou acinzentadas Natildeo fazia muito tempo que o sol nascera mas a superfiacutecie toda do deserto tremulava com o calor [] (p 152)

Eacute nesta fronteira cronotoacutepica cuja luminosidade excessiva mais con-funde do que refrata mimeticamente o aspecto das coisas que lhe apa-receraacute entatildeo a figura esquisita de uma mulher em meio agraves ruiacutenas com-postas por ldquotumbas preacute-histoacutericas asiaacuteticas persas partas sassacircnidas e muccedilulmanasrdquo (p 151) Novamente observamos as modalizaccedilotildees tiacutepicas do fantaacutestico e do horror que intentam causar estranhamento no leitor

Todas as mulheres do vilarejo que ele jaacute vira usavam ldquoyashmaksrdquo ou alguma espeacutecie de pano ou veacuteu para cobrir o rosto Aquela mulher estava sem veacuteu e sem qualquer pano na cabeccedila Usava um tipo de veste marrom-amarelada que cobria seu corpo do pescoccedilo aos calcanhares sem marcar-lhe a cintura Seus peacutes apesar da areia escaldante estavam descalccedilosAo perceber a presenccedila de Waldo ela parou e olhou para ele que lhe de-volveu o olhar Ele notou que a posiccedilatildeo dos peacutes da mulher natildeo parecia com a dos europeus natildeo se voltavam para fora mas com os lados de dentro paralelos Ela natildeo usava tornozeleiras e pulseiras nem colar ou brincos Ele achou que os braccedilos dela eram os mais musculosos que jaacute tinha visto em um ser humano As unhas eram pontudas e longas tanto nas matildeos quanto nos peacutes Seu cabelo era preto curto e desgrenhado mas mesmo assim ela natildeo parecia selvagem Seus olhos sorriam e seus laacutebios esboccedilavam um sorriso apesar de natildeo se separarem sem mostrar os dentes por traacutes deles (p 152)

Nestas descriccedilotildees meticulosas das caracteriacutesticas inquietantes da personagem observamos como White reescreveu amiudadamente o epi-soacutedio do Livro das mil e uma noites contudo sem lhe alterar substancial-mente o enredo O priacutencipe aacuterabe se transformou em Waldo um ator-mentado ocidental perdido em meio agraves vastidotildees dos desertos do Oriente acompanhado por personagens secundaacuterios que natildeo existiam no texto original O encontro com uma mulher solitaacuteria se daacute no mesmo locus en-quanto ambos estatildeo perdidos (lembremos tambeacutem que a personagem da mulher solitaacuteria em meio aos bosques a se revelar ulteriormente como o diabo a um nobre eacute comum nas novelas medievais de cavalaria europeia) A oraccedilatildeo do priacutencipe aacuterabe que repele a ogra seraacute em Amina substituiacuteda por um tiro certeiro do personagem cocircnsul que abateraacute a mulher-mons-tro no justo momento em que teria matado Waldo juntamente aos filhos

Entatildeo como se daraacute a re-modalizaccedilatildeo anunciada anteriormente que o conto de White operaraacute em relaccedilatildeo ao texto original Ela estaacute configu-rada basicamente na maneira como o maravilhoso do episoacutedio do Livro das mil e uma noites se converteraacute em horror autoconsciente em Amina pelo modus operandi do estranhamento a gerar um sem-nuacutemero de en-trechos A mulher-monstro de White por exemplo conversa com Waldo em inglecircs contudo ldquoenquanto ela falava seus laacutebios natildeo se abriamrdquo (p 152) Ela se comunica ldquocantarolando as palavrasrdquo (p 153) e eacute descrita no ato de se mover em todo o potencial de uma escritura de estranhamento

Ela se locomovia sem fazer barulho e com rapidez Waldo mal conseguia acompanhaacute-la No percurso Waldo por vezes seguia atraacutes e notava como suas vestes cobriam suas costas a cintura estreita e os quadris bem forma-dos Sempre que se apressava e conseguia alcanccedilaacute-la ele a olhava com curio-sidade um tanto confuso por sua cintura tatildeo bem definida atraacutes natildeo ter uma forma definida na frente por seu contorno do pescoccedilo aos joelhos totalmente sem forma sob as roupas natildeo marcar sua cintura natildeo sugerir firmeza ou flacidez Da mesma maneira observava o brilho em seus olhos e os laacutebios extremamente vermelhos e finos (p 153)

Este monstro sai das classificaccedilotildees e dualismos tiacutepicos natildeo eacute nem ldquocristatildeordquo nem ldquomuccedilulmanordquo como diz o texto mas uma terceira coisa inominada Se diz pertencente ao ldquopovo livrerdquo e tal expressatildeo natildeo seraacute explicada a posteriori fazendo com que permaneccedilamos em leituras po-lissecircmicas A carga de horror criada pela narrativa eacute excepcional fazendo com que Amina se constitua em paradigma do gecircnero ainda mais pela vertente do orientalismo A certa altura a personagem homocircnima afirma conhecer a localizaccedilatildeo do acampamento de Waldo que este ansiava reen-contrar sugerindo tambeacutem nas elipses das modalizaccedilotildees do horror que andava rondando suas cercanias e observando os protagonistas de manei-ra incoacutegnita O texto eacute eliacuteptico por natildeo explicitar nada sempre sugerindo possibilidades Ao adentrar a caverna em que a mulher parecia habitar na realidade uma antiga tumba profanada coisas estranhas embora pos-siacuteveis (dentro das medidas do real empiacuterico) passam a ocorrer (Waldo a seguira antes de retornar ao acampamento no intuito de beber aacutegua)

Por um momento ficou cego pela transiccedilatildeo do brilho insistente do deserto para a sombra do interior da tumba []Agrave medida que seus olhos se acostumaram com a falta de luz ele teve um tal susto que ficou em peacute Parecia que por todos os lados aquele espaccedilo estava

fervilhante de crianccedilas nuas Levando em conta sua inexperiecircncia avaliou que elas tinham 2 anos de idade mas moviam-se com a destreza de garotos de 8 ou 10 anos - De quem satildeo essas crianccedilas ndash ele perguntou- Minhas- Todas suas- Todas minhas ndash ela respondeu de modo curioso- Mas haacute vinte delas ndash ele gritou- Vocecirc conta mal no escuro ndash ela disse ndash Haacute menos do que isso- Mas com certeza haacute uma duacutezia ndash ele disse rodando sobre si cercado pelas crianccedilas que danccedilavam e saltavam agrave sua volta- O povo livre tem famiacutelias grandes ndash ela explicou- Mas todos parecem ter a mesma idade ndash Waldo exclamou com a liacutengua seca em contato com o ceacuteu da bocaEla riu um riso desagradaacutevel batendo as matildeos Ela estava entre ele e a por-ta e como a maior parte da luz vinha da porta ele natildeo conseguia ver seus laacutebios []Waldo estava confuso e sentou-se novamente As crianccedilas circularam a seu redor conversando rindo brincando fazendo ruiacutedos que mostravam sua alegria [] (p 154-155)

Eacute esta a modalizaccedilatildeo a que me refiro relativa agrave escritura de estra-nhamento Poderemos observar simples crianccedilas entrevistas no ato de brincar nesta atmosfera de estranhamento criada pela linguagem Num determinado trecho acusa-se textualmente a influecircncia das Noites

- Qual eacute o seu nome ndash ele perguntou- Amina ndash ela respondeu - Eacute um nome da histoacuteria das ldquoMil e uma noitesrdquo ndash ele disse- Das histoacuterias tolas dos crentes ndash disse ela com desdeacutem ndash O povo livre natildeo sabe nada a respeito dessas bobagens ndash Seus laacutebios fechados e o murmuacuterio entre as siacutelabas proferidas o deixaram ainda mais surpreso quando ela cur-vou os laacutebios sem abri-los (p 154)

Edgar Lucas White segundo Tavares (2007 p 146) se inspirava nos proacuteprios pesadelos para compor muitos de seus contos fantaacutesticos reuni-dos nas obras The song of the sirens and other stories (1919) e Lukundoo and other stories (1927) A citaccedilatildeo nominal das Noites homenageia o texto original e ficamos tentados a encontrar em Amina um princiacutepio de recep-ccedilatildeo de leitor posteriormente potencializado pelo inconsciente durante o sono Segundo a nota do tradutor Jarouche (2010 p 85) a palavra ldquoogrardquo por ele utilizada em sua versatildeo das Noites traduziria imperfeitamente

o termo aacuterabe ldquogulardquo que designa na mitologia beduiacutena ldquoum ser sobre-humano capaz de mudar de figura e que se alimenta de carne huma-na Segundo uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao profeta Muhammad a simples menccedilatildeo a Deus bastaria para afugentaacute-lordquo sendo para isso invocado um excerto do Alcoratildeo (668) pelo personagem do priacutencipe aacuterabe como vis-to anteriormente no excerto das Noites O sentido de maravilhoso desta obra possibilita a inserccedilatildeo paciacutefica de uma ldquogulardquo (natildeo haacute aqui associaccedilatildeo agrave palavra lsquogularsquo em liacutengua portuguesa no sentido de fome desmesurada) agrave realidade diegeacutetica Jaacute o texto de White quebra esta possibilidade ao acrescentar toda a disforia de uma ontologia natildeo pacificada mesmo com a morte e revelaccedilatildeo final do monstro Waldo oscila ateacute o fim da narrativa a respeito da natureza teriomorfa e sobrenatural de Amina

- Bem na hora meu garoto ndash disse [o cocircnsul] ndash Ela estava prestes a atacarEle levantou o cano da arma e com ela mexeu no corpo- Bem morta ndash ele disse ndash Que sorte Geralmente satildeo precisos trecircs ou quatro balas para abater um deles Eu jaacute vi uma delas matar um homem mesmo tendo levado dois tiros nos pulmotildees - Vocecirc assassinou esta mulher ndash Waldo perguntou irado - Assassinar ndash o cocircnsul perguntou ndash Assassinar Olhe para istoEle ajoelhou-se e abriu os laacutebios fechados deixando agrave mostra natildeo dentes humanos mas pequenos incisivos dentes afiados bem separados e caninos longos e sobrepostos como os de um galgo uma denticcedilatildeo carniacutevora ame-accediladora e perigosa Ele sentiu medo mas mesmo assim a forma e a aparecircncia da mulher ainda o deixavam horrorizado tocado por sua semelhanccedila humana- Vocecirc atira em mulheres que tecircm dentes longos ndash Waldo insistiu revoltado com a morte terriacutevel que presenciara- Eacute difiacutecil convencecirc-lo ndash o cocircnsul disse ndash Vocecirc chama isto de mulherEle arrancou as roupas do cadaacuteverWaldo ficou aterrorizado O que ele viu natildeo foi a parte da frente do corpo de uma mulher mas sim o lado de baixo de uma loba prenhe ou de uma porca branca em sua segunda gestaccedilatildeo do pescoccedilo agrave genitaacutelia dez ubres em duas fileiras machucados grossos e flaacutecidos- Que tipo de criatura eacute essa ndash ele perguntou increacutedulo- Um ldquoghoulrdquo [gula] um espiacuterito maligno meu filho ndash o cocircnsul respondeu calmamente quase sussurrando - Pensei que eles natildeo existissem ndash Waldo disse ndash Achei que fossem lendas que natildeo houvesse nenhum deles- Posso acreditar que natildeo exista nenhum em Rhode Island ndash o cocircnsul disse ndash Estamos na Peacutersia e a Peacutersia fica na Aacutesia (p 156)

Como afirmado a ambiguidade fantaacutestica eacute levada ateacute o final com a revelaccedilatildeo do monstro e a aceitaccedilatildeo do sobrenatural Em todo o caso a meu ver em Amina esta aceitaccedilatildeo eacute distinta do Fantaacutestico-maravilhoso todoroviano pois se buscou ateacute este momento a criaccedilatildeo de uma atmos-fera em que a experiecircncia do medo se faz tocircnica e mesmo a explicaccedilatildeo do sobrenatural ligada em uacuteltima instacircncia agrave extinccedilatildeo do monstro natildeo possibilitou sua diluiccedilatildeo antes se obteacutem aquela antevisatildeo negativa do cos-mos e da vida analisada pelas teorias lovecraftianas a respeito do horror autoconsciente Lembro por uacuteltimo que os referidos procedimentos e su-gestotildees intertextuais os recortes e reconstituiccedilotildees e as escrituras completas e re-modalizadas ligadas ao Livro das mil e uma noites entre vaacuterios outros processos de intertextualidade poderatildeo ser encontrados em todas as eacutepo-cas autores e literaturas e colhi apenas trecircs exemplos (teoacutericos e ficcionais) para ilustrar tal fato Concluo com o adoraacutevel bordatildeoleitmotiv da irmatilde de Sahrazad Dinarzad (tatildeo importante quanto a contadora de histoacuterias eacute aquela que fomenta sua continuidade e corrobora no processo atraveacutes de uma recepccedilatildeo embevecida) em homenagem agraves Noites ldquoPor Deus ma-ninha se acaso vocecirc natildeo estiver dormindo conte-me uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar acordados esta noiterdquo []

REFEREcircNCIAS

CARVALHAL Aacutelvaro do Contos Fixaccedilatildeo do texto e posfaacutecio de Gianluca Miraglia Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2004

EURIacutePIDES ldquoLas bacantesrdquo In EacuteSQUILO SOacuteFOCLES EURIacutePIDES Obras completas Trad Joseacute Alsina [et al] Madrid Catedra 2004 (p 215-254)

HOFFMANN E T A Contos fantaacutesticos Trad Claudia Cavalcanti Rio de Janeiro Imago 1993

IRWIN Robert Pelo amor ao saber os orientalistas e seus inimigos Trad Waldeacutea Barcellos Satildeo Paulo Record 2008

JOLLES Andreacute Formas simples Trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Cultrix 1976

KIDSON Peter ldquoArtes plaacutesticasrdquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 435-463)

Livro das mil e uma noites Trad Mamede Mustafa Jarouche 4 volumes Satildeo Paulo Editora Globo 2010 (6ordf reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo de 2006 ndash volume 01) 2006 (2ordf ed ndash volume 02) 2007 (volume 03) 2012 (volume 04)

LOVECRAFT H P O horror sobrenatural em literatura Trad Celson M Paciornik Satildeo Paulo Iluminuras 2008

MOMIGLIANO Arnaldo ldquoHistoacuteria e biografiardquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 181-210)

PLATAtildeO A repuacuteblica Trad Enrico Corvisieri Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

PEMBROKE S G ldquoMitordquo In FINLEY M I (org) O legado da Greacutecia uma nova avaliaccedilatildeo Trad Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1998 (p 335-358)

TAVARES Braulio ldquoAminardquo In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 146)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 1ordf reimp da 3ordf ed de 2004 Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2007

WHITE Edgar Lucas Amina Trad Carolina Caires Coelho In TAVARES Braulio [et al] Freud e o estranho contos fantaacutesticos do inconsciente Trad Carolina Caires Coelho [et al] Rio de Janeiro Casa da Palavra 2007 (p 147-156)

Borges leitor de As mil e uma noites

Dariacuteo Sanchez(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

ldquoese libro capaz de tantas metamorfosisrdquo

Jorge Luis Borges eacute talvez o mais universal dos escritores hispa-no-americanos como fica demonstrado natildeo soacute pela importacircncia de sua obra mas tambeacutem pela singularidade de sua pessoa que tem inspirado desde a introduccedilatildeo a um tratado antropoloacutegico de Michel Foucault ateacute o personagem central num romance de Umberto Eco Eacute fato que no caso deste portentoso escritor obra e homem se confundem na sua impor-tacircncia e originalidade

Borges escreveu poemas contos e ensaios muitos dos quais satildeo hoje ndash apenas 27 anos depois de sua morte ndash verdadeiros claacutessicos da literatura universal bastando mencionar tiacutetulos como El Aleph ou Pierre Menard autor del Quijote Mas natildeo eacute soacute pela sua liacutempida prosa e seu verso reflexivo que esse autor argentino eacute mundialmente reconhecido tambeacutem sua original concepccedilatildeo da literatura tem despertado o interesse de especialistas e neoacutefitos concepccedilatildeo que vai muito aleacutem do cacircnone ocidental ao abranger outras literaturas ndash com lugar de destaque para a literatura oriental ndash e especialmente vai aleacutem da obra literaacuteria incor-porando nela o processo de leitura o exerciacutecio da traduccedilatildeo a praacutetica da escritura e o transcorrer da vida

Para Borges a literatura estaacute nos leitores e natildeo nas obras ou seus autores Longe de ser um objeto de conhecimento (como tanto gostam de pensaacute-la os teoacutericos e especialistas) a literatura eacute um processo uma praacutetica que acontece cada vez que um leitor percorre reconta traduz ou relembra um livro lido Eacute na (re)leitura onde radica o valor da obra literaacuteria releitura que permite novas criaccedilotildees novas versotildees novas his-toacuterias novas vidas ou mortes ateacute

Essa importacircncia da leitura por cima da obra fica demonstrada em afirmaccedilotildees como as seguintes ldquoClaacutesico no es un libro que necesaria-mente posee tales o cuales meacuteritos es un libro que las generaciones de los hombres urgidas por diversas razones leen con previo fervor y con una misteriosa lealtadrdquo (Borges 1993I p 151) ou ldquoUn libro es maacutes que una estructura verbal es el diaacutelogo que entabla con su lector y la intencioacuten que impone a su voz y las cambiantes y durables imaacutegenes que deja en su memoria (Borges 1993I p 125) Ou ainda ldquoUna literatura difiere de otra menos por el texto que por la manera de ser leiacutedardquo (Borges 1993I p 125) Ler com fervor e lealdade ou armazenar imagens na memoacuteria eis definiccedilotildees da literatura segundo Borges E como os leitores das obras satildeo muacuteltiplos e muacuteltiplas suas lembranccedilas e fervores a literatura eacute uma mateacuteria muacuteltipla infinita ldquoPor el hecho de que el poema es inagotable Y se confunde con la suma de las criaturas Y no llegaraacute jamaacutes al uacuteltimo verso Y variacutea seguacuten los hombresrdquo (Borges 1993II p 315)

Desde tal concepccedilatildeo as frequentes referecircncias de Borges agrave compilaccedilatildeo de relatos orientais conhecida como As mil e uma noites (ou ldquoAs mil noites e uma noiterdquo como ele preferia) natildeo eacute soacute mais uma mostra de sua exoacutetica erudiccedilatildeo mas uma confirmaccedilatildeo ancestral de sua teoria da literatura como processo interminaacutevel de leitura De fato ainda que no espaccedilo da oralidade (e a oralidade eacute tatildeo literaacuteria para Borges quanto a escrita bastando-nos lem-brar de suas histoacuterias de ldquocompadritosrdquo) Sherazade eacute uma leitora que conta suas leituras ao sultatildeo que por sua vez eacute outro leitor Como tambeacutem satildeo leitores os histoacutericos compiladores da lenda original que foram agregando novos relatos e os tradutores ocidentais que natildeo soacute agregaram ou retiraram elementos mas que enriqueceram a obra com os estilos de sua liacutengua e de sua eacutepoca As mil e uma noites eacute a obra interminaacutevel por antonomaacutesia (a Never ending story como eacute o tiacutetulo do romance de Michael Ende) e por isso fascinou Borges por ser a soma do que eacute a literatura na sua concepccedilatildeo uma prolongaccedilatildeo infinita de leituras e escrituras

A paixatildeo de Borges por As mil e uma noites fica evidente em vaacuterios de seus escritos e na sua obsessiva comparaccedilatildeo das diversas versotildees para descobrir aquilo que os compiladores e tradutores tinham agregado ou extraiacutedo do texto original Genotexto intertexto subtexto (para usar palavras tatildeo caras aos especialistas) a compilaccedilatildeo oriental aparece na obra do autor argentino de maneira expliacutecita como inspiraccedilatildeo objeto de estudo eou referecircncia bibliograacutefica e de maneira impliacutecita na estrutura

ou elaboraccedilatildeo de alguns relatos Bem no comeccedilo de seu ofiacutecio como escritor publica um artigo sobre Los traductores de Las mil y una noches e pelo menos cinco relatos fazem referecircncia direta ao livro Alguien El sur Historia de los dos que sontildearon El libro de arena e Historia de los dos reyes y los dos laberintos aleacutem do poema Metaacuteforas de las mil y una noches Mas seraacute no luacutecido ensaio intitulado Las mil y una noches que Borges sintetizaraacute melhor seu sentir sobre a referida obra

O texto foi lido pelo seu autor no Teatro Coliseo de Buenos Aires em junho de 1977 dentro de um ciclo de conferencias que foram publicadas em 1980 sob o tiacutetulo de Siete noches Nele Borges susteacutem que para falar desse livro eacute necessaacuterio fazer referecircncia a alguns antecedentes do acontecimento da consciecircncia de Oriente em Ocidente tais como a conquista da Peacutersia e Iacutendia por Alexandre Magno (que deixou de ser grego para se converter em persa) e as narraccedilotildees de Marco Polo sobre Kublai Khan entre outros vaacuterios

Falando concretamente da obra aacuterabe Borges nos lembra de que no seacuteculo XV foi reunida em Alexandria uma seacuterie de faacutebulas de origem hindu persa e asiaacutetica as quais jaacute escritas em aacuterabe foram compiladas no Cairo A matriz ou nuacutecleo central eacute a Iacutendia depois na Peacutersia satildeo modificadas e arabizadas e passam ao Egito em finais do seacuteculo XV onde eacute realizada a primeira compilaccedilatildeo sob o tiacutetulo de As mil e uma noi-tes tiacutetulo que remete ao infinito e semelhante segundo ele agrave expressatildeo inglesa ldquoforever and a dayrdquo Para Borges a origem do livro eacute comparaacutevel agraves catedrais goacuteticas que satildeo obras de geraccedilotildees de homens Milhares de autores provavelmente ldquoconfabulatores nocturnirdquo (contadores noturnos de histoacuterias) escreveram As mil e uma noites mas nenhum deles pensou que estava conformando um livro tatildeo valioso para a humanidade

A primeira versatildeo europeia eacute de 1704 na traduccedilatildeo francesa de Antoine Galland o que foi um acontecimento capital para as literaturas europeias regidas entatildeo pelos preceitos neoclaacutessicos E aqui expressa Borges uma afirmaccedilatildeo de vital importacircncia se natildeo para nossa tese da li-teratura como processo para a motivaccedilatildeo de um Congresso de literatura fantaacutestica que trata da influecircncia de literatura do Oriente no Ocidente Diz Borges que ldquocon el movimiento romaacutentico el Oriente entra plenamente en la conciencia de Europardquo E mais para frente agrega ldquoPodriacuteamos decir que el movimiento romaacutentico empieza en aquel instante en que alguien en Normandiacutea o Pariacutes lee Las mil y una noches Estaacute saliendo del mundo legislado por Boileau estaacute entrando en el mundo de la libertad romaacutenticardquo

(Borges 1993III p 234 e 240) Ou seja que o Romantismo produz e se produz pela influecircncia do Oriente e se temos presente que o Romantismo eacute a grande revoluccedilatildeo da arte ocidental e origem de toda a arte moderna poderiacuteamos inferir que a presenccedila de Oriente eacute uma caracteriacutestica da arte moderna Uma evidecircncia disso seria precisamente aquilo que chama-mos de fantaacutestico que se faz um traccedilo presente e constante na literatura ocidental a partir do Romantismo ou em outras palavras a partir da pre-senccedila do Oriente da leitura de As mil e uma noites

No ensaio sobre Os tradutores das mil e uma noites Borges compara as diversas versotildees ocidentais do texto aacuterabe Adverte que aquela primei-ra traduccedilatildeo de Galland realizada nos albores do seacuteculo XVIII apesar de ter eliminado o conteuacutedo eroacutetico deu um destaque suficiente agrave dimensatildeo maacutegica da histoacuteria cativando os franceses da eacutepoca limitados pela pre-ceptiva poeacutetica Mais de um seacuteculo depois a traduccedilatildeo inglesa de Lane ainda que sendo mais literal tambeacutem suspende os elementos eroacuteticos pois sua intenccedilatildeo era fazer um livro familiar e soacute a versatildeo de Burton nessa liacutengua vai-se ocupar de incorporar o erotismo proacuteprio do texto original A versatildeo alematilde de Littmann destacada como a melhor pela Enciclopeacutedia Britacircnica eacute descartada porque nela falta a subjetividade presente nas tra-duccedilotildees anteriores subjetividade que eacute mais importante que uma suposta literalidade Diz Borges ldquolas versiones de Burton e de Mardrus e incluso de Galland soacutelo se dejan concebir despueacutes de una literatura Cualesquiera que sean sus lacras o sus meacuteritos esas obras caracteriacutesticas presuponen un rico proceso interiorrdquo (Borges 1993I p 412) Ou seja que agrave traduccedilatildeo (assim como agrave leitura) natildeo importa a literalidade ou fidelidade mas o seu valor literaacuterio pela subjetividade entendida como presenccedila do leitor Natildeo vamos falar aqui das consequecircncias que tal afirmaccedilatildeo tem para os estudos de traduccedilatildeo (outros jaacute tem feito isso com amplitude) soacute queremos desta-car que as traduccedilotildees de As mil e uma noites interessam a Borges pela no-vidade pela variaccedilatildeo pela recriaccedilatildeo da obra original daiacute que a traduccedilatildeo seja literatura no sentido de processo de leitura

No mesmo ensaio de Sete noites Borges conta que a histoacuteria de Aladim natildeo aparece no texto aacuterabe-persa soacute na traduccedilatildeo francesa e agrega a anedota da ldquoadmiraacutevel memoacuteria inventivardquo de De Quincey que parte de Galland para se referir a uma histoacuteria diferente Mas natildeo soacute foram os tradutores com sua literatura Galland com seu relato de Aladim De Quincey com sua ldquomemoacuteria inventivardquo ou Stevenson com

suas New Arabian Nights os que acrescentaram elementos ao texto ori-ginal tambeacutem o mesmo Borges fez isso escrevendo um dos relatos de As mil e uma noites confirmando assim natildeo soacute a fascinaccedilatildeo do portenho pela obra aacuterabe mas a maacutegica que envolve essa compilaccedilatildeo

Em 1939 Borges realiza uma resenha da traduccedilatildeo do livro aacuterabe de Richard Burton para a revista El hogar na qual escreve ldquoDe las notas que Burton agregoacute a su famosa traduccioacuten del libro Las mil y una noches traslado esta curiosa leyenda Se intitula Historia de los dos reyes y los dos laberintosrdquo (Borges apud Sardegna 2005 sp) E a continuaccedilatildeo se refere agrave histoacuteria de um rei da Babilocircnia que encerra um rei aacuterabe num confuso labirinto do qual este consegue escapar e depois leva preso agravequele rei e o abandona no deserto um labirinto sem corredores e sem portas Soacute que como conta Miguel Sardegna a histoacuteria natildeo tinha sido omitida da traduccedilatildeo francesa de Galland e resgatada posteriormente na traduccedilatildeo inglesa de Burton como disse Borges aos leitores da revista na realidade a histoacuteria foi a contribuiccedilatildeo de Borges ao livro oriental A citaccedilatildeo de obras e autores supostamente apoacutecrifos seraacute recorrente na obra do escritor argentino soacute que nesse caso particular permite-lhe contribuir com a obra convertendo-lhe numa nova Sherazade No final o referido conto aparece anos depois como ldquoLos dos reyes y los dos la-berintosrdquo na compilaccedilatildeo de contos titulada El Aleph

E em Historia universal de la infacircmia aparece o conto ldquoHistoria de los dos que sontildearonrdquo com uma anotaccedilatildeo final que diz ldquo(Del Libro de las 1001 Noches noche 351)rdquo (Borges 1993I p 339) Com efeito trata-se da citaccedilatildeo completa de um dos contos do livro aacuterabe que trata de um homem que depois de um sonho decide ir a Peacutersia procurando for-tuna mas ali eacute detido e interrogado por um capitatildeo que apoacutes ouvir o relato do sonho e da fortuna ri do homem e conta-lhe que ele tambeacutem sonha com um quintal no Cairo onde supostamente acharaacute uma for-tuna Eacute bom lembrar que eacute essa mesma histoacuteria a base do best-seller de Paulo Coelho O Alquimista Mas o interessante em todas essas novas versotildees e reescrituras eacute a confirmaccedilatildeo do que diz o mesmo Borges ldquoLas mil y una noches no han muerto El infinito tiempo de Las mil y una noches prosigue su camino [] Casi podriacuteamos hablar de muchos libros titulados Las mil y una nochesrdquo (Borges 1993III p 241)

Mas a ficccedilatildeo borgiana a fantaacutestica ficccedilatildeo borgiana vai aleacutem da citaccedilatildeo e da invenccedilatildeo de mais um relato para se ocupar de ficcionalizar a origem

do livro esse momento no qual o primeiro contador o primeiro ldquoconfa-bulator nocturnirdquo comeccedila essa catedral goacutetica esse livro interminaacutevel Em ldquoAlguienrdquo escrito em finais da deacutecada de 1980 encontramos o relato dessa origem primeira Por sua brevidade vamos citar o conto inteiro

Balkh Nishapur Alejandriacutea no importa el nombre Podemos imaginar un zoco una taberna un patio de altos miradores velados un riacuteo que ha repetido los rostros de las generaciones Podemos imaginar asimismo un jardiacuten polvo-riento porque el desierto no estaacute lejos Se ha formado una rueda y un hombre habla No nos es dado descifrar (los reinos y los siglos son muchos) el vago turbante los ojos aacutegiles la piel cetrina y la voz aacutespera que articula prodigios Tampoco eacutel nos ve somos demasiados Narra la historia del primer jeque y de la gacela o la de aquel Ulises que se apodoacute Es-Sindibad del Mar El hombre habla y gesticula No sabe (otros lo sabraacuten) que es del linaje de los confabulalores nocturni de los rapsodas de la noche que Alejandro Bicorne congregaba para solaz de sus vigilias No sabe (nunca lo sabraacute) que es nues-tro bienhechor Cree hablar para unos pocos y unas monedas y en un perdi-do ayer entreteje el Libro de las Mil y Una Noches (Borges 1991III p 171)

A histoacuteria eacute de uma siacutentese maravilhosa Mas quero chamar a aten-ccedilatildeo para quando diz ldquoTampoco eacutel nos ve somos demasiadosrdquo referecircncia necessaacuteria aos leitores que como os autores do livro aacuterabe satildeo presentes e anocircnimos De novo a literatura soacute acontece com as duas presenccedilas que apesar dos muitos reinos e seacuteculos se encontram no momento da leitura aquele momento em que ocorre aquilo que eacute chamado de Literatura

Voltando agrave conferecircncia em Buenos Aires ao tentar definir o Oriente Borges descarta o criteacuterio geograacutefico e diz que as conotaccedilotildees dessa palavra satildeo devidas agrave compilaccedilatildeo oriental a ideia de As mil e uma noites eacute a ideia de Oriente e vice-versa Diz que para o Oriente natildeo eacute importante a histoacuteria como sucessatildeo de fatos e agrega ldquoSe piensa que la literatura y la poesiacutea son procesos eternos Creo que en lo esencial tienen razoacutenrdquo (Borges 1991III p 237) Ou seja a literatura eacute uma construccedilatildeo de muacuteltiplos autoresleitores uma prolongaccedilatildeo infinita ou interminaacutevel como satildeo o Oriente e As mil e uma noites mundos construiacutedos de ldquoumas quantas figuras arquetiacutepicasrdquo

O arqueacutetipo outra ideia fundamental do universo borgiano presente na obra oriental e relacionada com essa nossa inferecircncia de que natildeo satildeo os autores (com nome proacuteprio) mas os leitores anocircnimos os que fazem a literatura E essas ideias de infinito de eternidade de prolongamento in-terminaacutevel de arqueacutetipos estatildeo todas refletidas ainda na estrutura do texto

aacuterabe na qual temos um relato dentro de outro relato que pela sua vez nos leva a outro relato e tudo isso incluiacutedo num relato maior Labirintos ver-bais dos quais tanto gostava Borges E para abranger este prolongamento infinito de versotildees e relatos eacute possiacutevel usar uma metaacutefora dele mesmo ldquoSe llamaba el Libro de Arena porque ni el libro ni la arena tienen ni principio ni finrdquo (Borges 1991III p 69) As mil e uma noites seria o livro de areia E a analogia entre ambas as histoacuterias natildeo eacute forccedilada pois o personagem do rela-to esconde o livro de areia atraacutes dos seus exemplares de As mil e uma noites

Para Borges no referido ensaio a maacutegica e os sonhos satildeo inerentes agrave nossa ideia de Oriente e de As mil e uma noites a maacutegica entendi-da como uma causalidade diferente devida a objetos ou situaccedilotildees com poder particular (como no caso da famosa lacircmpada e seu gecircnio) e os sonhos pensados como uma revelaccedilatildeo de outra realidade outra reali-dade que pode ser a literaacuteria que pode ser a realidade (como no caso jaacute referido de ldquoLos dos que sontildearonrdquo) E nessas afirmaccedilotildees sobre a maacutegica e os sonhos parecem estar as dicas para a leitura de um dos seus relatos mais importantes no qual aparece bem presente a compilaccedilatildeo aacuterabe

El sur conta a histoacuteria de Juan Dahlmann um homem culto bibliote-caacuterio que sofre um acidente enquanto estaacute lendo um raro exemplar de As mil e uma noites e deve ser internado num sanatoacuterio Estando ali ou depois de sair dali (o relato permite as duas leituras sonho ou realidade) ele vai ateacute seu siacutetio no interior da Argentina onde eacute forccedilado a entrar numa briga com faca com um homem ruacutestico que interrompe sua leitura da recopilaccedilatildeo oriental No desenlace o protagonista opta pela morte nessa briga ao estilo dos valentes gauacutechos O texto pode ser lido como uma alegoria da oposiccedilatildeo entre as letras e as armas ou entre a famiacutelia paterna alematilde e a famiacutelia mater-na argentina do personagem principal Mas o que me interessa natildeo eacute esse tipo de anaacutelise mas o fato de que o agir do personagem estaacute determinado de vaacuterias maneiras pela literatura ou seja pela leitura como ato fiacutesico e mental Ou em outras palavras pela magia e o sonho

Satildeo vaacuterios os momentos nos quais o relato anuncia este prolonga-mento ou transformaccedilatildeo da vida em literatura ndash fazendo da literatura um processo uma coisa viva uma atividade No niacutevel do fiacutesico (e do maacutegico) o primeiro personagem sofre o acidente que o leva ao sana-toacuterio e mais tarde eacute convidado agrave briga na taverna enquanto se encontra lendo As mil e uma noites Sua concentraccedilatildeo na leitura do texto aacuterabe eacute interrompida duas vezes pelo acidente e pelos homens na taverna e

nos dois casos a interrupccedilatildeo tem desenlace traacutegico Jaacute no plano mental (e do sonho) a leitura influencia a visatildeo de mundo do personagem com os pesadelos da convalescenccedila ateacute o ponto de permitir-lhe prolongar a vida (na realidade ou no sonho) como se fosse um relato Ou seja no final da vida o leitor decide ser personagem literaacuterio prolongando ou concretizando suas diversas leituras num ato A literatura a leitura aparecem como um prolongamento da vida de Juan Dalhmann assim como Sherazade prolongou sua vida contando relatos Eacute verdade que em El sur esse prolongamento acaba com a morte e que o modelo dessa morte eacute a literatura gauchesca mas soacute pela maacutegica ou pelo sonho da lei-tura eacute possiacutevel fazer essa escolha final Entatildeo esse leitor de As mil e uma noites decide se fazer relato ou em outras palavras dar vida agrave literatura

Satildeo vaacuterios os relatos borgianos nos quais a literatura eacute a origem da realidade como Tloumln Uqbar Orbis Tertius que conta a histoacuteria de um planeta criado partindo das descriccedilotildees de uma enciclopeacutedia Obviamente a ideia de El sur eacute mais modesta um homem decide morrer de maneira literaacuteria sua morte pode ser um sonho ou uma realidade tanto faz por-que os sonhos diz Borges satildeo mais reais que a vida E o mesmo entatildeo poderia ser dito da literatura Natildeo eacute casual que o personagem esteja len-do As mil e uma noites (nada na literatura de Borges ndash nem na vida ndash eacute casualidade) El Sur seria um novo relato da literatura gauchesca ou um conto sul-americano na compilaccedilatildeo oriental De qualquer jeito mais um paraacutegrafo dessa narrativa interminaacutevel e infinita que eacute a vida

No final noacutes somos uma narraccedilatildeo e nossa vida eacute soacute mais um re-lato das mil e uma noites das infinitas noites que satildeo a mesma noite Porque a literatura natildeo estaacute nas obras mas nos leitores nas lembranccedilas e projeccedilotildees com que vivemos dia apoacutes dia nas incontaacuteveis versotildees que satildeo feitas de relatos anteriores no relato que fazemos de noacutes mesmos chamado vida Somos a paacutegina de um livro de infinitos autores

REFEREcircNCIAS

BORGES Jorge Luis Obras completas Volumen I II III Buenos Aires Emeceacute Editores 1993

SARDEGNA Miguel ldquoLas mil y una noches de Robert Luis Stevensonrdquo In Revista Axololt Antildeo 3 nordm 18 Buenos Aires 2007 httprevistaaxolotlcomarotrassent18htm (Acesso em 21 de abril de 2013)

O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio

europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas

Joseacute Alberto Miranda Poza(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Apresentaccedilatildeo do Libro de Apolonio

Conforme Pablo Cabantildeas o Libro de Apolonio eacute uma das obras mais belas da literatura medieval espanhola constituindo ldquoun poema que sorprende al lector tanto por su teacutecnica casi perfecta como por su subyugante plasticidad narrativardquo (1998 p 9) Aproximar-se hoje agrave leitura do Libro de Apolonio supotildee intentar valorar as circunstacircncias histoacutericas em que foi escrito os coacutedigos culturais da eacutepoca em que seu autor se movia e mostrar o tipo de leitor-ouvinte para quem o poema foi composto (Corbella 1992)

Para comeccedilar do autor do texto natildeo sabemos nada embora exis-tam as informaccedilotildees que podem ser deduzidas a partir do proacuteprio texto Como afirma Uriacutea (2000 p 27) ldquoestamos ante un caso de anonimia absolutardquo Aleacutem disso natildeo devemos confundir em ecdoacutetica autor (do texto) com copista amanuense (do manuscrito) Nesse sentido o ma-nuscrito uacutenico conservado do Libro de Apolonio ndash Coacutedice Escurialense III-K-4 ndash eacute uma coacutepia com muitos erros e diferentes rasuras que afetam letras siacutelabas e palavras Pela grafia e algumas caracteriacutesticas linguiacutesti-cas a coacutepia eacute datada como sendo de 1390 e a liacutengua foi modernizada pelo copista Apresenta traccedilos do catalatildeo e do aragonecircs que comprome-tem o cocircmputo silaacutebico e o ritmo o que indica que esses traccedilos seriam do copista e natildeo do autor originaacuterio que escreveu em castelhano do seacuteculo XIII (Giroacuten Alconchel 2002)

Considerando as influecircncias latinas e gregas do texto podemos chegar agrave conclusatildeo conforme Alvar (1976 p 66) de que o autor era homem que possuiacutea uma grande cultura De fato numa passagem da obra ele caracteriza a figura de Apolocircnio como homem de letras

como intelectual com referecircncias a fontes culturais e literaacuterias da eacutepoca (Cabantildeas 1998 p 45)

Encerroacutese Apolonio en sus salas privadasdonde teniacutea escritos e historias comentadasleyoacute sus argumentos las hazantildeas pasadascaldeas y latinas tres veces repasadas

Conhecia a tradiccedilatildeo da Odisseia que comeccedila com Homero e vai ree-laborar-se nas novelas de viagens e aventuras da eacutepoca bizantina mas tam-beacutem conhecia a literatura em liacutengua latina que imitava alguns autores egreacute-gios Com todos esses elementos tatildeo variados o autor anocircnimo conseguiu criar sua obra original muito aleacutem da contingecircncia de um empreacutestimo

Pero nada surge de la nada la cultura es un lento quehacer Y la serie innu-merable de coautores del relato nos manifiesta la personalidad de cada uno de ellos [hellip] Al final tenemos un texto que es el resultado de otros muchos (Alvar 1976 p 67)

O autor portanto era homem de letras o que vale tanto como di-zer na eacutepoca cleacuterigo O cristianismo teve um papel essencial em todo Ocidente ao longo do medievo em especial para o que agora nos inte-ressa cabe ressaltar sua relevacircncia na transmissatildeo cultural conformou ndash para bem ou para mal ndash o pensamento e a vida social de toda a Europa Ocidental Por isso natildeo eacute estranho que a geografia arquitetocircnica nos ofe-reccedila inclusive atualmente a presenccedila constante de uma igreja em cada cidade ou aldeia cuja origem se encontra na inveterada tradiccedilatildeo que se deu ao longo de todo o medievo todas as cidades medievais possuiacuteam sua igreja e ao redor dela distribuiacutea-se o resto da populaccedilatildeo de onde surge por sua vez o conceito de paroacutequia Mas natildeo soacute as igrejas como lugar de culto e siacutembolo ideoloacutegico e aglutinador que presidia a vida social no incipiente meio urbano mas tambeacutem no campo no acircmbito rural os mos-teiros desenvolveram uma funccedilatildeo absolutamente primordial na histoacuteria da cultura Porque neles natildeo se ensinava apenas doutrina mas tambeacutem se conservavam e elaboravam (copiavam traduziam) textos de obras lite-raacuterias da Antiguidade (Miranda Poza 2011 p 163)

Os monges que conviviam no seio dos mosteiros eram submeti-dos a diversas regras como observar as horas destinadas agrave oraccedilatildeo agrave leitura e ao estudo das Sagradas Escrituras o cultivo do horto cuidar

dos doentes mas muito em especial desenvolviam o ingente labor de copiar no scriptorium da biblioteca do mosteiro manuscritos em latim e no percurso do tempo tambeacutem em liacutenguas romacircnicas A conhecida obra de Umberto Eco O nome da rosa constitui um magniacutefico exemplo de reconstruccedilatildeo da vida daqueles monges naqueles mosteiros medie-vais Contudo como jaacute indicamos em outro lugar (Miranda Poza 2007 p 124) o vocaacutebulo ldquoclereciacuteardquo nem sempre designava de forma exclusiva o acircmbito religioso Cleacuterigo no medievo designava o homem letrado estudioso embora a maior parte entre os que estudavam fosse efetiva-mente religiosa

Nesse sentido duas anotaccedilotildees devem ser feitas A primeira com re-laccedilatildeo ao tiacutetulo do livro Como a maior parte dos escritos dos seacuteculos XIII e XIV no tiacutetulo aparece o termo ldquolivrordquo cujo sentido natildeo era apenas ldquovo-lume formado por folhas de papel ou vitelardquo mas tambeacutem apresentava o significado de ldquomarco ordenador de certo conteuacutedo textualrdquo O poeta ainda diz que quer componer un romance de nueva maestria (Cabantildeas 1998 p 41) onde ldquoromancerdquo significaria natildeo soacute ldquopoema natildeo latinordquo mas ldquotexto de verossimilitude natildeo histoacuterica com desenvolvimento argumen-tativo e literaacuteriordquo em outras palavras de ficccedilatildeo (Michael 1986 p 510) A segunda das anotaccedilotildees faz referecircncia agrave expressatildeo ldquonueva maestriacuteardquo Com efeito o texto pertence a um novo gecircnero na poesia peninsular medieval em liacutengua neolatina o Mester de Clereciacutea Aproximadamente desde comeccedilos do seacuteculo XIII ateacute finais do seacuteculo XIV surgiram em Castela uma seacuterie de obras escritas total ou parcialmente em estrofes de quatro versos alexandrinos (de 14 siacutelabas no cocircmputo hispacircnico e 12 no cocircmputo portuguecircs-francecircs) com rima consoante e uma cesura ou pausa na metade do verso (respectivamente na seacutetima ou sexta siacutela-ba conforme o cocircmputo meacutetrico de referecircncia)6 Uma nova forma que caracteriza uma nova poesia A primeira obra que apresenta esta nova forma de poesia este novo ofiacutecio esta nova arte (ou mester) foi a versatildeo

6 Haacute uma diferenccedila como podemos apreciar na meacutetrica das tradiccedilotildees espanhola e por-tuguesa Na tradiccedilatildeo espanhola todo verso que termina em palavra oxiacutetona acrescenta uma siacutelaba no cocircmputo Destarte natildeo haacute por exemplo versos monossiacutelabos na meacutetrica espanhola porque todo monossiacutelabo eacute forccedilosamente tocircnico oxiacutetono com valor meacutetri-co duplo (Masip 2002 p 58) Por sua vez a meacutetrica portuguesa apenas toma em conta na uacuteltima palavra do verso a uacuteltima siacutelaba tocircnica de forma que um verso acabado em voz paroxiacutetona contaria com uma siacutelaba a menos do que na tradiccedilatildeo meacutetrica espanhola

castelhana do Libro de Alexandre obra anocircnima do seacuteculo XIII anterior ao Libro de Apolonio que copiava reproduzia ou recriava o Roman de Alexandre francecircs Para Goacutemez Moreno (1984) confrontando o proacutelogo do Libro de Alexandre com os de outras obras principalmente francesas clereciacutea significava entre os poetas do seacuteculo XIII ldquomoralidaderdquo mais ldquoverdade histoacutericardquo mais ldquocapacidade de traduccedilatildeordquo mais ldquoconhecimento das artes meacutetricasrdquo Os primeiros versos do texto que fundava o novo gecircnero contecircm a definiccedilatildeo formal da cuaderna viacutea que caracterizaraacute o movimento (Cantildeas Murillo 1983 p 85)

Mester traygo fermoso non es de joglariacuteaMester es sen pecado ca es de clereciacuteaFablar curso rimado por la quaderna viaA siacutellabas cunctadas ca es grand maestria

A estrofe eacute composta por versos alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas conforme o tipo de contagem) que se repetem regularmente na estro-fe de quatro versos divididos em duas partes simeacutetricas denominadas hemistiacutequios que constam de 7 (ou 6) siacutelabas cada um7 No primeiro hemistiacutequio para manter o ritmo do verso aparece um acento secundaacute-rio na sexta siacutelaba (uacuteltima na contagem portuguesa) de forma paralela ao que ocorre no segundo hemistiacutequio (Masip 2002 p 88) A cesura se manifesta na declamaccedilatildeo por uma breve pausa e nas ediccedilotildees criacuteticas ou filoloacutegicas eacute comum o costume de reproduzir um espaccedilo em branco en-tre os dois hemistiacutequios apoacutes a cesura conforme se mostra no esquema a seguir (Miranda Poza 2007 p 125)

7 O professor Vicente Masip (2002 p 65-66) define os versos alexandrinos dentro da epiacutegrafe correspondente aos tetradecassiacutelabos espanhoacuteis (tridecassiacutelabos portu-gueses) com estas palavras ldquoPoseen catorce siacutelabas meacutetricas en espantildeol y doce en portugueacutes distribuidas en dos hemistiquios de siete (seis en portugueacutes) Se llaman asiacute debido al Roman dacuteAlexandre poema franceacutes de la segunda mitad del siglo XIII usado por el autor del Libro de Alexandre espantildeol del siglo XIII El verso alejandrino fue usado por los poetas cultos del ldquoMester de Clereciacuteardquo durante los siglos XIII y XIV con el objetivo de oponer una forma regular de ldquosiacutelabas contadasrdquo a la irregularidad meacutetrica de los trovadores populares del ldquoMester de Juglariacuteardquo Este tipo de verso fue abandonado a partir del siglo XVI (exceptuando el famoso soneto a la Santiacutesima Virgen Mariacutea de Pedro Espinosa [1578-1650]) y soacutelo fue retomado en el siglo XVIII convirtieacutendose raacutepidamente en metro preferido de los romaacutenticos junto con el ende-casiacutelabo (decassiacutelabo portuguecircs)rdquo

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute acuteMes ter tray go fer mo so non es de jo gla riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteMes ter es sen pe ca do ca es de cle re ciacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteFa blar cur so ri ma do por la qua der na viacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acuteA siacute lla bas cunc ta das ca es grand ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Observemos como as estrofes de ldquonueva maestriardquo do Libro de Apolonio reproduzem exatamente o mesmo esquema formal8

Versos Alexandrinos (14 ou 12 siacutelabas)

7 (ou 6) siacutelabas 7 (ou 6) siacutelabas

acute (+ 1) acuteEn el nom bre de Dios τ de San ta Ma riacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutesi e llos me gui a ssen es tu di ar que rriacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutecon po ner hun ro man ccedile de nue ua ma es triacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

acute acutedel Buen rey A po lo nio τ de su cor te siacute a_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

8 Aos efeitos de contagem de siacutelabas tomamos como referecircncia na ocasiatildeo a ediccedilatildeo filoloacutegica mais fiel ao original de Dolores Corbella (1992 p 71)

Cabe perguntar-se agora uma vez abordada a caracterizaccedilatildeo do texto no que tange aos aspectos formais sobre a originalidade do autor no con-texto medieval descrito acima A intertextualidade eacute inevitaacutevel Primeiro em termos gerais como indicam Todorov (1972 p 28) ldquotodo lo nuevo en literatura no es sino material antiguo vuelto a forjarrdquo ou Claudio Guilleacuten (1985 p 220) ldquono hay literatura sin aceptacioacuten realizacioacuten transforma-cioacuten o transgresioacuten de unos modelos arquetiacutepicosrdquo Com efeito aleacutem do recurso retoacuterico agrave verossimilitude que faz o proacuteprio autor ao longo do texto ndash miradlo en la historia si a miacute no me creeacuteis (Cabantildeas 1998 p 94) ndash na literatura medieval se parte de outro conceito de literalidade diferente do que hoje temos De fato De Bruyne (1988 p 15) afirma

No se debe esperar que la Edad Media aporte definiciones nuevas u origi-nales los medievales [hellip] se dan por satisfechos con lo que encuentran en los textos antiguos pues [hellip] eacutestos no soacutelo transmiten el pensamiento de los Antiguos sino que son la evidencia del sentido comuacuten que es tambieacuten el buen sentido

Na Idade Meacutedia o texto singular responde a uma alteridade o que faz que ele esteja sempre definido em relaccedilatildeo aos demais onde eacute tatildeo importan-te a assimilaccedilatildeo quanto a transformaccedilatildeo a imitaccedilatildeo quanto a originalidade (Corbella 1992) Nesse contexto histoacuterico-cultural o medievo eacute uma ldquocul-tura textualizadardquo (Lotman 1979 p 26-27) onde eacute tatildeo real o mundo das coisas como o mundo dos signos a realidade vivida como a lida

2 Conteuacutedo do Livro de Apolonio A histoacuteria de Apolocircnio rei de Tiro

O professor Pablo Cabantildeas (1998 p 15-30) descreve de forma cer-teira o prolixo argumento do Libro de Apolonio estabelecendo ateacute sete partes diferenciadas entrelaccediladas atraveacutes de haacutebeis estrofes de transi-ccedilatildeo que conduzem o leitor-ouvinte pela conturbada histoacuteria dos prota-gonistas da trama embora no corpo do texto natildeo exista nenhuma divi-satildeo formal da primeira linha do manuscrito ateacute a uacuteltima Natildeo em vatildeo o argumento da obra responde a uma estrutura semelhante agrave novela bizantina gecircnero equivalente durante as centuacuterias medievais ao que em nossos dias poderia representar uma novela de aventuras cujo remoto precedente se encontra naquela (Alborg 1997 p132) Essas estrofes de

transiccedilatildeo asseguram a coerecircncia textual e ajudam o leitor no acompa-nhamento da trama Apenas dois exemplos

Pero del Rey Antioco quiero dejar de hablarquiero la narracioacuten a Apolonio tornarEn Tarso lo dejamos debemos recordar (Cabantildeas 1998 p 50)

Dejemos a la dama guarde su monasteriosirva su iglesia y rece los salmos del salterioVolvamos a Apolonio con nuestro ministeriollevoacute en las aventuras un infortunio serio (Cabantildeas 1998 p 88)

O resumo do argumento poderia ser o seguinte

[I] Antiacuteoco rei da Antioquia fica viuacutevo e acaba dormindo com sua proacutepria filha Uma mulher aconselha agrave filha que oculte o pecado Procurada como futura esposa por priacutencipes vizinhos o rei consegue manter a situaccedilatildeo sem ser revelada mediante um ardil (ldquodo diabordquo) pro-potildee aos postulantes a resoluccedilatildeo de um enigma Se natildeo adivinhassem a resposta certa seriam decapitados como de fato aconteceu com alguns pretendentes Ateacute que chegou Apolocircnio rei de Tiro que daacute com a res-posta certa que esconde a vergonha mas o rei Antiacuteoco diz que essa res-posta eacute uma grande afronta poreacutem lhe outorga alguns dias para buscar uma nova soluccedilatildeo Apolocircnio sabendo que ele estaacute certo foge com medo de ser executado e em natildeo havendo outra resposta possiacutevel ao enigma comeccedila assim o peacuteriplo aventureiro

[II] Antiacuteoco fica irado com a fugida de Apolocircnio e envia a Tiro um criado para assassinaacute-lo mas Apolocircnio jaacute tinha fugido a Tarso com criados e provisotildees

[III] Apolocircnio se estabelece em Tarso salvando a cidade da pobre-za com o que consegue a gratidatildeo dos moradores Mas temeroso de Antiacuteoco parte para Pentapolin Ocorre um temporal Apenas ele conse-gue se salvar chegando agarrado a uma tabua ateacute a praia onde eacute resgata-do por um pescador que o acolhe compartilhando o pouco que ele tem Recuperado Apolocircnio vai ateacute a cidade e joga bola com outros jovens

destacando-se no jogo pela sua classe e habilidade no que eacute advertido pelo rei Architrastes o qual o convida a jantar No jantar conhece a filha do rei Luciana que toca admiravelmente para ele Apolocircnio seraacute o fu-turo mestre da filha e pouco depois seu marido Com Luciana graacutevida chegam notiacutecias da morte de Antiacuteoco e da filha dele pelo qual Apolocircnio prepara uma viagem para recuperar o reino de Antioquia Luciana o acompanha apesar de seu estado O parto se adianta por causa da via-gem e morre (aparentemente) no parto O corpo eacute jogado ao mar apesar da oposiccedilatildeo de Apolocircnio pela supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo conveniente e ricamente disposto num caixatildeo com instruccedilotildees para seu enterro caso chegasse porventura ateacute terra firme

[IV] Com efeito o caixatildeo chega ateacute Eacutefeso descoberto na praia por um meacutedico que com a ajuda do seu assistente consegue reviver a dama Uma vez de volta agrave vida Luciana manda construir um mosteiro onde serviraacute a Deus

[V] Apolocircnio abalado pela perda da sua esposa volta a Tarso Natildeo se daacute a conhecer Pede a Estrangilo que cuide da sua filha Tarsiana pois ele vai morar no Egito

[VI] Morto Estrangilo Dioniacutesia a esposa dele manda matar Tarsiana para favorecer a proacutepria filha Fracassa porque no momento da tentativa de execuccedilatildeo chegam uns ladrotildees que raptam Tarsiana e a levam para ser vendida no mercado Eacute vendida a um proxeneta mas o primeiro cliente Antinaacutegona o senhor da cidade eacute convencido pelo rogo da donzela para natildeo maculaacute-la Posteriormente isso mesmo acon-teceraacute com os sucessivos clientes que seratildeo convencidos pela beleza do seu canto tendo sempre a proteccedilatildeo de Antiacutegona que juraraacute amor pater-no por ela

[VII] Volta Apolocircnio para ter notiacutecias da sua filha Dioniacutesia lhe diz que ela morreu mas as laacutegrimas do heroacutei natildeo brotam diante do falso tuacutemulo Embarca em direccedilatildeo a Tiro na sua busca Antinaacutegora visita o navio de Apolocircnio que natildeo participa da festa de recepccedilatildeo e fica isola-do no seu camarote Para tentar consolar Apolocircnio Antinaacutegora chama Tarsiana Depois de longa conversa entre os dois Apolocircnio descobre

que se trata realmente da sua filha Felicidade Consente o casamento dela com Antinaacutegora Feito o casoacuterio Apolocircnio planeja visitar Tarso e voltar a Tiro mas uma apariccedilatildeo em sonhos lhe aconselha ir ateacute Eacutefeso no templo que dizem de Diana A abadessa eacute realmente Luciana Apolocircnio recupera seu reino e mostra sua generosidade com quem lhe ajudou O final do texto eacute de teor claramente moralizante fugacidade das coisas do mundo terrestre caducidade da vida e solicitaccedilatildeo da graccedila e da miseri-coacuterdia de Deus

3 Fontes primaacuterias do Libro de Apolonio

Cerca de 100 manuscritos satildeo os textos conservados sobre a his-toacuteria de Apolocircnio alguns deles de tradiccedilatildeo claacutessica latina nos quais se falava da incineraccedilatildeo praacutetica abandonada paulatinamente no mundo ocidental a partir do seacuteculo IV quando o Cristianismo se converteu em religiatildeo oficial Aparecem tambeacutem contiacutenuos elementos pagatildeos como invocaccedilotildees a Netuno alusotildees a Apolo e a esposa de Apolocircnio aguarda sua chegada no templo de Diana Fala-se entatildeo em ecdoacutetica da exis-tecircncia do hipertexto datado no seacuteculo V ou VI a partir do qual se for-maram cinco ramos ou versotildees gerais

bullA Historia Apollonii Regis Tyri

bullA Gesta Apollonii Regis Tyri metrica

bullO Phanteon de Godofredo de Viterbo em versos latinos escrito entre 1186 e 1191 espeacutecie de histoacuteria universal na qual se inclui ao lado de outros relatos a histoacuteria de Apolocircnio

bullA Gesta Romanorum que inclui no capiacutetulo 153 a histoacuteria de Apolocircnio De tribulatione temporali que in gaudium sempiternum postremo commutabitur

bullOs Carmina Burana breve texto poeacutetico latino de comeccedilos do seacuteculo XIII onde Apolocircnio narra sumariamente em seis estrofes as aventuras da sua vida

Mas natildeo soacute devemos tomar em conta suas origens latinas A per-meabilidade da cultura claacutessica permite supor a existecircncia preacutevia de

um texto ainda mais antigo que remontaria agrave eacutepoca helecircnica (Corbella 1992 p 27) Com efeito foram achados paralelismos entre a histoacuteria de Apolocircnio e algumas obras de Xenofonte aleacutem claro eacute do inequiacutevoco caraacuteter odisseico acima evocado tanto pela estrutura do poema quanto pelos numerosos topoi que depois seratildeo conservados e repetidos ao lon-go dos seacuteculos Poreacutem a histoacuteria natildeo copia a Odisseia mas tem temas que satildeo dela situaccedilotildees que procedem de velhos peacuteriplos a caminho de Iacutetaca e isso cria um clima que eacute impossiacutevel negar

Contudo pense-se na caracterizaccedilatildeo que no Libro de Apolonio eacute dada ao protagonista tratado como um heroacutei mas ao mesmo tempo como um perfeito cavaleiro que em palavras de Manuel Alvar (1989 p 51 63) ldquoparticipa de una postura espiritual que es goacuteticardquo ldquoApolonio presenta esa otra faz del siglo XIII en la que el hombre se preocupa por el hombre en la que se siente atraiacutedo por los problemas de su realidad y su tiempordquo

Portanto quanto agrave originalidade do texto podemos dizer que o fato da trama novelesca natildeo ser outra coisa do que uma seacuterie de possiacuteveis lugares comuns natildeo afeta a proacutepria existecircncia do relato Certo eacute que cada um dos episoacutedios do texto pode ter um antecedente ou uma rela-ccedilatildeo com motivos mais ou menos difundidos mas o que temos diante dos nossos olhos eacute uma criatura iacutempar e singular Um caso egreacutegio da literatura espanhola o Lazarillo de Tormes tambeacutem natildeo apareceu do nada contos proveacuterbios tipos situaccedilotildees Mas Alvar pergunta eacute apenas isso o Lazarillo

En verdad que puede parecer postiza la historia de Antioco que los temas del incesto abundan por doquier que la compra de doncellas por rufianes explotadores no es nunca novedad [hellip] pero nada de ello sirve para explicar la Historia Apollonii mucho menos para entender la naturaleza poeacutetica del Libro espantildeol y su encanto (Alvar 1976 p 47)

4 A intertextualidade no Libro de Apolonio

41 A tradiccedilatildeo grega

Artiles (1976 p 15) como outros criacuteticos jaacute mencionados como Alborg (1997) afirmava que o Libro de Apolonio ldquoes una novela bizan-tina versificada metida en caacutenones de cuaderna viacuteardquo E efetivamente como ocorre nas novelas gregas deste gecircnero o poema mistura elemen-tos da literatura sentimental e novelesca amores impossiacuteveis e viagens tempestuosas perdas e reencontros

O mar seraacute a evasatildeo de previsiacuteveis males ou representaraacute o senti-mento de vontade de aventuras Assim raciocina Apolocircnio quando de-cide sair de Tiro e adentrar o mar aventurando-se no desconhecido nos misteacuterios e expondo-se a eventuais perigos longe da tranquilidade que lhe proporcionava seu reino (Cabantildeas 1998 p 59)

Viviacutea en mi reino regalado y honradono conociacutea penas viviacutea descansadoteniacuteame por torpe y por menoscabadoporque por muchas tierras no habiacutea viajado

No diaacutelogo platocircnico Feacutedon fala-se dos misteacuterios que os heroacuteis dos relatos lendaacuterios natildeo souberam acatar e por isso seguiram os caminhos da dor (Alvar 1976 p 49)

oὐ μέντοι rsquoαλλὰ τόδε γέ τίς μοι δοκεῖ ὡ Κέβης εὖ λέγεσθαι τὸ θεους εἰναι ἡμῶν τοὺς ἐπιμελουμενους καὶ ἡμας τοὺς ἀνθρώπους ἐν τῶν κτημάτων τοὶς θεοῖς εἶναι [Aquilo dos misteacuterios de que noacutes homens nos encontra-mos numa espeacutecie de caacutercere que nos eacute vedado abrir para escapar Uma coisa pelo menos Cebete me parece bem enunciada que os deuses satildeo nos-sos guardiotildees e noacutes homens propriedade deles]9

Agrave tradiccedilatildeo da Odisseia responde o relato autobiograacutefico dos heroacuteis Surgem as aventuras e desventuras dos protagonistas tanto no Libro como nas novelas gregas Haacute muito tempo que foi dito que as nove-las gregas satildeo uma espeacutecie de sequecircncias cinematograacuteficas (Rattenbury 1935 pp XXII e XCII) que nos conduzem de um cenaacuterio para outro de

9 Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico Feacutedon Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia)

aventura em aventura e noacutes ndash simples espectadores ndash corremos atraacutes da dor dos heroacuteis Mas aleacutem disso a vida dos protagonistas eacute a muacutesica ambiente que faz vibrar as estrofes do Libro ou move a compaixatildeo dos leitores natildeo eacute a vida como peripeacutecia mas a autobiografia contemplada como passado remoto que move o leitor numa identificaccedilatildeo de simpa-tia ateacute aqueles heroacuteis golpeados pelo destino

Tambeacutem como na Odisseia no Libro de Apolonio os companheiros do heroacutei morrem e apenas ele se salva e consegue chegar agrave praia agarra-do numa tabua

Libro de Apolonio Odisseia

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echarDe vestido y calzado pobre estaba al llegara Pentapolin tierra donde hubo de arribar

ἧος ὁ ταῦθ᾽ ὣρμαινε κατὰ φρέναα καὶ κατὰ θυμὁνὧρσε δ᾽ ἐπὶ μέγα κῦμα Ποσειδάων ἐνοχθωνδεινόν τ᾽ ἀργαλέον τε κατηρεφές ἤλασε δ᾽ αὐτόνὡς δ᾽ ἄνεμος ζαης ἠἲων θημῶνα τινάξῃκαρφαλέων τὰ μὲν ἂρ τε διεσκέδασ᾽ ἂλλυδις ἂλλῃὥς τῆς δούρατα μακρὰ διεσκέδασ᾽ αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςἀμφ᾽ ένὶ δούρατι βαῖνε κέληθ᾽ ώς ἵππον ἐλαύνων

Fez surgir logo Posido que a terra sa-code uma vaga cheia de grandes peri-gos que se arca e sobre ele desaba Bem como vento impetuoso que monte de palha desmancha para levaacute-lo em re-moinho de um lado para outro desfeito dessa maneira o mar forte os pranchotildees espalhou Odisseu monta num deles tal como se fosse cavalo de pista

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 57) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 V vv 365-372) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 108)

Como Apolocircnio quando natildeo tem roupas adequadas para entrar no palaacutecio de Archistrastes Ulisses ataviado pobremente tambeacutem fica no umbral da sua proacutepria casa

Libro de Apolonio Odisseia

Apolonio por miedo de la Corte enojarno teniacutea vestido nada con que adornarno quiso de verguumlenza en el palacio entrarretornoacute hasta la puerta y comenzoacute a llorar

ἀγχίμολον δὲ μετ᾽ αὐτὸν ἐδύσετο δώματ᾽ [Ὀδυσσεύςπτωχῷ λευγαλέω ἐναλίκιος ἠδὲ γέροντισκηπτόμενος τὰ δὲ λυγρὰ περὶ εἴματα ἓστοἷζε δ᾽ ἐπὶ μελίνου οὐδοῦ ἔντοσθε θυράωνκλινάμενος σταθμω κυπαρισσίνω ὃν ποτε τέκτωνξέσσεν ἐπισταμένως καὶ ἐπὶ στάθμην ἴθυνην

[Entra na sala depois do porqueiro o divino Odisseu desfigurado num velho pedinte de miacutesero aspecto num pau firmado cobrindo-lhe o corpo uns andrajos trazia Sobre a soleira de freixo da porta de dentro assentando-se no umbral o corpo encostou de cipreste que o artiacutefice outrora com muito engenho lavrara tomando as medidas com fio]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 63) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XVII vv 336-341) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 297)

Como na Odisseia a muacutesica serve para envolver o relato das aven-turas dos heroacuteis Assim Demoacutedoco o aedo movido por um impulso di-vino faz chorar a Ulisses pelo qual Alciacutenoo decide suspender seu can-to para natildeo perturbar o convidado Paralelamente no Libro Apolocircnio chora de pena e natildeo se deleita diferentemente dos presentes com os cantos de Luciana filha de Architrastes

Libro de Apolonio Odisseia

Comenzoacute Apolonio de suspiros cargadodijo toda su pena por lo que hubo pasadodoacutende estaacuten tierra y reino coacutemo era llamadobien lo escuchoacute la dama teniendo gran agrado

Los altos y los bajos todos de ella deciacuteanLa dama y la vihuela tan bien se sucediacuteanque lo tienen a hazantildea todos los que lo oiacuteanHizo otros ejercicios que mucho maacutes valiacutean

Alabaacutendola todos Apolonio callabaPensando estuvo el rey por queacute eacutel no hablabaLe preguntoacute y le dijo que se maravillabaque con todos los otros tan mal de acuerdo [estaba

ταῦτ᾿ ἂρ᾿ ἀοιδὸς ἂειδε περικλυτός αὐτὰρ [Ὀδυσσεὺςτήκετο δάκρυ δ᾿ ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάςὡς δὲ γυνή κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσαὁς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσινἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἧμαρ

ldquoκέκλυτε Φαιήκων ἡμήτορες ἠδὲ μέδοντεςΔημόδοκος δ᾿ ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειανοὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ᾿ ἀείδει

[Isso narrava o famoso cantor Odisseu entrementes liquefa-zia-se em laacutegrimas tendo ba-nhadas as faces como mulher abraccedilada no corpo do caro ma-rido que sucumbisse a lutar jun-to aos muros e seus moradores a defendecirc-la e a seus filhos da sorte do dia impiedoso [] Pare portanto o cantor porque ale-gres fiquemos noacutes todos]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 66-67) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 521-525) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 VIII vv 536-538) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 150-151)

Apolocircnio enfim comeccedila sua peregrinaccedilatildeo por terras de Egito da mesma forma que no relato eacutepico de Homero tambeacutem Ulisses dirige suas naves ateacute o Egito

Libro de Apolonio Odisseia

laquoTe encomiendo la hija te la doy a criarcon su ama Licoacuterides que la sabraacute guardarno quiero los cabellos ni las untildeas cortarhasta que casamiento bueno le pueda dar

laquoHasta que yo esto pueda cumplir y prepararel reino de Antioco yo le quiero dejarAhora ni en Pentapolin ni en Tiro quiero entrarIreacute hasta Egipto donde quiero mientras estarraquo

μῆνα γὰρ οἷον ἔμεινα τεταρπόμενος τεκέεσσινκουριδίῃ τ᾽ ἀλόχω καὶ κτήμασιν αὐτὰρ ἔπειταΑἴγυπτὸνδε με θυμὸς ἀνώγει ναυτίλλεσθαι

[Um mecircs somente fiquei deleitando-me ao lado dos filhos da que esposei quando virgem pois logo depois de algum tempo me manda o peito viajar outra vez para o Egito distante]

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 91) Citamos pela ediccedilatildeo francesa LacuteOdysseacutee (1937 XIV vv 244-246) Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes (2000 p 244)

42 A tradiccedilatildeo latina

Como no caso da grega a tradiccedilatildeo latina se faz presente em diversas pas-sagens do Libro de Apolonio Jaacute foi dito que a muacutesica e quem a interpreta o vate as habilidades musicais em geral satildeo traccedilos positivos caracterizadores do heroacutei Isso mesmo se narra na tradiccedilatildeo claacutessica latina dentre outros na fi-gura de Oviacutedio Nas Tristia ele mesmo se apresenta para a posteridade como poeta relevante na introduccedilatildeo agrave sua obra (Oviacutedio 1997 p 66) Ille ego qui fuerim tenerorum lusor amorum Quem legis ut noris accipe posteritas10

Natildeo resulta estranho portanto que Apolocircnio chegue a ser compa-rado pelo autor do Libro com o poeta Orfeu um dos grandes mitos da tradiccedilatildeo claacutessica (Cabantildeas 1998 p 68)

Todos por una boca deciacutean y afirmabanque ni Apolo ni Orfeo mejor que eacuteste tocabanel cantar de la dama al que mucho alababanante eacuteste de Apolonio en nada lo apreciaban

Com efeito nas Metamorfoses Oviacutedio narra a histoacuteria de Orfeu e Euriacutedice Receacutem-casada a jovem Euriacutedice eacute mordida por uma cobra

10 ldquoVem conhecer posteridade o poeta que fui De amores ternos o poeta que ora lecircsrdquo (Oviacutedio 1997 p 67) ldquoSabei oacute Posteridade para que me conheccedilas que sou aquele que fui cantor dos ternos amores que lecircsrdquo (Naso 1952 p173)

e morre Nam nupta per herbas dum noua Naiadum turba comitata uagatur occidit im talum serpentis dente recepto (Ovidio Nasoacuten 1994 p171)11 Depois de chorar a morte da amada no mundo terreno o excel-so poeta decide descer ao Estige e consegue convencer Perseacutefone atra-veacutes do seu belo canto e suas doces palavras para devolver Euriacutedice ao mundo dos mortais Quem satis ad superas postquam Rhodopeiumlus auras defleuit uates ne non temptaret et umbras ad Styga Taenaria est ausus descendere porta (Ovidio Nasoacuten 1994 p 171)12 Comovidos os deuses das trevas concedem o pedido do vate

Talia dicentem neruosque ad uerba mouentemexsangues flebant animae []Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama estEumenidum maduisse genas nec regia coniuxsustinet oranti nec qui regit ima negareEurydicenque uocant13

(Ovidio Nasoacuten 1994 p173)

Poreacutem a libertaccedilatildeo eacute concedida sob uma condiccedilatildeo natildeo voltar os olhos para a amada ateacute sair do Averno Hanc simul et legem Rhodopeiumlus accipit Orpheus ne flectat retro sua lumina donet Auernas exierit ual-les aut irrita dona futura (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)14 Quando che-gavam no limite dos dois mundos temeroso de que ela pudesse enfra-quecer Orfeu voltou seu rosto para Euriacutedice e no mesmo instante ela caiu no abismo Nec procul afuerunt telluris margine summae hic ne deficeret metuens auidusque uidendi flexit amans oacuteculos et protinus illa relapsa est (Ovidio Nasoacuten 1994 p 173)15 Portanto o canto de Apolocircnio

11 ldquoEuriacutedice pouco depois do casamento quando passeava com as ninfas suas compa-nheiras [] pisou em uma cobra foi mordida no peacute e morreurdquo (Bulfinch 2001 p 224)

12 ldquoOrfeu cantou seu pesar para todos quantos respiram na atmosfera superior deuses e homens e nada conseguindo resolveu procurar a esposa na regiatildeo dos mortos Desceu por uma gruta situada ao lado do promontoacuterio de Teacutenaro e chegou ao reino do Estigerdquo (Bulfinch 2001 p 224-226)

13 ldquoEnquanto cantava estas ternas palavras os proacuteprios fantasmas derramavam laacutegri-mas [] Entatildeo pela primeira vez segundo se diz as faces das Fuacuterias umedeceram-se de laacutegrimas Proseacuterpina natildeo pocircde resistir e o proacuteprio Plutatildeo cedeu Euriacutedice foi cha-madardquo (Bulfinch 2001 p 226)

14 ldquoOrfeu teve permissatildeo de levaacute-la consigo com uma condiccedilatildeo a de que natildeo se voltaria para olhaacute-la enquanto natildeo tivessem chegado agrave atmosfera superiorrdquo (Bulfinch 2001 p 226)

15 ldquoateacute quase atingirem as risonhas regiotildees do mundo superior quando Orfeu num momento de esquecimento para certificar-se de que Euriacutedice o estava seguindo olhou para traacutes e Euriacutedice foi entatildeo arrebatadardquo (Bulfinch 2001 p 226)

eacute aqui comparado com a excelecircncia do famoso poeta que foi capaz de comover ateacute as divindades das trevas

Outro episoacutedio do Libro nos aproxima da mitologia claacutessica Quando viacutetima do naufraacutegio pobre e exausto Apolocircnio eacute hospedado por um hu-milde pescador que vai compartilhar com ele o pouco que tem o heroacutei pro-mete recompensaacute-lo no futuro pela sua boa accedilatildeo (Cabantildeas 1998 p 58-59)

El rey con gran verguumlenza porque pobre estuvierafue hacia el pescador salioacutele a la esperalaquomdashiexclDios te salve mdashle dijo como cosa primeraRespondioacute el pescador de sabrosa maneralaquomdashAmigo mdashdijo el reymdash tuacute bien lo puedes verPobre y necesitado estoy no traigo haberAsiacute Dios te bendiga que te pueda placerque comprendas mi pena y la quieras saberlaquoTan pobre cual tuacute ves desnudo y desdichadode un buen reino soy rey muy rico y potentadode la ciudad de Tiro donde era muy amadodiacutecenme Apolonio por nombre sentildealadoraquoSu vestido partioacute maacutes tarde con su espadadio al rey la mitad lo llevoacute a su posadaLe dio de cenar cuanto pudo no escondioacute nadaPor un hueacutesped ninguna cena fue mejor dada

Tambeacutem nas Metamorfoses a histoacuteria de Filecircmon e Baucis pode re-presentar perfeitamente um antecedente textual deste episoacutedio Filecircmon eacute um velho camponecircs marido de Baucis que recebeu junto com esta a visita de Juacutepiter que se apresentou de incoacutegnito na casa deles

Iuppiter hunc specie mortali cumque parenteuenit Atlantiades positis caduficer alis mille domos adiere locum requiemque petentesmille domos clausere serae tamen una recepitparua quidem stipulis et canna tecta palustrised pia Baucis anus parilique aetate Philemonilla sunt annis iuncti iuuenalibus16

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 120-121)

16 ldquoCerta vez Juacutepiter sob forma humana visitou a regiatildeo em companhia de Mercuacuterio (o do caduceu) sem suas asas Apresentaram-se como viajantes fatigados a muitas portas pro-curando abrigo e reposo mas encontraram todas fechadas Afinal uma moradia humil-de acolheu-os uma pequena choupana onde uma piedosa velha Baucis e seu marido Filecircmon unidos quando jovens haviam envelhecido juntosrdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

Uma vez revelada a sua verdadeira identidade ndash lsquodirsquo que lsquosumus meritasque luet uicina poenas inpiarsquo dixerunt lsquouobis inmunibus huius esse mali dabiturrsquo (Ovidio Nasoacuten 1994 p 123)17 o casal foi recom-pensado pelos deuses da mesma forma que aqueles que natildeo os recebe-ram adequadamente foram punidos e morreram afogados O pedido do casal aos deuses foi morrer no mesmo dia para nunca eles sentirem respectivamente falta do outro

lsquoDicite iuste senex et femina coniuge iustodigna quid optetisrsquo []lsquoet quoniam concordes egimus annosauferat hora duos eadem nec coniugis umquambusta meae uideam neu sim tumulandus ab illarsquo18

(Ovidio Nasoacuten 1994 p 124)

No Libro de Apolonio por sua vez na parte final do poema o protago-nista tambeacutem recompensaraacute seu hoacutespede ricamente (Cabantildeas 1998 p 132)

Por todos los trabajos que le habiacutean venidono olvidoacute el convenio que habiacutea prometidorecordoacute al pescador que lo habiacutea acogidoel que hubo con eacutel el mantillo partidoDios que vive y reina tres y uno llamadodepare un tal hueacutesped a todo hombre cuitadobien haya tal hueacutesped cuerpo tan acordadoque tan buen galardoacuten da a un hospedado

43 Orientalismo

Vaacuterios satildeo os traccedilos que denunciam a influecircncia oriental no Libro de Apolonio Jaacute foi comentada acima a proximidade temaacutetica com rela-ccedilatildeo agrave literatura de aventuras os livros de viagens e a novela bizantina (Artiles 1976 Alborg 1997) Contudo algumas outras caracteriacutesticas acrescentam seu grau de intertextualidade com o mundo oriental

17 ldquondash Somos deuses Esta aldeia inospitaleira sofreraacute a pena de sua impiedaderdquo (Bulfinch 2001 p 62-63)

18 ldquomdash Excelente velho e tu mulher digna de tal marido dizei-me quais satildeo os vosso desejos Que favor quereis de noacutes [] E como passamos toda a nossa vida com amor e concoacuterdia desejamos que a mesma hora exata nos tire a ambos a vida e que eu natildeo viva para ver o tuacutemulo de Baucis nem ela para ver o meurdquo (Bulfinch 2001 p 64)

O primeiro aspecto que merece destaque eacute sem duacutevida no arran-que da histoacuteria de Apolocircnio o enigma como ardil que os pretenden-tes devem resolver para desposarem a filha do rei Antiacuteoco (Cabantildeas 1998 p 43-44)

La verdura del ramo es como la raiacutezde carne de mi madre engrueso mi cervizAquel que adivinase este enigma felizeacutese tendriacutea la hija del rey emperatrizldquoTuacute eres la raiacutez tu hija el ramaltuacute pereces por ella en pecado mortalpues hereda la hija toda deuda carnalla cual tuacute y su madre teniacuteais comunalrdquo

Natildeo eacute contudo o uacutenico exemplo de adivinhaccedilatildeo ou enigma ao longo do poema De fato em outro momento destacado da obra quando o heroacutei descobre que Tarsiana eacute sua filha esta para entretecirc-lo traccedila uma seacuterie de adivinhaccedilotildees que Apolocircnio haveria de resolver (Cabantildeas 1998 p 113)

ldquomdashUnas pocas preguntas te quiero preguntarSi tuacute me las supieses en razoacuten contestarllevareacute la ganancia que me mandaste darsi no me respondieres quieacuterotela dejarldquoDime cuaacutel es la casa ndashpreguntoacute la criadandashque nunca se estaacute queda siempre anda laceradalos hueacutespedes son mudos da voces la posadaSi esto adivinases te quedareacute obligadardquoldquomdashEsto ndashdijo Apoloniondash yo lo voy ideandoel riacuteo es la casa que corre murmurandolos peces son los hueacutespedes que siempre estaacuten callandoEacutesta estaacute terminada ve otra preguntandordquo

As adivinhaccedilotildees satildeo conhecidas por todos os povos desde os pri-moacuterdios e no geral referem coisas comuns de faacutecil compreensatildeo pelo que apresentam um caraacuteter essencialmente popular Contudo sua ori-gem eacute oriental onde muitas vezes expressavam os mais elevados pen-samentos ldquolas maacutes antiguas que se conocen pertenecen a la eacutepoca ba-biloacutenica y aparecen escritas en tablillasrdquo (Rasero Chacoacuten 2004 p 227) Exemplos de adivinhaccedilotildees ou enigmas aparecem em textos biacuteblicos no Alcoratildeo na mitologia grega e nos manuscritos sacircnscritos

Capiacutetulo agrave parte merece a referecircncia sobre a lapidaccedilatildeo como cas-tigo imposto ao proxeneta ndash vino un hombre malo sentildeor de soldaderas pensoacute en ganar con eacutesta ganancias tan sentildeeras (Cabantildeas 1998 p 98) ndash que explorava Tarsiana

No quisieron el ruego poner en otro plazoremovioacutese el concejo como un santildeudo mazobuscaron al traidor echaacuteronle el lazomataacuteronlo con piedras cual rapaz de mal trazo (Cabantildeas 1998 p 122)

A praacutetica da lapidaccedilatildeo era habitual nas tradiccedilotildees preacutevias ao Alcoratildeo no Oriente e de comum aplicaccedilatildeo O primeiro maacutertir cristatildeo Satildeo Estevatildeo morreu lapidado Saulo de Tarso o futuro Satildeo Paulo dedicado na eacutepoca agrave perseguiccedilatildeo dos cristatildeos participou passivamente da lapi-daccedilatildeo observando a cena De fato na Biacuteblia as referecircncias a lapidaccedilotildees satildeo numerosas envolvendo quase sempre assuntos relacionados com atitudes haacutebitos e atividades sexuais

Se um homem se casa com uma mulher e apoacutes coabitar com ela comeccedila a detestaacute-la imputando-lhe atos vergonhosos e difamando-a publicamente dizendo ldquoCasei-me com esta mulher mas quando me aproximei dela natildeo encontrei os sinais da sua virgindaderdquo [] se a denuacutencia for verdadeira se natildeo acharem as provas da virgindade da jovem levaratildeo a jovem ateacute a por-ta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejaratildeo ateacute que morra (Deuteronocircmio 22 13-21)

Se houver uma jovem virgem prometida a um homem e um homem a encontra na cidade e se deita com ela trareis ambos agrave porta da cidade e os apedrejareis ateacute que morram a jovem por natildeo ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher do seu proacuteximo (Deuteronocircmio 22 23-24)

Iahweh falou a Moiseacutes e disse Tira fora do acampamento aquele que pronun-ciou a maldiccedilatildeo Todos aqueles que o ouviram poratildeo suas matildeos sobre a cabeccedila dele e toda a comunidade o apedrejaraacute (Leviacutetico 24 13-14)

Mais conhecido eacute o episoacutedio da mulher aduacuteltera (Joatildeo 8 3-11)

Os escribas e os fariseus trazem entatildeo uma mulher surpreendida em adul-teacuterio e colocando-a no meio dizem-lhe ldquoMestre esta mulher foi surpre-endida em flagrante delito de adulteacuterio Na Lei Moiseacutes nos ordena apedre-jar tais mulheres Tu pois que dizesrdquo [] Quem dentre voacutes estiver sem

pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra Eles ouvindo isso saiacuteram um apoacutes do outro a comeccedilar pelos mais velhos [] Entatildeo erguendo-se Jesus lhe disse ldquoMulher onde estatildeo eles Ningueacutem te condenourdquo Disse ela ldquoNingueacutem Senhorrdquo Disse entatildeo Jesus ldquoNem eu te condeno Vai e de agora em diante natildeo peques maisrdquo

Por fim um uacuteltimo traccedilo de orientalismo no texto de caraacuteter aber-tamente literaacuterio e muito mais claro e direto as referecircncias inequiacutevocas agraves Mil e uma noites Com efeito como Sherazade Tarsiana consegue no caso continuar virgem atraveacutes de suas habilidades musicais que con-vencem os homens que pagam para passar a noite com ela No texto oriental Sherazade contaraacute a seu marido o sultatildeo Shariar graccedilas a sua imaginaccedilatildeo desbordante a histoacuteria de Ali Babaacute e depois viratildeo outras igualmente fantaacutesticas durante mil e uma noites histoacuterias que ela deixa interrompidas quando amanhece para continuar na noite seguinte atre-lando-as a novas histoacuterias O sultatildeo absolutamente fascinado suspen-deraacute a execuccedilatildeo prevista ndash para evitar uma eventual traiccedilatildeo que tinha sofrido com outra mulher ndash jaacute que planejava a morte de uma virgem do seu hareacutem por dia (Riquer amp Valverde 1991 vol 3 p 65-66) No Libro de Apolonio satildeo narradas as habilidades de Tarsiana com os sucessivos clientes do bordel comeccedilando pelo primeiro deles que foi o senhor da cidade Antinaacutegora o qual pagou um alto preccedilo em troca da virgindade e que no final da obra acabaraacute sendo seu esposo

ldquoYo puedo por tu hecho perder ventura y hadocaeraacutes por mal cuerpo tuacute en mortal pecadoHombre eres de valor que estaacutes siempre encumbradosobre hueacuterfana pobre no hagas desaguisadordquo

ldquomdashDama bien entiendo esto que me deciacutesde buena parte sois de linaje veniacutesesta peticioacuten que vos a miacute pediacutesveacuteolo por derecho pues bien lo concluiacutes

ldquoEl precio que dariacutea para con vos pecaros lo quiero de gracia ofrecer y donarque si vos no pudiereis por el ruego escaparal que con vos entrare dadlo para apartar

ldquoSi vos con esta mantildea os podeacuteis defendermientras lo miacuteo durare no os faltaraacute haberrdquo (Cabantildeas 1998 p 100-101)

Tarsiana com o dinheiro de Antinaacutegora consegue convencer o proxeneta para ela aprender outro ofiacutecio de cantora trovadora e assim ele ficaria mais rico e ela honrada

ldquoSentildeor si de ti fuese lo que pido otorgadootro mester sabiacutea que es maacutes sin pecadoque es maacutes ganancioso y es maacutes honrado

ldquoSi tuacute me lo otorgas por la tu cortesiacuteaque me ponga en estudio de esa maestriacuteacuanto tuacute me pidieses yo tanto te dariacuteatuacute tendriacuteas ganancia y yo no pecariacuteardquo

Luego al otro diacutea casi de madrugadalevantoacutese la dama ricamente adornadatomoacute la viola buena y bien templaday salioacute al mercado a tocar por soldada

Tan bien supo la dama su cosa prepararque sabiacutea a su amo la ganancia aumentarRiendo y bromeando con el su buen mirarsuacutepose aunque nintildea del pecado apartar (Cabantildeas 1998 p 102-103)

Eis aqui portanto um exemplo de adaptaccedilatildeo medieval de um velho motivo oriental o que vai nos conduzir ateacute a seguinte epiacutegrafe os traccedilos de medievalismo no processo de recepccedilatildeo e transmissatildeo dos textos pagatildeos

5 O medievalismo do Libro de Apolonio originalidade imitaccedilatildeo adaptaccedilatildeo

Toda obra eacute filha do seu tempo O Libro de Apolonio como dito natildeo seraacute uma exceccedilatildeo A Idade Meacutedia foi um periacuteodo longo e conturbado es-pecialmente se considerarmos a encruzilhada representada pelo Ocidente frente ao Oriente no acircmbito da espiritualidade o Cristianismo frente ao Islam Mas antes de tudo havia uma forte cultura pagatilde de tradiccedilatildeo gre-co-romana aleacutem de muitas outras que depois com a volta do olhar para o homem no Renascimento ndash e ainda muito depois no Romantismo ndash retornaratildeo agraves versotildees originais longe de qualquer adaptaccedilatildeo

Nesse sentido a originalidade do texto radica em apresentar-nos uma tensatildeo entre o local a adaptaccedilatildeo agrave cultura castelhana e o universal a cultura e a lenda de tradiccedilatildeo claacutessica que inclui inequiacutevocos traccedilos orientais e pagatildeos Em outras palavras o medievo realizou uma adap-taccedilatildeo e imitaccedilatildeo de foacutermulas tipos e motivos que se repetiram por toda Europa e que representaram a reatualizaccedilatildeo de registros claacutessicos

O primeiro elemento caracterizador dessa adaptaccedilatildeo medieval como foi jaacute parcialmente apontado vem da matildeo da religiosidade e do imaginaacuterio cristatildeo Em palavras de Le Goff (1983 p 57)

Toda toma de conciencia en la Edad Media se hace por y a traveacutes de la religioacuten ndashen el plano de la espiritualidadndash Podriacutea definirse casi una mentalidad me-dieval por la imposibilidad de expresarse al margen de referencias religiosas

Assim por exemplo uma reinterpretaccedilatildeo das contiacutenuas viagens de Apolocircnio desde esta perspectiva do leitor medieval pode ser aleacutem do arqueacutetipo da dinacircmica da vida do exiacutelio voluntaacuterio a de entender a vida como um percurso ateacute a outra vida o Aleacutem Nesse sentido a pere-grinatio vitae eacute siacutembolo do cristianismo que potildee em evidecircncia o caraacuteter transitoacuterio de toda situaccedilatildeo

Mas jaacute em referecircncia direta ao texto se compararmos o poema es-panhol com a fonte latina que lhe serve como base a Historia Apollonii Regis Tyri surpreende de imediato a grande quantidade de referecircncias religiosas que observamos Com efeito o poema castelhano modifica o espiacuterito pagatildeo da Historia latina Manuel Alvar (1976 p 142) elaborou na sua ediccedilatildeo criacutetica um documentado estudo contendo de um lado as vozes que fazem referecircncia a costumes deuses festas ou crenccedilas pagatildeos (soacute como amostra ampulla uini Apollo Diana Neptunus sepulcrum templa) e do outro as vozes cristatildes correspondentes ndash natildeo necessaria-mente equivalentes das anteriores ermitantildeo santo cleacuterigos monasterio descomulgado pecado nintildea en pecado rayo del diablo etc

Sem entrar nos aspectos puramente leacutexicos jaacute estudados pelo pres-tigioso filoacutelogo espanhol seria bom mergulharmos nessas adaptaccedilotildees de caraacuteter religioso para uma melhor compreensatildeo da dimensatildeo ide-oloacutegica que este tipo de obra representava A primeira e mais eviden-te resulta da cristianizaccedilatildeo dos primeiros versos do poema (Cabantildeas 1998 p 41)

En el nombre de Dios y de Santa Mariacuteasi ellos me guiasen estudiar querriacuteacomponer un romance de nueva maestriacuteadel buen rey Apolonio y su cortesiacutea

Esses primeiros versos satildeo precisamente os que os poetas claacutessicos de-dicavam como invocaccedilatildeo agrave Musa fonte inspiradora como por exemplo para natildeo perder o fio de Homero na Iliacuteada (1965 p 59) Μῆνιν ἂειδε θεά Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος ουλομένην19 ou tambeacutem na Odisseia (1965 p 131) Ἀνδρα μοι ἔννεπε Μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ πλάγχθη20 E para concluir soacute neste primeiro instante podemos ir do Alfa ao Ocircmega isto eacute do iniacutecio ao teacutermino do Libro Laacute encontramos um final moralizante dentro da mais genuiacutena doutrina cristatilde (Cabantildeas 1998 p 135)

Muerto estaacute Apolonio todos morir debemospor aquello que amamos el final no olvidemosPor lo que aquiacute hicieacuteremos allaacute recibiremosallaacute iremos todos siempre de aquiacute saldremos

Dejemos la palabra la razoacuten no alarguemospocos seraacuten los diacuteas que aquiacute moraremosCuando de aquiacute salgamos iquestqueacute ropa llevaremossi no al festiacuten de Dios de Aqueacutel en que creemos

El Sentildeor que gobierna los vientos y la marEacutel nos deacute la su gracia y Eacutel se digne guiary asiacute nos deje tales cosas pensar y obrarque por la su merced podamos escaparEl que tuviere seso responda y diga ameacuten

E ainda para completar natildeo falta o momento de moralizaccedilatildeo no meio da obra cumprindo com o princiacutepio de exemplaridade medieval modelo de conduta e comportamento para aprendizado de todos os exempla21 O esquema eacute simples parte-se do caso particular narrado e se generaliza em termos de moral cristatilde modelo de comportamento

19 ldquoCanta-me oacute deusa do Peleio Aquiles A ira tenazrdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portu-guesa de Manuel Odorico Mendes [2004 p 25])

20 ldquoMusa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito peregrinourdquo (Citamos pela traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Alberto Nunes [2000 p 28])

21 No proacutelogo do Conde Lucanor Don Juan Manuel explica o intuito da sua obra Et porque cada home aprende mejor aquello de que se maacutes paga por ende el que alguna cosa quiere

Confunda Dios tal rey de tan mala mesuraviviacutea en pecado e ideaba locuramatar queriacutea al hombre que dijera corduraa aqueacutel que resolvioacute la adivinanza oscura

Esto mismo acontece con todos los pecadoslos unos con los otros van todos enlazadosSi no fueren aprisa los unos enmendadosotros muchos mayores son luego acumulados (Cabantildeas 1998 p 48-49)

Nada de novo portanto no panorama que poderia entatildeo oferecer o contexto medieval Em palavras de Blanco Aguinaga (2000 I p 75) rdquoEl Libro de Apolonio [hellip] se relaciona con los esquemas de la vieja novela bizan-tina de aventuras y viajes de final feliz y con las habituales moralizacionesrdquo

Os fenoacutemenos meteoroloacutegicos que governam o mar eram na eacutepica claacutessica atribuiacutedos a divindades pagatildes Como eacute loacutegico o anocircnimo autor do Libro de Apolonio atribui ao Deus cristatildeo esses avatares e a Ele se encomenda para pedir a proteccedilatildeo do heroacutei e de todos noacutes

Arrecioacute la borrasca y el mal temporalla decisioacuten perdieron y el timoacuten principalse destruyeron todos los maacutestiles por maliexclGuaacuterdanos de tal pena Sentildeor espiritual

Porque como Dios quiso la cosa hubo de serfueacuteronse a pique todas las naves sin podersalvarse ninguacuten hombre soacutelo permanecerpudo el rey a quien Dios le quiso proteger

Por su buena ventura Dios le quiso ayudaren un chico madero las manos pudo echar (Cabantildeas 1998 p 57)

Soacute nesse contexto de adaptaccedilatildeo cristatilde da mitologia pagatilde que vimos apontando pode justificar-se a suposta crueldade do Deus misericordioso e justo cristatildeo frente agrave arbitrariedade das deidades greco-latinas muitas

mostrar a otro deacutebegelo mostrar en la manera que entendiere que seraacute maacutes pagado el que la ha de aprender Et porque muchos homes las cosas sotiles non les caben en los entendimien-tos nin las entienden bien [hellip] yo don Juan fijo del infante don Manuel [hellip] compuesto de las maacutes fermosas palabras que yo pude et entre las palabras entremetiacute algunos ejem-plos de que se podriacutean aprovechar los que los oyeren (Don Juan Manuel 1977 p 13-14)

vezes interessadas apenas em resolver seus proacuteprios confrontos tomando como refeacutens de suas accedilotildees os homens mortais Afora eacute claro a evidente contradiccedilatildeo que se produz em relaccedilatildeo agrave dupla atitude de Deus atribuiacuteda pelo autor do texto agrave sorte de Apolocircnio nos versos destacados da passa-gem acima Outras vezes as tempestades convenientemente guiadas por Deus provocam o acaso que permite o reencontro dos personagens

La tempestad cogioacutelos y el mal temporalsacoacutelos de camino la borrasca mortalechoacutelos su ventura y el Rey espiritualen la villa que pasa Tarsiana mucho mal (Cabantildeas 1998 p 106)

Contudo agraves vezes os fenocircmenos adversos da natureza satildeo atribuiacute-dos ao diabo e natildeo a Deus

laquoDile que muerto estaacute Antioco y enterradoCon eacutel murioacute la hija que lo llevoacute al pecadodestruyoacutelos a ambos un rayo del diabloraquo (Cabantildeas 1998 p76)

A adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio religioso cristatildeo do medievo obriga a forccedilar situaccedilotildees como aquela em que Architrastes rei de Pentapolin daacute sua benccedilatildeo a Apolocircnio e sua filha Luciana quando partem para Antioquia uma vez mortos o rei Antiacuteoco e sua filha Bendiacutejolos a en-trambos con su derecha mano rogoacute al Creador que estaacute en lo maacutes alto que Eacutel guiase a su hija en invierno y veranohellip (Cabantildeas 1998 p 78)

Contudo como vaacuterios seacuteculos depois vai acontecer de novo no per-curso da historia da literatura universal a mistura de influecircncias deixa notar sua presenccedila nesta encruzilhada de culturas e imaginaacuterios Assim no aacutepice do teatro barroco espanhol pode parecer surpreendente a for-ma como Calderoacuten de la Barca em La vida es suentildeo conjuga o fatalismo do horoacutescopo e a providecircncia cristatilde (Alborg 1997 p 690) Lapesa amp Ruiz Ramoacuten falam nesse sentido de ldquooposiciones de contrastesrdquo (1983 p 430) Com efeito Calderoacuten nos apresenta horoacutescopos pressaacutegios e vaticiacutenios que prognosticam os futuros contingentes os astroacutelogos ou judiciaacuterios sabedores de matemaacuteticas sutis julgando signos astrais pre-dizem os influxos de estrelas e planetas Mas as previsotildees dos homens por saacutebios que eles sejam resultam inuacuteteis para preservar-se do ditado

por poderes supremos que regem o acontecer ndash embora nem sempre seja assim como confessa Victor Hugo no prefaacutecio de Notre-Dame de Paris22 ndash onde emerge a grande oposiccedilatildeo ceacuteu fado No Libro de Apolonio o fado o ἀναγκή citado por Victor Hugo caracterizador dos heroacuteis eacutepicos e de outros futuros convive diretamente com o Espiacuterito Santo (Cabantildeas 1998 p 88)

La gente desolada y su rey descasadopasaron su trayecto maldiciendo del hadoEl Espiacuteritu Santo los guioacute sosegadoasiacute el mar arribaron a Tarso sitio amado

Essa mesma oposiccedilatildeo de contrastes ou encruzilhada cultural justifica enfim o episoacutedio que narra a supersticcedilatildeo da tripulaccedilatildeo do navio que obriga a desova no mar do corpo de Luciana aparentemente morto o que configu-ra por sua vez um novo foco na trama aventureira do protagonista

ldquoAntes de pocas horas si el cuerpo retenemoshabremos muerto todos librarnos no podremossi la madre perdemos buena hija tenemosmal haces Apolonio que asiacute permanecemosrdquo (Cabantildeas 1998 p 81)

Mas ainda como texto medieval participa de referecircncias desenvol-vidas na sua proacutepria eacutepoca isto eacute autenticamente contemporacircneas e que seratildeo evocadas e imortalizadas pouco tempo depois nas recopilaccedilotildees de romances populares agrupados sob a comum denominaccedilatildeo de Romancero Viejo Entendam-se aqui as expressotildees ldquoromancerdquo e ldquoRomancero Viejordquo exatamente nos termos como as define Masip (2002 pp 112 e 134) ldquopo-emas de tipo narrativo o liacuterico populares producidos entre la seguntad mitad del siglo XIV y todo el siglo XV [] Pueden dividirse en tradi-cionales que evocan los cantares de gesta [] y juglarescosrdquo Nestes ro-mances aparecem motivos e referecircncias intertextuais correspondentes a certos costumes e usos da eacutepoca dos cavaleiros medievais Nesse sentido compare-se o castigo que Apolocircnio ameaccedila infligir na pessoa que ousasse 22 ldquoIl y a quelques anneacutees quacuteen visitant ou pour mieux dire en furetent Notre-Dame

lacuteauteur de ce livre trouva dans un recoin obscur de lacuteune des tours ce mot graveacute agrave la main sur le mur ANAacuteΓKH Ces majuscules grecques () e surtout le sens lugrube et fatal quacuteelles renferment frappegraverent vivement lacuteauteur () Cacuteest sur ce mot quacuteon a fait ce livrerdquo (Hugo 1904 sp)

incomodaacute-lo quando se encontrava atribulado apoacutes receber a falsa notiacute-cia da morte da sua filha com o castigo que por vinganccedila pessoal rece-beu Don Galvaacuten quando foi morto e que aparece descrito em detalhes no Romance de Gaiferos y Galvaacuten datado de 1547

Libro de Apolonio Romance de Gaiferos y Galvaacuten

Al fondo de la nave en rincoacuten apartadoechoacutese en un lecho el rey tan desgraciadojuroacute que quien le hablase seriacutea mal pagadode uno de sus pies seriacutea mutilado

La muerte que eacutel les dijera mancilla es de la [escucharmdashCoacutertenle el pie del estribo la mano del [gavilaacutensaacutequenle ambos los ojos por maacutes segu-ro andary el dedo y el corazoacuten traeacutedmelo por sentildeal

Citamos pela ediccedilatildeo de Cabantildeas (1998 p 107) Citamos pela ediccedilatildeo de Wolf amp Hofmann (1856 II p 222-225)

6 O Libro de Apolonio intertextualidade e literatura comparada Ontem e hoje

A anaacutelise do Libro de Apolonio nos conduz ateacute a conclusatildeo de que ele constitui um claro exemplo do que representou o medievo do ponto de vista literaacuterio e cultural natildeo apenas na Peniacutensula Ibeacuterica mas tam-beacutem no resto da Europa O imaginaacuterio europeu medieval foi consti-tuindo-se sustentado sim na ideologia do cristianismo mas ao mesmo tempo adaptando toda uma tradiccedilatildeo claacutessica pagatilde que na sua versatildeo greco-latina trazia ecos inequiacutevocos do Oriente De um lado Bizacircncio e o antigo impeacuterio oriental romano de outro as influecircncias da cultura semiacutetica aacuterabe e hebraica que chegaram agrave Peniacutensula Ibeacuterica a partir do seacuteculo VIII e que ainda permaneciam em pleno apogeu no seacuteculo XIII eacutepoca da elaboraccedilatildeo do Libro Traziam como consequecircncia uma mistura de motivos e toacutepicos que hoje devemos ser capazes de apreciar e valorar na justa medida em especial quando abordamos a sempre difiacutecil tarefa de compreender um texto antigo

Ao longo das paacuteginas acima foram levantados vaacuterios elementos diferentes entre si de origens tambeacutem bem diversas mas que o anocircni-mo autor ndash homem culto cleacuterigo que inaugurava um novo gecircnero ou

mester de clereciacutea em liacutengua romacircnica e natildeo em latim ndash soube mesclar de forma admiraacutevel e que noacutes hoje desde nosso imaginaacuterio e nossa concepccedilatildeo do mundo devemos saber interpretar sob os coacutedigos da eacutepo-ca na qual foi escrito o poema

A imediata influecircncia de uma histoacuteria sobre o rei Apolocircnio escrita em latim e que circulava pelas bibliotecas dos mosteiros medievais da eacutepoca Historia Apollonii Regis Tyri natildeo compromete a originalidade do texto que nos oferece o autor A Iliacuteada e a Odisseia se fazem presentes em numerosas passagens do Libro e ainda achamos traccedilos que vinculam o texto com os livros de viagens e aventuras e com toda a rica tradiccedilatildeo da novela bizantina Os ecos do conto fantaacutestico oriental representados aqui pelo episoacutedio de Tarsiana trovadora quando eacute vendida ao proxene-ta ndash cujo nome natildeo eacute revelado em momento nenhum como tampouco o nome da filha de Antiacuteoco maculada pelo incesto ndash que eacute capaz com a doccedilura de suas palavras primeiro e a graccedila de seu canto depois de preservar sua virgindade ainda nesse contexto tatildeo adverso remetem agraves habilidades de Sherazade nas Mil e uma noites

Contudo a obra natildeo deixa de ser filha do seu tempo e como tal natildeo faltam caracteriacutesticas e traccedilos puramente medievais como a religiosidade cristianizando as divindades greco-latinas que regem os fenocircmenos at-mosfeacutericos as tempestades e os destinos dos protagonistas quando nave-gam pelo traiccediloeiro mar seja punindo na trama do texto aos pecadores ndash inclusive infligindo-lhes castigos que ora nos levam ateacute episoacutedios biacuteblicos ora nos revelam costumes dos cavaleiros medievais que depois ilustraratildeo o Romancero viejo ndash e beneficiando os que se comportam conforme a mo-ral cristatilde seja enfim atraveacutes das dicas moralizantes que o autor espalha ao longo do texto em primeira pessoa oferecidas ao leitor-ouvinte o que por sua vez nos conduz ateacute a literatura dos exempla medievais

Mas ainda a contribuiccedilatildeo do texto natildeo olha apenas para a histoacute-ria ou a sua contemporaneidade Com efeito algumas personagens do Libro mesmo secundaacuterias podem ser consideradas como a semente de outras futuras estas de indubitaacutevel relevacircncia para a literatura hispacircnica e universal Assim a velha ama que criou a filha de Antiacuteoco e que lhe recomenda natildeo acusar o pai pelo incesto cometido encontra-se na base da Trotaconventos do Libro de buen amor de Juan Ruiz (seacuteculo XIV) e sobretudo representa um esboccedilo do que haveraacute de ser a Celestina de Fernando de Rojas nos albores do Humanismo espanhol (1499)

Por fim muito depois da eacutepoca na qual foi escrito o Libro a gra-ccedila a personalidade e a inteligecircncia que enfeitam Tarsiana tecircm muito a ver com a personagem da gitanilla das Novelas ejemplares de Miguel de Cervantes e sem duacutevida jaacute no acircmbito universal aleacutem da literatura escrita em liacutengua espanhola com a cigana Esmeralda de Notre-Dame de Paris de Victor Hugo

REFEREcircNCIAS

A Biacuteblia de Jerusaleacutem Traduccedilatildeo do texto em liacutengua portuguesa diretamente dos originais Satildeo Paulo Ediccedilotildees Paulinas 1989

ALBORG JL Historia de la Literatura Espantildeola Tomo I Edad Media y Renacimiento 2ordf edicioacuten ampliada Madrid Gredos 1997

ALVAR M Apolonio cleacuterigo entendido In Symposium in honorem prof M de Riquer Barcelona Edicions del Quaderns Crema 1989 (p 51-73)

ARTILES J El ldquoLibro de Apoloniordquo poema espantildeol del siglo XIII Madrid Gredos 1976

BLANCO AGUINAGA C RODRIacuteGUEZ PUEacuteRTOLAS J ZAVALA IM Historia social de la literatura espantildeola (en lengua castellana) 3ordf ed Madrid Akal 2000

BRUYNE E de La esteacutetica de la Edad Media Madrid Visor 1988

BULFINCH Th O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Faacutebula) Histoacuterias de Deuses e Heroacuteis 13ordf ed Trad David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Ediouro 2001

CALDEROacuteN DE LA BARCA P La vida es suentildeo Ed de Antonio Rey Hazas Barcelona Vicens Vives 2000

CERVANTES M de El Licenciado Vidriera y otras novelas ejemplares Madrid Salvat Editores Alianza Editorial 1969

DON JUAN MANUEL El Libro de Patronio e por otro nombre El Conde Lucanor 13ordf ed Madrid Espasa-Calpe 1977

GIROacuteN ALCONCHEL JL Comentario de textos de clereciacutea Alexandre y Apolonio Madrid Arco Libros 2002

GOacuteMEZ MORENO Aacute Notas al proacutelogo del Libro de Alexandre Revista de Literatura XLVI 1984 (p 117-127)

GUILLEacuteN C Entre lo uno y lo diverso Barcelona Criacutetica 1985

HODOI ELEKTRONIKAI Du texte agrave lacutehypertexte Homegravere Odysseacutee Traduction franccedilaise Paris E Flammarion 1937 Disponiacutevel no endereccedilo da Internet mercurefltruclacbeHodoiconcordancesintrohtmHomere (Acessado em 21 de fevereiro de 2013)

HOMERO Iliacuteada Texto integral Trad Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Martin Claret 2004

_____ Odisseia Trad Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2000

_____ Nueva Antologiacutea de la Iliacuteada y la Odisea Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos 1965

LAPESA R RUIZ RAMOacuteN F Calderoacuten traacutegico In RICO F (org) Historia y Criacutetica de la Literatura Espantildeola Vol 31 Primer Suplemento Siglo de Oro Barroco Ed Aurora Egido Barcelona Criacutetica 1983 (p 430-435)

LE GOFF J Tiempo trabajo y cultura en el occidente medieval Madrid Taurus 1983

Libro de Alexandre Edicioacuten preparada por Jesuacutes Cantildeas Murillo Madrid Editora Nacional 1983

Libro de Apolonio Texto iacutentegro en versioacuten del Dr D Pablo Cabantildeas Madrid Castalia 1998

Libro de Apolonio Edicioacuten de Dolores Corbella Madrid Caacutetedra 1992

Libro de Apolonio Edicioacuten de Manuel Alvar Madrid Fundacioacuten Juan March Castalia 1976

LOTMAN Y ESCUELA DE TARTUacute Semioacutetica de la cultura Madrid Caacutetedra 1979

MASIP V Manual de poesiacutea espantildeola y portuguesa Recife AECI Bagaccedilo 2002

MICHAEL I Epic to Romance to Novel Problems of the Genre Identification Bulletin of the John Rylandacutes University Library of Manchester nordm 68 1986 (p 498-527)

MIRANDA POZA JA La Edad Media en Europa como marco para el estudio de la eacutepoca literaria medieval In MIRANDA POZA JA (org) Estudios Hispaacutenicos Recife Editora Universitaacuteria da UFPE 2011 (p 159-169)

_____ Poesiacutea Espantildeola Medieval (II) El Mester de Clereciacutea In MIRANDA POZA JA RODRIGUES JPM (orgs) Estudios de Lengua y Literatura Espantildeola Recife APEEPE PROEXT Departamento de Letras ndash UFPE 2007 (p 123-140)

NASO PO Tristium 2ordf ed Trad literal de Augusto Velloso Rio de Janeiro Ediccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Simotildees 1952

OVIacuteDIO Poemas da carne e do exiacutelio Seleccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Joseacute Paulo Paes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997

OVIDIO NASOacuteN P Metamorfosis Texto revisado y traducido por Antonio Ruiz de Elvira 3 vols Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientiacuteficas 1994

RASERO CHACOacuteN J Adivinanzas y trabalenguas Posibilidades didaacutecticas In BARCIA MENDO E (coord) La tradicioacuten oral en Extremadura Meacuterida Junta de Extremadura ndash Consejeriacutea de Educacioacuten Ciencia y Tecnologiacutea 2004 (p 221-247)

RATTENBURY RM Prologue a Les Eacutethiopiques de Heliodore Texte eacutetabli par RM Rattenbury ET TW Lumb et traduit par J Maillon Paris Collection decircs Universiteacutes de France 1935

RIQUER M VALVERDE JM Historia de la Literatura Universal Barcelona Planeta 1991

ROJAS F de La CelestinaTragicomedia de Calisto y Melibea 4ordf ed Introduccioacuten de Stephen Gilman Edicioacuten y notas de Dorothy S Severin Madrid Alianza Editorial 2003

RUIZ J El libro de buen amor Madrid Edimat Libros 1999

TODOROV Tz Introduccioacuten a la literatura fantaacutestica Buenos Aires Tiempo Contemporaacuteneo 1972

URIacuteA I Panorama criacutetico del mester de clereciacutea Madrid Castalia 2000

Versatildeo eletrocircnica do diaacutelogo platocircnico ldquoFedatildeordquo Trad Carlos Alberto Nunes Creacuteditos Membros do grupo de discussatildeo Acroacutepolis (Filosofia) Disponiacutevel no endereccedilo da Internet HTTPbregroupscomgroupacropolis (Acessado em 20 de fevereiro de 2013)

WOLF FJ HOFMANN C Primavera y flor de romances o Coleccioacuten de los maacutes viejos y maacutes populares romances castellanos 2 vols Berlin A Asher amp Co 1856 Disponiacutevel na Internet no endereccedilohttpdeptswashingtoneduhispromoptionalballadactionphpigrh=0087amppublisher=Wolf201856b (Acessado em 24 de fevereiro de 2013)

Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e

a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites

Oussama Naouar(Prof Dr Departamento de Letras ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

1 Consideraccedilotildees epistemoloacutegicas introdutoacuterias das evidecircncias obscuras das Mil e uma noites

As Mil e uma e noites assombram nosso imaginaacuterio relativo ao Oriente como para nos lembrar que eacute necessaacuterio guardar uma certa acuidade associada aos objetos muito evidentes Pois com efeito exis-tem duas sortes de objetos delicados para o pesquisador De uma parte os objetos desconhecidos totalmente novos pelo menos segundo acre-ditamos de outra os muito evidentes e ceacutelebres

Os primeiros tecircm que ser buscados continuamente Se trata para noacutes de natildeo somente os achar mas tambeacutem de lhes tirar sua aparente virginda-de sobretudo relativa como temos de admitir Portanto esta concepccedilatildeo de objeto novo eacute na maioria das vezes epistemologicamente confusa Ela atende ao olhar de um pesquisador que se debruccedila a partir de uma eacutepoca particular sobre um elemento que atrai nossa atenccedilatildeo Esta virgindade eacute ainda uma propriedade construiacuteda sobre o objeto de pesquisa pois de fato ela se elabora a partir do cruzamento de uma ou mais articulaccedilotildees definidas como novas num momento histoacuterico particular no quadro de uma episteme Sabemos a partir de Foucault que a episteme faz referecircncia agrave sistematizaccedilatildeo das regras de construccedilatildeo dos objetos sujeitos e concei-tos postulando que haacute um elemento dos saberes (no sentido de elemento aquaacutetico por exemplo) que impotildee aos objetos do saber o modo de ser determinado (cf Foucault 1990 p 13) Portanto esta construccedilatildeo mesma implica uma ruptura desconstruccedilatildeo para tornar novamente inteligiacutevel esta formalizaccedilatildeo do objeto de pesquisa

A outra categoria eacute composta destes objetos do cotidiano comuns que natildeo brilham mais por sua novidade tanto que natildeo se deixam mais

interrogar Aqui o esclarecimento foucaultiano continua pertinen-te Mas pode ser necessaacuterio conjugaacute-lo agraves meditaccedilotildees de um Gaston Bachelard recordando esta ceacutelebre frase de La formation de lrsquoesprit scientifique que precisa ldquonoacutes conhecemos contra um conhecimento an-teriorrdquo (Bachelard 1971 p 14) Nessa perspectiva o conhecimento soacute eacute possiacutevel a partir da superaccedilatildeo de um conhecimento anterior o qual nesta aproximaccedilatildeo epistemoloacutegica aparece necessariamente como um limite um oposto um obstaacuteculo As mil e uma noites fazem parte destes uacuteltimos objetos Pois este texto que natildeo cessa de nos fascinar noacutes o apreendemos somente pelas tramas do passado Esta constataccedilatildeo natildeo deixa de nos lembrar que ao encontro do conhecimento o espiacuterito se revela sob o peso da idade pois nunca eacute jovem mas sempre velho pelos seus preconceitos e nessas circunstacircncias acessar o conhecimento ldquoeacute espiritualmente rejuvenescer eacute aceitar uma mutaccedilatildeo brusca que deve contradizer o passadordquo (Bachelard 1971 p 14) Ora noacutes sabemos a que ponto as Mil e uma noites satildeo um objeto eterno sempre revisitado sempre fascinante mas que pode esconder atraacutes de suas evidecircncias uma parte profunda de obscuridade As Mil e uma noites uma vez que o efeito exoacutetico tenha passado nos enseja a perguntar sobre suas evidecircn-cias obscuras Acalentado sob uma apreensatildeo ingecircnua e reconfortante este questionamento chama o espiacuterito ceacutetico agrave desconstruccedilatildeo

Com efeito muitas ideias preconcebidas englobam indistintamente Sherazade Oriente Mil e uma noites hareacutens e outros objetos de nossa imaginaccedilatildeo Em relaccedilatildeo a estas ideias Bergson indica pertinentemen-te que nosso espiacuterito possui uma irresistiacutevel tendecircncia a considerar como mais clara a ideacuteia que lhe serve continuamente Esta forma de ldquoeconomia mentalrdquo explica em parte porque se constitui num conjunto de ideacuteias preconceitos e opiniotildees que acabam escondendo a comple-xidade e a singularidade de uma produccedilatildeo literaacuteria Uma exigecircncia de superaccedilatildeo de questionamento se configura ao reacutes de nossas opiniotildees pois ldquoa opiniatildeo pensa mal ela natildeo pensa ela traduz necessidades em conhecimentos Designando os objetos pela utilidade ela se proiacutebe de os conhecer Natildeo se pode fundar nada sobre a opiniatildeo temos antes de tudo que a destruir Ela eacute o primeiro obstaacuteculo a superarrdquo (Bachelard 1971 p 14) Um olhar filosoacutefico ao texto eacute sobretudo pertinente se acei-tarmos que a filosofia pode se referendar como remeacutedio agrave opiniatildeo pois da opiniatildeo agrave asneira haacute um pequeno passo um breve resvalar Opiniatildeo

e asneira entreteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima conivente e profunda tambeacutem como bem dizia Gilles Deleuze em seu Abeacuteceacutedaire ldquoa filosofia impede a asneira de ser tatildeo grande como poderia ser se natildeo houvesse a filosofiardquo (in Boutang 1988) Eis um argumento de peso

Portanto estes enviesamentos epistemoloacutegicos natildeo satildeo proacuteprios so-mente agraves Mil e uma noites bem ao contraacuterio Tal constataccedilatildeo em torno da obra literaacuteria ilustra uma problemaacutetica bem mais ampla proacutepria ao orientalismo Edward Saiumld teoacuterico da literatura e figura importante dos estudos poacutes-coloniais cuja pena nos deu Orientalisme lrsquoOrient creacutee par lrsquoOccident funda esta corrente a partir da concepccedilatildeo do Oriente como objeto de uma criaccedilatildeo ldquoO Oriente como uma criaccedilatildeo do Ocidente seu duplo seu contraacuterio a encarnaccedilatildeo dos seus medos e de seu sentimento de superioridade a um soacute tempo a carne de um corpo do qual aspiraria a ser o espiacuteritordquo (Saiumld 1980 p 23)

Agrave luz desta citaccedilatildeo natildeo podemos deixar de repensar os quadros dos trecircs ceacutelebres Eugegravenes ndash Delacroix Girardet e Fromentin ndash ou ainda a inspiraccedilatildeo que atravessa as obras picturais do brasileiro Oscar Pereira da Silva Nelas vemos se materializar esta carne certamente oriental que traz ao contraacuterio e por traacutes dessas personagens figuradas um es-piacuterito fundamentalmente ocidental tudo participa dessa constataccedilatildeo as posturas as cenas e a distribuiccedilatildeo dos papeis Mas a grande contri-buiccedilatildeo de Saiumld continua na re-inscriccedilatildeo destes liames como construtos epistemologicamente falando A literatura a arte e mais largamente a esteacutetica no sentido de partage du sensible como a nomeia Jacques Ranciegravere (2000) se tornam reveladores da relaccedilatildeo complexa que rege esta geografia de um imaginaacuterio proacuteprio agrave oposiccedilatildeo Oriente-Ocidente

Pois eacute necessaacuterio admitir que o orientalismo natildeo se limita somen-te a uma corrente esteacutetica nem mesmo artiacutestica ou literaacuteria mas a ldquoum cacircmbio dinacircmico entre autores individuais e vastos empreendimentos poliacuteticos formados pelos impeacuterios britacircnico francecircs e americano sobre o territoacuterio intelectual e imaginaacuteriordquo (Saiumld 1980 p 27) Dito de outra for-ma as obras e produccedilotildees esteacuteticas do orientalismo vatildeo a par com projetos poliacuteticos e geopoliacuteticos proacuteprios ao colonialismo Intelectual e imaginaacuterio eis certamente o coraccedilatildeo da confrontaccedilatildeo que poderia se prolongar em Razatildeo e Emoccedilatildeo racionalidade e misticismo Estas oposiccedilotildees natildeo conti-nuam menos ideoloacutegicas como nos indica Jacques Derrida (1967) Jaacute que inscritas no prolongamento da dicotomia Oriente-Ocidente e agrave imagem

do exemplo Carne-Espiacuterito evocada anteriormente estas oposiccedilotildees teste-munham um limite da histoacuteria do pensamento que consistiu em conceber o mundo como um sistema de oposiccedilatildeo a declinar ao infinito em que um dos elementos eacute sempre pensado como um ldquoparasitardquo um ldquoacidenterdquo um ldquoexcrementordquo (Derrida 1967 p 415)

Este movimento pendular entre poetizaccedilatildeo e desilusatildeo se ilustra entre os escritores franceses que realizaram a experiecircncia concreta do Oriente Pensemos na decepccedilatildeo de um Chateaubriand que escrevia em descobrindo a Alexandria ldquoAlexandria me pareceu o lugar mais triste e desolado da terrardquo (1969 p 63) Ele diraacute de Jerusaleacutem

A paisagem ao redor da cidade eacute medonha quanta desolaccedilatildeo e quanta mi-seacuteria Nesta pilha de escombros que chamam uma cidade a gente do paiacutes se deu ao prazer de dar nomes de ruas a passagens desertas As casas parecem presiacutedios ou sepulcros Agrave vista destas casas de pedras nos perguntamos se natildeo constituem monumentos confusos de um cemiteacuterio no meio do deserto Entre na cidade nada vos consolaraacute da tristeza exterior voacutes vos perdereis nas pequenas ruas natildeo pavimentadas que sobem e descem sobre um solo desigual e voacutes andareis entre ondas de poeira ou entre pedras que rolam (Chateaubriand 1969 p 87)

Estamos bem longe do Oriente sonhado e os golpes da realidade pa-recem dolorosos Da mesma forma eacute faacutecil pensar que Jerusaleacutem cidade sagrada por excelecircncia ilustra este espiacuterito ocidental dentro de uma car-ne oriental elevada agrave escala de uma cidade Mais que em outro lugar o imaginaacuterio interfere com o intelectual ao ponto de poder distinguir no orientalismo uma forma desviada de cruzada esteacutetica onde o territoacuterio cobiccedilado escapa sempre em meio a todas as brechas a todas as incursotildees

Mas eacute talvez Flaubert que se demarca mais deste grupo de escritores viajantes ele que numa carta escrita a sua matildee revela uma decepccedilatildeo toda paradoxal que busca o autecircntico passando pelo crivo do imaginaacuterio ldquoEacute no Cairo que o Oriente comeccedila Alexandria eacute muito mesclada de euro-peus para que a cor local seja bem purardquo (1973 p 182) Notemos aqui como desta frase curta emana uma tensatildeo fundamental e proacutepria do oci-dente colonial que opotildee autenticidade e alteridade Quanto agrave Jerusaleacutem sua decepccedilatildeo soacute cresceria Em outra correspondecircncia Flaubert indica

Jerusaleacutem eacute uma vala cercada por muralhas Tudo aiacute apodrece Os ca-chorros mortos nas ruas as religiotildees nas igrejas Haacute muita quantidade de

excremento e ruiacutenas O Santo Sepulcro eacute uma aglomeraccedilatildeo em meio a todas as maldiccedilotildees possiacuteveis Num pequeno espaccedilo haacute uma igreja armecircnia uma grega uma latina e uma copta Tudo isso se injuriando se maldizendo do fundo da alma e calccedilando o vizinho a propoacutesito de candelabros tapetes e quadros ndash que quadros (Flaubert 1973 p 227)

Uma cidade caoticamente ldquosantardquo ao menos na aparecircncia onde o odor da morte nos pega pela garganta Onde estatildeo os perfumes do Oriente neste cenaacuterio meio fuacutenebre meio maldito Este Oriente que deveria revitalizar o ldquocorpordquo entorpecido do Ocidente parece deslizar agraves avessas da realidade em direccedilatildeo a um imaginaacuterio que de fato natildeo mais existe Geacuterard de Nerval escreve em 1867 depois de sua viagem de 1843

O Egito eacute uma vasta tumba eacute a impressatildeo que me passou ao aportar nesta praia de Alexandria que com suas ruiacutenas e seus montiacuteculos oferece aos olhos tuacutemulos espalhados sobre uma terra de cinzas [] Eu teria amado mais as lembranccedilas da antiguidade grega mas tudo isso foi destruiacutedo arra-sado e se tornou irreconheciacutevel (Nerval 1980 p 83)

Satildeo provavelmente os tuacutemulos de suas proacuteprias ilusotildees que expli-cam esta persistecircncia de uma apreciaccedilatildeo lsquomoacuterbidarsquo do Oriente de uma funesta decepccedilatildeo Tais citaccedilotildees satildeo esclarecedoras por nos fazerem ob-servar a maneira como intelectual e imaginaacuterio se imbricam quando se trata do Oriente Tambeacutem cremos que para noacutes estudiosos de literatu-ra eacute importante apreender o Oriente assumindo esta tensatildeo constituti-va Eacute soacute se perguntando fundamentalmente sobre este paradoxo que faz da imagem do Oriente a realizaccedilatildeo muitas vezes mais ldquofictiacuteciardquo de uma busca intelectual e imaginaacuteria que pode se esboccedilar as premissas de uma apreciaccedilatildeo mais justa do Oriente Ter em mente que este imaginaacuterio eacute um dos elementos constitutivos de nossa episteme integrando suas dimensotildees religiosa e miacutestica satildeo ambas posturas que nos permitem natildeo perder de vista os desvios de nossa apreensatildeo Pois olhar o Oriente caminha a par de uma vontade de dobrar o mundo numa ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo para retomar a expressatildeo de Martine Geronimi (2006)

Na admiraccedilatildeo e no elogio ldquoda suntuosidade das cores e dos perfu-mes do Orienterdquo clichecirc tiacutepico se faz necessaacuterio perceber os murmuacuterios de uma nostalgia profunda aquela dos valores perdidos da Europa Em sua obra Orient-Occident La fracture imaginaire Georges Corm (2005) nos lembra que ldquoa imagem de uma Europa que perdeu sua alma em

busca do progresso material vai comeccedilar a se cristalizar A idealizaccedilatildeo do Oriente de sua miacutestica de seu senso de honra de seu desprezo su-posto aos valores materiais vai se estabelecerrdquo Mas paradoxalmente a superioridade ocidental colonial ressurge continuamente Eacute de certa maneira um fenocircmeno que se encontra algures entre os exilados por exemplo nesta idealizaccedilatildeo perpeacutetua do paiacutes de origem Como fascina-ccedilatildeo assimeacutetrica feita de admiraccedilatildeo e recusa o orientalismo soacute podia coincidir sob mais de um aspecto agrave empresa colonial aquela mesma que se apropriava ldquocivilizandordquo

2 Do universal vindo de algures as Mil e uma noites em partilha

Mas esta ldquoidealizaccedilatildeo poeacuteticardquo natildeo tem soacute desvantagens Ela parece dar mesmo que de maneira meio desviada creacutedito ao Oriente Apesar de todas as duacutevidas que levanta atualmente a humanidade sobre o mun-do aacuterabe sobre esta ferida narciacutesica que ele arrasta durante seacuteculos ferida de uma grande civilizaccedilatildeo passada que desaprendeu a se reno-var as Mil e uma noites ao lado da espiritualidade sufi soube guardar os favores do Ocidente E aqui temos outro dos grandes paradoxos do Oriente se invertermos o sentido da relaccedilatildeo em sua ligaccedilatildeo consigo proacuteprio e com o Ocidente Pois parece que o divino que trouxe um eacutelan civilizador importante agraves sociedades araacutebico-mulccedilumanas tornou-se um fardo deixando mais atuais estas linhas do filoacutesofo andaluz Averroacuteis (1126-1198) conhecido no mundo aacuterabe como Ibn el Rushd

Natildeo existe nenhuma contradiccedilatildeo entre verdade religiosa e verdade racional pois todas as duas vecircm de Deus qualquer um que interditar os fieacuteis dotados de razatildeo a iniciaccedilatildeo aos escritos filosoacuteficos da Antiguidade os teraacute distan-ciado de uma porta a qual o Islatilde chama e de um meio de permitir melhor conhecer a Deus (2000 p 99)

Desde o seacuteculo XII portanto o divoacutercio entre espiritualidade e pen-samento entre a doutrina e as artes entre a crenccedila e o saber soacute se dilatou no Oriente As diferentes tentativas para redourar o brasatildeo do mundo aacuterabe se tornaram letra morta se o julgarmos por sua atualidade As mais recentes sendo aquelas da Nahda literalmente o renascimento empresa cujas figuras mais conhecidas satildeo Tahtacircwi Jamacircl al-Dicircn al-Afghacircni ou

ainda Muhammad Abduh (cf Issa 2008) Estes uacuteltimos tiveram o meacute-rito de tentar reformar o mundo aacuterabe se negando em se inscrever num orientalismo caricatural No que ele comporta de caricatura o orienta-lismo se apresenta como a resultante de uma empresa de elaboraccedilatildeo de fronteiras tanto a fascinaccedilatildeo do Oriente se fundamenta tambeacutem numa ideologia da diferenciaccedilatildeo a basear-se principalmente sobre a superiori-dade ocidental e indo-europeacuteia A polecircmica que opocircs violentamente Al-Afghacircni a Renan ilustra paradigmaticamente esta confusatildeo dos registros da eacutepoca oitocentista (cf Lorcerie 2007 p 509-536)

E portanto se o mundo de hoje como o de ontem adula esta li-teratura deve se basear em algumas razotildees Eacute na viagem e na recepccedilatildeo que as Mil e uma noites conquistaram as suas credenciais E se podemos por um lado criticar um apelo exotista sobre o texto por outro a obra se enriqueceu do ponto de vista aacuterabe por conta deste interesse ocidental A histoacuteria nos ensina que a circulaccedilatildeo dos textos das representaccedilotildees e das ideias participa da promoccedilatildeo destas ao tempo que lhe recorta de sua historicidade do fato de ldquoa neutralizaccedilatildeo do contexto histoacuterico que resul-ta da circulaccedilatildeo internacional dos textos e do esquecimento correlativo das condiccedilotildees histoacutericas de origemrdquo (Bourdieu Wacquant 1998 p 17) Eacute necessaacuterio lembrar que as Mil e uma noites eram consideradas como pertencentes a uma literatura secundaacuteria e eacute de maneira paradoxal ao prisma do Ocidente que a obra se valorou E se ela eacute apresentada como a obra que ilustra a sensibilidade e o imaginaacuterio do mundo aacuterabe por ex-celecircncia continua pertencendo a um patrimocircnio de literatura lsquoprofanarsquo tambeacutem correntemente chamado no mundo aacuterabe de ldquomedianardquo ou seja intermediaacuteria entre as obras-primas literaacuterias e as obras mais populares a exemplo dos contos orais Inicialmente os contos que circulavam no mundo aacuterabe natildeo continham ainda os acreacutescimos trazidos por Antoine Galland que eram de fato contos siacuterios relatados por informantes anocirc-nimos como eacute exemplo a histoacuteria de Ali Baba et les quarante voleurs ou ainda Aladin Entatildeo foi necessaacuterio posteriormente traduzir do francecircs ao aacuterabe estes acreacutescimos para disponibilizaccedilatildeo dos leitores aacuterabes Da mesma maneira sabemos que a histoacuteria de Sherazade eacute de origem india-na e a composiccedilatildeo das Mil e uma noites da forma como as conhecemos hoje corresponde mais ou menos segundo as versotildees agravequela em circu-laccedilatildeo durante o seacuteculo XV e natildeo durante o seacuteculo X

Este interesse persistente pelas Mil e uma noites se exprime igual-mente na Franccedila como testemunha a mais recente exposiccedilatildeo organiza-da pelo Institut du Monde Arabe de Paris O cataacutelogo da exposiccedilatildeo ape-sar de uma vontade perceptiacutevel de superar as representaccedilotildees comuns convoca os argumentos habituais em favor da obra extraordinaire sur-prenant faisant le lien entre lrsquoOrient et lrsquoOccident Universelle ou ainda veacutehicule de mythologies et des croyances propres agrave lrsquoOrient Aqui por-tanto seremos tentados a dizer veiacuteculo das mitologias e crenccedilas igual-mente proacuteprias ao Ocidente Pois de fato esta obra que parece se erigir numa lsquoliteratura de reconciliaccedilatildeorsquo foi escolhida como tal por uma soacute das partes segundo criteacuterios esteacuteticos certo colorido bem distantes do que poderiam ser os gostos orientais

Portanto as Mil e uma noites satildeo continuamente objeto de uma redescoberta como eacute testemunha mesmo o assunto deste evento (2ordm CLIF-PE) Por quecirc Porque esse texto eacute de certa maneira viacutetima de sua celebridade um dos maiores da literatura mundial e eacute preciso reconhececirc-lo resguardando a problemaacutetica de sua inscriccedilatildeo na heranccedila orientalista como um texto fundador natildeo sendo o uacutenico ndash pois haacute muitos outros a Eneida de Virgiacutelio a Epopeia de Gilgamesh Nassr Eddin Juhah este bufatildeo sufi o Kalevala a Iliacuteada e a Odisseia o Ramayana e o Mahabarata E cre-mos ainda que esta dimensatildeo universal emancipada dos particularismos do Oriente e do Ocidente revela todo o interesse do texto

3 As Mil e uma noites entre a forccedila moralizadora e a tentaccedilatildeo desmoralizadora

Mas o que satildeo ao final as Mil e uma noites Onde buscar sua uni-dade Seria difiacutecil definir claramente o que satildeo elas tanto difere sua tonalidade de um texto a outro Das narrativas de viagem agraves pequenas histoacuterias lendaacuterias passando por contos em que se sobressaem aspec-tos fesceninos elas representam uma soma de gecircneros diferentes sob um quadro que sumariza um conjunto sobretudo disparatado epopeia conto histoacuteria blagues faacutebulas proveacuterbios etc As primeiras leituras dos contos das Mil e uma noites no seacuteculo X as classificavam entre os con-tos morais do gecircnero mediano destinados agrave populaccedilatildeo geral inferiores a outras obras a exemplo de Kalicircla wa Dimna que pertenciam ao gecircnero

do espelho de priacutencipes destinado agrave educaccedilatildeo moral e poliacutetica dos per-sonagens da alta nobreza sobre os passos do Roman drsquoAlexandre 23

Este paralelo entre Kalicircla wa Dimna eacute pertinente pois nela se en-contra tambeacutem um contador o conselheiro e filoacutesofo Bilpaiuml que ilustra as consequecircncias de um comportamento numa histoacuteria cujos prota-gonistas satildeo animais especialmente os chacais que datildeo nome ao livro Estas histoacuterias acabam numa liccedilatildeo moral e natildeo deixaram de inspirar moralistas como La Fontaine no seacuteculo XVII Todavia pensar as Mil e uma noites como um texto unicamente de educaccedilatildeo moral parece difiacute-cil jaacute que nem todas as histoacuterias se concluem numa proposta de mora-lismo mesmo que olhando amiuacutede se constate rapidamente que o bem sempre triunfa do mal e mesmo quando o fraco perde no momento em que o mal parece triunfar

Por conseguinte um contorno etimoloacutegico fortalece a pertinecircncia desta perspectiva A literatura eacute chamada Adab em aacuterabe termo que designa o prolongamento da educaccedilatildeo no sentido de dececircncia Haacute uma continuidade entre literatura e educaccedilatildeo estebelecida em torno de uma ideia de conveniecircncia do que eacute decente e conveniente A pessoa edu-cada eacute qualificada de Mutaadab ou seja aquele que tem Adab A par-tir disso se desenha claramente aqui o ideal filosoacutefico do Antropos que cabe ao homem letrado o homem conveniente eacute aquele que harmoniza seu ser com o mundo e os outros Ele alcanccedila por sua dececircncia educa-ccedilatildeo e cultura literaacuteria uma forma de harmonizaccedilatildeo do exterior com o interior e vice-versa

Esta virtude educativa das letras e da cultura literaacuteria se encontra reivindicada em outras obras E isso pode ser associado mais largamen-te a uma das caracteriacutesticas do conto o que explica tambeacutem a atraccedilatildeo por esta forma no seacuteculo XIX Pensamos em Pierre Capelle que em seu Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature cujo subtiacutetulo expliacutecito nos diz Choix de penseacutees ingeacutenieuses et sublimes de dissertations et de deacutefinitions extraites des plus ceacutelegravebres moralistes poegravetes et savants pour

23 A obra Kalila wa Dimma era destinada agrave educaccedilatildeo moral e agrave iniciaccedilatildeo poliacutetica da no-breza Cada capiacutetulo eacute aberto com um diaacutelogo entre o rei Dablishim e seu conselheiro-filoacutesofo Bilpai Tais perguntas discutem essencialmente as consequecircncias de um com-portamento que em seguida eacute ilustrado atraveacutes de uma histoacuteria com dois protagonistas os chacais Kalila e Dimna A influecircncia desta obra foi grande tanto nas Noites como sobre os livros de Shhname de Firdusi do miacutestico Rumi e tambeacutem dos moralistas

servir de deacutelassement aux eacutetudes former le cœur orner lrsquoesprit et nourrir la meacutemoire des jeunes gens Nada mais Pierre Capelle nos diz

De todos os gecircneros de poesia o conto eacute sem contradiccedilotildees aquele que mais se aproxima da natureza ele eacute a expressatildeo ingecircnua ele deve tomar de empreacutestimo todos os ornamentos [] Os contos podem tambeacutem ter os seus tanto eles pin-tam nossos ridiacuteculos com o fim de nos corrigir tal eacute o objeto dos contos morais que atacam nossos erros com o intuito de nos curar ndash eacute o desejo dos contos filosoacuteficos [] Nos perguntamos que paiacutes foi o berccedilo dos contos uns dizem que teria sido a Greacutecia dando como provas as faacutebulas milesianas e as Noites Aacuteticas outros nomeiam a Araacutebia citando como testemunhos os contos aacuterabes outros tambeacutem os fazem vir da Peacutersia e reclamam em favor de sua opiniatildeo as Mil e uma noites Erudiccedilatildeo mal aplicada os contos nasceram deles mesmos sobretu-do onde existiram homens ociosos (1824 p 3-4)

Mas as Mil e uma noites natildeo satildeo simples contos eacute a literatura de to-dos os possiacuteveis que se encontra aiacute reunida Tambeacutem esta perspectiva de re-inscriccedilatildeo do texto em sua finalidade educativa e moral se revela heu-riacutestica Eacute necessaacuterio compreender as Noites como uma criaccedilatildeo literaacuteria que evolui no seio de uma tensatildeo constitutiva entre uma forccedila moraliza-dora do texto e uma tentaccedilatildeo desmoralizadora tantas vezes explicitada Esta hipoacutetese permite retomar todo o aporte ldquoeducativordquo da obra pois com efeito deste ponto de vista haacute um duplo movimento paradoxal que potildee a seu serviccedilo o fantaacutestico O fantaacutestico se torna o instrumento que permite a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora numa obra que serve por fim a finalidades altamente morais

4 O fantaacutestico ou a expressatildeo de uma tentaccedilatildeo desmoralizadora

Falta-nos definir delimitar o fantaacutestico Para isso a convocaccedilatildeo de Tzvetan Todorov (1970) se tornou um pedaacutegio conceitual uma passa-gem quase inevitaacutevel Vamos apresentar esta referecircncia para depois nos distanciarmos para um importante reajuste que consistiraacute inicialmente em apreender o fantaacutestico sem cair num dos riscos acima delimitados especialmente o do anacronismo

De fato hoje num mundo que eacute o nosso e que natildeo comporta em absoluto djins lacircmpadas maacutegicas nem tapetes voadores se formos expostos a percebecirc-los teremos duas alternativas ou se trata de uma

ilusatildeo dos sentidos produto da imaginaccedilatildeo e as leis do mundo continu-am intactas ou o evento aconteceu realmente como parte integrante da realidade mas esta realidade nos revela paradoxalmente leis desconhe-cidas Pensemos por exemplo na ilha flutuante de Simbad Ela eacute ilusoacute-ria ou existe realmente Segundo Todorov o fantaacutestico ocupa o espaccedilo da incerteza desde que escolhamos uma ou outra dessas possibilidades para entrar em gecircneros vizinhos o estranho ou o maravilhoso

O fantaacutestico segundo Todorov eacute assim esta hesitaccedilatildeo que expe-rimenta um sujeito em relaccedilatildeo agraves leis naturais frente a um evento de aparecircncia sobrenatural Pertence a este gecircnero toda obra fundada ldquosobre uma hesitaccedilatildeo do leitor um leitor que se identifica agrave personagem prin-cipal quanto agrave natureza de um evento estranho Esta hesitaccedilatildeo pode se resolver seja ao se admitir que o evento pertence agrave realidade seja porque se decide que eacute fruto da imaginaccedilatildeo ou o resultado de uma ilusatildeo dito de outra maneira pode-se decidir que o evento aconteceu ou natildeordquo (p 165) Estamos frente a um verdadeiro trabalho conceitual jaacute que (a) a definiccedilatildeo discrimina o real e (b) delimita claramente sua descriccedilatildeo tendo-se em vista ainda o esclarecimento das condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do gecircnero (o leitor deve acreditar na concretude dos fatos e na realidade dos personagens a hesitaccedilatildeo tambeacutem deve ser vivenciada por um dos personagens e enfim o leitor tem que recusar interpretaccedilotildees alegoacutericas e poeacuteticas acerca dos acontecimentos) Noacutes reteremos aqui uma dimen-satildeo subversiva que potildee o real e a razatildeo em suspensatildeo

As Mil e uma noites estatildeo situadas numa encruzilhada entre o ma-ravilhoso o estranho e o fantaacutestico De fato se tentarmos superar os dois obstaacuteculos do etnocentrismo e do anacronismo temos que admitir que a concepccedilatildeo do fantaacutestico contemporacircnea natildeo eacute a mesma da eacutepoca e das regiotildees de produccedilatildeo dos textos que compotildeem as Noites Por outro lado ainda hoje eacute admitido pela maioria das pessoas de expressatildeo muccedilul-mana que Deus criou de uma parte homens e de outra djins Os djins satildeo assim realidades ontologicamente subjetivas mas julgados como intriacutensecos ao mundo (cf Toufy 1972 pp 154-213) Esta anaacutelise se apoacuteia sobre os numerosos exemplos no texto Tomemos um caso seme-lhante para ilustrar esta tensatildeo anacrocircnica no episoacutedio da ilha flutuante de Simbad Na eacutepoca este tipo de ilha eacute possibilitada por uma crenccedila partilhada ou seja apoiada pela realidade noacutes encontramos descriccedilotildees nos bestiaacuterios medievais de lugares como este O episoacutedio de Simbad eacute

fantaacutestico natildeo pela ilha em si mas pelas experiecircncias que ocorrem nela Da mesma forma as exegeses do Ocidente segundo a ciecircncia da eacutepoca descrevem a existecircncia de uma ilha flutuante Mas nunca se trata de um fantaacutestico puro ou austero que se daacute a ver no texto e isso pode ser repercutido como um dos traccedilos caracteriacutesticos das Mil e uma noites uma obra que sabe associar o fantaacutestico e o bom senso de uma parte o maravilhoso e o humor de outra

5 Quando o inuacutetil eacute fantaacutestico

Na ordem de nosso cotidiano o que nos liga agrave existecircncia agrave vida satildeo as coisas ldquoditasrdquo uacuteteis O que relatamos transmitimos para a preserva-ccedilatildeo da vida natildeo satildeo a priori pequenas histoacuterias Mas aqui o que eacute rela-tado nas Noites satildeo coisas que pertencem ao passional ao divertimento e ao fantaacutestico O grande paradoxo eacute que satildeo coisas fuacuteteis que valem uma vida Aqui reside uma articulaccedilatildeo importante e um entrecruza-mento do fantaacutestico com a educaccedilatildeo

Pois para muitos de noacutes o que nos move eacute uma certa razatildeo instru-mental Muitos poderiam se perguntar sobre a utilidade de um tal congres-so para falar ainda mais de literatura fantaacutestica Eacute preciso para alimentar aqui nosso percurso reflexivo trazer dois elementos capazes de esclare-cer esta problemaacutetica Inicialmente uma anedota relatada por Philippe Meirieu numa palestra consagrada agraves praacuteticas artiacutesticas no ensino puacutebli-co (CFMI 2000) Ele cita um episoacutedio histoacuterico descoberto por Patrick Mendelsohn nos arquivos da Universidade de Berna ndash que natildeo tem nada a ver com as Mil e uma noites Estamos entre 1940 e 1941 num inverno particularmente rigoroso na fronteira entre a Suiacuteccedila e a Alemanha Uma patrulha de soldados suiacuteccedilos estaacute perdida nesta fronteira no frio na neve e em meio agrave tempestade Natildeo haacute comida e os celulares ainda natildeo tinham sido inventados Na verdade pressentem com ansiedade a presenccedila da morte A situaccedilatildeo eacute traacutegica ateacute que um dos soldados acha nos bolsos um pedaccedilo de mapa e graccedilas a ele reencontram o caminho e retornam ao quartel Ali satildeo interrogados e dizem como conseguiram sair da situaccedilatildeo graccedilas agravequele pedaccedilo de mapa e como suas vidas estavam por um fio Ao se examinar atentamente o pedaccedilo haacute a descoberta se tratava de um mapa de outra cadeia montanhosa distante os Pirineus

Continuando a ilustrar este paradoxo penso ainda nas pinturas ru-pestres do Brejo da Madre de Deus e laacute o que se acha agarrado ao cume das pedras Pinturas rupestres Assim o que nossos questionamentos captam eacute o que explica que pessoas que tinham de enfrentar muitas difi-culdades frio fome sede ausecircncia de um conforto que qualificariacuteamos de miacutenimo hoje pudessem encontrar tempo e igualmente inspiraccedilatildeo ne-cessaacuterios para perder tempo em pintar natildeo os planos da futura cidade nem um recenseamento mas cenas da vida altamente estetizadas

Para compreender isto temos de lembrar das primeiras paacuteginas criadas pela pena de Leacutevi-Strauss em sua ceacutelebre Introduction agrave la penseacutee sauvage em que se pergunta sobre as razotildees pelas quais os iacuten-dios deixavam frutas e plantas uacuteteis preferindo plantas nauseabundas chegando agrave seguinte conclusatildeo ldquoas espeacutecies animais e vegetais natildeo satildeo conhecidas tanto por sua utilidade elas satildeo decretadas uacuteteis ou interes-santes porque satildeo de antematildeo conhecidasrdquo (Leacutevi-Strauss 1962 p 21) O que nos faz viver o que nos determina natildeo eacute contrariamente ao que cremos a eficaacutecia imediata Eacute a ordem simboacutelica pela qual inscrevemos os objetos comportamentos e situaccedilotildees que vivemos

Uma das explicaccedilotildees que podemos trazer em relaccedilatildeo ao grande su-cesso da figura de Sherazade reside no fato de que para salvar sua vida como ela proacutepria afirma relata coisas espantosas e surpreendentes Que coisas As que natildeo se destinam agrave nossa razatildeo mas agraves paixotildees e afetos Histoacuterias fantaacutesticas que ligam Sherazade agrave vida histoacuterias inuacuteteis eacute ne-cessaacuterio guardar no espiacuterito para perceber aqui uma articulaccedilatildeo muitas vezes insuspeita entre as Mil e uma noites e a educaccedilatildeo Esta tomada de consciecircncia materializa como o uacutetil se cindiu do fantaacutestico na educa-ccedilatildeo pensemos no que fizemos a geraccedilotildees de crianccedilas espontaneamente apaixonadas por mapas de tesouros o sonho de ilhas misteriosas conti-nentes desconhecidos e cidades submersas transformadas em geraccedilotildees que odeiam a Geografia

Sherazade cuja vida eacute ameccedilada natildeo encontra outra estrateacutegia que a de arriscaacute-la com coisas divertidas ela potildee sua vida ao risco da compo-siccedilatildeo literaacuteria A figura de Sherazade se constitui assim em uma cativa paradoxalmente ldquonocircmaderdquo em sentido deleuziano Eacute aquela que passa o tempo a fugir dos ldquoagenciamentos territorializadosrdquo Natildeo nos conta uma histoacuteria natildeo realiza uma viagem uacutenica Natildeo vai de um soacute iniacutecio a um soacute fim Sherazade ilustra um caminho em que os pontos satildeo sempre

submetidos ao proacuteprio trajeto E pode ser neste sentido que Sherazade conforma a desterritorializaccedilatildeo por excelecircncia a de uma nocircmade que cativa natildeo para de movimentar as fronteiras Ela navega pela vista mos-trando ao mesmo tempo as qualidades de uma inteligecircncia que evo-lui numa multiplicidade qualitativa nos lembrando que ldquoa navegaccedilatildeo nocircmade empiacuterica e complexa faz intervir os ventos barulhos cores e sons do marrdquo (Deleuze Guattari 1980 p 599) Noacutes sabemos tambeacutem que o que verdadeiramente seduziu desde o seacuteculo XIX os autores e criadores dos diferentes campos artiacutesticos foi certamente a metaacutefora do autor frente o imperativo da criaccedilatildeo O escritor o compositor o autor eacute aquele que deve encontrar diariamente um tema uma histoacuteria para viver e para sobreviver Dito de outra forma o inuacutetil vale igualmente a vida do autor

6 Da tentaccedilatildeo desmoralizadora

Se expressa nas Mil e uma noites uma tentaccedilatildeo desmoralizadora de superar as barreiras e delimitaccedilotildees estabelecidas pela sociedade igualmente no registro da hierarquia social Pensemos na 9ordf noite por exemplo onde vemos se realizar o impensaacutevel numa sociedade em que o estatuto social eacute fortemente delimitado O que se trata aqui eacute o cotidia-no aspectos que poderemos classificar de lsquoordinaacuteriosrsquo Estamos em um mercado aacuterabe (souk) qualquer pessoa hoje ainda pode imaginar uma atmosfera tiacutepica se identificando com o carregador O que nos faz mer-gulhar nas Noites Qual a mensagem aqui O livro sob muitos aspectos nos fala de coisas cotidianas

1) elas reconfiguram o cotidiano jogando com as barreiras morais e sociais estabelecidas superando as lsquolimitaccedilotildeesrsquo do real a ficccedilatildeo nos faz sair de noacutes mesmos e de nossas vidas

2) Mas as Noites nos dizem tambeacutem que precisamos prestar aten-ccedilatildeo a este cotidiano de aparecircncia comum Eacute necessaacuteria atenccedilatildeo agraves coisas ordinaacuterias pode ser que se encontre nelas coisas extraordinaacuterias Este eacute um fato particularmente moderno para um texto tatildeo antigo Mas isso natildeo se limita especificamente agraves Mil e uma noites o mesmo pode ser encontrado na literatura dita de maneira geral como lsquomedianarsquo

Pois as pessoas simples tecircm um papel consideraacutevel nas Noites pen-samos tambeacutem no personagem do empregado do matadouro de Bagdaacute arpoado por uma adoraacutevel jovem que decidiu jaacute que era traiacuteda pelo marido dormir com o mais sujo e abjeto homem da cidade A obra cria uma sociedade sonhada cujas fronteiras indevassaacuteveis satildeo constan-temente perpassadas uma sociedade em que escravos africanos fazem amor com lindas princesas sultanas onde carregadores satildeo seduzidos por jovens distintas e empregados de matadouros copulam com lindas mulheres Assim a tentaccedilatildeo desmoralizadora se exprime como uma fuga uma improvisaccedilatildeo literaacuteria entre a sentenccedila religiosa de abertura ldquoem nome de Deus o todo misericordioso o muito misericordiosordquo e a conclusatildeo das narrativas curtas sempre moral E Deus estaacute aqui sempre posto como testemunha e invocado para nos lembrar talvez que o di-vino se materializa tanto no excesso de moralidade quanto na tentaccedilatildeo desmoralizadora que o rosto de Deus se encontra tambeacutem no deboche na decadecircncia e na orgia Esta ideia eacute ainda mais fortalecida quando se restitui as experiecircncias conduzidas pelos Majdhucircb literalmente os ldquoaspirados em Deusrdquo tambeacutem chamados repreendidos que procuravam o seu Senhor bem amado dentro de experiecircncias que superavam todos os quadros morais estabelecidos (cf Bentounegraves Solt 1996 p 154-158) Repensemos neste quarteto de Omar Khayyam

Cada gosto de vinho que o Saki derramaNegligentemente para apagar os fogos de penaEm qualquer coraccedilatildeo doloroso Louvaccedilotildees agravequele que ofereceUm tal remeacutedio para consolo de sua melancolia (2005 p 69)

Interpretamos sobretudo este vinho como uma metaacutefora miacutestica ou como praacutetica voluntaacuteria de embriaguez tendo em vista uma aproxima-ccedilatildeo de Deus O ecircxtase estaacute assim natildeo muito longe da surpresa do des-lumbramento e espanto Jogar com uma ordem estabelecida que eacute res-peitada interiorizada e as Mil e uma maneiras de transgredi-las pois a transgressatildeo eacute um dos ingredientes essenciais ao drama e um dos aspec-tos que mais datildeo interesse ao texto Ela natildeo eacute proacutepria agraves Noites tambeacutem estaacute presente no romance de Ariosto no qual a traiccedilatildeo se daacute com um anatildeo disforme O fantaacutestico e o sobrenatural satildeo caminhos para a supe-raccedilatildeo do real o transgredir a lei tais funccedilotildees se aproximando daquelas apontadas por Torodov Noacutes podemos ver no fantaacutestico na forma como

ele se expressa nas Noites uma linha de fuga no sentido deleuziano do termo que permite escapar no espaccedilo de um instante literaacuterio agrave censu-ra se jogando sutilmente contra as interdiccedilotildees das autoridades

7 Agrave guisa de conclusatildeo a submissatildeo moralizadora ou quando a literatura marcha obediente

De fato ao fim eacute bem a moral que daacute a tocircnica nas Noites e a cons-tante e breve reconquista dos territoacuterios do imaginaacuterio do fantaacutestico do maravilhoso Eacute necessaacuterio repensar continuamente esta literatura como Adab no duplo sentido de educadora e moralizadora De harmonizar o ser com o mundo e os outros Se repensarmos por exemplo Simbad do mar24 que encontra um outro Simbad carregador Aquele conta a este que um dia perdeu sua fortuna e decidiu abandonar tudo para partir apoacutes lembrar-se da sentenccedila do rei Salomatildeo ldquotrecircs coisas satildeo preferiacuteveis a trecircs outras o dia da morte ao dia do nascimento um cachorro vivo a um leatildeo morto e a tumba agrave miseacuteriardquo Eis uma amarga liccedilatildeo de moral ao outro Simbad o simples carregador acabrunhado pela vida e pelo ardor de sua tarefa Uma liccedilatildeo ainda mais amarga se pensarmos no esquema narrativo invariaacutevel ao qual obedecem as aventuras de Simbad do mar ele nasce em meio agrave fortuna para depois perdecirc-la embarca para encon-trar uma tempestade ou uma agressatildeo naufraga e perde todas as suas mercadorias mas a sorte estaacute sempre a seu favor pois ele se arrisca Eacute Simbad do mar que embarca ou o Simbad simples carregador que sonha em fazecirc-lo Natildeo seria uma mensagem agraves pessoas humildes de Bagdaacute sobre a aceitaccedilatildeo de sua sorte e de natildeo se perder a esperanccedila de trabalhar e abraccedilar os riscos ldquoUns tecircm o cansaccedilo por lote e outros o repouso Uns satildeo felizes outros como eu mesmo vocacionados agrave maior pena e ao aviltamentordquo (Bencheikh Miquel 2007 p 354) E poucas paacute-ginas nos bastam para trazer esta liccedilatildeo

Eacute pelas provas que se atinge as honras pois ao se visar o que estaacute muito alto quantas noites sem sonho Deve mergulhar profundamente o que deseja encon-trar peacuterolas e merecer assim o poder e a riqueza Quem sonha a gloacuteria sem mer-gulhar na pena consome a existecircncia a buscar o impossiacutevel (p 356 ndash 539ordf noite)

24 A traduccedilatildeo literal do aacuterabe natildeo faz de Simbad um marinheiro mas um homem do mar no sentido de que ele usa o mar como um comerciante o mar nunca eacute um fim em si

Simbad ilustra se eacute necessaacuteria uma concepccedilatildeo da moral em terras do Islatilde em que a fortuna deve se conjugar com a salvaccedilatildeo a tal pon-to que quando a ilha se movimenta o capitatildeo do barco comeccedila a gri-tar a quem quiser ouvir ldquoabandonem seus bens e salvem suas almas Primeiro suas vidas Esta ilha na qual vocecircs estatildeo natildeo eacute uma ilhardquo (p 357) A ambivalecircncia da ilha entre imagem paradisiacuteaca e simulaccedilatildeo diaboacutelica eacute um motivo antigo Estamos face a uma alegoria a ilha eacute tambeacutem o diabo que simula o paraiacuteso Eacute preciso se referir agraves primei-ras linhas da Icircle deserte et autres textes de Deleuze sobre a persistecircncia desta imagem na literatura das diferenccedilas entre ilha continental e ilha oceacircnica esclarecendo esta geografia imaginaacuteria que tanto se aproxima como se distancia de noacutes mesmos

Os geoacutegrafos dizem que haacute dois tipos de ilhas Eacute uma informaccedilatildeo preciosa para a imaginaccedilatildeo pois se encontra aqui uma confirmaccedilatildeo do que ela sabia de outra parte [] As ilhas continentais satildeo ilhas acidentais ilhas derivadas elas estatildeo separadas do continente nascidas de uma desarticulaccedilatildeo erosatildeo fratura e sobrevivem ao afundamento do que as mantinha As ilhas oceacircnicas satildeo ilhas originaacuterias essenciais de uma parte satildeo constituiacutedas de corais se nos apresen-ta como um verdadeiro organismo de outra surge de erupccedilotildees submarinas trazendo para o ar livre um movimento das profundezas umas emergem lenta-mente outras desaparecem e retornam sem que tenhamos tempo de anexaacute-las [] Essa atraccedilatildeo que o homem tem pelas ilhas retoma este duplo movimento que as produz Sonhar as ilhas com anguacutestia ou alegria pouco importa eacute so-nhar que noacutes nos separamos que jaacute estamos separados longe dos continentes que estamos soacutes e perdidos ndash ou eacute sonhar que reiniciamos a partir do zero que recriamos e recomeccedilamos (Deleuze 2002 p 11)

Enfim eacute preciso entender que os grandes episoacutedios que compotildeem as Mil e uma noites satildeo construiacutedos sobre um modelo elaborado que tecircm em vista finalidades altamente morais Pensamos no tintureiro desonesto da 930ordf noite Este personagem velhaco mentiroso na alma e que nunca se envergonha das vilezas que faz aos outros exige o pagamento antes do trabalho gasta o dinheiro e pede aos clientes que retornem para pegar seus pertences no outro dia em dias consecutivos pretextando o nascimento do filho ou a visita de convidados Depois quando natildeo tem mais argumentos diz que a roupa fora roubada quando estava estendida Se o cliente eacute bom diz um ldquoDeus providenciaraacute a sua substituiccedilatildeordquo se eacute menos influenciaacutevel causa um escacircndalo mas sem obter nada mesmo se queixando ao juiz Pouco a pouco o ruiacutedo se expande em relaccedilatildeo agraves

praacuteticas desonestas do tintureiro atraindo a atenccedilatildeo sobre ele Pouco a pouco vai sendo posto de lado seus negoacutecios declinam e por fim seraacute simultaneamente queimado e afogado Mais que uma liccedilatildeo de moral vinculada aos negoacutecios comerciais vemos aqui como as Noites aspiram a esta liccedilatildeo de conseacutequentialisme demonstrando sequencialmente os efeitos gerados por uma accedilatildeo e a partir dela o valor moral da mesma O fantaacutes-tico eacute ornamento mas igualmente uma fuga salutar diante de um neces-saacuterio retorno a uma realidade que pedia moralidade e Adab

REFEREcircNCIAS

AMIROU Rachid Imaginaire touristique et sociabiliteacute du voyage Paris PUF 1995

BACHELARD Gaston La formation de lrsquoesprit scientifique Paris Vrin 1971

AVERROES LrsquoIslam et la raison Trad Marc Geoffroy Paris Garnier-Flammarion 2000

BERCHET Jean-Claude Le Voyage en Orient anthologie des voyageurs franccedilais au XIXe siegravecle Paris Robert Laffont 1985

BOURDIEU Pierre WACQUANT Loiumlc ldquoSur les ruses de la raison impeacuterialisterdquo in Actes de la recherche en sciences sociales Vol 121-122 mars 1998 (p109-118)

BOUTANG Pierre-Andreacute LrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuze (teacuteleacutefilm documentaire) Paris Arte (1988) 1996

CAILLOIS Roger Au cœur du fantastique Paris Gallimard 1965

CAPELLE Pierre Dictionnaire drsquoeacuteducation morale de science et de litteacuterature (tome 1) Paris Haut-coeur et Gayet Jeune 1824

CFMI - Centre de Formation des Musiciens Intevenants agrave lrsquoEacutecole Actes de colloque La musique un enseignement obligatoire Pourquoi comment Paris Lrsquoharmattan 2000

CHATEAUBRIAND Reneacute Itineacuteraire de Paris agrave Jeacuterusalem Paris Gallimard 1969

CORM Georges Orient-Occident La fracture imaginaire Paris La deacutecouverte 2005

DELEUZE Gilles Mille Plateaux ndash Capitalisme et schizophreacutenie 2 en collaboration avec GUATTARI Felix Paris Les eacuteditions de Minuit 1980

_________ Diffeacuterence et reacutepeacutetition Presses Universitaires de France Paris 1968

DERRIDA Jacques Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Paris Seuil 1967

FOUCAULT Michel Les mots et les choses Paris Gallimard 1990

FLAUBERT Gustave Correspondance 1 1830-1851 Paris Gallimard 1973

__________ Correspondances ressource en ligne de lrsquoUniversiteacute de Rouen URL httpflaubertuniv-rouenfrcorrespondanceconardlettres49bhtml (acessado em 14 de fevereiro de 2013)

__________Voyage en Eacutegypte Paris Grasset 1991

GERONIMI Martine ldquoLrsquoOrient geacuteographie imaginaire les eacutecrivains franccedilais et les villes de deacutesirrdquo in Teacuteoros 25-2 | 2006 13-18

HENTSCH Thierry LrsquoOrient imaginaire Paris Eacuteditions de Minuit 1988

ISSA Hossam ldquoLa Nahda ou le recircve de na nation eacutegyptienne de Muhammad Ali agrave Gamal Abdel Nasserrdquo in EacutegypteMonde arabe Premiegravere seacuterie Mutations [En ligne] mis en ligne le 08 juillet 2008 httpemarevuesorgindex1480html (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

LORCERIE Franccediloise ldquoLrsquoislam comme contre-identification franccedilaise trois momentsrdquo in LrsquoAnneacutee du Maghreb vol II 2007

LOVECRAFT Howard Phillips Eacutepouvante et surnaturel en litteacuterature Paris Bourgeois 1969

MOUSSA Sarga Le Voyage en Eacutegypte Anthologie des voyageurs europeacuteens de Bonaparte agrave lrsquooccupation anglaise Paris Robert Laffont 2004

NERVAL Geacuterard de Voyage en Orient Paris Flammarion 1980

RANCIERE Jacques Le partage du sensible Paris La fabrique 2000

SAIumlD Edward LrsquoOrientalisme LrsquoOrient creacuteeacute par lrsquoOccident Paris Seuil 1980

TOUALBI-THAALIBI Issam ldquoRegards sur la socieacuteteacute musulmane du ixe siegraveclerdquo in Revue europeacuteenne des sciences sociales [En ligne] 50-1 | 2012 mis en ligne le 15 juin 2015 httpressrevuesorg1208 (acessado em 2 de marccedilo de 2013)

TOUFY Fahd ldquoAnges deacutemons et djinns en Islamrdquo in Geacutenies Anges et Deacutemons Paris Seuil 1972 (p 154-213)

Voyage en Orient Exposition de la Bibliothegraveque nationale de France (BNF) [httpexpositionsbnffrveoindexhtm] (acessado nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2013)

A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro(Doutoranda em Linguiacutestica ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Priscilla de Moraes Batista(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Luiacutes Nicolau Fagundes Varela (1871-1845) eacute considerado um dos grandes nomes do Romantismo brasileiro Poeta ambientado pela criacutetica entre a segunda e terceira geraccedilotildees suas obras versavam sobre temas como morte patriotismo religiatildeo e misticismo Em meio a esta produccedilatildeo haacute um conto especial que abarca elementos oniacutericos fantaacutesticos ora em tom gro-tesco ora sublime retomando o mito paradisiacuteaco de um Oriente perdido quase metafiacutesico imagem esteacutetica que percorre a histoacuteria da literatura por-tuguesa desde a eacutepoca dos Descobrimentos (Machado 1983) Encontrado por Batalha (2011) e publicado no livro O fantaacutestico brasileiro contos esque-cidos o conto As Bruxas de Fagundes Varela introduz o leitor do seacuteculo XIX no universo da bruxaria e feiticcedilaria do folclore europeu a partir da his-toacuteria de um grupo de argonautas portugueses que aportados em um cais satildeo surpreendidos pela presenccedila de mulheres velhas e medonhas no conveacutes de seu navio sendo estas referidas posteriormente como feiticeiras Eacute nesse momento que os personagens iniciam uma jornada lendaacuteria culminando com a constataccedilatildeo do capitatildeo da ida dos seus tripulantes agraves Iacutendias

Apoacutes essa breve introduccedilatildeo ao conto passemos agrave discussatildeo dos aspectos linguiacutesticos e literaacuterios responsaacuteveis por construir a diegese Logo no iniacutecio da narrativa deparamo-nos com o diaacutelogo que Fagundes Varela estabelece com importantes obras da literatura fantaacutestica Baseando-nos no dialogismo de Bakhtin (2005) conceito desenvolvi-do em Problemas da poeacutetica de Dostoievski observamos que o autor ao referenciaacute-las explicitamente para a dimensatildeo ficcional da histoacuteria de-marca quais satildeo os discursos esteacuteticos e literaacuterios que vatildeo se constituir como base para a construccedilatildeo do (seu) universo da bruxaria

Na Alemanha e na Escoacutecia elas [as bruxas] andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura e desprendem funeacutereas monodias ao ermo e aos venda-vais Foi assim que Fausto e Mefistoacutefeles as encontraram a subir a montanha na medonha noite dos Walpurgis que Shakespeare as pintou na desvairada trageacutedia do Macbeth que Hoffmann as apresentou a desoras entre a chuva e a tempestade aos lacrimosos olhos da triste amante de Anselmo o louco no conto doentio que denominou o - vaso de ouro eacute assim que Walter Scott coxo as fez aparecer em seus belos romances Na Franccedila poreacutem segundo as tradiccedilotildees coligidas por Emiacutelio Souvestre no ndash Foyer Breton ndash e Paulo Feval em suas lendas elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar lavar o sudaacuterio dos finados nas aacuteguas do rio ou ir danccedilar ao Sabbath o baile infernal alumiado pelo claratildeo sinistro das fosforescecircncias tendo por orquestra ndash o bramido das torrentes ndash o ronco de trovoada e os silvos da ventania (Varela 2011 p 53)

Entatildeo Fagundes Varela ao oferecer exemplos literaacuterios para basear a realidade da sua histoacuteria dialoga com o fundo aperceptivo (Bakhtin 1993) do universo dantesco de histoacuterias de bruxaria e feiticcedilaria pre-sentes em diversas obras da Alemanha EscoacuteciaInglaterra Franccedila e Portugal Uma vez que o autor faz referecircncia a esse imaginaacuterio esteacutetico de grande influecircncia na construccedilatildeo do arqueacutetipo coletivo da bruxaria mencionaremos algumas das vozes que ressoam e se entrelaccedilam de for-ma mais contundente com o enunciado total do conto

Iniciaremos pela Alemanha Entre as vozes que convoca tais como Hoffmann em Vaso de ouro ldquotriste amante de Anselmo o loucordquo Gottfried Burger o pai da poesia narrativa fantaacutestica neste paiacutes e Achim von Arnim escritor romacircntico de espectros destacaremos a de Goethe Em sua obra Fausto haacute referecircncia agrave noite dos Walpurgis a qual eacute comemorada entre 30 de abril e 1deg de Maio celebrada por cristatildeos e pagatildeos em vaacuterios paiacuteses aleacutem da Alemanha como Inglaterra Beacutelgica Holanda e Franccedila Essa referecircncia pode ser ilustrada na cena III do quadro XXI da parte inicial do livro inti-tulada Noite de Santa Walpurga na qual Mefistoacutefeles obriga Fausto a passar uma noite no monte de Brocken para assistir agrave celebraccedilatildeo dos Walpurgis

De Brocken ao rochedocorrer correr bruxedoOnde a cana jaacute loirejamas a espiga inda verdejatodo o bando unido sejaPosto de alto e todo manoeacute o senhor Dom Fulano

quem preside ao nosso arcanoPor cima da folha mais do pedregulhofestanccedila rasgada com todo o barulhoO bode tresanda fartum que enfeiticcedilae a bruxa casticcedila casticcedila e casticcedila (Goethe 2003 grifo nosso)

Passemos agora agraves vozes literaacuterias da Escoacutecia e Inglaterra Entre elas as de Walter Scott romancista histoacuterico Anna Radcliffe escritora de histoacuterias de fantasmas o corcel de Giaour25 tambeacutem trabalhado pela de Byron e a de Shakespeare em especial na sua obra Macbeth (1606) A referecircncia a esse livro eacute particularmente importante tendo em vista o universo da bruxaria nele trabalhado muito a fim ao conto de Varela Isso pode ser ilustrado neste excerto da peccedila shakespeariana em que Banquo ao conversar com Macbeth afirma

A que distacircncia em sua avaliaccedilatildeo senhor estamos de Forres O que satildeo essas figuras tatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fantaacutesticas e desvairadas em seus trajes a ponto de natildeo parecerem habitantes da terra e no entanto podemos ver que estatildeo sobre a terra Vivem vocecircs Ou seriam vocecircs alguma coisa que natildeo admi-te perguntas humanas Vocecircs parecem entender-me logo levando como fazem cada uma por sua vez seu dedo encarquilhado aos laacutebios emaciados Vocecircs tecircm toda a aparecircncia de mulheres e no entanto suas barbas proiacutebem-me de inter-pretar suas figuras como tal (Shakespeare 2012 p 18-9 grifos nossos)

Ao definir as trecircs bruxas como ldquotatildeo murchas e claudicantes e tatildeo fan-taacutesticas e desvairadasrdquo de ldquodedo encarquilhadordquo ldquocom aparecircncia de mulhe-resrdquo figuras que ldquonatildeo admite[m] perguntas humanasrdquo Shakespeare atraveacutes de Banquo caracteriza essas criaturas como seres que oscilam entre o hu-mano e o natildeo-humano pois mesmo vivendo e habitando a terra haacute algo na natureza dessas criaturas que se afasta do natural Esses traccedilos podem ser tambeacutem visualizados no iniacutecio do conto quando Fagundes Varela afirma ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa suas palavras e accedilotildees cunhadas do torvo caraacuteter de uma sombria monomaniardquo (p 53 ndash grifos nossos) Esta uacuteltima expressatildeo ldquosombria mo-nomaniardquo ainda destaca a fixaccedilatildeo irracional doentia e grotesca desses seres

Varela ainda dialoga com outras vozes literaacuterias da Franccedila a saber Emiacutelio Souvestre ao mencionar o poema Foyer Breton que reuacutene vaacuterias

25 Eacute interessante notar que o nome ldquoGiaeurrdquo caracterizava o desprezo que os turcos tinham agravequeles que natildeo seguiam sua religiatildeo particularmente os cristatildeos

histoacuterias do folclore e da literatura popular da Bretanha e Paulo Feacuteval romancista mais conhecido no final do seacuteculo XIX A partir dessas refe-recircncias observamos que Fagundes Varela eacute um romacircntico que dialoga atraveacutes da retomada no seu texto com os grandes nomes do movimen-to em se utilizando por exemplo de temas populares e folcloacutericos mais proacuteximos do fantaacutestico e contraacuterios ao universo classicista tradicional

Haacute ainda outra voz de grande importacircncia para a elaboraccedilatildeo do fundo aperceptivo do conto Logo apoacutes ambientar o leitor quanto ao tema a ser abordado evoca-se uma lenda folcloacuterica da eacutepoca das Grandes Navegaccedilotildees divulgada nas terras portuguesas A referecircncia geograacutefica eacute oferecida quan-do o autor cita alguns locais de Portugal ndash Minho e Extremadura ndash onde tais supersticcedilotildees se encontram mais arraigadas ao folclore local ldquoentretanto em nossas tradiccedilotildees filhas quase todas das geacutelidas supersticcedilotildees do Minho e da Extremadura as bruxas natildeo satildeo revestidas desse caraacuteter de sublimes horrores que as faz tatildeo temidas nas campinas da Bretanha nas montanhas da Escoacutecia ou nas planiacutecies da Alemanhardquo (Varela 2011 p 53) Aqui o ter-mo entretanto delimita o imaginaacuterio das bruxas portuguesas das Grandes Navegaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves figuras diaboacutelicas citadas anteriormente

Apoacutes delimitar o fundo dialoacutegico do conto passemos para a anaacutelise do narrador e dos personagens Em relaccedilatildeo ao primeiro observamos a presenccedila do narrador heterodiegeacutetico (Batalha 2011) que natildeo participa da accedilatildeo (de grau zero) mas que conhece os fatos ao seu redor (oniscien-te) Por outro lado notamos que o autor abre um lsquoespaccedilorsquo no texto para se posicionar sobre o que estaacute relatando a saber as lendas que dispotildee para o leitor ldquoos aspectos destas tartaacutereas criaturas [eacute estranho] contam que agrave noite elas rolam pela correnteza sentadas em alguiacutedares e coro-adas de floresrdquo (Varela 2011 p 54) Baseando-nos em Bakhtin (1993) observamos que nesse trecho Fagundes Varela mostra explicitamente a sua voz a partir da expressatildeo deslocada entre colchetes ldquoeacute estranhordquo re-velando sua visatildeo sobre a histoacuteria de dentro e fora do conto Nos dizeres da autora francesa Authier-Revuz (1982) estariacuteamos nos deparando com um comentaacuterio metoniacutemico isto eacute um entrelaccedilamento da enunciaccedilatildeo pois o autor alude a si e ao outro dentro do seu proacuteprio discurso abrindo uma brecha no seu enunciado quando emprega o verbo no plural contam (quem conta eles isto eacute os ditos mitos e folclores populares)

Eacute interessante notar que apoacutes essa demarcaccedilatildeo pontual da voz do autor na narrativa referindo-se ao imaginaacuterio dessas lendas oralizadas

ele relata ldquoeis uma das lendas mais conhecidasrdquo Aqui a diegese eacute tra-balhada de maneira antropoloacutegica mas com criatividade literaacuteria Isso significa que o leitor percebe que eacute lenda e por isso a teoria de Todorov sobre o fantaacutestico puro falha ao menos pontualmente Contudo eacute im-portante mencionarmos que no primeiro paraacutegrafo do conto haacute uma focalizaccedilatildeo mais proacutexima do maravilhoso todoroviano quando Varela descreve as bruxas como ldquomulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 2011 p 53) aceitando de antematildeo a presenccedila de leis distintas do real

Voltemos agora para os personagens A esse respeito o enredo eacute constituiacutedo por cinco marinheiros ndash Pedro Guilherme Teodoro Jacques e Gabriel ndash e uma quantidade indefinida de bruxas Sob a perspectiva bakhtiniana (1993) observamos que haacute uma uacutenica visatildeo de mundo co-letivizando as vozes do grupo dos marinheiros ldquoo marinheiro eacute um tipo estoico por natureza nada haacute que os aflija como tambeacutem nada haacute que os amedronterdquo (Varela 2011 p 55 grifo nosso) Nessa citaccedilatildeo relacionada a uma discussatildeo relativa ao sobrenatural saiacutemos do horror propriamen-te dito no momento em que estes marinheiros apresentam caracteriacutesti-cas dos heroacuteis mitoloacutegicos claacutessicos impassiacuteveis inabalaacuteveis em suma incapazes da experiecircncia do medo

Por outro lado as bruxas satildeo caracterizadas ora como grotescas ora sublimes Hugo (2007) na obra Do grotesco e do sublime permite-nos compreender esses polos como parte da dinacircmica do pensamento esteacute-tico romacircntico pois a sua junccedilatildeo ofereceria novo iacutempeto agrave arte Para ele o grotesco o disforme e o horriacutevel datildeo descanso ao que eacute belo e para se admirar esse ldquobelordquo seria preciso um contraste uma comparaccedilatildeo

Nesse conto observamos que o grotesco e o sublime satildeo elementos predominantes na caracterizaccedilatildeo das bruxas os quais por sua vez intensificam o universo fantaacutestico-maravilhoso assim o trabalho de Varela com o grotesco se configura a partir de uma mescla de elementos heterogecircneos que daacute vazatildeo a uma experiecircncia abismal (Kayser 2008) como ilustram os excertos abaixo

As bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e venturas da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernal (Varela 2011 p 53 grifos nossos)

Os aspectos destas taacutertareas criaturas eacute estranho e sinistro sua vida oculta e misteriosa [] (p 53 grifo nosso)

Pedro subiu e chegando agrave escotilha viu uma multidatildeo de mulheres velhas e medonhas que entravam umas atraacutes das outras pulando e saltando a cavalo em cabos de vassouras (p 54 grifo nosso)

Entatildeo ele olhou para aquela turba invasora de sinistras personagens [] (p 54 grifo nosso)

As moccedilas transformaram-se logo em hediondas velhas sem contudo perder as riquezas que lhes tinham dado sem duacutevida seus misteriosos amantes e cavalgando o claacutessico cabo de vassoura lanccedilaram-se ao mar e desaparece-ram (p 57 grifo nosso)

Desse modo o grotesco eacute configurado como um traccedilo marcante da obra se inserindo especialmente no tratamento que eacute dado agraves invasoras Contudo em um determinado ponto da histoacuteria no momento em que as bruxas invadem a embarcaccedilatildeo modifica-se sua aparecircncia horriacutevel e grotesca e elas tornam-se belas criaturas Segundo Hugo (2007) o gro-tesco pode ser visto como um ponto de partida para se chegar ao belo Logo esse movimento ndash do feio para o belo ndash proporciona uma expansatildeo vivacidade e emoccedilatildeo ao objeto artiacutestico Nessa perspectiva observamos a passagem do grotesco para o sublime no universo do insoacutelito a partir de algumas descriccedilotildees tais como em ldquoos marinheiros correram para a proa e viram em vez das megeras que Pedro enxergara um bando de moccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo (p 55 grifo nosso)

Eacute interessante notarmos que esse aspecto sublime da beleza pode se constituir como um simulacro funcionando atraveacutes de uma falsa aparecircncia Ora as bruxas possuem uma ldquosombria monomaniardquo (Varela 2011 p 53) ou seja predomina entre elas o desejo doentio de serem eternamente jovens e belas ldquoas bruxas satildeo mulheres velhas que invejosas dos encantos e ventu-ras da mocidade pactuam com o diabo e recebem dele um poder infernalrdquo (Varela 194 p 53 grifo nosso) Essa beleza eacute portanto estranha e grotes-ca porque eacute sedutora e ilusoacuteria artifiacutecio do sobrenatural para ldquoenganarrdquo os marinheiros Logo o grotesco e sublime satildeo aspectos que funcionam na diegese como iacutendices que potencializam o caraacuteter insoacutelito da obra

Antes de concluirmos a anaacutelise da caracterizaccedilatildeo dessas bruxas observemos que elas satildeo construiacutedas no conto como seres livres e

independentes sexualmente detentoras de um grande poder sensual e de encanto eroacutetico como se vecirc nas seguintes imagens

[] elas andam nuas cavalgam compridos cabos de vassoura [] (p 53 gri-fos nossos)

[] elas contentam-se com enfeiticcedilar os rapazes e raparigas em noites alvas de luar [] (p 53 grifo nosso)

[] se transformam em belas moccedilas apossam-se dos navios erguem as acircn-coras e vatildeo por aiacute afora seduzir os rapazes entregar-se em horrenda lubri-cidade aos braccedilos deles ndash incendidos de um amor vertiginoso e funesto (p 54 grifos nossos)

Nesses trechos notamos a presenccedila da liberdade via erotismo re-lacionada tambeacutem ao imaginaacuterio romacircntico de quebra do decoro e das femmes fatales oitocentistas Ademais o universo dessas bruxas osci-la em torno de um movimento entre o sagrado e o profano26 (Priore 1994) evocando mulheres proacuteximas a uma pureza quase casta e virginal ndash ldquomoccedilas brancas como a neve e coroadas de rosasrdquo ndash mas ao mesmo tempo envoltas em uma atmosfera misteriosa e erotizada

Ainda a respeito da polarizaccedilatildeo grotesco x sublime observamos que esse movimento de expansatildeo do disforme para o que estaacute na forma do belo destaca-se na configuraccedilatildeo peculiar do tempo e espaccedilo narrativos O cronotopo eacute diluiacutedo por alguns processos narrativos tiacutepicos do fantaacutestico

Entretanto o navio natildeo perdia tempo - corria corria corria e na desabrida carreira como o luacutegubre cavaleiro de Burger deixava atraacutes de si a terra as ilhas as aacutervores e as nuvens como um bando de aves fugitivas A cada porccedilatildeo de espaccedilo que rompia ndash o ar tornava-se mais azul e carregado as estrelas maiores e mais viacutevidas No zimboacuterio imenso do firmamento a lua se equilibrava como uma lacircmpada de prata inundada de nardo na cuacutepula dos templos orientais As ondas erguiam-se como Leviathans em cujo dorso escamoso brincavam os raios de uma luz fosforescente e a embarcaccedilatildeo de-senhava-se raacutepida e fugaz nas aacuteguas como a sombra do corcel de Giaeur nas plantas do ervaccedilal (Varela 2011 p 55 grifos nossos)

Nesse excerto observamos que o tempo passa raacutepido e o navio li-teralmente ldquovoardquo O espaccedilo e tempo satildeo assim expandidos atraveacutes do

26 O movimento de oscilaccedilatildeo do sagrado e do profano estaacute ligado tambeacutem agrave dinacircmica do grotesco e do sublime

processo de repeticcedilatildeo de palavras ndash corria corria corria ndash e por meio do paralelo do navio com o ldquocorcel de Giaourrdquo (dialogismo mostrado com o poema de Byron) A referecircncia agrave ldquocuacutepula dos templos orientaisrdquo sina-liza a viagem ateacute a Iacutendia e representa a passagem da razatildeo europeia ao maravilhoso desconhecido do Oriente Potencializando o universo fan-taacutestico do conto esta regiatildeo eacute descrita com termos que evocam o lon-giacutenquo o metafiacutesico o abstrato um sonho que ldquoparecerdquo nunca ter se re-alizado mas que se presentifica efetivamente como se eacute revelado ao final do conto a partir do diaacutelogo entre o capitatildeo e o grupo de marinheiros

Machado (1983) em sua obra O mito do Oriente na literatura por-tuguesa explica que este espaccedilo geograacutefico tambeacutem em liacutengua portu-guesa veio sendo apropriado literariamente como um mito ao longo dos seacuteculos por autores do passado como Joatildeo de Barros Camotildees Diogo do Couto entre outros ateacute a contemporaneidade (Antero de Quental Eccedila de Queiroacutes etc) Segundo Machado desde a eacutepoca dos Descobrimentos haacute uma constante elaboraccedilatildeo desse tema que de tan-to circular tornou-se parte da nossa memoacuteria coletiva imprimindo-se na nossa histoacuteria como um arqueacutetipo O olhar negativo em relaccedilatildeo ao Oriente por conta da secular dominaccedilatildeo moura na peniacutensula ibeacuterica eacute mitigado por estas maravilhas comuns ao imaginaacuterio europeu poten-cializadas pela movecircncia das grandes navegaccedilotildees

No conto de Varela a chegada do navio agraves Iacutendias pelos ares eacute des-crita da seguinte forma

Depois de assim voar o navio por algum tempo parou finalmente junto de umas costas alvas e extensas coroadas de uma vegetaccedilatildeo fantaacutestica e titacirc-nia As feiticeiras pularam logo ao mar e comeccedilaram a correr para a terra com tal desembaraccedilo como se pisassem uma campina firme e segura Os ldquomarsouinsrdquo ficaram estaacuteticos e perplexos alguns minutos poreacutem como ndash marinheiro eacute capaz de desembestar ateacute o quinto inferno e palestrar com o proacuteprio Satan soltaram os escaleres e remaram para a praia Chegando sen-tiram uma como harmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e desconcertados que vinha de longe nas asas de uma aacuterea teacutepida e suave ferir-lhes o ouvido Caminharam para o lugar de onde partia o ruiacutedo agrave medida poreacutem que se adiantavam um perfume voluptuoso e sensual desconhecido embora vinha-lhes amenizar os sentidos umas aacutervores enormes gigantescas cujos fastiacutegios pareciam espanejar as nuvens levantavam-se diante deles mu-dos silenciosos como os fantasmas de Anna Radcliff como os espectros de Achim DrsquoArnim (Varela 2011 p 56 grifos nossos)

Observamos nessa descriccedilatildeo o fasciacutenio pela descoberta de um paraiacuteso o qual os marinheiros soacute depois saberatildeo tratar-se das Iacutendias Esse ambiente ndash que de certa forma torna lsquofantaacutesticarsquo a Ilha das Amores camoniana ndash revela traccedilos miacutesticos de orientalismo maacutegico e exotista uma ldquoharmonia agreste e selvagem misturada de gritos agudos e des-concertadosrdquo sente-se o cheiro de ldquoum perfume voluptuoso e sensual desconhecidordquo haacute aacutervores ldquoenormes gigantescasrdquo etc Tais imagens se aproximam das elaboradas por Joatildeo de Barros em suas crocircnicas segun-do Machado (1983) este autor se concentra na evocaccedilatildeo da descoberta conquista e descriccedilatildeo minuciosa das terras orientais Isso se daacute porque ele eacute um ldquohumanista estaacuteticordquo ndash diferente de Damiatildeo de Goacuteis que viajou muito ao longo da vida ndash a substituir o conhecimento in loco por uma ldquoelaborada retoacuterica claacutessica evocativa do longiacutenquordquo (p 22) que ganha proporccedilotildees miacuteticas

A partir da chegada dos marinheiros a essa terra ldquodesconhecidardquo observamos que durante a descriccedilatildeo do ambiente haacute elementos que caracterizam uma ornamentaccedilatildeo de caraacuteter grotesco e a influecircncia oriental construiacuteda pelo emprego de expressotildees como ldquoedifiacutecio amplo e colossalrdquo ldquomaacutermore pretordquo ldquosacadas douradasrdquo ldquoarabescos fantaacutesticosrdquo ldquofumo do incensordquo ldquoecos rudes e selvagensrdquo ldquosolidotildeesrdquo e ldquonoiterdquo

Os nossos homens adiantavam-se mais e deram entatildeo de rosto com um edi-fiacutecio amplo e colossal todo de maacutermore preto coberto de torreotildees sacadas douradas cornijas e arabescos fantaacutesticos Pelas infinitas fileiras de janeli-nhas ou antes seteiras se pendurava uma multidatildeo de lampiotildees multicores e saiacutea em turbilhatildeo o fumo do incenso e dos alvos uma orquestra desconhe-cida expandia seus ecos rudes e selvagens que se iam morrer pelas solidotildees e pela noite (Varela p 56 ndash grifos nossos)

Em seguida os argonautas se deparam com mais um elemento po-tencializador do gecircnero fantaacutestico a saber um ritual de danccedila como espaccedilo maacutegico de grande semelhanccedila com a danccedila do ventre a qual eacute considerada por muitos a primeira danccedila da humanidade Sari (2011) traz algumas contribuiccedilotildees a esse respeito em sua Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre na qual afirma que sua origem se daacute como um ritual sagrado uma vez que as mulheres danccedilavam para a Deusa-Matildee Inana siacutembolo da reproduccedilatildeo fertilidade e em especial relacio-nada ao crescimento dos gratildeos durante o plantio Surgida no Paleoliacutetico

na regiatildeo da Sumeacuteria ndash e natildeo no Egito como muitos pensam ndash as dan-ccedilarinas como satildeo por noacutes chamadas eram as grandes sacerdotisas dos templos e uma vez que Inana era extremamente feminina seus rituais baseavam-se na sexualidade fertilidade e no ventre a partir de teacutecnicas que norteavam a danccedila sagrada como os movimentos peacutelvicos Essa movimentaccedilatildeo do corpo da sacerdotisa-danccedilarina eacute evocada pelo nar-rador do conto

Fora do edifiacutecio sobre um vasto terreiro ardia uma enorme fogueira em torno da qual homens e mulheres de olhos negros e cintilantes face redonda e bronzeada danccedilavam ao som de instrumentos estranhos e refletiam ao claratildeo da fogueira suas figuras extravagantes na fachada de maacutermore polido do palaacutecio e faziam tremular pelo ar as compridas abas de suas vestimentas vermelhas e amarelas Havia tambeacutem moccedilas belas embora excessivamente trigueiras que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmente no gesti-cular lacircnguido e voluptuoso de uma danccedila desconhecida suas grinaldas e cin-turotildees eram ornados de pequenos luzeiros palidamente azulados Uma ala de homens feios e carrancudos cercava esta exoacutetica companhia e completava o quadro (Varela 2011 p 56-57 - grifos nossos)

Notamos claramente a descriccedilatildeo da movimentaccedilatildeo do corpo da danccedilarina do ventre a partir das expressotildees ldquomoccedilas belas que dobravam e vergavam o corpo mole e flexivelmenterdquo e ldquogesticular lacircnguido e volup-tuosordquo Aleacutem disso as caracterizaccedilotildees das vestes dessas mulheres ndash ldquosuas grinaldas e cinturotildees eram ornados de pequenos luzeirosrdquo ndash ratificam a imagem da danccedilarina oriental Todos esses elementos relacionados ao mundo oriental27 potencializam o fantaacutestico

Eacute interessante notar que o leitor eacute paulatinamente inserido no universo fantaacutestico-maravilhoso da trama construiacutedo em torno da nar-rativa oriental de Varela segundo Todorov (2008) no subgecircnero fantaacutes-tico-maravilhoso daacute-se a aceitaccedilatildeo do sobrenatural apoacutes a duacutevida e as ambiguidades fantaacutesticas

27 De acordo com Sari (2011) ldquoas primeiras guerras e consequentemente os primeiros impeacuterios formam o conjunto de fatores que difundiram o culto a deusa e a danccedila peacutelvi-ca ritualiacutestica [] [Ademais houve] seis grandes impeacuterios que participaram ativamente na divulgaccedilatildeo e expansatildeo dos rituais da danccedila impeacuterio Sumeriano Assiacuterio Persa o impeacuterio de Alexandre o grande Romano e o principal o impeacuterio Otomanordquo (p 13)

Quando ao meio dia chegou o capitatildeo os marinheiros contaram o ocorrido e como prova mostraram as plantas que tinham apanhado O comandante tomou-as e pocircs-se a examinaacute-las com atenccedilatildeo misturada de pasmo inexpri-miacutevel depois entregando-as disse - Sabeis voacutes outros onde estivestes esta noite - Natildeo meu capitatildeo responderam os marujos- Pois estivestes na Iacutendia- Na Iacutendia Na Iacutendia Gritaram os marujos estuacutepidos de espanto (Varela 2011 p 57)

Nesse trecho flagramos a presenccedila do fantaacutestico-maravilhoso no momento em que o comandante aceita a histoacuteria contada pelos seus su-bordinados como algo ocorrido de fato evidenciando assim a presenccedila de novas leis na natureza e o estranhamento dos marinheiros eacute logo posto em suspensatildeo Aleacutem disso no final do conto encontramos iacutendices que confirmam este universo de forma incontestaacutevel

Esta eacute a canela filha legiacutetima da Aacutesia esta outra o cravo esta a baunilha e fi-nalmente esta de cujo nome natildeo me recordo agora eacute um excelente remeacutedio que natildeo cresce em nenhuma outra parte do mundo a natildeo ser ali A descriccedilatildeo que me fizestes desses homens morenos e trajados de estranhas roupagens natildeo faz senatildeo confirmar o que digo Aquele edifiacutecio de maacutermores eacute um pa-laacutecio de priacutencipe aquelas moccedilas de grinaldas e cinturotildees brilhantes satildeo as virgens indianas que cozem os vaga-lumes e luciacuteolas as suas vestimentas aqueles homens armados satildeo os guardas e soldados do priacutencipe Natildeo haacute duvida por artimanhas do diabo em menos de uma noite fostes agrave Iacutendia e voltastes (Varela 2011 p 58)

Desse modo um sobrenatural que eacute aceito se apresenta como fator determinante para a narrativa Ademais nesse trecho a voz do coman-dante se mistura com a do narrador ou seja deparamo-nos com um hibridismo (Bakhtin 1993) entre essas vozes uma vez que o narrador parece tomar a posiccedilatildeo do comandante tambeacutem como o seu posiciona-mento Isso significa que haacute uma imbricaccedilatildeo entre o que o comandante e o narrador pensam sobre o universo maravilhoso ficcional

Baseando-nos em Machado (1983) notamos que a diegese se constitui como uma ficccedilatildeo miacutetica do Oriente elaborada a partir do contexto mental dos Descobrimentos em que aparentemente a proacute-pria realidade adquire conotaccedilotildees maravilhosas aos olhos de hoje Assim ainda conforme Machado (1983) haacute ldquouma certa tendecircncia da cultura oitocentista que pretende retomar a liccedilatildeo dos viajantes aacutevidos

ao mesmo tempo de exoacutetico e de conhecimento cientiacuteficordquo (p 82) Assim a junccedilatildeo entre o passado miacutetico (histoacuterico) a esteacutetica fantaacutestica oitocentista (literaacuteria) aliada agraves imagens (do ponto de vista histoacuterico e literaacuterio) de um Oriente miacutetico que eacute tanto renascentista quanto ro-macircntico configuram um conto fantaacutestico-maravilhoso importante e original dentro da literatura oitocentista brasileira

REFEREcircNCIAS

AUTHIER-REVUZ Jaqueline ldquoHeterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva elementos para uma abordagem do outro no discursordquo In Entre a transparecircncia e a opacidade um estudo enunciativo do sentido Porto Alegre EDIPUCRS [1982] 2004

BAKHTIN Mikhail ldquoO discurso no romancerdquo In BAKHTIN Mikhail Questotildees de Literatura e de esteacutetica a teoria do romance Satildeo Paulo Unesp Hucitec [1975] 1993 (p 71-163)

______ Problemas da Poeacutetica de Dostoievski Trad Paulo Bezerra 3ordf ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

GOETHE Johann Wolfgang von Fausto Trad Antoacutenio Feliciano de Castilho eBooksBrasil 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwebooksbrasilorgeLibrisfaustogoethehtml21gt (acesso em 02 de fevereiro de 2013)

HUGO Victor Do grotesco e sublime Satildeo Paulo Perspectiva 2007

KAYSER Wolfgang O grotesco Satildeo Paulo Perspectiva 2008

MACHADO Aacutelvaro Manoel O mito do Oriente na Literatura Portuguesa Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1983

PRIORE May Del A mulher na histoacuteria do Brasil Satildeo Paulo Contexto 1994

SARI Nassih Dissertaccedilatildeo sobre a origem da danccedila do ventre 2011 Disponiacutevel em lt httpwwwcentraldancadoventrecombr gt (acesso em 12 de julho de 2011)

SHAKESPEARE William Macbeth Trad Beatriz Vieacutegas-Faria Porto Alegre LampPM Pocket 2012

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Satildeo Paulo Perspectiva 2008

VARELA Fagundes ldquoAs Bruxasrdquo in BATALHA Maria Cristina (org) O fantaacutestico brasileiro contos esquecidos Rio de Janeiro Editora Caeteacutes 2011 (p 53-58)

O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier

Thiago Joseacute Costa Pininga(Mestrando em Teoria da Literatura ndash

Universidade Federal de Pernambuco)

Escrito em 1840 o conto Peacute de muacutemia narra a histoacuteria de um perso-nagem flacircneur que ao passar em uma loja de antiguidades tem a ideia de comprar um objeto para lhe servir de peso-de-papel aos seus ldquoesboccedilos de versosrdquo encontrando um verdadeiro peacute de muacutemia que se descreve como da princesa Hermonthis28 Nesta descriccedilatildeo trabalhada por um autor consi-derado um dos fundadores do parnasianismo francecircs tatildeo rica em detalhes esteacuteticos (a exemplo do que ocorre em poemas dessa escola a exemplo de Vaso chinecircs do poeta brasileiro Alberto de Oliveira) teriacuteamos o poder in-consciente e fantaacutestico de dar vida aos objetos de sua admiraccedilatildeo

Se a descriccedilatildeo minuciosa e amorosa faz com que determinado ob-jeto ganhe ldquovidardquo como dito acima isso significa que ele (o objeto) de-veria ser construiacutedo como se estivesse nas matildeos e diante dos olhos do leitor ndash natildeo apenas um texto verbal ndash mas como um fantasma29

Em outros contos fantaacutesticos deste autor encontramos caracteriacutesti-cas semelhantes entre eles A cafeteira e Ocircnfale Tais objetos sejam eles uma cafeteira uma tapeccedilaria ou um peacute mumificado satildeo considerados de grande beleza (ou menos uacuteteis que belos) e por isso tecircm ou merecem uma existecircncia proacutepria isto eacute fantasmagoacuterica natildeo fugindo assim de uma ldquoArte pela Arterdquo ndash termo cunhado por Gautier ndash na medida em que o culto agrave forma permite uma separaccedilatildeo do suporte material em termos

28 A referecircncia a uma princesa do Egito eacute indireta Hermonthis eacute o nome de uma cidade do Antigo Egito e natildeo propriamente o nome de uma princesa Contudo eacute exatamente a cidade que Cleoacutepatra tornaraacute sua capital Vale verificar que a construccedilatildeo do nome Cleoacutepatra significa ldquoGloacuteria do pairdquo ou ldquoAmada por seu pairdquo Ao longo da narrativa percebe-se entatildeo uma associaccedilatildeo de Cleoacutepatra a Hermonthis uma vez que seria esta a ldquoamada por seu pairdquo

29 De fato Theacuteophile Gautier antes de seguir a carreira literaacuteria expressava o desejo de ser pintor

pragmaacuteticos Desse modo a escolha do autor em escrever contos fan-taacutesticos natildeo foge agrave sua escolha esteacutetica pelo contraacuterio aprofunda-a Um caso exemplar eacute o conto Peacute de muacutemia em que como dito ao procurar um objeto uacutetil que servisse para peso-de-papel se constata que o peacute estaacute vivo saltitante e agrave procura da dona O fantaacutestico e suas consequecircn-cias fazem o personagem mudar de opiniatildeo sobre a utilidade do referido objeto embora continue lhe conferindo uma aura estetizada

O protagonista eacute em duas passagens do texto um possiacutevel poeta na primeira passagem pela fala do vendedor que diz ironicamente ldquoHa ha ha para um peso-de-papel ideia original ideia de artistardquo (Gautier 1999 p106 ndash grifo meu) e na segunda no momento em que o perso-nagem retorna agrave sua casa ldquoPara aproveitaacute-la imediatamente pousei o peacute da divina princesa Hermonthis sobre um maccedilo de papel esboccedilos de versos mosaico indecifraacutevel de rasurasrdquo (p 107) Um personagem poeta natildeo apenas porque escreve versos mas tambeacutem por possuir uma aura identificada pelo comerciante Eacute comum Gautier compor narrativas com personagens-artistas poetas atores pintores e ateacute mesmo escritores de contos fantaacutesticos (estes com clara intenccedilatildeo de humor) No conto Ocircnfale uma histoacuteria rococoacute o personagem assim se declara ldquoSe o bom homem pudesse ter previsto que eu abraccedilaria a [profissatildeo] de contista fantaacutesti-co sem duacutevida ter-me-ia posto pela porta afora e deserdado irrevogavel-mente []rdquo (p 51) Por sua vez a personagem feminina iconizada como muacutemia aparece como um textopoema isso porque como bem observa Ruth Silvano Brandatildeo ldquotoda ela eacute pura escritura grafada por sinais vaacuterios ou apagados como nos palimsestosrdquo (Brandatildeo 1996 p 19)

Eacute pela experiecircncia com o fantaacutestico aliada agrave esteacutetica da ldquoArte pela Arterdquo que o personagem eacute educado Jaacute natildeo trata aquele objeto da mesma maneira em primeiro lugar porque ele parece estar vivo em segundo porque a muacutemia (que eacute descrita agora sem um dos peacutes) faz a troca de seu peacute solto por uma estatueta ndash e esta constituiria a prova de que aquele acontecimento teria sido real e natildeo um sonho Entre a primeira experiecircn-cia e a uacuteltima o personagem eacute levado em uma viagem aparentemente real ateacute o Antigo Egito na qual tambeacutem aprende liccedilotildees natildeo somente artiacutesticas como espirituais (morais) a fim de constatar que somente a boa arte a arte de qualidade a arte que transcende eacute capaz de durar pela eternidade

A mudanccedila no personagem ocorre natildeo somente em um niacutevel ar-tiacutestico mas tambeacutem se gerando consequecircncias morais Muito embora

associe-se o parnasiano a um sentido amoral vemos que Gautier utiliza a moralidade ao escrever seus contos fantaacutesticos Por exemplo no conto O cavaleiro duplo em que existe um confronto entre o bem e o mal e o primeiro sai vencedor depois de uma luta de vida ou morte entre os dois personagens gecircmeos com o bom terminando vencedor no conto Dois atores para um papel onde um ator se envaidece de ser o melhor interprete da personagem de diabo para uma peccedila em cartaz ateacute que o mesmo aparece e toma seu lugar no palco quase o matando e por uacuteltimo citamos um de seus contos mais famosos A morte enamorada em que se descreve toda uma moral ligada ao catolicismo Os trecircs contos citados trabalham profundas conotaccedilotildees espirituais a noccedilatildeo de bem e mal e os castigos por soberba e arrogacircncia Todos os seus protagonistas acabam salvos e aprendendo uma liccedilatildeo

Em Peacute de muacutemia verificamos que a mudanccedila de atitude do per-sonagem eacute tambeacutem espiritual ou seja moral tendo em vista que esta acontece na perspectiva dos debates entre Oriente e Ocidente e pelo vieacutes de uma formaccedilatildeoconselho para jovens poetas sobre dar utilida-de agrave beleza30 Este conto foi escrito em 1840 periacuteodo em que a Franccedila dominava econocircmica e politicamente suas colocircnias no Oriente e jaacute ti-nha passado por importantes experiecircncias orientalizantes no norte da Aacutefrica Gautier francecircs ambienta seu conto em seu paiacutes de origem res-saltando um fantaacutestico egiacutepcio que irrompe de uma pacata atmosfera burguesa reproduzindo um imaginaacuterio comum agrave eacutepoca verificada pelo estudioso Edward Said no livro Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente

O Oriente foi orientalizado natildeo soacute porque se descobriu que ele era lsquoorien-talrsquo em todos aqueles aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu meacutedio do seacuteculo XIX mas tambeacutem porque podia ser ndash isto eacute ndash per-mitia ser feito oriental Haacute muito pouca anuecircncia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert com uma cortesatilde egiacutepcia tenha produzido um modelo amplamente influente da mulher oriental ela nunca falou de si mes-ma nunca representou suas emoccedilotildees presenccedila ou histoacuteria Ele falou por ela e a representou (Said 1990 p 17 ndash grifos do autor)

30 Sabrina Baltor nos informa que ldquoTheacuteophile Gautier torna-se um exemplo para Flaubert Baudelaire jovens escritores que nunca o viram capitular perante a arte social ou burguesa []rdquo (1997 p 22)

Longe de ser neutro Gautier ndash que influenciou Flaubert inclusive com a ideia de ldquoArte pela Arterdquo ndash vai explorar justamente o comeacutercio entre Ocidente e Oriente em um primeiro momento de modo realista Nos primeiros paraacutegrafos ele alerta para o fato de que na capital france-sa estava em moda ndash e em grande nuacutemero ndash determinados tipos de lojas locais de vendas de objetos raros onde se comprava itens de todas as culturas e civilizaccedilotildees do mundo em sua maioria antiguidades sendo o comerciante do conto identificado como um tipo oriental (ldquoA curvatura do nariz tinha uma silhueta aquilina que lembrava o tipo oriental ou judeurdquo Gautier 1999 p 104 ndash grifo meu) Desde jaacute Gautier natildeo esconde que a relaccedilatildeo seraacute mercantilista O diaacutelogo que segue entre o comercian-te e o poeta revela o misticismo do primeiro e o ceticismo do segundo

O comerciante se utiliza de argumentos fantaacutesticos sobre o possiacutevel uso desrespeitoso do objeto ressaltando que os nobres egiacutepcios ficariam zangados ao saberem que o peacute de sua amada filha poderia servir como um simples peso-de-papel ldquoele [o faraoacute] que mandava cavar uma mon-tanha de granito para colocar nela o triplo esquife pintado e dourado coberto de hieroacuteglifos com belas pinturas do julgamento das almasrdquo (Gautier p106) Contudo o poeta ceacutetico insiste na compra e consegue adquiri-la com o que tinha nos bolsos Revela-se aqui a situaccedilatildeo de su-perioridade do ocidental e a consequente inferioridade do oriental que vecirc suas crenccedilas serem rebaixadas ao niacutevel do profano utilitaacuterio estando o objeto em questatildeo disponiacutevel a qualquer um que pagasse e natildeo a al-gueacutem que pudesse compreender seu verdadeiro valor

Eacute a este tipo de superioridade e dominaccedilatildeo que Edward Said denuncia como orientalismo ldquoideia da identidade europeia como sendo superior em comparaccedilatildeo com todos os povos e culturas natildeo-europeusrdquo (Said 1990 p 19) Aqui superioridade eacute tanto uma questatildeo econocircmi-ca quanto ideoloacutegica primeiro porque a relaccedilatildeo entre Franccedila e Oriente eacute aquela entre colocircnia e colonizados pautada em relaccedilotildees comerciais desiguais Em segundo lugar para manter e sustentar esta relaccedilatildeo era necessaacuterio manter uma ideologia que dizia ser a Franccedila a representante da ciecircncia e do progresso ocidentais (basta lembrar que floresciam nesta eacutepoca as teorias do filoacutesofo francecircs Auguto Comte o Curso de filosofia positiva eacute publicado entre 1830 e 1842) sendo o Oriente apenas um lu-gar repleto de misticismo ingecircnuo e ultrapassado O proacuteprio persona-gem do comerciante natildeo se mostra como o mais respeitoso pelas coisas

do Oriente nas entrelinhas desconfia-se que estava interessando em revelando uma crenccedila e seu respeito por ela somente fazer subir o preccedilo do objeto Caso contraacuterio natildeo colocaria a peccedila em exposiccedilatildeo

Seraacute apenas no diaacutelogo travado com a muacutemia da princesa (que fala em seu idioma antigo estranhamente compreendido pelo protagonista) que veremos a presenccedila ou tentativa de uma voz que fala por si mesma a reve-lar seu ponto de vista e sua triste histoacuteria (em comparaccedilatildeo com a oriental de Flaubert que natildeo tinha voz nem histoacuteria) A partir desse diaacutelogo se inicia uma mudanccedila em relaccedilatildeo ao mundo oriental num processo gradual de saiacuteda do fantaacutestico e inserccedilatildeo no maravilhoso Ora o conceito de orien-talismo eacute definido entre outros como ldquoum estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Orienterdquo (Said p 15) contudo em Gautier vemos tratar-se menos de um domiacutenio do que uma reestruturaccedilatildeo de saldo positivo e imaginativo Por fim demonstra-se que tal domiacutenio natildeo eacute possiacutevel ndash porque natildeo haacute domiacutenio sobre a experiecircncia fantaacutestica

A noccedilatildeo de Oriente eacute entatildeo transfigurada por Gautier O conto se iniciava com um discurso que parecia apontar aos leitores a presenccedila da noccedilatildeo de superioridade do europeu moderno ateacute entrar em cena o fantaacutes-tico que potildee em duacutevida a proacutepria crenccedila na ciecircncia e na razatildeo ocidentais

A pesquisadora Sabrina Baltor (1997 p 136) nos informa que ldquona obra de Gautier nota-se certo fasciacutenio pelo povo egiacutepcio natildeo eacute agrave toa que dois contos e um romance tecircm como cenaacuterio a terra dos faraoacutes Une nuit de Cleacuteopacirctre (1838) Le pied de momie (1840) e Le roman de La momie (1857)rdquo portanto trata-se de um autor que admira os temas orientais em seu aspecto artiacutestico ou seja de um segmento capaz de ensinar-lhe a cultivar a beleza e a sua duraccedilatildeo

Historicamente depois de grande acuacutemulo de experiecircncias de expe-diccedilotildees europeias ao Oriente que natildeo eram necessariamente criadas tendo em vista objetivos artiacutesticos e sim de comeacutercio de conhecimento cientiacute-fico ou estrateacutegia militar foram as obras literaacuterias contudo que popula-rizaram de maneira mais eficiente o Oriente (o orientalismo) ao europeu segundo nos informa Said ao que acrescentamos o fato de o fantaacutestico nestas eacutepocas ter se tornado um gecircnero popular de grande apelo puacuteblico

Os motivos de Gautier no entanto para aleacutem de conquistar leitores faacuteceis buscavam a experimentaccedilatildeo ao trabalhar ideais ligados agrave pere-nidade da arte bem como a criacutetica a uma sociedade empenhada em valores utilitaacuterios e burgueses sem espiritualidade A valorizaccedilatildeo da arte

egiacutepcia especialmente a da mumificaccedilatildeo que sobreviveu por milecircnios mostrava por contraste que a arte de sua eacutepoca era de niacutevel inferior ba-seada em modismos A soluccedilatildeo era uma volta ao passado para tentar re-cuperar algo que se perdeu daiacute a escolha pelo Egito Antigo Por sua vez no niacutevel esteacutetico natildeo haveria conflitos porque as descriccedilotildees estetizadas caracteriacutesticas dos parnasianos natildeo sofriam perdas pelo contraacuterio ga-nhavam mais vida tornavam-se mais ldquoreaisrdquo

Depois que acorda (e o motivo do sonho eacute recorrente natildeo soacute fan-taacutestico mas tambeacutem neste conto tornando-o ambiacuteguo) o personagem-poeta passa sensorialmente em especial atraveacutes do olfato a descobrir que algo andava errado em sua casa A escolha deste sentido eacute signifi-cativa quando se trata de visotildees do Oriente trabalhadas por franceses lembremos dos versos de Baudelaire amigo famoso de Gautier em As flores do mal31 ldquoCom a fluidez daquilo que jamais termina Como o almiacutescar o incenso e as resinas do Oriente Que a gloacuteria exaltam dos sentidos e da menterdquo (Baudelaire 2006 p 127 ndash grifo meu) Em outra ocasiatildeo da narrativa tambeacutem se afirma sinestesicamente ldquoO sonho do Egito era a eternidade seus odores tecircm a solidez do granito e duram outro tantordquo (Gautier 1999 p 108 ndash grifo meu)

A partir destes odores diferentes o protagonista afirma ldquosentir al-guma coisa que se parecia muito com o terrorrdquo (p 109 ndash grifo meu) pois o peacute estava saltitando Ele tambeacutem observa nesta hora a proacutepria prin-cesa saltitando e teme por sua vida Apoacutes o suspense a princesa revela sua triste histoacuteria alguns ladrotildees invadiram seu sarcoacutefago e roubaram toda sua riqueza de modo que natildeo tinha dinheiro sequer para comprar seu peacute de volta As mercadorias roubadas acabariam indo parar nas lojas de antiguidades citadas anteriormente nada mais restava agrave princesa a natildeo ser a piedade do poeta Tudo que havia de valioso no Oriente fora levado por conquistadores e vendido como curiosidade exoacutetica para as diversas partes do mundo que poderiam pagar por ele32

31 As flores do mal foram dedicadas com ecircnfase a Theacuteophile Gautier ldquoAo poeta impecaacute-vel ao perfeito maacutegico das letras francesas a meu cariacutessimo e veneradiacutessimo mestre e amigo Theacuteophile Gautier com os sentimentos da mais profunda humildade dedico estas flores doentiasrdquo

32 Este tema do comeacuterciotraacutefico de produtos do Egito Antigo continua atual sendo por exemplo trabalhado por autores como o recifense Fernando Monteiro no ro-mance A muacutemia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Globo 2001)

Convencido da triste histoacuteria da princesa e por medo do que lhe aconteceria caso se negasse a ajudaacute-la acaba lhe restituindo o membro perdido Em agradecimento a princesa-muacutemia o leva como dito para uma viagem ateacute o Antigo Egito na qual conhece todas as belezas das piracircmides entre outras Ateacute chegar ao Faraoacute que tambeacutem agradecido lhe concede um desejo O poeta com uma ironia muito tiacutepica dos contos fantaacutesticos de matriz hoffmanniana escolhe a ldquomatildeordquo da princesa33 Mas ele eacute acordado por um amigo e parece descobrir que tudo natildeo foi um sonho (ldquoo fantaacutestico ocupa o tempo desta incertezardquo ndash Todorov 1970 p 15) porque a estaacutetua deixada pela princesa em troca do peacute ainda estava laacute

No final do conto a razatildeo volta ao seu estado inicial de poder ex-plicar o ocorrido de modo natural tudo efetivamente natildeo passara de um sonho (Todorov denomina de gecircnero Estranho o sobrenatural explicado por via do sonho) Por outro lado vemos que o que interessa Gautier eacute a metaacutefora da relaccedilatildeo do artista com sua produccedilatildeo criativa que se fosse perfeita ganharia vida Ora a perfeiccedilatildeo pela forma soacute poderia resultar em um fantasma que eacute pura forma sem mateacuteria A muacutemia aleacutem de ser uma bela estaacutetua eacute tambeacutem um texto ldquoA princesa eacute grafia marcada por traccedilos da ordem do resiacuteduo verbal resiacuteduo mnecircmico nunca traduzido ou recuperaacutevel porque para sempre perdido como ocorre com as primeiras experiecircncias psiacutequicasrdquo (Brandatildeo 1996 p 20) Quiccedilaacute o peacute de muacutemia natildeo fosse um poema esquecido um rascunho (natildeo seria o hieroacuteglifo neste conto um tipo de rascunho do autor) acima dos outros papeacuteis

Eacute somente pela experiecircncia fantaacutestica que haacute uma inversatildeo de va-lores inesperada diante do personagem e dos leitores O fantaacutestico estaacute aleacutem da ciecircncia e obriga a caminhar pelo desconhecido pelo que ainda natildeo eacute enquadrado em algum tipo de conhecimento seguro e explicaacute-vel pelas leis da razatildeo O orientalismo eacute reestruturado com um saldo positivo para o Oriente pois faz reconhecer ao europeu moderno que sua razatildeo natildeo eacute capaz de descobrir tudo e seu controle e domiacutenio estatildeo enfraquecidos por este meio Natildeo eacute somente ao conhecimento tradi-cional e agrave estrutura da sociedade (mercantilista x miacutestica) que Gautier faz sua criacutetica pois ao afirmar a arte egiacutepcia como arte de beleza mais duradoura que a ocidental (diz o Faraoacute ldquominha filha duraraacute mais do que uma estaacutetua de bronzerdquo [p115]) ele quer com isso dizer que o Oriente

33 ldquoA matildeo pelo peacute parecia-me uma recompensa antiteacutetica de bastante gostordquo (1999 p114)

tem mais para nos ensinar se quisermos aprender em termos de Arte e Cultura

De fato o fantaacutestico tambeacutem se liga agrave noccedilatildeo de ldquoArte pela Arterdquo numa outra espeacutecie de culto agrave forma que se daacute pela autorreferencialidade A princesa pode ser vista pelo menos de quatro maneiras Estaacutetua Muacutemia Princesa e Texto (pois estava completamente adornada de hieroacuteglifos) O modo de apresentaccedilatildeo vai do tratamento de objeto ao tratamento hu-mano natildeo esquecendo contudo a modalizaccedilatildeo fantaacutestica (Muacutemia viva)

Existe aqui portanto um ensaio de respeito pelo Outro enquanto Outro ou seja em suas diferenccedilas que natildeo satildeo as diferenccedilas criadas aprioristicamente apesar de obviamente ser Gautier um europeu que tambeacutem torna fantaacutestico o Oriente O desconhecimento eacute o que provoca medo e terror pois inibe qualquer accedilatildeo ou a interpreta desde jaacute como perigo na grande maioria das vezes sem efetivamente ser perigosa A morte eacute um exemplo de experiecircncia desconhecida Mas natildeo haacute mortes neste conto ndash embora exista no miacutenimo uma ldquonatureza-mortardquo

REFEREcircNCIAS

AMARAL Ana Carolina Bianco ldquoA moderna hesitaccedilatildeo fantaacutestica em O Peacute de Muacutemia de Gautierrdquo in Revista Travessias Interativas Ribeiratildeo Preto UNESP 2011 (p 8-18)

BALTOR Sabrina Ribeiro A opccedilatildeo de Theacuteophile Gautier pelo conto fantaacutestico In I Encontro Nacional O Insoacutelito como Questatildeo na Narrativa Ficcional UERJ 2009 Mesa Redonda Rio de Janeiro DialogartsUERJ 2009 (p 78-84)

BALTOR Sabrina Ribeiro Literatura plaacutestica e Arte pela Arte nas narrativas de Theacuteophile Gautier Tese (Doutorado) Rio de Janeiro UFRJ 1997

BAUDELAIRE Charles As Flores do Mal Trad Ivan Junqueira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2006

BRANDAtildeO Ruth Silvano Literatura e psicanaacutelise Rio Grande do Sul UFRS 1996

GAUTIER Theacuteophile Contos Fantaacutesticos Trad Geraldo Gerson de Souza Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Coleccedilatildeo Debates Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 1970

ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de

Edgar Allan Poe

Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Os homens que exercem a profissatildeo de jornalista parecem consti-tuiacutedos como os deuses de Walhalla que se cortavam em pedaccedilos todos os dias e acordavam com perfeita sauacutede todas as manhatildes

(Edgar Allan Poe Marginalia34)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) esteve durante toda sua vida profissional ligado a jornais e a revistas literaacuterias norte-americanos dentre os quais o Southern Literary Messenger de Richmond a Burtonrsquos Gentlemanrsquos Magazine a Grahamrsquos Magazine e o The pionner da Filadeacutelfia Realizando breves contribuiccedilotildees ou atuando como editor nesses perioacutedicos Poe adentrou em um domiacutenio de pro-duccedilatildeo de literatura veloz muitas vezes voltada apenas a satisfazer as exi-gecircncias do puacuteblico e que certamente atendia aos interesses comerciais dos editores Essa carreira suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros podemos dizer se fez quase apesar dele mesmo Com efei-to Poe natildeo hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofiacutecio era a poesia Assim em 1845 aos 36 anos escreve

Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar em qualquer ocasiatildeo um esforccedilo seacuterio naquilo que sob mais felizes circuns-tacircncias teria sido a carreira de minha escolha Para mim a poesia natildeo tem sido uma finalidade mas uma paixatildeo e as paixotildees deveriam merecer reverecircn-cia natildeo devem nem podem ser excitadas agrave vontade com vista agraves mesquinhas compensaccedilotildees ou louvores ainda mais mesquinhos da humanidade35

Deliberadamente Poe idealizava as formas de criaccedilatildeo artiacutestico-li-teraacuterias constituiacutedas sob a loacutegica do campo artiacutestico como um ldquomundo

34 Ver em Poe (1999c p 176 1984 p 1223 e seg) 35 Poe (1999c p 19 2004a p 715)

econocircmico invertidordquo36 como mais tarde escreveria o socioacutelogo fran-cecircs Pierre Bourdieu (2002) quer dizer o campo da arte que opera pela primordial negaccedilatildeo dos interesses econocircmicos Apesar disso no en-tanto o escritor norte-americano natildeo deixaria de reconhecer a grande transformaccedilatildeo intelectual que promoviam os jornais e as revistas lite-raacuterias permitindo a difusatildeo do conhecimento Allan Poe assim como outros homens de sua eacutepoca ndash e ateacute mais que alguns deles ndash foi sensiacutevel agraves profundas modificaccedilotildees sociais ocasionadas pela ascensatildeo da induacutes-tria e pelas formas de divisatildeo do trabalho as quais resultaram em uma diminuiccedilatildeo do tempo livre passiacutevel de ser empregado para apreciaccedilatildeo de arte em meados do seacuteculo XIX

Deste modo ainda que de sua parte pudesse haver certo constrangi-mento na adoccedilatildeo de alguma funcionalidade em seus textos ndash pelo menos eacute o que alguns dos relatos nos fazem crer ndash ainda que tal constrangimento pudesse ser percebido Poe natildeo deixaria de reconhecer a importacircncia de tais adaptaccedilotildees no plano dos procedimentos da obra articulando o cam-po de produccedilatildeo e o de recepccedilatildeo dos objetos literaacuterios Eacute o que podemos ler em um excerto de sua coluna ldquoMarginaliardquo (ldquoNotas agrave margemrdquo)

O progresso realizado em alguns anos pelas lsquorevistasrsquo e lsquomagazinesrsquo natildeo deve ser interpretado como quereriam certos criacuteticos Natildeo eacute uma decadecircncia do gosto ou das letras americanas Eacute antes um sinal dos tempos eacute o primeiro indiacutecio de uma era em que se caminharaacute para o que eacute breve condensado bem dirigido e se iraacute abandonar a bagagem volumosa eacute o advento do jornalismo e a decadecircncia da dissertaccedilatildeo Comeccedila-se a preferir a artilharia ligeira agraves gran-des peccedilas Natildeo afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que haacute um seacuteculo mas indubitavelmente eles o tecircm mais aacutegil mais raacutepido mais reto mais metoacutedico menos pesado De um lado o fundo dos pensamentos se enriqueceu Haacute mais fatos conhecidos e registrados mais coisa para refletir Somos inclinados a enfeixar o maacuteximo possiacutevel de ideias no miacutenimo de volume a espelhaacute-las o mais rapidamente que pudermos Daiacute nosso jornalismo atual daiacute tambeacutem nossa profusatildeo de magazines37

36 ldquoVerdadeiro desafio a todas as formas de economismo a ordem literaacuteria (etc) que progressivamente se instituiu ao fim de um longo e lento processo de autonomizaccedilatildeo apresenta-se como um mundo econocircmico invertido aqueles que nele entram tecircm interesse no desinteresse como a profecia e especialmente a profecia de infortuacutenio que segundo Weber prova sua autenticidade pelo fato de que natildeo proporciona ne-nhuma remuneraccedilatildeo a ruptura hereacutetica com as tradiccedilotildees artiacutesticas em vigor encon-tra seu criteacuterio de autenticidade no desinteresserdquo (Bourdieu 2002 p 245)

37 Edgar Allan Poe (1999c p 165)

Assim natildeo obstante sua inserccedilatildeo nesses magazines como jorna-lista poder ter sido ideologicamente contraacuteria agraves suas pretensotildees en-quanto escritor Edgar Allan Poe pocircde recolher desse campo natildeo soacute a renda necessaacuteria ao seu sustento mas a praacutetica de uma literatura veloz fundamental ao campo jornaliacutestico na produccedilatildeo de papers e contos Principalmente pocircde recolher dele um vasto material para suas criacuteticas sobre os maus escritores seus contemporacircneos De fato apesar de ter construiacutedo sua literatura a partir das condiccedilotildees disponiacuteveis dentro desse mesmo campo de atuaccedilatildeo Poe como assinala Braulio Tavares (2010) tinha manifesta intenccedilatildeo de superar a maneira como outros jornalistas procediam e de produzir um gecircnero literaacuterio que ainda que respondes-se agrave necessidade do puacuteblico e dos editores ndash para o funcionamento dos perioacutedicos ndash pudesse ter qualidade esteacutetica

Em muitos de seus contos a exemplo de ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo ldquoUma trapalhadardquo ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o dia-bordquo e A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o escritor trabalhou ques-totildees pertinentes agrave produccedilatildeo da literatura sobretudo a partir de uma refle-xatildeo de sua proacutepria obra e de seus procedimentos38 O uacuteltimo conto centro deste estudo A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade que data de 1845 eacute uma saacutetiraparoacutedia ao Livro das mil e uma noites construiacuteda a partir da ideia de que o mundo literaacuterio teria permanecido em ignoracircncia a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroiacutena Sherazade ndash contrariamente agrave versatildeo orientalista conhecida Nesta conforme resume Mamede Mustafa Jarouche tradutor drsquoAs mil e uma noites para o portuguecircs

Um rei chamado Sahriyar [] membro de poderosa dinastia descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo Em crise esse rei sai pelo mundo iniciando uma busca que eacute tambeacutem de fundo espiritual ele quer saber se existe neste mundo algueacutem mais infeliz do que ele A resposta eacute positiva com um agravante ningueacutem pode conter as mulheres ndash eacute o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido Entatildeo ele retorna para o seu reino deci-dido a tomar uma medida draacutestica e violenta casar-se a cada noite com uma mulher diferente mandando mataacute-la na manhatilde seguinte

38 De forma bem particular Poe trabalha o chiste ou ldquoironia autorreflexivardquo (ver a respeito Sena [2010]) aleacutem de se lanccedilar agrave criacutetica de seus adversaacuterios ficcionalmente dando-lhes emprego nas ediccedilotildees do Dial Down-Easter North American Quarterly Humdrum Seus colegas de profissatildeo vatildeo desde o editor-chefe da Blackwood aos jorna-listas que colaboram em revistas cobrando ldquoum centavo por linhardquo nos contos ldquoComo escrever um artigo agrave moda Blackwoodrdquo e ldquoO anjo do bizarrordquo respectivamente

Depois de muitas mortes e pacircnico entre as famiacutelias daacute-se a intervenccedilatildeo da heroiacutena ela eacute filha do vizir mais importante do reino possui grande cultura e inteligecircncia chama-se Sahrazad [] e elaborou uma estrateacutegia infaliacutevel por meio das histoacuterias que vai sucessivamente noite apoacutes noite desfiando diante de um rei a princiacutepio assustado mas depois cada vez mais seduzido e encan-tado (Jarouche 2006 p 9)

Contrariamente em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroiacutena empe-nhando-se assim em trazer agrave tona a lsquoverdade dos fatosrsquo a partir das infor-maccedilotildees encontradas no guia fictiacutecio ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo [ldquoTellmenow Isitsoumlornotrdquo] inserido na heranccedila enciclopedista do Ocidente (enxergan-do no Oriente um ldquooutrordquo) e agrave moda da produccedilatildeo jornaliacutestica do seacuteculo XIX No conto Poe torna risiacuteveis as formas de produccedilatildeo e de recepccedilatildeo dos elementos maravilhosos e realistas a partir de um efeito de estranha-mento diegeacutetico que termina por colocar agrave prova os mesmos conceitos o realismo o maravilhoso literaacuterio a miacutemesis e sobretudo as formas de produccedilatildeo acesso e recepccedilatildeo do conhecimento em sua eacutepoca

A visatildeo criacutetica da praacutetica de contemporacircneos nos perioacutedicos lhe for-neceu certo humor em seus escritos esse sendo aqui compreendido mais como disposiccedilatildeo ou estado de espiacuterito do que realmente um caraacuteter risiacute-vel mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes Dizemos isso porque em grande parte dos contos em que Poe se serve da saacutetira ou paroacutedia em relaccedilatildeo aos seus colegas de profissatildeo encontramos mais disposiccedilatildeo a um provaacutevel riso amargo ndash possivelmente por atentar para a perfeita existecircncia desses literatos que natildeo tinham escruacutepulos em descum-prir as regras do ldquomundo econocircmico invertidordquo acima mencionado ndash do que a inegaacutevel conjuntura formal que permitiria o riso deliberado ainda que esse seja sempre factual ou neo-factualmente possiacutevel39 Sem conde-nar completamente a existecircncia desse tipo de literatura contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superaccedilatildeo natildeo soacute das obras de outros como tambeacutem das suas Edgar Allan Poe produziu textos voltados agraves possibilidades de tipificaccedilatildeo que esse domiacutenio discursivo permitia O conto curto como se sabe foi o resultado mais profiacutecuo que encontrou

39 Sobre isso admitimos sem duacutevida que o riso possui nuances sobre as quais a esteacuteti-ca ainda natildeo encontrou uma definiccedilatildeo universal sem refutaccedilatildeo se eacute que seja possiacutevel tal coisa ainda que devamos considerar os frutiacuteferos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Henri Bergson dentre outros teoacutericos

nessa inquiriccedilatildeo em muito uma tentativa de suscitar uma impressatildeo cen-tralizada no leitor ou aquilo que nomeou ldquounidade de efeitordquo40

Mas voltemos ao risiacutevel Pois ainda que Poe tenha atingido mais no-toriedade nos seacuteculos posteriores agrave sua morte pela produccedilatildeo de histoacuterias de crime misteacuterio e horror ele plasmou uma singular obra de contos sa-tiacutericos humoriacutesticos e grotescos Essa tessitura textual se configura para noacutes ldquometacomunicativardquo tendo por assunto do discurso ldquoa relaccedilatildeo entre os falantesrdquo ou os participantes de determinado evento seja ele literaacuterio ou natildeo conforme a elucidaccedilatildeo de Gregory Bateson (2002 p 87) ndash neste caso pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risiacuteveis como campo de criacutetica (e de defesa de criacuteticas) Igual estrateacutegia ocorre em ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo no qual o Poe-narrador defende-se da acusaccedilatildeo de que suas histoacuterias natildeo tenham uma ldquomoralrdquo ela estaacute laacute porque os criacute-ticos literaacuterios daratildeo um jeito de encontraacute-la ldquoQuando chegar a ocasiatildeo apropriada tudo o que o cavalheiro pretendia seraacute trazido agrave luz no Dial ou Down-Easter juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde ndash e assim tudo vai dar certo no fimrdquo (Poe 2002 p 71)

Esse caraacuteter metacomunicativo se tornou para noacutes uma importan-te interrogaccedilatildeo Pois esta noccedilatildeo natildeo abrange questotildees unicamente for-mais mas principalmente as regras do jogo linguiacutestico-literaacuterio que satildeo indispensaacuteveis ao funcionamento do texto ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que elencados a um niacutevel formal em muito se assemelham aos de seus contos ldquoseacuteriosrdquo a exemplo de sua aproximaccedilatildeo com a literatura fantaacutestica maravilho-sa ou de crimes aleacutem de seu uso particular do grotesco Sua narrativa constante em primeira pessoa uma discussatildeo em torno de alguma ideia filosoacutefica descriccedilotildees raras de espaccedilo salvo em casos necessaacuterios agrave die-gese uma possiacutevel ldquounidade de efeitordquo guiando os procedimentos estilo retoacuterico natildeo raras vezes solene Seu jogo poreacutem eacute elaborado a partir de 40 A unidade de efeito eacute um dos conceitos elaborados por Poe em ensaios como A fi-

losofia da composiccedilatildeo para traduzir a busca de um autor por abarcar dentro de uma obra uma impressatildeo escolhida desde antes de sua concepccedilatildeo com vistas a provocar no leitor um efeito caracteriacutestico Todos os procedimentos escolhidos girariam em torno desse uacutenico efeito tendo-se o desenlace em vista mas apoiando-se principal-mente sobre o aacutepice da obra A unidade de efeito eacute assim um preacute-monitoramento formal da expressividade da obra

inter-relaccedilotildees entre tais procedimentos diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de ldquoum centavo por linhardquo41 estando contudo ele mesmo inserido em um contexto em que como observa Joseacute Ribeiro (1996 p 11) ldquoa loacutegica da relaccedilatildeo empresa ver-sus consumidor na qual a imprensa perioacutedica estaacute inserida faz com que empreendimentos criativos em busca de novas fatias de mercado (natildeo garantidas de antematildeo) sejam adotados cautelosamenterdquo Esse jornalis-mo como Poe o vecirc desvirtua barateia ou mesmo vulgariza o conheci-mento e eacute tambeacutem fonte profiacutecua de erros ainda que em casos positivos possa ser de grande valia agrave difusatildeo do conhecimento Poe ndash eacute importante insistir ndash natildeo era avesso agrave ampla produccedilatildeo de publicaccedilotildees jornaliacutesticas (homens que satildeo retalhados e se levantam ilesos na outra manhatilde) mas admitia que a sua proliferaccedilatildeo tornava confuso o acesso a fontes fiaacuteveis

Em um primeiro momento a leitura drsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas dentro daquela que o autor constroacutei em forma de saacutetira drsquoAs mil e uma noites e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irocircnico Afinal propor uma narrativa maravilhosa a partir de um vieacutes risiacutevel natildeo seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista Poreacutem afastamo-nos dessa compreensatildeo por trecircs razotildees A primeira eacute o uso constante do insoacutelito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe mesmo quando nosso escritor recorria a um esclarecimento final apelando agrave ob-jetividade dos fatos42 A segunda justificativa encontra-se na epiacutegrafe de A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade ldquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeo velho ditadordquo (Poe 2010 p 156) [ldquotruth is stranger than fictionrdquo] Este ditado foi uma vez citado por Poe na coluna ldquoMarginaliardquo

lsquoA verdade eacute mais estranha do que a ficccedilatildeorsquo eacute de tal modo um refratildeo para sempre na boca dos desinformados que estes o citam como poderiam ci-tar qualquer outra proposiccedilatildeo que lhes parecesse paradoxal ndash pela mera propriedade de paradoxo Pessoas que leem nunca citam o ditado porque puros truiacutesmos natildeo merecem ser mencionados Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno Ele era um homem de

41 Como escreve no conto ldquoO anjo do bizarrordquo42 Ou seja quanto optava pelo estranho ou pelo maravilhoso segundo as teorias todo-

rovianas jaacute que ao fantaacutestico quase natildeo recorre salvo em raros contos como ldquoO gato pretordquo conforme observa o mesmo criacutetico

gecircnio mas suas linhas foram um fracasso eacute claro uma vez que as realidades do planeta detalhados na mais prosaica linguagem envergonham e confun-dem bastante todas as fantasias acessoacuterias do poeta43 (Poe 1984 p 1328)

Assim o ldquoparadoxordquo apresentado pelo ldquovelho ditadordquo tantas vezes repetido por pessoas desinformadas que natildeo leem natildeo levaria em conta uma das caracteriacutesticas principais da ficccedilatildeo pois como no longo poema de seu amigo sobre o planeta Saturno a necessidade de verossimilhanccedila externa (descriccedilatildeo da realidade empiacuterica) natildeo deixaria espaccedilo para a imaginaccedilatildeo para as fantasias que se tornam desta forma apenas aces-soacuterias ao poema Por fim a terceira justificativa se situa na proacutepria orga-nizaccedilatildeo narrativa do conto pela dubiedade que Poe estabelece a partir da construccedilatildeo de alguns niacuteveis na narrativa e pela proacutepria existecircncia de trecircs narradores o autor empiacuterico o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem Envolvidos na realidade empiacuterica ou insoacutelita aqueles niacuteveis satildeo construiacutedos em relaccedilatildeo ao contexto de produccedilatildeo lite-raacuteria norte-americano no seacuteculo XIX Entendemos que seraacute proveitoso compreender as regras do jogo literaacuterio que Poe estabelece com seus leitores aleacutem de observarmos como se procede a autorreflexatildeo criativa de Poe no conto A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade

O narrador deste conto embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literaacuterio ateacute entatildeo parece no entanto em mui-tos momentos natildeo ter tido acesso ao proacuteprio livro que critica As mil e uma noites pois comete ldquoenganosrdquo e supressotildees em relaccedilatildeo agrave narra-tiva oriental Assim por exemplo menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto44 e um rato azul quando na verdade aquela intitulada ldquoO mercador e o gecircniordquo inicia a sequecircn-cia de noites da heroiacutena Mas muito aleacutem de uma brincadeira com a narrativa parodiada esta eacute possivelmente uma resposta de Poe a uma paroacutedia feita de seu conto ldquoO gato pretordquo no ano de 184445 atestando em certa medida o desprezo na recepccedilatildeo pela elaboraccedilatildeo fantaacutestica do conto Uma reaccedilatildeo como essa por outro lado assinalaria ainda uma 43 (traduccedilatildeo livre)44 Mais uma vez assinalamos a ironia que Poe apresenta ao puacuteblico leitor e aos seus com-

panheiros de trabalho remetendo-se a uma obra de seu proacuteprio cunho ldquoO gato pretordquo45 De acordo com Thomas Mabbott (em POE Edgar Allan The Collected Works of

Edgar Allan Poe mdash Vol III Tales and Sketches [Org MABBOTT Thomas Ollive] 1978)

vez sua imersatildeo apesar de si mesmo no contexto supramencionado da produccedilatildeo jornaliacutestico-literaacuteria norte-americana com as suas limitaccedilotildees agrave criaccedilatildeo de novas formas literaacuterias e novas tipologias narrativas

Reconstroacutei-se desse modo a narrativa oriental a ldquoversatildeo usual da histoacuteriardquo permeando-a de ironias tanto no que diz respeito aos possiacuteveis maravilhoso ficccedilatildeo cientiacutefica ou realismo quanto na apreensatildeo formal dos acontecimentos Por exemplo as condiccedilotildees do cumprimento do voto do sultatildeo de matar suas esposas ao amanhecer satildeo descritas em termos ligados automaticamente ao contexto geneacuterico da ldquocultura orientalrdquo par-ticularmente de sua religiatildeo posta em paridade com a honra masculina traiacuteda do personagem a primeira natildeo mais sendo levada tatildeo a seacuterio

Devemos relembrar que na versatildeo usual da histoacuteria certo monarca tendo bons motivos para sentir ciuacutemes de sua rainha natildeo somente mandou ma-taacute-la mas fez um voto ndash por sua barba e pela do profeta ndash de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domiacutenios e no dia seguinte entregaacute-la agraves matildeos do carrasco Tendo cumprido esse voto durante muitos anos ao peacute da letra e com reli-giosa pontualidade e meacutetodo que lhe conferia grande meacuterito como homem de sentimentos pios e de excelente juiacutezo foi interrompido uma tarde (sem duacutevida quando estava rezando) por uma visita de seu gratildeo-vizir a cuja filha parece havia ocorrido uma ideia (Poe 2010 p 156-7 grifos nossos)

Buscando restabelecer a ldquoverdade dos fatosrdquo pela existecircncia do ldquoDiacutegame Eassinhounatildeordquo ndash o qual a partir apenas de uma consulta de uma leitura e de uma recepccedilatildeo ingecircnuas pode desconstruir todo um co-nhecimento literaacuterio e cultural secular baseado natildeo se sabe exatamente em quecirc ndash o narrador comeccedila

Tendo tido ocasiatildeo no curso de algumas investigaccedilotildees sobre o Oriente de consultar o Diacutegame Eassinhounatildeo obra que eacute de algum modo pouco conhe-cida [] natildeo foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literaacuterio tinha ateacute entatildeo permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir Sherazade tal como eacute descrita nas Mil e uma noites e que o desenlace ali dado natildeo totalmente inexato ateacute certo ponto merece pelo menos censura por natildeo ter ido muito mais aleacutemrdquo46 (p 156 grifos do autor)

Eacute importante observar o grifo sobre este uacuteltimo termo ndash ldquodesen-lacerdquo ndash centro da proposiccedilatildeo de uma nova organizaccedilatildeo para o conto e

46 (Poe 2004a p 369)

indicativo da plena eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos ao enredo O narrador natildeo o indica poreacutem como incorreto mas apenas como precipitado Ora uma das razotildees para que tal conclusatildeo natildeo funcione eacute para o narrador o fato de ela ser idealizada em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica ldquoeacute sem duacute-vida excessivamente mais proacutepria e agradaacutevel mas infelizmente como a maior parte das coisas agradaacuteveis eacute mais agradaacutevel que verdadeirardquo (p 158) Quando conclui sua apresentaccedilatildeo do conto e passa a palavra para Sherazade a narrativa desta seraacute contudo permeada por uma boa pitada de realismo em sentido negativo introduzido nas reaccedilotildees do Sultatildeo Suas contiacutenuas interrupccedilotildees seu ronco sua descrenccedila em relaccedilatildeo ao que ouve sua tosse para advertir sua esposa de que estaacute indo longe demais em ter-mos imaginativos vecircm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa seja em sentido temaacutetico seja textual Isso torna o encaminhamento do ldquoplanordquo de Sherazade menos simples do que pareceria na narrativa oriental ndash pois sob qual pretexto conseguiria a heroiacutena a atenccedilatildeo de seu marido e a suspensatildeo de sua pena capital Apenas pela adequaccedilatildeo do Sultatildeo ao jogo literaacuterio sua compreensatildeo de que a narrativa de Sherazade inscreve-se na ficccedilatildeo servindo portanto para o deleite esteacutetico e artiacutestico Tal natildeo ocorre no conto poeiano pois a ilusatildeo da narrativa eacute chamada constantemente agrave consciecircncia da realidade empiacuterica Se o sultatildeo em As mil e uma noites eacute um ldquobom leitorrdquo ou me-lhor um bom ouvinte pois compreende a ficcionalidade do texto literaacute-rio sem buscar apenas sua comprovaccedilatildeo nrsquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade poreacutem ele deseja apenas ver sua realidade empiacuterica sendo refletida ali ldquondash Conversa fiada ndash exclamou o reirdquo (p 166)

Sherazade narra assim uma sequecircncia de fatos impressionantes ma-ravilhosos a seu marido e a sua irmatilde que comporiam a oitava aventura de ldquoSimbad o Marujordquo ocorrida em sua velhice quando satildeo indicadas na versatildeo oriental apenas sete O fundo desse enredo seraacute contudo um diaacute-logo com a modernidade por um vieacutes cientificista cujos acontecimentos satildeo apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora mas so-bretudo virtualmente por seus ouvintes Os acontecimentos ldquomodernosrdquo seratildeo assim narrados agrave moda das noites da Araacutebia (Arabian nights) promo-vendo uma visatildeo dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caraacuteter empiacuterico por noacutes leitores de Poe A narrativa portanto natildeo visa um imediato reconhecimento mas um estranhamento inicial e a progressiva ldquovisualizaccedilatildeordquo e compreensatildeo de objetos bem conhecidos do seacuteculo XIX e

de curiosidades da natureza Eacute exemplo marcante a descriccedilatildeo de um navio a vapor pelo olhar da heroiacutena e pelo reconhecimento quase automaacutetico de Simbad de se tratar de um ldquomonstrordquo47 De fato o estilo da descriccedilatildeo parece ser mais adequado a um monstro (mariacutetimo) e se utiliza dos termos que integram a descriccedilatildeo maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compre-ensatildeo do real (os espinhos a barriga seu incomensuraacutevel tamanho)

Quando aquela coisa chegou mais perto noacutes a distinguimos perfeitamente Seu cumprimento era igual ao de trecircs das mais altas aacutervores que existem e era tatildeo largo como o grande salatildeo de audiecircncias de vosso palaacutecio oh o mais sublime e munificente dos califas Seu corpo diferente do dos demais peixes comuns era tatildeo soacutelido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da aacutegua com exceccedilatildeo de uma estreita lis-ta cor de sangue que o circundava completamente A barriga que flutuava abaixo da superfiacutecie e a qual soacute podiacuteamos vislumbrar de vez e quando ao erguer-se e cair do monstro ao sabor das ondas estava inteiramente coberta de escamas metaacutelicas de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebulo-so As costas eram chatas e quase brancas e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo (p 160)48

Ou ainda

[] Deixando aquela ilha disse Simbad ndash pois Sherazade deve compre-ender-se natildeo deu atento agrave incivil interrupccedilatildeo de seu marido ndash deixando aquela ilha chegamos a outra onde as florestas eram de soacutelidas pedras e tatildeo duras que reduziam os machados mais bem temperados com que tentaacuteva-mos derrubaacute-las (p 163)

[Nota de rodapeacute do autor] lsquoUma das mais notaacuteveis curiosidades do Texas eacute uma floresta petrificada perto das cabeceiras do rio Pasigno Consiste de vaacuterias centenas de aacutervores em posiccedilatildeo ereta todas transformadas em pedra Algumas aacutervores agora crescendo satildeo parcialmente petrificadas Este eacute um fato espantoso para os filoacutesofos da natureza e deve levaacute-los a modificar a teoria existente da petrificaccedilatildeorsquo (p 169) 49

47 O ldquomonstrordquo eacute para Poe em outras narrativas mais ligadas ao estranhamento fantaacutes-tico aleacutem de um indicativo de proporccedilotildees agigantadas signo do estranhamento e da incompreensatildeo diante da narrativa da natureza de um objeto ou de um ser Assim no conto ldquoA esfingerdquo temos a descriccedilatildeo de um ldquomonstrordquo assim como em ldquoO gato pretordquo temos a descoberta do narrador-personagem de ele mesmo se tratar de um ldquomonstrordquo pelos crimes que jamais havia imaginado poder cometer

48 (Poe 2004a p 372)49 (Poe 2004a p 375)

Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosoacuteficos como ldquoZadigrdquo e ldquoBaboucrdquo ndash o deslocamento da re-alidade da Europa do seacuteculo XVIII a um lugar longiacutenquo geralmente um paiacutes oriental para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relaccedilotildees sociais sobretudo francesas Poe organiza a narrati-va de modo que a ilusatildeo de seu leitor tambeacutem seja chamada agrave realidade Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima voltado ao mara-vilhoso exclamatoacuterio altamente descritivo pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos poreacutem estranhos Poe insere notas de rodapeacute atestando sua ldquoveracidaderdquo ndash indicando suas fontes ndash ldquoKennedyrdquo ldquo(Murray p 215 Phil Edit)rdquo ldquoMagazine Colonial de Simmonardquo No entan-to em alguns momentos Poe deixa-as de lado ou simplesmente a fonte verificada natildeo estaacute ldquocorretardquo como quando cita o Alcoratildeo

ndash Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensatildeo e prodigiosa solidez mas que natildeo obstante se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres50

ndash Isto agora eu acredito ndash disse o rei ndash porque jaacute li antes algo dessa espeacutecie num livro (p 166)

[Nota de rodapeacute do autor] A terra eacute sustentada por uma vaca de cor azul tendo chifres em nuacutemero de quatrocentos (Alcoratildeo) (p 172) 51

De acordo com Braulio Tavares esta imagem natildeo se encontra no Alcoratildeo Como resultado temos que se por um lado podemos dar ldquocre-dibilidaderdquo a algumas das informaccedilotildees e fontes que Poe menciona ndash o que demanda de seus leitores certa lsquocrenccedilarsquo no escritor e algum posi-cionamento sobre suas intenccedilotildees em elaborar desta forma seu texto ndash por outro o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado Simultaneamente Edgar Poe ironiza as proacute-prias possibilidades limitadas de crenccedila de alguns de seus leitores pois o Sultatildeo apenas pode crer ldquonaquilo que jaacute leu num livrordquo ndash livro este dotado de estatuto de ldquoverdade empiacutericardquo

50 E ainda uma vez Poe ri de tudo e de todos do Oriente e muito possivelmente da base de sua religiosidade (geneacuterica) e da crenccedila unilateral nas imagens que com-potildeem aquele livro sagrado

51 (Poe 2004a p 379)

A grande questatildeo que se impotildee nesse momento eacute a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empiacuterica dentro da verdade textual ou uma perfeita correlaccedilatildeo entre ambas Desconfiar da uacuteltima seria o papel do legiacutetimo leitor de ldquoliteraturardquo Conforme observa Anco Vieira (sp)

como toda forma de conhecimento a literatura mdash e as artes de maneira ge-ral mdash tambeacutem encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos imitando o referente (representando o que poderia acontecer) fingindo (construindo enunciados natildeo-seacuterios) plasmando uma realidade e uma ver-dade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o referente nada obstante se valer deste enquanto mateacuteria) O resultado desse modo de se relacionar com os signos eacute que na literatura o leitor ao ler um poema eacute levado a decifrar e a recifrar permanentemente o verso e no caso da prosa a se deparar com o sentido polissecircmico que as estoacuterias narradas encerram

Assim a relaccedilatildeo com a verdade empiacuterica se daacute enquanto mateacuteria lite-raacuteria na forma de referente ou seja enquanto possibilidade ndash na premissa aristoteacutelica ldquoo que poderia acontecerrdquo em um caraacuteter mais universal do que particular O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapeacute terem ou natildeo se sucedido natildeo seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual ou de verossimilhanccedila interna mas sim o natildeo existente ldquocompromissordquo de verdade entre o autor seus enunciados e o processo de recepccedilatildeo Eacute indi-ferente se as informaccedilotildees satildeo fiaacuteveis ou natildeo na realidade pois ldquonatildeo vem ao caso que estejamos informados de sua verdaderdquo (Vieira sp) Assim o fato de as referecircncias ao Alcoratildeo de as citaccedilotildees retiradas dos Magazines Asiaacuteticos e manuais de fisiologia serem verdadeiras ou falsas em relaccedilatildeo agrave realidade empiacuterica natildeo interferiria no estatuto literaacuterio do texto

ndash Pare ndash disse o rei ndash Natildeo posso suportar isso e natildeo o suporto Vocecirc jaacute me provocou terriacutevel dor de cabeccedila com suas mentiras O dia tambeacutem pelo que vejo estaacute comeccedilando a raiar Haacute quanto tempo temos estado casados Minha consciecircncia estaacute ficando perturbada de novo E depois essa uacuteltima histoacuteria do dromedaacuterio Pensa que sou maluco Em resumo vocecirc pode muito bem levantar-se e ser estrangulada (p 168)52

A condenaccedilatildeo da narradora-personagem Sherazade pela incom-preensatildeo de seu marido no tocante ao caraacuteter ficcional de sua inven-ccedilatildeo ndash o qual se confunde para ele com a ldquomentirardquo ou seja a maacute-feacute na narrativa ndash termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da

52 (Poe 2004a p 382)

produccedilatildeo literaacuteria e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a ima-ginaccedilatildeo a fantasia o maravilhoso e possivelmente uma mais especiacutefica ficccedilatildeo cientiacutefica da qual Edgar Allan Poe eacute considerado um dos ldquopaisrdquo baseada na mescla do imaginaacuterio romacircntico de seu gecircnio e trabalho poeacutetico e da difusatildeo de novas tecnologias em meados do seacuteculo XIX O consolo amargo que emana do texto (intra e extra-textualmente) suge-rindo-se o desprezo de um grupo de leitores e criacuteticos que visa apenas a verificaccedilatildeo da verdade empiacuterica dentro da verdade textual estaria situ-ado no deleite esteacutetico perdido no prazer verdadeiramente literaacuterio que resta assim para uns poucos privilegiados

[Sherazade] recebeu contudo grande consolaccedilatildeo (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da histoacuteria permanecia ainda inacabada e que a petulacircncia do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa privando-o de muitas aventuras incon-cebiacuteveis (p 169)53

REFEREcircNCIAS

BATESON Gregory ldquoUma teoria sobre brincadeira e fantasiardquo In RIBEIRO B T GARCEZ M P (org) Sociolinguiacutestica Interacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 (p 85-105)

BOUDIEU Pierre As regras da arte Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

JAROUCHE Mamede Mustafa ldquoPrefaacuteciordquo In Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordfEd Satildeo Paulo Globo 2006

Livro das mil e uma noites Vol 1 Ramo Siacuterio Trad Mamede Mustafa Jarouche 3ordf Ed Satildeo Paulo Globo 2006

POE Edgar Allan ldquoMarginaliardquo In Essays and Reviews New York Library of America 1984 (p 1223 e seg)

______ ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999a (p 101-114)

______ ldquoO princiacutepio poeacuteticordquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999b (p 75-99)

53 (Poe 2004a p 382)

______ ldquoMarginaliardquo In Poemas e Ensaios Trad Oscar Mendes e Milton Amado Satildeo Paulo Globo 1999c (p 165-186)

______ ldquoNunca aposte sua cabeccedila com o diabordquo In Assassinatos na rua Morgue e outras histoacuterias de crime e misteacuterio Trad William Lagos Porto Alegre LampPM 2002 (p 69-86)

______ ldquoThe Thousand-and-Second Tale of Scheherazaderdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004a (p 369-382)

______ ldquoNever bet the devil your headrdquo In The collected tales and poems of Edgar Allan Poe London Wordsworth Editions 2004b (p 469-475)

______ ldquoA mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazaderdquo In POE Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (Org) Contos obscuros de Edgar Allan Poe Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 156-173)

RIBEIRO Joseacute Imprensa e ficccedilatildeo no seacuteculo XIX Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym Satildeo Paulo Editora UNESP 1996

SENA Andreacute de Visotildees do ultrarromantismo melancolia literaacuteria e modo ultrarromacircntico Recife Editora UFPE 2010

SUASSUNA Ariano Introduccedilatildeo agrave Esteacutetica Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2011

TAVARES Braulio ldquoPosfaacutecio ndash A sombra luminosa (A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade)rdquo In POE Edgar Allan Contos Obscuros de Edgar Allan Poe TAVARES Braulio (org) Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 (p 181-207)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Perspectiva 2010

______ As estruturas narrativas Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 2011

VIEIRA Anco Maacutercio Tenoacuterio O que eacute e o que natildeo eacute literatura [texto ineacutedito no prelo]

Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff

Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Atualmente temos visto surgir vaacuterias releituras de contos de fadas tradicionais em diversos tipos de suportes artiacutesticos ao mesmo tempo em que observamos uma grande mudanccedila no caraacuteter de personagens de cunho fantaacutestico que ateacute o romantismo foram tidos como horren-dos e assombrados e no seacuteculo XXI tecircm se confundido e se asseme-lhado com alguns personagens de contos de fadas Eacute o caso de alguns monstros a exemplo dos vampiros que viraram sensaccedilatildeo no univer-so mais infantil e juvenil como personagens pop A aproximaccedilatildeo dos personagens desses dois gecircneros nos motivou agrave busca de suas origens e uma anaacutelise sobre a possiacutevel interseccedilatildeo entre o conto fantaacutestico e o conto de fada

A partir de um estudo sobre a teoria dos gecircneros passando pelas definiccedilotildees e caracterizaccedilotildees tanto do fantaacutestico como do conto de fadas percebemos que os dois tecircm uma mesma origem secular A origem dos contos de fadas eacute bem antiga pois satildeo em sua maioria histoacuterias que fo-ram recolhidas da tradiccedilatildeo oral de diversas culturas por pesquisadores e escritores ndash tais como Perrault e os irmatildeos Grimm ndash e por isso encontra-mos em muitos casos mais de uma versatildeo de uma mesma histoacuteria (que faziam parte de culturas diferentes) Haacute registros no Egito antigo de nar-rativas que deram origem ao que noacutes conhecemos hoje como contos de fadas e foram sendo recontadas por pessoas que as disseminaram pelo mundo atraveacutes dos seacuteculos como confirma Coelho (2012 p 36) ldquoessas diversas fontes levadas atraveacutes dos tempos para diferentes regiotildees por peregrinos viajantes invasores foram-se misturando umas agraves outras e criando as diferentes formas narrativasrdquo Esse eacute um forte exemplo da for-ccedila arquetiacutepica do mito permanecendo e sobrevivendo a guerras pragas viagens e mesmo mudanccedilas de idioma e de cultura

Ao consolidar-se como gecircnero literaacuterio em fins do seacuteculo XVIII e iniacutecios do XIX o conto de fadas passa a ser dividido em dois subgecircneros Os que tecircm sua origem nas histoacuterias populares chamados de contos de fa-das tradicionais e os que nascem da imaginaccedilatildeo de um autor conhecidos como contos de fadas artiacutesticos Para a teoacuterica Karin Volobuef (1999) o conto de fadas popular consiste em narrativas que representam a natureza essencial do ser humano e do mundo Satildeo exemplos disso agraves referecircncias aos vaacuterios periacuteodos da vida desde o nascimento passando por dificul-dades casamentos recompensas e morte tambeacutem agraves diferentes classes sociais sempre mostrando pastores miseraacuteveis ou a realeza aleacutem de uma diversidade humana e de representaccedilotildees arquetiacutepicas da natureza Ainda segundo essa autora ldquoo conto de fadas eacute moldado pela raacutepida sequecircncia de acontecimentos e quase nenhuma descriccedilatildeordquo (p 54)

Observamos ainda nessas histoacuterias populares certa uniformidade quanto agrave construccedilatildeo de personagens De acordo com Luumlthi (apud Volobuef p 54) haacute sempre a presenccedila de um heroacutei ou heroiacutena que vai enfrentar difi-culdades um oponente que vecircm desestabilizar o equiliacutebrio inicial e impor obstaacuteculos um adjunto podendo aparecer como um ser sobrenatural e que vem ajudar o heroacutei aleacutem de algumas figuras opostas ao heroacutei e uma pessoa resgatada pelo protagonista Eacute importante notar que ldquoos personagens sem-pre satildeo planos e imutaacuteveis dividem-se em bons e maus e recebem nomes geneacutericos que natildeo os individualizam (Maria priacutencipe lenhador avoacute lobo)rdquo (Volobuef p 54) e eacute comum que o que os identifica seja uma caracteriacutestica exterior como eacute o caso de Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve

Jaacute os contos artiacutesticos tecircm como caracteriacutestica principal a de tra-duzir ldquoa individualidade poeacutetica de um dado escritorrdquo (Volobuef 1999 p 57) apresentando uma forma mais definida uma estrutura estetica-mente complexa Esse tipo de conto implica em uma forma fixa que foi estruturada pelo autor do texto enquanto que os contos populares podem ser contados de memoacuteria e podem variar de acordo com a pes-soa que o narra jaacute que haacute a possibilidade de remodelaccedilatildeo da histoacuteria Poreacutem eacute importante remarcar que apesar de o conto artiacutestico apresen-tar uma estrutura definida eacute comum que ele absorva ldquocom frequecircncia elementos temaacuteticos da narrativa popularrdquo (Volobuef p 57)

O conto de fadas artiacutestico entatildeo se mostra mais proacuteximo dos con-tos fantaacutesticos que se popularizam na eacutepoca romacircntica assim como os contos de fadas Segundo o teoacuterico Tzvetan Todorov o fenocircmeno

fantaacutestico surge da ambiguidade e da incerteza Para ele haacute trecircs condi-ccedilotildees para o fantaacutestico a primeira seria o leitor considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e buscar uma interpre-taccedilatildeo natural ou sobrenatural para os acontecimentos da narrativa A segunda seria a hesitaccedilatildeo da proacutepria personagem (esta eacute uma condiccedilatildeo que natildeo precisa ser satisfeita para que haja o fantaacutestico) E por fim o leitor adotar uma perspectiva do texto especiacutefica que natildeo seja nem ldquopo-eacuteticardquo nem ldquoalegoacutericardquo como muitas vezes satildeo construiacutedos os contos de fadas (lembrando tambeacutem da existecircncia de contos de fadas populares a exemplo de As moedas furtadas coletados pelos irmatildeos Grimm que trabalham sugestotildees e elipses associadas ao fantaacutestico torodoviano)

Diferentemente de Todorov Ceserani (2006) natildeo trata o fantaacutestico como um gecircnero mas sim um modo literaacuterio em que elementos retoacutericos determinadas temaacuteticas atraveacutes de combinaccedilotildees e empregos especiacuteficos associados ainda a estrateacutegias narrativas e artifiacutecios formais o caracteri-zariam enquanto tal Entre eles haacute a posiccedilatildeo de relevo dos procedimentos narrativos no corpo da narraccedilatildeo utilizado tanto pelos contos fantaacutesticos tradicionais como pelos contos de fadas artiacutesticos Isso se daacute levando-se em consideraccedilatildeo que o fantaacutestico surge com uma base na experiecircncia nar-rativa do seacuteculo XVIII a qual explorou inuacutemeras potencialidades antes inexistentes ou pouco definidas Observamos no modo fantaacutestico um jogo bem estruturado de cenas e enredos e um ldquo[] gosto por contar casos de lsquoaventurarsquordquo (p 68) Mas tambeacutem eacute presente ldquoo destaque a manipulaccedilatildeo consciente e paroacutedica dos procedimentos narrativos o gosto por colocar relevo e explicitar todos os mecanismos da ficccedilatildeordquo (p 69)

Para corroborar com essa escolha de tratar de ambos os contos de fa-das e fantaacutestico nos servimos das ideias de Marcus Mazzari discutidas na apresentaccedilatildeo agrave nova ediccedilatildeo do livro Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (2012) de Jacob e Wilhelm Grimm Mazzari concorda com o fato de que os eventos maravilhosos nos contos de fadas populares satildeo vistos de forma inteiramente natural (convergindo para as ideias de Todorov sobre o Maravilhoso) e informa que o trabalho dos Grimm natildeo se restringiu a anotar as histoacuterias que escutavam mas tambeacutem realizaram um trabalho extenso de pesquisa filoloacutegica e mesmo de reescrita Jacob Grimm por exemplo tenta definir que os seus Contos maravilhosos infantis e domeacutes-ticos (no original Kinder und Hausmaumlrchen) seriam expressatildeo de uma ldquopoesia da Naturezardquo criaccedilatildeo anocircnima e espontacircnea Ele proacuteprio tenta

dividir sua produccedilatildeo em contos populares (Volksmaumlrchen) que foram os coletados das narrativas orais e os contos artiacutesticos (Kunstmaumlrchen) his-toacuterias elaboradas a partir de sua proacutepria criatividade assim como teremos posteriormente as produccedilotildees de Hans Christian Andersen e as de Oscar Wilde divisatildeo esta que tambeacutem foi usada por Volobuef

Eacute interessante observar que apesar de os contos de fadas particular-mente os contos dos Grimm terem atualmente um grande apelo infantil eles natildeo foram escritos particularmente para crianccedilas mostrando vaacuterias vezes um caraacuteter assustador grotesco bem como uma seacuterie de referecircn-cias ligada agrave sexualidade Mas desde o lanccedilamento das primeiras ediccedilotildees (1812 e 1815) os contos dos Grimm chamaram a atenccedilatildeo das crianccedilas e isso gerou uma autocensura assim nas ediccedilotildees posteriores Wilhelm Grimm que ficou responsaacutevel pelas reediccedilotildees buscou retirar das histoacute-rias vaacuterios elementos que julgou inadequados para o puacuteblico infantil

Tratemos agora de dois exemplos literaacuterios concretos para discutir de maneira pontual as relaccedilotildees entre os universos da oralidade folcloacute-rica e do fantaacutestico O vampiro (1816) de John Polidori (1795-1821) e O califa cegonha (1825) de Wilhelm Hauff (1802-1827) Neste segundo em especial veremos um exemplo de conto de fadas artiacutestico que se aproxima de um maravilhoso caro ao Livro das mil e uma noites num franco processo de intertextualidade

O conto de Polidori tem como substrato as lendas folcloacutericas sobre monstros oriundos de regiotildees recocircnditas da Europa contudo se origina de sua proacutepria criatividade e eacute inspirado num texto inacabado de Lord Byron a quem servia como meacutedico particular e parceiro de aventuras

Percebemos em vaacuterios trechos dessa histoacuteria uma das primeiras sobre vampiros em liacutengua inglesa exemplos de crendices do povo neste caso de uma Greacutecia oitocentista de cultura potencialmente orientali-zante (estando sob o domiacutenio dos turcos) locus horrendus distinto dos espaccedilos ligados agrave razatildeo ocidental Eacute nesta ambiecircncia que os habitantes da Greacutecia narram ao protagonista do conto em viagem os estranhos acontecimentos que se passavam no lugar

[] Ianthe ficava ao lado observando os efeitos maacutegicos do laacutepis desenhando cenaacuterios de sua terra ela entatildeo descrevia para ele danccedilas de roda ao ceacuteu aber-to com todos os tons vibrantes da memoacuteria jovem [] transmitia-lhe as his-toacuterias sobrenaturais conhecidas por sua ama A seacuterie de crenccedilas aparentes na-quilo que narrava despertou o interesse de Aubrey [] (Polidori 2010 p 59)

Podemos observar claramente nesse trecho a forte influecircncia que o autor sofre das narrativas orais natildeo soacute em relaccedilatildeo ao tema principal do conto (o vampirismo) mas tambeacutem no proacuteprio enredo da histoacuteria que trata de crenccedilas e personifica os medos que as pessoas tinham do des-conhecido num soacute personagem o famigerado vampiro lord Ruthven

Este conto todavia apesar dos iacutendices que o ligam ao maravilho-so das culturas orais e folcloacutericas eacute marcado por um sobrenatural bem mais proacuteximo do fantaacutestico Lord Ruthven eacute descrito como um homem diferente a um tempo nobre e excecircntrico de perfil e feiccedilotildees belas mas com cores morticcedilas Eacute por isso que tanto pode atrair as mulheres como tambeacutem causar profundo horror a outras especialmente pelo olhar Desde o iniacutecio inquieta e desperta a desconfianccedila do leitor servindo de elo aparente agraves fantasmagorias que passam a ocorrer

A presenccedila de seres e acontecimentos sobrenaturais eacute comum aos contos de fadas e fantaacutesticos poreacutem o caraacuteter assustador que obra de Polidori confere a esses elementos estaacute ligado ao gecircnero fantaacutestico Essa natureza apavorante que o conto imprime ao personagem sobrenatural por exemplo eacute reforccedilada pelas duacutevidas tanto do leitor como do protago-nista da histoacuteria Aubrey que continuamente se pergunta a respeito das caracteriacutesticas estranhas de Ruthven

Durante o conto o protagonista transita de um mundo em que natildeo se acredita em vampiros e acontecimentos sobrenaturais para outro em que estas coisas satildeo reais Por outro lado com tal aparente descoberta ele passa a soacute pensar nisso uma monomania que o leva agrave loucura ndash mais um elemento que aparece constantemente no fantaacutestico como possiacute-vel explicaccedilatildeo para a sobrenaturalidade Eacute por isso que O vampiro se distancia do maravilhoso ligado aos contos de fadas e se aproxima da definiccedilatildeo todoroviana de fantaacutestico-estranho na qual a explicaccedilatildeo para os elementos sobrenaturais eacute a loucura ou o sonho

Como sabemos os aspectos duacutebios e ambiacuteguos satildeo a principal caracte-riacutestica do gecircnero fantaacutestico segundo Todorov o que nos faz considerar essa obra de Polidori como conto fantaacutestico tambeacutem Assim percebemos nela uma convergecircncia entre os gecircneros do conto artiacutestico e do conto fantaacutestico

Em relaccedilatildeo ao segundo conto para tratarmos de uma obra de cunho maravilhoso com aproximaccedilatildeo do Livro das mil e uma noites nos basearemos nas obras do alematildeo Wilhelm Hauff Ao analisarmos o seu livro Maumlrchen numa traduccedilatildeo integral para o francecircs pudemos

notar vaacuterias caracteriacutesticas que corroboram tal estudo O livro eacute dividi-do em partes mais extensas que satildeo fragmentadas em contos menores agrave maneira oriental Nos deteremos na narrativa de Lrsquohistoire du calife cigogne54 que faz parte da coletacircnea La caravane A obra de Hauff foi produzida no contexto das pesquisas e publicaccedilotildees dos irmatildeos Grimm acompanhadas pela traduccedilatildeo e difusatildeo do Livro das mil e uma noites assim o jovem alematildeo sofreu influecircncia desse imaginaacuterio maacutegico ligado ao Oriente ao publicar em 1826 sua referida obra

Em La caravane conta-se a histoacuteria de um grupo de viajantes que atravessa o deserto voltando de Meca para Bagdaacute Ao receber a compa-nhia de um viajante estrangeiro os homens comeccedilam a se contar histoacute-rias para passar mais raacutepido o tempo E assim durante o dia eles para-vam de cavalgar e narravam pequenas histoacuterias esperando o pocircr do sol periacuteodo menos quente para prosseguirem viagem Como em As mil e uma noites eles utilizam a estrateacutegia das narrativas para permanecerem vivos Eacute numa dessas histoacuterias que se narra o acontecido com o califa cegonha que iremos analisar a seguir

Primeiramente podemos observar que o conto trata de pessoas marcadas pelas suas classes sociais um califa um vizir e uma princesa por exemplo Como vimos eacute recorrente nos contos de fadas a imagem dos personagens a partir de seu papel na sociedade O califa e seu vizir compram uma pequena caixa com um poacute e uma escritura em liacutengua desconhecida Ao buscarem saber do que se tratava descobrem com a ajuda de um saacutebio que a partir daquele poacute eles poderiam transfor-mar-se em qualquer animal e uma vez metamorfoseados conseguiriam compreender-lhes todas as falas Animados com a ideia eles se trans-formam em cegonhas mas apoacutes terem desobedecido agrave norma de natildeo rirem esquecem o que devem falar para voltarem a ser humanos

Encontramos assim mais um elemento bastante recorrente nos contos de fadas e mesmo agraves narrativas das Mil e uma noites que seria a metamorfose de humanos em animais Mais uma vez essa metamor-fose aparece como uma espeacutecie de maldiccedilatildeo que prende o personagem Interessante observar que no iniacutecio do conto o califa sente-se muito fe-liz e presenteado com o dom de poder se transformar em animal como verifica-se no trecho do manuscrito que o califa comprou 54 A histoacuteria do califa cegonha (as traduccedilotildees de Hauff seratildeo a partir de agora de minha

autoria vertidas do francecircs)

Homem tu que encontras esta [caixa] agradeces agrave Allah por sua graccedila Aquele que usar um pouco do tabaco contido nesta caixa e disser ao mesmo tempo Mutabor poderaacute se transformar em qualquer animal e compreenderaacute a liacutengua dos animais (Hauff 1998 p 23)

Assim o califa e o vizir resolvem utilizar a magia em si proacuteprios bem como o tipo de animal que iratildeo se tornar no caso dessa histoacuteria a maldiccedilatildeo eacute natildeo poder voltar a ser humano Diferentemente do que observamos em vaacuterios contos de fadas tradicionais no texto de Hauff o personagem se metamorfoseia em animal por vontade proacutepria e mes-mo com certa vaidade em poder fazecirc-lo

Podemos reconhecer na histoacuteria do califa cegonha certa moral jaacute que transformados neste animal o protagonista e o seu vizir encontram uma coruja que se diz ser uma princesa encantada pelo mesmo homem que lhes vendeu o poacute maacutegico A princesa pode ajudaacute-los a encontrar o tal mago que faraacute com que eles descubram como voltar a ser humanos enquanto que ela proacutepria poderaacute voltar a ser princesa caso um deles a aceite como esposa Atraveacutes do elemento da metamorfose se estabelece um importante intertexto com as narrativas do Livro das mil e uma noi-tes a exemplo de uma presente na 50ordf noite quando a filha do rei luta contra um gecircnio e os dois mudam diversas vezes de forma

Ao ajudar a princesa que se revela uma bela jovem e ser ajudado por ela o califa e o vizir conseguem voltar a sua forma humana e re-tornam para a cidade de Bagdaacute onde o povo encontrava-se muito in-feliz por acreditar na morte de seu governante Ao chegarem agrave cidade os protagonistas descobrem que o mago que os transformou tinha lhe usurpado o trono mas acaba punido Encontramos mais uma vez o famoso ldquofelizes para semprerdquo presente nos contos de fadas

Observamos que tambeacutem na obra de Hauff a foacutermula das narrati-vas orais se repete um heroacutei vive bem e eacute apresentado a um conflito do qual consegue sair e dele ainda ganha alguma recompensa Tambeacutem em relaccedilatildeo aos personagens apresentados identificamos semelhanccedilas com os contos populares O califa se caracteriza como o heroacutei o mago que se apresenta primeiramente como um mascate eacute o oponente O vizir eacute o personagem adjunto enquanto que a princesa se apresenta como a pessoa que eacute resgatada pelo heroacutei e ao mesmo tempo recompensa

Eacute possiacutevel observar na obra de Hauff a forte presenccedila do elemento maravilhoso bem representado entre outros motivos pelo poacute maacutegico que

permite a transformaccedilatildeo em animal e os personagens natildeo apresentam ne-nhum tipo de estranhamento ao descobrirem tais possibilidades Eacute o mes-mo que acontece nas Aventuras de Alice no paiacutes das Maravilhas de Lewis Carroll quando a protagonista que vivia no mundo que conhecemos eacute transportada para um paiacutes em que o maravilhoso aparece como o natural das coisas Para a personagem lagarta com quem conversa em determina-da passagem originaacuteria do paiacutes das Maravilhas natildeo eacute estranho a pessoa mudar de tamanho constantemente isso constitui uma novidade para a garota contudo logo aceita Entatildeo natildeo haacute quebra da realidade daquele lugar jaacute que o Maravilhoso parte de uma coerecircncia e verossimilhanccedila que lhe satildeo tiacutepicas distinto por exemplo do sobrenatural inquietante do con-to de Polidori Isso eacute o que acontece tambeacutem em Lrsquohistoire du calife cigogne pois no universo em que vivem os personagens a magia eacute algo verossiacutemil natildeo proporcionando nenhuma quebra da realidade que conheciam

Percebemos entatildeo na narrativa de Hauff uma grande proximida-de com o Maravilhoso puro todoroviano que acredita nos elementos maacutegicos e transfiguradores como inatos agrave realidade Sabemos que o ele-mento maravilhoso jaacute era comum nas histoacuterias populares sobre fadas mas aqui lhe eacute acrescentado uma descriccedilatildeo mais detalhada do que a das narrativas puramente orais e folcloacutericas a exemplo do trecho da trans-formaccedilatildeo dos dois seres humanos em cegonhas

Suas pernas comeccedilaram a reduzir de volume para se tornarem finas e ver-melhas as belas babouches [pantufas orientais] amarelas do califa e do seu companheiro se transformaram em patas de cegonhas seus braccedilos tornaram-se asas seus pescoccedilos se alongaram desproporcionalmente suas barbas desa-pareceram e seus corpos se cobriram de penas delicadas (Hauff 1998 p 24)

Normalmente esse tipo de descriccedilatildeo mais detalhada natildeo eacute encon-trada nas narrativas populares o que facilita sua classificaccedilatildeo como conto artiacutestico

A narrativa de Hauff sofre como vimos grande influecircncia do orientalismo O cenaacuterio e os personagens selecionados para a histoacuteria demonstram facilmente a presenccedila do imaginaacuterio dessa cultura e drsquoAs mil e uma noites Em La caravane temos a presenccedila em vaacuterios niacuteveis das narrativas orais o que nos remete tanto agraves histoacuterias de Sherazade mas tambeacutem aos contos populares recolhidos pelos Grimm tendo ainda como base sua proacutepria imaginaccedilatildeo

REFEREcircNCIAS

AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura Volume I Coimbra Livraria Almedina 1991

CESERANI Remo O Fantaacutestico Curitiba Editora UFPR 2006

COELHO Nelly Novaes O Conto de Fadas siacutembolos mitos arqueacutetipos 4ordf ed Satildeo Paulo Paulinas 2012

HAUFF Wilhelm Contes Arles Babel 1998

Livro das mil e uma noites Trad de Mamede Mustafa Jarouche (Vol 1) Satildeo Paulo Globo 2012

MAZZARI Marcus ldquoO bicentenaacuterio de um claacutessico poesia do maravilhoso em versatildeo originalrdquo In GRIMM Jacob GRIMM Wilhelm Contos maravilhosos infantis e domeacutesticos (1812-1815) Satildeo Paulo Cosac Naify 2012

POLIDORI John ldquoO Vampirordquo in SILVA Alexander (org) Contos claacutessicos de vampiro Satildeo Paulo Hedra 2010 (p 51-77)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave literatura fantaacutestica 4ordf ed Satildeo Paulo Perspectiva 2010

VOLOBUEF Karin Frestas e arestas a prosa de ficccedilatildeo do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas

Julia Troncoso(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

Heloiacutesa Seixas eacute uma escritora carioca que iniciou sua carreira na aacuterea em que se formou jornalismo Hoje com diversos livros publica-dos eacute em sua obra de estreacuteia (uma coletacircnea de contos) Pente de Vecircnus que consta Iacuteblis conto que foi novamente compilado a outras narrativas fantaacutesticas por Braulio Tavares em Paacuteginas de sombra ndash contos fantaacutesti-cos brasileiros Em Iacuteblis conhecemos Camila uma pesquisadora da cul-tura islacircmica Seixas nos conta com detalhes o fluxo de consciecircncia de Camila durante o dia em que ela retorna a Paris onde mora

O estilo de Heloiacutesa Seixas se desenvolve de uma maneira na qual o elemento fantaacutestico eacute de forma um pouco abrupta inserido em uma narrativa que em sua quase totalidade eacute realistaimpressionista Grande parte do corpo do texto eacute dedicada a criar uma imagem do perfil psi-coloacutegico de Camila Esse recurso jaacute havia sido registrado por Todorov ldquo[] natildeo haacute de fato aqui nenhuma preparaccedilatildeo para o fantaacutestico antes de sua brusca irrupccedilatildeo (o que precede eacute mais uma anaacutelise psicoloacutegica indireta do narrador)rdquo (Todorov 2010 p 31) Seixas natildeo deixa seu tex-to fugir do fantaacutestico para ser definido como estranho ou maravilhoso Permanece entatildeo equilibrado entre esse dois gecircneros sem se compro-meter com um ou outro

O que acontece eacute a gradual e delicada inserccedilatildeo de elementos inquie-tantes e misteriosos na trama num trabalho de verticalizaccedilatildeo psicoloacute-gica A presenccedila dos elementos duacutebios surge logo nas primeiras linhas ldquoo cheiro adocicado do lodordquo (Seixas 2003 p117) Aleacutem de minaretes trecircmulos Minaretes satildeo grandes siacutembolos da cultura islacircmica usados para chamar seus fieis para rezar nas diferentes horas do dia Sua altura permite que as mesquitas sejam localizadas de muito longe agraves vezes existem vaacuterios deles que costumam ser expressivamente mais altos do

que as proacuteprias mesquitas Os alicerces dessas torres satildeo construiacutedos em cima das mais profundas e impenetraacuteveis rochas e a base delas em geral natildeo costuma ficar proacutexima da superfiacutecie estando sedimentadas em soacuteli-do chatildeo E no entanto em Iacuteblis os minaretes satildeo trecircmulos

Seixas prossegue ao longo do conto pormenorizando sobre os pequenos prazeres de Camila Todos de alguma maneira camuflados e contidos dentro da figura muito polida muito distante da protagonista

Camila senta-se com satisfaccedilatildeo alisando com a matildeo a toalha de linho bran-co que recobre a mesinha O arranjo do centro delicado como um iquebana reuacutene trecircs bototildees de rosas-chaacute e alguns ramos de uma folhagem vaporosa que lhe parece avenca Ao vecirc-la sentar-se sozinha a mesa o garccedilom se apro-xima soliacutecito e retira trecircs dos quatro pratos ali dispostos Sob os pratos de louccedila branca com desenhos de flores em baixo-relevo haacute um descanso de metal redondo que daacute agrave porcelana matizes prateados [] Alcachofras Nada mais delicioso do que um tenro coraccedilatildeo de alcachofra devorado com voluacutepia depois da tortura das folhas em que eacute preciso cravar os dentes para obter apenas uma pequena amostra sofrida e efecircmera (p120 grifo meu)

Seixas cria um tratado sobre os pequenos prazeres de Camila mui-tos deles com conotaccedilotildees sexuais Eacute sobre o sistema dos prazeres e dos desprazeres que Freud afirma que tambeacutem a repressatildeo pode vir a ser apreciada como prazer Segundo ele eacute dessa maneira que os prazeres neuroacuteticos acontecem Pela repressatildeo esses desejos satildeo mantidos sub-consciente e temporariamente afastados da possibilidade de satisfaccedilatildeo

No curso das coisas acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatiacuteveis em seus objetivos ou exigecircn-cias com os remanescentes que podem combinar-se na unidade inclusi-va do ego Os primeiros satildeo entatildeo expelidos dessa unidade pelo processo de repressatildeo mantidos em niacuteveis inferiores de desenvolvimento psiacutequico e afastados de iniacutecio da possibilidade de satisfaccedilatildeo Se subsequumlentemente alcanccedilam ecircxito ndash como tatildeo facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos ndash em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfa-ccedilatildeo direta ou substitutiva esse acontecimento que em outros casos seria uma oportunidade de prazer eacute sentida pelo ego como desprazer Em con-sequumlecircncia do velho conflito que terminou pela repressatildeo uma nova ruptura ocorreu no princiacutepio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforccedilando-se de acordo com o princiacutepio por obter novo prazer Os pormenores do processo pelo qual a repressatildeo transforma uma possibi-lidade de prazer numa fonte de desprazer ainda natildeo estatildeo claramente com-preendidos ou natildeo podem ser claramente representados natildeo haacute duacutevida

poreacutem de que todo desprazer neuroacutetico eacute dessa espeacutecie ou seja um prazer que natildeo pode ser sentido como tal (Freud p3)

Eacute por isso a despeito de para o leitor Camila aparentar sentir prazer naquela situaccedilatildeo que ela fica tatildeo hesitante Torna-se claro no re-lato das primeiras experiecircncias sexuais dela que a personagem vivencia o prazer como sendo de alguma maneira iliacutecito

Era laacute o local dos encontros secretos Fora Pamela quem comeccedilara tudo mas Camila costumava ficar ainda mais excitada do que ela Os encontros eram sempre na hora da sesta quando todos da casa dormiam e o silecircncio zumbia como moscas ao sol Sentavam-se as duas no monte de feno na parte de traacutes do galpatildeo e esperavam a respiraccedilatildeo suspensa Logo ouviam os passos Era ele E o menino surgia por detraacutes do feno com seu corpo magro e alto o olhar assustado o rosto infantil Natildeo teria mais do que treze anos dois anos mais velho do que as meninas portanto Parecia sempre intimidado diante delas mas soacute ateacute que comeccedilasse a brincadeira Assim que chegava tirava o chapeacuteu e rolava-o nas matildeos desconcertado Era sempre Pamela quem dava a primeira ordem ndash Senta aqui Ele obedecia Camila afastava-se abrindo lugar para ele entre as duas Lembrava-se bem da primeira vez que acon-tecera Quando o jovem barqueiro se ajeitara no feno ao seu lado Camila olhara para suas matildeos as unhas enegrecidas e experimentara um estranho prazer (Seixas p 118 ndash grifo meu)

Se esse trecho natildeo fosse suficiente fica bastante claro no terceiro re-lato que Camila enfrenta um embate interno para ter a coragem de satis-fazer a este anseio iacutentimo ldquoSim natildeo adianta negar eacute o que vocecirc quer Seraacute como da uacuteltima vez a uacuteltima vez foi uma loucura natildeo sei o que se passa comigo eu Vocecirc gosta Seus modos finos seu charme aristocraacutetico sua ele-gacircncia de princesa tudo isso eacute uma farsardquo (p121 ndash grifos da autora) Em suma Heloiacutesa Seixas esmiuacuteccedila o perfil psicoloacutegico de Camila dando ao leitor acesso ao sistema de prazeres da personagem para no final o ecircxtase de Camila coincidir com o cliacutemax do livro Isso auxilia no efeito fantaacutestico que permanece ao final do conto pois natildeo se pode definir se o ecircxtase eacute sexual ou da morte endossando o dito freudiano de que

Se tomarmos como verdade que natildeo conhece exceccedilatildeo o fato de tudo o que vive morrer por razotildees internas tornar-se mais uma vez inorgacircnico sere-mos entatildeo compelidos a dizer que ldquoo objetivo de toda vida eacute a morterdquo e voltando o olhar para traacutes que ldquoas coisas inanimadas existiram antes das vivasrdquo (Freud p17)

Existe uma opiniatildeo generalizada de que o medo e o terror satildeo pro-vocados pelo desconhecido ldquoA mais antiga e forte emoccedilatildeo da humani-dade eacute o medo e o mais antigo medo eacute do desconhecido Poucos psi-coacutelogos negaram esse fato e a verdade dessa premissa estabelece para sempre a genuinidade e dignidade do conto inquietante de terror como forma literaacuteriardquo (Lovecraft apud Ceserani 2006 p71)

O problema nessa afirmaccedilatildeo eacute que ela eacute um pouco ambiacutegua Porque se pode facilmente interpretar que o novo faz parte unicamen-te do desconhecido Eacute claro que a hipoacutetese tem que ser testada mas o que de fato provoca o medo eacute o oculto o que ainda se estaacute por conhe-cer (no aparentemente conhecido e no totalmente desconhecido) O teatro grego entendeu isso e forjou uma das grandes regras dramatuacuter-gicas a de natildeo morrer no palco Toda cena que provocasse terror era contada natildeo mostrada E eacute claro a imaginaccedilatildeo do puacuteblico dava con-torno e definiccedilatildeo com seus proacuteprios temores Tambeacutem no cinema essa regra foi entendida Hitchcock por sua vez foi um grande apreciador dessa teacutecnica Ocultar e deixar a mente do espectador preencher com a sua proacutepria imaginaccedilatildeo aquilo de horriacutevel que natildeo era mostrado Foi igualmente o mesmo princiacutepio que transformou Tubaratildeo em um grande claacutessico Diante da peacutessima qualidade dos robocircs (animatroni-cs) que havia tornado o seu filme cocircmico Spielberg decidiu voltar agrave sala de ediccedilatildeo e mostrar o miacutenimo possiacutevel Por isso que a contribui-ccedilatildeo de Freud em seu O estranho (1919) eacute tatildeo interessante porque ele observa por meio do estudo do vocabulaacuterio muitos dos recursos utilizados por escritores para fazer literatura inquietante Parece mes-mo que esta eacute uma aacuterea da literatura especialmente propensa a ser de interesse psicanaliacutetico pois eacute tatildeo recorrente nesses textos o fluxo de consciecircncias alteradas

Nessa obra Freud traccedila longa digressatildeo acerca da palavra alematilde unheimlich Ele aborda as diversas acepccedilotildees que essa palavra tem naque-la liacutengua (arcaicas e contemporacircneas ao autor) as palavras familiares a ela suas diferentes traduccedilotildees para outras liacutenguas tambeacutem europeacuteias e por sua vez os diferentes significados dessas traduccedilotildees Esse largo panorama nos permite visualizar sua abrangecircncia e complexidade Un eacute em alematildeo prefixo de negaccedilatildeo todavia heimlich ndash secreto recocircndito furtivo ndash natildeo eacute oposto a unheimlich ndash assustador angustiante aterrori-zante ndash e sim a heimisch ndash paacutetrio domeacutestico do mesmo paiacutes Contudo

heimlich em liacutengua arcaica tinha os mesmo significados de heimisch em liacutengua moderna55

Por outro lado ele [Freud] faz notar que no termo existe forte ambivalecircn-cia e tambeacutem certa vagueza assim como uma notaacutevel ambivalecircncia existe no termo heimlich que parece de fato ter duas aacutereas de significado duas ldquoes-feras de representaccedilatildeo principaisrdquo (uma mais arcaica outra mais moderna) ldquoque sem serem antiteacuteticas satildeo todavia muito estranhas uma agrave outra a esfera da familiaridade da comodidade e a do lsquoesconderrsquo do manter fechadordquo No uso corrente unheimlich eacute o contraacuterio do primeiro significado Poreacutem basta consultar o vocabulaacuterio histoacuterico da liacutengua alematilde de Grimm para descobrir que as ambiguumlidades de significado tambeacutem de heimlich satildeo amplas e existem ligaccedilotildees profundas entre as duas aacutereas de significado (que pode indicar ldquoo lugar livre da influecircncia de fantasmasrdquo mas tambeacutem ldquoescondidordquo ldquoperigosordquo ldquofechado para a consciecircnciardquo ldquoinconscienterdquo e assim por diante) Heimlich pode portanto ter o mesmo significado de unheimlich como acontece com outras palavras indo-europeacuteias que ambiguamente remetem a significados ou funccedilotildees contrapostas pode-se pensar por exemplo em ldquohoacutespederdquo que possui alguma afinidade semacircntica com heimlich (Ceserani 2006 p 137-138)

Logo fica clara a intimidade que o conceito de Estranho tem com o de familiar Para Freud o Estranho acontece quando se entra em con-tato com algo de familiar visto por uma nova perspectiva Quanto mais familiar maior a surpresa de reparar uma nova camada de significado O ato de ver algo completamente novo geralmente natildeo se atrela a expec-tativas gerando um efeito inquietante distinto A experiecircncia do deacutejagrave vu eacute um claro exemplo de inquietaccedilatildeo aflorada pela familiaridade

[] Deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna Essa categoria de coisas assusta-doras construiria entatildeo o estranho e deve ser indiferente a questatildeo de saber se o que eacute estranho era em si originalmente assustador ou se trazia outro afeto Em segundo lugar se eacute essa na verdade a natureza secreta do estra-nho pode-se compreender porque o uso linguumliacutestico se estendeu da Heimlich para o seu oposto das Unheimlich pois esse estranho natildeo eacute nada novo ou alheio poreacutem algo que eacute familiar e haacute muito estabelecido na mente e que somente se alienou desta atraveacutes do processo de repressatildeo (Freud 1919 p 13 ndash traduccedilatildeo minha)

55 Haacute de se observar tambeacutem que hoje em teoria da literatura aquilo que Freud cha-mou de Unheimlich embora ainda seja traduzido como Estranho eacute na verdade facil-mente entendido como Fantaacutestico

Em Iacuteblis a familiaridade de Camila com a situaccedilatildeo e com o Islatilde eacute o que provoca o efeito inquietante no final do conto Ela conhece um homem na estaccedilatildeo de trem que recorda a ilustraccedilatildeo de um militante da jihad de um livro que estava lendo Este homem aparece novamente no mesmo vagatildeo de trem que ocupava ocasiatildeo em que deixa cair proacuteximo a Camila seu passaporte (sugere-se que ela suspeita que tal ato tenha sido proposital no intuito de um possiacutevel contato posterior) O desco-nhecido ao mesmo tempo a fascina e aterroriza fazendo com que perca seu centramento Muitas discussotildees angustiadas ocorrem no plano psi-coloacutegico mas haacute o momento final da confrontaccedilatildeo que se daacute no plano real pela via do sexo Tudo enfim que nos surpreende como estranho se aproxima de memoacuterias que noacutes conscientemente ou natildeo temos

[] E eacute assim num aacutetimo como um relacircmpago que corta os ceacuteus que ela se recorda Iacuteblis Iacuteblis na literatura islacircmica quer dizer Vecircnus a estrela da manhatilde Camila abre ainda mais os olhos sentindo em sua espinha um frio de morte Vecircnus o elo entre a luz e as trevas siacutembolo de Luacutecifer Luacutecifer o anjo caiacutedo democircnio entre trevas e luz Os olhos quase saltando das oacuterbitas Camila tenta gritar mas as matildeos grossas e quentes rodeiam sua garganta com firmeza (Seixas 2003 p 123)

Nessa cena aquilo que era apenas siacutembolo assume plena e tangiacutevel funccedilatildeo (funccedilatildeo em sentido freudiano quando o imaginaacuterio se faz realida-de) Logo o limiar entre realidade e crenccedila se extingue Camila antes fa-miliar a estes siacutembolos eacute tomada entatildeo por essa sensaccedilatildeo arrebatadora de estranhamento Se ela natildeo os reconhecesse esse efeito nunca aconteceria pois natildeo teria a capacidade de notar o caraacuteter extraordinaacuterio da situaccedilatildeo

Freud acredita que existe uma espeacutecie de intuiccedilatildeo animista em todo ser humano que eacute reprimida mas que pode manifestar-se diante de algo que nos inquieta

Haacute mais um ponto de aplicaccedilatildeo geral que gostaria de acrescentar embora estritamente falando tenha sido incluiacutedo no que jaacute foi dito acerca do ani-mismo e dos modos de accedilatildeo do mecanismo mental que foram superados mas penso que merece destaque especial Refiro-me a que um estranho efei-to se apresenta quando se extingue a distinccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo e realidade como algo que ateacute entatildeo consideraacutevamos imaginaacuterio surge diante de noacutes na realidade ou quando um siacutembolo assume plenas funccedilotildees da coisa que simboliza e assim por diante Eacute esse elemento que contribui natildeo pouco para o estranho efeito ligado agraves praacuteticas maacutegicas (Freud 1919 p 15)

A despeito da tradiccedilatildeo todoroviana na anaacutelise desse tipo de litera-tura ser muitas vezes voltada para a questatildeo dos limites do Fantaacutestico a verdade eacute que no conto de Heloiacutesa Seixas essa questatildeo se torna secundaacute-ria Iacuteblis pode ser lido como um siacutembolo do Fantaacutestico O tiacutetulo do livro tem origem na literatura de expressatildeo islacircmica Iacuteblis eacute um dos muitos democircnios no Coratildeo que nesse contexto satildeo chamados de djinns Eles satildeo criaturas intermediaacuterias entre Deus e os Anjos que foram forjados a fogo por Deus de modo similar agrave criaccedilatildeo do Adatildeo biacuteblico (extraiacutedo do barro) No Islamismo haacute uma miriacuteade de djinns e todos eles tentam os seres humanos a cometer pecados de toda sorte De fato natildeo se dis-tanciam dos democircnios cristatildeos Iacuteblis se equivalendo ao Luacutecifer catoacutelico Em ambas as histoacuterias haacute uma querela entre Deus e IacuteblisLuacutecifer diante do amor que o primeiro dedica aos humanos seres que para esses de-mocircnios satildeo indignos e inferiores Sendo que no Coratildeo o djinn natildeo representa uma oposiccedilatildeo a Deus Para os islacircmicos Deus eacute superior a todas as coisas e nada o ameaccedila

Iacuteblis e Luacutecifer satildeo considerados anjos caiacutedos Seres de luz que desce-ram agraves trevas elo entre escuridatildeo e a claridade Eacute por isso que ambos satildeo simbolizados pela Estrela da Manhatilde Vecircnus Ela metaforiza um elemento noturno que insiste em permanecer no dia liame entre a luz e as trevas

Eacute por isso que Iacuteblis eacute o siacutembolo perfeito para a proacutepria Literatura Fantaacutestica Como explicado por Freud em relaccedilatildeo ao estranho e o familiar que geram um olhar despatriado alheio disforme ldquoessa refe-recircncia ao fator da repressatildeo permite-nos ademais compreender a defi-niccedilatildeo de Schelling do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto natildeo obstante veio agrave luzrdquo (Freud 1919 p13) Tal qual IacuteblisLuacutecifer Eacute constante em todos esses elementos a dubiedade e vagueza entre as definiccedilotildees e limites ldquoo fantaacutestico ocorre na incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixa-se o fantaacutestico para entrar no gecircnero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantaacutestico eacute a hesitaccedilatildeo experimentada por um ser que soacute conhece as leis naturais face a um conhecimento aparentemente sobrenaturalrdquo (Todorov 2010 p 31)

Conscientemente ou natildeo Heloiacutesa Seixas criou um conto que utili-za recursos particularmente interessantes para a Literatura Fantaacutestica Iacuteblis eacute um exemplar ficcional brasileiro da contemporaneidade que em cenaacuterios exoacuteticos orientalistas e distantes nos mostra a forccedila descriti-va desta autora que cria universos viacutevidos e palpaacuteveis em confluecircncia

com a verticalidade psicoloacutegica A utilizaccedilatildeo desse siacutembolo-chave para o Islamismo foi um toque de Midas e abre inuacutemeras possibilidades in-terpretativas haja vista a variedade de leituras que esse texto tem em potencial junto agrave milenar literatura islacircmica

REFEREcircNCIAS

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad de Nilton Cezar Tridapalli Paranaacute UFPR Eduel 2006

FREUD Sigmund Aleacutem do Princiacutepio de Prazer Disponiacutevel em lthttplacanorgfreecomfreudtextosfalemdoprincipiodeprazerpdfgt (acessado em 25 de julho de 2013)

_________ The ldquoUncannyrdquo Disponiacutevel em lthttphomesieuedutrnozgenalpMCS490MediaCultureandTechnology-Readingsweek14-The20Uncanny-freudpdfgt (acessado em 22 de junho de 2013)

SEIXAS Heloiacutesa ldquoIacuteblisrdquo In TAVARES Braulio (org) Paacuteginas de Sombra ndash Contos fantaacutesticos brasileiros Rio de Janeiro Casa da Palavra 2003 (p 116-123)

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Trad Maria Clara Correa Castello Satildeo Paulo Debates 2010

Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg

Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute(Graduanda em Letras ndash

Universidade Federal de PernambucoBelvidera)

O Romantismo alematildeo costuma ser subdividido em grupos nome-ados em conformidade com a cidade que os abrigava (Volobuef 1999) Esses grupos tinham semelhanccedilas que possibilitavam o enquadramento sob a eacutegide do movimento mas com caracteriacutesticas proacuteprias Elas natildeo eram excludentes entre si os artistas tinham a liberdade e verdadeira-mente nutriram o costume do tracircnsito e da assimilaccedilatildeo esteacutetica Ainda assim eacute possiacutevel traccedilar um panorama desses ciacuterculos literaacuterios

Entre os anos de 1806 e 1808 vemos o florescimento de uma se-gunda geraccedilatildeo do Romantismo alematildeo que se afastava dos preceitos da primeira geraccedilatildeo (Romantismo de Jena [1799]) no que esta tinha de primordial o egocentrismo e o cosmopolitismo (num sentido contraacuterio ao nacionalismo conservador de Heidelberg)

Poderiacuteamos basear esse comportamento pelo fato de que a segunda geraccedilatildeo presenciou a invasatildeo da Pruacutessia pelos exeacutercitos de Napoleatildeo experimentando as agruras da dominaccedilatildeo estrangeira o que teria des-pertado seu sentimento nacionalista e a desilusatildeo quanto agrave capacidade de atuaccedilatildeo do ldquoeurdquo (Volobuef 1999) Como provaacutevel consequecircncia dis-so o Romantismo de Heidelberg como ficou conhecido o ciacuterculo lite-raacuterio dessa geraccedilatildeo nutriu um interesse pelo passado histoacuterico do seu povo pela cultura popular e pela busca de uma nova mitologia extraiacuteda do universo folcloacuterico desenvolvendo tambeacutem trabalhos filoloacutegicos

Achim von Arnim atuou na cena literaacuteria da Alemanha em fins do seacuteculo XIX e comeccedilo do XX se destacando do ponto de vista da produ-ccedilatildeo ficcional e da criacutetica literaacuteria entre seus colegas do Romantismo de Heidelberg vindo a ser como hoje eacute reputado um dos maiores expoen-tes do Romantismo alematildeo e mundial (Manguel 2005)

No conto em questatildeo vemos muitos pontos deflagradores do Achim heidelberguiano De iniacutecio podemos observar que ele opta pela exposiccedilatildeo crua dos sentimentos torpes e negativos do ldquoeurdquo tais como vaidade ciuacuteme traiccedilatildeo ndash esta uacuteltima aliaacutes tema recorrente tanto em Achim quanto nas Mil e uma noites ndash sensualismo oportunismo im-pulsividade egoiacutesmo Dessa forma contrariando uma certa tendecircncia dos contos de horror que valorizam a atmosfera de medo e o cenaacuterio exterior ele natildeo caricaturiza seus personagens pelo contraacuterio eacute nestes que foca a imageacutetica do horror Eles satildeo seres humanos muito bem dese-nhados nas suas imperfeiccedilotildees nuances e caracteriacutesticas contraditoacuterias a exemplo de nossa perversa e adoraacutevel Meluumlck

Mais adiante quase no fim do conto veremos que o pano de fundo da Revoluccedilatildeo Francesa ndash a invasatildeo dos castelos o ateamento de fogo e a matanccedila dos aristocratas (presenciados entre outros pelos persona-gens Saintree Mathilde Meluumlck alguns dos quais seratildeo mortos) ndash vai ao encontro das ideias de Achim contraacuterias a este lado sangrento da Revoluccedilatildeo Ele como titular da corrente romacircntica de tendecircncia social na Alemanha natildeo deixa de trabalhar este cenaacuterio e a partir dele de-sencadear as accedilotildees derradeiras em seu conto Curiosamente o discurso inflamado de Meluumlck na segunda profecia (p 298) em relaccedilatildeo agrave morte que ocorreu na sua casa por conta da Revoluccedilatildeo eacute entendido por al-guns criacuteticos como a proacutepria voz de Achim Meluumlck eacute vista assim como alterego de Achim que diz por meio dela o que ele proacuteprio sentia e pensava agrave eacutepoca da Revoluccedilatildeo

Ademais percebemos no conto uma visatildeo clara relativa agraves diferen-ccedilas entre as massas e a aristocracia e sentimos que ele tende a dar relevo agrave generosidade ao exaltar a alma (tambeacutem) boa de Meluumlck tanto no comeccedilo do conto pela fama que ela ganha atraveacutes do magnetismo pes-soal e do talento de atriz e posteriormente pelo olhar do personagem Frenel que admira nela as raras palpitaccedilotildees de um bom coraccedilatildeo em desacordo com outras personagens mesquinhas

Vemos tambeacutem no conto como identificaccedilatildeo do Romantismo de Heildelberg o interesse peculiar do autor pelo Oriente ou seja Meluumlck que eacute tratada numa dimensatildeo que a aproxima da lenda popular ndash ten-decircncia proacutepria deste ciacuterculo e do misteacuterio a partir do qual o autor cons-troacutei atmosferas de horror literaacuterio Para se apoiar e trabalhar sobre os as-pectos ligados agrave cultura oral podemos inferir que o autor como outros

de sua eacutepoca foi achar no Oriente bons ingredientes para compor uma nova mitologia romacircntica associada aos seus reconhecidos trabalhos filoloacutegicos Uma tendecircncia do seacuteculo XIX na Europa que tem durado ateacute hoje no momento em que se reconfigura o Oriente ldquocomo ideacuteia conceito ou imagemrdquo (Said 1990 p 208)

Atentemos um pouco nesse Oriente inventado com a ajuda de Edward Said (1990 p 217-218) Historicamente a Franccedila e a Inglaterra foram as maiores colonizadoras do Oriente proacuteximo no seacuteculo XIX Aquele paiacutes no entanto teve uma presenccedila muito mais expedicionaacuteria e aventureira do que o engajado empreendimento de reconhecimento do Oriente feito pela Inglaterra ldquonatildeo tinham [escritores franceses] quais-quer pretensotildees em relaccedilatildeo agraves suas ideacuteias orientais a natildeo ser que elas [fossem] corroboradas por uma longa tradiccedilatildeo erudita (e natildeo existen-cial)rdquo (p 217 ndash grifo do autor) Assim a impressatildeo acerca dos orientais e de sua cultura trazida por esses paiacuteses ao Ocidente foi muito diferente e a que se perpetuou mais foi a visatildeo francesa atraveacutes de elementos li-gados agrave sensualidade fantasia e leveza em oposiccedilatildeo agrave visatildeo inglesa do Oriente mais realista

Edward Said afirma que

muitos dos primeiros aficionados do Oriente comeccedilaram saudando o Oriente como um salutar deacuterangement dos seus haacutebitos mentais e espirituais europeus O Oriente foi superestimado pelo seu panteiacutesmo pela sua espiri-tualidade pela sua estabilidade sua longevidade primitividade e assim por diante [] Mas quase sem exceccedilatildeo essa estima exagerada foi seguida por uma reaccedilatildeo subitamente o Oriente pareceu subumanizado antidemocraacuteti-co atrasado baacuterbaro etc (p 158 ndash grifos meus)

No seacuteculo XIX as expediccedilotildees Ocidente-Oriente e os diaacuterios de bor-do publicados eram muitos ndash o movimento contraacuterio era escasso ndash e tais viagens corroboravam juiacutezos de valor criados por um senso comum jaacute bem estabelecido

[] desse modo o uso da palavra oriental por um escritor [passa a ser] uma referecircncia suficiente para o leitor se identificar [com] um corpo especiacutefico de informaccedilatildeo sobre o Oriente [] parecia ter uma situaccedilatildeo epistemoloacutegica igual agrave da cronologia histoacuterica ou agrave da localizaccedilatildeo geograacutefica [] Os orien-tais raramente eram vistos ou olhados a visatildeo passava atraveacutes delesrdquo (p 212-213 ndash grifo meu)

Neste conto haacute um personagem o dr Frenel mencionado acima que eacute um ocidental-orientalista no sentido de que ele fez vaacuterias viagens para o Oriente e aprendeu muito sobre os seus costumes e segredos Ele encarna um certo poder o conhecimento do misteacuterio enquanto o de Meluumlck eacute a efetiva praacutetica do que eacute misterioso O misteacuterio no con-to mostra entatildeo toda sua forccedila Assim ele tem o importante papel de tornar Meluumlck e tudo que lhe rodeia mais fantaacutestico mais misterioso mais assustador em algumas passagens Sua visatildeo sobre Meluumlck eacute a um soacute tempo verdadeira e duvidosa gerando a ambiguidade fantaacutestica A proacutepria mente humana poderia justificar essa atitude como Said (p 64) diz ldquoeacute perfeitamente possiacutevel argumentar que alguns objetos distintivos satildeo feitos pela mente e que esses objetos embora pareccedilam existir objetivamente tecircm uma realidade apenas ficcionalrdquo

Haacute a partir daiacute uma separaccedilatildeo ostensiva entre eu e eles a partir da qual territoacuterios e mentalidades satildeo declarados diferentes E assim ldquotodo tipo de suposiccedilotildees associaccedilotildees e ficccedilotildees parece povoar o espaccedilo que estaacute fora do nosso proacutepriordquo (p 65) o que soacute contribui para o fantaacutes-tico Como Causo afirmou em relaccedilatildeo agrave ficccedilatildeo insoacutelita esta se trata de um jogo entre Eu e Outro do qual nascem novas percepccedilotildees podendo servir para o enriquecimento da visatildeo de mundo e do olhar sobre si mesmo num ldquoprocesso de apresentaccedilatildeo de realidades alternativas atra-veacutes das quais noacutes reavaliamos as nossas percepccedilotildees da realidade que compreendemosrdquo (2003 p 63)

Esta invenccedilatildeo do Outro serve em suma de enriquecimento ao proacute-prio imaginaacuterio com a reconstruccedilatildeo criativa das Mil e uma noites pelos autores do seacuteculo XIX conforme indica o proacuteprio Said (p 63) ldquoum re-sultado feliz [] foi que um nuacutemero estimaacutevel de importantes escritores durante o seacuteculo XIX era entusiasta do Oriente Eacute perfeitamente correto acho falar de um gecircnero de escrita orientalista tal como eacute exemplifica-do pelas obras de Hugo Goethe Nerval Flaubert Fitzgerald e similaresrdquo Hugo (apud Said p 61) completa este painel em texto escrito em 1829 ldquoau siegravecle de Louis XIV on eacutetait helleacuteniste maintenant on est orientalisterdquo

Podemos afirmar em conformidade com Causo (2003) que as suces-sotildees de acontecimentos fantaacutesticos que vatildeo sendo desencadeadas a partir do aparecimento de Meluumlck em Toulon (Franccedila) configuram uma viagem insoacutelita ldquouma sucessatildeo de eventos fantaacutesticos ou maravilhosos ocorri-dos dentro de uma progressatildeo no tempo e no espaccedilo e testemunhada

por personagens que tendem a se manter de um evento a outro [] A natureza do evento ou fato fantaacutestico ou maravilhoso pode ser divina demoniacuteaca ou misteriosardquo (p 77) Essa uacuteltima natureza estaria ligada ao conto em questatildeo e tambeacutem por isso eacute que se encaixa na categoria de fantaacutestico proposta por Todorov (2008) visto que aleacutem de deixar esses fatos no terreno do natildeo explicado e da incerteza como eacute mister ao gecircnero natildeo vemos marcaccedilotildees no texto suficientes para atribuir a esses eventos uma causa especiacutefica o que os desencadeia eacute um misteacuterio

Rosemary Jackson (apud Causo 2003 p78) reforccedila a ideia do fan-taacutestico como algo misterioso que desorienta quanto agrave realidade racional quando afirma que ldquojoga com as dificuldades de interpretaccedilatildeo de eventoscoisas como objetos ou como imagens assim desorientando a categoriza-ccedilatildeo do leitor sobre o realrdquo E podemos apontar como exemplo desse ldquojogordquo o fato de o narrador colocar esses eventos fantaacutesticos sempre em discus-satildeo com tentativas de explicaccedilotildees cientiacuteficas geralmente desencadeadas por ele proacuteprio ou pelo personagem Saintree e nunca se conseguir uma explicaccedilatildeo final O jogo de tentativa e frustraccedilatildeo confunde e faz o leitor se perguntar sobre o que eacute real e como algo fora do natural pode ocorrer Eacute isso que o fantaacutestico pretende conforme Todorov (2008)

Apesar disso podemos encontrar em Meluumlck vaacuterios elementos que o aproximam tambeacutem do maravilhoso Haacute fatos explicados segundo leis natildeo naturais ou puramente aceitos sem questionamentos Uma adora-ccedilatildeo por parte dos outros personagens orientada para Meluumlck simboliza uma fascinaccedilatildeo pelo Outro apoacutes um primeiro estranhamento Por ou-tro lado este e outros fatos estranhos poderiam ser tambeacutem frutos da real feiticcedilaria da protagonista o que endossaria o caraacuteter maravilhoso contudo fica delimitado sugerindo-se novamente o fantaacutestico O autor oscila propositalmente entre os dois gecircneros discutidos por Todorov

Outros fenocircmenos ligados ao maravilhoso seriam os acontecimentos estranhos ocorridos na casa de Saintree (cuja rotina parecia lsquomaacutegicarsquo) a se-melhanccedila fiacutesica com Meluumlck dos filhos dele com Mathilde entre outros

[] e Mathilde achava os olhos orientais e as longas pestanas de seus fi-lhos tatildeo encantadores que esquecia seu enigmaacutetico misteacuterio [] O mane-quim entatildeo tinha de apertar nos braccedilos uma crianccedila apoacutes a outra todas se divertiam e nenhuma achava isso mais prodigioso do que as mil outras coisas que diariamente lhes causavam estranheza por serem novidade [] (Arnim 2005 p 297)

Assim detectamos elementos hiacutebridos neste conto que poderiam aproximaacute-lo do subgecircnero fantaacutestico-maravilhoso todoroviano

Meluumlck eacute uma mulher da Araacutebia O intertexto com As mil e uma noites eacute leve mas evidente Numa vista geral por essas histoacuterias encontramos o mote da mulher capaz de tudo do pior ateacute para salvar a honra ou o amor Mas tal perspectiva tem uma tendecircncia a se harmonizar no decorrer dos contos orientais Vemos tambeacutem a traiccedilatildeo feminina como uma toacutepica for-te jaacute que os homens seriam os apaixonados obcecados Vai se articulando assim a misoginia atrelada agrave forccedila feminina dentro de um imaginaacuterio de sensualidade proacuteprio de expressiva parte da literatura aacuterabe

Vemos em tudo isso o reflexo direto da figura de Meluumlck agraves vezes e contraditoriamente uma mulher sem escruacutepulos que para conquistar Saintree parece ter lhe enfeiticcedilado enquanto ele passava uma tarde em sua casa Uma vez laacute sentia-se como se natildeo pudesse sair inebriado pri-vado de si numa ldquodoce prisatildeordquo (p 289) Mulher que ao ser rejeitada pelo mesmo roubou literalmente seu coraccedilatildeo numa feiticcedilaria cuja descri-ccedilatildeo causa horror (p 294-295) A traiccedilatildeo referida no caso das Noites tambeacutem ocorre aqui mas natildeo eacute ele o obcecado Soacute o maravilhoso per-mite que ele possa ficar a ela atado por conta do coraccedilatildeo extraiacutedo natildeo de maneira metafoacuterica (p 296) A obcecada eacute ela mas a protagonista pro-voca nele a mesma dependecircncia amorosa O sensualismo em Meluumlck mesmo que natildeo seja tatildeo expliacutecito quanto nos contos aacuterabes aparece em meio a uma atmosfera oniacuterica e sinesteacutesica em que o aroma das flores as texturas dos tecidos e a intensidade das cores colaboram na criaccedilatildeo de um sonho oriental com sugestotildees eroacuteticas (p 288)

Para Carroll (1999 p 39) no horror haacute sempre um monstro repug-nante sendo esta a condiccedilatildeo sine qua non dessa ficccedilatildeo ldquo[] a reaccedilatildeo afe-tiva do personagem ao monstruoso nas histoacuterias de horror natildeo eacute sim-plesmente uma questatildeo de medochoque ou seja de ficar aterrorizado com algo que ameaccedila ser perigoso Pelo contraacuterio a ameaccedila mistura-se agrave repugnacircncia agrave naacuteusea e agrave repulsardquo Notamos no conto em questatildeo um choque inicial um espanto em alguns momentos de fantaacutestico mas natildeo a naacuteusea e tambeacutem natildeo haacute um monstro configurado segundo os termos do horror de Carroll

O escritor e criacutetico Lovecraft afirma que ldquoo criteacuterio do fantaacutestico natildeo se situa na obra a natildeo ser na experiecircncia particular do leitor e essa expe-riecircncia deve ser o medordquo (apud Todorov p 20) Em relaccedilatildeo agrave atmosfera

de horror que o leitor pode detectar vemos em Meluumlck nossa profetisa particular da Araacutebia residir o estranhamento ela eacute o proacuteprio Oriente

Por sua vez Stephen King (1981) desenvolve uma leitura diferencia-da da de Carroll nos esclarecendo que pontos de tensatildeo e motivos que conduzem o leitor a uma experiecircncia esteacutetica do medo natildeo precisam ser necessariamente horripilantes jaacute que aquele eacute muitas vezes encontrado nas entrelinhas das histoacuterias No conto em questatildeo temos descriccedilotildees expliacutecitas que causam medo no leitor todas em relaccedilatildeo aos misteacuterios de Meluumlck ou agraves cenas da Revoluccedilatildeo mas o horror eacute detectado sempre nas entrelinhas no natildeo dito Isso fica claro na figura do duplo que eacute trabalha-da pela narrativa no caso um manequim que agraves vezes parece ganhar vida sob o comando da protagonista Ele natildeo configura o monstro sobrenatu-ral expliacutecito de acordo com as teorias de Carroll mas a tiacutepica inquieta-ccedilatildeo do duplo fantaacutestico o autocircmato estudado por Freud (apud Ceserani 2006 p 25-26) apreendida a partir de entrelinhas e ambiguidades

Ao ouvir perguntas sobre o paradeiro da condessa Meluumlck agarrou a quase desmaiada Mathilde agrave forccedila e levou-a ao soacutetatildeo onde o manequim articulado estava guardado Usando pela uacuteltima vez sua arte conduziu a condessa ateacute o manequim que a estreitou com uma forccedila imutaacutevel em seus braccedilos frios como os de um esqueleto Meluumlck ordenou-lhe que ficasse em silecircncio ou estaria morta mas a advertecircncia era desnecessaacuteria pois Mathilde calava caiacuteda em profundo desmaio (Arnim p 302)

Esse aspecto mentalpsicoloacutegico que foi tatildeo bem trabalhado por E T A Hoffmann ao qual muito bem nos chama atenccedilatildeo Freud pode tambeacutem ser entendido em certa medida em Todorov (p 60) quando ele fala do ldquopandeterminismordquo que teria como consequecircncia natural a ldquopansignificaccedilatildeordquo Nesse pensamento o pandeterminismo natildeo estaacute proacute-ximo agrave loucura ou ao entorpecimento causado por drogas como ele explica mas ldquosignifica que o limite entre o fiacutesico e o mental entre a ma-teacuteria e o espiacuterito entre a coisa e a palavra deixa de ser fechadordquo

Ceserani (p 25-26) nos diz que o duplo estaria associado agrave aliena-ccedilatildeo do homem num mundo que ele proacuteprio criou em que parte de sua proacutepria personalidade eacute reprimida Surgem assim fantasmagorias que o deixam obsessivo e transtornado As relaccedilotildees entre os seres vivos e os autocircmatos toacutepica que estaacute ligada a uma seacuterie de experimentaccedilotildees teacutec-nicas do seacuteculo XVIII (criaccedilatildeo de maacutequinas capazes de imitar os gestos

humanos) e teatrais (marionetes quadros vivos) coloca em pauta a preo-cupaccedilatildeo com os problemas da personalidade e identidade da consciecircncia humana do eu e do outro da estabilidade mental do duplo enfim

O manequim imita assustadoramente os movimentos de Saintree (p 287) e salva Mathilde da morte no soacutetatildeo da casa (p 303) Nas duas ocasiotildees atua como uma extensatildeo de Meluumlck no primeiro caso para impressionar seu amado no segundo para libertar sua amiga dos revo-lucionaacuterios que iriam mataacute-la Na polaridade negativa ou positiva age com uma estranheza ora fantaacutestica ora maravilhosa endossando os po-deres orientais de Meluumlck ldquoprofetisa particular da Araacutebiardquo que nos des-cortina os misteacuterios do Outro numa criaccedilatildeo ligada ao insoacutelito Eacute nesta encruzilhada que observamos mais um belo exemplo de conto de hor-ror vindo do Romantismo engajado de Heildelberg que traz o mundo fantaacutestico e maravilhoso tatildeo caro agraves Mil e uma noites

ldquoO outro eacute o eu que eu menos conheccedilomas eacute o que mais me fascinardquo

(Manuella Mirna)

REFEREcircNCIAS

CARROLL Noeumll A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coraccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Papirus 1999

CAUSO Roberto de Sousa Ficccedilatildeo cientiacutefica fantasia e horror no Brasil 1875 a 1950 Belo Horizonte Editora UFMG 2003

CESERANI Remo O Fantaacutestico Trad Nilton Cezar Tridapalli Curitiba UFPR 2006

KING Stephen Danccedila Macabra Satildeo Paulo Editora Ponto de Leitura 1981

MANGUEL Alberto (org) Contos de Horror do seacuteculo XIX Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

SAID Edward W Orientalismo o Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2008

VOLOBUEF Karin Frestas e Arestas a prosa do romantismo na Alemanha e no Brasil Satildeo Paulo UNESP 1999

O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval

Lucila Nogueira(Profordf Drordf Departamento de Letras ndashUniversidade Federal de Pernambuco)

Eacute antes do oacutepio que a minhrsquoalma eacute doenteSentir a vida convalesce e estiolaEu vou buscar ao oacutepio que consolaUm oriente ao oriente do Oriente

(Fernando Pessoa)

Conforme Edward W Said (1990) o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra a Franccedila e o Oriente que vem representar natildeo apenas o sinal da soberania europeacuteia como as diversas consequecircncias de haverem esses paiacuteses dominado o mediterracircneo oriental desde o final do seacuteculo XVII Na verdade o orientalismo vinha promover a diferenccedila entre o racional e o familiar e o irracional e o estranho Em termos de estudos eruditos conside-ra-se que o orientalismo comeccedilou sua existecircncia com a decisatildeo do Conselho de Viena em 1312 de estabelecer uma seacuterie de caacutetedras de aacuterabe grego hebraico e siacuterio em Paris Oxford Bolonha Avignon e Salamanca (Said p 60)

Por outro lado eacute possiacutevel falar de um gecircnero orientalista presente nas obras de Hugo Nerval e Flaubert que deriva em uma mitologia flutuante do Oriente Veja-se o Itineraacuterio de Chateaubriand a Viagem ao Oriente de Lamartine tambeacutem as de Flaubert e de Nerval A uma certa altura a referecircncia oriental ultrapassa o calendaacuterio judeu e cristatildeo e atinge os mapas da Iacutendia da China do Japatildeo e da Sumeacuteria Entatildeo vai tratar o orientalista moderno do resgate da obscuridade e estranha-mento distinguidos pelos estudiosos anteriores No que concerne aos escritores iratildeo surgir aqueles para quem a viagem real ou metafoacuterica ao Oriente eacute a realizaccedilatildeo de algum projeto profundamente sentido e urgente eacute o caso por exemplo de Geacuterard de Nerval

A influecircncia do Oriente vai ser sinocircnima de uma oportunidade de libertaccedilatildeo como ocorre no livro As Orientais de Victor Hugo O Oriente passa a ser poesia impetuosidade melancolia o magnetismo da viagem aliado a uma possessatildeo de novas imagens Os peregrinos franceses ao contraacuterio dos ingleses iam ao Oriente com o sentido agudo de perda e natildeo de soberania Perseguiam memoacuterias ruiacutenas correspondecircncias ocultas segredos esquecidos formas literaacuterias encontradas em seu apo-geu imaginativo como ocorre com Geacuterard de Nerval (Said p 177)

A viagem de Nerval ao Oriente foi feita atraveacutes da de Lamartine e a deste atraveacutes da de Chateaubriand Para Lamartine sua viagem ao Oriente em 1883 consistiu numa grande atitude de sua vida interior porque ela consistia na paacutetria da sua imaginaccedilatildeo atestando a grandeza da Aacutesia diante da pequenez da Greacutecia Em contraste com Lamartine va-mos encontrar Flaubert e Nerval que chegaram ao Oriente preparados por uma grande leitura dos claacutessicos O proacuteprio Nerval afirmou em As filhas do fogo que tudo que ele sabia sobre o Oriente se baseava numa remota lembranccedila da sua educaccedilatildeo escolar ndash no entanto a leitura da sua viagem ao Oriente desmente isso embora seu conhecimento seja menos sistemaacutetico que o de Flaubert O fato eacute que esses dois escritores (Nerval em 1842-43 e Flaubert em 1849-50) deram agraves suas visitas ao Oriente um uso pessoal e esteacutetico maior que qualquer outro viajante do seacuteculo XIX Eles pertencem agravequele grupo romacircntico que cultua as imagens de lu-gares exoacuteticos gostos sado-masoquistas fascinaccedilatildeo pelo macabro pelo segredo e pelo ocultismo e em suas obras valorizaram figuras femininas fatais como Cleoacutepatra e Salomeacute Levaram para o Oriente uma mitologia pessoal Flaubert em busca de uma terra natal e Nerval seguindo os traccedilos de seus sonhos Assim tanto para um como para outro o Oriente era um lugar de deacutejagrave vu um lugar para o qual se voltavam com frequ-ecircncia mesmo depois que acabava a viagem (Said p 188) O alcance da obra oriental dos dois ultrapassa os limites do orientalismo ortodoxo O orientalismo de Flaubert estaacute tambeacutem nos Cadernos de Viagem na pri-meira versatildeo de A tentaccedilatildeo de Santo Antonio em Herodias Salammbocirc e nas numerosas notas de leitura

Jaacute Nerval criou a sua Viagem ao Oriente como uma coletacircnea de no-tas de esboccedilos histoacuterias e fragmentos de viagens seu Oriente tambeacutem pode ser encontrado em As Quimeras nas cartas parte de sua ficccedilatildeo e outros escritos em prosa Ele reconhece o Oriente como o paiacutes dos

sonhos e ilusotildees Conforme Edward Said Nerval investe a si mesmo no Oriente produzindo natildeo tanto uma narrativa noveliacutestica quanto uma intenccedilatildeo perpeacutetua ndash nunca plenamente realizada ndash de fundir a mente agrave accedilatildeo fiacutesica Essa antinarrativa essa peregrinaccedilatildeo eacute uma guinada na di-reccedilatildeo contraacuteria agrave finalidade discursiva do tipo concebido por escritores anteriores sobre o Oriente

Observa Said ainda que ligado fiacutesica e solidariamente ao Oriente Nerval vagueia informalmente por entre as suas riquezas e a sua atmos-fera cultural (e principalmente feminina) localizando no Egito espe-cialmente aquele materno ldquocentro ao mesmo tempo misterioso e aces-siacutevelrdquo do qual deriva toda a sabedoria (Said p 190) ldquoLembra Michel Butor que vagando pelas ruas e pelos arredores do Cairo de Beirute ou de Constantinopla Nerval estaacute sempre agrave espera de qualquer coisa que lhe permita sentir a caverna que se estende por baixo de Roma Atenas e Jerusaleacutemrdquo (p 190)

Natildeo haacute equivalentes ingleses para as obras orientais de Chateaubriand Lamartine Nerval e Flaubert Os especialistas de Nerval sabem que estamos diante de duas viagens uma que eacute mista imagina-da unida com a de outros autores outra formada por textos e versos jaacute publicados em jornais revistas e livros ldquoEacute uma impressatildeo dolorosa escreveu Nerval cada dia mais distante de perder cidade a cidade de paiacutes a paiacutes todo esse belo universo que se acredita criar jovens pela lei-turahelliprdquo (Nerval 1998)

Este eacute o Oriente de Nerval buscando uma resposta para o desco-nhecido O Oriente carrega o paroxismo entre a autoridade do real e a vontade do sonho este combate faz do poeta um visionaacuterio de uma humanidade inocente e primitiva Pertence ao sonho ou agrave vida o sol negro da melancolia em derredor do autor que viaja em sua proacutepria companhia essa viagem que eacute apenas uma metaacutefora de seus sonhos de leituras o Oriente se constitui num mundo agrave parte cumulado de seres e de coisas que se transformam em accedilotildees poeacuteticas

Para penetrar na alma e no segredo do Oriente Nerval decide aprender aacuterabe A mulher eacute um ser agrave parte e o coraccedilatildeo do poeta cami-nha seguidamente na vontade de se reencontrar As deusas orientais como Astarte e Iacutesis ganham relevo em meio aos ecircxtases miacutesticos e so-brenaturais assim como os duplos se revelam pares misteriosos onde ainda vibra o eco de mundos desaparecidos

Do Liacutebano a Constantinopla chamada geralmente por Nerval de Istambul ele se instala e vive como flacircneur dando ao seu texto uma in-tensidade que o Liacutebano natildeo pocircde oferecer Eacute o Oriente que vai assegurar a comunhatildeo coacutesmica Nerval teraacute trecircs fontes principais a Biacuteblia o Islatilde e a Maccedilonaria Na verdade a sua viagem eacute decididamente um romance e ele proacuteprio reconheceu que assim gostava de conduzir sua vida (como um ro-mance) O Oriente surge diante desse visionaacuterio como o princiacutepio de toda uma vida anterior que nele encontra seu signo supremo e sua confirmaccedilatildeo

Em 1842 Nerval inicia sua viagem ao Oriente percorrendo a ilha de Malta o Cairo Beirute Chipre Rhodes Esmirna Constantinopla Triste o seu retorno ningueacutem o esperava ao cabo da sua peregrinaccedilatildeo Retorna a Paris com escala na Itaacutelia nos primeiros dias de 1844 Publica Mulheres do Cairo que seraacute a primeira versatildeo de Viagens ao Oriente Em janeiro de 1848 publica Cenas da vida oriental I Em 1850 As noi-tes do Ramazatilde Cenas da vida oriental II As mulheres do Liacutebano Em 1851 Viagens ao Oriente em 52 Os Iluminados em 53 Pequenos cas-telos da Boecircmia e Siacutelvia Neste ano tambeacutem eacute publicado por Dumas El Desdichado em 1854 publica As filhas do fogo e As Quimeras Em maio sai da cliacutenica em que estivera o ano anterior e vai para a Alemanha de onde ele volta em estado de grande confusatildeo mental no mecircs de ju-lho Escreve Aureacutelia e prepara a ediccedilatildeo de Pandora Em janeiro de 1855 Nerval eacute encontrado enforcado na Rua da Velha Lanterna

Flaubert aos quatorze anos se referiu ao Oriente do sol brilhante do ceacuteu azul dos minaretes dourados dos pagodes de pedra o Oriente com a sua poesia o Oriente com seus perfumes suas caravanas nas areias suas esmeraldas suas flores seus jardins de laranjas Flaubert so-nhou com os laacutebios das mulheres puras com os grandes olhos negros que teriam amor soacute para ele sonhou com a pele morena das mulheres da Aacutesia (Flaubert 2006 p 7)

O tema do Oriente se interioriza quer voltando-se ao passado quer de modo intemporal Flaubert conheceraacute o Egito a Palestina a Siacuteria Bagdaacute Babilocircnia Ispahan Teeratilde Trebizonda e Constantinopla Flaubert constituiu um dossiecirc de 178 paacuteginas sobre a viagem agrave Peacutersia e em sua biblioteca constam livros como Viajantes antigos e modernos de Edward Chacon e Livros sagrados do Oriente traduzido por Guillaume Pauper em 1840 leu a Viagem ao Egito e agrave Siacuteria de Volney e consultou tambeacutem Sobre os modos e costumes dos egiacutepcios modernos de Edward

W Lane publicado em 1837 Acontece que contrariamente a muitos viajantes dos seacuteculos XVIII e XIX Flaubert natildeo faz estardalhaccedilo de sua erudiccedilatildeo em Viagem ao Oriente Ele tinha consciecircncia de que a descri-ccedilatildeo eacute um elemento importante do gecircnero viagem mas ao mesmo tempo sentia a impotecircncia das palavras diante da beleza

Um escritor eacute aquele que tem uma percepccedilatildeo diferenciada do real que usa de uma conexatildeo analoacutegica em suas expressotildees que vecirc sinais de advertecircncia em episoacutedios de sua vida o que pode ocorrer com algum deliacuterio ou eventualmente alguma mania de grandeza O escritor pro-cura reconstruir a sua identidade perdida falando agraves vezes sozinho a mais alta poesia o canto mais sublime Com um destino forccedilosamente poacutestumo Nerval soacute teraacute seu talento reconhecido no seacuteculo XX graccedilas a Proust e aos surrealistas No entanto seus doze sonetos satildeo suficientes para assegurar sua gloacuteria Um deles eacute El Desdichado

El Desdichado

Je suis le Teacutenebreux le Veuf lrsquoInconsoleacuteLe prince drsquoAquitaine agrave la tour abolieMa seule Eacutetoile est morte et mon luth constelleacutePorte le Soleil noir de la Meacutelancholie

Dans la Nuit du Tombeau toi qui mrsquoas consoleacuteRends moi le Pausilippe et la mer drsquoItalieLa Fleur qui plaisait tant agrave mon coeur deacutesoleacuteEt la Treille ougrave le Pampre agrave la Vigne srsquoallie

Suis je Amour ou Phoebus ndash Lusignan ou BironMon front est rouge encor du baiser de la ReineJrsquoai dormi dans la Grotte ougrave verdit la syregravene

Et jrsquoai deux fois vivant traverseacute lrsquoAcheronModulant et chantant sur la lyre drsquoOrpheacuteeLes soupirs de la Sainte ndash et les cris de la Feacutee

El Desdichado

Eu sou o Tenebroso o Viuacutevo o InconsoladoO priacutencipe da Aquitania na torre da abuliaMinha Estrela eacute a morte e meu luto estrelado Dissemina o Sol negro da Melancolia

Na Noite da Queda tu que me consolasteMe entregaste o mar da Itaacutelia e o PolisipoA Flor que amou tanto o meu coraccedilatildeo desoladoE a Videira onde o Pacircntano agrave rosa se alia

Sou Amor ou sou Phebo ndash Lusignan ou BironMinha fronte ainda eacute rubra do beijo da RainhaAdormeci na caverna onde nada a sereia

E duas vezes vivo atravessei o AcheronModulando e cantando na lira de OrfeuOs gritos da fada ndash e os suspiros da Santa

Publicado pela primeira vez em 10 de dezembro de 1853 por Dumas este poema parece ser contemporacircneo da segunda crise de lou-cura de Nerval (agosto e setembro de 1853) e dele existem dois ma-nuscritos Este eacute o mais ceacutelebre dos sonetos nervalianos e representa tambeacutem a crise do sujeito liacuterico e da poesia O primeiro quarteto oferece uma identidade que natildeo eacute social nem histoacuterica mas absoluta A morte da estrela e o sol negro surgem como se fossem um apocalipse que leva o locutor agraves trevas do fim No segundo quarteto restitui ao inconsola-do o passado trazendo uma contradiccedilatildeo violenta pelo uso da sintaxe Vem uma figura de consolaccedilatildeo do universo napolitano que pode ser uma referecircncia de iacutendices autobiograacuteficos Amor voltado agraves trevas os amantes natildeo podem se ver e o poeta se encontra na gruta da sereia Quanto ao uacuteltimo terceto o poeta se identifica com Orfeu desce aos infernos e constroacutei um monstro fabuloso e poeacutetico a Quimera O Sol Negro da Melancolia jaacute aparecia em Viagem ao Oriente e evoca a gravu-ra de Duumlrer A sereia na gruta representa a figura do paganismo sendo que essa gruta eacute o lugar por excelecircncia da Quimera sereia ou dragatildeo

Geacuterard Nerval acreditava na metempsicose a passagem da alma de um corpo a outro apoacutes a morte Seu livro Aureacutelia se abre com a afir-maccedilatildeo de que o sonho eacute uma segunda vida Aos vinte anos lanccedilou uma traduccedilatildeo do Fausto de Goethe que iria servir para a sinfonia de Berlioz Aos vinte e um anos jaacute era reconhecido no acircmbito literaacuterio e junto com Theophile Gautier publicava um folhetim dramaacutetico na imprensa Suas composiccedilotildees literaacuterias fazem renascer o mito do eterno feminino que sempre o perseguiu encontrado nas novelas Siacutelvia e Aureacutelia Estes livros representam a figuraccedilatildeo do contraste embora revele a sugestatildeo de um

sofrimento verdadeiro O muro das visotildees eacute um subterracircneo que se ilu-mina como se o sonho se derramasse na vida real

Sim encontramos em Nerval essa brutal oscilaccedilatildeo entre dois mun-dos o real e o imaginaacuterio assim como a transfiguraccedilatildeo de sua proacutepria vida em um mito que abarca todo o destino dos seus semelhantes Conquista metafiacutesica mito universal discurso fantaacutestico de premoni-ccedilotildees visotildees obsessotildees vida real e imaginaacuteria no crivo da linguagem Trecircs aspetos chamam a atenccedilatildeo a noccedilatildeo de uma supra-racionalidade a fusatildeo da linguagem inconsciente com a literaacuteria e a recusa da funccedilatildeo enunciativa das palavras Os elementos que formam a supra-racionalida-de que domina a obra de Nerval satildeo essencialmente a presenccedila animada do som as visotildees as transposiccedilotildees miacuteticas ou poeacuteticas as recordaccedilotildees bem como a fusatildeo da linguagem do consciente e do inconsciente Os textos fantaacutesticos de Nerval se revestem de consideraccedilotildees radicais que nunca se aproximam do que Coleridge designava ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do natildeo crerrdquo ingrediente baacutesico do gecircnero A vida de Nerval eacute sua obra e no seu estilo visionaacuterio as coisas jaacute natildeo existem em discordacircncia com as palavras que as designam elas se reuacutenem de modo indissociaacutevel

Entre as lendas que circulam no cemiteacuterio parisiense Pegravere Lachaise uma delas se refere a Nerval que em 1855 foi encontrado enforcado com desenhos e marcas de siacutembolos ocultos no peito O lugar onde teria ocorrido o pretenso suiciacutedio oscila entre as grades de um hospiacutecio de um albergue ou de um esgoto Comenta-se ser o mais bem vestido entre os fantasmas a se evaporar por traacutes de seu tuacutemulo apoacutes o passeio noturno

ldquoEu sou um mestre em fantasmagoriasrdquo dizia Rimbaud Eacute no roman-tismo alematildeo que vamos encontrar uma reflexatildeo mais profunda entre vi-satildeo e imaginaccedilatildeo Vale lembrar Novalis quando diz que ldquoo pensamento e a vista se assemelhamrdquo A faculdade de pressentir o futuro e a de recordar o passado tem relaccedilotildees com a faculdade de ver agrave distacircncia Para Goethe a luz eacute a proacutepria substacircncia do universo e a energia produtora do mundo

As diferentes formas de adivinhaccedilatildeo se fundamentam sobre a obser-vaccedilatildeo de superfiacutecies refletoras daiacute que o espelho se relacione com aconte-cimentos futuros pessoas mortas ou ausentes temas distantes Daiacute que a visatildeo no espelho se constitua um mediador dum fantasma no Testamento a Orfeu e em O sangue de um Poeta de Jean Cocteau ligado ao movimen-to surrealista atravessar o espelho significa o ingresso no reino da morte A obra despreocupada com a verossimilhanccedila nos leva ao outro lado do

espelho em clima de estranheza para um espaccedilo bidimensional como o do sonho e natildeo tridimensional como o de nossa percepccedilatildeo

O fantaacutestico diminui os limites que circunscrevem a vida huma-na aliaacutes como lembra Bachelard nem o pensamento cientiacutefico estaacute ao abrigo de motivaccedilotildees irracionais baseadas em raiacutezes inconscientes De modo que o renascimento desse irracional vai surgir sobre vaacuterias nomenclaturas como o estranho o sobrenatural o maravilhoso a ficccedilatildeo cientiacutefica o fantaacutestico puro O fantaacutestico vai tratar de acontecimentos inexplicaacuteveis pelas leis naturais que questionam a percepccedilatildeo ordinaacuteria da realidade O fantaacutestico eacute ambiacuteguo e inquietante envolvendo sempre algum dilema misterioso quando surge no seacuteculo XVIII vem marcado pela nova do orientalismo nos contos por exemplo de Jacques Cazotte Seu livro O Diabo amoroso eacute uma mistura do real com o irreal o heroacutei Aacutelvaro natildeo sabe distinguir sonho de realidade

A idade de ouro do fantaacutestico pode ser considerada no seacuteculo XIX Esse fantaacutestico oriundo do romantismo traz marcas do roman noir per-meado do sobrenatural e do gosto pelo demoniacuteaco O roman noir inglecircs produziu no seacuteculo XVIII obras como O castelo de Otranto de Horaacutecio Walpole e Os misteacuterios de Udolfo de Ann Radcliffe neles eram constan-tes o macabro e o terror fantasmas conventos abandonados cemiteacuterios ao luar William Beckford escreve Vathek dentro da moda do orientalis-mo mas tambeacutem com episoacutedios noirs Os contos de Hoffmann satildeo des-cobertos na Franccedila em torno de 1830 e vatildeo influenciar bastante Nodier Gautier e Nerval

Nervoso exaltado depressivo epileacutetico opiocircmano Nodier eacute o pre-cursor de uma longa seacuterie de escritores com sensibilidade exacerbada Maravilhoso sonho e misteacuterio se fundem em um texto em que se exal-ta a loucura Theacuteophile Gautier grande admirador de Hoffmann seraacute influenciado pelas teorias de Swedenborg e pelo espiritismo Muitas de suas histoacuterias contam um amor impossiacutevel entre o ser vivo e o fantasma

O nosso Geacuterard Nerval vai ter a sua proacutepria vida invadida pelos fantasmas Aleacutem da admiraccedilatildeo a Hoffmann traduz muito jovem o Fausto de Goethe Em 1841 tem sua primeira crise nervosa em 1843 viaja ao Oriente e passa a acreditar na reencarnaccedilatildeo em 1851 o poeta tem uma nova crise e passa a observar e registrar sua experiecircncia do sonho e da loucura surgem as obras que testemunham seu itineraacuterio espiritual atormentado Daiacute que se diga que Aureacutelia eacute menos um conto

fantaacutestico do que uma aventura espiritual mas sua originalidade con-siste na fusatildeo fantaacutestica do sonho e da realidade misturando fatos e sua existecircncia com visotildees e alucinaccedilotildees fazendo com que o leitor atravesse da realidade ao sonho ldquoO sonho eacute uma segunda vidardquo ele diz e comple-menta ldquoEu decidi registrar o sonho e conhecer o seu segredordquo

Referecircncias

ARNOLD Paul Esoteacuterisme de Baudelaire Paris Librairie Philosophique J Vrin 1972

BAUDELAIRE Charles Ensaios sobre Edgar Allan Poe Satildeo Paulo Iacutecone Editora 2003

_____ Les fleurs du mal ndash Le Spleen de Paris Paris Ed Hatier 2000

CAMPRA Rosalba Territorios de la Ficcioacuten ndash Lo Fantaacutestico Madrid Editorial Renacimiento 2008

EHRSAM Jean et Veronique (Org) La Litteacuterature Fantastique en France Paris Ed Hatier 1985

FLAUBERT Gustave Voyage en Orient (1849-1851) Paris Eacutedittions Gallimard 2006

GAUTIER Theacuteophile Baudelaire Satildeo Paulo Boitempo Editorial 2001

_____ Contos fantaacutesticos Satildeo Paulo Primeira Linha 1999

GRUumlNEWALD Joseacute Lino (Org) Poetas franceses do seacuteculo XIX Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira 1921

MILNER Max La fantasmagoriacutea Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1990

NERVAL Geacuterard de Aureacutelia Satildeo Paulo Icone Editora 1986

_____ La Bohegraveme Galante Paris Renecirc Hilsum Ed 1932

_____ Les Chimegraveres ndash La Bohecircme Galante Petit Chacircteaux de Bohecircme Paris Eacutedittions Gallimard 2005

_____ Pandora 2ordf ed Barcelona Tusquets Editores 1980

_____ Siacutelvia Rio de Janeiro Ed Rocco 1986

_____ Voyage en Orient Franccedila Eacutedittions Gallimard 2003

POE Edgar Les poegravemes Paris Eacutedittions Gallimard 1982

SAID Edward Orientalismo - O Oriente como invenccedilatildeo do Ocidente Trad Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990

TODOROV Tzvetan Introduccedilatildeo agrave Literatura Fantaacutestica Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1975

YERLES Pierre LITS Marc (Orgs) Le Fantastique Bruxelles Didier Hatier 1990

Rua Acadecircmico Heacutelio Ramos 20 | Vaacuterzea Recife - PE CEP 50740-530 Fones (0xx81) 21268397 | 21268930 | Fax (0xx81) 21268395wwwufpebredufpe | livrariaedufpecombr | editoraufpebr

Literatura Fantaacutestica e Orientalismo

O ifrit [] correu em direccedilatildeo agrave jovem mas ela rapida-

mente arrancou um fi o de cabelo balanccedilou-o na matildeo bal-

buciou algo entredentes e o fi o se transformou numa espa-

da afi ada com a qual ela golpeou o leatildeo cortando-o em duas

partes As duas partes saiacuteram voando mas restou a cabeccedila

que se transformou em escorpiatildeo A jovem por sua vez ado-

tou a forma de uma enorme serpente e por algum tempo

travou violenta luta com o escorpiatildeo mas logo o escorpiatildeo

se transformou em abutre e voou para fora do palaacutecio en-

tatildeo a serpente virou aacuteguia e voou no encalccedilo do abutre de-

saparecendo por algum tempo Mas logo o chatildeo se fendeu

dele saindo um gato malhado que gritou roncou e rosnou

atraacutes do gato saiu um lobo preto lutaram no palaacutecio por

algum tempo e entatildeo o lobo derrotou o gato este gritou

e se transformou numa larva que rastejou e entrou numa

romatilde jogada ao lado da fonte a romatilde inchou ateacute fi car do

tamanho de uma melancia listrada ao passo que o lobo se

transformava num galo branco como a neve A romatilde saiu

voando e caiu no maacutermore da parte mais elevada do saguatildeo

espatifou-se e seus gratildeos se espalharam todos []

Livro das mil e uma noites

(50a noite trad Mamede Mustafa Jarouche)

  • Prefaacutecio (Andreacute de Sena)
  • Breves consideraccedilotildees sobre os conceitos lsquoajiacuteb e ghariacuteb nas Mil e Uma Noites (Mamede Mustafa Jarouche)
  • Um Oriente goacutetico Vathek de William Beckford (Alfredo Cordiviola)
  • O Livro das mil e uma noites e as releituras fantaacutesticas do Ocidente (Andreacute de Sena)
  • Borges leitor de As mil e uma noites (Dariacuteo Sanchez)
  • O Libro de Apolonio na encruzilhada da poesia castelhana do seacuteculo XIII Originalidade e adaptaccedilatildeo ao imaginaacuterio europeu medieval de fontes orientais e claacutessicas (Joseacute Alberto Miranda Poza)
  • Necessaacuteria dececircncia e maravilhosa ilha em movimento reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre o fantaacutestico e a educaccedilatildeo moral nas Mil e uma noites (Oussama Naouar)
  • A constituiccedilatildeo discursiva nrsquoAs Bruxas de Fagundes Varela entre o fantaacutestico o grotesco e o Oriente (Rafaela Queiroz F Cordeiro amp Priscilla de Moraes Batista)
  • O orientalismo e o fantaacutestico em Peacute de muacutemia de Theacuteophile Gautier (Thiago Pininga)
  • ldquoEacute assim ou natildeordquo ndash jornalismo verdade e ficccedilatildeo em A mileacutesima segunda histoacuteria de Sherazade de Edgar Allan Poe (Jeacutessica Cristina dos Santos Jardim)
  • Conto de fadas e fantaacutestico orientalista em contos de Polidori e Hauff (Ceciacutelia Carneiro Leatildeo Ferreira)
  • Uma apreciaccedilatildeo de Iacuteblis de Heloiacutesa Seixas (Julia Troncoso)
  • Meluumlck de Achim von Arnim do orientalismo ao Romantismo de Heidelberg (Manuella Mirna Eneaacutes de Nazareacute)
  • O fantaacutestico oriental em Geacuterard de Nerval (Lucila Nogueira)
Page 6: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 7: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 8: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 9: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 10: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 11: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 12: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 13: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 14: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 15: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 16: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 17: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 18: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 19: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 20: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 21: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 22: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 23: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 24: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 25: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 26: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 27: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 28: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 29: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 30: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 31: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 32: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 33: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 34: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 35: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 36: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 37: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 38: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 39: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 40: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 41: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 42: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 43: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 44: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 45: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 46: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 47: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 48: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 49: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 50: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 51: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 52: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 53: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 54: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 55: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 56: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 57: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 58: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 59: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 60: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 61: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 62: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 63: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 64: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 65: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 66: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 67: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 68: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 69: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 70: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 71: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 72: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 73: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 74: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 75: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 76: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 77: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 78: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 79: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 80: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 81: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 82: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 83: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 84: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 85: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 86: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 87: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 88: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 89: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 90: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 91: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 92: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 93: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 94: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 95: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 96: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 97: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 98: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 99: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 100: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 101: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 102: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 103: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 104: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 105: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 106: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 107: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 108: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 109: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 110: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 111: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 112: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 113: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 114: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 115: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 116: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 117: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 118: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 119: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 120: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 121: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 122: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 123: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 124: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 125: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 126: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 127: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 128: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 129: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 130: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 131: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 132: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 133: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 134: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 135: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 136: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 137: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 138: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 139: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 140: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 141: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 142: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 143: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 144: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 145: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 146: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 147: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 148: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 149: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 150: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 151: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 152: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 153: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 154: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 155: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 156: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 157: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 158: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 159: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 160: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 161: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 162: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 163: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 164: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 165: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 166: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 167: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 168: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 169: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 170: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 171: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 172: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 173: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 174: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 175: Literatura Fantástica e Orientalismo
Page 176: Literatura Fantástica e Orientalismo