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2019 1 a Edição LITERATURA OCIDENTAL I Prof.ª Raquel da Silva Yee

Literatura OcidentaL i - UNIASSELVI

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Page 1: Literatura OcidentaL i - UNIASSELVI

2019

1a Edição

Literatura OcidentaL i

Prof.ª Raquel da Silva Yee

Page 2: Literatura OcidentaL i - UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:

Prof.ª Raquel da Silva Yee

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

Y42l

Yee, Raquel da Silva

Literatura ocidental I. / Raquel da Silva Yee. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

182 p.; il.

ISBN 978-85-515-0290-7

1. Literatura ocidental. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 809

Page 3: Literatura OcidentaL i - UNIASSELVI

III

apresentaçãOCaro acadêmico!

Este livro didático pretende oferecer uma indrodução panorâmica à Literatura Ocidental, que servirá para ampliar seu repertório literário e embasar seus estudos futuros. Você terá a oportunidade de entrar em contato com várias obras representativas da história da literatura no mundo ocidental.

O itinerário delineado recorta 27 séculos de práticas literárias produzidas na Europa e em grande parte da América. Passaremos por muitos textos, de diferentes estilos, épocas e lugares, abarcando os primórdios das produções literárias da antiguidade grega e latina, a literatura na Idade Média, a literatura entre os séculos XV e XVIII e, finalmente, as primeiras manifestações literárias da modernidade. Tendo em vista a impossilidade de abarcarmos a amplitude dos escritos elaborados durante esses séculos, optamos por priorizar alguns autores e textos, de modo que as reflexões apresentadas despertem o interesse por outras leituras e indagações sobre o vasto campo da literatura.

Durante o percurso, refletiremos sobre as singularidades dos projetos estéticos a partir do estudo dos movimentos literários. Contudo, a perspectiva histórica desta disciplina não pretende ser estanque, nem arbritária, já que entendemos as expressões artísticas como um organismo vivo e dinâmico, intimamente ligadas ao contexto de cada época, refletindo, assim, o pensamento político, social e estético do momento em que foram produzidas. O que confirma a ideia de que os textos literários e seus temas se modificam a longo do tempo e pressupõem uma experiência de leitura sempre aberta às inúmeras rotas e (re)descobertas, à medida que a sociedade e os leitores igualmente se transformam. Logo, esperamos que você extrapole as discussões expostas aqui.

Este livro didático é, certamente, um convite à fruição, à leitura crítica, à linguagem plurissignificativa dos textos literários. Afinal, a literatura é capaz de promover encontros prazerosos, interações e discussões mais amplas e complexas que estimulam a nossa percepção do mundo, de si, dos outros e das relações sociais. Sendo, portanto, indispensável para a formação do indivíduo e para o intercâmbio de diferentes línguas e culturas.

Boas leituras!Prof.ª Raquel da Silva Yee

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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VII

UNIDADE 1 – OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL ........................................... 1

TÓPICO 1 – LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS ....................................................... 31 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 32 POR QUE LER LITERATURA? ......................................................................................................... 43 OS CLÁSSICOS E A FORMAÇÃO DO LEITOR ........................................................................... 7LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 10RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 12AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 13

TÓPICO 2 – A LITERATURA GREGA ................................................................................................ 151 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 152 O PENSAMENTO MÍTICO ................................................................................................................ 163 A POÉTICA DE ARISTÓTELES ........................................................................................................ 194 GÊNERO ÉPICO .................................................................................................................................. 215 GÊNERO DRAMÁTICO .................................................................................................................... 26

5.1 A TRAGÉDIA ................................................................................................................................... 265.2 A COMÉDIA .................................................................................................................................... 31

6 GÊNERO LÍRICO ................................................................................................................................. 337 A FICÇÃO EM PROSA ....................................................................................................................... 35RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 36AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 37

TÓPICO 3 – A LITERATURA LATINA ............................................................................................... 391 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 392 A POESIA LATINA .............................................................................................................................. 403 A PROSA LITERÁRIA ......................................................................................................................... 43RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 46AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 47

TÓPICO 4 – A LITERATURA NA IDADE MÉDIA .......................................................................... 511 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 512 AS CANCÕES DE GESTA .................................................................................................................. 513 A LÍRICA TROVADORESCA ............................................................................................................ 54RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 59AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 60

UNIDADE 2 – A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII .............................................. 63

TÓPICO 1 – O RENASCIMENTO ........................................................................................................ 651 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 652 RESSONÂNCIAS DA LITERATURA ITALIANA: DANTE, PETRARCA, BOCCACCIO ....... 663 TRAVESSIAS LITERÁRIAS: A GESTA DO MAR ........................................................................ 77

3.1 OS LUSÍADAS DE CAMÕES ......................................................................................................... 77

sumáriO

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VIII

RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 83AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 84

TÓPICO 2 – A ESTÉTICA BARROCA ................................................................................................ 891 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 892 DON QUIJOTE DE LA MANCHA: CERVANTES E O ROMANCE MODERNO .................. 90LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 95RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 98AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 99

TÓPICO 3 – NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS .............................................................................. 1051 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1052 HAMLET DE SHAKESPEARE ........................................................................................................... 1053 LOPE DE VEGA E CALDERÓN DE LA BARCA ........................................................................... 1084 INTERFACES DO CLASSICISMO: ESCOLA DE MULHERES DE MOLIÈRE ...................... 112RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 117AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 118

UNIDADE 3 – LITERATURA E MODERNIDADE .......................................................................... 121

TÓPICO 1 – A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO ............................................................................ 1231 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1232 PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS ...................................................................... 1243 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS ......................................................................................... 125RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 128AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 129

TÓPICO 2 – A ESTÉTICA ROMÂNTICA .......................................................................................... 1311 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1312 O MOVIMENTO ROMÂNTICO OCIDENTAL ............................................................................. 1313 A PROSA ROMÂNTICA..................................................................................................................... 1334 A POESIA ROMÂNTICA ................................................................................................................... 1395 O TEATRO ROMÂNTICO ................................................................................................................. 147RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 148AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 149

TÓPICO 3 – REALISMO E NATURALISMO .................................................................................... 1511 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1512 A LINGUAGEM DO REALISMO ..................................................................................................... 1523 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS ......................................................................................... 1524 O NATURALISMO ............................................................................................................................... 157LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 161RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 163AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 164

TÓPICO 4 – AS ESTÉTICAS DO FIM DO SÉCULO XIX ................................................................ 1671 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1672 O PARNASIANISMO .......................................................................................................................... 1673 O SIMBOLISMO ................................................................................................................................. 169RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 174AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 175REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 177

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UNIDADE 1

OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta desta unidade, você deverá ser capaz de:

• refletir sobre as funções da literatura e as especificidades da linguagem literária, bem como sua importância na formação do leitor;

• perceber as amplas significações do conceito de livro clássico;

• reconhecer as origens e o legado da literatura da Grécia e Roma antigas na história da literatura ocidental;

• compreender as transformações estéticas e históricas que impulsionaram as primeiras manifestações literárias da Idade Média.

Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 - LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS

TÓPICO 2 - A LITERATURA GREGA

TÓPICO 3 - A LITERATURA LATINA

TÓPICO 4 - A LITERATURA NA IDADE MÉDIA

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TÓPICO 1UNIDADE 1

LITERATURA OCIDENTAL E OS

CLÁSSICOS

1 INTRODUÇÃOEm nossa trajetória, buscaremos compreender a literatura como forma de

manifestação artística que tem fortes vínculos com uma tradição que começou a ser construída há muito tempo. Antes de percorrermos obras literárias fundacionais da antiguidade clássica, apresentaremos, neste tópico, uma possível definição do nosso objeto de estudo, bem como uma discussão que envolve a importância da literatura na formação do indíviduo e o papel que ela desempenha na sociedade. Em seguida, problematizaremos o conceito de livro clássico, a influência duradoura de grandes obras que transformaram o pensamento de seu tempo. Munidos dessas reflexões, seguiremos rumo à origem da literatura ocidental na Grécia antiga e no mundo romano.

Posto isso, consideramos importante recuperar o sentido etimológico do termo "literatura", proveniente do vocábulo latino littera, que significa letra e está atrelado à arte das palavras. Noção moderna que passou a ser denominada, como hoje conhecemos, só a partir do fim do século XVIII, visto que, anteriormente, a noção clássica de literatura estava ligada, de modo geral, a tudo o que a retórica e a poesia produziam, incluindo fiçcão, história, filosofia, ciência e eloquência, destaca Compagnon (2010).

O debate sobre literatura vem sendo feito há milênios e varia significativamente de acordo com as épocas e as culturas. A noção de literatura que perdurou ao longo dos séculos através do sistema dos gêneros poéticos dramático, épico e lírico, elaborado segundo as ideias dos filósofos Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384 -322 a.C.), passou a ser questionada com o aparecimento de novas formas de representação literária que surgiram na Idade Média e nos séculos seguintes, como veremos mais detidamente no decorrer de nossas discussões.

Diante desses novos (con)textos, a literatura começa a ser compreendida, na ampla acepção moderna, como um conjunto diversificado de textos criativos que requer do leitor uma capacidade de compreensão e interpretação que não se restringe a alguns preceitos. Sendo assim, podemos considerar que a literatura, desde suas origens até a atualidade, se caracteriza por suas diversas formas e meios.

Surge, portanto, a ideia de criação literária vinculada à arte, ao exercício artístico da linguagem, constituindo-se como um jogo de alternâncias entre o texto e o leitor, um espaço aberto de relações que geram novos textos e, por extensão,

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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novas leituras, segundo Roland Barthes (2006). Experimentações que trazem à tona as tramas complexas das escrituras, o inusitado manejo da linguagem, permitindo ao leitor captar a realidade de uma maneira diferente, mudando também a percepção sobre si mesmo e sobre aquilo que está ao seu redor.

2 POR QUE LER LITERATURA?

"A literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta […]". Se uma das funções da literatura é nos ensinar "a melhor sentir", como diz Compagnon (2009, p. 66), iniciaremos este tópico aguçando os nossos sentidos, participando efetivamente do jogo das palavras, experimentando o que as produções literárias têm a nos oferecer. Através da leitura do poema do autor brasileiro Manoel de Barros, que segue abaixo, passaremos a ampliar nossas reflexões acerca da importância dos textos literários.

No descomeço era o verbo.Só depois é que veio o delírio do verbo.O delírio do verbo estava no começo, lá onde acriança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.A criança não sabe que o verbo escutar não funcionapara cor, mas para som.Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.E pois.Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazernascimentos —O verbo tem que pegar delírio (BARROS, 1993, p.15).

Experimentar o que os textos literários podem oferecer ao leitor é, sem dúvida, uma das melhores maneiras de descobrir "por que ler literatura". A leitura do poema de Manoel de Barros mobiliza nossas percepções, suscita sensações inusitadas e traz uma série de reflexões sobre o fenômeno literário. Através do poema, podemos lidar com o improvável, escutar a "cor dos passarinhos”, porque o poeta, assim como o imaginário fértil da criança, estabelece relações abstratas e subjetivas com as palavras e os acontecimentos. Isso quer dizer que a literatura maneja o discurso, faz um uso peculiar da linguagem, transfigura o real, desconstrói padrões convencionais e a racionalidade lógica.

Assim, na passagem do primeiro verso, "no descomeço era o verbo”, podemos perceber que o eu lírico (a “voz que fala” no poema) estabelece uma relação intertextual com a Bíblia cristã, com o mito da criação, questionando as referências cristalizadas ao longo tempo. Nesse sentido, o "delírio do verbo" pode ser entendido como um devaneio, um estado de inquietação, atrelado à subversão, à capacidade plurissignificativa da linguagem literária de provocar nascimentos, de singularizar as palavras.

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TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS

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A partir da leitura do poema retomamos, de certa maneira, a definição ampla de literatura como arte das palavras, capaz de produzir um efeito estético, sensível. Afinal, a literatura está diretamente vinculda às manifestações artísticas, à palavra estética, originária do termo grego aisthésis, ao que é perceptível pelos sentidos. Entendida de forma mais abrangente, a literatura engloba, segundo o crítico literário Antonio Candido:

[…] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possam viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabuloso. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável desse universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito — como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura corrida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito (CANDIDO, 2011, p. 174).

As considerações de Antonio Candido (2011, p. 174) expostas no ensaio O direito à literatura nos ajudam a situar a literatura dentro de um conjunto plural de construções do imaginário. O crítico associa a necessidade da produção literária ao processo inconsciente de elaboração onírica, defendendo que a arte das palavras é também um direito humano indispensável. Além de fornecer um prazer lúdico, é fonte de conhecimento do real, uma "forma de expressão que manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos". Assumindo, portanto, uma função social, um papel importante de humanização, compreendida por Candido como:

[…] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante (CANDIDO, 2011, p. 174).

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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É por isso que a atividade literária oral ou escrita, para D'Onofrio (1990, p. 10), “é consubstancial à sociedade humana, não existindo povo sem literatura". Constatações que também se revelam produtivas nas discussões de Antonie Compangnon.

As definições de literatura segundo sua função parecem relativamente estáveis, quer essa função seja compreendida como individual ou social, privada ou pública. Aristóteles falava de katharsis (catarse), ou de purgação, ou de purificação de emoções como o temor e a piedade. É uma noção difícil de determinar, mas ela diz respeito a uma experiência especial das paixões ligada à arte poética. Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile (COMPAGNON, 2010, p. 34-35).

Para o autor, as concepções de Aristóteles e Horácio de que a literatura deveria ser dulce et utile, ou seja, favorecer o prazer e a formação humana, de certa forma, permanecem estáveis ao ressaltarem que o texto literário, dentre suas várias funções, tem a capacidade de despertar os sentimentos do autor e do leitor. Nessa perspectiva há, portanto, “um conhecimento do mundo e dos homens propiciado pela experiência literária (talvez não apenas por ela, mas principalmente por ela)”, destaca Compagnon (2010, p. 35).

Em outro momento, sob a provocadora indagação "Literatura para quê?", Compagnon (2009, p. 60) reforça a discussão, salientando que a literatura deve "ser lida e estudada porque oferece um meio — alguns dirão até mesmo único — de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida". Sem dúvida, ela é capaz de nos tornar "sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos”.

Reconhecer que a literatura assume um papel transformador passa pelo entendimento de que ela desempenha várias funções, incluindo o entretenimento, a investigação psicológica, a crítica política, social e ideológica, entre outras questões estéticas e filosóficas mais amplas que abarcam as especificidades dos textos literários.

Notadamente, a leitura de poemas, romances, contos, peças teatrais, entre outros textos verbais e visuais, possibilita múltiplas experiências. Através da literatura somos transportados para lugares inusitados que escapam à nossa percepção. Também somos estimulados a refletir sobre a complexidade da linguagem, sobre crenças, incertezas, sobre aspirações e conflitos humanos. Ora, não é à toa que muitas obras literárias foram consagradas por suas singulares reverberações e exerceram um profundo impacto na sociedade. À vista disso, veremos, a seguir, outra importante discussão, envolvendo especificamente a leitura de livros considerados clássicos.

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TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS

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3 OS CLÁSSICOS E A FORMAÇÃO DO LEITOR

O estudo da literatura ocidental apresenta uma série de desafios que certamente estão vinculados à amplitude e à complexidade do nosso objeto de investigação. Vimos que a literatura possui especificidades próprias, que se revelam pela maneira como expressa artisticamente determinadas ideias e sensações. Daqui em diante, estudaremos várias obras pertencentes ao canône literário ocidental, isto é, textos que exercem uma influência particular e fazem parte de um conjunto de leituras consideradas importantes para a formação do leitor.

O cânone literário, oriundo da palavra grega kanon, significa norma, medida, diz respeito aos princípios literários que permitem organizar um conjunto de obras consideradas indispensáveis à formação do indivíduo. Designa, ainda, os postulados ou princípios doutrinários que norteiam determinada corrente literária (MOISÉS, 2004). São obras de referência, denominadas clássicas. De certa forma, o processo de canonização está atrelado a interesses dos grupos responsáveis por sua constituição e disseminação. É por isso que muitos especialistas em literatura problematizam a formação do cânone, contrariando as escolhas arbitrárias fundamentadas em regras que estão a serviço de ideologias hegemônicas e incorporando outras formas de manifestações literárias.

NOTA

Diante dessas problematizações, você pode estar se perguntando: Afinal, o que podemos chamar de clássicos?

Na verdade, não há um consenso entre os especialistas sobre o valor de uma obra literária. Podemos considerar que um determinado livro se converte em clássico quando persiste ao longo do tempo e segue vivo na releitura e na imaginação dos leitores, como é o caso dos poemas Ilíada e Odisseia, recitados oralmente, que consagraram Homero como o educador dos gregos e, por extensão, o modelador da cultura ocidental, segundo Jaeger (2010). Esses poemas da Antiguidade Clássica nutriram o pensamento da humanidade, ao transmitirem valores culturais através do relato das realizações dos deuses e dos antepassados. As diversas traduções e releituras das epopeias homéricas, que vão da poesia à prosa, das irreverentes histórias em quadrinhos às modernas produções cinematográficas, continuam suscitando indagações críticas sobre o homem e o mundo, como já abordado em Yee (2011). Constatações que nos levam à outra indagação: Por que será que certas obras se perpetuam, permanecendo singulares e enigmáticas?

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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Obras como Ilíada e Odisseia, de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri e a narrativa do famoso cavaleiro medieval, criada por Miguel de Cervantes em Dom Quixote, foram produzidas por culturas diferentes, em tempos tão distantes, e continuam dissipando imagens que povoam o imaginário coletivo. São obras que pertencem indiscutivelmene ao cânone, parecem definir um valor literário e se revelam uma experiência de leitura enriquecedora, na qual o leitor pode experimentar as destrezas e as complexidades da linguagem literária e refletir sobre temas inesgotáveis.

No ensaio Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino (2007, p. 10-11) levanta algumas hipóteses que nos levam a entender que os livros clássicos sempre se renovam e têm algo a dizer, e "quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos". Vistos dessa maneira, os clássicos são responsáveis por gerar uma espécie de "riqueza" para o seu leitor, na medida em que proporcionam uma experiência instigante e inesquecível, sempre aberta às interpretações.

Calvino acredita que uma obra não será considerada clássica apenas por uma convenção, por uma escolha arbitrária de um grupo de pessoas, e, sim, porque exerce, antes de tudo, "uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual". Ou seja, um clássico amplia significativamente nossa experiência de leitura quando passa a fazer parte das nossas lembranças ou do imaginário coletivo. Em outra passagem do ensaio citado, Calvino reforça que:

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisseia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os possuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias (CALVINO, 2007, p. 12).

Ao citar o seu repertório de obras da tradição literária, Calvino destaca a influência dos clássicos sobre o pensamento do leitor. As obras instigam, nutrem o imaginário, desencadeiam uma série de discussões e correlações. Por essa via, entendemos a justificativa do autor de que ler os clássicos é sempre melhor do que não os ler. Calvino ainda ressalta que:

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TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS

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[…] A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele (CALVINO, 2007, p. 13).

Significa entender que as instituições de ensino precisam dar a devida atenção ao debate sobre a experiência da leitura de textos integrais, privilegiando a vivência efetiva com os textos literários em suas dimensões estética, filosófica, cultural e histórica. Em face do exposto, talvez você esteja se questionando mais uma vez: Será que ainda há espaço para os clássicos na escola? Como preparamos os alunos para melhor fruir um texto literário? Respaldados pelas discussões apresentadas até aqui, reivindicaremos o espaço para os clássicos na escola. Ora, se é possível através da literatura vivermos experiências diversificadas e inesquecíveis, cabe ao professor, diante da tarefa desafiadora, despertar a curiosidade dos estudantes, instigando o prazer pela leitura desinteressada, sem imposição, visando, assim, o enriquecimento do autoconhecimento e da percepção de mundo dos leitores. Dessa maneira, os estudantes poderão encontrar caminhos para ir mais longe, buscando outras referências, construindo um repertório próprio de livros clássicos.

Jorge Luis Borges também se debruçou sobre os significados plurais e complexos dos clássicos ao longo do tempo, concebendo o clássico como sendo "aquel libro que una nación o un grupo de naciones o el largo tiempo han decidido leer como si en sus páginas todo fuera deliberado, fatal, profundo como el cosmos y capaz de interpretaciones sin término" (BORGES, 1980, p. 32). Para encerrar este tópico convidamos você para apreciar as reflexões de Borges, apresentadas a seguir, em língua espanhola, no texto intitulado Sobre los clássicos.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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SOBRE LOS CLÁSSICOS

Jorge Luis Borges

Escasas disciplinas habrá de mayor interés que la etimología: ello se debe a las imprevisibles transformaciones del sentido primitivo de las palabras, a lo largo del tiempo. Dadas tales transformaciones, que pueden lindar con lo paradójico, de nada o de muy poco nos servirá para la aclaración de un concepto el origen de una palabra. Saber que cálculo, en latín, quiere decir piedrecita y que los pitagóricos las usaban antes de la invención de los números, no nos permite dominar los arcanos del álgebra; saber que hipócrita es actor, y persona, máscara, no es un instrumento valioso para el estudio de la ética. Parejamente, para fijar lo que hoy entendemos por lo clásico, es inútil que este adjetivo descienda del latín classis, flota, que luego tomaría el sentido del orden. (Recordemos de paso la información análoga de ship-shape.)

¿Qué es, ahora, un libro clásico? Tengo al alcance de la mano las definiciones de Eliot, de Arnold y de Sainte-Beuve, sin duda razonables y luminosas, y me sería grato estar de acuerdo con esos ilustres autores, pero no los consultaré. He cumplido sesenta y tantos años: a mi edad, las coincidencias o novedades importan menos que lo que uno cree verdadero. Me limitaré, pues, a declarar lo que sobre este punto he pensado.

Mi primer estímulo fue una Historia de la literatura china (1901) de Herbert Allen Giles. En su capítulo segundo leí que uno de los cinco textos canónicos que Confucio editó es el Libro de los Cambios o I King, hecho de 64 hexagramas, que agotan las posibles combinaciones de seis líneas partidas o enteras. Uno de los esquemas, por ejemplo, consta de dos líneas enteras, de una partida y de tres enteras, verticalmente dispuestas. Un emperador prehistórico los habría descubierto en la caparazón de una de las tortugas sagradas. Leibniz creyó ver en los hexagramas un sistema binario de numeración; otros, una filosofía enigmática; otros, como Wilhelm, un instrumento para la adivinación del futuro, ya que las 64 figuras corresponden a las 64 fases de cualquier empresa o proceso; otros, un vocabulario de cierta tribu; otros, un calendario. Recuerdo que Xul-Solar solía reconstruir ese texto con palillos y fósforos. Para los extranjeros, el Libro de los Cambios corre el albur de parecer una mera chinoiserie; pero generaciones milenarias de hombres muy cultos lo han leído y referido con devoción y seguirán leyéndolo. Confucio declaró a sus discípulos que si el destino le otorgara cien años más de vida, consagraría la mitad a su estudio y al de los comentarios o alas.

Deliberadamente he elegido un ejemplo extremo, una lectura que reclama un acto de fe. Llego, ahora, a mi tesis. Clásico es aquel libro que una nación o un grupo de naciones o el largo tiempo han decidido leer como si en sus páginas todo fuera deliberado, fatal, profundo como el cosmos y capaz de interpretaciones sin término. Previsiblemente, esas decisiones varían. Para los alemanes y austríacos

LEITURA COMPLEMENTAR

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TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS

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el Fausto es una obra genial; para otros, una de las más famosas formas del tedio, como el segundo Paraíso de Milton o la obra de Rabelais. Libros como el de Job, la Divina Comedia, Macbeth (y, para mí, algunas de las sagas del Norte) prometen una larga inmortalidad, pero nada sabemos del porvenir, salvo que diferirá del presente. Una preferencia bien puede ser una superstición.

No tengo vocación de iconoclasta. Hacia el año treinta creía, bajo el influjo de Macedonio Fernández, que la belleza es privilegio de unos pocos autores; ahora sé que es común y que está acechándonos en las casuales páginas del mediocre o en un diálogo callejero. Así, mi desconocimiento de las letras malayas o húngaras es total, pero estoy seguro de que si el tiempo me deparara la ocasión de su estudio, encontraría en ellas todos los alimentos que requiere el espíritu. Además de las barreras lingüísticas intervienen las políticas o geográficas. Burns es un clásico en Escocia; al sur del Tweed interesa menos que Dunbar o Stevenson. La gloria de un poeta depende, en suma, de la excitación o de la apatía de las generaciones de hombres anónimos que la ponen a prueba, en la soledad de sus bibliotecas.

Las emociones que la literatura suscita son quizá eternas, pero los medios deben constantemente variar, siquiera de un modo levísimo, para no perder su virtud. Se gastan a medida que los reconoce el lector. De ahí el peligro de afirmar que existen obras clásicas y que lo serán para siempre.

Cada cual descree de su arte y de sus artificios. Yo, que me he resignado a poner en duda la indefinida perduración de Voltaire o de Shakespeare, creo (esta tarde uno de los últimos días de 1965) en la de Schopenhauer y en la de Berkeley.

Clásico no es un libro (lo repito) que necesariamente posee tales o cuales méritos; es un libro que las generaciones de los hombres, urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealtad.

FONTE: BORGES, Jorge Luis. Sobre los clássicos. In: Otras inquisiciones: prosa completa, II. Barcelona: Bruguera, 1980. p. 302-303.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura, como manifestação artística, exerce um trabalho peculiar com as palavras ao criar ficções que estabelecem um diálogo estético e crítico com a realidade, com a complexidade do ser humano, do mundo e das relações existenciais.

• Os textos literários despertam sensações e sentimentos que promovem o prazer da leitura, estimulam a criatividade, o senso crítico, e são importantes para a formação humana.

• A formação do leitor literário pressupõe o contato direto com diversos textos literários, visando promover o reconhecimento de suas singularidades, bem como a ampliação da visão de mundo e o desenvolvimento da sensibilidade do leitor.

• Os clássicos são livros que integram as nossas lembranças e exercem uma influência particular na medida em que se tornam inesquecíveis e se mimetizam como inconsciente coletivo e individual.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Considerando as discussões de Jorge Luis Borges no ensaio Sobre los clásicos, expostas na Leitura Complementar, analise as asserções a seguir e a relação proposta entre elas.

I. Um clássico é um livro que as gerações de homens, instigados por diversos motivos, leem com fervor prévio e com uma misteriosa lealdade.

PORQUE

II. Os clássicos vêm até nós da tradição e exigem um ato de fé prévia. No entanto, essa concepção coletiva é eterna e imutável.

a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.

b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.

c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

2 Leia o poema do escritor Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, responda à questão proposta.

Iniciação Literária

Leituras! Leituras!Como quem diz: Navios... Sair pelo mundovoando na capa vermelha de Júlio Verne.Mas por que me deram para livro escolara Cultura dos campos de Assis Brasil?O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares– soja – fumo – alfafa – batata-doce – mandioca –pastos de cria – pastos de engorda.Se algum dia eu for rei, baixarei um decretocondenando este Assis a ler sua obra.

FONTE: ANDRADE, Carlos Drummond de. Iniciação literária. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 603.

O poema de Drummond estabelece uma relação intertextual com os escritos do autor francês Júlio Verne (1828-1905), enfatizando o processo de iniciação literária ao universo dos textos clássicos. A partir do texto acima, avalie as afirmações a seguir:

AUTOATIVIDADE

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I. O eu lírico demonstra prazer pela leitura da ficção do escritor Júlio Verne, mas sente-se forçado a ler um livro que trata de dados descritivos referentes ao universo agrário brasileiro.

II. Depreende-se do poema a ideia de que a leitura de um clássico é como um voo, um momento de liberdade que possibilita ao leitor “sair pelo mundo" através da imaginação.

III. O eu lírico apresenta um paradoxo entre as leituras espontâneas e o livro escolar, considerando a obra de Júlio Verne um modelo de texto convencional.

É correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e II, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 Tendo em vista as reflexões apresentadas neste tópico, faça uma lista de seus clássicos. Que livros fazem parte do seu reportório de leitura? Selecione e apresente alguma obra que você já leu ou ouviu falar, que pode ser considerada significativa para a formação do leitor. Em seguida, disserte sobre a relevância da obra escolhida, baseando-se na concepção de "clássico", formulada pelos autores Ítalo Calvino e Jorge Luis Borges.

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TÓPICO 2

A LITERATURA GREGA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃONeste tópico, estudaremos a literatura grega, considerada o fundamento

da literatura ocidental. Para tanto, iniciaremos com uma síntese sobre os períodos históricos das manifestações literárias e seus principais autores das formas épica, dramática e lírica. Em seguida, faremos uma abordagem sobre o pensamento mítico dos gregos e partiremos da Poética de Aristóteles, de suas discussões sobre os gêneros literários, para ressaltar algumas das obras mais relevantes da literatura grega.

A cultura grega surgiu na atual Península Balcânica aproximadamente no ano 1100 a.C. até o período da conquista romana em 146 a.C. Nela, encontramos as bases da cultura ocidental nos diversos âmbitos que englobam a filosofia, a história, os sistemas políticos e jurídicos, a ciência, a educação, a literatura, as artes plásticas e arquitetura como técnicas estéticas, os esportes, entre outros.

A literatura grega antiga inicia por volta do século VIII a.C. e engloba, basicamente, três momentos: o período arcaico (até o fim do século VI a.C.), o período clássico (séculos V e IV a.C.), e o período helenístico (a partir do século III a.C.).

O período arcaico foi um momento profícuo dos poemas cantados, transmitidos oralmente, cujos temas envolviam histórias mitológicas. Neste momento destacamos o surgimento das epopeias a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero, que narram a Guerra de Troia e a Viagem de retorno de Odisseu (Ulisses, no nome latino). É deste período também a poesia de Hesíodo (c. 700 a.C.), que foi posto em competição com Homero pelos próprios gregos, destaca Romilly (2011). Segundo a autora, a obra poética de Hesíodo procura romper com o ideal guerreiro do herói e é constituída principalmente por dois poemas: a Teogonia e os Trabalhos e Dias. Além desses, os antigos referiram outros. Nesta época, surgiram também os diversos tipos de poesia lírica, como os da poetisa Safo.

No período clássico, auge dos gêneros literários, destacam-se as tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípides e as comédias de Aristófanes, bem como as obras de Platão e Aristóteles, que foram fundamentais para a formação do pensamento ocidental.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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O período helenístico ou greco-romano, momento situado entre a morte de Alexandre, O Grande (323 a.C.) e a conquista do Antigo Egito pelos romanos, no ano de 30 a.C., sinaliza a transição da cultura grega para a romana. Nesta época, as ciências começam a se desenvolver, e no âmbito das artes destacam-se a poesia lírica de Calímaco, a poesia épica de Apolônio de Rodes, e o surgimento da ficção em prosa — considerada a gênese do romance.

2 O PENSAMENTO MÍTICO

Os mitos são elementos fundamentais para a compreensão da literatura grega e latina, bem como para as manifestações artísticas do Renascimento ou do Classicismo que revalorizaram a Antiguidade Clássica.

Os gregos antigos foram grandes criadores de histórias fabulosas que serviram para explicar as origens dos fenômenos naturais e do comportamento humano, antes do progresso racional e científico. Os mitos gregos, que foram adotados com outros nomes pelos latinos, são narrativas dos atos de seres sobrenaturais que explicavam a origem do universo e buscavam apaziguar os seres humanos diante das forças da natureza, dos conflitos e das contradições existenciais.

Através dessas narrativas, é possível compreender a cultura e a forma de pensamento dos gregos, seu modo de entender o mundo, destaca Jean-Pierre Vernant (1992). No panteísmo (crença em vários deuses), um dos princípios da sociedade grega, os deuses tinham uma construção bastante distinta do Deus presente na sociedade cristã. Mesmo sendo considerados divindades, os deuses gregos apresentavam limitações e muitas outras características semelhantes às dos humanos, além de estarem condicionados aos desígnos do Destino.

Mito (do grego mythos, no singular; mythoi, no plural), significa narrativa, histórias universalmente presentes no imaginário coletivo de povos de diferentes culturas. Para os gregos antigos, o pensamento mítico surge como uma crença-verdade transmitida através do discurso, criada e recriada por poetas e cantores populares, segue uma lógica peculiar que busca compreender a origem do mundo e de tudo que existe nele. "Memória, oralidade e tradição: são essas condições de existência e sobrevivência do mito", destaca Vernant (2000, p. 12).

NOTA

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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Para Vernant, os mitos gregos são construções simbólicas complexas, que auxiliam o homem a compreender fenômenos concretos e abstratos, representando, assim, um sistema de pensamento a partir de uma perspectiva social. Logo:

O mito não é uma vaga expressão de sentimentos individuais ou de emoções populares; é um sistema simbólico institucionalizado, uma conduta verbal codificada, veiculando, como a língua, maneiras de classificar, de coordenar, de agrupar e contrapor fatos, de sentir ao mesmo tempo semelhanças e dessemelhanças; em suma, de organizar a experiência (VERNANT, 2000, p. 206).

Vislumbrando a reflexão sobre a relação entre mito e literatura, a partir da poesia épica e do teatro grego, apresentaremos a seguir as principais divindades da Antiguidade Clássica e uma síntese de suas características mais peculiares, segundo D'Onofrio (1990). Destacaremos o nome grego e entre parênteses o termo correspondente latino.

• Zeus (Júpiter, também conhecido como Jove) é a maior divindade do mundo greco-romano, considerado por Homero o pai dos deuses e dos homens; o mito exprime a figura da autoridade, da onipotência.

• Poséidon (Netuno), irmão de Zeus, deus do mar e todo elemento líquido; ele é o causador de todos os movimentos sísmicos, através da agitação tempestuosa da água, simboliza a perturbação e a renovação da ordem cósmica, em oposição à terra, elemento passivo e estável.

• Hades (Plutão), irmão de Zeus, deus dos infernos, das profundezas subterrâneas, da morte e da destruição.

• Hera (Juno), esposa de Zeus, deusa da fecundidade e da fidelidade matrimonial, persegue todas as amantes do marido e os filhos ilegítimos deste, representa o princípio feminino.

• Atena (Minerva), filha de Zeus, deusa da guerra e da sabedoria; ela, junto com o irmão Apolo, simboliza características como a inteligência, a verdade, o equilíbrio sobre a barbárie, a orgia, o mistério.

• Afrodite (Vênus), filha de Zeus, deusa da beleza e do amor; ela, junto com seu filho Eros (Cupido), personifica a força do instinto sexual, que não conhece barreiras sociais ou morais.

• Apolo, filho de Zeus, deus da luz; tinha a missão de trazer a luz para a terra, o calor e a vida. Apolo, com a musa Calíope, gerou Orfeu, poeta e músico, admirado pelos gregos porque seu canto abrandava a dor e fascinava homens, animais e minerais.

• Dioniso (Baco), filho de Zeus, deus do vinho; fruto de um um amor divino-humano, não foi aceito no Olimpo e precisou conquistar o direito à imortalidade; personifica o instinto, a subversão da ordem, o prazer e a inversão dos valores.

• Ares (Marte), filho de Zeus e Hera, deus da guerra e da violência; personifica a força bruta, a violência gratuita.

• Hermes (Mercúrio), filho de Zeus, mensageiro dos deuses, protetor do comércio, do lucro e das viagens.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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• Ártemis (Diana), filha de Zeus, deusa da caça, da virgindade, símbolo da necessidade de repressão dos instintos sexuais. Também é considerada a deusa da Lua.

• Deméter (Ceres), irmã de Zeus, deusa da terra e da agricultura; simboliza o progresso material do homem na sua aprendizagem do cultivo da terra.

• Destino (Fado), filho da Noite, gerado pelo Caos, simboliza uma força cósmica superior ao próprio Zeus, à vontade dos deuses e dos homens, representa a necessidade de manutenção da ordem no universo.

• Vulcano (Hefesto), é o símbolo da engenhosidade humana, que se serve do fogo como meio para o desenvolvimento da ciência e da arte.

• As musas, as nove musas que inspiravam as artes, eram filhas de Zeus e Mnemosine (deusa da memória). São elas: 1) Calíope, musa da poesia épica; 2) Clio, musa da história; 3) Érato, musa da poesia lírica; 4) Euterpe, protetora da música; 5) Melpômene, musa do canto (mãe das sereias); 6) Polímnia, musa dos hinos religiosos e da oratória; 7) Talia, musa da comédia; 8) Terpsícore, musa da poesia trágica; 9) Urânia, musa das ciências exatas.

Destacamos o papel importante dos mitos na sociedade grega e na formação do pensamento ocidental. Veremos mais adiante que as ações heroicas humanas relatadas nas epopeias apresentam a constante intervenção dos deuses. Por exemplo, no poema Ilíada, que narra o Guerra de Troia, os deuses estavam divididos entre os gregos e os troianos, e a própria guerra teria sido motivada pela rivalidade entre as deusas.

O pensamento filosófico sobre a literatura também se apropriou das construções míticas recitadas em praça pública por poetas cantadores como Homero. Platão, em sua obra intitulada A República, critica Homero por apresentar heróis e deuses reproduzindo comportamentos moralmente duvidosos, como a traição, a falsidade, o roubo, a violência etc., que, para o filósofo, corrompem os nossos juízos de valor. Ainda na concepção de Platão, o artista nasce como tal porque recebe dos deuses o "dom" da arte. Esta ideia de "poeta inspirado" pela Musa foi refutada pela concepção de Aristóteles do "poeta artífice", aquele "que constrói e estrutura sua obra mediante um longo trabalho de aprendizado de modelos preexistentes, de técnicas específicas e do conhecimento da realidade que o circunda", destaca D'Onofrio (1990, p. 41).

Na próxima seção, ressaltaremos as principais discussões de Aristóteles na sua Poética, obra que teve grande repercussão em diversas épocas e instaurou o vocabulário da crítica literária no Ocidente, lembra Romilly (2011). O nosso propósito é iniciar o estudo da literatura grega, destacando os gêneros literários e a continuidade entre as obras gregas e romanas.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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3 A POÉTICA DE ARISTÓTELES

Platão e Aristóteles foram os precursores do pensamento sobre as manifestações do imaginário. Ao refutar as ideias platônicas de que a arte tem uma origem divina e a mimese (imitação) poética é ilusória e prejudicial aos ideais morais e pedagógicos dos filósofos, Aristóteles reelaborou o conceito de imitação como representação de uma possibilidade e criou uma concepção estética, abordando, sobretudo, a produção da poesia oral, em seus diversos gêneros, destacando a função de cada um deles.

Vejamos, a seguir, a apresentação inicial da Poética, escrita, aproximadamente, entre os anos 335 e 323 a.C., quando a poesia oral era forma predominante de literatura. A obra contém 26 capítulos e apresenta uma discussão sobre a arte poética, destacando as poesias trágica e épica.

I. Falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de cada uma, de como hão de compor as fábulas para o bom êxito do poema; depois, do número e natureza das partes e bem assim das demais matérias dessa pesquisa, começando, como manda a natureza, pelas noções mais elementares. A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo [hino coral em louvor de Dionisio (Baco)] e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo [cantor], todas vêm a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira diferente e não a mesma (ARISTÓTELES, 2014, p. 18).

As palavras iniciais de Aristóteles sinalizam um predomínio das produções orais recitadas pelos aedos (poetas cantadores), próprias da época e das práticas dos grupos sociais na cultura dos gregos antigos. Ademais, caracterizam a literatura como uma arte da imitação (algo inerente à natureza humana), que se realiza através da linguagem, do ritmo e da harmonia. O filósofo desenvolve a ideia de que a função da literatura, principalmente do teatro, é criar representações (imitações) das ações e comportamentos humanos, das paixões e forças que nos levam a agir. Para Aristóteles, quando nos deparamos com as representações criadas pelos textos literários, aprendemos com as experiências das personagens.

Na Antiguidade Clássica, Aristóteles foi o precursor do estudo da produção literária baseada em gêneros, isto é, em padrões de construção artística, classificados em épico, dramático e lírico, mas a parte dos escritos correspondentes à poesia lírica foi perdida. Durante o Renascimento, as teorias poéticas italianas incluíram as formas líricas entre as categorias descritas por Aristóteles. Essa classificação se consolidou como norma, especialmente na época que vai de fins do século XV até o século XVIII, destaca Souza (1995). Contudo, a partir do século XIX, o Romantismo se afasta do normativismo e começam a surgir novas criações e correlações que visam à liberdade criadora, à desconstrução dos modelos fixados até então, como exemplo temos a consolidação romance, figurando entre os gêneros literários modernos em prosa.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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Sobre os gêneros literários, Angélica Soares reforça que:

[...] A denominação de gêneros literários, para os diferentes agrupamentos de obras literárias, fica mais clara se lembrarmos que gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. E o que se vem fazendo, através dos tempos, é filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda é mostrar como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária. A caracterização dos gêneros, tomando por vezes feições normativas, ou apenas descritivas, apresentando-se como regras inflexíveis ou apenas um conjunto de traços, os quais a obra pode apresentar em sua totalidade ou predominantemente, vem diferenciando-se a cada época. Em defesa de uma universalidade na literatura, muitos teóricos chegam mesmo a considerar o gênero como categoria imutável e a valorizar a obra pela sua obediência a leis fixas de estruturação, pela sua “pureza”. Enquanto outros, em nome da liberdade criadora de que deve resultar o trabalho artístico, defendem a mistura de gêneros, procurando mostrar que cada obra apresenta diferentes combinações de características dos diversos gêneros (SOARES, 2007, p. 7-8).

No âmbito dessas discussões, a classificação aristotélica, criada para dar uma configuração artística a diversas histórias, ainda continua provocando reflexões, especialmente o conceito de imitação, da poesia como recriação, que servem de base para o pensamento sobre as formas estéticas.

As categorias apresentadas pelo filósofo podem ser caracterizadas em três gêneros, de acordo com a forma e o conteúdo das obras literárias.

• Épico ou narrativo: texto criado a partir de uma estrutura narrativa que tem como assunto os feitos heroicos e os grandes ideais de um povo. Homero é considerado modelo, o poeta mais representativo.

• Dramático: são textos em que as personagens apresentam uma ação direta, divididas em tragédia e comédia.

• Lírico: são diferentes tipos de versos em que o sujeito lírico (eu lírico), criado pelo poeta, vivencia e manifesta emoções.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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Além das questões que apresentamos sobre a Poética de Aristóteles, é importante que você aprofunde seus estudos fazendo a leitura integral da obra, atendo-se a outras discussões, por exemplo, o conceito de catarse (referente à purificação, à liberação de um sentimento reprimido, como sendo a finalidade da tragédia ao suscitar o temor e a piedade); as questões da verossimilhança (sobre aquilo que é semelhante à verdade, na medida do possível e do necessário); as especificidades de cada gênero; a diferença entre o poeta e o historiador (o historiador escreve o que aconteceu, e o poeta, o que poderia ter acontecido), entre outras. Para saber mais, acesse a versão completa da obra no Portal Domínio Público. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2235.

Para ampliar ainda mais os seus conhecimentos, procure estabelecer um diálogo entre as discussões do filósofo e as narrativas fílmicas. Muitas estratégias utilizadas pela dramarturgia e pelo cinema seguem as regras dramáticas clássicas. Veja, por exemplo, no filme Avatar (2009), de James Cameron, como, no mundo alienígena de Pandora, os colonizadores humanos e os Na'vi, seres primitivos, entram em guerra pelo planeta e pela manutenção da espécie nativa.

IMPORTANTE

4 GÊNERO ÉPICO

A narrativa mais antiga de que se tem conhecimento é A epopeia de Gilgamesh ou o Poema de Gilgamesh, da cultura da Mesopotâmia, produzida em torno do ano 2.000 a.C. Gravado em tábuas de argila através da escrita cuneiforme, o poema é considerado a primeira obra a narrar os feitos de um herói, as aventuras do rei Gilgamesh e do seu amigo Endiku, os desafios enfrentados diante de monstros e deuses. Apesar disso, na cultura ocidental, considera-se as obras Ilíada e Odisseia, surgidas por volta do século VIII a.C, as narrativas mais importantes, provenientes de uma tradição transmitida de forma oral pelos aedos, poetas que cantavam fábulas e tradições.

Se ninguém tem certeza da existência de Homero, o contrário acontece com os poemas que foram atribuídos a ele, destaca Manguel, ao dizer que:

Num sentido muito real, a Ilíada e a Odisseia nos são familiares antes de abrirmos suas primeiras páginas. Antes mesmo de começarmos a acompanhar as mudanças de humor de Aquiles ou admirar a esperteza e a coragem de Ulisses, aprendemos a presumir que, em algum lugar, nessas histórias de guerra no tempo e de viagem no espaço, nos será contada a experiência de toda a luta e de toda travessia humanas (MANGUEL, 2008, p. 39).

Já do ponto de vista formal, a poesia épica da Antiguidade Clássica se caracteriza por apresentar uma narrativa longa, composta por um verso específico chamado hexâmetro datílico, que foi elaborado por Homero e outros épicos gregos. Também está presente em Virgílio, na Eneida, e em outros épicos

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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latinos, tendo sido reelaborado posteriormente por Camões, nos Lusíadas, com seus versos decassílados, seguidos por novas propostas de versos que surgiram posteriormente.

O hexâmetro datílico (dactilus, significa dedo em grego) é uma estrutura métrica poética formada por uma sílaba longa (tônica) seguida por duas curtas (átonas) que se parecem com as falanges dos dedos. Os versos decassílados, por sua vez, possuem dez sílabas métricas e são classificados de acordo as posições da sílaba tônica.

NOTA

Além disso, os poemas épicos gregos apresentam uma organização interna. Por serem longos, são divididos em vários cantos (ou livros). Nessa estrutura, os cantos são organizados da seguinte maneira:

• Proposição (ou exórdio): introdução do tema e definição do herói do poema.• Invocação: momento em que o poeta pede inspiração à Musa para desenvolver

a narrativa. • Narração: parte em que se narra as aventuras e os feitos gloriosos do herói.• Epílogo (conclusão): encerramento da narração dos feitos heroicos.

Logo, podemos considerar que as epopeias clássicas apresentam características comuns ao narrarem feitos extraordinários de um herói. Nelas, no entanto, o conceito de herói é amplo, visto que as personagens apresentam características diversificadas dentre as várias possibilidades de representação. Contudo, nas epopeias homéricas costuma-se singularizar a força de Aquiles, na Ilíada, e a astúcia de Ulisses, na Odisseia.

A Ilíada tem cerca de mil versos, divididos em 24 contos, e é considerada uma obra de juventude de Homero. O poema narra parte da guerra dos Aqueus (os primeiros gregos que ocuparam parte do Mediterrâneo) contra Troia, evidenciando a ira de Aquiles, a sua recusa em continuar a lutar, seguido do seu regresso ao combate para vingar seu amigo. Antes do começo do poema, a bela Helena, esposa de Menelau, fora raptada por Páris, filho do rei de Troia. Por esse motivo, Agamenon, irmão de Menelau, sitia Troia com o apoio de seus guerreiros mais famosos: Ajax, Diomedes, Ulisses, o velho Nestor, Pátroclo e seu amigo Aquiles, filho da deusa Tétis, considerado o maior guerreiro grego. A guerra durou dez anos e os deuses se envolveram constantemente no conflito. Do lado dos troianos estavam Afrodite (mãe do troiano Eneias), Apolo e Ares. Do lado dos gregos: Tétis, Atena, Poseidon e Hera.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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Vejamos a seguir os versos iniciais da Ilíada, na tradução de Odorico Mendes (1784).

Canta-me, ó deusa, do Peleio de Aquiles A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, Verdes no Orco lançou mil fortes almas, Corpos de heróis a cães e abutres pasto: Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem 5 O de homens chefe e o Mirmidon divino (HOMERO, 2008, p. 45, grifo nosso).

O vócabulo ira, atrelado a Aquiles, é o primeiro que chama a atenção do leitor e que desencadeia uma sucessão de episódios. O poema Odisseia, por sua vez, tem cerca de 12 mil versos, também divididos em 24 contos, e é considerado uma obra do período de maturidade do autor. A narrativa começa dez anos depois da queda de Troia. Com o fim da guerra, o comportamento desrespeitoso de alguns gregos incomodou outros, principalmente Atena, que os apoiou durante todo o conflito. Por isso, Ulisses não teve permissão para retornar a Ítaca, onde Penélope, sua esposa fiel, há sete anos, sob pressão de um grupo de pessoas que almejam o poder, tentava evitar uma série de pretendentes. Zeus decide intervir e acaba lançando Ulisses no mar e no caminho de regresso para casa, que levará mais dez anos e será repleto de grandes obstáculos provocados por Poseidon, deus do mar.

Acompanhemos, abaixo, os versos iniciais do poema, a astúcia, a bravura de Ulisses diante dos desafios, que foi consagrado como herói e imortalizado pelos seus feitos.

[…] Canta, ó Musa, o varão que astucioso, Rasa Ílion santa, errou de clima em clima, Viu de muitas nações costumes vários. Mil transes padeceu no equóreo ponto, Por segurar a vida e aos seus a volta; 5 Baldo afã! pereceram, tendo insanos Ao claro Hiperiônio os bois comido, Que não quis para a pátria alumiá-los. Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra

(HOMERO 2009, s.p., grifo nosso).

Dentre as várias imagens da literatura, conhecidas por povoarem o nosso imaginário, a viagem de Ulisses talvez seja uma das mais impactantes. "Será que a Odisseia não é o mito de todas as viagens?", indaga Ítalo Calvino (2007, p. 24), ressaltando que "ainda hoje, para nós, cada viagem, pequena ou grande, sempre é Odisseia". Provavelmente, em contextos distintos, já empregamos essa metáfora.

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Metáfora: figura de linguagem que consiste no emprego de uma palavra fora do seu sentido comum, a exemplo da "viagem" de Ulisses, que assume um sentido amplificado de desafio, de transformação.

NOTA

Na literatura, as várias reelaborações da epopeia homérica mostram a força e a presença da literatura grega em nossa cultura ocidental, como, por exemplo, a viagem de Eneias narrada por Virgílio, a alegoria da viagem ao submundo criada por Dante e a viagem de Vasco da Gama, narrada por Camões, obras que estudaremos nos próximos capítulos.

Tantas outras imagens da literatura clássica se tornaram bastante representativas, como o momento em que Ulisses tapa os ouvidos de seus marujos com cera e se amarra ao mastro do navio para ouvir o canto das sereias, cujo perigo é conhecido por enfeitiçar os viajantes.

Vejamos abaixo um trecho do episódio, narrado no Canto XII, no qual Ulisses recebe o conselho da feiticeira Circe sobre os perigos das sereias.

[…]

A satisfaço, e ela assim discorre: 25 “Pois bem; atende agora, e um deus na mente Meu conselho te imprima. Hás de as sereias Primeiro deparar, cuja harmonia Adormenta e fascina os que as escutam: Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos 30 Não regozijará nos doces lares; Que a vocal melodia o atrai às veigas, Onde em cúmulo assentam-se de humanos Ossos e podres carnes. Surde avante; As orelhas aos teus com cera tapes, 35 Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes Contanto que do mastro ao longo estejas De pés e mãos atado; e se, absorvido No prazer, ordenares que te soltem, Liguem-te com mais força os companheiros. 40 […] (HOMERO, 2009, s.p.).

Finalizaremos esta seção de discussão apresentando um diálogo entre literatura e pintura, uma percepção distinta e singular a respeito do episódio narrado sobre a exposição de Ulisses ao sedutor e mortal canto das sereias.

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FIGURA 1 - WATERHOUSE, JOHN WILLIAM. ULISSES E AS SEREIAS. NATIONAL GALLERY OF VICTORIA, MELBOURNE, 1891. ÓLEO SOBRE LIENZO, 100.6 X 202.

FONTE: <https://artsandculture.google.com/asset/ulysses-and-the-sirens/qQH6ni1OHjyz>. Acesso em: 15 jun. 2018.

DICAS

No Portal Domínio Público, você pode acessar as traduções da Ilíada e da Odisseia, traduzidas pelo maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1874), primeiro tradutor brasileiro a verter para o português as obras de Homero e de Virgílio. Você também pode acessar a dissertação de mestrado Odorico Mendes, o manuscrito da Ilíada e diversas facetas da atividade tradutória, indicada nas referências finais deste livro didático, para conhecer os bastidores da tradução no Brasil na segunda metade do século XIX, tendo em vista a grande importância dos tradutores na difusão dos textos literários e para o intercâmbio entre diferentes culturas e línguas. Afinal, como diz Manguel (2008, p. 10), “exceto por um grupo cada vez menor de intelectuais aos quais foi concedida a graça de conhecer grego antigo, o resto de nós não lê Homero, mas uma tradução de Homero”. Ademais, indicamos outras traduções de Homero para o portugûes, como as versões de Carlos Alberto Nunes e de Haroldo de Campos. Acesse através do link: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp.

Além disso, se você quiser conhecer outras releituras das obras de Homero, sugerimos os filmes A Odisseia (1997), de Andrei Konchalovsky, e Troia (2004), de Wofgang Petersen, que são produções cinematrográficas mais recentes. Já o filme Até o fim (2013), de Jeffrey McDonald, apresenta uma perspectiva diferente dos feitos sobre-humanos do herói épico. No filme, o herói é um homem contemporâneo que navega sozinho com seu veleiro e se vê diante de vários desafios em alto-mar, lutando pela sobrevivência.

Ainda é possível encontrar várias versões das epopeias homéricas, como as produzidas pela autora Ruth Rocha, publicadas pela Editora Companhia das Letrinhas, e a versão criada por Maurício de Sousa e pelo ilustrador Fábio Sombra em versos de cordel, publicada pela Editora Melhoramentos.

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5 GÊNERO DRAMÁTICO

As origens do drama grego estão relacionadas à religiosidade, ao culto do deus Dionísio, às apresentações de danças e hinos recitados por um coro. Na Grécia antiga, o teatro foi a maior forma de representação cultural e de lazer. Durante uma semana de festas dionisíacas, um grande público se reunia para assitir às várias peças representadas nos concursos teatrais.

Aristóteles (2014, p. 23-24) apresenta o gênero dramático como uma manifestação artística espetacular, uma "imitação feita por personagens em ação", subdividida em tragégia e comédia. Resumidamente, podemos considerar que essas duas formas de composição se diferenciam pelo tipo de ação praticada pelas personagens. Para o filósofo, as tragédias imitam "ações de caráter elevado", as ações dos deuses, dos heróis do povo, das famílias nobres. Elas têm um efeito pedagógico de catarse, ou seja, de purificação do espectador através dos sentimentos de terror e piedade. As comédias, por outro lado, evidenciam narrativas que são risíveis e apontam o ridículo de "personagens inferiores", de homens comuns, de aspectos relacionados com a vida cotidiana. Inicialmente, a comédia estava ligada aos cantos e brincadeiras de uma procissão burlesca em homenagem a Dionísio, deus do vinho.

A seguir, apresentaremos uma seleção de fragmentos da poesia dramática

grega que evocam uma série de questionamentos sobre atitudes e sentimentos humanos. Entre as obras, destacaremos as tragédias Prometeu acorrentado, de Ésquilo, Édipo Rei, de Sófocles, Medéia, de Eurípides, e a comédia Lisístrata ou Greve dos Sexos, de Aristófanes.

5.1 A TRAGÉDIA

Certamente você já ouviu o termo “tragédia" e provavelmente deve utilizá-lo em seu cotidiano para se referir a acontecimentos catastróficos, de grandes proporções, na maioria das vezes relacionados à morte. No teatro, a tragédia também estabelece essa relação de sentido e está vinculada a uma sequência de acontecimentos associada a alguma desgraça. Um conflito que envolve a falha trágica do herói ao descobrir um engano, ou seja, ao fazer algo sem saber, depois sofrer as consequências desse erro.

A tragédia grega é, sem dúvida, uma expressão de uma ação humana levada até às últimas consequências. Geralmente apresenta personagens complexos e um conjunto de circunstâncias que as colocam numa situação sem saída. A estrutura da tragédia realça personagens que se movem em cena e participam de uma ação por meio de versos falados. Aliás, o teatro como drama (a palavra drama significa ação, em grego) apresenta componentes fundamentais, como o coro, a voz da coletividade, elemento predominante que comenta a cena, cantando sob a direção do corifeu (regente do coro); os episódios da ação, introduzidos,

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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interrompidos e concluídos pelo coro; o parodos, canto de introdução; o exodos, o canto de conclusão, e os stasima, outros cantos cujo número vai de dois a cinco, destaca Romilly (2011, p. 90).

Ésquilo (524- 456 a.C) figura como o mais antigo dos autores trágicos, considerado o criador da tragédia. Dele destacam-se as sete tragédias conservadas, Os Persas, os Sete contra Tebas e as três peças (Agamêmnon, As coéforas e As eumênides) que constituem a Oresteia. As demais obras que restaram são As suplicantes e Prometeu acorrentado. Nelas são apresentados temas que envolvem grandes questões humanas, como a relação com as divindades e o destino, os problemas instaurados pela culpa, pelo mau e o senso de justiça.

A peça Prometeu acorrentado, apresentada abaixo, mostra-nos o mundo dos imortais. Prometeu, um ser divino, é alvo da cólera de Zeus (Júpiter), por ter roubado o fogo dos deuses para ajudar os mortais. Mesmo sabendo do seu terrível castigo, a personagem de Ésquilo sente-se injustiçada e segue fiel aos seus princípios, desafiando os poderes autoritários das divindades.

Nos rochedos da Cítia. O PODER, a VIOLÊNCIA, VULCANO e PROMETEU

O PODER

Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo, teu atributo, precioso fator das criações do gênio, para transmiti-lo aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a potestade de Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade.

VULCANOPara vós, Poder e Violência, a ordem de Júpiter está cumprida; nada mais resta a fazer. Quanto a mim, sinto-me sem coragem para acorrentar pela força a um deus, meu parente, sobre esta penedia, exposto à fúria das tempestades! Vejo-me, no entanto, coagido a fazê-lo, pois seria perigoso esquecer as ordens de meu pai. Preclaro filho da sábia Têmis, é bem contra minha vontade, e a tua, que te vou prender por indissolúveis cadeias, a este inóspito rochedo, de onde não ouvirás a voz, nem verás o semblante de um único mortal; e onde, queimado lentamente pelos raios ofuscantes do Sol, terás adusta a epiderme; onde a noite estrelada tardará a poupar-te à luz intensa, assim como o Sol tardará em secar o orvalho matinal. Oprimir-te-á o peso de uma dor perene, pois ainda não nasceu, sequer, o teu libertador. Eis a consequência de tua dedicação pelos humanos; como deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis. Como castigo por essa temeridade, ficarás sobre esta rocha terrífica, em pé, sem sono e sem repouso; debalde farás ouvir suspiros e clamores dolorosos; o coração de Júpiter é inexorável... Um novo senhor é sempre severo!...

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O PODER E então? Por que tardas ainda? De que vale esta vã piedade? Pois quê?... por acaso não detestas a uma divindade inimiga dos demais deuses, visto que transmitiu aos homens as honras que eram teu privilégio?

VULCANOÉ que... os laços do sangue, e os da amizade, são poderosos!

O PODER Sem dúvida! Mas como desobedecer às ordens de teu pai? Não o temes, por acaso?

VULCANOTu serás sempre, ó Poder, destituído de piedade, e capaz de tudo!

O PODERCertamente! De que serve lamentar a sorte deste criminoso, uma vez que não há remédio possível para seu mal? Não te canses, pois, na busca de um socorro inútil.

VULCANOOh!... Como abomino o ofício a que me consagrei!

O PODERPor quê? Esse ofício não é a causa, nem a origem, dos males que aqui vemos presentes.

VULCANOQuem me dera um companheiro, que comigo partilhasse deste sacrifício!...

O PODERMuito podem os deuses, na verdade, porém dependem de um poder supremo; só Júpiter é onipotente.

[…] (ÉSQUILO, 2005, p. 5-8).

Outro importante dramaturgo grego foi Sófocles (496-406 a.C), que escreveu mais de 120 peças. Diversas obras do autor conquistaram os espectadores gregos em vários concursos dramáticos. As peças mais importantes e famosas são as três centradas no mito de Édipo (Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colon, peça póstuma). Da tragédia de Édipo emanam grandes temas, entre eles: o triunfo do poder patriarcal, a busca da identidade, a questão do destino e o tema do incesto que inspirou a psicanálise de Freud na elaboração do "complexo de Édipo", relacionado à fase do desenvolvimento infantil.

Em suas obras, as personagens individuais, diante da força do destino, ganham mais destaque que a intervenção do coro. O trecho a seguir, extraído de Édipo Rei, narra a triste história de Édipo, o primeiro filho de Laio, rei de Tebas. Vítima de uma maldição, o protagonista que dá título à peça cumpriu um trágico destino ao assassinar o pai e se casar com a própria mãe Jocasta, sem saber.

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No fragmento abaixo, Édipo lamenta a sua desgraça.

[…]

O SERVO: Ai de mim! Isso é que me será horrível dizer!ÉDIPO: E para mim será horrível ouvir! Fala, pois! Assim é preciso!O SERVO: Diziam que era filho dele próprio. Mas aquela que está no interior de tua casa, tua esposa, é quem melhor poderá dizer a verdade.ÉDIPO: Foi ela que te entregou a criança?O SERVO: Sim, rei.ÉDIPO: E para quê?O SERVO: Para que eu a deixasse morrer.ÉDIPO: Uma mãe fez isso! Que desgraçada!O SERVO: Assim fez, temendo a realização de oráculos terríveis...ÉDIPO: Que oráculos?O SERVO: Aquele menino deveria matar seu pai, assim diziam...ÉDIPO: E por que motivo resolveste entregá-lo a este velho?O SERVO: De pena dele, senhor! Pensei que este homem o levasse para sua terra, para um país distante... Mas ele o salvou da morte para maior desgraça! Porque, se és tu quem ele diz, sabe que tu és o mais infeliz dos homens!ÉDIPO: Oh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez! Todos sabem: tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei e eu matei aquele a quem eu não poderia matar!

Desatinado, ÉDIPO corre para o interior do palácio; retiram-se os dois pastores; a cena fica vazia por algum tempo.

O CORO: Ó gerações de mortais, como vossa existência nada vale a meus olhos! Qual a criatura humana que já conheceu felicidade que não seja a de parecer feliz, e que não tenha recaído após, no infortúnio, finda aquela doce ilusão? Em face de seu destino tão cruel, ó desditoso Édipo, posso afirmar que não há felicidade para os mortais!

[…] (SÓFOCLES, 2005, p. 83-87).

Eurípides (480-406 a.C.) completa o trio dos grandes tragediógrafos gregos. O dramaturgo, no entanto, pertence a uma geração formada por uma atmosfera moral diferente, apresentanto uma visão crítica dos mitos, da realidade, das ideias políticas, das paixões e fraquezas humanas. Eurípides escreveu mais de 60 peças, mas só restaram 18, das quais as mais importantes são: As troianas, Ifigênia em Âulis, Medéia, Hipólito e As bacantes.

Leia, abaixo, um trecho de Medéia, drama de uma feiticeira apaixonada pelo aventureiro Jasão. Medéia fugiu de sua terra, contrariando o pai e entristecendo seu próprio irmão, para acompanhar Jasão. A cena escolhida mostra o momento em que Medéia toma consciência de suas atitudes e se decepciona por ter confiado tanto no amor de seu companheiro.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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CORO

[…]Idos são os tempos de respeito aos juramentos. A honra desapareceu da nobre Hélade. Não se encontra mais em toda a vastidão da nossa terra; voou além dos céus. Não tens mais espaço na casa de teus pais, pobre de ti; era teu porto, o teu abrigo seguro para as tempestades da existência. E aqui teu leito foi ocupado por uma mais ditosa, teu lar tem outra rainha.

(Entra Jasão)JASÃO

Não é a primeira vez que noto, muitas vezes notei, a desgraça que é um temperamento exacerbado. Por exemplo, agora, bem poderias permanecer neste país e nesta casa, se soubesses obedecer à vontade dos que te são superiores. Quem te expulsa de Corinto não somos nós, até condescendentes. São tuas palavras insensatas. A mim essas palavras não me dizem nada. Pode continuar apregoando ao mundo que Jasão é o mais vil dos homens. Mas, depois do que gritas contra o soberano, o banimento é até uma punição bem generosa. Tentei de toda forma conter a irritação do rei Creonte, pois o meu desejo era que continuasses aqui.Mas teu temperamento, a que me referi, fez com que, com palavras execráveis, continuasses incansável nas injúrias ao rei. Foste banida. Porém, apesar disso tudo, não vim aqui para repudiar o que, ainda, me é caro, mas, ainda, preocupado por ti, mulher, com tua sorte. Para que não sejas exilada com teus filhos, sem recursos, uma indigente. O desterro traz sempre um cortejo de misérias. Bem sei o quanto me odeias; mas contra ti jamais alimentarei um desejo igual.

MEDÉIA(Soberba)

A única expressão que a minha língua encontra para definir o teu caráter, tua falta de virilidade, é o mais baixo dos canalhas. Vieste a mim, estás aqui, para quê, tu, ser odiado pelos deuses, odiado por mim e por toda humanidade? Não é prova de coragem nem de magnanimidade olhar na cara os ex-amigos, na esperança de que esqueçam todo o mal que lhes fizeste. A isso se chama cinismo, e vem com as piores doenças do caráter humano — a falta de pudor, a ausência de vergonha.Ainda assim, fizeste bem em vir, aliviarei meu coração injuriando-te, pois sofrerás ouvindo meus insultos. Começarei do começo. Salvei tua vida, como sabem todos os helenos que embarcaram contigo na Argo, quando foste enviado para subjugar o touro de ventas de fogo e semear a morte nos campos. Fui eu que matei o dragão que guardava o Velocino de Ouro com seus olhos que jamais dormiam, e seus anéis, que prendiam o Velocino, tornando impossível libertá-lo. Abandonei pai e pátria e vim contigo pra lolco; meu amor era maior que minha prudência.Depois provoquei a morte de Pélias de modo mais terrível: nas mãos das próprias filhas. E assim te livrei de todos os temores. Tudo isso eu fiz por ti, e, vil traidor, procuraste uma nova esposa, embora já tivéssemos procriado dois filhos. Se eu não houvesse te dado descedência, teria perdoado tua busca em um novo leito. Já morreu em mim há muito tempo toda e qualquer confiança em tuas juras. Acho que até acreditas que nossos velhos deuses já não reinam.

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Ou que estabeleceram novas leis para os mortais. Se não, como poderias justificar tua tremenda vilania? […] Céus, a que coração traiçoeiro confiei minha esperança.

[…]

CORIFEU

Há algo terrível e incurável, acima de qualquer compreensão mortal, no ódio que nasce entre os próximos e os amados.

[…] (EURÍPIDES, 2004, p. 32-37)

Medéia cometeu gestos extremados por causa de uma traição, provocando várias mortes, inclusive a morte dos dois filhos que teve com Jasão. Ao final do trecho da peça exposta acima, o público é advertido sobre a imprudência das pessoas que se deixam levar pelas paixões.

5.2 A COMÉDIA

A comédia, por sua vez, é um gênero teatral que trata de assuntos cotidianos, envolvendo política e diversos temas sociais, de forma humorada. Os conflitos apresentam peripécias, confusões, armações. O universo da comédia é bastante variado, burlesco, caricato. Normalmente, as personagens são cidadãos comuns e os temas giram em torno da vida cotidiana, de assuntos mundanos.

Aristófanes (445-386 a.C.) é o representante mais importante da comédia grega. Foi responsável por misturar manifestações líricas com expressões francas e pouco polidas, em todos os aspectos sociais. O comediógrafo tinha um tom livre e frequentemente provocava as pessoas, apesar das tentativas de proibição de suas produções.

Na comédia grega há um prólogo apresentando o assunto a ser encenado, e o coro, personagem coletivo, que discordava e apresentava o enredo, fazendo comentários e reflexões para mostrar aos humanos que estavam condicionados às vontades dos deuses, desaparece completamente.

Entre as obras de Aristófanes, destacam-se: Os cavaleiros, A paz, As nuvens, Lisístrata, As rãs e Assembleia das mulheres. Neste tópico, apresentaremos um fragmento da comédia Lisístrata ou Greve dos Sexos, na qual uma mulher convoca as mulheres gregas para uma greve de sexo, com o objetivo de acabar com a guerra e restabelecer a paz. A história, que até hoje continua sendo montada e apresentada por várias companhias teatrais, se passa em Atenas, na Grécia, cerca de 411 a.C., num período em que acontecia a Guerra do Peloponeso, um conflito ocasionado pela rivalidade econômica entre Atenas e Esparta.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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CENA

No primeiro plano, de um lado a casa de Lisístrata, do outro a de Cleonice. Ao fundo, a Acrópole. Um caminho estreito e cheio de curvas conduz até lá. No meio dos rochedos, em segundo plano, a gruta de Pã. Lisístrata anda pra lá e pra cá, diante da casa.

LISÍSTRATA - Pois é. Se tivessem sido convidadas para uma festa de Baco isso daqui estaria intransitável de mulheres e tamborins. Mas, como eu disse que a coisa era séria, nenhuma apareceu até agora. Só pensam em bacanais. Ei, Cleonice! Bom-dia, Cleonice!

CLEONICE - Bom-dia, Lisístrata. Magnífico dia para um bacanal.

LISÍSTRATA - Cleonice, pelo amor de Zeus: Baco já deve andar cansado.

CLEONICE - Que aconteceu, boa vizinha? Tens a expressão sombria, um olhar cheio de repreensão, a testa franzida. O avesso de uma máscara de beleza.

LISÍSTRATA - Oh, Cleonice, meu coração está cheio de despeito. Me envergonho de ser mulher. Sou obrigada a dar razão aos homens, quando nos tratam como objetos, boas apenas para os prazeres do leito.

CLEONICE - E às vezes nem isso. Cibele, por exemplo...

LISÍSTRATA - (Repreensiva.) Por favor, Cleonice. (Pausa.) Não é hora para maledicências. (Pausa.) No momento em que foram convocadas para uma decisão definitiva na vida do país, preferem ficar na cama em vez de atender aos interesses da comunidade.

CLEONICE - Calma, Lisinha! Você sabe como é difícil para as donas-de-casa se livrarem dos compromissos domésticos. Uma tem que ir ao mercado, outra leva o filho à academia, uma terceira luta com a escrava preguiçosa que às 6 da manhã ainda não levantou. Sem falar no tempo que se perde limpando o traseiro irresponsável das crianças.

LISÍSTRATA - Mas eu avisei que deixassem tudo. A coisa aqui é muito mais urgente. Muito maior.

CLEONICE - Tão grande assim?

LISÍSTRATA - Acho que nenhuma de nós jamais encarou nada tão grande. Ou nos reunimos e enfrentamos juntas ou ela nos devora.

CLEONICE - Mas, então, se você mostrou a elas a exata dimensão da coisa, não compreendo que não tenham vindo logo correndo, todas!

LISÍSTRATA - Ah, Cleonice, que cansaço! Do que é que você está falando? É claro que se fosse o que você pensa ninguém teria deixado de comparecer imediatamente. Mas o problema é muito diferente. Tenho passado noites em claro, me virando na cama prum lado e pro outro sem encontrar uma posição correta diante dele. A todo instante cresce e diminui diante de meus olhos. Não sei o que fazer. Preciso de auxílio.

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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CLEONICE - (Ainda incapaz de levar a coisa a sério.) Será que nós duas sozinhas não podemos reduzir o negócio a proporções menos alarmantes?

LISÍSTRATA - Nós duas sozinhas como, Cleonice? Estou falando da salvação da Grécia.

CLEONICE - Ah, é isso, enfim, a coisa que te preocupa. Pobre Lisístrata, se você pensa que pode salvar a pátria reunindo as mulheres numa praça... Sagrada ingenuidade! Muitos já o tentaram antes... Muitos o tentarão sempre através dos séculos.

LISÍSTRATA - Não com meu plano. Reuniremos todas as mulheres da Grécia, incluindo as beócias e as peloponesas. E acabaremos de vez com as lutas fratricidas, que nos deixam à mercê dos bárbaros que descem lá do Norte.

[…] (ARISTÓFANES, 2003, p. 2-3).

Nas cenas que se seguem do texto dramático de Aristófanes, Lisístrata irá expor seu plano às outras mulheres que, de início, reagem negativamente. No entanto, não encontrando outra saída, aceitam o acordo. Depois de muitas confusões e facetas, elas alcançam seu objetivo.

Na poesia dramática grega, é válido ressaltar o surgimento da comédia nova, cujos temas de caráter privado destacavam personagens típicos: velhos, jovens, avarentos, cortesãs, mercadores. Entre as obras, destaca-se O misantropo, de Meneandro (341-292 a.C.), que exercerá forte influência nos comediógrafos latinos Plauto e Terêncio, como veremos adiante.

6 GÊNERO LÍRICO

Na Grécia antiga, a poesia lírica, caracterizada pela expressão de um mundo interior, começou a se destacar a partir do século VII a.C. com o declínio da poesia épica. Segundo D'Onofrio (1990, p. 58), os primeiros poemas líricos também estão relacionados ao culto religioso, sendo cantados durante as procissões e festas sagradas. De acordo com o autor, um perfil da poesia lírica pode ser traçado dentro das diversas modalidades de poesia: o epinício (comemoração de uma vitória esportiva), o encômio (elogio a um homem), o epitalâmio (canto nupcial), a elegia (canto fúnebre, que passou a expressar um acontecimento triste e a expressar sentimentos de amor e de exaltação patriótica); a ode (gênero mais livre que exalta valores nobres).

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

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A palavra lírico advém de “lira”, instrumento musical utilizado pelos gregos na Antiguidade, e ficou conhecida como uma canção acompanhada ao som da lira. Nessa fusão de versos e música, o ritmo assumiu uma característica marcante para o texto lírico. Com o passar do tempo, outros instrumentos musicais, como flauta e o alaúde, foram utilizados para entoar os versos, e a poesia lírica deixou de ser necessariamente cantada e acompanhada por um instrumento musical. Por conta dessas relações, a literatura e a música mantêm um diálogo constante.

Já a expressão “eu lírico”, também conhecida como sujeito lírico ou eu poemático, diz respeito à “voz que fala" no poema, à expressão do “eu” que projeta seus sentimentos, desejos e emoções. Sobre as peculiaridades do gênero lírico, é importante que se compreenda as seguintes noções, destacadas por Soares (2007, p. 26):

1ª) o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema: na seleção e combinação das palavras, na sintaxe, no ritmo, na imagística; 2 ª) assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo-nos a recepção; 3 ª) e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo quando expresso na primeira pessoa do discurso.

Cabe ainda destacar que há várias formas de expressão do gênero lírico, que pode ser escrito em versos, em prosa ou através de experiências visuais que mesclam a disposição das letras, como veremos na visualidade dos versos de Mallarmé, no final do século XIX, na Unidade 3, considerado o momento da liberdade de criação da poesia moderna. Por isso, quando lemos um poema, devemos observar o seu conteúdo e sua forma de composição (ritmo, metro, rima, efeitos visuais etc.) para que possamos captar as peculiaridades da linguagem poética e os sentidos sugeridos.

NOTA

Na Antiguidade, a expressão desse mundo interior, do "eu”, foi difundida por Safo, a poetisa mais famosa entre os autores de poesia lírica. Apelidada de “Décima Musa", sua figura foi alvo de especulações sobre os seus amores homossexuais. Aliás, o termo "lésbica" estaria relacionado à Ilha de Lesbos, cidade natal de Safo, lembra D'Onofrio (1990, p. 61).

Nos poemas de Safo predominam o tema amoroso, erótico, a nostalgia,

as contradições dos sentimentos humanos, como é possível observar no poema a seguir.

(fragmentos de um poema)

Parece-me igual aos deuses ser aquele homem que, à sua frente sentado,de perto, doces palavras, inclinando o rosto,escuta,e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro,me faz com pavor bater o coração no peito;eu te vejo um instante apenas e as palavrastodas me abandonam;

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TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA

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a língua se parte; debaixo da minha pele,no mesmo instante, corre um fogo sutil;meus olhos me veem; zumbemmeus ouvidosum frio suor me recobre, um frêmito me apoderado corpo todo, mais verde queas ervaseu ficoe que já estou morta parece [...]Mas [...] (SAFO, 2002, p. 4-5).

7 A FICÇÃO EM PROSA

A produção literária em prosa, embora não contemplada na Poética de Aristóteles, foi escrita pelos gregos nos séculos II e III d.C. e constitui as primeiras formas de romance de caráter idealizante e conservador que se diferem das produções anti-idealizantes dos romances latinos de Petrônio e de Apuleio, cujas narrativas apresentam conteúdos satíricos de caráter mais realista.

Entre os romances gregos, destacam-se: As Aventuras de Quereas e Calíroe, de Caritão de Afrodísia; Os relatos etíopes (Teágenes e Cariclea), de Heliodoro de Émeso; Dáfnis e Cloe, de Longo; As Aventuras de Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio; Os relatos efésios, de Xenofonte de Éfeso (Habôcomes e Antia). O conteúdo temático dessas obras, repleto de aventuras e idealizações, se refugia no mundo da fantasia, da existência mítica, e será reelaborado por romancistas medievais, bizantinos e por autores da literatura hispânica como Miguel de Cervantes.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os mitos expressam histórias fabulosas de divindades que excerceram forte influência no pensamento ocidental e são elementos importantes para a compreensão da literatura grega e latina.

• Aristóteles propôs a divisão tripartida da literatura nos gêneros épico, dramático e lírico, problematizando sua natureza, sua função e seus efeitos.

• O gênero épico teve sua origem na Antiguidade e é representado pela epopeia, uma narrativa longa composta em versos, que aborda as façanhas de um herói e apresenta elementos míticos que participam ativamente da história, a exemplo das obras Ilíada e Odisseia, de Homero.

• O gênero dramático desenvolve uma ação para ser encenada e inclui a tragédia e a comédia como importantes formas de expressão teatral.

• No gênero lírico predomina a expressão da subjetividade, do "eu” que expressa seus sentimentos, desejos e emoções, como é possível observar nos poemas de Safo.

• Na Grécia antiga, os primeiros poemas líricos foram cantados durante os festejos de devoção religiosa.

• A ficção em prosa não é contemplada nas discussões da Poética, elaborada por Aristóteles. Mesmo assim, os romances da Antiguidade, como As Aventuras de Quereas e Calíroe, de Caritão de Afrodísia, são considerados as primeiras manifestações literárias do gênero.

• A teoria dos gêneros de Aristóteles foi fundamental para a construção de concepções modernas da literatura.

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1 Leia as discussões apresentadas pelo filósofo francês Georges Gusdorf acerca do mito e responda à questão seguinte.

A consciência mítica primitiva, que garantia a coerência rígida das primeiras comunidades humanas, desapareceu em face do progresso da crítica racional e das técnicas sustentadas pela ciência. Mas esta primeira consciência extensiva e unanimista foi substituída por uma consciência mítica segunda, mais secreta, e como que nos bastidores do pensamento racional. As intenções míticas, aqui, mais livres, supõem uma adesão individual e como que uma triagem entre as possibilidades oferecidas aos desejos de cada um. Religião, literatura, política, propõem, em ordem dispersa, fórmulas míticas nas quais cada homem, chamado assim a uma espécie de exame de consciência, é convidado a se reconhecer.

O papel crescente da literatura e sua progressiva difusão deve ser relacionado com o recuo das crenças religiosas. A experiência mítica teve de se fixar em meios novos de expressão. O aspecto formal da literatura importa menos do que sua significação material. O estilo valoriza os elementos mais arcaicos do ser no mundo, cuja permanência justifica o sucesso do poema e do drama, assim como motiva a expansão das obras-primas da literatura universal. O prodigioso desenvolvimento do romance, que é, sem dúvida, o aspecto mais significativo da vida literária contemporânea, deve-se sem dúvida ao fato de que o romance põe o mito ao alcance de todos sob o revestimento de uma história fácil de seguir. Eliade assinalou a sobrevivência dos arquétipos míticos como claves da literatura. "As provações, os sofrimentos, as peregrinações do candidato à iniciação, [...] por exemplo, sobrevivem no relato dos sofrimentos e dos obstáculos que o herói épico ou dramático deve superar (Ulisses, Enéas, Parsifal, este ou aquele personagem de Shakespeare, Fausto e outros), antes de atingir seus fins. [...]". O próprio romance policial, que constitui um dos aspectos mais singulares do folclore contemporâneo, prolonga, sob as aparências do duelo entre o detetive e o criminoso, a inspiração dos romances de capa e espada, que foi mais remotamente aquela dos romances de cavalaria, e remonta a muito mais atrás ainda na noite dos tempos, isto é, até as raízes do inconsciente.

VOCABULÁRIO:

Unanimista: do que é unânime, aceito por todos.Eliade: Mircea Eliade (1906-1986), intelectual romeno, historiador e filósofo das religiões.Claves: chaves; representações.

FONTE: GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. São Paulo, Convívio, 1979, p. 268-269.

A partir do texto acima, avalie as afirmações a seguir:

AUTOATIVIDADE

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I. Para o autor, a consciência mítica permanece na atualidade, nas expressões da vida diária, ainda que o mito das comunidades primitivas tenha desaparecido em virtude da crítica científica.

II. A literatura, como expressão artística, recupera fórmulas míticas ao retomar aspectos inconscientes dos nossos medos e anseios, através das provações do herói, da luta entre o bem e o mal etc.

III. É possível inferir que o mito reaparece nos dias atuais através das narrativas que reforçam os ideais de felicidade, o mistério, a luta pela liberdade e pela ordem social, entre outras.

É correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e II, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

2 Para Aristóteles, na tragédia, os deuses e heróis são imitados num tom nobre e elevado; enquanto na comédia os homens comuns são satirizados. Segundo o filósofo grego, a tragédia leva o espectador a pensar sobre o destino do ser humano e o sentido da existência, suscitando a compaixão e o terror. Na poesia dramática, a purgação das emoções do espectador corresponde ao movimento denominado:

a) ( ) Coro.b) ( ) Catarse.c) ( ) Farsa.d) ( ) Exórdio.e) ( ) Invocação.

3 Considerando as discussões sobre os gêneros literários, expostas no Tópico 2, analise as asserções a seguir e a relação proposta entre elas.

I. Na atualidade, a classificação dos gêneros literários apresenta elementos previstos pela teoria aristotélica, permanecendo a mesma desde sua criação.

PORQUE

II. As obras literárias são estanques e obedecem às leis fixas de estruturação, necessárias à criação estética.

a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.

b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.

c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

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TÓPICO 3

A LITERATURA LATINA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOA literatura latina surge a partir do século II a.C., quando os romanos,

através de suas forças militares, iniciam um percurso rumo à conquista dos territórios que englobam a Itália, Grécia, Oriente, África, Gália, e que termina no século V d.C. com a queda do Império Romano no Ocidente. Após sucessivas vitórias, os latinos passaram a se dedicar aos estudos da filosofia, das letras e das belas artes, seguindo os modelos literários e artísticos produzidos pelos gregos, destaca D'Onofrio (1990).

Podemos delimitar cronologicamente a literatura latina e seus principais autores da seguinte maneira:

FIGURA 2- PERIODIZAÇÃO DA LITERATURA LATINA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

FONTE: MARTINS (2009, p. 24)

Contudo, neste tópico, faremos um recorte das manifestações literárias da cultura latina, contemplando algumas obras e os autores, como a tríade dos grandes poetas latinos, Virgílio, Horácio e Ovídio, os dramaturgos Plauto e Terêncio, e os autores de ficção em prosa, Petrônio e Apuleio.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

2 A POESIA LATINA

Os poemas produzidos pelos latinos, na Antiguidade Clássica, podem ser divididos em épico, dramático, lírico, satírico e didático. A tradição grega da poesia épica exerceu forte influência sobre as produções latinas, notadamente em Virgílio (Públio Virgílio Marão - 70-19 a.C.) que, por solicitação do imperador Augusto (patrocinador de muitos poetas), empreendeu um projeto literário sofisticado, com formas literárias modernas, ao escrever a epopeia Eneida, a partir do modelo de Homero.

A epopeia de Virgílio é composta por 12 cantos, num total de 9. 826 versos, e narra a história de Eneias, personagem troiano que escapou da Guerra de Troia e travou duras lutas em Lácio (como era conhecida a região central da Itália) para fundar uma nova cidade que viria a ser Roma. O poema apresenta uma estrutura que se assemelha aos poemas homéricos, podendo ser dividido em dois grandes momentos: o primeiro narra a viagem marítima de Eneias e o segundo narra o momento bélico, das lutas pela conquista do território latino. Há também uma mudança de foco narrativo, predominando a visão panorâmica do narrador em terceira pessoa, que personifica a voz do mito, da lenda e da história.

Notadamente a narrativa de Virgílio foi um pretexto para a exaltação da cidade e de Augusto, "para a valorização do romano e de seus feitos remotos e recentes, […] para a sugestão de uma linha filosófica que sintetiza, praticamente, as correntes de pensamento então difundidas em Roma” (CARDOSO, 1989, p. 20).

Acompanhemos, abaixo, o canto inicial da epopeia, na tradução de Odorico Mendes, momento em que o narrador, em primeira pessoa, dá início à narração e solicita à deusa da poesia épica que lhe envie recordações dos fatos míticos e lendários que envolvem a figura de Eneias, herói troiano.

Eu, que entoava na delgada avenaRudes canções, e egresso das florestas,Fiz que as vizinhas lavras contentassemA avidez do colono, empresa grataAos aldeãos; de Marte ora as horríveis 5Armas canto, e o varão que, lá de TroiaPrófugo, à Itália e de Lavino às praiasTrouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terraMuito o agitou violenta mão suprema,E o lembrado rancor da seva Juno; 10Muito em guerras sofreu, na Ausônia quandoFunda a cidade e lhe introduz os deuses:Donde a nação latina e albanos padres,E os muros vêm da sublimada Roma.Musa, as causas me aponta, o ofenso nume, 15Ou por que mágoa a soberana déiaCompeliu na piedade o herói famosoA lances tais passar, volver tais casos.Pois tantas iras em celestes peitos! (VIRGÍLIO, 1854, s.p.).

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TÓPICO 3 | A LITERATURA LATINA

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Virgílio ainda compôs duas grandes obras, as Bucólicas, coletânea de poemas líricos pastoris, e as Geórgicas, poema didático produzido a serviço da política de Augusto, cujos temas abordam os encantos da vida rural, a simplicidade e a pureza da vida campestre.

A palavra bucólica, boukoliká, em grego, significa “canto dos boiadeiros”, e no caso dos poemas de Virgílio, designam canções que retratam regiões do norte da Itália, onde viviam muitos pastores. O poeta latino foi o grande difusor dos poemas pastoris, em meados dos anos 40 a.C., inspirado pelo poeta grego Teócrito, que se destacou por seus idílios de conteúdo bucólico, salienta Cardoso (1989).

Virgílio produziu esses poemas pastoris num momento marcado por grandes batalhas. No trecho do poema abaixo (na Écloga I), através do diálogo de dois pastores, em que Melibeu, deixando as terras que lhe tinham sido confiscadas, queixa-se a Títiro, podemos perceber o cuidado das personagens com os animais e a tentativa de afastamento do período conturbado pela guerra.

Mel. Tu, sob a larga faia reclinado, Silvestre musa em tênue cana entoas:Nós, Títiro, da pátria os fins deixamosE a doce lavra, a pátria nós fugimos,As selvas tu, pausado à sombra, ensinas 5Amarílis Formosa a ressoarem.

Tit. Ó Melibeu, este ócio é dom divino;Que um deus o creio, e sempre as aras deleTenro anho tingirá do aprisco nosso:Deu-me, estás vendo, errarem minhas vacas, 10Tanger o meu sabor na agreste avena.[…]

VOCABULÁRIO:

Faia: árvore.Cana: flauta.Aras: altares.Anho: cordeiro.Aprisco: curral de ovelhasTingirá: no poema refere-se a tingir com seu sangueTanger com o meu sabor: “tocar como eu quisesse, de acordo com o meu gosto" (VIRGÍLIO, 2008, p. 29).

Complementando as discussões sobre a poesia latina, destacamos Horácio (65-27 a.C), um dos grandes poetas latinos. Contemporâneo de Virgílio e amigo pessoal do poeta, Horácio aparece na cena literária de Roma por volta de 35 a.C., destacando-se com suas sátiras, odes e epístolas em versos, desenvolvendo temas diversos, como suas reflexões sobre o domínio e o tom de cada gênero literário. Suas principais obras são as Odes, ou canções, nas quais aparecem o termo carpe diem, expressão que significa aproveite o dia porque a vida é breve, e a frase fugere urbem (fugir da cidade), que sinaliza a busca de uma vida simples. Outros temas, como o amor à pátria, à religião e à poesia são recorrentes em suas produções. Na

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

fase juvenil de sua vida, o poeta latino escreveu as Sátiras e os Epodos, dois livros de sátiras sobre os costumes do seu tempo. Em Epístola aos Pisões (denominada posteriormente como Arte Poética), Horácio qualificará o papel da literatura como sendo moral e didático, na expressão dulce et utile, mencionada no primeiro tópico dos nossos estudos, quando problematizamos as funções da literatura através do crítico Antonie Compagnon.

Outro poeta latino bastante significativo e versátil é Ovídio (43-18 a.C.), com suas obras de cunho erótico e de amores ternos, como Heroides, Amores, A arte de amar, Os remédios do amor e a obra Produtos de beleza para o rosto das mulheres. Após esses trabalhos, Ovídio retoma o tema mitológico e escreve um longo poema de grande importância: As Metamorfoses — abordando histórias sobre a formação do mundo, a criação e regeneração do homem, sobre as divindades, os semideuses, os heróis e suas paixões, que foram reelaboradas na Idade Média, no Renascimento, ressurgindo principalmente com Shakespeare.

Ovídio também compôs Fastos, outro importante poema de cunho didático, apresentando diversas curiosidades sobre as antiguidades romanas, como rememorações das festas cívicas e religiosas, descrições e explicações de rituais etc. Finalmente, também vale salientar a obra intitulada Tristia (Cantos tristes), do seu momento de exílio, depois de ter sido desterrado pelo imperador Augusto. Os versos apresentados a seguir foram escritos na fase mais triste e melancólica de Ovídio.

Vem conhecer, posteridade, o poeta que fuiDe amores ternos, o poeta que ora lês.Sulmona é minha pátria, que fecundam frescas águasE que dista da Urbe nove vezes dez milhas.Lá nasci; para que saibas a época, foi quandoUm mesmo fado tiveram ambos os cônsules.Se de algo vale, o grau de cavaleiro herdei de antigosAvós, não de recente favor da fortuna.Não fui o primeiro rebento; tenho um irmão nascidoTrês vezes quatro meses já antes de mim.[...]

Desde a infância ilustrávamos a mente; fez-nos irO pátrio zelo a Roma e aos seus mestres insignes.Com seu ardor de jovem, meu irmão tinha nascidoPara a eloquência, as pugnas verbosas do foro.Mas a mim, criança ainda, atraíam os mistériosDo céu e, às escondidas, a obra das Musas.Meu pai dizia: “Por que tentas um estudo vão?O próprio Homero não deixou riqueza alguma”.Tal fala me tocou; larguei o Helicão de vezE tentei escrever palavras sem cadência:Por si mesma, vinha a cadência certa do poema;Saía em verso quanto eu buscasse dizer (OVÍDIO, 2017, p. 7).

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TÓPICO 3 | A LITERATURA LATINA

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As poesias dramáticas, por sua vez, começaram a surgir em Roma na segunda metade do século III a.C. Segundo Cardoso (1989, p. 23), em 264, durante os Jogos Romanos, realizados anualmente em homenagem a Júpiter (Zeus), os romanos haviam tido a oportunidade de assistir a uma peça teatral grega. Só 24 anos mais tarde, após a comemoração do primeiro aniversário da vitória dos romanos na guerra púnica, é que o povo teve a oportunidade de assitir a uma encenação em latim.

As obras trágicas mais significativas na literatura latina são as tragédias de Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), compostas de nove obras inspiradas em modelos gregos, sobretudo nas peças de Eurípides. Entre elas, destacam-se: As fenícias, A loucura de Hércules, Fedra, Tiestes, Agamemnon e As troianas.

No que diz respeito à comédia, poucas obras trágicas se preservaram, entre elas estão as comédias de Plauto (254-184 a.C.) e as de Terêncio (185-159 a.C.). Das mais de 100 obras escritas por Plauto, 21 resistiram até nossa época. Entre as mais conhecidas estão as peças Anfitrião, A marmita e Os Menecmos. Diferentes das comédias de Plauto, que são "movimentadas, cheias de correrias, atropelos e cenas de pancadaria”, as obras de Terêncio, mesmo mostrando as figuras tradicionais da comédia nova, fogem das convenções, analisando-as psicologicamente e apresentando "uma ação mais tranquila, com peripécias dramáticas e aventuras quase sempre galantes', destaca Cardoso (1989, p. 39). Como exemplos, temos as peças Andria (A moça de Andros), Adelphoi (Os irmãos), Heyra (A sogra), Eunuchus (O Eunuco), Heautontimoroumenos (O autopunidor ), Phormion (Fórmio). As peças de Terêncio também foram muito apreciadas na Idade Média e no Renascimento.

3 A PROSA LITERÁRIA

O gênero narrativo ficcional em prosa que surgiu em Roma pode ser considerado, por sua estrutura e características, a gênese do romance satírico-picaresco (relativo a pícaro, burlesco ou malandro), a exemplo de Satyricon, romance incompleto atribuído a Petrônio, e a obra Metamorfoses (conhecida como O asno de Ouro), de Apuleio, autor cujas informações biográficas mais certas indicam o seu nascimento em 125 d.C., em Madura, colônia romana da África. Os dois romances, únicos exemplares da ficção em prosa latina, são elaborados a partir da memória de alguém que vivenciou os fatos. Neles, encontramos a presença marcante do narrador-protagonista, um eu que narra e ao mesmo tempo assume o papel de personagem principal que vive os fatos.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

ATENCAO

Na prosa literária, o narrador, instância ficcional da enunciação, que se distancia do eu do escritor, pode assumir várias formas (participar da história narrada ou apenas observar e analisar os acontecimentos sem participar ativamente deles, podendo fazer a narração na primeira ou na terceira pessoa do discurso). Sua função é apresentar uma história constituída por personagens, que atuam num determinado espaço, durante um período de tempo, cujos fatos narrados formam o enredo (também conhecido por trama ou intriga). Esses são os elementos básicos estruturadores da narrativa.

O romance Satyricon, de Petrônio, apresenta peripécias do narrador — protagonista Encólpio, um jovem sem família e sem profissão, bem como a história de outras personagens burlescas com passagens que satirizam os desejos, os costumes e a hipocrisia da sociedade da época. A obra O asno de Ouro, por sua vez, é composta por 11 partes (livros), e destaca o maravilhoso, o sobrenatural, através das aventuras de Lúcio, que se transforma em burro por causa de um engano. Ao hospedar-se na casa de uma feiticeira, durante uma viagem pela Grécia, experimenta um medicamento que poderia transformá-lo em pássaro, mas acabou metamorfoseado em burro, conservando seu pensamento humano e seu espírito crítico.

O romance de Apuleio se sobressai por apresentar um processo de enunciação mais apurado, envolvendo quatro elementos importantes: o autor (O homem de Madura — o africano e pobre Apuleio aparece na obra e em alguns momentos confunde-se com o narrador ficcional), o narrador (Lúcio, o nobre grego), a personagem (Lúcio, que narra e vive a história ora como ser humano ora transformado em burro) e o leitor (o destinatário do romance — marcado pelo uso constante da segunda pessoa tu e vós).

É interessante notar, abaixo, nos fragmentos do romance O Asno de Ouro, citados por D'Onofrio (1990, p. 125), a presença constante do narrador.

Eu vou-te contar, numa prosa milesiana, uma série de estórias variadas e acariciar os teus ouvidos benévolos […] Eu começo […] Lá passou-se um fato memorável, que desejo vos contar […] Entre outras, há uma estória excelente e muito engraçada que resolvi vos contar. Eis, eu começo […] Alguns dias depois, cometeu-se nesse lugar, eu me lembro, um crime abominável e, para que possais ler a história, eu a inseri no meu livro […]

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TÓPICO 3 | A LITERATURA LATINA

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ATENCAO

Sobre a palavra romance e a configuração do gênero romanesco, no âmbito dos estudos literários, observe o que diz D’Onofrio (2002, p. 116-117):

Etimologicamente, a palavra romance deriva da expressão latina romanice loqui, ‘falar românico', ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram a partir da língua da antiga Roma, em oposição a latine loqui, que era a língua culta da Idade Média. E porque nesses dialetos populares se contavam histórias de amor e aventuras cavalheirescas, transmitidas oralmente, a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante a época do classicismo. Também no mundo greco-romano aconteceu o mesmo fenômeno: paralelamente aos gêneros literários considerados 'clássicos' porque modulares e ensinados nas escolas (tragédia, comédia, épica, lírica, historiografia, oratória), havia outras formas de cultura literária que circulavam entre a grande massa do povo analfabeto. Uma delas era a ficção em prosa, que tinha duas vertentes. A narrativa idealizante era composta de longas histórias de amor e de aventura, centradas sobre um casal de namorados que, após superar incríveis obstáculos com a ajuda divina, chegava a realizar seu sonho de amor. De cunho profundamente sentimental, tais histórias cultivavam o desejo utópico do triunfo do amor, da verdade, da justiça. Lembramos alguns títulos de obras escritas nos últimos dois séculos antes de Cristo: Dáfnis e Cloe, de Longo; As aventuras de Quereas e Caloríe, de Caritão de Afrodísias; Teágenes e Cariclea, de Heliodoro de Émeso; Habrôcomes e Antia, de Xenofonte de Éfeso. Outra vertente, a narrativa satirizante, se difundiu mais no mundo latino; de cunho fortemente realístico, apresentava quadros da vida cotidiana nos quais estavam anotadas as mazelas de várias classes sociais; O Satiricon, de Petrônio, e o Asno de Ouro, de Apuleio, são bons exemplos do tipo de literatura picaresca produzida no início da era cristã. Como podemos verificar, quer a narrativa sentimental, quer a narrativa realista, embora sem o nome de romance, têm origens muito remotas. Ocorre que esse tipo de ficção em prosa viveu por longo tempo ofuscado pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apreciação crítica: todas as teorias poéticas da época do classicismo se preocuparam apenas com os textos versificados. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel da epopeia de expressar a totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto de gênero literário.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• As manifestações artísticas, como as desenvolvidas na antiga Roma, são resultado das circunstâncias históricas e sociais em que elas foram produzidas.

• A Eneida, de Virgílio, apresenta relações com os modelos cultivados por Homero, e é considerada a obra mitológica e histórica mais importante do poeta latino.

• Além da poesia épica, a literatura latina é composta por poemas dramáticos, líricos, satíricos e didáticos, em produções de autores como Ovídio, Horácio e Sêneca.

• O bucolismo, difundido pelas poesias pastoris, corresponde a uma evasão, exalta um ambiente de paz e a simplicidade do campo.

• Em Roma, surgem as obras Satyricon, de Petrônio, e O asno de ouro, de Apuleio, textos em prosa considerados como romance, por sua estrutura e características.

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1 Durante as nossas discussões sobre a literatura latina, vimos que o poeta Virgílio, além de ter criado a epopeia Eneida, foi o grande difusor da poesia bucólica, exaltando a beleza da vida tranquila nos campos. Poetas de épocas posteriores, inspirados pela tradição greco-romana, também manifestaram diferentes perspectivas sobre a relação entre o eu lírico e a natureza. Leia abaixo os poemas de Camões (1524-1580), Juan Meléndez Valdés (1754-1817) e Fernando Pessoa (1888-1935) e explique de que maneira o eu lírico dos poemas estabelece relações com a paisagem bucólica.

TEXTO 1

Alegres campos, verdes arvoredos,Claras e frescas águas de cristal,Que em vós os debuxais ao natural,Discorrendo da altura dos rochedos:

Silvestres montes, ásperos penedosCompostos de concerto desigual;Sabei que sem licença de meu malJá não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois já me não vêdes como vistes,Não me alegrem verduras deleitosas,Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,Regar-vos-hei com lágrimas saudosas,E nascerão saudades de meu bem.

FONTE: CAMÕES, Luis de. Lírica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 15.

TEXTO 2

De la primavera

La blanda primavera derramando aparece sus tesoros y galas por prados y vergeles.

AUTOATIVIDADE

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Despejado ya el cielo de nubes inclementes, con luz cándida y pura ríe a la tierra alegre. […]

De esplendores más rico descuella por oriente en triunfo el sol y a darle la vida al mundo vuelve.

Medrosos de sus rayos los vientos enmudecen, y el vago cefirillo bullendo les sucede,

el céfiro, de aromas empapado, que mueven en la nariz y el seno mil llamas y deleites.

[…]VOCABULARIO:Cefirillo: referente a céfiro, viento de poniente.

FONTE: VALDÉS, Juan Meléndez. De la primavera. In: GARCÍA LÓPEZ, José. Historia de la literatura española. 20. ed. Barcelona: Vicens Vives, 1997, p. 444.

TEXTO 3

Gozo os campos sem reparar para eles.Perguntas-me porque os gozo.Porque os gozo, respondo.Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientementeE ter uma noção do seu perfume nas nossas ideias mais apagadas.Quando reparo, não gozo: vejo.Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos —À dureza fresca da terra cheirosa e irregular;E alguma coisa dos ruídos indistintos das coisas a existir,E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,E só um resto de vida ouve.

FONTE: PESSOA, Fernando. In: Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Hedra, 2006, p. 153.

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2 Leia abaixo um fragmento do poema de Horácio.

A pálida morte percute compassadamente, com seu pé justo, as choças [casas] dos pobres e os palácios dos reis. Caro Sesto, a suprema brevidade da vida impede-nos de conceber uma esperança duradoura.

FONTE: HORÁCIO, Odes I, IV, In: CARDOSO, Z. A. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. P. 13-15.

Em relação ao poema e às principais ideias de Horácio, avalie as afirmações a seguir.

I. O poema expressa a ideia de que a vida é breve e a morte é certa, de que é preciso, portanto, saber aproveitar o dia.

II. O trecho do poema "A pálida morte percute compassadamente" sugere a insatisfação e a desesperança do eu lírico com a vida, e o seu desejo pela morte.

III. Encontramos nos diversos temas das odes horacianas um elogio à simplicidade, a vontade do eu lírico de usufruir do momento presente.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 Sobre as produções literárias latinas na Antiguidade Clássica, analise as asserções a seguir.

I. Na prosa de Petrônio, assim como na de Apuleio, o sujeito da enunciação é marcado pelo uso da primeira pessoa e a obra mescla o papel do narrador com o do protagonista.

II. A ficção em prosa O asno de ouro, de Apuleio, apresenta alguns vestígios explícitos do autor, sinalizando aspectos autobiográficos e acentuando uma fusão de vozes.

III. O gênero romance, como denominação e forma literária, aparece exclusivamente na Idade Média.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e II, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

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TÓPICO 4

A LITERATURA NA IDADE MÉDIA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOA literatura greco-latina começa a ser substituída pela literatura romana-

cristã no período de fundação da Europa Moderna, conhecido como Idade Média. Momento histórico (situado entre os séculos V e XV), que teve início com a conquista de Roma, capital do Império Romano do Ocidente pelos povos germânicos no ano 476, e terminou com a queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, conquistada pelos turcos em 1943.

Esta foi uma época de grandes mudanças na organização social, na qual o clero e a nobreza constituíam as classes governantes que controlavam a terra e o poder espiritual, respectivamente. A Igreja conduzia a educação formal e a produção cultural, enquanto a sociedade se reorganizava em torno dos senhores feudais, os grandes proprietários de terras.

Na Idade Média há duas fases distintas. A Alta Idade Média (do século V ao XI), época em que a Europa viveu estagnada pela instabilidade política e quase paralisada culturalmente, sem nenhuma produção relevante no âmbito da ciência e das artes. Após um processo gradativo de mudanças, ocorre um renascimento cultural na segunda fase, denominada Baixa Idade Média — muito rica para a literatura, sobretudo na produção dos gêneros narrativo e lírico.

Logo, neste tópico, estudaremos as manifestações literárias que surgiram na Idade Média a partir dessas mudanças na ordem social e das substanciais transformações linguísticas ocorridas com a passagem do latim para o surgimento das línguas europeias modernas (francês, italiano, espanhol, português). Destacaremos as canções de gesta, especialmente El cantar de Mío Cid, produzido em língua espanhola medieval, e a lírica trovadoresca, os primeiros textos criados em galego-português (língua em estágio anterior ao português).

2 AS CANCÕES DE GESTA

Na Idade Média destacam-se dois grandes gêneros narrativos. O primeiro evidencia os romances de cavalaria, atrelados aos temas do “ciclo de bretão", às aventuras do rei Arthur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda, exaltando a figura do cavaleiro, símbolo de coragem e bravura. Neste ciclo narrativo, produzido em prosa durante o período das Cruzadas (guerras religiosas entre

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

cristãos europeus e muçulmanos), há uma vertente de cunho religioso, a exemplo da obra A demanda do Santo Graal, do francês Chrétien de Troyes (1135-1185), e outra vertente do romance que exalta os amores sensuais e adúlteros, como Amadis de Gaula, escrito em língua espanhola.

As canções de gesta, por sua vez, pertencem ao “ciclo carolíngio", são cantos épicos de origem popular que surgiram num contexto de confrontos bélicos, ressaltando as aventuras militares de Carlos Magno e dos Paladinos da França. As canções, redigidas em versos e recitadas por poetas itinerantes, divertiam a população medieval, contendo histórias sobre os heróis nacionais, bem como as relações entre o monarca e seus vassalos (subordinados). A maioria dos poemas não contém a identificação dos seus autores e permaneceram no anonimato. Entre as canções mais emblemáticas, destacam-se La chanson de Roland (A canção de Rolando), na França, Das Nibelungenlied (A canção dos Nibelungos), na Alemanha, e El cantar de Mío Cid (Cantar do meu Cid), na Espanha.

Vamos ler a seguir um pequeno trecho do Cantar del Mío Cid, considerado

a primeira narrativa extensa da literatura espanhola preservada por um copista no Manuscrito de Per Abbat, datado de 1307, embora se acredite que o ano de 1140 seja a data provável da composição do poema. Neste manuscrito, composto por 3.735 versos, há três partes essenciais, o Cantar del Destierro, o Cantar de las Bodas e o Cantar de la afrenta de Corpes, que contam a história de Rodrigo Diaz de Vivar (El Cid), um personagem histórico que atuou ativamente durante a reconquista da Península Ibérica, suscitando inveja e intrigas entre os nobres de Castilha, até conseguirem que o rei Alfonso VI decretasse o exílio de Cid.

O Cantar del Mío Cid tem um alto valor representativo, pois, segundo José García López,

El enaltecimiento del Campeador frente a las arbitrariedades del poder real – objeto primordial del poema – responde al sentir político de Castilla medieval, coincidente con la primitiva tradición germánica y opuesta al espíritu del derecho romano conservado por León. La exclamación: Dios, qué buen vassallo, si oviesse buen señore! Refleja bien a las claras la simpatía que inspiraba la figura del héroe, atropellado injustamente, pero que sabe adoptar una actitud digna sin dejar de ser fiel al rey. El basar las relaciones entre señor y vasallo en un mutuo respeto, el individualismo y la “defensa del honor”, son elementos básicos del poema, y que van a perdurar a través de toda la literatura española. Se conjugan en el poema dos móviles: la lucha contra el infiel y contra las injusticias, y el afán de engrandecimiento personal y familiar (LÓPEZ, 1997, p. 53).

Vejamos abaixo a descrição da Batalha de Alcoçer, do Cantar del Destierro, segundo a versão de Ramón Menéndez Pidal, citada por José García López (1997). Este fragmento da primeira parte refere-se aos primeiros momentos da batalha e ao desenvolvimento da luta.

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TÓPICO 4 | A LITERATURA NA IDADE MÉDIA

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35 - Los del Cid acometen para socorrer a Pedro Vermúdez

Enbraçan los escudos delant los coraçones, 715 abaxan las lanças abueltas de los pendones,enclinaron las caras de suso de los arzones,ivanlos ferir de fuertes coraçones.A grandes vozes llama el que en buen ora naçió: “¡Feridlos, cavalleros, por amor del Criador! 720¡Yo so Roy Diaz, el Çid de Bivar Campeador!”Todos fieren en el az do está Per Vermudoz.Trezientas lanças son, todas tienen pendones;seños moros mataron, todos de seños colpes;a la tornada que fazen otros tantos muertos son. 725

36- Destrozan las haces enemigas

Veriedes tantas lanças premer e alçar, tanta adágara foradar e passar, tanta loriga falssar e desmanchar, tantos pendones blancos salir vermejos en sangre, 730 tantos buenos cavallos sin sos dueños andar. Los moros llaman Mafomat e los cristianos Santi Yague. Cadien por el campo en un poco de logar moros muertos mil e trezientos ya.

VOCABULARIO:

Abueltas: Al miesmo tempo que.Suso: Encima.Az: Fila de guerreros.Seños: Sendos.Premer: Bajar.Adágara: Escudo de cuero.Loriga: Armadura de cuero con escamas o anillos de metal cosidos encima.Falssar: Romperse.Desmanchar: Deshacerse las mallas de la loriga (GARCÍA LÓPEZ, 1997, p. 30-31).

Além da descrição da batalha, você notou a disposição inusitada dos versos? O poema está dividido em duas partes diferentes. São versos que não apresentam o mesmo número de linhas (anisossilábicos), contêm apenas uma rima (monorrimos) e os sons finais de cada verso não correspondem perfeitamente (assonantes).

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

DICAS

Para ler na íntegra El cantar de Mío Cid, na versão modernizada, acesse o site espanhol da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/texto-modernizado-del-cantar-de-mio-cid--0/html/.

Para complementar seus estudos, sugerimos o filme El Cid (1961), produzido por Anthony Mann, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yExKh2vOdEM. E o vídeo El Cid: leyenda e historia, em: https://www.youtube.com/watch?v=bqRE9wz34JE.

Em sua prática docente, aproveite as produções audiovisuais para explorar ao máximo a leitura do poema. Esta é uma boa oportunidade para elaborar uma atividade em que os alunos analisem trechos do poema e ampliem seus conhecimentos sobre a língua e a literatura espanhola. É fundamental que se valorize a literatura na aula de Língua Estrangeira (LE), favorecendo a prática de leitura crítica e a expansão da visão de mundo dos alunos.

3 A LÍRICA TROVADORESCA

A poesia lírica criada nas cortes medievais surgiu no final do século XI, em Provença, no sul da França, região da língua provençal. O francês Guilherme de Poiters foi um dos primeiros poetas a difundir essas composições e emblemática concepção do 'amor cortês', ideal amoroso e cavalheiresco, cuja mensagem é sempre endereçada a uma mulher idealizada e amada pelo trovador, artista produtor dessa poesia, que cantava e divertia o público da corte, como também o das regiões rurais. Por isso, a produção poética do período apresenta uma forte relação com a música, já que os versos eram criados para serem cantados.

A lírica galego-portuguesa, especificamente, divide-se da seguinte forma:

• Cantigas liríco-amorosas: tem como tema central o jogo das relações amorosas e são divididas em cantigas de amigo e cantigas de amor. Nas cantigas de amigo, o trovador assume a voz da mulher, geralmente uma pastora ou camponesa, que se queixa da ausência do amante e acaba compartilhando suas tristezas com outras mulheres, com a mãe e até mesmo com a natureza. Na época, a palavra amigo significava namorado ou amante. Nas cantigas de amor, o eu lírico expressa um sentimento não correspondido pela mulher amada e submissão a ela. O relacionamento entre a dama e o trovador corresponde ao relacionamento distante e submisso entre o senhor e o vassalo da sociedade medieval. Nessas cantigas, a palavra coita é muito usada para fazer referência ao sofrimento amoroso e o comportamento obediente do trovador representa a idealização do amor cortês.

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TÓPICO 4 | A LITERATURA NA IDADE MÉDIA

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• Cantigas satíricas - apresentam críticas aos comportamentos individuais e sociais. As cantigas de escárnio ridicularizam sutilmente as pessoas da corte e das comunidades rurais, as sátiras são indiretas. Já as cantigas de maldizer apresentam uma crítica mais explícita e um vocabulário de baixo calão.

Essas características estão presentes nas três cantigas expostas a seguir, uma de amigo, do trovador Martin Codax, outra de amor, de Nuno Fernandes Tornel e, por último, uma cantiga satírica, de João Garcia de Guilhad. Encerraremos esta unidade apresentando duas versões dos textos, a original, em galego-português, e a versão modernizada no português atual. Durante a leitura, procure perceber como o eu lírico manifesta os seus sentimentos, identificando os temas abordados e as especificidades de cada cantiga.

Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo!

E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,se vistes meu amado!

E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,o por que eu sospiro!

E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,por que hei gran cuidado!E ai Deus, se verrá cedo!

Ai ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo.

dizei-me: voltará cedo?

Ondas do mar levantado,se vistes meu amado,

dizei-me: voltará cedo?

Se vistes meu amigo,aquele que por quem suspiro

dizei-me: voltará cedo?

Se vistes meu amado,que me pôs neste cuidado

dizei-me: voltará cedo?

QUADRO 1 – CANTIGA DE AMIGO DE MARTIN CODAX

FONTE: Correia (1978, p. 124-125)

A cantiga que você leu foi escrita pelo trovador galego Martin Codax, mas evidencia os sentimentos de um sujeito poético feminino, que funde a paisagem marítima com suas expectativas amorosas. Na presença do mar revolto, a mulher expressa sua angústia por causa do amigo ausente.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

DICAS

Ouça a belíssima versão da cantiga Ondas do mar de Vigo, musicada pelo compositor Xoán Eiriz, diponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/versaomusical.asp?cdcant=1308&cdvm=384.

Nos versos, expostos abaixo, você observará as nuances poéticas das cantigas de amor dos trovadores medievais.

Ir-vus queredes, mia senhor,e fiq’end’ eu com gran pesar,que nunca soube ren amar

ergo vós, des quando vus vi.E pois que vusides d’aqui,senhor fremosa, que farei?

E que farei eu, pois non vir’o vosso mui bom parecer?

Non poderei eu mais viver,se me Deus contra vos al:senhor fremosa, que farei?

E rogu’eu aNosso Senhorque, se vos vus fordes d’quen,Que me dê mia morte por én,

ca muito me será mester.E se mi-a el dar non quiser’:senhor fremosa, que farei?

Pois mi-assi força voss’amore non ousovusco guarir,

des quando me de vos partir’,eu que non sei al bem querer,

Querria-me de vos saber:Senhor fremosa, que farei.

Se em partir, senhora minha,mágoas haveis de deixar

a quem firme em vos amarfoi desde a primeira hora,se me abandonais agora,

ó formosa! que farei?

Que farei se nunca maiscontemplar vossa beleza?

Morto serei de tristeza.Se Deus me não acudir,

nem de vós conselho ouvir,ó formosa! que farei?

A Nosso Senhor eu peçoquando houver de vos perder,

se me quiser comprazer,que a morte me queira dar.Mas se a vida me poupar,

ó formosa! que farei?

Vosso amor me leva a tanto!Se, partindo, provocais

quebranto que não curaisa quem de amor desespera,

de vós conselho quisera:ó formosa! que farei?

QUADRO 2 – CANTIGA DE AMOR DE NUNO FERNANDES TORNEL

FONTE: Correia (1978, p. 216-217)

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TÓPICO 4 | A LITERATURA NA IDADE MÉDIA

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A cantiga de amor, de Nuno Fernandes, reforça o amor do trovador pela dama. O eu lírico não esconde sua aflição, seu desespero, e implora a atenção da mulher amada. Diferentemente das cantigas do gênero lírico, observe, a seguir, como as cantigas satíricas utilizam um vocabulário pouco polido para fazer críticas contundentes às pessoas de diversas classes sociais.

Ai, dona fea, foste-vos queixarque vos nunca louv'en [o] meu

cantar;mais ora quero fazer um cantar

en que vos loarei toda via;e vedes como vos quero loar:

dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus me perdon,pois avedes [a] tan gran coraçon

que vos eu loe, en esta razonvos quero já loar toda via;e vedes qual será a loaçon:dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loeien meu trobar, pero muito trobei;

mais ora já un bon cantar farei,en que vos loarei toda via;

e direi-vos como vos loarei:dona fea, velha e sandia!

Ai, dona feia, foste-vos queixarque nunca vos louvo em meu cantar;

mas agora quero fazer um cantarem que vos louvares de qualquer

modo;e vede como quero vos louvar

dona feia, velha e maluca!

Dona feia, que Deus me perdoe,pois tendes tão grande desejo

de que eu vos louve, por este motivoquero vos louvar já de qualquer

modo;e vede qual será a louvação:dona feia, velha e maluca!

Dona feia, eu nunca vos louveiem meu trovar, embora tenha

trovado muito;mas agora já farei um bom cantar;em que vos louvarei de qualquer

modo;e vos direi como vos louvarei:

dona feia, velha e maluca!

QUADRO 3 – CANTIGA SATÍRICA DE JOÃO GARCIA GUILHADE

FONTE: Correia (1978, p. 136-137)

Na cantiga de escárnio, de Guilhade, certamente você percebeu a desqualificação e a caracterização exagerada dos defeitos de "dona feia”.

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UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL

DICAS

No site da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes você encontrará o Portal Martin Codax, dedicado ao trovador galelo-português, autor da cantiga de amigo que você leu anteriormente. O portal torna acessíveis composições, gravações sonoras e estudos diversos sobre as cantigas de Martin Codax, disponíveis em: http://www.cervantesvirtual.com/portales/martin_codax/.

O Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, de Lisboa, através do projeto Littera, edição, atualização e preservação do património literário medieval português, também diponibiliza ao leitor cantigas medievais galego-portuguesas de diversos autores, manuscritos e cantigas musicadas. Amplie seus conhecimentos pesquisando em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.

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RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico, você aprendeu que:

• Várias línguas foram criadas a partir do latim falado no Império Romano, e a literatura greco-latina começou a ser substituída pela literatura romano-cristã.

• A Idade Média foi uma época em que a organização social se transformou, dividindo-se entre a nobreza, a Igreja e o povo.

• As canções de gesta e a poesia trovadoresca são consideradas as primeiras manifestações literárias escritas que surgiram na literatura ocidental.

• El cantar de Mío Cid, representante das canções de gesta na literatura de língua espanhola, trata-se de um poema épico que reflete o cotidiano da sociedade medieval e narra as aventuras de Rodrigo Díaz de Vivar, um cavaleiro castelhano.

• As poesias trovadorescas, acompanhadas de música e geralmente cantadas pelos trovadores, foram produções cultivadas nas cortes medievais. Denominadas de cantigas, essas produções se dividem em cantigas líricas e cantigas satíricas.

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AUTOATIVIDADE

1 A aventura do Cantar de Mío Cid começa em Vivar, terra natal de Rodrigo Díaz, o Cid Campeador. Em certa ocasião, ele recebe notícias de seu exílio por parte do rei Alfonso VI, que lhe concede nove dias de prazo para abandonar o reino. Leia abaixo o fragmento da primeira parte do Cantar de Mío Cid e responda à questão seguinte.

[…]

4 - Nadie da hospedaje al Cid por temor al Rey. Sólo una niña de nueve años pide al Cid que se vaya. El Cid acampa en la glera del río Arlanzón

Narrador

Le convidarían de grado, mas ninguno no osaba; El rey don Alfonso tenía tan gran saña; Antes de la noche, en Burgos de él entró su carta, Con gran recaudo y fuertemente sellada: Que a mío Cid Ruy Díaz, que nadie le diese posada, 25Y aquel que se la diese supiese veraz palabra, Que perdería los haberes y además los ojos de la cara, Y aún más los cuerpos y las almas. Gran duelo tenían las gentes cristianas; Escóndense de mío Cid, que no le osan decir nada, 30El Campeador adeliñó a su posada. Así como llegó a la puerta, hallola bien cerrada; Por miedo del rey Alfonso que así lo concertaran: Que si no la quebrantase por fuerza, que no se la abriesen por nada. Los de mío Cid a altas voces llaman; 35Los de dentro no les querían tornar palabra. Aguijó mío Cid, a la puerta se llegaba; Sacó el pie de la estribera, un fuerte golpe le daba; No se abre la puerta, que estaba bien cerrada. […]

FONTE: GUTIÉRREZ, Aja, M.ª del Carmen; RODRÍGUEZ, Timoteo Riaño. Cantar de Mío Cid. 3: texto modernizado. Alicante: Biblioteca virtual Miguel de Cervantes, 2007. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/portales/cantar_de_mio_cid/obra_ediciones/>. Acesso em: 15 maio 2018.

Assinale a alternativa que corresponde corretamente ao trecho citado acima.a) ( ) D. Afonso VI temia a chegada de Mío Cid.b) ( ) Uma das filhas de Mío Cid questionou a postura violenta de Dom Alfonso

VI.

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c) ( ) A menina que estava na hospedaria insistiu para Mío Cid permanecer no local.

d) ( ) Mío Cid teria ferido Dom Alfonso VI às margens do rio Arlanzón.e) ( ) Mío Cid golpeou à força a porta da hospedaria.

2 Leia a cantiga Se eu pudesse desamar, do trovador medieval Pero da Ponte.

Aproveite e ouça a cantiga musicada por Pedro Barroso, disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/versaomusical.asp?cdcant=986&cdvm=96. Depois, responda às questões a seguir.

Se eu podesse desamara quem me sempre desamoue podess'algum mal buscara quem me sempre mal buscou!Assi me vingaria eu, se eu pudesse coita dar a quem me sempre coita deu.

Mais sol nom poss'eu enganarmeu coraçom que m'enganou,per quanto mi fez desejara quem me nunca desejou.E por esto nom dórmio eu, porque nom poss'eu coita dar a quem me sempre coita deu.

Mais rog'a Deus que desampara quem m'assi desamparou,ou que podess'eu destorvara quem me sempre destorvou.E logo dormiria eu, se eu podesse coita dar a quem me sempre coita deu.

Vel que ousass'en preguntara quem me nunca preguntou,por que me fez em si cuidar,pois ela nunca em mi cuidou;e por esto lazeiro eu: porque nom posso coita dar a quem me sempre coita deu.

FONTE: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=986&pv=sim>. Acesso em 25 abr. 2018.

a) Qual é o conflito sentimental vivido pelo eu lírico?

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b) Os versos expressam características de que tipo de cantiga? Justifique sua resposta com base no texto e nas discussões apresentados no tópico 4.

3 (ENADE, 2017)

El hecho de situar un poema al final de la unidad didáctica revela, en muchos casos, las dificultades que dicho material plantea al profesor para incorporarlo realmente en el desarrollo de la clase: el poema queda así relegado a una posición de cierre marginal, de ejercicio voluntario que generalmente y por motivos de tiempo para el cumplimiento de la programación no se llega a realizar nunca en clase. Los que nos dedicamos a la enseñanza del español como lengua extranjera solo tenemos que echar un vistazo a nuestros libros de texto para constar que desafortunadamente esta es a realidade imperante. Existe por tanto la necesidad de encontrar estratégias para hacer que la literatura forme una parte más significativa de los programas de enseñanza de lenguas a extranjeros y aprovechar la riqueza que los textos literários ofrecem como input de lengua para desarrollar las cuatro destrezas linguísticas fundamentales en la adquisición de una lengua: comprensión lectora, comprensión auditiva, expresión oral e expresión escrita, dentro de un contexto cultural significativo.

FONTE: ALBADALEJO GARCÍA, M. D. Marco teórico para el uso de la literatura como instrumento didáctico en la clase de E/LE. Marco ELE: n. 5, 2017 (adaptado).

Teniendo en cuenta el texto anterior y sus conocimientos acerca del uso de textos literarios en clases de ELE, analice las siguientes afirmaciones.

I. Los textos literarios puedem dar al estudiante extranjero una comprensión de los códigos y de las manifestaciones culturales que constituyen la sociedad en la cual se habla la lengua que se está aprendiendo.

II. En los textos literarios se encuentram variaciones estilísticas, estructuras sintácticas y formas de conectar ideas que también están presentes en el lenguaje del cotidiano.

III. Los textos literarios permiten al estudiante extranjero entrar en contacto con estructuras de la lengua estándar, representadas en las gramáticas tradicionales, que son muestras legítimas de uso cotidiano da la lengua extranjera.

Es correcto lo que se afirma en:

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2017/32_LET_POR_ESP_LICENCIATURA_BAIXA.pdf>. Acesso: 27 mar. 2019.

a) ( ) la afirmación I, solamente.b) ( ) la afirmación III, solamente.c) ( ) las afirmaciones I y II, solamente.d) ( ) las afirmaciones II y III, solamente.e) ( ) las afirmaciones I, II y III.

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UNIDADE 2

A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• compreender o contexto histórico e as características literárias do Renas-cimento, período de transição entre o mundo medieval e o moderno;

• entender as transformações artísticas impulsionadas pelo Humanismo através dos poetas italianos Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovan-ni Boccaccio;

• conhecer as motivações do projeto épico de Camões, bem como as especi-ficidades literárias da obra Os Lusíadas;

• estudar as principais expressões literárias do Barroco a partir da obra de Miguel de Cervantes, das produções teatrais de Shakespeare, Lope de Vega e Calderón de la Barca, bem como perceber as interfaces do teatro clássico através do dramaturgo francês Molière.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoativdades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O RENASCIMENTO

TÓPICO 2 – A ESTÉTICA BARROCA

TÓPICO 3 – NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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TÓPICO 1

O RENASCIMENTO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOO Renascimento foi um importante movimento que provocou

transformações significativas nos campos artístico e científico, marcando a transição do período medieval para o mundo moderno. Originado, inicialmente, em Florença, na Itália, durante o século XIV, o movimento, em sua diversidade, à medida que se dinfundia pela Eupropa nos séculos XV e XVI, impulsionou novas formas de pensamento acerca das concepções estéticas, filosóficas, sociais, religiosas preconizadas pela Idade Média.

A história da cultura renascentista está atrelada ao crescimento da burguesia e das atividades econômicas que estimularam a vida urbana, o individualismo, a conscientização dos valores humanos, o predomínio da razão, a observação científica, a organização racional do Estado e o capitalismo mercantil. Essa transformação de visão de mundo foi possível devido ao desenvolvimento das ciências exatas, físicas e biológicas, especialmente, ao aperfeiçoamento da imprensa pelo tipógrafo alemão Gutenberg (1398-1469), à teoria heliocêntrica (ou seja, à ideia de que a Terra não era o centro do Universo, mas girava em torno do Sol e em torno de si mesma), elaborada por Copérnico (1473-1543) e defendida, mais tarde, por Galileu Galilei (1564-1642). Ademais, destacam-se, entre outras descobertas, o tratamento científico do sistema hidráulico, inventado por Leonardo da Vinci (1452- 1519), cientista e artista italiano, considerado o maior representante da Renascença. Nesse período, as expedições marítimas também difundiram novas ideias e contribuíram para alargar a visão de mundo europeia.

Outro traço marcante foi o surgimento da vertente filosófica e literária denominada Humanismo, responsável por devolver ao homem "a liberdade de construir seu próprio projeto de vida, fora das amarras das instituições medievais do Império da Igreja, os ápices do sistema feudal”, deslocando a visão teocêntrica (Deus e a religião como centro de todas as questões) para a antropocêntrica (ser humano como centro de interesse do pensamento), destaca D’Onofrio, 1990 (p. 219).

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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Antropocentrismo (o radical de origem grega antropo significa "homem”, "ser humano"). Os artistas e intelectuais humanistas adotam o antropocentrismo no lugar do teocentrismo (do grego teo, que significa “deus” como princípio base de toda a realidade), predominante na Idade Média.

NOTA

Do ponto de vista filosófico, o Humanismo buscou a revalorização do pensamento de Platão, deixado de lado na Idade Média, época em que predominou a filosofia de Aristóteles. Masílio Ficini (1433-1499), através de estudos, da tradução para o latim dos diálogos platônicos e da fundação da Academia Platônica, em Florença, difundiu o neoplatonismo humanista, enfatizando a distinção entre amor carnal e o amor espiritual.

Este complexo processo de mudanças, que se estendeu até o final do século XVI, influenciou a história da literatura ocidental. O projeto literário do Humanismo marca um período de redescoberta das obras da cultura greco-latina, consideradas fontes de conhecimento sobre o ser humano. Veremos, a seguir, os traços renascentistas dos poetas italianos Dante Alighieri (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374) e Giovanni Boccaccio (1313-1375), situados cronologicamente na Idade Média, considerados os “maiores gênios literários que a Itália produziu em todos os tempos”, os criadores do poema de viés épico e teológico, da lírica pessoal e do conto realista, segundo Carpeaux (2012, p. 117).

2 RESSONÂNCIAS DA LITERATURA ITALIANA: DANTE, PETRARCA, BOCCACCIO

A literatura italiana, no século XIV, período conhecido como Trecento, criou novos gêneros literários que exerceram forte influência sobre outras literaturas da Europa. Dante Alighieri, nascido em Florença, cidade onde viveu até ser exilado por questões políticas, foi um grande poeta de seu tempo, expoente das novas formas poéticas expressas no Dolce stil nuovo (doce estilo novo), movimento literário organizado com seus amigos contemporâneos, entre eles, Guido Guinizelli (1240-74) e Guido Cavalcanti (1255-1300). A sublimação do amor e das experiências religiosas, representados pela figura angelical da mulher amada, assumiu um tom mais paradoxal, repleto de indagações, metáforas e simbolismo através da prestigiada composição métrica do soneto, composto por catorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos — forma poética mais usada no século XIII até o início do século XX. As convenções desse novo estilo aparecem em Vida nova, obra da juventude de Dante, que conta a história de seu amor pela nobre florentina Beatrice Portinari, como podemos ver no fragmento abaixo.

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TÓPICO 1 | O RENASCIMENTO

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[...] veio-me a vontade de dizer outras palavras, com o fito de expressar quatro coisas sobre o meu estado e que eu ainda não tinha manifestado. A primeira é que eu me amargurava muitas vezes, quando a minha memória induzia a minha fantasia a imaginar as mutações que o Amor produziria em mim. A segunda era que o Amor, muitas vezes, me possuía tão fortemente, que outra vida não restava em mim senão o pensamento que falava dessa mulher. A terceira é que, quando essa batalha amorosa se travava dentro de mim desse jeito, eu ia ficando cada vez mais pálido à procura dessa mulher, certo de que haveria de tomar o meu partido, ao assistir o semelhante em combate _ mas eu me esquecia o que acontecia comigo toda vez que me aproximava de tanta graça. E a quarta coisa é que esta visão não só não resultava em meu favor, como, ao contrário, acabava, em definitivo, com o sopro de vida que ainda me restava. Disse, então, o seguinte soneto:

1 "Perversas qualidades dá-me o Amor"2 é o que me vem ao pensamento.3 Sinto dó de mim mesmo e às vezes tento4 Fugir, dizendo: “Pode alguém supor

5 Absurdo igual? Num súbito momento,6 se apodera de mim, deixando o cor-7 ação viver num sopro de dor,8 que fala de você e é meu sustento.

9 Ainda assim, semivivo, me empenho10 em curar-me e salvar-me, indo à procura11 do seu olhar, o bem de um bem remoto.

12 Mas se ergo os olhos para vê-la, tenho13 que quer fugir de mim a alma insegura,14 sentir no meu peito o terremoto (PIGNATARI, 2006, p. 38 -39).

Além de Vida Nova, Dante escreveu outras obras literárias e tratados de cunho político e filosófico, imortalizando seu nome com a criação da Divina Comédia, a obra mais emblemática da transição do período medieval para o Renascimento, consagrada por sucessivas gerações de leitores e estudiosos.

A princípio, Dante denominou o seu poema Comédia, sem o adjetivo Divina, acrescentado posteriormente por Boccaccio. A Divina Comédia, como passou a ser conhecida a partir do século XVI, narra o relato da grande viagem que o poeta Dante realiza pelos três reinos do mundo pós-morte, segundo a concepção católica: o Inferno (lugar dos condenados, do extravio, da tristeza), o Purgatório (moradia das almas redimidas que aguardam permissão para serem admitidas ao Paraíso) e, por fim, o Paraíso (lugar dos merecimentos, da felicidade, onde tudo é luz).

Todo percurso é narrado em primeira pessoa, em cem cantos, dos quais o primeiro serve como introdução. A personagem principal e o narrador representam o próprio autor que, ficcionalmente, comecará sua jornada até o Paraíso, apresentando a geografia dos reinos e seus habitantes, bem como diversas imagens simbólicas, sensações, pensamentos filosóficos, teológicos, científicos,

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invocações históricas, fábulas mitológicas, que trazem à tona uma série de anseios e fraquezas humanas, incluindo ainda, entre suas críticas, a conduta imoral de alguns representantes da Igreja.

Do ponto de vista estrutural, impressiona o fato de o poema ter sido organizado em tercetos de decassílados, com rima encadeada e alternada, segundo o esquema ABA BCB CDC, DED, etc, de modo que a métrica e o número de cânticos correspondam a múltiplos de três, considerado um número mágico na Idade Média e símbolo da Trindade, a unidade divina da religião cristã (Pai, Filho e Espírito Santo). Outra particularidade da estrutura da obra diz respeito à configuração espacial dos reinos. O Inferno, cratera provocada pela queda do anjo rebelbe Lúcifer, derrotado por Deus, é formado por nove círculos. A montanha do Purgatório também é dividida em nove partes. O Paraíso, lugar acima do Purgatório, é composto por nove céus, onde estão as almas premiadas na ordem crescente de seus merecimentos. Simbologias que nos dão a dimensão do mundo imaginado pelo poeta. O poema dantesco é, sem dúvida, uma viagem enigmática, repleta de descobertas, misticismo e alegoria. Acompanhe, a seguir, o início desta instigante viagem:

Canto IA meio caminhar de nossa vida A 1fui me encontrar em uma selva escura: Bestava a reta minha via perdida. A

Ah! que a tarefa de narrar é dura B 4essa selva selvagem, rude e forte, Cque volve o medo à mente que a figura. B

De tão amarga, pouco mais lhe é a morte, C 7mas, pra tratar do bem que enfim lá achei, Ddirei do mais que me guardava a sorte. C

Como lá fui parar não sei; D 10tão tolhido de sono me encontrava, Eque a verdadeira via abandonei. [...] D(ALIGHIERI, 2017, p. 25).

Quais foram suas impressões iniciais? Certamente você deve ter percebido que os versos retratam um sentimento de angústia, uma atmosfera de medo. Dante, aos 35 anos de idade, se vê perdido numa "selva selvagem", que simbolicamente representa a incerteza, a confusão, o extravio da rota — alegoria religiosa para o desvio do caminho da virtude. Após uma noite apreensiva, ele consegue escapar da selva, livrando-se de três feras: a onça, o leão e a loba. Neste momento, aparece a alma de Virgílio, o poeta latino, autor de Eneida (estudado na Unidade 1).

Os versos abaixo apresentam o encontro entre os poetas.

Quando eu já para o vale descaído 61tombava a minha frente um vulto incertoque por longo silêncio emudecido

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parecia, irrompeu no grão deserto: 64“Tem piedade de mim”, gritei-lhe então,"quem quer que sejas, sombra ou homem certo”.

E ele me respondeu: “Homem já não, 67homem eu fui, e foi de pais lombardos,mantuamos ambos, minha geração.

Nasci sub Julio, inda que em tempo tardos, 70e vivi em Roma sob o bom Augusto,e os dolosos de então deuses bastardos.

Poeta fui, cantei aquele justo 73filho de Anquise, de Troia a volver,quando o soberbo Ilion foi combusto.

Mas tu, por que inda tornas a temer? 76por que não galgas o preciso monte,princípio e causa de todo prazer?"

"És tu Virgílio, aquela fonte 79que expande do dizer tão vasto flume?”,respondi eu com vergonhosa fronte,

"Ó de todo poeta honor e lume, 82valha-me o longo estudo e o grande amorque me fez procurar o teu volume.

Tu és meu mestre, tu és meu autor, 85foi só de ti que eu procurei colher o belo estilo que me deu louvor.

[...] (ALIGHIERI, 2012, p. 27-28).

Virgílio, representante da razão e da sabedoria humana, aparece para socorrer Dante e guiá-lo na viagem até o limiar do Purgatório, pois o poeta latino, sendo pagão, não pode ascender ao reino das almas elevadas. Então, será ao lado da musa Beatriz que Dante continuará seu percurso até o Paraíso, destino da redenção espiritual.

Canto a canto surgem novos episódios. A história se desenrola e várias imagens e diálogos se entrelaçam. Antes de entrar no Inferno, imensa cratera das profundezas da terra, Virgílio e Dante passam pelo Limbo, o lugar dos não batizados, dos pagãos virtuosos que não pecaram, mas foram excluídos da salvação. Lá, encontram, separados das outras almas e habitando um "nobre castelo" cercado por sete muros, grandes mestres da Antiguidade Clássica, entre eles, o poeta grego Homero, à frente do grupo, considerado o "poeta soberano", um modelo a ser seguido; e os poetas latinos Horácio, Ovídio e Lucano, que logo aceitam Dante em sua comunidade, promovendo-o ao sexto integrante "entre tanto saber". Notadamente, o episódio anuncia a tentativa de conciliação entre a religião católica e a tradição greco-latina.

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Em linhas gerais, podemos dizer, segundo as palavras de Carmelo Distante, proferidas no prefácio da tradução brasileira da Divina Comédia, que:

Cada episódio é em si uma obra-prima à parte, mas é na sua estrutura e na totalidade de sua forma que ela se distingue como uma insuperável criação do intelecto humano. Pode-se dizer que é pelo conjunto de seu corpo magnífico, plasmado com amor e paixão, sede de justiça, desprezo feroz, ira, ódio, comoção profunda, refinamento virtuoso e santo, em suma, por tudo o que é de terrível e de mau, de gentil e de delicado, de generoso e nobre se hospeda no coração e na alma humana, que a Comédia se faz admirar em toda sua magnificência poética (ALIGHIERI, 2017, p. 16).

Realmente, o poema exerce uma influência duradoura e seu legado continua presente. A representação do artista italiano Domenico di Michelino (1417-1491), exposta na pintura abaixo, finaliza nossas discussões, atestando a força poética de Dante na história do pensamento ocidental.

FIGURA 1 - DI MICHELINO, DOMENICO. DANTE ILUMINANDO FLORENÇA COM SEU POEMA. 1465. TÊMPERA SOBRE MADEIRA

FONTE: <https://ataqueaberto.blogspot.com/2016/01/dante-iluminando-florenca.html>.Acesso em: 14 set. 2018.

Quais foram os elementos do quadro que mais chamaram sua atenção? Provavelmente você notou, em primeiro plano, a figura do poeta italiano; e, ao fundo, a montanha do Purgatório, dentre outras imagens cristãs que enfatizam a importância do artista, valorizado em sua individualidade e criatividade. Dante é retratado como o criador de uma obra capaz de iluminar a sociedade, evocar figurações da vida e da morte e a peregrinação do homem em busca da espiritualidade que, segundo o poeta, só pode ser atingida num lugar onde

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residem justiça, paz e amor. O mundo dantesco problematiza a salvação espiritual do indivíduo, mas também o aperfeiçoamento das instituições sociais e políticas, reforça D’Onofrio (1990, p. 194).

DICAS

No livro Inferno (2013), o escritor norte-americano Dan Brown constrói uma narrativa em que o protagonista Robert Langdon, professor de Simbologia de Harvard, se vê diante da enigmática obra Divina Comédia, de Dante Alighieri. O filme Inferno (2016), produzido por Ron Howard e inspirado no livro de Dan Brown, também apresenta relações intertextuais significativas com a literatura do poeta florentino.

Dando continuidade aos estudos sobre os principais autores italianos de vertentes renascentistas, destacaremos brevemente a produção literária de Francesco Petrarca, erudito das letras, homem comprometido com a atividade política, mestre da poesia lírica ocidental, que manifestou interesse pelas obras literárias e filosóficas dos gregos e latinos, especialmente pelos escritos de Platão, inaugurando o platonismo amoroso, tema retomado por vários poetas, entre eles, os portugueses Sá de Miranda (1485-1558) e Luís Vaz de Camões (1524 -1580), expoente do Classicismo em Portugual — estética literária que faz parte do movimento amplo do Renascimento e visa a valorização do sentido artístico da cultura clássica greco-romana.

Na lírica amorosa petrarquiana destaca-se a obra Cancioneiro, na qual manifesta o drama do amor pela inalcançável Laura. O eu lírico, angustiado, almeja reencontrar sua amada no céu. A concepção idealizante, que diviniza a mulher, é multiforme, fruto das cantigas da tradição trovadoresca e reflete também o platonismo amoroso, o mundo eterno e perfeito, onde a mulher é vista como um ser superior, livre das paixões carnais. Petrarca é o poeta da subjetividade, dos motivos psicológicos, dos estados melancólicos, considerado o precursor da poesia lírica das literaturas modernas.

Leia o soneto, a seguir, no qual o eu lírico tenta caracterizar o amor:

Soneto XXII

Se amor não é qual é este sentimento?Mas se é amor, por Deus, que cousa é a tal?Se boa por que tem ação mortal?Se má por que é tão doce o seu tormento?

Se eu ardo por querer por que o lamento?Se sem querer o lamentar que val?Ó viva morte, ó deleitoso mal,Tanto podes sem meu consentimento.

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E se eu consito sem razão pranteio.A tão contrário vento em frágil barca,Eu vou para o alto mar e sem governo.

É tão grave de error, de ciência é parcaQue eu mesmo não sei bem o que eu anseioE tremo em pleno estio e ardo no inverno (PETRARCA, 1998, p. 63).

O poema de Petrarca apresenta reflexões paradoxais sobre o amor e seus efeitos, fundindo ideias contraditórias. Afinal, o que é o amor? Um "doce tormento", um "deleitoso mal"? Indagações sobre a temática amorosa várias vezes difundidas por poetas, em diversas línguas, que nos lembram outros versos já conhecidos, a exemplo do soneto de Camões exposto abaixo.

Amor é fogo que arde sem se ver,é ferida que dói, e não se sente;é um contentamento descontente,é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;é um andar solitário entre a gente;é nunca contentar-se de contente;é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;é servir a quem vence, o vencedor;é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favornos corações humanos amizade,se tão contrário a si é o mesmo Amor (CAMÕES, 1994, p. 19).

Nos versos acima, percebemos a nítida influência de Petrarca. O eu lírico do poema camoniano mostra-se empenhado em compreender o amor, e constata o caráter contraditório desse sentimento ao representar metaforicamente a intensidade da paixão, como podemos notar nas expressões “fogo que arde sem se ver, dor que desatina sem doer”, nas quais as sensações de felicidade e tristeza coexistem.

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DICAS

A temática amorosa atravessa a história da literatura ocidental, sendo revisitada por vários autores modernos e contemporâneos. A manifestação desse sentimento também está presente em outras linguagens, através de filmes, músicas, até mesmo na publicidade. Como esse sentimento se manifesta atualmente na literatura e em outras representações culturais? As reflexões apresentadas neste tópico podem orientar você a desenvolver um planejamento didático sobre a temática, sensibilizando os alunos para a leitura dos poemas de Petrarca e Camões, seguida da análise e interpretação das obras e das possíveis correlações com outras manisfestações artísticas e outros textos literários em língua espanhola, como, por exemplo, o poema do espanhol Pedro Salinas Serrano (1891- 1951):

¿Serás, amor un largo adiós que no se acaba? Vivir, desde el principio, es separarse. En el primer encuentro con la luz, con los labios, el corazón percibe la congoja de tener que estar ciego y solo un día. Amor es el retraso milagroso de su término mismo; es prolongar el hecho mágico de que uno y uno sean dos, en contra de la primer condena de la vida. Con los besos, con la pena y el pecho se conquistan en afanosas lides, entre gozos parecidos a juegos, días, tierras, espacios fabulosos, a la gran disyunción que está esperando,

FONTE: https://www.poesi.as/ps36005.htm. Acesso em: 25 set. 2018.

hermana de la muerte o muerte misma. Cada beso perfecto aparta el tiempo, le echa hacia atrás, ensancha el mundo breve donde puede besarse todavía.Ni en el llegar, ni en el hallazgo tiene el amor su cima: es en la resistencia a separarse en donde se le siente, desnudo, altísimo, temblando. Y la separación no es el momento cuando brazos, o voces, se despiden con señas materiales: es de antes, de después. Si se estrechan las manos, si se abraza, nunca es para apartarse, es porque el alma ciegamente siente que la forma posible de estar juntos es una despedida larga, clara. Y que lo más seguro es el adiós.

Vimos que o Trecento italiano criou gêneros literários novos num momento histórico marcado pela construção de uma nova mentalidade. Giovanni Boccaccio também se destaca neste contexto como um homem do período medieval considerado moderno em relação à sua época. É considerado o criador da prosa italiana, do conto breve. Entre 1348 e 1353, escreveu a obra Decameron, nome de origem grega que significa “dez jornadas”, uma coletânea de cem contos envolvendo dez jovens (sete moças e três rapazes) que se refugiam em uma região isolada por causa da peste negra disseminada na cidade de Florência, epidemia que devastou a Europa por volta de 1340.

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As imagens da peste negra elaboradas por Boccaccio também estão presentes na vida e na obra de Dante como representação da catástrofe social e das mazelas humanas.

NOTA

Boccaccio construiu narrativas com temáticas variadas, contendo enredos trágicos, cômicos e burlescos, envolvendo os costumes e a mentalidade de diversas personagens, entre elas, aristocratas, comerciantes, religiosos, camponeses, avaros, devassos, personagens históricos, representantes da sociedade italiana do século XIV, principalmente florentina. Segundo Simoni (2007, p. 39), o autor fugiu do olhar pessimista, da construção metafórica da peste e da morte do medievo, visando derrubar a crença de que a Idade Média foi a “idade das trevas”. Logo, constrói "a história do desejo de sobreviver e as tentativas diárias de superar os infortúnios".

O Quadro 1 apresenta a relação entre as jornadas e o tema narrativo.

Jornada Regente Tema1ª Pampineia Tema livre.

2ª Filomena Trata daqueles que, apesar de atribulados por diferentes coisas, chegam a um final feliz, contrariando todas as

expectativas.3ª Neífile Trata de quem, com engenho, conquistou alguma coisa muito

desejada ou recuperou algo perdido.4ª Filóstrato Trata sobre aqueles cujos amores tiveram fim infeliz.5ª Fiammetta Trata de algo feliz que tenha acontecido a algum amante,

depois de vicissitudes tristes e cruéis.6ª Elissa Trata de alguém que, tendo sido provocado, defendeu-se

com palavras espirituosas ou escapou de perdas, perigos ou vexames valendo-se de pronta resposta ou de muito engenho.

7ª Dioneu Trata do modo como, por amor ou para salvar-se, as mulheres burlaram seus maridos, tendo eles percebido ou não.

8ª Lauretta Trata das burlas praticadas todos os dias por mulheres contra homens, por homens contra mulheres, ou por um homem

contra outro.9ª Emília Cada um fala daquilo que mais lhe agrada, da maneira que

bem quiser.10ª Pânfilo Trata sobre alguém que tenha obrado de modo generoso ou

mesmo magnífico em torno dos fatos do amor ou de outros.

QUADRO 1 – DECAMERON – AS DEZ JORNADAS E SEUS RESPECTIVOS TEMAS

FONTE: Adaptado de Boccaccio (2013, p. 12)

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A seguir, há um trecho da primeira jornada, descrevendo os infortúnios da peste negra.

PRIMEIRA JORNADA

Graciosas senhoras, quanto mais penso cá comigo e contemplo como são as senhoras naturalmente piedosas, mais concluo que esta obra lhes parecerá austera e pesada no princípio, assim como o é a dolorosa lembrança da última peste, com que ela se inicia, para todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos. Mas não quero que isso as assuste e impeça de prosseguir, como se, lendo, houvessem de estar sempre entre suspiros e lágrimas. Este horripilante início não deve ser diferente do que é para o caminhante a montanha acidentada e íngreme, atrás da qual se encontre uma planície belíssima e amena, que lhe parecerá tanto mais agradável quanto maior tiver sido o padecimento da subida e da descida. E, assim como os confins da alegria são ocupados pela dor, as misérias têm seus limites no contentamento que sobrevém. A este breve aborrecimento (digo breve porque contido em poucas linhas) seguem-se logo o deleite e o prazer já prometidos, que talvez não fossem esperados de tal início, caso isto não fosse dito. Na verdade, se me tivesse sido possível levá-las convenientemente àquilo que desejo por outro caminho, e não por esta senda tão árdua, eu o teria feito de bom grado: mas como, sem esta rememoração, não seria possível explicar por qual razão ocorreram as coisas que a seguir serão lidas, disponho-me a descrevê-las como que impelido pela necessidade.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas — começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao Ocidente.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

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[…] embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos. E, do fato de estarem os doentes abandonados por vizinhos, parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse, se importava de ter um homem a seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos (BOCCACCIO, 2013, p. 17-18).

DICAS

As histórias criadas por Boccaccio influenciaram vários autores, especialmente as produções de Shakespeare e Molière. Além disso, serviram de fonte de inspiração para outras linguagens, através de adaptações realizadas para a televisão, rádio e cinema, entre as quais destaca-se a adaptação cinematográfica Decameron (1971), de Pier Paolo Pasolini. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FTrIjcquA4A.

FONTE: <https://www.imdb.com/title/tt0065622/mediaviewer/rm2029595392>. Acesso em: 18 mar. 2019.

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3 TRAVESSIAS LITERÁRIAS: A GESTA DO MAR

As viagens marítimas por lugares desconhecidos, a descoberta de novas terras e o contato com povos de costumes diferentes foram acontecimentos muito importantes da época. Os reinos europeus, especialmente Portugal e Espanha, visavam a expansão de seus territórios. Portugal seguiu a rota africana e chegou à India (ponto do comérico rentável de especiarias). A Espanha seguiu a rota Atlântica, decobrindo a América.

Os ideais da Renascença, atrelados às expedições marítimas, criaram uma nova dimensão de vida que passou a fazer parte da imaginação dos escritores e das produções literárias. O poema épico Os Lusíadas, de Camões, é certamente a obra que melhor expressa os preceitos renascentistas e as aventuras desse período, refletindo, ao mesmo tempo, a imitação dos modelos artísticos da antiguidade greco-latina e a exaltação do homem descobridor, desbravador de outras terras, que visava, sobretudo, à ampliação econômica e política. Por isso, a construção camoniana é de grande relevância do ponto de vista literário e histórico, pelo valor poético e documental.

3.1 OS LUSÍADAS DE CAMÕES

A biografia de Camões (152? -1580) é permeada por lendas. Especula-se que o poeta passou por muitas dificuldades, nasceu pobre e morreu na miséria. Durante a juventude perdeu o olho direito quando servia como soldado em Marrocos. Por causa de sua vida boêmia e agitada, foi preso em 1552 e desterrado para o Oriente, em 1553. Ele ainda prestou serviço militar na Índia e cargo burocrático na China. Supostamente, teria salvado o manuscrito de seu poema Os Lusíadas após um naufrágio. De fato, pouco sabemos sobre sua vida, o contrário acontece com suas obras, especialmente a épica camoniana.

DICAS

Complemente seus conhechimentos sobre o poeta e sua obra, assistindo ao interessante documentário Quem és tu Luís Vaz de Camões?, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5CqmXUURDP0.

Motivado pelo contexto histórico das viagens marítimas e dos descobrimentos, Camões, em Os Lusíadas (1572), narra a viagem marítima de Vasco da Gama de Lisboa à Índia, ou seja, história dos grandes feitos da nação portuguesa, a transfiguração da experiência geográfica, militar e econômica, consagrando-se, portanto, como autor da epopeia nacional. Podemos observar as intenções do poeta nas primeiras estrofes que apresentam o assunto do poema.

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As armas e os barões assinalados,Que da ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegados,Passaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosasDaqueles Reis, que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando;E aqueles, que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando;Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram:Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta.[...] (CAMÕES, 2015, p. 25-26).

O eu lírico contará os feitos militares (as armas) realizados pelos grandes navegadores (barões) para estabelecer o império português (o Novo Reino) na Ásia e na África. A voz do eu poemático afirma ainda que precisará de inspiração e proteção divina para expressar em versos os acontecimentos, fazendo alusão à Calíope, musa protetora da poesia épica, e à tradição clássica, por intermédio do sabio grego Ulisses, herói da Odisseia de Homero, e do troiano Eneias, herói da Eneida de Virgílio, dois grandes modelos para Camões. Ao longo da narrativa, os deuses Vênus (favorável à viagem) e Baco (contrário à viagem) interferem nos acontecimentos. O poema Os Lusíadas funde mito e história, glorifica Vasco da Gama como um herói individual, como é típico nos poemas épicos da Antiguidade Clássica, mas não se trata de uma aventura de um único protagonista. Há também uma outra dimensão a ser observada, a intenção da narrativa, enaltecer o povo lusitano e destacar o caráter nacional da expedição.

No poema camoniano há vários narradores, o plano da enunciação é complexo. Podemos acompanhar o ponto de vista do “eu”, do discurso em primeira pessoa, a voz que interpreta os acontecimentos emite julgamentos e faz advertências. Ao lado dessa voz, há um narrador em terceira pesssoa, onisciente e onipresente, ou seja, que sabe tudo a respeito de todos. Além disso, o poema abre espaço para as vozes das personagens. Do ponto de vista formal, o poema está estruturado em dez cantos, contendo 1.102 estrofes organizadas em versos decassílados. Neles, há uma série de episódios interligados ao tema central da narração. A obra divide-se em cinco partes, organizadas da seguinte maneira:

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• Proposição: introdução do assunto que será tratado no poema e apresentação dos heróis.

• Invocação: pedido feito às musas para que o poeta tenha inspiração para compor seu poema.

• Dedicatória: o poeta dedica a obra ao rei português D. Sebastião, seu protetor.• Narração: parte dedicada à narração dos episódios da viagem, nos quais

destacam-se: a história do assassinato de Inês de Castro (canto III) cometido por motivos políticos escusos do rei Dom Afonso IV; o episódio Velho do Restelo (canto IV) sobre a advertência feita a Vasco da Gama e à expansão marítima; os acontecimentos atrelados ao Gigante Adamastor (canto V), e as incontroláveis forças da natureza que se manifestam durante a viagem para o Oriente.

• Epílogo: encerramento do poema — visão crítica sobre as conquistas materiais e o futuro da nação portuguesa.

Acompanhe no mapa a seguir (Figura 2) a trajetória de Vasco da Gama retratada em Os Lusíadas.

FIGURA 2 – MAPA DO PERCURSO DE VASCO DA GAMA

FONTE:<http://gogvg7.wixsite.com/osletras/single-post/2015/11/30/Resenha-A-Epopeia-de-Cam%C3%B5es>. Acesso em: 28 set. 2018.

A epopeia Os Lusíadas apresenta várias histórias entrelaçadas à trama principal, como o episódio do Velho do Restelo, no canto IV, destacado anteriormente. Restelo é o nome de uma praia situada às margens do rio Tejo, em Lisboa, de onde partiam as embarcações. Nesse episódio, uma multidão observa os últimos preparativos do embarque, e Vasco da Gama narra a tristeza da despedida entre marinheiros e familiares no momento em que a expedição portuguesa se preparava para as viagens oceânicas. Em seguida, retrata o

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personagem Velho do Restelo, um homem que estava na praia e começa a falar aos navegadores. Leia um trecho do episódio.

Mas um velho, d'respeito venerando,Que ficava nas praias, entre a gente,Postos em nós os olhos, meneandoTrês vezes a cabeça, descontente,A voz pesada um pouco levantando,Que nós no mar ouvimos claramente,Cum saber só d'experiências feito,Tais palavras tirou do experto peito:

- "Ó glória de mandar, ó vã cobiçaDesta vaidade a quem chamamos Fama!Ó fraudulento gosto, que se atiçaComo aura popular, que honra se chama!Que castigo tamanho e que justiçaFazes no peito vão que muito te ama!Que mortes, que perigos, que tormentas,Que crueldades neles experimentas!

«Dura inquietação d'alma e da vidaFonte de desamparos e adultérios,Sagaz consumidora conhecidaDe fazendas, de reinas e de impérios!amam-te ilustre, chamam-te subida,Sendo digna de infames vitupérios;Chamam-te Fama e Glória soberana,Nomes com quem se o povo néscio engana!

«A que novos desastres determinasDe levar estes Reinos e esta gente?Que perigos, que mortes lhe destinas,Debaixo dalgum nome preeminente?Que promessas de reinos e de minasD'ouro, que lhe farás tão facilmente?Que famas lhe prometerás? Que histórias?Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

Mas, ó tu, geração daquele insanoCujo pecado e desobediênciaNão somente do Reino soberanoTe pôs neste desterro e triste ausência,Mas inda doutro estado mais que humano,Da quieta e da simples inocência,Idade d'ouro, tanto te privou,Que na de ferro e d'armas te deitou:

Já que nesta gostosa vaidadeTanto enlevas a leve fantasia,

O desprezo da vida, que deviaDe ser sempre estimada, pois que jáTemeu tanto perdê-la quem a dá:

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TÓPICO 1 | O RENASCIMENTO

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«Não tens junto contigo o Israelita,Com quem sempre terás guerras sobejas?Não segue ele do Arábio a lei maldita,Se tu pela de Cristo só pelejas?Não tem cidades mil, terra infinita,Se terras e riqueza mais desejas?Não é ele por armas esforçado,Se queres por vitórias ser louvado?«Deixas criar às portas o inimigo,Por ires buscar outro de tão longe,Por quem se despovoe o Reino antigo,Se enfraqueça e se vá deitando a longe;Buscas o incerto e incógnito perigoPor que a Fama te exalte e te lisonjeChamando-te senhor, com larga cópia,Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,Nas ondas vela pôs em seco lenho!Digno da eterna pena do Profundo,Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!Nunca juízo algum, alto e profundo,Nem cítara sonora ou vivo engenhoTe dê por isso fama nem memória,Mas contigo se acabe o nome e glória!

Trouxe o filho de Jápeto do CéuO fogo que ajuntou ao peito humano,Fogo que o mundo em armas acendeu,Em mortes, em desonras (grande engano!).Quanto melhor nos fora, Prometeu,E quanto pera o mundo menos dano,Que a tua estátua ilustre não tiveraFogo de altos desejos, que a movera!

Não cometera o moço miserandoO carro alto do pai, nem o ar vazioO grande arquiteto com filho, dandoUm, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.Nenhum cometimento alto e nefandoPor fogo, ferro, água, calma e frio,Deixa intentado a humana geração.Mísera sorte! Estranha condição!" (CAMÕES, 2005, p. 136-138).

Você deve ter percebido, no fragmento acima, que o narrador descreve a personagem, Velho do Restelo, como alguém sábio, respeitável e experiente, representando um contraponto aos anseios audaciosos de Vasco da Gama em relação à viagem, condenando a ambição humana e citando as prováveis consequências negativas da expedição marítima portuguesa, mesmo entendendo que os homens se sentem empolgados e atraídos pela glória das conquistas territoriais.

Séculos depois, outro grande poeta português, Fernando Pessoa (1888-1935), estabeleceu um diálogo com o episódio do Velho do Restelo, compondo o poema Mar Português, justificando a iniciativa dos navegadores portugueses, apesar dos sofrimentos causados.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.

Quem quere passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele é que espelhou o céu (PESSOA, 1996, p. 11).

No século XVI, além de Os Lusíadas, foram compostos outros poemas épicos em Portugual, entre eles, O primeiro cerco de Diu (1538), de Francisco de Andrada; Naufrágio e perdição de Sepúlveda e Leonor (1594), de Jerônimo Corte-Real; História de Santa Comba dos Vales (1598), de António Ferreira. A gesta hispânica, por sua vez, foi relatada em outro gênero, através de crônicas que tiveram grande repercussão. A primeira delas foi o Diário de a bordo (1492 -1493), de Cristóbal Colón, chefe da expedição espanhola, um dos primeiros documentos sobre a América, no qual predominam propósitos históricos, políticos e doutrinários. Dentre outras crônicas, destacam-se Naufragios (1542), de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, e Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España (1555-1584), de Bernal Díaz del Castillo. Já na poesia épica inglesa, John Milton figura como maior representante, com as obras O paraíso perdido (1667) e O paraíso reconquistado (1671), colocando-se fora dos moldes dos poetas da tradição clássica.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• O Renascimento cultural marca o período de transição da Idade Média para a Idade Moderna, enfatizando a valorização do ser humano, a investigação racionalista e o uso do conhecimento científico.

• A transformação da concepção de mundo ocorrida no Renascimento está atrelada ao estudo e à assimilação da cultura greco-latina.

• O Humanismo foi um movimento científico e literário de mentalidade renovadora, cujas manifestações, muitas vezes conflitantes, alargaram a experiência humana em vários campos, colocando o homem no centro do pensamento da época (antropocentrismo).

• No Trecento italiano, o grupo formado pelos poetas italianos Dante Alighieri, Petrarca e Boccaccio deu início ao movimento humanista, criando gêneros literários novos, como o estilo dos versos decassílabos sob a forma poética do soneto (dois quartetos e dois tercetos).

• A longa viagem imaginária de Dante Alighieri através do Inferno, Purgatório e Paraíso, em A divina Comédia, é considerada uma das maiores expressões do Renascimento, uma alegoria da peregrinação do homem em busca da perfeição espiritual.

• As grandes navegações foram fundamentais para a ampliação do conhecimento sobre o mundo e a cultura de vários povos, sendo Camões o principal poeta renascentista em Portugual.

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AUTOATIVIDADE

1 No canto III da obra A Divina Comédia, Dante e Virgílio chegam à entrada do Inferno. Dante se assombra com a inscrição que lê sobre o seu portal. Os textos reunidos nesta atividade, cada qual a seu modo, fazem referência às cenas descritas pelo poeta italiano. Leia, abaixo, o trecho do poema e, em seguida, a releitura da cena através da história em quadrinhos (HQ) elaborada pelo designer norte-americano Seymour Chwast.

TEXTO 1

VAI-SE POR MIM A CIDADE DOLENTE, VAI-SE POR MIM A SEMPITERNA DOR, VAI-SE POR MIM ENTRE PERDIDA GENTE.

MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR, FEZ-SE A DIVINA POTESTADE, MAIS O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.

ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS NADA SENÃO ETERNO, E ETERNO EU DURO. DEIXAI TODA A ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.

Essas palavras vi, num tom escuro escritas sobre o alto de uma porta,donde eu: "Meu mestre, o seu sentido é duro".

E ele, a mim, como mestre que conforta:“Livra-te desse medo circunspecto,aqui toda tibiez esteja morta;

Que chegando ora estamos ao conspectodas tristes gentes das quais já te disseque têm perdido o bem do intelecto”.

Depois, na sua tomando com meiguiceminha mão, como que me confortei,fez que no umbral secreto eu o seguisse.

Gritos, suspiros, prantos lá encontreique ecoavam no espaço sem estrelas,pelo que no começo até chorei.

Diversas línguas, hórridas querelas,brados de mágoa, irrupções de iracom estalar de mãos em suas sequelas,

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formam um tumulto que regira,no intemporal negrume, sem parade,qual turbilhão de areia em torno atira.

E eu, co'a cabeça já de horror tomada:“Que gente essa é", indaguei, “nesse clamor, que parece em sua dor tão derrotada?"

E ele: "As almas que vês nesse amargor,São os que têm no mundo – e ora deploram –Vivido sem infâmia e sem louvor.[…]

FONTE: ALIGHIERI, D. A Divina Comédia - Inferno. 4. ed. Tradução e notas de ltalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2017.

TEXTO 2

FONTE:<https://cultura.estadao.com.br/blogs/a-biblioteca-de-raquel/as-divinas-comedias-de-dante/>. Acesso em: 20 set. 2018.

A partir da leitura dos textos 1 e 2, podemos inferir que:

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I. No texto 1, a inscrição que Dante lê na entrada do Inferno causa temor diante da impossibilidade de salvação dos pecadores.

II. No poema, entre gritos, suspiros e prantos, Dante encontra almas inertes, isentas da dor e do castigo, diferentemente do que ressalta a história em quadrinhos.

III. No texto 2, o Inferno é retratado como o reino das trevas, onde o ser humano, castigado por moscas e vespas, escapa da lei de sua própria natureza.

Está correto o que se afirma ema) ( ) I, apenas.b) ( ) I e II, apenas.c) ( ) II e III, apenas.d) ( ) I e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

2 Leia, abaixo, um poema de Camões e outro de Petrarca. Analise a linguagem dos textos, identifique suas temáticas e os possíveis diálogos entre eles.

TEXTO 1

Não tenho paz nem posso fazer guerra;temo e espero, e do ardor ao gelo passo,e voo para o céu, e desço à terra,e nada aperto, e todo o mundo abraço.

Prisão que nem se fecha ou se descerra,nem me retém nem solta o duro laço;entre livre e submissa esta alma erra,nem é morto nem vivo o corpo lasso.

Vejo sem olhos, grito sem ter voz;e sonho perecer e ajuda imploro;a mim odeio e a outrem amo após.

Sustento-me de dor e rindo choro;a morte como a vida enfim deploro:e neste estado sou, Dama, por vós.

FONTE: PETRARCA. Poemas de amor de Petrarca. Tradução de Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

TEXTO 2

Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de frio; sem causa, juntamente choro e rio, o mundo todo abarco e nada aperto.

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É tudo quanto sinto, um desconcerto;da alma um fogo me sai, da vista um rio;agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando, num'hora acho mil anos, e é de jeitoque em mil anos não posso achar um' hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando, respondo que não sei; porém suspeitoque só porque vos vi, minha Senhora.

FONTE: CAMÕES, L. Sonetos. São Paulo: Martin Claret, 2004.

Considerando os poemas destacados acima, avalie as afirmações a seguir.

I. O verso de Petrarca “Temo e espero e do ardor ao gelo passo”, no texto 1, mantém uma correspondência de sentido com o verso “Quem em vivo ardor tremendo estou de frio", de Camões.

II. Há, nos dois poemas, uma manifestação dos sentimentos do eu lírico pela mulher amada.

III. O eu lírico dos poemas expressa ideias contraditórias, apesar do amor correspondido.

Está correto o que se afirma em:

a) ( ) I, apenas.b) ( ) I e II, apenas.c) ( ) II e III, apenas.d) ( ) I e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 Leia a estrofe a seguir, que faz parte do canto VI do poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões.

[…]

Vistes que com grandíssima ousadia Foram já cometer o Céu supremo; Vistes aquela insana fantasia De tentarem o mar com vela e remo; Vistes, e ainda vemos cada dia, Soberbas e insolências tais, que temo

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Que do mar e do Céu em poucos anos Venham Deuses a ser, e nós humanos.

[…]

FONTE: CAMÕES, L. Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 169.

Considerando o episódio narrado anteriormente e as reflexões acerca da produção épica camoniana realizadas durante este tópico, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) No trecho do poema, a ousadia representa a bravura da expedição portuguesa que, com "vela e remo", navegava rumo ao mar desconhecido, ao Oriente.

( ) No episódio acima citado é possível perceber uma visão humanista no que diz respeito à capacidade do homem de superar as adversidades.

( ) Em Os Lusíadas, Camões glorifica os deuses da Antiguidade Clássica e Vasco da Gama em detrimento do povo lusitano.

( ) Na epopeia, os navegadores portugueses são considerados heróis superiores aos das epopeias clássicas, Odisseia de Homero e Eneida, de Virgílio.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:a) ( ) V – V – F – F. b) ( ) F – F – V – F. c) ( ) V – V – F – V. d) ( ) F – F – V – V. e) ( ) V – V – F – V.

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TÓPICO 2

A ESTÉTICA BARROCA

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOA estética barroca compreende o século XVII, período marcado por

tensões políticas e econômicas, principalmente no campo religioso. Situa-se no contexto sociocultural da Contrarreforma, em 1563, movimento instaurado pelas normas do Concílio de Trento e difundido pela Companhia de Jesus, que visava o fortalecimento da Igreja Católica, ameaçada no século anterior pela Reforma iniciada pelo religioso alemão Martinho Lutero (1483-1546), que, ao questionar algumas práticas da Igreja Católica, provocou a divisão do cristianismo ocidental em católicos e protestantes.

Em reação a esse movimento, a Igreja Católica buscou recuperar seu prestígio de várias maneiras. Nessa época, ressurgiu o Tribunal do Santo Ofício, também chamado Sagrada Inquisição, que prendia as pessoas acusadas de heresia. Também foi criado o Índice dos livros proibidos, uma relação de livros cuja leitura era vetada aos católicos, entre eles, estavam as obras dos autores Copérnico, Galileu e Descartes (considerado o pai do Racionalismo moderno). No âmbito das artes, uma das iniciativas foi incentivar as manifestações artísticas de temática religiosa, que exerceram forte influência na construção estética do Barroco. Há uma tensão que nasce da tentativa de fusão das perspectivas opostas do teocentrismo e do antroprocentrismo. Se o Renascimento pregava o predomínio da razão sobre os sentimentos, o Barroco exaltará, de forma exacerbada, os sentimentos e a religiosidade, os conflitos trágicos da alma humana. O próprio nome Barroco designa pérola irregular, estranha, e traz consigo a expressão dessa crise, cujas particularidades estéticas não chegam a determinar uma ruptura total com os ideais estéticos e ideológicos da Renascença. Por isso:

O tema da fugacidade, da ilusão da vida e das coisas humanas ocupa um lugar central na literatura barroca. As motivações religiosas deste tema são bem evidentes: trata-se de lembrar ao homem que tudo é vão e efêmero à superfície da Terra, que a vida carnal é uma passagem e que é necessário procurar uma realidade suprema isenta de mentira e imperfeição. As ruínas atestam a transitoriedade do homem e os poetas meditam angustiados sobre a fragilidade da beleza humana, sobre a destruição e o vazio que superam tudo o que é grácil e luminoso (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 339).

As expressões artísticas do Barroco estão presentes nos ornamentos das

igrejas, nas pinturas, sob a técnica de claro e escuro, como também na música e na literatura, no contexto de diferentes influências, ambiguidades e significados simbólicos, na união dos aspectos contraditórios do sagrado e do profano, de um mundo instável, num momento de crise na cultura ocidental.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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FIGURA 3 - CRISTO CARREGANDO A CRUZ, NA VIA SACRA DE CONGONHAS (MG), DO ESCULTOR ALEIJADINHO, REPRESENTANTE DO BARROCO BRASILEIRO

FONTE: <http://quatrocontextos.blogspot.com/p/a-arte-barroca-brasileira-aleijadinho-e.html>. Acesso em: 20 set. 2018.

A produção literária do período, que predominou na Europa em países e épocas diferentes, incorpora muitos elementos da arte espanhola, que vivia seu auge com o poeta e dramaturgo Góngora, o pintor Velásquez e o escritor Miguel de Cervantes, entre outros. A seguir, destacaremos a passagem da poesia épica para a prosa ficcional através do escritor espanhol Cervantes. Você verá como o autor representou a instabilidade e a fragilidade humana desse momento.

2 DON QUIJOTE DE LA MANCHA: CERVANTES E O ROMANCE MODERNO

O primeiro grande escritor da narrativa ficcional da literatura espanhola foi Miguel de Cervantes Saavedra, cuja história de vida é marcada pela necessidade de sobrevivência e pelas aspirações militares e literárias. Cervantes participou de várias expedições militares, chegou a ser ferido no peito e na mão esquerda. Apesar disso, participou de outras batalhas. Em 1575, foi preso e viveu durante cinco anos como escravo na Argélia. Ao retornar para Madri, em 1580, dedicou-se à literatura, escrevendo peças teatrais e o romance pastoril La Galatea, inicialmente sem muito sucesso. Somente 20 anos depois, conseguiu rumar para o sucesso literário com a publicação da primeira parte da notável obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, em 1605. A segunda parte de seu romance foi publicada dez anos depois, em 1615. Cervantes também escreveu as Novelas ejemplares, entre 1590 e 1612, uma série de histórias curtas com enredos e estilo variados, além da novela bizantina El Persiles (1617), última obra do autor.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA BARROCA

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ESTUDOS FUTUROS

Você estudará com mais profundidade as obras de Cervantes na disciplina de Literatura Hispânica I.

Certamente, a história de Dom Quixote é a mais conhecida e aclamada por leitores e estudiosos. O romance, um dos livros literários mais traduzidos e lidos no Ocidente, narra as aventuras do fidalgo que enlouqueceu de tanto ler livros de cavalaria, mostrando como a vida e a literatura, a realidade e a ficção se confundem e borram as fronteiras de separação. Uma obra moderna aberta a várias interpretações, repleta de recursos estruturais, de regristros linguísticos, de humor, paródia e crítica social. As peripécias do cavaleiro andante e seu escudeiro Sancho Pança são descritas, analisadas e interpretadas. Dom Quixote acredita ver gigantes onde havia apenas moinhos de vento, confunde rebanhos de ovelhas com exércitos “porque existen puntos de vista diferentes sobre la realidad, según la óptica de cada ser humano, según sus condiciones de vida, su cultura, su carácter, su estado de ánimo etc.”, enfatizam Marín e Rey (2006, p. 109).

Para construir sua narrativa, Cervantes também incorporou traços literários da tradição medieval hispânica e portuguesa, a exemplo dos populares romances de cavalaria Amadís de Gaula (1496), de Rodríguez de Montalvo, e de Palmerin da Inglaterra (1541-1543), de Francisco Morais, citados ao longo da obra. Acompanhe, no fragmento abaixo, o início das andanças de Quixote, o espaço da ação, a caracterização da posição social e do temperamento do personagem.

Capítulo I

QUE TRATA DE LA CONDICIÓN Y EJERCICIO DEL FAMOSO HIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA

En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados, lantejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda. El resto della concluían sayo de velarte, calzas de velludo para las fiestas, con sus pantuflos de lo mesmo, y los días de entresemana se honraba con su vellorí de lo más fino. Tenía en su casa una ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba la podadera. Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años; era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro,

QUADRO 9 – DON QUIJOTE DE LA MANCHA. FRAGMENTO DO CAPÍTULO I

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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gran madrugador y amigo de la caza. Quieren decir que tenía el sobrenombre de Quijada, o Quesada, que en esto hay alguna diferencia en los autores que deste caso escriben; aunque por conjeturas verosímiles se deja entender que se llamaba Quijana. Pero esto importa poco a nuestro cuento: basta que en la narración dél no se salga un punto de la verdad.

Es, pues, de saber que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año, se daba a leer libros de caballerías, con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de su hacienda; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra de sembradura para comprar libros de caballerías en que leer, y así, llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos; y de todos, ningunos le parecían tan bien como los que compuso el famoso Feliciano de Silva; porque la claridad de su prosa y aquellas entricadas razones suyas le parecían de perlas, y más cuando llegaba a leer aquellos requiebros y cartas de desafíos, donde en muchas partes hallaba escrito: «La razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura». Y también cuando leía: «... los altos cielos que de vuestra divinidad divinamente con las estrellas os fortifican, y os hacen merecedora del merecimiento que merece la vuestra grandeza».

Con estas razones perdía el pobre caballero el juicio, y desvelábase por entenderlas y desentrañarles el sentido, que no se lo sacara ni las entendiera el mesmo Aristóteles, si resucitara para sólo ello. No estaba muy bien con las heridas que don Belianís daba y recebía, porque se imaginaba que, por grandes maestros que le hubiesen curado, no dejaría de tener el rostro y todo el cuerpo lleno de cicatrices y señales. Pero, con todo, alababa en su autor aquel acabar su libro con la promesa de aquella inacabable aventura, y muchas veces le vino deseo de tomar la pluma y dalle fin al pie de la letra, como allí se promete; y sin duda alguna lo hiciera, y aun saliera con ello, si otros mayores y continuos pensamientos no se lo estorbaran. Tuvo muchas veces competencia con el cura de su lugar (que era hombre docto, graduado en Sigüenza), sobre cuál había sido mejor caballero: Palmerín de Ingalaterra, o Amadís de Gaula; mas maese Nicolás, barbero del mismo pueblo, decía que ninguno llegaba al Caballero del Febo, y que si alguno se le podía comparar, era don Galaor, hermano de Amadís de Gaula, porque tenia muy acomodada condición para todo; que no era caballero melindroso, ni tan llorón como su hermano, y que en lo de la valentía no le iba en zaga.[...]

FONTE: <http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-ingenioso-hidalgo-don-quijote-de-la-mancha-6/html/> Acesso em: 28 set. 2018.

Veja, na sequência, a releitura artística do francês Gustave Doré (Figura 4), renomado ilustrador do século XIX, na qual Dom Quixote, representado como um homem magro e alto, sentado num trono, aparece lendo, com uma espada na mão e um livro na outra, cercado por livros, dragões, cavaleiros, ratos, entre outras figuras imaginárias.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA BARROCA

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FIGURA 4 – DOM QUIXOTE LENDO LIVROS DE CAVALARIA

FONTE: <http://paleonerd.com.br/2016/07/21/porque-dom-quixote-e-um-classico/>. Acesso em: 28 set. 2018.

Dentre as diversas possibilidades de compreensão da obra, Quixote, personagem letrada de vasta cultura literária, tornou-se “o símbolo do homem utópico, que sonha em estabelecer na sociedade um conjunto de valores ideológicos” (D’Onofrio,1990, p. 280), um “louco”, que luta em vão para modificar a difícil realidade em que vive. Sancho Pança, diferentemente, é a personificação do racional, do prático, das convenções sociais que por vezes desfazem os sonhos do indivíduo. Na narrativa coexistem duas forças que tentam caminhar juntas, marcando um conflito existencial, o valor do idealismo e dos princípios humanitários, que, a partir do Barroco, serão temas explorados pelos escritores românticos e modernos.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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DICAS

FONTE: <http://www.cervantesvirtual.com/>. Acesso em: 20 set. 2018.

A Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes disponibiliza uma série de estudos sobre a literatura espanhola. Você pode acessar a obra completa de Don Quijote de La Mancha e ouvi-la na seção Fonoteca. Visite o site pelo endereço http://www.cervantesvirtual.com e acesse também as entrevistas e palestras sobre a vida e a obra de Dom Quixote, disponíveis na seção Videoteca de Literatura.

FONTE:<http://www.educa.jcyl.es/educacyl/cm/gallery/Recursos%20Infinity/tematicas/webquijote/juegotest.html> Acesso em: 20 set. 2018.

Além disso, há páginas interessantes na internet com jogos interativos, descrições dos personagens, informações diversas sobre a obra, que podem contribuir para instigar os alunos e ressignificar suas práticas pedagógicas em sala de aula. Busque promover reflexões acerca do intercâmbio cultural entre línguas, literaturas e culturas, destacando a importância da obra de Cervantes no seu contexto histórico de produção e na atualidade. Sugira a leitura e a investigação sobre as várias versões de Dom Quixote.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA BARROCA

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LEITURA COMPLEMENTAR

Sabemos que Don Quijote de la Mancha é um clássico da literatura mundial. Muitos textos e escritores fazem referência a essa obra, como fez o escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do Nobel de Literatura de 2010. Leia, abaixo, algumas reflexões do autor acerca da obra de Cervantes.

Una novela para el siglo XXI

Mario Vargas Llosa

Antes que nada, Don Quijote de la Mancha, la inmortal novela de Cervantes es una imagen: la de un hidalgo cincuentón, embutido en una armadura anacrónica y tan esquelético como su caballo, que, acompañado por un campesino basto y gordinflón montado en un asno, que hace las veces de escudero, recorre las llanuras de la Mancha, heladas en invierno y candentes en verano, en busca de aventuras. Lo anima un designio enloquecido: resucitar el tiempo eclipsado siglos atrás (y que, por lo demás, nunca existió) de los caballeros andantes, que recorrían el mundo socorriendo a los débiles, desfaciendo entuertos y haciendo reinar una justicia para los seres del común que de otro modo éstos jamás alcanzarían, del que se ha impregnado leyendo las novelas de caballerías, a las que él atribuye la veracidad de escrupulosos libros de historia.

Este ideal es imposible de alcanzar porque todo en la realidad en la que vive el Quijote lo desmiente: ya no hay caballeros andantes, ya nadie profesa las ideas ni respeta los valores que movían a aquéllos, ni la guerra es ya un asunto de desafíos individuales en los que, ceñidos a un puntilloso ritual, dos caballeros dirimen fuerzas. Ahora, como se lamenta con melancolía el propio Don Quijote en su discurso sobre las armas y las letras, la guerra no la deciden las espadas y las lanzas, es decir, el coraje y la pericia del individuo, sino el tronar de los cañones y la pólvora, una artillería que, en el estruendo de las matanzas que provoca, ha volatilizado aquellos códigos del honor individual y las proezas de los héroes que forjaron las siluetas míticas de un Amadís de Gaula, de un Tirante el Blanco y de un Tristán de Leonis.

¿Significa esto que Don Quijote de la Mancha es un libro pasadista, que

la locura de Alonso Quijano nace de la desesperada nostalgia de un mundo que se fue, de un rechazo visceral de la modernidad y el progreso? Eso sería cierto si el mundo que el Quijote añora y se empeña en resucitar hubiera alguna vez formado parte de la historia. En verdad, sólo existió en la imaginación, en las leyendas y las utopías que fraguaron los seres humanos para huir de algún modo de la inseguridad y el salvajismo en que vivían y para encontrar refugio en una sociedad de orden, de honor, de principios, de justicieros y redentores civiles, que los desagraviara de las violencias y sufrimientos que constituían la vida verdadera para los hombres y las mujeres del Medievo.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

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La literatura caballeresca que hace perder los sesos al Quijote ésta es una expresión que hay que tomar en un sentido metafórico más que literal no es "realista", porque las delirantes proezas de sus paladines no reflejan una realidad vivida. Pero ella es una respuesta genuina, fantasiosa, cargada de ilusiones y anhelos y, sobre todo, de rechazo, a un mundo muy real en el que ocurría exactamente lo opuesto a ese quehacer ceremonioso y elegante, a esa representación en la que siempre triunfaba la justicia, y el delito y el mal merecían castigo y sanciones, en el que vivían, sumidos en la zozobra y la desesperación, quienes leían (o escuchaban leer en las tabernas y en las plazas) ávidamente las novelas de caballerías. Así, el sueño que convierte a Alonso Quijano en Don Quijote de la Mancha no consiste en reactualizar el pasado, sino en algo todavía mucho más ambicioso: realizar el mito, transformar la ficción en historia viva.

Este empeño, que parece un puro y simple dislate a quienes rodean a Alonso Quijano, y sobre todo a sus amigos y conocidos de su anónima aldea el cura, el barbero Nicolás, el ama y su sobrina, el bachiller Sansón Carrasco, va, sin embargo, poco a poco, en el transcurso de la novela, infiltrándose en la realidad, se diría que debido a la fanática convicción con la que el Caballero de la Triste Figura lo impone a su alrededor, sin arredrarlo en absoluto las palizas y los golpes y las desventuras que por ello recibe por doquier. En su espléndida interpretación de la novela, Martín de Riquer insiste en que, de principio a fin de su larga peripecia, Don Quijote no cambia, se repite una y otra vez, sin que vacile nunca su certeza de que son los encantadores los que trastocan la realidad para que él parezca equivocarse cuando ataca molinos de viento, odres de vino, carneros o peregrinos creyéndolos gigantes o enemigos. Eso es, sin duda, cierto. Pero, aunque el Quijote no cambia, encarcelado como está en su rígida visión caballeresca del mundo, lo que sí va cambiando es su entorno, las personas que lo circundan y la propia realidad que, como contagiada de su poderosa locura, se va desrealizando poco a poco hasta como en un cuento borgesiano convertirse en ficción. Éste es uno de los aspectos más sutiles y también más modernos de la gran novela cervantina.

[...]

Un libro moderno

La modernidad del Quijote está en el espíritu rebelde, justiciero, que lleva al personaje a asumir como su responsabilidad personal cambiar el mundo para mejor, aun cuando, tratando de ponerla en práctica, se equivoque, se estrelle contra obstáculos insalvables y sea golpeado, vejado y convertido en objeto de irrisión. Pero también es una novela de actualidad porque Cervantes, para contar la gesta quijotesca, revolucionó las formas narrativas de su tiempo y sentó las bases sobre las que nacería la novela moderna. Aunque no lo sepan, los novelistas contemporáneos que juegan con la forma distorsionan el tiempo, barajan y enredan los puntos de vista y experimentan con el lenguaje, son todos deudores de Cervantes.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA BARROCA

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Esta revolución formal que significó El Quijote ha sido estudiada y analizada desde todos los puntos de vista posibles, y, sin embargo, como ocurre con las obras maestras paradigmáticas, nunca se agota, porque, al igual que el Hamlet, o La Divina Comedia, o la Ilíada y la Odisea, ella evoluciona con el paso del tiempo y se recrea a sí misma en función de las estéticas y los valores que cada cultura privilegia, revelando que es una verdadera caverna de Alí Babá, cuyos tesoros nunca se extinguen.

[...]

FONTE: LLOSA, M. V. Uma novela para el siglo XXI. Letras Libres, Madrid, 31 jan. 2005. Disponível em: <https://www.letraslibres.com/mexico-espana/una-novela-el-siglo-xxi>. Acesso em: 15 set. 2018.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O movimento literário do Barroco é uma manifestação dos conflitos e das contradições que agitaram a vida europeia nos âmbitos político, social e religioso.

• O Barroco surge da tensão entre a razão, impulsionada pelo Renascimento, e a fé religiosa. Há uma exaltação dos sentimentos e a religiosidade é expressa de forma dramática e intensa.

• A arte barroca assume um viés contraditório, instável, pessimista, tal como o retrato de sua época.

• O romance moderno inicia com a grande obra Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, expoente máximo da literatura espanhola.

• Na sociedade em que Don Quijote de la Mancha foi escrito há uma conexão entre crenças e dúvidas, ilusões e desejos interrompidos que marcam uma profunda tensão social e cultural.

• O romance de Cervantes evoca interpretações variadas, podendo ser caracterizado como uma paródia dos livros de cavalaria que contrapõe a realidade com os ideais imaginados pelo protagonista. A "loucura" de Quixote é capaz de provocar divertimentos, transformar o mundo e torná-lo mais justo. Por outro lado, enfatiza o sentido trágico da vida humana.

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AUTOATIVIDADE

1 Leia atentamente o trecho do emblemático Capítulo VIII de Dom Quixote de La Mancha, "La aventura de los molinos de viento”.

Capítulo VIII

Del buen suceso que el valeroso Don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación

En esto descubrieron treinta o cuarenta molinos de viento que hay en aquel campo, y así como Don Quijote los vió, dijo a su escudero:

- La ventura va guiando nuestras cosas mejor de lo que acertáramos a desear; porque ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o poco más desaforados gigantes con quien pienso hacer batalla, y quitarles a todos las vidas, con cuyos despojos comenzaremos a enriquecer: que esta es buena guerra, y es gran servicio de Dios quitar tan mala simiente de sobre la faz de la tierra.

- ¿Qué gigantes? dijo Sancho Panza.

- Aquellos que allí ves, respondió su amo, de los brazos largos, que los suelen tener algunos de casi dos leguas.

- Mire vuestra merced, respondió Sancho, que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que volteadas del viento hacen andar la piedra del molino.

- Bien parece, respondió Don Quijote, que no estás cursado en esto de las aventuras; ellos son gigantes, y si tienes miedo quítate de ahí, y ponte en oración en el espacio que yo voy a entrar con ellos en fiera y desigual batalla.

Y diciendo esto, dio de espuelas a su caballo Rocinante, sin atender a las voces que su escudero Sancho le daba, advirtiéndole que sin duda alguna eran molinos de viento, y no gigantes aquellos que iba a acometer. Pero él iba tan puesto en que eran gigantes, que ni oía las voces de su escudero Sancho, ni echaba de ver, aunque estaba ya bien cerca, lo que eran; antes iba diciendo en voces altas:

- Non fuyades, cobardes y viles criaturas, que un solo caballero es el que os acomete. Levantóse en esto un poco de viento y las grandes aspas comenzaron a moverse, lo cual visto por Don Quijote, dijo: pues aunque mováis más brazos que los del gigante Briareo, me lo habéis de pagar.

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Y en diciendo esto, y encomendándose de todo corazón a su señora Dulcinea, pidiéndole que en tal trance le socorriese, bien cubierto de su rodela, con la lanza en el ristre, arremetió a todo el galope de Rocinante y embistió con el primero molino que estaba delante; y dándole una lanzada en el aspa, la volvió el viento con tanta furia, que hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al caballero, que fue rodando muy maltrecho por el campo. Acudió Sancho Panza a socorrerle, a todo el correr de su asno, y cuando llegó halló que no se podía menear: tal fue el golpe que dio con él Rocinante.

—¡Válame Dios! —dijo Sancho—. ¿No le dije yo a vuestra merced que mirase bien lo que hacía, que no eran sino molinos de viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros tales en la cabeza?

—Calla, amigo Sancho —respondió don Quijote—, que las cosas de la guerra más que otras están sujetas a continua mudanza; cuanto más, que yo pienso, y es así verdad, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha vuelto estos gigantes en molinos, por quitarme la gloria de su vencimiento: tal es la enemistad que me tiene; mas al cabo al cabo han de poder poco sus malas artes contra la bondad de mi espada.

—Dios lo haga como puede —respondió Sancho Panza.

Y, ayudándole a levantar, tornó a subir sobre Rocinante, que medio despaldado estaba. Y, hablando en la pasada aventura, siguieron el camino del Puerto Lápice, porque allí decía don Quijote que no era posible dejar de hallarse muchas y diversas aventuras, por ser lugar muy pasajero; sino que iba muy pesaroso, por haberle faltado la lanza; y diciéndoselo a su escudero, le dijo:

—Yo me acuerdo haber leído que un caballero español llamado Diego Pérez de Vargas, habiéndosele en una batalla roto la espada, desgajó de una encina un pesado ramo o tronco, y con él hizo tales cosas aquel día y machacó tantos moros, que le quedó por sobrenombre «Machuca», y así él como sus decendientes se llamaron desde aquel día en adelante «Vargas y Machuca». Hete dicho esto porque de la primera encina o roble que se me depare pienso desgajar otro tronco, tal y tan bueno como aquel que me imagino; y pienso hacer con él tales hazañas, que tú te tengas por bien afortunado de haber merecido venir a vellas y a ser testigo de cosas que apenas podrán ser creídas.

—A la mano de Dios —dijo Sancho—. Yo lo creo todo así como vuestra merced lo dice; pero enderécese un poco, que parece que va de medio lado, y debe de ser del molimiento de la caída.

—Así es la verdad —respondió don Quijote—, y si no me quejo del dolor, es porque no es dado a los caballeros andantes quejarse de herida alguna, aunque se le salgan las tripas por ella.

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—Si eso es así, no tengo yo que replicar —respondió Sancho—; pero sabe Dios si yo me holgara que vuestra merced se quejara cuando alguna cosa le doliera. De mí sé decir que me he de quejar del más pequeño dolor que tenga, si ya no se entiende también con los escuderos de los caballeros andantes eso del no quejarse.

No se dejó de reír don Quijote de la simplicidad de su escudero; y, así, le declaró que podía muy bien quejarse como y cuando quisiese, sin gana o con ella, que hasta entonces no había leído cosa en contrario en la orden de caballería […]

FONTE: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Real Academia Española, 1605. Disponível em: <https://cvc.cervantes.es/literatura/clasicos/quijote/edicion/parte1/cap01/default.htm>. Acesso em: 10 set. 2018.

a) Neste episódio, como se relacionam a realidade e a ficção?

b) De que forma as novelas de cavalaria influenciaram Dom Quixote?

2 Considerando as discussões apresentadas no Tópico 1 e o fragmento do Capítulo VIII de Dom Quixote de La Mancha, evidenciado na questão acima, analise as asserções a seguir.

I. Na passagem destacada, Sancho Pança descobre que os moinhos de vento são gigantes dispostos a guerrear.

II. Dom Quixote, em seu delírio, representa, de certa forma, a rebeldia da imaginação e a necessidade de transformação diante dos obstáculos intransponíveis.

III. O idealismo que move Dom Quixote também o transforma numa metáfora sobre a condição humana, um retrato dos desafios individuais.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) I e II, apenas.c) ( ) II e III, apenas.d) ( ) I e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 (ENADE, 2017)

TEXTO 1

Que trata de la primera salida que de su tierra hizo el ingenioso don Quijote.

Hechas, pues, estas prevenciones, no quiso aguardar más tiempo a poner en efecto su pensamiento, apretándole a ello la falta que él pensaba que hacía en el mundo su tardanza, según eran los agravios que pensaba deshacer, tuertos que enderezar, sinrazones que enmendar, y abusos que mejorar, y deudas

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que satisfacer; y así, sin dar parte a persona alguna de su intención, y sin que nadie le viese, una mañana, antes del día (que era uno de los calurosos del mes de Julio), se armó de todas sus armas, subió sobre Rocinante, puesta su mal compuesta celada, embrazó su adarga, tomó su lanza, y por la puerta falsa de un corral, salió al campo con grandísimo contento y alborozo de ver con cuánta facilidad había dado principio a su buen deseo.

FONTE: CERVANTES, M. El ingenioso hidalgo don Quijote de La Mancha. Edición del IV Centenario. Real Academia de La Lengua Española. São Paulo: Prol Gráfica, 2004.

TEXTO 2

FONTE: PORTINARI, C. Dom Quixote a cavalo com lança e espada. In: CERVANTES, M.; PORTINARI, C; DRUMMOND, C. Dom Quixote. Rio de Janeiro: DiaGraphis, 1973.

TEXTO 3

O Esguio Propósito

Caniço de pescafisgando no ar,gafanhoto montadoem corcel magriz,espectro de grilocingindo loriga,fio de linhaà brisa torcido,relâmpagoingênuofurorde solitárias horas indormidasquando o projeto invade a noite obscura.

EsporeiaO cavalo,EsporeiaO sem-fim

FONTE: DRUMMOND, C. O Esguio Propósito In: CERVANTES, M.; PORTINARI, C; DRUMMOND, C. Dom Quixote. Rio de Janeiro: DiaGraphis, 1973.

Considerando os três textos apresentados, assinale a opção correta.

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2017/32_LET_POR_ESP_LICENCIATURA_BAIXA.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2019.

a) ( ) Há, nos três textos, a transposição de um sistema significante a outro (romance/imagem/poema), o que inviabiliza uma leitura das obras separadamente, uma vez que elas mantêm uma relação dialógica.

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b) ( ) A intersemiose das três obras abarca o sitema linguístico e o visual, mas se percebe, ao correlacioná-las, uma superioridade da palavra sobre a imagem, pois o texto 1 descreve detalhes que não podem ser vistos no texto 2.

c) ( ) O cavaleiro retratado de forma retorcida no texto 2 recupera “mal compuesta celada” de Dom Quixote no texto 1, assim como o texto 3 representa graficamente esse desequilíbrio por meio da irregularidade da disposição dos versos.

d) ( ) Nos textos 2 e 3, a relação dialógica atinge o seu grau máximo, pois em ambos a imagem de Dom Quixote é desconstruída pela representação do desarranjo ou da ruptura entre a realidade e o devaneio, o que não se esboça no texto 1.

e) ( ) O impulso, os sonhos e a desconexão com a realidade são traços de Dom Quixote presentes no texto 1 e ausentes nas metáforas criadas nos textos 2 e 3, que estampam um típico cavaleiro medieval.

4 A partir da releitura dos fragmentos do Capítulo VIII de Dom Quixote de La Mancha, elabore um glossário bilíngue com 10 palavras, na direção espanhol-português, como no exemplo abaixo. Para esclarecer o significado de determinada palavra, consulte o dicionário bilíngue da Real Academia Española e o Word Reference, disponíveis online em: http://www.rae.es e www.wordreference.com, entre outros.

Espuelas esporas

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TÓPICO 3

NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃONo início da fase barroca da cultura clássica, o teatro se consagrou como

um gênero privilegiado, um fenômeno urbano, social, lúdico e cultural, que reunia diversos membros da sociedade. Surgiram novas formas dramáticas sob o influxo dos contrastes e das contradições, do estado de tensão entre a razão e a fé religiosa, das incertezas do ser humano, que caracterizam a essência antagônica das produções literárias.

Daremos particular destaque a Shakespeare, dramaturgo inglês e aos dramaturgos espanhóis Lope de Vega e Calderón de La Barca, os mais representativos do período Barroco. Suas peças teatrais distanciam-se formalmente do rígido cânone clássico e abordam temáticas diversas, incluindo questões sociais e políticas, os comportamentos humanos, a transitoriedade e a complexidade da vida. Como a proposta deste livro didático foi pensada para que você conheça as várias faces que a literatura assume em suas relações com o contexto histórico e com as culturas humanas, encerraremos nossas reflexões no âmbito da segunda metade século XVII, destacando como o dramaturgo francês Molière interagiu com o seu tempo e teve suas manifestações influenciadas pela vertente estética do Classicismo.

Sendo assim, iniciaremos o próximo subcapítulo apresentando William Shakespeare, o maior dramaturgo da literatura universal, e uma de suas peças mais famosas: Hamlet, príncipe da Dinamarca.

2 HAMLET DE SHAKESPEARE

William Shakespeare (1564-1616) começou a vida literária escrevendo poemas, mas depois manifestou grande interesse pelo teatro, exercendo as profissões de ator, escritor e empresário, tornando-se sócio da companhia teatral Lord Chamberlain e do Globo Theather, a sala de espetáculos mais importante de Londres na época. Os estudiosos atribuem a Shakespeare um conjunto de 36 peças, entre tragédias, comédias, dramas históricos e pastoris. Dentre as produções, detacam-se as peças que iniciam o ciclo sobre a história da Inglaterra, Ricardo III e a A comédia dos erros; as tragédias Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear; e as comédias Sonho de uma noite de verão, Muito barulho por nada, A megera domada, O mercador de Veneza.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

Do vasto conjunto das obras, enfatizaremos a tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, peça que faz parte da fase de maturidade do autor, dos textos escritos entre 1600 e 1608, que têm em comum os conflitos e as contradições da natureza humana, a expressão do sentido trágico da existência. Segundo D’Onofrio (1999), a personagem Hamlet foi construída a partir de uma antiga lenda escandinava escrita pelo dinamarquês Saxo Grammaticus, no início do século XIII, nas suas Histórias dânicas. Shakespeare aproveitou a difusão da história, conhecida como “peça de vingança”, e criou a personagem envolta pelos temas da dúvida, da astúcia e da vingança, mas que reflete sobre seus atos e sobre a vida, não sabe como agir e analisa as possíveis consequências das ações.

A peça está dividida em cinco atos, contendo várias cenas que se ambientam no castelo de Elsenor — residência real; na casa de Polônio — lorde camareiro; na planície perto do porto e no cemitério. O drama se desenrola a partir do surgimento do fantasma do rei Hamlet que aparece para pedir vingança de sua morte ao príncipe Hamlet, filho homônimo do falecido rei. Abalado com a revelação do assassino, o herdeiro do trono finge insanidade para executar melhor o seu plano. A incerteza e a indecisão tomam conta da personagem. Após o convencimento de que o tio Cláudio armou o crime para se livrar do irmão, casar com a rainha Gertrudes e tomar posse do reino, Hamlet vive um conflito de consciência. Perceba, abaixo, no fragmento do ato III (cena 3), a presença do drama barroco da dúvida.

HAMLET: Eu devo agir é agora; ele agora está rezando.Eu vou agir agora – e assim ele vai pro céu;E assim estou vingado – isso merece exame.Um monstro mata meu pai e, por isso,Eu, seu único filho, envio esse canalha ao céu.Oh, ele pagaria por isso recompensa – isso não é vingança.Ele colheu meu pai impuro, farto de mesa,Com todas suas faltas florescentes, um pleno maio.E o balanço desse aí – só Deus sabe,Mas pelas circunstâncias e o que pensamosSua dívida é grande. Eu estarei vingadoPegando-o quando purga a alma,E está pronto e maduro para a transição?Não.Pára espada, e espera ocasião mais monstruosa!Quando estiver dormindo bêbado, ou em fúria,Ou no gozo incestuoso do seu leito;Jogando, blasfemando, ou em qualquer atoSem sombra ou odor de redenção.Aí derruba-o, pra que seus calcanhares deem coices no céu,E sua alma fique tão negra e danadaQuanto o inferno, pra onde ele vai. Minha mãe me espera;Este remédio faz apenas prolongar tua doença; (Sai.) (SHAKESPEARE, 2003, p. 67- 68).

A peça shakespeareana apresenta uma atmosfera trágica que envolve constantemente o leitor, o espectador, numa série de reflexões sobre a vida e a morte, algumas delas incorporadas e repetidas até hoje através de célebres frases: “Há algo de podre no reino da Dinamarca” (ato I, cena 4), expressão de Marcelo,

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TÓPICO 3 | NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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sentinela do castelo, ao perceber a conversa entre o príncipe e o fantasma do pai; “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia” (ato I, cena 5), proferida por Hamlet ao amigo que ficou espantado com o aparecimento do rei; “Ser ou não, eis a questão!” (ato 3, cena I), famosa e profunda indagação existencial que figura entre outras expressões. Comumente, a história do princípe Hamelt é definida como a tragédia da vingança, assim como a peça Otelo versa sobre o drama do ciúme e Romeu e Julieta é tida como a tragédia amorosa de dois jovens.

DICAS

Leia a tragédia na íntegra procurando uma comprensão mais ampla do texto. Proponha aos seus alunos uma discussão coletiva sobre as singularidades da obra, sugerindo para pequenos grupos uma leitura dramática das cenas escolhidas, fazendo com que eles transformem essa leitura em ação e se imaginem nas situações vivenciadas pelas personagens. Você também pode estabelecer uma relação dialógica com a linguagem cinematográfica, pois Hamlet já foi adaptado várias vezes para o cinema. Você já assistiu alguma versão? Para ampliar o seu repertório de leituras, recomendamos o filme de Laurence Kerr Olivier, lançado em 1948, e a versão do cineasta Franco Zeffirelli, lançada em 1990.

(a) (b)

FONTE: (a) <https://s3.amazonaws.com/criterion-production/films/2f448c30ac7b06febb22d66b5ff974a7/IbyM57yhe0Whunlq0YhnaVhNeqD9Hi_large.jpg>; (b) <https://www.movieposter.com/posters/archive/main/67/MPW-33904>. Acesso

em: 20 set. 2018.

• HAMLET. Direção: Laurence Kerr Olivier. Inglaterra: Two Cities Films Ltd.: LW Editora, 1948.155 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uuxyOVDnqkM.

• HAMLET. Direção: Franco Zeffirelli. Estados Unidos: Warner Bross Pictures: Columbia Pictures, 1990. 130 min. Assista ao trailer em: https://www.youtube.com/watch?v=Chf_EyRwVHI.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

3 LOPE DE VEGA E CALDERÓN DE LA BARCA

Outro profícuo dramaturgo do teatro ocidental foi Lope Félix de Vega Carpio, representante do Século de Ouro, como também é conhecido o período entre o Renascimento e o surgimento do Barroco, que impulsionou as produções literárias de grandes escritores espanhóis como Miguel de Cervantes e Calderón de Barca.

Lope de Vega, além de poeta e prosista, escreveu mais de mil dramas, além das 468 peças que chegaram até nós. Seus textos retratam histórias e lendas da Espanha, o Velho e o Novo Testamentos, costumes de sua época, motivos mitológicos e pastoris. Assim como Shakespeare, Lope de Vega não se submeteu à imposição dos cultuadores do Classicismo que, a partir da Poética de Aristóteles, defendiam a tradição grega e latina, a regra das três unidades, ou seja, as obras deveriam respeitar as unidades de espaço (história concentrada no mesmo lugar, sem mudanças espaciais); tempo (a duração da ação não pode exceder a 24 horas) e ação (as personagens são envolvidas numa só intriga).

As mudanças efetuadas pelo dramaturgo espanhol, defendidas na obra Arte nuevo de hacer comédias en este tiempo, tornaram suas tramas mais dinâmicas. Obras como Fuenteovejuna (peça aqui destacada), La dama boba, El castigo sin venganza, El perro del hortelano, Lo fingido verdadero formam parte dos textos clássicos do teatro espanhol.

Fuenteovejuna trata-se de uma obra de caráter pedagógico com conteúdo social e reivindicativo, cujos temas enfatizam o poder coletivo, o abuso de poder e traição, a defesa da monarquia no lugar do velho sistema feudal, a honra, o amor, a tragédia. É um drama histórico, composto por volta de 1613, baseado em eventos reais que aconteceram em Córdoba, na cidade de Fuenteovejuna, no final do século XV, durante o reinado dos reis católicos. O comandante da Ordem de Calatrava, Fernán Gómez de Guzmán, governou a cidade com tirania, exigindo mais impostos e serviços do que estipulava, além de ser conhecido por cometer abusos sexuais com as mulheres do povoado. Revoltado, o povo se rebelou e o matou com crueldade.

Lope de Vega conheceu o episódio durante suas ávidas leituras sobre a história da Espanha e, a partir daí, estruturou sua peça em três atos. O primeiro, apresenta o comandante e suas más intenções, surge um triângulo amoroso entre o comandante Fernán Gómez, a lavradora Laurencia e Frondoso, terminando com o confronto entre Frondoso e Fernán. No segundo ato, a intriga se desenvolve, Laurencia e Frondoso se casam, e o comandante decide se vingar, raptando a noiva. Depois de lutar contra Fernán, Laurencia consegue voltar ao povoado. Finalmente, no terceiro ato, a cidade se revolta e mata o tirano. Acompanhe, abaixo, o breve diálogo de algumas personagens sobre o abuso de poder contra o povo e sobre o plano de vingança como forma controversa de justiça social, de legítima defesa da dignidade.

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TÓPICO 3 | NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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JUAN ROJO: ¿Qué es lo que quieres tú que el pueblo intente?REGIDOR: Morir, o dar la muerte a los tiranos,pues somos muchos, y ellos poca gente.BARRILDO: ¡Contra el señor las armas en las manos!ESTEBAN: El rey sólo es señor después del cielo,y no bárbaros hombres inhumanos.Si Dios ayuda nuestro justo celo,¿qué nos ha de costar?

MENGO: Mirad, señores,que vais en estas cosas con recelo.Puesto que por los simples labradoresestoy aquí que más injurias pasan,más cuerdo represento sus temores.JUAN ROJO: Si nuestras desventuras se compasan,para perder las vidas, ¿qué aguardamos?Las casas y las viñas nos abrasan,¡tiranos son! ¡A la venganza vamos! (LOPE DE VEGA, p. 76).

DICAS

O filme Lope (2010), de Andrucha Waddington, baseado na vida de Lope de Vega, apresenta a juventude do escritor espanhol e o início de sua carreira como dramaturgo.

Nele, também podemos observar o modo de fazer teatro e os espaços cênicos que surgiram na Espanha no século XVI, designados como Corral de comedias, locais improvisados nos pátios de casas ou pousadas.

FONTE: <https://vertentesdocinema.com/wp-content/uploads/2011/03/Lope_poster.jpg>. Acesso em: 20 set. 2018.

• LOPE. Direção: Andrucha Waddington. Rio de Janeiro: Conspiração filmes, 2010. 106 min.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

O dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca nasceu em Madri em 1600, estudou com os jesuítas nas Universidades de Alcalá e Salamanca, foi cavaleiro da Ordem de Santiago, soldado na Catalunha e sacerdote a partir dos 50 anos. Como dramaturgo, deu continuidade às investidas de Lope de Vega, adotando um tom mais profundo, carregado de ornamentos, cuja ação dramática apresenta conceitos filosóficos de caráter simbólico, ideológico e doutrinário, impregnada de um espírito melancólico. Seus personagens são mais puros e idealizados, por vezes chegam a se distanciar da vida cotidiana. As 120 comédias e os 80 autos sacramentais de Calderón marcam o ápice da comédia barroca espanhola.

Em sua peça mais famosa, A vida é sonho (1635), predomina o conflito barroco do desengano humano, sob o influxo da concepção platônica. O drama gira em torno da privação da liberdade de Segismundo por seu pai, o rei Basílio da Polônia, por medo de que as previsões de um oráculo consultado sejam cumpridas. Segismundo, o protagonista, imbuído de um pessimismo profundo, vive encarcerado no mundo dos sonhos, como é possível conferir no trecho a seguir, um dos mais famosos do teatro espanhol, no qual o personagem questiona sobre o sentido da vida, reflete sobre a realidade e o sonho.

SEGISMUNDO: Es verdad, pues: reprimamos esta fiera condición, esta furia, esta ambición, por si alguna vez soñamos. Y sí haremos, pues estamos en mundo tan singular, que el vivir solo es soñar; y la experiencia me enseña, que el hombre que vive sueña lo que es, hasta despertar.

Sueña el rey que es rey, y vive con este engaño mandando, disponiendo y gobernando; y este aplauso, que recibe prestado, en el viento escribe y en cenizas le convierte la muerte (¡desdicha fuerte!): ¡que hay quien intente reinar viendo que ha de despertar en el sueño de la muerte!

Sueña el rico en su riqueza, que más cuidados le ofrece; sueña el pobre que padece su miseria y su pobreza; sueña el que a medrar empieza, sueña el que afana y pretende, sueña el que agravia y ofende, y en el mundo, en conclusión, todos sueñan lo que son, aunque ninguno lo entiende.

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TÓPICO 3 | NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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Yo sueño que estoy aquí, destas prisiones cargado; y soñé que en otro estado más lisonjero me vi. ¿Qué es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, y los sueños, sueños son (CALDERÓN DE LA BARCA, 2001, p 75-76).

Vimos que Lope e Calderón lançaram as bases do moderno teatro espanhol. O primeiro, segundo D’Onofrio (1990, p. 325):

Mais prolífero, mais alegre, mais próximo do ideal renascentista da arte como expressão da natureza eufórica; o segundo, mais reflexivo, mais técnico, mais aristocrático, mais atormentado pela problemática barroca da luta entre a liberdade humana e o determinismo da Graça divina”.

Ambos abordam questões de honra, ciúmes, religião e tragédias amorosas. A literatura do Barroco e sua problemática se estendeu para os mais

variados gêneros literários, configurando-se como expressão de uma tensão espiritual e social propagada de forma mais ou menos idêntica, em vários países. O poeta Gregório de Matos, conhecido como “Boca do Inferno”, pelos contundentes versos satíricos; e Padre Antônio Vieira, com suas cartas e sermões religiosos, por exemplo, são os representantes mais expressivos em língua portuguesa.

Note a seguir, nos versos de Gregório de Matos (s.d., p. 4-5), a crítica do eu lírico à organização social da Bahia, cidade explorada pelo estrangeiro (brichote) que aporta na região com suas naus (máquina mercante) para negociar mercadorias.

À cidade da Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mim abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote!

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

DICAS

Caetano Veloso musicou o poema de Gregório de Matos no álbum Transa, na década de 1970. Ouça a canção, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=_amoeHb1Xay, e observe a recriação artística do texto barroco.

4 INTERFACES DO CLASSICISMO: ESCOLA DE MULHERES DE MOLIÈRE

O século VII foi marcado fortemente pelas manifestações literárias do Barroco. Por outro lado, o teatro francês desconstruiu tal evidência com a vigência do Classicismo. A arte como imitação da natureza e dos modelos da Antiguidade são os princípios desse movimento, destaca Faria (1999), mas os espíritos críticos, provenientes do culto à razão, impedem que os dramaturgos franceses imitem servilmente os modelos oferecidos pelos mestres do passado, constituindo características formais e ideológicas bastante peculiares. Para Carpeaux (2012b, p. 51), o "Classicismo constitui a interrupção antitética que atenua o Barroco, sem eliminá-lo de todo". Os principais dramaturgos do teatro clássico são Molière (1622-1673), Jean Racine (1639-1699) e Pierre Corneille (1606-1684).

Conheceremos um pouco mais sobre o teatro de Jean-Baptiste Poquelin, conhecido como Molière, que tem raízes na tradição literária italiana da Commedia dell’Arte, uma manifestação teatral popular que privilegia o improviso, o efeito cômico, a sagacidade ou a estupidez das personagens.

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TÓPICO 3 | NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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Segundo D’Onofrio (1990, p. 325), a Commedia dell’Arte percorreu as principais cidades da Península da Itália, chegando até a França, durante os século XVII e XVIII.

Tratavam-se de peças improvisadas, herança do Mimo da cultura grega, forma dramática que dava muita importância à gesticulação: a partir de um esquema de texto escrito, deixava-se aos atores a liberdade de improvisar diálogos, ao sabor dos dialetos regionais e dos costumes locais. A comicidade era garantida pelas “máscaras”, tipos fixos cujo simples aparecimento em cena já provocava as gargalhadas da massa popular: o Capitann Spaventa (oficial espanhol brutal e fanfararão), o Mattamoro (exterminador dos mouros), o Dottore (advogado gago e charlatão), o Pantalone (comerciante vítima as burlas da esposa e do amante dela, Arlechini (criado esperto), o Brighella (criado “burro”, saco de pancadas), o Pulcinella (sujeito falador e mentiroso), a Colombina (moça bonita e leviana) (D’ONOFRIO, 1990, p. 325).

Vale destacar que os mimos, herança da cultura grega, eram atores populares que iam de cidade em cidade levando histórias cômicas. Esses atores desenvolveram uma linguagem gestual originando o que atualmente conhecemos como mímica.

NOTA

FIGURA 5 – PERSONAGENS DA COMMEDIA DELL’ARTE.

FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/692006298967036101/>. Acesso em 5 out. 2018.

Jean-Baptiste Poquelin nasceu em Paris, em janeiro de 1622. Estudou Direito para se tornar um advogado, mas preferiu fundar sua própria companhia de teatro (L’Illustre-Théâtre), adotando o pseudônimo de Molière. Viveu numa época em que a profissão de ator era marginalizada, sobretudo pela Igreja Católica. Molière, apesar das dificuldades enfrentadas, conseguiu dedicar sua vida ao teatro, sendo autor, ator, diretor e empresário. Em sua arte dramática, destaca-se a comédia, nos moldes da comédia de costumes dos latinos Plauto e Terêncio.

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

A primeira peça de sátira social escrita pelo dramaturgo francês foi As precisosas ridículas (1659), na qual ironiza os comportamentos das damas da sociedade e dos artistas que frequentam os salões literários de Paris. A peça Tartufo (1664), censurada por parte do público, satiriza a hipocrisia dos devotos. Outras peças fazem parte de suas produções, como Don Juan (1665), em que questiona a fidelidade conjugal, entre outras convenções sociais; e O Misantropo (1666), uma denúncia sobre a falsa moralidade da sociedade, considerada a obra-prima do autor. Ademais, destacam-se o Avarento (1668) e O doente imaginário (1673).

Escola de Mulheres (1662), peça representada a partir de 1º de junho de

1663, também faz parte deste prolífico conjunto de textos literários satíricos. A comédia, que enfatizaremos a seguir, é composta por cinco atos e aborda o lugar das mulheres na sociedade do século XVII, criticando a ordem social, o casamento, os meios de acesso da mulher à educação, a moral da época. A peça apresenta Inês, uma menina ingênua e submissa, que é forçada a se casar com Arnolfo, um homem velho que ela não gosta, mas que a criou desde sua infância. Contando com a supervisão de dois servos, Arnolfo financia a educação de Inês, tornando-se seu guardião. Apesar do controle, Arnolfo teme ser um marido enganado. Acompanhe abaixo o diálogo entre as persoangens.

CENA II: Arnolfo e Inês

ARNOLFO (Sentado)

Inês, para me escutar, põe-te mais a meu gosto, levanta um pouco a testa e vira um pouco o rosto.

(Colocando o dedo na fronte). Agora, olha bem para mim enquanto falo e presta atenção às menores palavras. Vou me casar com você, Inês; cem vezes por dia você deverá agradecer esta honra bendita, lembrando a baixeza onde você nasceu, ao mesmo tempo que admira a minha bondade, que a eleva dessa vil condição de camponesa pobre à dignidade burguesa, para partilhar do leito e dos abraços conjugais de um homem que mais de vinte vezes recusou a outras o coração e a honra que agora te oferece. Você jamais deverá esquecer, repito, quão insignificante seria sem essa gloriosa ligação conjugal, de modo que a lembrança faça com que você sinta melhor a condição que vou colocá-la para que jamais venha me arrepender do que faço agora, O casamento, Inês, não é uma piada. A condição de esposa traz deveres austeros; não pretendo erguê-la nessa posição para deixá-la livre aproveitando a vida. Teu sexo nasceu pra dependência. A onipotência é para quem tem barba. Ainda que sejamos duas partes de um mesmo todo, as duas partes não são nada iguais. Uma é suprema: outra, subalterna. Uma, em tudo, tem que submeter-se à outra, que comanda. A obediência que o soldado bem disciplinado deve a quem comanda, que o criado demonstra a seu patrão, a criança a seu pai, um frade a seus superiores, não pode nem sequer se comparar à odediência, à docilidade, à humildade e ao profundo respeito que a mulher tem que ter pelo marido, chefe, senhor e dono! Quando ele a olhar com olhar severo, o dever dela é baixar o seu, sem jamais fitá-lo cara a cara, exceto quando ele a favorecer com uma mirada mais terna. As nossas mulheres, hoje em dia, não compreendem isso. Mas não se deixe levar pelo exemplo das outras. Procure não imitar essas tristes levianas de

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TÓPICO 3 | NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS

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quem a cidade inteira censura as libertinagens e não se deixe tentar pelo maligno, isto é, não dê ouvido a nenhum peralta. Lembre-se de que, ao fazê-la metade de mim mesmo, ponho minha honra toda em suas mãos, e que essa honra é frágil, e que se fere à toa, e que com este assunto não se brinca. No inferno há caldeirões imensos fervendo eternamente. É nele que se lançam para sempre mulheres de vida desregrada. Eu não te conto contos; portanto, guarda em teu coração o que eu te digo. Se você guardar a lição sinceramente e evitar qualquer leviandade, ah, tua alma será branca e sedosa; como um lírio! Mas se você não se importar com a hora terá a alma mais preta que carvão. Todos te acharão uma mulher nojenta e chegará o dia em que, pertencendo ao demônio, irás ferver no inferno por toda eternidade. Que Deus não o permita! Faça uma reverência. Assim como uma noviça que entra no convento deve aprender de cor os seus deveres, a mulher que casa deve fazer o mesmo. Tenho aqui um escrito importante, que te ensinará o ofício de esposa. Ignora o autor – alguma boa alma. Desejo que isso seja tua única leitura. Toma. (Levanta-se.) Vejamos se você lê bem (MOLIÈRE,1980, p. 203-204).

Arnolfo, com suas palavras tirânicas e opressoras, impõe suas vontades, sua proposta de casamento que impede qualquer desejo de independência e realização pessoal de Inês. Mas, com o passar do tempo, Inês começa a se interessar por Horácio, um jovem que também a ama. Horácio, entretanto, sem saber que Arnolfo é o guardião de Inês, acaba confidenciando o seu amor e o desejo de casar-se com ela secretamente. Arnolfo, num momento muito cômico da peça, sofre e suporta ouvir suas confidências, que apenas aumentam seu ciúme e o seu comportamento patético. Finalmente, Inês se rebela contra a ordem estabelecida e as tradições que alienam as mulheres, usando truques para lutar contra a sociedade patriarcal opressiva. Leia o trecho em que ela frustrará os planos de Arnolfo.

[…]

ARNOLFOMinha cara a amedronta, safadinha? Não parece te dar muito prazer minha presença. É evidente que empato os pequenos projetos da aventura amorosa. (Inês procura Horácio). Não adianta gastar teus olhos para ver se encontra o sedutor. Ele já está longe demais para vir te ajudar. Ah! Ah! Tão mocinhos ainda e já com tantos truques. Tua simplicidade, que nunca teve igual, pergunta ingenuamente se os filhos se fazem pelo ouvido, no entanto, marca encontros noturnos e sabe se esgueirar sem um ruído para seguir o amante! E como usa a língua quando está com ele! Deve ter frequentado uma excelente escola! Que professor, diabo, te ensinou tanta coisa em tempo assim tão curto! Também não tem mais medo de algo do outro mundo? Parece que o galanteador te dá coragem para a noite toda. Fingida! Como é que conseguiu tramar tantas perfídias? Agir assim comigo depois de tudo que lhe fiz de bem. Alimentei no seio uma serpente e, assim que cresceu, demonstra gratidão mordendo a mim, que só lhe dei carinho.

INÊSPor que me grita assim?

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UNIDADE 2 | A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII

ARNOLFOVai começar a dizer que estou errado!

INÊSNão vejo mal em nada do que fiz.

ARNOLFOAh, então ter um amante não é nada de mal?

INÊSÉ um homem que garantiu que vai casar comigo. Segui as lições que o senhor me ensinou: é preciso casar pro amor não ser pecado.

ARNOLFOÉ; mas eu é quem pretendia fazê-la minha esposa. E me parece que quando conversei contigo deixei isso bem claro!

INÊSDeixou. Mas vou falar a verdade: eu acho ele muito mais agradável. Com o senhor o casamento é uma coisa penosa e aborrecida, e quando o vejo falar de casamento tenho a impressão de coisa insuportável. Quando, porém, é ele que descreve a vida de casado, eu vejo um quadro tão cheio de delícias que quero casar logo.

[…]

INÊSRealmente o senhor tomou todos os cuidados para que eu recebesse educação esmerada. Pensa então que me iludo a ponto de saber que sou uma idiota? Me envergonho de mim; mas, na idade em que estou, não quero mais passar por imbecil – se puder.

[…] (MOLIÈRE, 1980, p. 246-251).

O século XVII marca o início da emancipação das mulheres nos meios aristocrático e intelectual. Neste contexto, o teatro de Molière assume uma função importante ao problematizar a hipocrisia e a hostilidade das relações sociais. A peça Escola de mulheres, particularmente, está na vanguarda do protesto feminista contra a brutalidade masculina e a restrição tirânica de casamento.

No teatro, desde a Antiguidade, a sátira é um recurso importante para promover a reflexão crítica sobre comportamento humano. Outros teatrólogos se inspiraram nessa tradição, assim como Gil Vicente, no Humanismo português; Molière no teatro clássico francês e Martins Pena, no teatro do Romantismo brasileiro, e tantos outros escritores modernos e contemporanêos que produzem sátiras em diferentes gêneros literários.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• O teatro figura como uma das expressões literárias mais importantes do Barroco, momento em que as tragédias gregas são prestigiadas.

• O predomínio das paixões sobre a razão, os enganos das aparências, a violência do mundo, as contradições da natureza humana são temas que perpassam pela tragédia de Hamlet, texto escrito pelo dramaturgo inglês Shakeaspeare.

• Lope de Vega e Calderón de la Barca, escritores espanhóis do século XVII, foram dramaturgos muito produtivos. Nas peças de Lope de Vega predomina a invenção espontânea, geralmente ocorrem em um ambiente popular e nacional, como visto na peça Fuenteovejuna; enquanto Calderón de la Barca explora temas mais clássicos e introspectivos, predominando o conflito barroco do desengano humano, a exemplo do drama A vida é sonho.

• O teatro clássico é um movimento literário e cultural da segunda metade do século XVII. O dramaturgo francês Molière é mais conhecido por suas comédias de costumes e pela identificação de elementos da Commedia dell'Arte.

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1 Leia a seguir um dos trechos mais expressivos de Hamlet. Trata-se de um tipo especial de texto, chamado de solilóquio. É usado quando um personagem fala consigo mesmo — ou pensa em voz alta.

HAMLET: Ser ou não ser – eis a questão.Será mais nobre sofrer na almaPedradas e flechadas do destino ferozOu pegar em armas contra o mar de angústias –E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;Só isso. E com o sono – dizem – extinguirDores do coração e as mil mazelas naturaisA que a carne é sujeita; eis uma consumaçãoArdentemente desejável. Morrer – dormir –Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!Os sonhos que hão de vir no sono da morteQuando tivermos escapado ao túmulo vitalNos obrigam a hesitar: e é essa reflexãoQue dá à desventura uma vida tão longa.Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,A prepotência do mando, e o achincalheQue o mérito paciente recebe dos inúteis,Podendo, ele próprio, encontrar seu repousoCom um simples punhal? Quem aguentaria fardos,Gemendo e suando numa vida servil,Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –O país não descoberto, de cujos confinsJamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,Nos faz preferir e suportar os males que já temos,A fugirmos pra outros que desconhecemos?E assim a reflexão faz todos nós covardes.E assim o matiz natural da decisãoSe transforma no doentio pálido do pensamento.E empreitadas de vigor e coragem,Refletidas demais, saem de seu caminho,Perdem o nome de ação. (Vê Ofélia rezando.)Mas, devagar, agora!A bela Ofélia!(Para Ofélia.) Ninfa, em tuas oraçõesSejam lembrados todos os meus pecados.

FONTE: SHAKESPEARE, W. Hamlet. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2003.

AUTOATIVIDADE

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Reflita sobre os personagens de Hamlet transcritos no trecho anterior. Interprete o dilema apresentado pelo personagem.

2 No famoso trecho da peça teatral, podemos considerar que o dilema de Hamlet enfatiza

a) ( ) O enfrentamento do sofrimento através da libertação espiritual.b) ( ) A visão teocêntrica das personagens e do mundo.c) ( ) O predomínio da razão sobre as paixões.d) ( ) A natureza humana e suas contradições.e) ( ) A falta de consciência de sua indecisão.

3 Ao compararmos o solilóquio de Hamlet com o de Segismundo em La vida es sueño (1635), de Calderón de la Barca, exposto no Tópico 2, podemos inferir que:

I. Nos dois textos, a vida, a morte e o sonho são percebidos de maneira cética.II. Segismundo, assim como Hamlet, não sabe o que é a vida, se é realidade

ou ficção.III. Para Hamlet, o destino do homem é incontrolável, nada do que ele faz

pode modificá-lo.IV. Está correto o que se afirma em

a) ( ) I, apenas.b) ( ) I e II, apenas.c) ( ) II e III, apenas.d) ( ) I e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

4 (ENADE, 2014)

Considerado um dos maiores escritores de todos os tempos, William Shakespeare deixou uma vasta obra, da qual são mais conhecidas suas peças teatrais. Foi pela grande importância e fama do autor que Richard Appignanesi decidiu adaptar suas peças teatrais, como Hamlet, Romeu e Julieta e Macbeth para os quadrinhos, usando o estilo mangá. Um aspecto interessante dessa adaptação é o fato de Appignanesi realizar uma releitura da obra clássica, mantendo os diálogos e as falas da versão original em inglês.

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FONTE: <http://garotait.com.br>. Acesso em: 30 jul. 2014.

A partir do texto e da ilustração apresentados, e tendo em vista a perspectiva do ensino e a aprendizagem de língua estrangeira, avalie as afirmações a seguir.

I. A associação entre o texto imagético e o texto verbal, nas histórias em quadrinhos (HQ), permite ao aprendiz preencher lacunas de interpretação.

II. O caráter lúdico das HQs pode auxiliar no processo de ensino-aprendizagem de idiomas estrangeiros e literaturas estrangeiras.

III. A articulação entre o ensino de uma língua estrangeira e o de sua respectiva literatura torna os objetos de estudo marcas simbólicas imbuídas de expressão cultural verbal e não verbal.

IV. A série de mangás Shakespeare é um gênero/textual em que se privilegia a linguagem verbal, visto que os diálogos adaptados são em língua estrangeira.

Está correto o que se afirma em:

FONTE: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2014/32_letras_portugues_ingles.pdf. Acesso em: 27 mar. 2019.

a) ( ) I e II, apenas.b) ( ) I e IV, apenas.c) ( ) II e III, apenas.d) ( ) I, III e IV apenas.e) ( ) I, II, III e IV.

5 Ao contrário da tragédia, a comédia é um gênero teatral que geralmente trata de assuntos do cotidiano de forma humorada. Os conflitos se caracterizam por armações, enganos ou confusões e costumam acabar em finais, no mínimo, divertidos. O que o dramaturgo Molière nos conta no século XVII, através da comédia Escola de Mulheres, que ressoa hoje? Que temas podem ser considerados atuais? Qual é a função do teatro nesse contexto?

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UNIDADE 3

LITERATURA E MODERNIDADE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• estudar aspectos gerais do período Neoclássico e do momento ideológico do pensamento iluminista na literatura do século XVIII, que marcou o início da época moderna;

• entender as origens e peculiaridades do movimento literário do Roman-tismo;

• conhecer o contexto histórico e as características literárias do Realismo e do Naturalismo;

• refletir sobre as concepções estéticas do fim do século XIX: o Simbolismo e o Parnasianismo;

• conhecer autores e textos representativos de cada movimento literário;

• ler e analisar criticamente algumas obras da literatura ocidental entre os séculos XVIII e XIX, a fim de reconhecer temáticas e procedimentos esti-lísticos.

Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 - A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO

TÓPICO 2 - A ESTÉTICA ROMÂNTICA

TÓPICO 3 - REALISMO E NATURALISMO

TÓPICO 4 - AS ESTÉTICAS DO FIM DO SÉCULO XIX

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TÓPICO 1

A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃONa Unidade 2, vimos importantes mudanças ocorridas na Europa a partir

do século XVI, especialmente no âmbito das ideias. Durante a Idade Média, a vida social estava diretamente ligada à religião. Esse cenário começou a mudar com o Renascimento cultural e com a Reforma protestante. Com o Barroco surgiu a tensão entre a razão e a fé religiosa. E no século XVIII surgiram dois momentos importantes na literatura: o poético e o ideológico.

No momento poético, segundo Bosi (2006a), a natureza, a vida no campo, os afetos comuns do homem, impulsionados pela tradição clássica e pelas formas bem definidas, viraram modelos de imitação e passaram a fazer parte da obra dos poetas árcades, que adotaram simbolicamente, em referência à Arcádia, antiga região da Grécia habitada por pastores, a tradição dos poetas da antiguidade. O momento ideológico, por sua vez, representa a crítica da burguesia culta aos abusos da nobreza e do clero. Nesta fase, surgiram pensadores que constestaram com veemência os dogmas religiosos e intensificaram o pensamento ocidental sob o prisma da razão.

O pensamento ideológico voltado para o racional surgiu, predominantemente, na França e na Inglaterra e ficou conhecido como Ilustração ou Iluminismo. O período em questão foi denominado Século das Luzes, no qual os intelectuais tiveram como meta "a luta contra a ignorância e a superstição" (D'ONOFRIO, 2007, p. 224). As luzes contrapõem as concepções obscuras dos séculos passados, representam o saber, o conhecimento alcançado através da razão. Convencidos de que:

[...] o desenvolvimento das ciências naturais levaria inevitavelmente o homem a dominar as forças da natureza, os iluministas sonhavam com a ideia de que sociedade humana pudesse ser reorganizada em bases estritamente racionais, banindo-se qualquer tipo de preceito religioso (D’ONOFRIO, 2007, p. 254).

No presente tópico, destacaremos a lírica árcade com os seus temas bucólicos, bem como as tendências do pensamento iluminista e suas contribuições para o entendimento do ser humano e para o campo estético e literário. Enfatizaremos a supremacia racionalista, os principais pensadores e suas obras de cunho didático e moral.

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

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2 PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS

Em meados do século XVIII, a burguesia atingiu a hegemonia econômica e disseminou um pensamento crítico contra os abusos da nobreza e do clero, estabelecendo bases intelectuais que valorizavam as explicações racionalistas sobre as relações entre o ser humano e o mundo. A Revolução Industrial (1760), ocorrida na Inglaterra, e a Revolução Francesa (1789) aconteceram em virtude da ascensão política e econômica da classe burguesa.

No âmbito intelectual, várias obras passaram a questionar diferentes segmentos da vida social. A gravura intitulada O sono da razão produz monstros (1799), do artista espanhol Francisco de Goya, na figura a seguir, é bastante emblemática no que diz respeito à representação das ideias iluministas difundidas na Europa durante o século XVIII.

FONTE: <https://pt.wikiquote.org/wiki/Francisco_Goya#/media/File:Capricho_43,_El_sue%C3%B1o_de_la_raz%C3%B3n_produce_monstruos.jpg>. Acesso em 25 nov. 2018.

FIGURA 1 – O SONO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROS (1799), FRANCISCO DE GOYA

A imagem representa os perigos que cercam o ser humano quando a razão adormece e aponta para uma concepção de mundo mais humana e terrena, que atingiu vários campos do conhecimento. Essa nova maneira de pensar desencadeou a Revolução Francesa e provocou o enfraquecimento da monarquia absolutista. Foi nessa atmosfera de renovação que vigorou o revolucionário lema “Igualdade, libertade e fraternidade", baseado no pensamento iluminista.

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TÓPICO 1 | A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO

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3 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS

No contexto do século XVIII, surgiram importantes obras, como O espírito das leis, de Montesquieu, obra publicada em 1748, que propôs a divisão do governo em três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Em 1751 surgiu a Enciclopedia, organizada por Denis Diderot e Jean d`Alambert, concebida para concretizar o projeto iluminista, ou seja, enfatizar a razão, o conhecimento humano, o progresso e as ciências. Ao tentar reunir o saber humano acumulado em várias áreas do conhecimento, a obra se tornou uma das principais realizações do Iluminismo, cuja pretensão era disponibilizar o acesso às artes e às ciências para toda a sociedade. Editada originalmente em 17 volumes, ela levou 21 anos para ser finalizada. Vários escritores, entre cientistas e intelectuais, colaboraram com produção dos verbetes, várias vezes interrompidos pela censura eclesiástica, chegando a ser proibida pela Coroa francesa. Mesmo assim, a obra obteve sucesso e influenciou a produção de outras publicações do gênero em vários países.

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Encyclop%C3%A9die#/media/File:Encyclopedie_de_D%27Alembert_et_Diderot_-_Premiere_Page_-_ENC_1 >. Acesso em 25 nov. 2018.

FIGURA 2 – FRONTISPÍCIO DO VOLUME I DA ENCICLOPÉDIA

Outro importante pensador francês foi François-Marie Arout, conhecido como Voltaire (1694-1778). Sua obra é vasta, inclui poemas, peças teatrais, romances, contos satíricos, com destaque para Cândido ou O Otimismo, narrativa filosófica que aborda de modo irônico a história das desventuras de um jovem ingênuo que, diante da perversidade do mundo, busca encontrar um sentido para a vida, chegando à conclusão na famosa moral: "devemos cultivar nosso jardim" (VOLTAIRE, 2010, p. 187).

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

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Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) também marcou a época com suas produções, defendendo a democracia e denunciando as injustiças sociais. Entre as suas obras, sobressaem-se o Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre homens (1775), o Contrato Social (1762) e o romance Emílio (1762), que difundiu a idealização da figura do “bom selvagem”, do homem que nasce bom e é corrompido pela sociedade. Rousseau cultuou a simplicidade e o refúgio na natureza, abrindo vias para as aspirações estéticas nostálgicas e individualistas do Romantismo. Ele ainda escreveu o romance espistolar A nova Heloisa (1761) e cultivou a literatura autobiográfica com a obra Confissões (1782).

Nesse contexto, o Arcadismo adotou os princípios do Neoclassicismo, reabilitando os clássicos greco-romanos, os preceitos aristotélicos e horacianos, desenvolvendo suas ideias no tempo da Enciclopedia, na época de Voltaire e de Rousseau. Os poetas árcades, inspirados, principalmente, nas obras do poeta latino Virgílio, exaltaram a vida rural e o bucolismo, idealizando a simplicidade do campo, a fuga da cidade (fugere urbem), os prazeres imediatos, baseados na famosa expressão carpe diem (viva o dia), frase retirada da ode do poeta latino Horácio. Os árcades retomaram a ideia de que a razão e a felicidade se encontram nas coisas simples da vida, num lugar agradável, sem conflitos. A proposta da nova poética se espalhou pelos países de língua neolatina, especialmente em Portugal e no Brasil.

Veja, a seguir, como esses temas aparecem nas poesias portuguesa e

brasileira, com os poetas Bocage (1765-1805) e Claudio Manuel da Costa (1729-1789), respectivamente:

Desejos da presença do objeto amado

Já o Inverno, espremendo as cãs nervosas,Geme, de horrendas nuvens carregado;Luz o aéreo fuzil, e o mar inchadoInveste ao Pólo em serras escumosas;

Oh benignas manhãs! Tardes saudosas,Em que folga o pastor, medrando o gado,Em que brincam no ervoso e fértil pradoNinfas e Amores, Zéfiros e Rosas!

Voltai, retrocedei, formosos dias;Ou antes vem, vem tu, doce belezaQue noutros campos mil prazeres crias;

E ao ver-te sentirá minh'alma acesaOs perfumes, o encanto, as alegriasDa estação, que remoça a Natureza (BOCAGE, 1994, p.10).

Lira XIX

Enquanto pasta alegre o manso gado, Minha bela Marília, nos sentemos À sombra deste cedro levantado.

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TÓPICO 1 | A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO

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Um pouco meditemos Na regular beleza,Que em tudo quanto vive, nos descobreA sábia natureza (GONZAGA, 1996, p. 26).

DICAS

O filme Sociedade dos poetas mortos (1989), dirigido por Peter Weir, apresenta interessantes reflexões sobre a vida, ilustrando bem o lema carpe diem e o refúgio dos poetas nos recantos da natureza. Vale a pena assistir.

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51roNEGDpOL.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2019.

No contexto ideológico da Ilustração vale ressaltar o surgimento do jornalismo e o aumento do público leitor, que colocaram em evidência a prosa literária, como os romances ingleses As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do escritor irlandês Laurence Sterne, autores que inspiraram o renomado escritor brasileiro Machado de Assis (que será estudado mais adiante, no movimento literário do Realismo). No século XVIII, temos ainda importantes romances ingleses, como Tom Jones, de Henry Fielding (1707-1754), e Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (1775-1817).

O desenvolvimento da imprensa contribuiu significativamente para que o romance se tornasse popular nos séculos XVIII e XIX. Os jornais criaram os folhetins, espaços que publicavam capítulos de romances. A estratégia se transformou numa instigante forma de entretenimento para os leitores e influenciou a maneira como são feitas as atuais novelas e séries de televisão.

NOTA

No teatro do século XVIII, destaca-se Carlo Goldoni (1707-1793), considerado o maior comediógrado italiano da época, que buscou reaproximar o teatro da realidade humana, segundo os modelos clássicos e o exemplo de Molière, salienta D`Onofrio (2007). Goldoni escreveu 120 comédias retratando intrigas, tipos humanos e ambientes sociais. Fazem parte de sua produção literária as comédias A viúva sabida, O mentiroso, Um curioso acidente, A confeitaria, entre outras.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• O contexto de produção artística do século XVIII foi marcado, sobretudo, pela Revolução Francesa e a Revolução Industrial, que promoveram a ascensão política e econômica da classe burguesa.

• O Iluminismo foi um movimento intelectual que se difundiu na Europa, defendendo a construção do saber por meio da razão.

• A Enciclopédia, organizada por Denis Diderot e Jean d`Alambert, foi uma das principais obras do Iluminismo, que cultuou o progresso e as ciências.

• Os pensadores Voltaire e Rousseau desempenharam um papel importante na difusão dos ideais iluministas.

• Os poetas arcadistas, em oposição aos exageros do Barroco, cultivaram temas bucólicos e as formas líricas da tradição clássica.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 A seguir, você vai ler e analisar criticamente um poema de Bocage. Em seguida, responda às questões propostas.

Oh retrato da morte, oh noite amiga Por cuja escuridão suspiro há tanto! Calada testemunha do meu pranto, Dos meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga, Dá-lhes pio agasalho no teu manto; Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade, Fantasmas vagos, mochos piadores, Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores; Quero a vossa medonha sociedade, Quero fartar meu coração de horrores.

FONTE: BOCAGE, M. M. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994, p.8.

a) Qual é a temática explícita do poema?

b) Como é apresentado o estado de espírito do eu lírico? Exemplifique com trechos do poema.

c) O poema dialoga com as principais tendências da estética arcadista? Explique.

2 Considerando as discussões sobre os movimentos intelectuais que surgiram na Europa no século XVIII, analise as asserções a seguir e a relação proposta entre elas.

O Iluminismo foi um movimento cultural que se difundiu a partir do século XVIII e que, simbolicamente, significa luz ao intelecto.

PORQUE

Os pensadores iluministas acreditavam ser possível encontrar o saber por meio da razão, através de formas subjetivas de pensamento.

AUTOATIVIDADE

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a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.

b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.

c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

3 Quanto ao Arcadismo, é correto afirmar que:

a) ( ) Os poetas árcades reavivaram as ousadias estéticas do Barroco. b) ( ) A estética retoma os temas e as formas líricas da tradição clássica. c) ( ) Os poemas árcades contestam a valorização dos espaços prazerosos e da

vida simples.d) ( ) A poesia lírica expressa um desequilíbrio das formas e dos sentimentos.

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TÓPICO 2

A ESTÉTICA ROMÂNTICA

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃONo Romantismo, a arte passou a valorizar a experiência individual,

a rebeldia, as emoções, a ruptura com os critérios de beleza, resultando na diversidade de temas que envolvem paixões, desencantos, um estado de espírito melancólico (conhecido como "mal do século"). Os escritores românticos se inspiravam em temas que envolviam o mistério, o terror, a morte, bem como as mazelas sociais, o novo tipo de vida materialista, rotineiro e injusto socialmente trazido pelas revoluções, o refúgio na natureza e a valorização do nacionalismo.

O aspecto multiforme desse movimento perpassou por diversos espaços e tempos nos diferentes países da Europa e da América. Na literatura do Romantismo, a narrativa, a lírica e o drama foram os gêneros literários evidenciados, com destaque para o romance, gênero em prosa bastante difundido na época. Neste tópico, você vai estudar o surgimento do Romantismo, a consolidação do romance, o seu contexto histórico e suas principais caraterísticas estéticas. Além disso, você vai entrar em contato com alguns textos que pertencem à tradição literária ocidental e que caracterizam a experiência romântica, especialmente os gêneros narrativo e lírico.

2 O MOVIMENTO ROMÂNTICO OCIDENTAL

O pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863) registrou o momento histórico de batalhas ocorridas durante a Revolução Francesa no emblemático quadro A liberdade guiando o povo (1830), reproduzido abaixo. A obra encontra-se exposta no Museu do Louvre, em Paris, e faz referência aos diversos grupos sociais que participaram do movimento de luta, nos dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, contra o rei Carlos X, que tentava restabelecer o absolutismo no país.

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

FONTE: <https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/a-liberdade-guiando-o-povo-eugene-delacroix/>. Acesso em: 25 nov. 2018.

FIGURA 3 – A LIBERDADE GUIANDO O POVO (1830), DE EUGÈNE DELACROIX

No centro do quadro, é possível ver em destaque a imagem de uma mulher segurando a bandeira tricolor da França. Essa figura, denominada Marianne, faz menção à deusa grega Atena e passou a simbolizar a luta do povo contra a tirania, a noção de liberdade instaurada na base do pensamento romântico.

Foi com esse pensamento que o Romantismo surgiu na Alemanha e na Inglaterra, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Mas, "antes de ser um movimento estético, ideológico e social, o Romantismo é uma atidude espiritual”, destaca D’Onofrio (2007, p. 327). Isso porque, enquanto atitude, o Romantismo sempre existiu, pois sempre houve artistas temperamentais e melancólicos, que instituíram a liberdade como estilo de vida e usaram suas emoções como fonte de inspiração.

O fenômeno artístico-literário do Romantismo está diretamente relacionado ao desenvolvimento sociocultural europeu durante a segunda metade do século XIX, período em que os artistas defendiam modos livres de experiência e de expressão:

[…] apregoando a derrocada de qualquer forma de absolutismo: político, contra o imperialismo e a favor de regimes constitucionais; religioso, contra o dogmatismo e a favor de uma religião mais sentida e mais natural; social, contra a prepotência das classes dominantes e a favor das aspirações da nascente classe burguesa; estético, contra as regras do Classicismo e a favor de uma total liberdade de expressão artística (D’ONOFRIO, 2007, p. 327).

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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Na Europa, a produção artística do século XIX difundiu intensamente as expressões estéticas da literatura romântica. Os românticos convocaram as sensibilidades, as aventuras, os sonhos, os devaneios. Na poesia, vigorou inicialmente um interesse pelas forças da natureza, pelos extremos, pelos pessimismos, pelos dramas contraditórios do barroco. O gérmen dessa rebeldia artística colocou em suspensão a tradição clássica de criação rígida e racionalista. Contudo, diante do insuperável conflito entre o ideal e o real, a filosofia de vida dos românticos foi marcada por aspectos contraditórios, "procurava-se ou a fuga na solidão e na morte ou a luta para modificar a realidade, ou um suave lirismo ou uma amarga ironia, ou a simplicidade popular ou um refinado individualismo", salienta D’Onofrio (2007, p. 329).

O romance, por sua vez, passou a narrar a atmosfera conflituosa, as experiências dos indíviduos comuns, suas aventuras e desventuras. Herdeiro da epopeia, esse gênero da era burguesa assumiu espaço privilegiado na cultura ocidental. Sua concepção literária moderna sobrepujou a tradição oral milenar das composições poéticas e dramáticas, destaca Satalloni (2007). Resultado da era das revoluções Francesa e Industrial que marcou a Europa durante o século XVIII, o romance consolida-se num contexto permeado por pensamentos progressistas e nacionalistas, por ideias de liberdade e individualidade, no qual vem à tona a necessidade de se criar uma forma literária inovadora, substituindo a tradição coletiva dos enredos das epopeias clássicas e renascentistas. Mesmo apresentando diversas tendências e particularidades, a maioria das obras valoriza a liberdade, a subjetividade, os temas populares e as raízes nacionais.

O gênero dramático, assim como o lírico e o narrativo, também se consolidou como estética de ruptura, abolindo regras rígidas de estrutura das peças, especialmente a lei aristotélica das três unidades (ação, tempo e espaço). Novas e renovadas formas de representação surgiram, como a ópera, especialmente valorizada pelos românticos, que começou a interpretar os anseios do público burguês e deixou de ser um espetáculo restrito à classe nobre e rica.

3 A PROSA ROMÂNTICA

A narrativa em prosa afirmou-se como um dos gêneros mais lidos e apreciados somente a partir da segunda metade do século XVIII. Antes disso, era vista como uma forma de literatura destinada ao entretenimento de uma camada social que não foi educada aos moldes dos estudos clássicos, salienta D’Onofrio (2007). Com o surgimento do Romantismo, os textos em prosa começaram a exercer a função da antiga poesia épica, que explorava conflitos existenciais, comportamentos e paixões humanas.

No movimento romântico, iniciado na Alemanha, destaca-se o importante escritor Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), cujo romance, Os sofrimentos do Jovem Werther, teve uma grande repercussão internacional. Trata-se de uma

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

narrativa epistolar, contada através de cartas. Nela, o protagonista Werther relata ao seu melhor amigo, Wilhelm, seu drama amoroso, sua paixão por Lotte, jovem comprometida com outro homem.

Acompanhe abaixo um trecho do relato de Werther, no qual ele menciona o episódio de um desastre natural ocorrido na região em que mora e, ao mesmo tempo, evoca suas angústias e lembranças de sua amada.

Caro Wilhelm, encontro-me no mesmo estado daqueles infelizes que se acham possuídos por um espírito maligno. É algo que me acomete às vezes: não se trata de angústia nem de desejo... É um tumulto interior, desconhecido, que ameaça dilacerar-me o peito, que me aperta a garganta! Ai de mim! Nesses momentos vagueio por entre horrendas cenas noturnas dessa época inimiga dos homens.

Ontem à noite não pude ficar em casa. O degelo chegou de repente. Disseram-me que o rio havia transbordado, que todos os riachos estavam cheios e que, de Wahlheim até aqui, todo o meu querido vale ficara inundado! Eram mais de onze horas quando saí de casa. Que espetáculo assombroso ver do rochedo, ao luar, as torrentes furiosas invadindo os campos, prados e cercados, e o grande vale formando um só mar sublevado, em meio ao rugir do vento. E quando a Lua reapareceu por sobre uma nuvem negra e diante de mim, as torrentes de águas com reflexo terrível e magnífico, se entrechocavam, despedaçando-se, percorreu-me, então, um tremor, seguido de um desejo brutal. Ah! Com os braços abertos, debrucei-me sobre o abismo, enquanto me perdia num pensamento prazeroso: precipitar as minhas dores e os meus sofrimentos na voragem das águas, deixando-me arrastar por aquelas ondas! Oh!... E dizer que não tive coragem de levantar os pés do chão e acabar com todos os meus tormentos!... Sinto que minha hora ainda não chegou! Oh! Wilhelm! Com que prazer teria renunciado à minha vida de homem para romper as nuvens nesse vento tempestuoso e subverter as ondas!

Quão doloroso foi lançar os olhos para o recanto em que descansara com Lotte, sob um salgueiro, após um passeio num dia de muito calor e ver que ali também estava inundado e quase não reconheci o salgueiro!

“E os seus prados”, pensei, “e o campo em torno da residência de caça! E o nosso caramanchão, como deve ter sido devastado pelas águas devoradoras!

E um raio de Sol do passado brilhou em minha alma, da mesma forma como sonhar com rebanhos, pradarias e honras ou glórias deve iluminar a alma de um prisioneiro. Eu estava lá!... Não me censuro, pois tenho coragem para morrer... Agora, estou sentado aqui como uma mulher velha que cata a sua lenha ao longo das cercas e mendiga o pão de porta em porta, a fim de atenuar e prolongar um pouco mais a sua triste e miserável vida (GOETHE, 2010, p. 130-131).

Nesse trecho do romance, que se tornou um marco do chamado “mal do século" (expressão criada por Chateaubriand para referenciar a crise de valores e crenças instalada no século XIX), o estado de espírito de Wether se encontra devastado e tomado pela sensação de autodestruição. Doente, melancólico,

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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inconformado, o jovem se vê diante da impossibilidade de adequar suas aspirações às limitações da vida cotidiana. Por isso, encontra no suicídio a solução para o seu problema. O sentimento dramático, nostálgico e melancólico de Werther, considerado o símbolo do herói romântico, rebelde e apaixonado, dialoga com a pintura O viajante sobre o mar de névoa (1818), de Caspar David Friedrich, reproduzida abaixo.

FIGURA 4 – O VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA

FONTE: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Caminhante_sobre_o_mar_de_n%C3%A9voa#/media/File:Caspar_David_Friedrich_-_Wanderer_above_the_sea_of_fog.jpg >. Acesso em: 25 nov. 2018.

Como você vê, a expressão do espírito romântico se revela na postura do homem diante dos ímpetos da natureza, envolto por um cenário de penhascos e nuvens. O que sugere a reflexão sobre a condição humana e o estar no mundo, sobre o contemplamento da força da natureza. Sensações que também perpassam pela narrativa do Jovem Werther.

Dando continuidade a nossas discussões, passamos a destacar a ficção em prosa romântica de língua inglesa. Várias obras e autores relevantes fazem parte do cânone literário ocidental. Entre eles, o escocês Walter Scott (1771-1832), com o romance histórico Ivanhoé (1820), ambientado na Idade Média, na época das Cruzadas, que revive o universo dos castelos, repleto de aventuras e intrigas.

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

O norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) cultivou narrativas mais curtas, destacando-se com os contos policiais, de terror e de mistérios, além de histórias de viagens fantásticas e alguns ensaios. Das produções literárias de Poe, destacam-se o conto policial Os crimes da rua Morgue (1841), ao apresentar, ligados entre si, a história do crime e do inquérito, tendo o investigador como protagonista da narrativa. Poe foi o introdutor do gênero policial, da figura do detetive. Sua história influenciou vários ficcionistas e a criação de personagens como o detetive Lecoq, do escritor francês Émile Gaboriau (1832-1873), e Sherlock Holmes, do escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930).

A escritora norte-americana Narriet Beecher Stowe (1811-1896), defensora dos escravos e das ideias abolicionistas, publicou, em 1852, a obra A cabana do pai Tomás, que foi traduzida para vários idiomas e alcançou um número expressivo de leitores durante o século XIX. No Brasil, a narrativa acentuou as dicussões sobre as concepções sociais e o sistema de escravidão, como podemos ver nas produções literárias dos escritores brasileiros Joaquim Manuel de Macedo, em As vítimas-algozes - quadros da escravidão (1869), Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura (1875), a peça Mãe (1860), de José de Alencar, além dos contos e das críticas de teatro de Machado de Assis, destaca Guimarães (2013). Acompanhe abaixo um trecho do romance de Stowe.

Capítulo XXX

Liberdade

[...]Terminara a noite; a estrela da manhã, que devia brilhar sobre a sua liberdade, levantava-se radiosa em frente deles. Liberdade, palavra mágica, quem és tu? Não serás mais do que uma palavra, uma flor de retórica? Por que, então, homens e mulheres da América, basta esta palavra para o coração lhes bater mais rapidamente? Que significava a liberdade para Jorge Harris? Para os vossos pais, a liberdade é o direito que qualquer nação tem de ser nação; para ele, era o direito que todo homem tem de ser um homem, e não um animal. O direito de chamar à mulher que ama sua mulher, de a proteger contra qualquer violência ilegal, o direito de proteger e educar os filhos, o direito de ter a sua casa, a sua religião, os seus princípios, sem depender da vontade de outrem.

Eram estes os pensamentos que se agitavam e borbulhavam no peito de Jorge, enquanto apoiava a cabeça sonhadora à mão, olhando a mulher, que tentava adaptar roupas de homem à sua figura elegante e esguia. Pareceu-lhes que sob este disfarce seria mais fácil escapar (STOWE, 2000, p. 188).

Na França, o Romantismo teve início com François-René de Chateaubriand (1768-1848), herdeiro de Rousseau, das concepções do pensamento romântico, dos conceitos de liberdade e fraternidade, da natureza e do sentimento como forças fundamentais que regem o homem. Nos romances Atala (1801) e René (1802), Chateaubriand descreve paisagens exóticas e as relações sentimentais dos personagens. Em Memórias de além-túmulo (1849), destaca a autobiografia ficcional.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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Publicados originalmente em folhetim, os romances Os três mosqueteiros (1844) e O conde de Monte Cristo (1844-1846), de Alexandre Dumas (1802-1870), tornaram-se romances populares, sucesso entre os leitores e, mais tarde, foram adaptados para o cinema. Ambos os romances evidenciam a figura do herói romântico, destemido, que enfrenta diversos empecilhos em busca do amor, da justiça ou da honra. Já o escritor Henri-Marie Beyle, mais conhecido pelo pseudônimo de Stendhal (1783-1842), foi o introdutor do romance psicológico na França, com a tendência para a narrativa realística de descrição da vida, do fluxo de consciência, do mundo subjetivo da personagem. Nos romances O vermelho e o negro (1831) e A cartuxa de Parma (1839), por exemplo, Stendhal criou protagonistas que representam o típico jovem apaixonado, aventureiro e ambicioso.

No Romantismo francês há, porém, um autor que se sobressai. Considerado o expoente do movimento romântico na Europa, Victor-Marie Hugo (182-1885) escreveu poesias, dramas, romances, e se tornou referência para muitos escritores. Na prosa de ficção, destacamos as obras Notre-Dame de Paris (1831), Os miseráveis (1862), Os trabalhadores do mar (1866) e o Homem que ri (1869).

DICAS

Um filme imperdível sobre o momento histórico da Revolução Francesa e a obra de Victor Hugo é a adaptação cinematográfica de Os Miseráveis, dirigido por Tom Hooper, em 2012.

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/thumb/1/16/Miseraveis_Poster_Nacional.jpg/240px-Miseraveis_Poster_Nacional.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2019.

Na Itália, o movimento romântico apresenta duas importantes obras em prosa: As últimas cartas de Jacopo Ortis (1817), romance epistolar de Ugo Foscolo (1778-1827), inspirado no clássico enredo alemão do jovem Werther; Os noivos (1827), de Alessandro Manzoni (1785-1873), romance histórico ambientado na província de Milão, região dominada pelos espanhóis. A narrativa relata a história de amor de Renzo e Lúcia e apresenta um retrato da realidade social da época. A obra, adapatada para o teatro e para o cinema, apresenta temas como o amor, o heroísmo, o patriotismo, a hipocrisia e o triunfo da fé.

Em Portugual, a consolidação do Romantismo ocorreu somente na segunda década do século XIX, com a publicação do poema Camões (1825), de Almeida Garret (1799-1854). Do autor português, destacam-se as obras em prosa O arco de

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

Sant`Ana (1845-1850) e Viagens na minha terra (1846). Alexandre Herculano (1810-1877) cultivou o romance histórico, tornando-se um reconhecido ficcionista do gênero com a obra Eurico, o presbítero (1844). Camilo Castelo Branco (1825-1890) representa as tendências românticas em fase de esgotamento com as narrativas urbanas passionais, nas quais impera um sentimentalismo exacerbado, presente em obras, como, Onde está a felicidade? (1852) e Amor de perdição (1862).

No Romantismo brasileiro, as narrativas ficcionais traçaram um vasto retrato do país recém-independente de Portugal, processo que se estendeu de 1821 a 1825, tendo como marco da independência a data de 7 de setembro de 1822. Nesse contexto, a literatura assumiu um papel importante na busca de uma definição da identidade nacional, destacando a figura idealizada do índio, reinterpretando fatos e personagens históricos, os conflitos e interesses da burguesia que começava a se formar, a sociedade marcada pela escravidão, pelo patriarcalismo, as diferentes etnias e regiões do território nacional em obras como: A moreninha (1844), de Joaquim Manuel Macedo, Iracema (1865), de José de Alencar, Inocência (1872), de Visconde de Taunay.

O fragmento do romance Iracema, de José de Alencar, exposto abaixo, apresenta a cultura indígena como aspiração do símbolo da nacionalidade brasileira. O autor constrói um perfil idealizado das personagens indígenas e suas relações com o colonizador, incorporando inúmeros elementos da natureza, informações históricas e o vocabulário tupi-guarani:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.O favo do jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

VOCABULÁRIO:Graúna: pássaro conhecido de cor negra luzidia.Jati: pequena abelha que fabrica delicioso mel.Ipu: terreno fértil (ALENCAR, 2002, p. 16).

Na prosa romântica hispano-americana, um dos autores de maior destaque foi o peruano Ricardo Palma (1833-1919). Segundo Jozef (1989), o autor superou o movimento romântico, encontrando um caminho próprio e original. Recriou personagens e lendas da alma popular dos antigos peruanos. Sua obra principal intitulada Tradicciones peruanas (1872), publicada na forma de folhetim por vários anos, é baseada em eventos históricos documentados, apresenta uma linguagem informal, diálogos com o leitor e críticas às instituições e aos costumes políticos e religiosos.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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DICAS

Saiba mais sobre a biografia e a obra de Ricardo Palma. Acesse textos e imagens interessantes da narrativa Tradicciones peruanas na Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/tradiciones-peruanas-primera-serie--0/.

FONTE: <http://www.cervantesvirtual.com/obra/tradiciones-peruanas-primera-serie--0/>. Acesso em: 20 mar. 2019.

4 A POESIA ROMÂNTICA

No período do Romantismo, o lirismo surgiu na Alemanha com o poeta Friedrich von Hardenberg, conhecido como Novalis (1772-1801), considerado o precursor da poesia romântica e simbolista. Outros poetas exerceram forte influência na lírica alemã, entre eles, Friedrich Hölderlin (1770-1843), Clemens Bretano (1778-1842) e Wolfgang Goethe.

Na Inglaterra, a estética literária do individualismo e da subjetividade manifesta-se na poesia de John Keats (1795-1821), Lord Byron (1788-182), entre outros. Para representar a poesia de língua inglesa, ressaltamos o poeta norte-americano Edgar Allan Poe, que, além de criador do conto policial e de histórias fantásticas, é um dos maiores poetas da época romântica. Seus versos foram amplamente recriados e difundidos por autores europeus, especialmente os ligados à estética simbolista como Baudelaire e Mallarmé. Poe ficou conhecido como um dos poetas "malditos” por expressar esteticamente os anseios, as contradições e as perplexidades do homens de sua época, constestando os valores sociais da vida burguesa e revelando o lado desconhecido da existência humana. Por isso, sua poética se refugia no sonho, no insólito, e muitos dos seus personagens são seres inquietos e atormentados.

Das produções em versos, "destinadas a hipnotizar os ouvidos e o espírito do leitor", diz Carpeaux (2012e, p. 141), a exemplo dos poemas Israfel, Ulalume, Lenore, Annabel Lee, For Annie, destacamos The raven (O corvo), seu poema mais famoso, traduzido para vários idiomas. Em português, temos as traduções realizadas por Machado de Assis (1883), Emílio de Meneses (1917), Fernando Pessoa (1924), Milton Amado e Oscar Mendes (1943), entre outras.

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

Acompanhe, no poema O Corvo, na versão de Milton Amado e Oscar Mendes, a história de um personagem que, numa certa noite, estava lendo para combater a insônia causada pela recordação de sua amada Lenora, quando ouve um barulho estranho e amedrontador:

O CORVO

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar."É alguém — fiquei a murmurar — que bate à porta, devagar;sim, é só isso e nada mais."

Ah! Claramente eu o relembro! Era no gélido dezembroe o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava aindaalgum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora— essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenorae nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batiae a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.É apenas isso e nada mais."

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora esperais;mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta:— escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia), e foi: "Lenora!"E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais."É na janela" — penso então. — "Por que agitar-me de aflição?Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto— é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,adeja e pousa sobre o busto — uma escultura de Minerva,bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,empoleirado e nada mais.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais."Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" — então lhe digo —"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"E o Corvo disse: "Nunca mais".

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua portae que se chame "Nunca mais".

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão-se embora.Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora".E disse o Corvo: "Nunca mais".

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventurae a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelode seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: — o ritornelode "Nunca, nunca, nunca mais".

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbraise, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvograsnava sempre: "Nunca mais".

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofadadessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,já não repousa, ah!, nunca mais...

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incensoali descessem a esparzir turibulários celestiais."Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta! — brado. — Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernalque o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precitamansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!"E o Corvo disse: "Nunca mais".

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"Profeta!" — exclamo — "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,— essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida!"— ergo-me e grito, alma incendida. —"Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,não há de erguer-se, ai! Nunca mais! (POE, 1997, p. 62-65).

A partir da leitura, você deve ter percebido, além da temática, a composição do poema. São 18 estrofes, cada uma contendo cinco versos longos, seguido de um curto em que se repete a palavra “Nunca mais” (nevermore). Nele, há um jogo de relações entre as personagens do eu lírico, o corvo e Lenora, já morta, apresentada como a jovem amada pelo personagem que narra um episódio vivido no passado, atrelado à sua ânsia para acalmar a dor da ausência e à possibilidade de um reencontro dos amantes numa outra vida. Desejo interrompido pela fatídica resposta do corvo: Nunca mais! Enfurecido, o eu lírico tenta expulsar a agourenta ave de seu quarto.

FIGURA 5 – O CORVO, ILUSTRAÇÃO DE GUSTAVE DORÉ

FONTE: <http://cantosdasubversao.blogspot.com/2011/10/ilustracoes-de-gustave-dore-o-corvo.html> . Acesso em: 25 nov. 2018.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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Você sabia que o poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, também foi adaptado para o seriado de animação norte-americano Os Simpsons, em 1990? No episódio A casa da árvore dos horrores I, a personagem Lisa lê o conto para o seu irmão Bart. A história é encenada pelo patriarca Homer, que faz o papel do poeta. Confira a interessante recriação do poema no link: https://www.youtube.com/watch?v=XOC66LDjkxI.

IMPORTANTE

FONTE: https://poesclub.blogspot.com/2013/12/o-corvo-nos-simpsons.html. Acesso: 16 de jan. 2019

Diante desse repertório diversificado, você pode sugerir aos seus alunos atividades didáticas interessantes. Que tal apresentar o poema de Poe na tradução em espanhol, junto com as imagens de Gustave Doré e a animação dos Simpsons? O link a seguir disponibiliza a tradução realizada para o espanhol por Pérez Bonalde https://es.wikisource.org/wiki/El_cuervo_(Traducci%C3%B3n_de_P%C3%A9rez_Bonalde).

Experimente usar a tradução como ferramenta de ensino-aprendizagem da literatura e da língua espanhola, explorando a temática do poema, o autor e o contexto de produção, o vocabulário e as particularidades de cada idioma.

Para complementar, solicite a criação, em grupos, de poemas envolvendo histórias de terror e suspense. A partir daí os alunos também podem produzir desenhos, histórias em quadrinhos, nas versões tradicionais e/ou digitais, fazer animações, gravações em áudio, entre outras atividades. Na internet, há uma série de recursos educativos à disposição dos alunos. É importante deixar os alunos livres para escolher a melhor maneira de expressar a criatividade.

Ainda sobre o gênero lírico da época romântica, voltamos a apresentar o francês Victor Hugo com suas coletâneas de poemas líricos: Odes et ballades (1822-28), Orientales (1829), Les rayons en les ombres (1840) e a obra poética de maior destaque: La légende des siècles (1859). O italiano Giacomo Leopardi (1798-1837), outro grande poeta da literatura ocidental, cuja produção lírica está compilada no volume chamado Canti (Cantos). Leopardi também se sobressai na prosa literária com a obra Operrete morali (1827), uma coleção de 24 histórias de argumentação

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filosófica na qual prevalece o registro cômico-satírico sobre a existência, o mal e a dor, a (in)consciência, a felicidade, entre outros temas. Zibaldone di Pensieri (1898), mais uma importante obra do autor, apresenta apontamentos diversos sobre filosofia, literatura, política, sobre o homem e o mundo. Reflexões que influenciaram autores como Nietzsche, Machado de Assis, Calvino, destaca Guerini (2001).

DICAS

A pesquisadora brasileira Andreia Guerini possui uma vasta produção acadêmica sobre as obras de Giacomo Leopardi. Com o objetivo de oferecer ao leitor uma amostra das discussões do poeta sobre poesia, Guerini selecionou e traduziu para o português alguns dos fragmentos do Zibaldone di Pensieri, disponíveis no site da Revista Caderno de Literatura em Tradução, da Universidade de São Paulo (USP), no link http://www.revistas.usp.br/clt/article/view/49361.

Dos muitos Romantismos da literatura ocidental, o principal poeta em língua portuguesa foi Almeida Garret, reconhecido como um intelectual politicamente combativo. Seus poemas valorizam temas populares e estimulam o sentimento nacional. O poema Camões, marco inicial do Romantismo português, gira em torno da composição de Os Lusíadas e da vida sentimental de seu autor. Já no Brasil, Gonçalves Dias dá ênfase à frustração amorosa, ao indianismo, à melancolia e à saudade; Álvares de Azevedo tende para a poesia pessimista e melancólica, como também para a prosa de suspense e horror, expressos na obra Noite na Taverna (1855), ao estilo do escritor britânico Lord Byron. Na poesia brasileira, Castro Alves, influenciado pelo francês Victor Hugo, foi quem problematizou as questões sociais de forma mais crítica, sensibilizando o leitor especialmente no que diz respeito à condição humana do negro escravizado, distanciado-se das gerações anteriores, como demonstra o fragmento do poema Vozes d'África reproduzido no Quadro 1.

Vozes d'Africa

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondesEmbuçado nos céus?Há dois mil anos te mandei meu grito,Que embalde desde então corre o infinito...Onde estás, Senhor Deus?...Qual Prometeu tu me amarraste um diaDo deserto na rubra penedia

QUADRO 1 – FRAGMENTO DO POEMA VOZES D’ÁFRICA, DE CASTRO ALVES

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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— Infinito: galé! ...Por abutre — me deste o sol candente,E a terra de Suez — foi a correnteQue me ligaste ao pé...[...]

FONTE: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/bndigital0127.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2019.

A poesia em língua espanhola também revela vários poetas, como o argentino Esteban Echeverría (1805-1851), que, por influência francesa, penetrou no movimento de renovação intelectual e introduziu o Romantismo na Argentina, motivado pela necessidade de construir uma nação através de uma literatura própria, assim como surgiu na literatura brasileira o desejo de destacar as potencialidades do país, seus temas culturais, a natureza local, a valorização do povo nativo. No poema La Cautiva, Echeverría concebe a ideia de literatura nacional, apresentando o deserto do pampa argentino. Leia, a seguir, um trecho do poema.

LA CAUTIVAPARTE PRIMERA

El Desierto

Era la tarde, y la hora

en que el sol la cresta dora de los Andes. El Desierto inconmensurable, abierto,

y misterioso a sus pies se extiende; triste el semblante,

solitario y taciturno como el mar, cuando un instante

al crepúsculo nocturno, pone rienda a su altivez

QUADRO 2 – LA CAUTIVA, DE ESTEBAN ECHEVERRÍA

FONTE: Jozef (1989, p. 64-65)

Encerramos nossas reflexões sobre a poesia romântica destacando José Hernandez (1834-1886), outro autor importante que você estudará com mais profundidade ao longo dos seus estudos sobre a literatura hispano-americana. Hernandez faz parte de um grupo de autores que difundiu a poesia gauchesca na Argentina, adotando o falar campesino, representando o mundo pastoril das estâncias, a classe social rural dos gaúchos. Seu poema narrativo Martín Fierro, considerado uma obra-prima de forte valor patriótico, foi lançado pela primeira

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

vez em 1872, com o título El gaucho Martín Fierro, composto por 13 cantos; e a segunda parte La vuelta de Martín Fierro, composta por 33 cantos, foi publicada em 1879. Posteriormente, as duas obras passaram a ser editadas em um único volume de Martin Fierro, com as respectivas partes intituladas La ida e La vuelta.

No poema de Hernandez encontramos “uma preocupação estética ao lado da ética", observa Jozef (1989, p.73-74), ao destacar os versos no Quadro 3 como uma demonstração da consciência do autor sobre a importância de sua obra enquanto registro contundente da realidade:

QUADRO 3 – LA VUELTA DE MARTÍN FIERRO, DE JOSÉ HERNANDEZ

FONTE: Jozef (1989, p. 73-74)

Yo he conocido cantoresQue era un gusto el escuchar;

Mas no quierem opinary se divierten cantando.Pero yo canto opinando

Que es mi modo de cantar.

Ou ainda:

Que he relatado a mi modoMales que conocen todos

Pero que naides cantó.

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TÓPICO 2 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA

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DICAS

É possível ler o poema Martin Fierro de modo interativo no site da Biblioteca Nacional da Argentina, disponível em: http://fierro.bn.gov.ar/fierro.php#samples/fierro-ida.

Além dessa experiência dinâmica e instigante, é possível acessar vários trabalhos sobre José Hernandez e a Literatura Gauchesca. Vale a pena a leitura para complementar as discussões dessa unidade e saber um pouco mais sobre a literatura espanhola da América Latina.

FONTE: <http://fierro.bn.gov.ar/fierro.php#samples/fierro-ida>. Acesso em: 20 mar. 2019.

5 O TEATRO ROMÂNTICO

No Romantismo, o gênero dramático se afirmou em oposição à estética clássica, abolindo as regras rígidas, principalmente a lei das três unidades. O drama passou a incluir elementos narrativos e líricos, "misturando-se o trágico com o cômico, a poesia com a música e o canto, a prosa com o verso" (D’ONOFRIO, 1990, p. 364), com destaque para a ópera e seu aspecto lírico. Na época romântica, vários foram os dramaturgos considerados importantes.

Na França, destaca-se o compositor Hector Berlioz (1803-1869) e suas obras Benenuto Cellini, Beatrice; e Georges Bizet (1838-1875), com a ópera Carmem. Na Alemanha, os autores Richard Wagner (1813-1883) e a famosa peça Tristão e Isolda, entre outros dramas renomados, como também Goethe e o poema dramático Fausto. No Brasil, o teatro romântico surgiu com Martins Penna (1815-1848), que usou o humor na crítica de costumes da sociedade do século XIX, destacando temas sobre ricos e pobres, casamentos por interesse, escravidão etc. Suas principais obras são: Juiz de paz na roça, Judas em sábado de aleluia e O noviço. No país, temos ainda as óperas O condor (1871) e O Guarani (1873), de Carlos Gomes. E no teatro da literatura em língua espanhola aponta-se o nome do dominicano Javier Foxá (1816-1865) como o primeiro dramaturgo romântico, que escreveu o drama Don Pedro de Castilla.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Romantismo foi um movimento literário bastante fértil e diversificado, que se estendeu até a segunda metade do século XIX e destacou diversos escritores no cenário artístico ocidental.

• As origens das manifestações românticas foram marcadas por ideias de liberdade e rebeldia.

• Os escritores românticos desconstruiam modelos preestabelecidos, valorizavam a originalidade e potencializavam a representação da individualidade.

• O gênero romance destacou-se no século XIX, assumindo um caráter inovador e popular, uma configuração que se difere historicamente da prosa de ficção elaborada na Antiguidade Clássica e na Idade Média.

• A imprensa contribuiu significativamente para a popularidade do romance nos séculos XVIII e XIX.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

1 O movimento artístico-literário do Romantismo está diretamente relacionado ao desenvolvimento sociocultural ocorrido na Europa em meados do século XVIII. Analise as proposições relacionadas à concepção romântica e assinale a alternative correta.

I. O Romantismo propôs uma ruptura com a rigidez formal da tradição literária clássica, privilegiando a representação da individualidade.

II. Os romances da época abandonam as tradições locais e a imaginação para enfatizar enredos pautados em aspectos objetivos e racionais.

III. Os textos literários dos escritores do Romantismo são frutos de construções lúcidas que enaltecem a moral comum e os costumes sociais.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

2 Leia a seguir um trecho das reflexões do jovem Werther, protagonista do romance Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, e analise as seguintes asserções.

– Paixão! Embriaguez! Loucura! Conservai-vos tão serenos, tão desinteressados, vós, os moralistas; cobris de injúrias o bêbado, detestais o insensato, passais ao largo como o sacerdote e agradeceis a Deus, tal o fariseu, por não vos ter feito iguais a eles.

Mais de uma vez me embriaguei, minhas paixões nunca estiveram longe da loucura e não me arrependo nem de uma coisa nem de outra, apesar de terem me ensinado que sempre haveriade menoprezar todos os indivíduos excepcionais que fizeram algo de grandioso, algo de aparentemente irrealizável!

– Mas também na vida cotidiana é insuportável ouvir quase sempre gritar para qualquer um empenhado numa ação livre, nobre, inesperada: “É um bêbado, está louco!”

Envergonhai-vos, vós todos tão sóbrios! Envergonhai-vos, vós todos tão sensatos!

FONTE: GOETHE, J. Wolfgang von. Os sofrimentos do Jovem Werther. Tradução de Leonardo César Lack. São Paulo: Abril, 2010.

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I. A exaltação dos sentimentos, a fantasia e a embriguez são traços românticos expressos nas reflexões do jovem Werther.

II. Werther defende o impulso das paixões sem que haja um estado de desequilíbrio e de semiconsciência do ser humano.

III. A visão de Werther expressa uma insatisfação com a vida cotidiana e representa uma ruptura com o espírito racionalista.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 Leia o poema Cantos del Peregrino, do argentino José Marmól (1817-1871), e responda à seguinte questão.

Si en peregrina vida por los etéreos llanos Las fantasías bellas de los poetas van, Son ellas las que brillan en rutilantes maresAllá en los horizontes del cielo tropical.

Allí las afliciones se avivan en el alma.Allí se poetize la voz del corazón;Allí es poeta el hombre; allí los pensamientosDiscurren solamente por la region de Dios.

FONTE: JOZEF, Bella. História da literatura hispano-americana. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. p.66.

No fragmento do poema a característica romântica observada é:a) ( ) A erudição do vocabulário.b) ( ) O predomínio dos contrastes da natureza.c) ( ) A objetividade do eu lírico.d) ( ) A peregrinação e as aflições da alma dos poetas.e) ( ) A construção racional do mundo interior.

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TÓPICO 3

REALISMO E NATURALISMO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃONeste tópico, vamos continuar estudando as relações entre os textos

literários e seus contextos de produção, reforçando a ideia de que uma obra, em sua singularidade, se insere no espaço e no tempo de um conjunto complexo de ideias e valores. Enfatizaremos os pressupostos filosóficos e científicos, bem como os princípios estéticos e ideológicos do momento histórico do século XIX, no qual estavam inseridos grandes autores da literatura universal, entre eles, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Charles Dickens, Thomas Mann, Leon Tolstoi, Eça de Queirós, Machado de Assis e Émile Zola.

A segunda metade do século XIX acompanhou um grande avanço das ciências e os efeitos gerados pela Revolução Industrial, que prometia prosperidade econômica e desenvolvimento técnico e científico, mas, por outro lado, acentuou a distinção entre a burguesia e a classe trabalhadora. A desilusão com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, instituídos pela Revolução Francesa, também intensificou as críticas à sociedade burguesa, acerca do egoísmo e individualismo. Nesse contexto, diferentes doutrinas surgiram na Europa.

Dentre elas, destaca-se a concepção do Socialismo científico, de Karl Marx, cujos ideais propunham critérios de justiça social à classe operária. Segundo sua visão, as duas classes, capitalista e operária, divergiam do ponto de vista econômico e político, pois a primeira privilegiava os próprios interesses e explorava a segunda, que precisa reivindicar por melhores condições de trabalho. Para Marx, a classe operária ocupa um papel central no desenvolvimento econômico e deveria combater a exploração para equilibrar a divisão de lucros entre os trabalhadores. Essas discussões foram expostas nas suas principais obras: O manifesto do Partido Comunista (1848) e O Capital (1827).

A Teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, que constatou que o ser humano é resultado de um longo processo de evolução e adaptação, também foi fundamental. Sua obra mais famosa é a A origem das espécies (1859), que causou grande polêmica na época. Nela, Darvin propõe a teoria evolucionista: as espécies de animais derivam mutuamente da seleção natural; substituindo a teoria criacionista, na qual as espécies teriam sido criadas por Deus e nunca se transformaram. Temos ainda o Determinismo, de Hippolyte Taine, com a tríade "raça, meio e momento", que apresenta o ser humano como um produto do meio em que se encontra, da sua herança cultural, social e biológica. E, finalmente, o Positivismo, defendido por Auguste Comte, apontando o saber baseado nas

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UNIDADE 3 | LITERATURA E MODERNIDADE

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leis científicas como sendo superior aos demais saberes. Vale salientar que o Positivismo materialista é fruto da ideologia dos pensadores iluministas e enciclopedistas, que acreditaram no progresso técnico-industrial da civilização. Essas doutrinas influenciaram o modo como as artes plásticas e a literatura representavam o mundo, impulsionando o surgimento de movimentos como o Realismo e o Naturalismo.

2 A LINGUAGEM DO REALISMO

Os sentimentos idealizados anteriormente pela estética romântica dão lugar a uma análise racionalista e objetiva da realidade, fazendo com que os artistas do Realismo retratem a vida cotidiana e denunciem os problemas sociais de modo mais objetivo e concreto. O termo Realismo designa, portanto, a tendência da literatura do século XIX ligada ao grau de aproximação da realidade em contraposição à fantasia. Para os autores realistas, a função do artista era representar os acontecimentos com fidelidade, sem maquiá-los, acentuando, muitas vezes, seus aspectos mais cruéis. Por isso, repudiam o sobrenatural, o fantástico, o extraordinário, o exótico, o utópico, elementos característicos do Romantismo.

O artista realista não apenas documenta a realidade, mas procura compreendê-la, descobrir o sentido das ações e dos temperamentos humanos. […] A arte tem que descrever o que acontece atualmente nas minas, nas fábricas, nos cortiços, nas cidades, na política, nos negócios, nas relações conjugais. Qualquer motivo de conflito do homem com seu ambiente pode ser assunto artístico. O protagonista preferido é o homem comum, vítima de taras hereditárias ou de condições ambientais desfavoráveis, e não o herói de origem nobre ou divina (D’ONOFRIO, 1990, p. 383).

A observação crítica da realidade e a crença nas ciências como meio para entender o homem e a sociedade eram os princípios estéticos e ideológicos do Realismo, que foram intensificados no Naturalismo.

3 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS

A prosa realista inicia-se com o francês Honoré de Balzac (1799-1850), apontado como pai do romance moderno. Para Carpeaux (2012c, p. 25):

A história do romance como gênero literário divide-se em duas épocas: antes e depois de Balzac. Com ele, até o termo mudou de sentido. Antes de Balzac, “romance” fora a relação de uma história extraordinária, "romanesca", fora do comum. Depois será o espelho do nosso mundo, dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos.

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Nas reflexões acima, Carpeaux procura destacar o compromisso do Realismo com a verdade, pois o movimento literário realista atingiu "o grau mais elevado de verossimilhança na escolha e no arranjo estético do material ficcional”, reforça D’Onofrio (1990, p. 383).

Nesse sentido, Balzac foi o autor que retratou a sociedade do século XIX de forma mais perspicaz, através da monumental obra Comédia humana — um conjunto de 89 romances que faz um contraponto à Divina Comédia, de Dante Alighieri. A produção literária de Balzac levou 21 anos para ficar pronta. Ela divide-se em três partes. Na primeira, há uma descrição dos costumes da sociedade burguesa. Na segunda, encontramos pensamentos reflexivos sobre a vida; e na terceira parte o autor apresenta uma análise sobre o comportamento humano diante das instituições sociais. Sem dúvida, Balzac conseguiu captar profundamente a sua época.

A narrativa realista francesa ainda realça nomes como Guy de Maupassant (1850-1880), escritor de contos, romances e novelas. Gustave Flaubert (1850-1893) igualmente pautou suas produções pela objetividade, imortalizando a obra Madame Bovary, publicada em 1857. A seguir, você fará a leitura de um trecho da obra, no qual é representada, sem idealizações, a vida conjugal dos personagens Charles e Ema Bovary.

[…] quanto mais próximas estivessem as coisas, mais o pensamento se lhe desviava delas. Tudo quanto a rodeava de perto, o campo enfadonho, burguesinhos imbecis, mediocridade da existência, lhe parecia uma excepção no mundo, um acaso particular a que se achava ligada, enquanto para além se estendia, a perder de vista, o imenso país das felicidades e das paixões. Nos seus desejos, ela confundia as sensualidades do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos costumes com a delicadeza do sentimento. Não precisaria o amor, como as plantas da Índia, de terrenos preparados, de uma temperatura determinada? […]

Charles tinha boa saúde e um óptimo aspecto; a sua reputação estava definitivamente estabelecida. Os camponeses estimavam-no por não ser orgulhoso. Acariciava as crianças, nunca entrava na taberna e, além disso, inspirava confiança pela sua moralidade. Acertava sobretudo com os catarros e as doenças de peito. Tendo muito receio de matar os doentes, Charles, realmente, pouco mais receitava do que calmantes, de quando em quando um emético, um escalda-pés ou sanguessugas. Mas Charles não tinha nenhuma ambição! Um médico de Yvetot, com quem tivera ultimamente uma conferência, chegara mesmo a humilhá-lo, à própria cabeceira do doente, diante da família, reunida. Quando Charles lhe contou, à noite, o sucedido, Emma levantou a voz, furiosa contra o colega do marido. Charles enterneceu-se. Beijou-a na testa, com uma lágrima. Mas ela estava exasperada de vergonha e tinha ganas de lhe bater; foi abrir a janela do corredor e respirar o ar fresco para se acalmar.

QUADRO 4 – MADAME BOVARY, DE GUSTAVE FLAUBERT

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- Que pobre homem! Que pobre homem! - dizia ela em voz baixa, mordendo os lábios.

Sentia-se, além disso, mais irritada com ele. Com a idade, Charles ia adquirindo certos hábitos grosseiros; à sobremesa entretinha-se a cortar as rolhas das garrafas vazias; depois de comer passava a língua sobre os dentes; quando comia a sopa, fazia barulho cada vez que engolia e, como tivesse começado a engordar, os olhos, já de si pequenos, pareciam subir-lhe para a testa, empurrados pelas bochechas.

Emma, às vezes, metia-lhe para dentro do colete a orla vermelha das camisolas, compunha-lhe a gravata, ou punha de parte as luvas desbotadas que ele se dispunha ainda a usar; e não era, como pensava Charles, por causa dele; era por ela própria, por expansão do seu egoísmo, por irritação nervosa. Às vezes também lhe falava de alguma coisa que tivesse lido, como do trecho de um romance, de uma peça nova, ou de histórias curiosas da alta-roda que vinham no folhetim; porque, afinal, Charles sempre era alguém, sempre com disposição para ouvir e pronto para dar a sua aprovação. Muitas confidências fazia ela à cadelinha galga! E tê-Ias-ia feito até às achas do fogão e ao pêndulo do relógio.

FONTE: <https://www.livros-digitais.com/gustave-flaubert/madame-bovary/70>. Acesso em: 16 jan. 2019.

No romance da literatura inglesa, figura Charles Dickens (1812-1870), com David Copperfield, sua obra mais famosa. Na Alemanha, o destaque vai para Thomas Mann (1875-1955), em Os Buddenbrooks: decadência de uma família, romance que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literaura, em 1929. Na Rússia, o expoente do realismo é Leon Tolstoi (1828-1910) e suas obras Guerra e Paz e Ana Karenina. Em Portugal, Eça de Queirós surge como expoente, retratando temas acerca da hipocrisia, do aborto, da insensibilidade do clero, do falso moralismo, do adultério, como visto nas ficções O crime do padre Amaro e O primo Basílio.

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DICAS

FONTE: <http://3.bp.blogspot.com/-gCdY2luNtaE/TuIeWL6IicI/AAAAAAAAAZU/jVnhmAARDGA/s1600/primobasc3adlio-euzinha_nit2.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2019.

O filme brasileiro Primo Basílio, lançado em 2007, foi inspirado na obra do autor português. Nele, podemos perceber como o cinema reelaborou a contundente crítica à sociedade presente no romance. A história criada por Eça de Queirós aborda o envolvimento amoroso de Basílio com Luísa, casada com Jorge.

No Brasil, Machado de Assis é um nome consagrado pela crítica literária mundial, considerando a reconhecida complexidade de sua obra e suas inúmeras possibilidades de leituras. Para Gledson (2006), Machado de Assis foi o grande responsável pelo amadurecimento das discussões em literatura brasileira e sua relação com a sociedade, elevando-as a um novo grau de autoconsciência, pois tinha noção dessa necessidade nacional. Tal postura nos leva a compreender como ele transcende seus predecessores, José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida. Machado de Assis seguiu o tom realista, criando enredos que abordam o estado íntimo do indivíduo, cujos contextos envolvem temas como clientelismo, o patriarcalismo, a escravidão, a mulher na vida social, entre outros assuntos que refletem sua época.

Envolto pelas novas ideias políticas, pelas teorias científicas e filosóficas que marcaram o contexto sociopolítico europeu, Machado de Assis refletiu esse momento de profusa transformação em sua arte literária. Após sua fase romântica, ele procurou enfatizar as questões psicológicas dos personagens, discutindo de modo introspectivo as vontades, as necessidades, os defeitos e as qualidades do ser humano, sob influência de grandes autores como Xavier de Maistre, Laurence Sterne, Dante Alighieri, Miguel de Cervantes e Shakespeare. É nesta fase mais madura que Machado de Assis rompe com o modelo convencional do romance linear, destacando-se com as obras: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1900) e Memorial de Aires (1908).

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O romance Memórias póstumas de Brás Cubas, considerado representante do Realismo brasileiro, foi o introdutor do romance psicológico. O estilo memorialista tem o foco narrativo de primeira pessoa cujo autor é Brás Cubas, na verdade, um defunto-autor que deseja escrever a sua autobiografia. Nascido numa família da elite carioca do século XIX, o narrador, já morto, ressurge do túmulo para contar sua própria história, dedicando-a “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver” (ASSIS, 2009, p.50), rememorando os fatos, sem recuperá-los fielmente.

Em Memórias póstumas as marcas intertextuais se tornam persistentes à medida que Machado de Assis retoma, através de Brás Cubas, algumas leituras de grandes clássicos da literatura mundial. As digressões filosóficas do narrador-personagem estão repletas de referências, alusões e citações de um texto em outro. Autores como Homero, Virgílio, Camões, Shakespeare, Byron e Leopardi constantemente dialogam com Brás Cubas em seu processo de autoanálise, de crítica existencial e social.

Veja no excerto do capítulo 129, Sem remorsos, como Machado de Assis se apropria desses artifícios intertextuais.

Não tinha remorsos. Se possuísse os aparelhos próprios, incluía nesse livro uma página de química, porque havia de decompor o remorso até os mais simples elementos com o fim de saber de um modo positivo e concludente por que razão Aquiles passeia à roda de Troia o cadáver do adversário, e lady Macbeth passeia à volta de sua sala a sua mancha de sangue. Mas eu não tenho aparelhos químicos, como não tinha remorsos; tinha vontade de ser ministro do Estado. Contudo, se hei de acabar este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem Lady Macbeth; e que, a ser alguma coisa, antes Aquiles, antes passear ovante o cadáver do que a mancha; ouvem-se no fim as súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militar e literária. Eu não ouvia as súplicas de Príamo, mas o discurso de Lobo Neves, e não tinha remorsos (ASSIS, 2009, p. 218).

Nesse trecho, percebemos o jogo intertextual, há referências à cena presente na obra Ilíada, de Homero, na qual Aquiles arrasta o cadáver de Heitor, filho de Príamo. O fragmento do romance ainda faz alusão à personagem de Macbeth, de Shakespeare. Lady Macbeth incentiva seu marido a assassinar o rei Ducan para assumir o trono. Sentindo remorso e culpa, ela vê tais manchas de sangue.

O uso do fluxo de autoconsciência também eleva a particularidade do romance. Técnica narrativa muito recorrente em autores como Sterne, cuja personagem de A vida e opiniões de Tristam Shandy soa bastante familiar, pois retrata um homem que conta sua própria história de forma irônica, rompendo a continuidade de seu discurso, destaca Bosi (2006b).

Como é possível notar, na literatura, muitas influências temáticas e formais são ressignificadas. O que faz da literatura um exercício contínuo de recriação de textos. E o que faz dos grandes clássicos, nas discussões consagradas por Ítalo Calvino, no célebre texto Por que ler os clássicos, que analisamos na Unidade 1,

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livros que provocam reflexões incessantes, impõem-se como inesquecíveis e se mimetizam no inconsciente coletivo e individual. No final da Unidade 2, você retomará esses diálogos textuais lendo um artigo que entrecruza as obras de Cervantes e de Machado de Assis.

Machado de Assis absorveu as tendências literárias do Ocidente e observou intensamente a sociedade brasileira. Escreveu romances, peças de teatro, poemas, contos e crônicas, críticas literárias, além de ter traduzido obras estrangeiras e publicado importantes artigos jornalísticos.

Você pode conferir o amplo acervo machadiano no site do autor. Ao navegar pela página, aproveite para acessar as produções acadêmicas, os depoimentos de estudiosos e conhecer um pouco mais sobre a biografia de Machado de Assis.

Confira também o acervo com obras, imagens e estudos críticos sobre o autor disponível na Biblioteca Miguel de Cervantes, no portal dedicado ao escritor brasileiro.

IMPORTANTE

(a) (b)

FONTES: (a) <http://www.machadodeassis.org.br/>; (b) <http://www.cervantesvirtual.com/portales/joaquim_maria_machado_de_assis/>.

Vale destacar algumas obras machadianas que foram adaptadas para a televisão e para o cinema, como o filme Memórias póstumas de Brás Cubas (2001) e a minissérie Capitu (2008), uma releitura do romance Dom Casmurro.

4 O NATURALISMO

A observação objetiva da realidade, no nível ideológico, será acentuada no Naturalismo com a demonstração de uma visão determinista da sociedade, cujo objetivo é revelar explicitamente os fenômenos coletivos, as condições sub-humanas de vida e de trabalho, como fez o escritor francês Émile Zola ao abordar temas considerados tabus para a época.

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Criador do “romance experimental”, Zola produziu narrativas literárias com o objetivo de retratar a totalidade da sociedade francesa de seu tempo, adotando um estilo incisivo que se aproxima do método científico de análise das relações sociais. Suas obras abordam as mazelas da classe trabalhadora parisiense, em A Taberna (L´Assommoir - 1876); a prostituição, expressa no romance Nana (1880); a luta dos mineradores, em Germinal (1885); a miséria dos ferroviários, em A besta humana (1890), entre outras temáticas.

O Naturalismo foi um movimento literário que acentuou o método cientificista e procurou retratar o ser humano como produto das forças da natureza, aguçando a reação às instituições sociais. Por isso, muitos estudiosos afirmam que o Naturalismo é uma radicalização do Realismo. Nos romances naturalistas, a rudeza e a animalidade são vistas como parcelas constituintes das pessoas. Elas são retratadas como produtos biológicos que agem de acordo com seus instintos. Ou seja, os escritores pregavam um estudo direto e não idealizado para o indivíduo e para a sociedade.

O Naturalismo propriamente dito, causador de tantas libertações, limitações e equívocos, é o Naturalismo francês: é indispensável defini-lo melhor, em relação ao Realismo precedente. Balzac observa os fatos sociais e julga-os conforme sua ideologia. Esta também lhe fornece um esquema em que enquadra suas observações: um universo social, fechado e estático, composto por classes mais ou menos rigidamente separadas. As pessoas só existem como membros dessas classes. Destacam-se, no seu ambiente, pelas paixões que impulsionam, paixões ou até manias; os personagens de Balzac viram tipos, personificações de ideias abstratas. Mas os indivíduos de Zola não são abstrações personificadas; são, ao contrário, casos atípicos, exemplificações de conceitos abstratos. Não são maníacos, obsediados por determinada paixão. Até pode acontecer que não tenham nenhum caráter definido. Pois o mundo de Zola já não é estático. Encontra-se em movimento, em evolução, conforme as leis da biologia, do darwinismo, da hereditariedade. A mera observação já não basta para dominá-los. Precisa-se, para tanto, de uma teoria cientificista (CARPEAUX, 2012e, p. 276-277).

Você terá uma dimensão da intensificação da crítica naturalista de Zola no fragmento exposto a seguir, do romance Germinal, um dos trabalhos mais famosos do autor. A narrativa destaca as péssimas condições de vida dos trabalhadores das minas de carvão na França do século XIX, abordando as relações e as condições precárias de trabalho, a luta de classes. O trecho em questão mostra como a Senhora Hennebeau, pertencente à classe abastada, percebe a situação dos mineradores.

[…]

A Sra. Hennebeau, sempre dando-se ares de mãe condescendente, sorvia o leite aos golinhos, quando um barulho estranho vindo de fora e que ia num crescendo a inquietou.

QUADRO 5 – EXCERTO DE GERMINAL, DE ÉMILE ZOLA

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— Que é isso?

O estábulo, construído à beira da estrada, possuía uma porta larga, para carroça, porque servia ao mesmo tempo de palheiro. As moças já tinham espichado os pescoços e espantavam-se com o que viam à esquerda: uma vaga negra, uma multidão que desembocava ululante do caminho de Vandame.— Diabo! — murmurou Négrel, que também tinha saído. — Será que os nossos gabolas decidiram brigar?— Devem ser outra vez os mineiros — disse a camponesa. — Já passaram por aqui duas vezes. Parece que a coisa vai mal, eles estão donos da região.

[…]

A Sra. Hennebeau, muito pálida, cheia de ódio contra aquela gentalha que estragava um dos seus prazeres, mantinha-se atrás lançando olhares oblíquos e enojados, enquanto Lucie e Jeanne, apesar de trêmulas, espiavam por uma fresta, não querendo perder nada do espetáculo.

[…]

As mulheres tinham aparecido, cerca de mil, cabelos ao vento, desgrenhados pela correria, os farrapos deixando à mostra a pele nua, nudez de fêmeas exaustas de parir mortos-de-fome. Algumas traziam os filhos nos braços, e levantavam-nos, agitando-os como uma bandeira de luto e vingança. Outras, mais jovens, com peitos estufados de guerreiras, brandiam paus, enquanto as velhas, monstruosas, berravam tão alto que as veias dos seus pescoços descarnados pareciam rebentar. Em seguida vieram os homens, dois mil furiosos, aprendizes, britadores, consertadores, verdadeira massa compacta que rolava como se fosse feita de um só bloco, apertada, confundida, a ponto de não se distinguirem as calças desbotadas ou os suéteres esfarrapados, esbatidos na mesma uniformidade terrosa. Os olhos faiscavam, viam-se apenas os buracos negros das bocas cantando a Marselhesa, cujas estrofes se perdiam num bramido confuso acompanhada pelo bater dos tamancos na terra dura. Acima das cabeças, entre a floresta de barras de ferro, passou um machado, bem ao alto. Esse único machado, que era como o estandarte do bando, desenhava no céu claro o perfil aguçado de um cutelo de guilhotina.

— Que caras horrendas! — balbuciou a Sra. Hennebeau. Négrel disse entre dentes:

Realmente, a cólera, a fome, os dois meses de sofrimentos e aquela correria desenfreada pelas minas tinham transformado em mandíbulas de animais ferozes as feições plácidas dos mineiros de Montsou. Naquele momento o sol desaparecia; os últimos raios, de um púrpuro sombrio, pareciam ensanguentar a planície. E a estrada também pareceu lavada em sangue; as mulheres e os homens continuavam marchando, cobertos de sangue, como carniceiros em plena matança.

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[…]

Era a visão vermelha que arrastaria a todos, fatalmente, numa dessas noites sangrentas desse fim de século. Sim, uma noite, o povo em torrentes, desenfreado, correria assim pelos caminhos, gotejando o sangue burguês, exibindo cabeças, semeando o ouro dos cofres arrombados. As mulheres gritariam, os homens abririam suas queixadas de lobos, prontos para morderem. Sim, seriam os mesmos farrapos, o mesmo matraquear de tamancos grosseiros, a mesma turba assustadora, suja, de hálito fétido, varrendo o mundo caduco com a sua irresistível avalanche de bárbaros. Arderiam incêndios, nas cidades não ficaria pedra sobre pedra, regredir-se-ia à vida selvagem das florestas após o grande cio, o grande rega-bofe, em que os pobres, numa só noite, extenuariam as mulheres e esvaziariam as adegas dos ricos. Não sobraria nada, as fortunas e os títulos das situações adquiridas desapareceriam, até o dia em que talvez desabrochasse uma nova sociedade. Sim, eram essas coisas que estavam passando pela estrada, como uma força da natureza, e vinha delas o vento terrível que lhes açoitava os rostos.

FONTE: Zola (2006, p. 273-275)

DICAS

Outro filme interessante que estabelece um diálogo com a literatura é Germinal, uma releitura feita por Claude Berri, em 1993, baseada no romance de Émile Zola.

FONTE: <https://images.justwatch.com/poster/34990700/s276/germinal>. Acesso em: 20 mar. 2019.

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TÓPICO 3 | REALISMO E NATURALISMO

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LEITURA COMPLEMENTAR

Diálogo textual: el Quijote y la obra de Machado de Assis

María Augusta da Costa Vieira

1 Machado de Assis, Cervantes y Carlos Fuentes

Carlos Fuentes fue el que se dio cuenta de la intensa relación de parentesco entre los dos escritores al constatar en la obra del brasileño una concepción novelística similar a la de Cervantes, que se manifiesta por medio de la recurrencia a muchos de los procedimientos narrativos utilizados en el Quijote (Fuentes 1998: 8-16). Machado de Assis, según Fuentes, fue el único escritor iberoamericano del siglo XIX que recuperó las sendas cervantinas, inscribiéndose en lo que él designaría como la tradición de la Mancha.; los demás novelistas, según el escritor mexicano, estarían circunscritos a otra tradición, la de Waterloo, y, por lo tanto, no utilizaron en sus creaciones los artificios narrativos presentes en la obra del manco de Lepanto.

La tradición de la Mancha, tan característica como fundamental para la novela moderna, correspondería a la forma narrativa iniciada por Cervantes y seguida por Sterne y Diderot, en que predominan las técnicas de la metaficción, la ironía, la mezcla de los géneros, la poética de la digresión, entre otros procedimientos, en un discurso que tiene conciencia de su naturaleza ficcional. La tradición de Waterloo sería la contrapartida realista que encuentra en Stendhal, Balzac y Dostoievski su mayor representación y que, basándose en la experiencia, trata de imitar en la narrativa las marcas del discurso histórico.

La excepcionalidad de la obra de Machado de Assis en el context decimonónico iberoamericano, efectivamente, tiene mucho que ver con la forma narrativa cervantina como observa Fuentes; así como también con la de Laurence Sterne y Xavier de Maistre, según indica en su prólogo el propio narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, novela clave del escritor brasileño publicada en 1881. Sin embargo, si es posible observar las improntas de la obra cervantina en la prosa de Machado de Assis, el origen de esa nueva forma encuentra sus raíces en una vieja tradición de fines de la Antigüedad, presente en los textos de Luciano y de los filósofos cínicos.

En el caso de la obra de Machado de Assis y, en particular, de Memórias póstumas, como señaló José Guilherme Merquior (1990: 5-9), las técnicas de composición, la mezcla de estilos, así como el humor filosófico-mordaz y la irreverencia en relación a los principios de composición de un relato verosímil dialogan con la obra de Luciano de Samosata y, más específicamente, con el Diálogo de los Muertos. Algunos de los estudios críticos publicados en los últimos años señalan la filiación del novelista brasileño a la tradición iniciada por este autor del siglo II, de quien Machado conservaba algunas obras en su biblioteca.

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Si bien no se puede decir lo mismo de Cervantes, se sabe que los textos del Luciano clásico junto a los de los cínicos fueron muy estimados por los humanistas peninsulares a lo largo del siglo XVI y, de entre los griegos y latinos que se traducen en España, Luciano es especialmente apreciado y traducido, incluso por Erasmo (Grigoriadu, 2005). La importancia que Cervantes atribuye a la parodia de las formas consagradas, la mezcla de géneros, la subversión de discursos y verdades establecidas, el punto de vista distanciado y la creación de un texto auto-reflexivo que describe su propia condición son procedimientos narrativos que se encuentran en los cínicos y, naturalmente, en Luciano. Riley, en uno de sus estudios sobre El licenciado Vidriera y El coloquio de los perros, pone en evidencia las relaciones de Cervantes con la tradición de los cínicos presente no sólo en las novelas mencionadas sino también en otras partes de la obra cervantina (Riley, 2001: 219-238).

Lo que parece ser más prudente en este caso, sin ignorar la importancia de Cervantes en la formación de la novela como género, sería considerar tanto al novelista brasileño como al autor del Quijote como pertenecientes a una misma tradición literaria que, entre otras cosas, entiende que la narrativa es un diálogo intenso con variadas formas discursivas, estructurado sobre la noción de parodia. En este caso, Cervantes no sería exactamente el padre de Machado, como le hubiera gustado a Carlos Fuentes, sino más bien su padrasto.

[…]

FONTE: VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Diálogo textual: el Quijote y la obra de Machado de Assis. In: SCHMIDT-WELLE, Friedhelm; SIMSON, Ingrid. El Quijote en America. Amsterdam - New York: Rodopi B.V, 2010, p. 145-160

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A segunda metade do século XIX foi marcado pelas diferentes doutrinas difundidas na Europa, que acentuaram a análise objetiva da sociedade e impulsionaram os estudos científicos. Dentre elas, destacam-se a concepção do Socialismo científico, de Karl Marx, a Teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, o Determinismo, de Hippolyte Taine, e o Positivismo, defendido por Auguste Comte.

• O Realismo rejeitou as idealizações neoclássicas e românticas, buscando retratar a realidade de forma objetiva, tal como expressam as narrativas dos autores Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Eça de Queirós, Machado de Assis, entre outros.

• Naturalismo foi uma vertente literária mais radical que procurou denunciar em suas obras os problemas sociais da época e as situações extremas vividas por suas personagens, características nitidamente observáveis nas narrativas de Émile Zola, precursor do movimento que surgiu na França.

• A intertextualidade é uma característica da linguagem que se estabelece quando os textos dialogam entre si, ou seja, quando há uma alusão explícita ou implícita de um texto literário em outro, como acontece nas obras de Cervantes e de Machado de Assis. Esse recurso utilizado pelos autores amplia o conhecimento do leitor sobre a riqueza e a complexidade do sistema literário.

RESUMO DO TÓPICO 3

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AUTOATIVIDADE

1 A partir das reflexões apresentadas neste tópico sobre o contexto histórico e social oitocentista, elabore um texto dissertativo contemplando os seguintes aspectos:

a) os eventos e as ideias que influenciaram o modo como a literatura representa o mundo;

b) a visão objetiva da realidade e as relações entre os textos literários e seus contextos de produção.

2 Considerando as discussões de María Augusta da Costa Vieira no excerto do artigo Diálogo textual: el Quijote y la obra de Machado de Assis, expostas como sugestão de leitura complementar, analise as asserções a seguir e a relação proposta entre elas.

I. A inventividade literária de Machado de Assis estabelece conexões com a forma narrativa de Cervantes.

PORQUE

II. Os autores pertencem à mesma tradição literária que entende a narrativa como um diálogo intenso com várias formas de discurso, estruturado na noção de paródia.

a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.

b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.

c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

3 Para Antonio Maura (2018), os escritores Cervantes e Machado de Assis surgiram em momentos históricos e estéticos cruciais. Seus trabalhos contribuíram para uma nova abordagem tanto na estrutura narrativa quanto no tratamento do próprio autor. Leia abaixo os fragmentos dos prólogos dos romances Dom Quixote de La Mancha e Memórias póstumas de Brás Cubas e responda à questão seguinte.

Texto 1

Desocupado lector: sin juramento me podrás creer que quisiera que este libro, como hijo del entendimiento, fuera el más gallardo y más discreto que pudiera imaginarse. Pero no he podido yo contravenir al orden de naturaleza; que en ella cada cosa engendra su semejante. Y así, ¿qué podrá engendrar el estéril y mal cultivado ingenio mío sino la historia de un hijo seco, avellanado,

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antojadizo y lleno de pensamientos varios y nunca imaginados de otro alguno, bien como quien se engendró en una cárcel, donde toda incomodidad tiene su asiento y donde todo triste ruido hace su habitación?

Texto 2

Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.

FONTE: MAURA, A. El autor y sus máscaras: Cervantes y Machado de Assis. Revista de Estudios Brasileños. v. 5, n. 9, 16 mar. 2018, p. 56.

Com base nas discussões apresentadas ao longo dos nossos estudos e nos fragmentos acima, podemos inferir que:

I. Nos romances de Cervantes e Machado de Assis os narradores apresentam traços melancólicos que refletem peculiaridades histórico-culturais.

II. A prosa realista de Machado de Assis é caracterizada por um jogo intertextual e por sua linguagem irônica.

III. Em ambas as obras os narradores sinalizam aproximações, desafiam e estabelecem um diálogo com o leitor.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

4 (ENADE, 2008)

Texto 1

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas uma infinidade de portas e janelas alinhadas. [...] Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham o pé na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante sensação de respirar sobre a terra. Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas, fazendo compras.

FONTE: Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Ática, 1989, p. 28-9.

Texto 2

Aliás, o cortiço andava no ar, excitado pela festa, alvoroçado pelo jantar, que eles apressavam para se dirigirem a Montsou. Grupos de crianças corriam,

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homens em mangas de camisa arrastavam chinelos com o gingar dos dias de repouso. As janelas e as portas escancaradas por causa do tempo quente deixavam ver a correnteza das salas, transbordando em gesticulações e em gritos o formigueiro das famílias.

FONTE: Émile Zola. Germinal. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 136.

Texto 3

Aluísio Azevedo certamente se inspirou em L’Assommoir (A taberna), de Émile Zola, para escrever O cortiço (1890), e por muitos aspectos seu texto é um texto segundo, que tomou de empréstimo não apenas a ideia de descrever a vida do trabalhador pobre no quadro de um cortiço, mas um bom número de pormenores, mais ou menos importantes. Mas, ao mesmo tempo, Aluísio quis reproduzir e interpretar a realidade que o cercava e sob esse aspecto elaborou um texto primeiro. Texto primeiro na medida em que filtra o meio; texto segundo na medida em que vê o meio com lentes de empréstimo. Se pudermos marcar alguns aspectos dessa interação, talvez possamos esclarecer como, em um país subdesenvolvido, a elaboração de um mundo ficcional coerente sofre de maneira acentuada o impacto dos textos feitos nos países centrais e, ao mesmo tempo, a solicitação imperiosa da realidade natural e social imediata.

FONTE: Antonio Candido. De cortiço a cortiço. In: O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: 1004, p.106-7/128-9.

Assinale a opção em que a relação intertextual entre O Cortiço e Germinal é interpretada pelos parâmetros críticos apresentados no texto de Antonio Candido acerca da relação entre a obra do brasileiro Aluísio Azevedo e a do francês Émile Zola.

FONTE: <https://www.aprovaconcursos.com.br/questoes-de-concurso/prova/inep-2008-enade-letras>. Acesso em: 21 mar. 2019.

a) ( ) O texto de Aluísio Azevedo é um texto primeiro em relação ao de Zola porque foi escrito anteriormente e influenciou a produção naturalista do escritor francês.

b) ( ) A relação de proximidade entre o texto de Azevedo e o de Zola evidencia que o diálogo entre os textos os desassocia da realidade social em que foram produzidos.

c) ( ) O texto de Aluísio Azevedo, por suas condições de produção, está submetido ao modelo naturalista europeu, ao mesmo tempo em que atende a demandas da realidade nacional.

d) ( ) O Cortiço é um texto segundo em relação ao texto de Zola porque é, sobretudo, a duplicação do modelo literário francês e da realidade social das classes operárias europeias.

e) ( ) A presença de elementos do naturalismo francês em O Cortiço é indicativo da troca cultural que ocorre no espaço do intertexto, independentemente das realidades locais de produção.

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TÓPICO 4

AS ESTÉTICAS DO FIM DO

SÉCULO XIX

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOVimos que o almejado desenvolvimento econômico e o surgimento de

inovações tecnológicas resultaram num pensamento materialista e cientificista que não foi assimilado de igual maneira por todos os grupos sociais. Datam dessa época as manifestações literárias do Parnasianismo e do Simbolismo.

Neste tópico, as discussões apresentadas colocam em evidência a poética parnasiana, com seu culto à forma, à norma, em contraponto à poesia romântica que cultivava versos mais livres. Dentre as várias tendências que surgiram na literatura oitocentista, o Simbolismo, apresentado mais adiante, se encarregará de retomar os anseios românticos, expressando os devaneios dos poetas e rompendo com os padrões convencionais.

2 O PARNASIANISMO

O Parnasianismo, movimento contemporâneo do Realismo e do Naturalismo, foi uma tendência literária exclusivamente poética que não compartilha um desejo de intervenção sobre a realidade, como acontece na prosa literária dos movimentos anteriores. A estética parnasiana, em alusão ao monte Parnaso situado na Grécia, lugar sagrado dos poetas, surgiu e se concentrou mais na França, influenciada por Théophile Gautier (1811-1872), Théodore de Banville (1823-1891) e Leconte de Lisle (1818-1894) que, junto com vários escritores, se reuniam e publicavam antologias de poesias intituladas Le Parnasse Conteporaim (1866). O movimento também foi seguido por outros grandes poetas, apelidados de "poetas malditos", que acompanhavam as tendências poéticas, mas não se prendiam a elas. Entre eles, estão Charles Baudelaire (1821-1867), Paul Verlaine (1844-1896) e Stéphane Mallarmé (1842-1898).

A poesia parnasiana propõe um retorno ao modelo estético clássico (faz referências à mitologia e a personagens históricas). Há ainda um compromisso com ornamentação, a forma e o lirismo, com a expressão da beleza sem um teor utilitarista (ou seja, sem finalidades práticas), o que resultou no ideal "da arte pela arte", teorizado por Gautier, no prefácio de seu romance Mademoiselle de Maupin. Suas concepções, divulgadas pelos poetas franceses da época, defendiam a ideia de que a poesia deveria ser composta com um fim em si mesma. Então, compartilhando os anseios com Art Noveau (arte nova), característica da Belle Époque francesa, os poetas parnasianos valorizavam de modo extremo a forma

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da arte, baseados na crença de que sua função essencial era produzir o belo. O projeto literário do Parnasianismo visava, portanto, devolver a beleza formal para a poesia, eliminando também os excessos sentimentalistas dos românticos.

A expressão francesa Belle Époque significa "bela época" e representa o período próspero e otimista europeu, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento das artes. Trata-se de vida ligada às agitações culturais e artísticas da vida cotidiana urbana.

NOTA

Vale ressaltar que a lírica parnasiana só se destacou na França e no Brasil, não sendo cultivada em outros países. No cenário brasileiro, Alberto de Oliveira (1859-1937), Raimundo Correia (1859-1911), Olavo Bilac (1865-1918), o poeta parnasiano mais conhecido, que cultivaram as tendências mais conservadoras vigentes, contemplando um vocabulário culto, empregando construções sintáticas diferentes das usuais.

Observe, no poema Perfeição (Quadro 6), de Olavo Bilac, alguns aspectos da poética parnasiana:

Perfeição

Nunca entrarei jamais o teu recinto: Na sedução e no fulgor que exalas, Ficas vedada, num radiante cinto De riquezas, de gozos e de galas.

Amo-te, cobiçando-te... - E, faminto, Adivinho o esplendor das tuas salas,

E todo o aroma dos teus parques sinto, E ouço a música e o sonho em que te embalas.

Eternamente ao meu olhar pompeias, E olho-te em vão, maravilhosa e bela,

Adarvada de altíssimas ameias.

E à noite, à luz dos astros, a horas mortas, Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!

Como um bárbaro uivando às tuas portas!

QUADRO 6 – PERFEIÇÃO, DE OLAVO BILAC

FONTE: D'Onofrio (1990, p. 381)

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TÓPICO 4 | AS ESTÉTICAS DO FIM DO

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O título do poema já evidencia a busca pela perfeição artística, a principal proposta da estética parnasiana. O exemplo desse soneto, composto de palavras eruditas ("adarvada", "ameias" etc.), que não fazem parte do uso corrente da norma culta, reforça a busca dos parnasianos pelos modelos formais clássicos, como os versos de Petrarca e Camões, lembra D'Onofrio (1990).

Contrapondo esse movimento, veremos adiante a aversão dos poetas simbolistas às soluções racionalistas e mecânicas e a preferência pelas emoções do sujeito, pela subjetividade.

3 O SIMBOLISMO

Em fins do século XIX, os artistas simbolistas manifestaram o desejo de investigar o desconhecido, o poder dos símbolos, a experiência sensorial, a apreensão da realidade de modo subjetivo. Etimologicamente, "a palavra 'símbolo” vem do grego sumbalo, que significa "colocar junto", “associar uma coisa com a outra". Na literatura, "a poesia universal sempre foi essencialmente simbólica pelo uso de metáforas, imagens, analogias, que exprimem de modo figurativo ideias e sentimentos do poeta", salienta D’Onofrio (1990, p. 403). O símbolo, representando os vários meios de captação do elemento estético, foi a categoria fundante do Simbolismo, movimento inicialmente denominado decadentismo — em referência à impressão pessimista dos intelectuais franceses em relação à religião, aos costumes, à justiça.

O afastamento do cientificismo e do positivismo, que marcaram a segunda metade do século XIX, leva os simbolistas a buscarem o elemento místico, o estado da alma, o devaneio, o sonho, a existência de uma dimensão para além da realidade concreta. Para os poetas simbolistas, a exaltação do progresso, do materialismo e da crença absoluta na razão não dão conta de explicar todas as dimensões do mundo e do indivíduo. Por isso, eles criaram um foco de resistência, buscando compreender o mundo pelos sentidos, pela intuição, pois em poesia, a palavra não é somente o instrumento da compreensão racional, ela tem o poder de provocar sensações inusitadas.

Diferentemente da perspectiva objetiva que vigorou na época, podemos dizer que o Simbolismo se situa, de certa maneira, muito próximo das orientações românticas. Os autores simbolistas utilizaram vários recursos para estimular o leitor a mergulhar nas sensações sugeridas. Por exemplo, a sinestesia, figura de linguagem que faz referência a diferentes domínios sensoriais (visão, tato, olfato, paladar e audição) foi muito explorada pelos poetas. Podemos encontrar nos textos simbolistas uma misturava de expressões sobre o cheiro, o gosto ou a cor de um sentimento. "Assim como o Romantismo, o Simbolismo foi uma revolta: contra o rigorismo métrico dos classicistas, respectivamente dos parnasianos; contra a tirania de uma cultura formal, obsoleta" (CARPEAUX, 2012e, p. 34). Vale lembrar que embora os simbolistas sejam fortemente subjetivos e tenham em comum um ideal de arte, priorizem o mistério sobre a ciência, não podemos reduzi-los a um movimento único, homogêneo, porque a estética literária do Simbolismo foi realizada de diversas maneiras por diferentes representantes.

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O grande precursor do Simbolismo foi o inovador Charles Baudelaire. A poética baudelaireana perpassou por quase toda a poesia francesa e se disseminou para outros países do mundo ocidental. A sua influência, segundo Massaud Moisés:

[...] não foi apenas de ordem ético-literária: operou-se igualmente no campo da expressão, graças à teoria das ‘correspondências', ou seja, das sinestesias entendidas como um processo cósmico de aproximação entre as realidades físicas e metafísicas, entre os seres, as cores, os perfumes e o pensamento ou emoção. Larga e densa ressonância tiveram as ‘correspondências', mercê do mundo novo que descortinaram. Por meio delas e do satanismo, Baudelaire impregnou definitivamente a poesia posterior, a tal ponto que esta apenas se deixa compreender e julgar quando se considera o impacto perturbador de As flores do mal sobre a poesia convencional que era cultivada até o seu aparecimento (MOISÉS, 1973, p. 21 apud TORRES, 1998, p. 16-17).

Les fleurs du mal (As flores do mal), principal obra de Baudelaire, reúne poemas que questionam as convenções morais da sociedade francesa e abordam liricamente temas que vão do sonho ao pesadelo, do assunto mais sublime ao repugnante, representando a modernidade, a celeridade, a fugacidade da vida, o belo através de imagens insólitas. O poeta também expressa um estado pensativo de tristeza e melancolia, de tédio existencial, que fora associado ao termo francês spleen, significando um profundo sentimento.

Leia abaixo o soneto A uma transeunte, que registra uma cena numa rua em Paris, um encontro no Bulevar dos Capuchinhos.

A uma transeunte

A rua ia gritando e eu ensurdecia.Alta, magra, de luto, dor tão majestosa,Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas,Erguia e agitava a orla do vestido;Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.Crispado como um excêntrico, eu bebia, então,Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,A doçura que encanta e o prazer que mata.Um raio… e depois noite! – Efêmera beldadeCujo olhar me fez renascer tão de súbito,Só te verei de novo na eternidade?Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,Tu que eu teria amado, tu que bem sabias!

QUADRO 7 – A UMA TRANSEUNTE, DE CHARLES BAUDELAIRE

FONTE: D'Onofrio (1990, p. 409)

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Baudelaire faz referência ao estilo de vida transeunte da cidade, esse espaço novo, transitório, que expressa o homem na multidão, que simboliza a modernidade. O poeta também apresenta suas concepções estéticas e a representação da vida instável e fugidia, no texto O pintor da vida moderna (1863). Suas reflexões, de certa forma, dialogam com a pintura de Claude Monet (1840-1926), exposta abaixo, na qual o artista capta a vida na cidade, o vai-vem de pessoas no agitado bulevar parisiense.

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Boulevard_des_Capucines_(Monet)>. Acesso: 25 nov. 2018.

FIGURA 6 – O BULEVAR DOS CAPUCHINHOS (1873-1874), DE CLAUDE MONET

No Simbolismo, ainda se destacam autores como Stéphane Mallarmé, seu poema mais conhecido é Um lance de dados, uma produção inusitada repleta de imagens polifônicas. Os versos abaixo evidenciam a excentricidade poética de Mallarmé (2013, p. 103).

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[...] UMA CONSTELAÇÃO

fria de esquecimento e de desuso não tanto que ela não enumere sobre alguma superfície vacante e superior o choque sucessivo de um contar total em formação

vigiando duvidando rolando brilhando e meditando

antes de se deter em algum ponto derradeiro que o sagre

Todo o Pensamento emite um Lance de Dados

Na poesia de Mallarmé, há uma constelação de vozes desconcertantes sobre a página. Sua escrita é múltipla, plural, uma criação que evoca os estranhamentos, as relações descontínuas e híbridas da linguagem e do sujeito, que se intensificaram, sobretudo, a partir da inquietação intelectual dos românticos aos tempos de crises sociais da segunda metade do século XVIII.

O simbolista Paul Verlaine (1844-1896) publicou, em 1884, um artigo intitulado Les poètes Mauditis (Os poetas malditos), referindo-se à nova geração de artistas inovadores e revolucionários, como Baudelaire. Verlaine também escreveu a obra Art poétique, apresentando reflexões fundamentais sobre o conceito de moderno de poesia que, aliás, é bastante amplo. Tal como salienta Souza (2011), adotamos a palavra moderno, apto a qualificar aquilo que é recente, no sentido atribuído à concepção de literatura que rompe com a noção clássica, que fora reformulada pelas estéticas medievais e neoclássicas (renascentistas, barrocas, arcádicas), ressurgindo no século XVIII, firmando-se no século XIX, e alcançando um status mais radical no século XX, com as experiências vanguardistas, que influenciaram a noção de modernismo.

O simbolismo francês, na América hispânica, foi assimilado pelo movimento modernista, difundido em vários países, com destaque para o escritor nicaraguense Rubén Darío e o cubano José Martí. No Brasil, a circulação dos textos simbolistas não teve tanta repercussão como aconteceu em outros países em que essa estética se manifestou. O poeta Cruz e Sousa, considerado o maior representante do movimento simbolista brasileiro, se destaca por explorar o subjetivo, o espiritual, por expressar uma profundidade filosófica e existencial. Aliás, existem muitas afinidades e cruzamentos entre sua obra e a de Baudelaire.

Veja, por exemplo, como o soneto O Assinalado, de Cruz e Sousa, apresenta reflexões sobre a condição do poeta na modernidade.

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TÓPICO 4 | AS ESTÉTICAS DO FIM DO

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Tu és o louco da imortal loucura;O louco da loucura mais suprema.A terra é sempre a tua negra algema,Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,Mas essa mesma desventura extrema,Faz que tu'alma suplicando gemaE rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande assinalado;Que povoas o mundo despovoadoDe belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica,Toda a audácia dos nervos justifica,Os teus espasmos imortais de louco.

QUADRO 8 – O ASSINALADO, DE CRUZ E SOUSA

FONTE: <http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/assinalado.htm>. Acesso em: 10 fev. 2019.

DICAS

O filme Eclipse de uma paixão (1995) é uma interessante referência audiovisual sobre o Simbolismo, porque mostra como era a vida dos poetas “malditos" franceses, destacando o romance proibido entre Verlaine e Arthur Rimbaud.

Há ainda o filme Cruz e Sousa – Poeta do Desterro (1998), uma adaptação da obra e da vida do poeta simbolista brasileiro.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• As manifestações literárias do final do século XIX refletem um momento complexo de transição para o século XIX e apresentam concepções estéticas distintas.

• A linguagem do Parnasianismo propaga o ideal da “arte pela arte”, afastando qualquer aspecto utilitarista atribuído à literatura.

• O culto à forma e a objetividade temática são os traços mais característicos da poesia parnasiana, declaradamente anti-romântica, salvo as exceções.

• A poesia do Simbolismo procura desconstruir a linguagem convencional, mostrando uma visão subjetiva e espiritual do mundo, o estado da alma de forma sensível, os sonhos, os devaneios e as alucinações, através de elementos sinestésicos que aguçam os diversos sentidos do leitor.

• Os escritores Verlaine, Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé e Baudelaire são considerados os precursores da transformação poética da modernidade.

RESUMO DO TÓPICO 4

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AUTOATIVIDADE

1 Leia abaixo um trecho do soneto Correspondências, que faz parte da obra poética Les fleurs du mal, de Baudelaire, publicada em 1857.

Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilaresDeixam sair às vezes palavras confusas:Por florestas de símbolos, lá o homem cruzaObservado por olhos ali familiares.Tal longos ecos longe lá se confundemDentro de tenebrosa e profunda unidadeImensa como a noite e como a claridade,Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.Perfumes de frescor tal a carne de infantes,Doces como o oboé, verdes igual ao prado,– Mais outros, corrompidos, ricos, triunfantes,Possuindo a expansão de algo inacabado,Tal como o âmbar, almíscar, benjoim e incenso,Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2002.

A partir das ideias expressas no poema acima, podemos inferir que:

I. Os primeiros versos sugerem que a natureza emite palavras misteriosas.II. Há no poema uma correspondência entre diferentes sensações que faz

referência à sinestesia literária. III. Nos dois tercetos, o eu lírico afirma que há na natureza vegetal dois tipos

de perfumes, os mais frescos e os mais vistosos.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

2 Leia o poema Bilhete a Baudelaire, em que o autor brasileiro Vinícius de Moraes (1913-1980) revisita a tradição literária da modernidade. Em seguida, analise as asserções.

Bilhete a Baudelaire Poeta, um pouco à tua maneiraE para distrair o spleen

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Que estou sentindo vir a mimEm sua ronda costumeira Folheando-te, reencontro a raraDelícia de me depararCom tua sordidez preclaraNa velha foto de Carjat Que não revia desde o tempoEm que te lia e te reliaA ti, a Verlaine, a Rimbaud... Como passou depressa o tempoComo mudou a poesiaComo teu rosto não mudou!

Los Angeles, 1947 FONTE: <http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/bilhete-baudelaire-0>. Acesso em: 10 dez 2018.

I. No poema, os traços da modernidade ficam evidentes na noção do eu lírico sobre a passagem do tempo.

II. O poema evoca poetas realistas franceses cujas produções literárias enfatizam o rigor formal e a expressão objetiva da realidade histórica do século XIX.

III. No poema, o termo spleen difundido pelo poeta francês Baudelaire representa um estado de melancolia, um sentimento de angústia que se aproximam das orientações românticas.

Está correto o que se afirma em:a) ( ) I, apenas.b) ( ) II, apenas.c) ( ) I e III, apenas.d) ( ) II e III, apenas.e) ( ) I, II e III.

3 Preencha corretamente as lacunas da assertiva exposta abaixo.

O movimento simbolista privilegia a ________ e se opõe ao pensamento______, voltando-se para o _________com temáticas religiosas e místicas através de uma linguagem capaz de aproximar campos sensoriais diferentes e transmitir a essência humana.

a) ( ) sensação – irracional – lirismo.b) ( ) razão – místico – objetivismo. c) ( ) emoção – materialista – subjetivismo.d) ( ) musicalidade – sentimentalista – pragmatismo.

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