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Viva a vanguarda: literatura brasileira contemporânea à luz da ruptura Dau Bastos * Ao olharmos para trás para avistar as Vanguardas europeias e os primeiros passos de nosso Modernismo, frequentemente somos tomados por um pensamento desalentador: um século depois de se inaugurar uma verdadeira avalanche de manifestos sobre os quais se pautaram guinadas cruciais, vivemos um tempo carente de ideias arrebatadoras. Do tom exclamativo dos anos de rompimento restou, na melhor das hipóteses, uma postura molemente indagativa: que fazemos se já se experimentou tudo? Caso alarguemos a visada para mirar a incontornável esfera política, encontramos ainda mais desânimo: chegamos ao século XX livres de engodos metafísicos e decididos a realizar o paraíso na Terra, todavia adentramos o novo milênio bombardeados de provas de nosso pendor para a vileza. Além de memoráveis revoluções internacionais terem resultado em ditaduras, o Brasil – talvez último celeiro da esperança – viu o idealismo tingido de conivência ou venda tão logo a esquerda chegou ao poder. A falta de perspectivas sequer encontra resistência na outrora prestigiosa intelligentsia, igualmente colocada em xeque. A figura do intelectual erigida por Zola ao publicar o destemido * Escritor e professor de Literatura Brasileira (UFRJ).

literatura ruptura

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  • Viva a vanguarda:literatura brasileira contempornea

    luz da ruptura

    Dau Bastos*

    Ao olharmos para trs para avistar as Vanguardas europeias

    e os primeiros passos de nosso Modernismo, frequentemente

    somos tomados por um pensamento desalentador: um sculo

    depois de se inaugurar uma verdadeira avalanche de manifestos

    sobre os quais se pautaram guinadas cruciais, vivemos um tempo

    carente de ideias arrebatadoras. Do tom exclamativo dos anos

    de rompimento restou, na melhor das hipteses, uma postura

    molemente indagativa: que fazemos se j se experimentou tudo?

    Caso alarguemos a visada para mirar a incontornvel esfera

    poltica, encontramos ainda mais desnimo: chegamos ao sculo

    XX livres de engodos metafsicos e decididos a realizar o paraso na

    Terra, todavia adentramos o novo milnio bombardeados de provas

    de nosso pendor para a vileza. Alm de memorveis revolues

    internacionais terem resultado em ditaduras, o Brasil talvez

    ltimo celeiro da esperana viu o idealismo tingido de conivncia

    ou venda to logo a esquerda chegou ao poder.

    A falta de perspectivas sequer encontra resistncia na

    outrora prestigiosa intelligentsia, igualmente colocada em xeque.

    A figura do intelectual erigida por Zola ao publicar o destemido

    * Escritor e professor de Literatura Brasileira (UFRJ).

  • Ensaios 34

    libelo antimilitar Acuso! (1898) chegou ao pice paladnico

    com Sartre e seu decidido engajamento. Entretanto, depois de

    tanto desatino individual e coletivo, quem se arvoraria a apon-

    tar caminho para a niilista consumada que a humanidade aca-

    bou se tornando?

    De toda maneira, Nietzsche pensou o niilismo como fora

    destrutiva, nascida da amargura e da decepo, mas tambm

    energia motriz, capaz de resultar em criao (Biaggi, V.: 1998, 28).

    Para limpar tal ambivalncia do aspecto de clich de auto-ajuda

    ou de mxima oriental, resta o cerrado crivo que a realidade se

    configura sempre que lhe damos a devida ateno.

    Assim, talvez nos seja facultado afirmar que parece re-

    mota a possibilidade de recuperarmos o el poltico, porm o

    tal pensamento nico no consegue conter o processo de popu-

    larizao de alguns conceitos-chave desenvolvidos por Marx e

    outros revolucionrios. Isso ganha ainda mais importncia em

    nosso perverso pas, onde manifestar descontentamento no

    mais exclusividade daqueles poucos antigamente chamados de

    conscientes.

    Retornando esttica, sabemos que buscar o novo um

    verdadeiro anacronismo. Da mesma forma, a romntica noo de

    gnio foi enterrada de vez por fatores como a desauratizao da

    obra de arte, a imensa variedade de veredas abertas produo e

    o adensamento demogrfico, com a consequente multiplicao

    do nmero de criadores em atividade. Contudo, resta a busca de

    originalidade, sem a qual reeditaramos a camisa-de-fora classicista.

    Podemos afirmar, por conseguinte, que continuamos habilitados a

    produzir o belo no sentido que Kant lhe empresta na Crtica do juzo

    (1790), enquanto correlato humano do sublime divino.

  • 35Viva a vanguarda...

    Finalmente, como estamos numa universidade pbli-

    ca, produzir reflexo no se afigura veleidade ou exorbitncia, e

    sim dever nosso, enquanto pesquisadores financiados pelo povo.

    Decididamente no podemos tomar o vazio tico, o fim dos ismos e o pudor de propor rumo como embaraos especulao. Ao con-trrio: mais que nunca urge abrir o campus, socializar intuies e achados, tomar parte nos debates em curso na sociedade. Se nos faltam respostas, sobram-nos perguntas e questionamentos. Dei-xar de formul-los por conta do universalismo que desacreditou os intelectuais menos modstia do que corpo mole ou covardia.

    nesse esprito que refarei o percurso da Belle poque francesa at os primrdios do Modernismo brasileiro, em esforo de triar uma herana extremamente fecunda, de modo a diferenar os arroubos e experincias que apenas iluminaram limites daquelas propostas que continuam nutrindo as prticas literrias em territrio nacional.

    Perenizao da pluralidade

    Costuma-se situar temporalmente a Belle poque de maneira equilibrada, datando-se seu incio em 1886 e estendendo sua vigncia at 1914.1 Encontramos o pico da euforia associado sempre simblica virada do calendrio, quando zerar o passado implica apostar no porvir. Na passagem para o sculo XX, em especial, a articulao dos trabalhadores prometia profundos avanos sociais, a valorizao do inconsciente e do subconsciente ampliava as chances de conhecimento

    1 o que encontramos nas mais variadas fontes, a exemplo da obra de referncia Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro, de Gilberto Mendona Teles (1987).

  • Ensaios 36

    do ser humano, a inveno do aeroplano parecia confirmar nossa

    vitria contra essa fora aterradora que a gravidade e o advento do

    cinematgrafo estendia o encanto da fico aos iletrados.

    A ento capital cultural do Ocidente experimentava toda

    essa excitao de maneira particularmente intensa, potencializada

    pela alegria de poder brindar paz com os histricos inimigos

    das cercanias. Nos charmosos terraos dos cafs parisienses,

    as bomias artsticas celebravam o sonho democrtico e o fim

    definitivo das escolas. De l para c, a utopia foi desbancada pelo

    desencanto, mas a diversidade de pensamento e produo artstica

    se firmou como perene. Sobreviveu ao assalto dos regimes de

    fora e, se continua sofrendo as injunes do mercado, prevalece

    como vivncia e horizonte.

    A literatura brasileira contempornea de qualidade no

    tem sequer trao do otimismo da Belle poque, com a qual porm

    partilha a pluralidade. Ao lado de escrevinhadores e poetastros li-

    mitados repetio de frmulas, encontram-se ficcionistas e poe-

    tas que produzem com conscincia, ocupam espaos prprios, pu-

    blicam textos que nada devem ao que se faz l fora e, em conjunto,

    constituem um vasto leque de estilos.

    Acresce-se que o aumento da populao alfabetizada e,

    por extenso, do nmero de pessoas que escrevem permite fa-

    lar em efervescncia. S no podemos esquecer que tal ebulio se

    deve principalmente misria secular em que continuamos mergu-

    lhados. A leitura e a escrita sempre foram to minguadas entre ns

    que parecem se destacar agora por contraste com um passado de

    densidade demogrfica menor.

    Por fim, se hoje h mais compatriotas produzindo textos

    que a redao se tornou prioridade na comunicao humana,

  • 37Viva a vanguarda...

    por conta dessa potente tecnologia que a informtica. Mesmo

    em domnios mais dados aos nmeros do que s letras, impe-se

    a necessidade de se redigir bem. No tocante rea literria, os sites

    e blogs aumentaram sobremaneira o espao de criao e circulao,

    facilitando inclusive a explorao das vias abertas pelas vanguardas.

    Herana depurada

    O termo vanguarda se vincula a frente e enfrentamento,

    pioneirismo e ruptura binmios de difcil ou impossvel cultivo

    na atualidade. Igualmente discrepante de nossa poca a aposta

    no amanh, o enaltecimento da velocidade, o aplauso aos smbolos

    do progresso, o mpeto de demolir bibliotecas, o af de acabar com

    os museus e a nefasta crena de que a guerra a nica higiene do

    mundo, conforme se l no primeiro manifesto futurista, publica-

    do no jornal francs Le Figaro de 20 de fevereiro de 1909.2 Essas e

    ou tras palavras de ordem indicam o deslumbre pelos avanos tec-

    nolgicos e o pendor ultradireitista da turma de Marinetti, a qual

    em 1919 se transformou em porta-voz do Partido Fascista Italiano.

    Como brotou ainda em 1905, o Futurismo a primeira van-

    guarda de uma lista organizada cronologicamente. O carter parado-

    xal de suas bandeiras gera um desconcerto salutar, na medida em que

    nos estimula a ser bastante crticos quando se trata de absorver esses

    movimentos fundamentais. separando tica e esttica que ficamos

    vontade para apreciar as reivindicaes futuristas que realmente

    importam: verso livre, imaginao sem fio e palavras em liberdade.

    2 Cf. Teles, op. cit., p. 85.

  • Ensaios 38

    O verso sem limitaes de mtrica e rima vinha sendo

    praticado, mas ao virar divisa ampliou as chances de se firmar.

    Uma de suas primeiras e mais eloquentes defesas verde-amarelas

    encontra-se no Prefcio interessantssimo a Pauliceia desvairada,

    onde Mrio de Andrade diz no achar mais graa nenhuma nisso

    da gente submeter comoes a um leito de Procusto (1922, 20).

    A imagem do mitolgico salteador que mutilava as vtimas

    suficientemente forte para revelar a importncia de se criar sem

    regras a priori, sob pena de no se satisfazerem as exigncias

    expressivas do sculo XX e continuar se confundindo frma

    e forma, conforme se l no poema-plataforma Os sapos, de

    Manuel Bandeira (1919).

    Quanto imaginao, sempre foi fiscalizada e contida,

    conforme se constata no alentado estudo empreendido por Luiz

    Costa Lima (1984, 1986 e 1988) sobre o empenho da Igreja, do

    Estado e de outras instncias em mant-la sob rdeas fortes e

    instrumentalizar seu uso. Mesmo em Kant, que na terceira Crtica

    demonstra que a arte resulta de um jogo capitaneado pela faculdade

    humana de que tratamos aqui, esta parece irresponsavelmente

    serelepe se comparada ao sisudo entendimento e ponderada

    razo. Se nos permitido dar mais um passo no sentido do

    desabuso interpretativo, podemos associar a imaginao a uma

    pipa portanto, vocacionalmente etrea , da qual os futuristas

    preconizaram o corte do barbante. Com o gesto no visavam

    fomentar a fabulao, e sim a lapidao da linguagem, do todo da

    estrutura mincia do fonema.

    Assim, deslizamos at as palavras em liberdade, ou seja, al-

    forriadas de amarras sintticas e semnticas. Praticantes de am bas

    as desfeitas com as quais se vira de ponta-cabea a gramtica, os

  • 39Viva a vanguarda...

    futuristas deixaram textos predominantemente transgressivos,

    dos quais se beneficiaram monumentos como Ulisses, de James

    Joyce (1922), e Grande serto: veredas, de Guimares Rosa (1956).

    Com o tempo, o uso reiterado naturalmente reduziu o efeito do

    trato ldico com a pontuao, da inveno de neologismos e da

    dilatao do significado at os plos do nonsense e da polissemia.

    Todavia, o desgaste no impede que atualmente mesmo os textos

    regrados se beneficiem da existncia de um territrio de explorao

    to vasto que seus limites nem sempre se deixam discernir.

    No mundo inteiro, arrostar regras perdeu o carter de

    preceito e se restringiu a mais uma opo. Assim se explica que os

    poetas brasileiros em atividade se sintam vontade para ir desde o

    desafio cabralino de criar na constrio at a entrega a construes

    to sutilizadas que parecem brotar espontaneamente. Na prosa, as

    trs grandes propostas futuristas ecoam em procedimentos como

    a incorporao de recursos da poesia, a diluio de sentido com

    vistas a minar a referencialidade e um notvel polimento textual.

    Intercmbio e especificidade

    Em lugar de comentar o Expressionismo e o Cubismo liter-

    rios, talvez seja mais proveitoso tomar os dois movimentos em sua

    preponderncia pictrica e, a partir da, traar paralelo com a produ-

    o textual. o que faz Anatol Rosenfeld (1996) ao descrever o pro-

    cesso de desrealizao migrando das artes plsticas para o romance.

    Percebemos isso a partir de um rpido retrospecto com in-

    cio em 1826, quando o francs Joseph Nicphore Nipce fez a pri-

    meira fotografia. Como morreu logo, a glria coube a seu ex-scio

  • Ensaios 40

    Daguerre, que treze anos depois apresentou o invento Cmara de

    Cincia da Frana. O novo artefato teve um efeito devastador entre

    os pintores, que se viram suplantados na tarefa de reproduzir a rea-

    lidade. A crise acabou se revelando profcua, pois forou um apro-

    veitamento mais seletivo dos dados externos, de modo a se repro-

    duzir menos e se produzir mais. O primeiro resultado consistente

    chegou a pblico em 1874, quando Claude Monet e amigos fizeram

    uma exposio da qual aflorou o nome Impressionismo.

    Esse benfico afastamento da mimese mais tacanha se des-

    dobrou no Expressionismo, que decorreu do uso da subjetividade

    no apenas como ponto de passagem de elementos colhidos fora,

    mas tambm como fonte de contedo e forma. deformao ex-

    pressionista correspondeu a reduo e o multifacetamento cubis-

    tas, e ambos os impulsos acabaram desaguando no Abstracionismo.

    Paralelamente, encontramos a poesia e a prosa fazendo percurso

    semelhante, para irem menos longe do que a pintura, mas ainda

    assim desobrigando-se de representar, aumentando o refinamento

    e logrando mais diferenciao.

    Como a luta contra a representao mais complicada no

    mbito da prosa, voltemos novamente ao sculo XIX, dessa vez no

    para ver a emergncia da imagem esttica da mquina fotogrfica,

    e sim da imagem em movimento do cinematgrafo. Inventado

    pelos irmos Lumire em 1895, o novo dispositivo logo se prestou

    a veicular a fico, da qual absorveu as tcnicas narrativas mais

    eletrizantes, privilegiadas em folhetins, histrias policiais e

    enredos sentimentais.

    Tanto quanto os pintores dos Oitocentos, os escritores dos

    Novecentos se viram obrigados a repensar seus materiais como

    forma de preservar a especificidade da produo. Para tanto, as

  • 41Viva a vanguarda...

    proposies estticas futuristas foram determinantes, na medida

    em que estimularam a experimentao, a partir da qual James

    Joyce fez brotar o romance moderno, que inaugurou uma linhagem

    paralela aos textos ficcionais condicionados a noes de gnero e

    satisfeitos em oferecer aquilo que o leitor j encontra na vida.

    Uma das investidas mais contundentes da literatura contra

    a tarefa menor de representar deu-se no tocante s balizas espa-

    ciotemporais. Se a filosofia afirma que percebemos a realidade a

    partir do espao (sentido externo) e do tempo (sentido interno),

    j em sua estreia, com Perto do corao selvagem (1944), Clarice Lis-

    pector embaralha a cronologia e a sequncia dos acontecimentos,

    cujos contextos so igualmente nebulentos.

    Na atualidade seria um despropsito considerar boa apenas

    a fico perpassada de radicalidade, de resto arriscada a repetir

    ousadias to importantes em si mesmas que se mostram monolticas.

    Resta, porm, a percepo de que essas experincias se projetam

    sobre toda uma faixa da prosa artstica brasileira na qual detectamos

    a autorreflexividade e outros traos que possibilitam s narrativas

    no somente perspectivarem a vida, mas a prpria literatura.

    Quanto poesia, desobrigou-se definitivamente de enredo,

    deu-se ainda mais ao significante e incorporou com afinco elipses e

    outros artifcios que, ao implodirem a conectabilidade, impem ao

    leitor a releitura e a recriao sempre levando em conta que nada

    norma e tudo escolha.

    Abaixo a pose

    Neste passeio pelas vanguardas com o duplo objetivo de

    focalizar seus principais traos e perceber suas ressonncias no

  • Ensaios 42

    presente, o Dadasmo se mostra entregue a uma gratuidade capaz

    de acabar de vez com a pretenso do artista a se sentir escolhido.Criado em plena Primeira Guerra Mundial por um grupo

    de desertores que se sentiam fadados fuzilao, o movimento encarnou a falta de sentido j no nome, escolhido a partir da abertura de um dicionrio no qual se avistou o termo Dada, que em francs infantil quer dizer cavalo. Segundo o lder Tristan Tzara, a ideia foi usar como termo de batismo uma palavra que fechasse todas as portas compreenso e no fosse um -ismo a mais.3

    Essa desambio se explica luz da desesperana, mas importa por denunciar a face negativa do importante sufixo, que ao longo do sculo XX passou da fora asfixia, de senha aglutinadora a pecha comprometedora. o que se constata, por exemplo, em cartas de Mrio de Andrade (2000) a Manuel Bandeira nas quais o poeta paulista afirma que no se acha modernista e sim moderno, ou seja, em vez de integrar uma corrente com projeto para o mundo, no passa de algum inevitavelmente imerso em seu tempo.

    O absurdo e a despretenso que cercaram o surgimento do Dadasmo deixam-se ver tambm nos escritos de seus participan-tes, estrangeiros exilados numa Sua neutra, porm circundada pela violncia. Entre os textos, encontram-se versos compostos unicamente de onomatopeias, numa das entregas ao puro significante mais significativas de que se tem notcia. Acha-se uma receita para fazer um poema a partir de palavras retiradas aleatoriamente de um saco. H relatos de sesses de leitura de manifestos em que a diminuio paulatina do nmero de presentes indica a pequenez e a chatice das reunies dos grupelhos ditos incendirios.

    3 Apud Teles, op. cit., pp. 130-1.

  • 43Viva a vanguarda...

    Assim, ridicularizou-se qualquer pedantismo alimentado pela produo artstica, intelectual ou poltica. No campo da cria-o, jogou-se uma p de cal sobre a aura, j bastante abalada por fatores como a reprodutibilidade tcnica, conforme aponta Walter Benjamin (1936). Nas esferas contguas da tica e da reflexo, pre-nunciou a derrocada da imagem do pensador e do militante como seres supostamente dotados de tino.

    Em nossos dias, ningum com um mnimo de senso crtico ou-saria se acreditar frente ou acima dos semelhantes apenas por lhe ca-ber uma atividade mais intelectual que braal, mais marcada pela cria-tividade do que pela repetio, mais dada ao pblico do que ao privado.

    Nas letras, tem-se mais que nunca conscincia de que aquilo que um dia se denominou obra-prima , na melhor das hipteses, um work in progress sem perfeio vista. A modstia parece ainda mais de bom-tom se olhamos para o passado de nossa literatura, onde encontramos um razovel rol de poetas e prosadores que conseguiram combinar to bem talento, tenacidade e condies de emergncia que parecem sombrear o presente.

    Contudo, se buscamos nas vanguardas estmulo para con-tinuar escrevendo, encontramo-lo no prprio sucedneo do Dada-smo, o Surrealismo, que resultou da constatao de que o fim do conflito mundial impunha perseverana na atividade, a despeito da certeza de que o novo no podia mais nortear as buscas, a serem pautadas, no entanto, pela perseguio desse dado eminentemente romntico e sempre atual que a originalidade.

    O humano redimensionado

    Michel Foucault se refere a Marx e Freud como grandes exemplos do que chamou de instauradores de discursividade (1969),

  • Ensaios 44

    talvez maior elogio que se pode fazer a pensadores, ao consider-

    los com rigor reflexivo e, ao mesmo tempo, capazes de escapar aos

    enredamentos passveis de atingir a produo cientfica. Pois bem:

    os dois se encontram na trade eleita pelos surrealistas, integrada

    tambm por Rimbaud.

    Se utilizamos os trs como fios condutores at o iderio

    do movimento, vamos encontrar os lderes Andr Breton e Louis

    Aragon desejosos da revoluo e empenhados em eliminar o

    fosso entre povo e arte. Vemo-los entregues a investigaes

    onricas, portanto dispostos a incorporar criao o contributo

    do inconsciente e do subconsciente. Constatamos que adotaram a

    mesma inquietao com que o poeta de Une Saison en enfer (1873)

    escapou mumificao que costuma ameaar os crculos literrios.

    Como todo aproveitamento supe depurao, Marx tem

    sido revisto luz do fim das utopias. Livres de patrulhas ideolgicas,

    podemos apreciar desde poemas e fices umbilicoides at escritos

    que, por abrirem o escopo, trazem subjacentes as descobertas do

    autor de O capital. Nesse sentido, dois exemplos bem-sucedidos

    so Drummond e Graciliano Ramos, cujo sentimento do mundo

    encontra equilbrio no zelo formal.

    Quanto Psicanlise, torna-se cada vez mais patente a im-

    propriedade de se usar seu repertrio para interpretar a criao.

    anlise literria pouca importncia tem, por exemplo, inventariar

    os complexos impostos por nossa racista sociedade ao fenmeno

    que foi Machado de Assis, tanto quanto de somenos importn-

    cia dissecar o homoerotismo na prosa caprichosa de Caio Fernando

    Abreu. Contudo, os desvelamentos feitos por Freud so muito es-

    timulantes para quem cria, na medida em que estimulam a entre-

    ga, sem censuras, ao aparentemente ilgico. Assim, preserva-se o

  • 45Viva a vanguarda...

    essencial da escrita automtica proposta pelos surrealistas. Agora,

    uma vez colocadas no papel, as palavras precisam ser submetidas a

    peneiras variadas, de modo a ganharem o que Auerbach chamou de

    dignidade esttica (1959).

    Por fim, mantenhamos em mente esse cone do incon-

    formismo chamado Rimbaud, que deu as costas s facilidades, abriu-

    se para o desconhecido, retirou o verbo das vsceras, viu o texto para

    alm dos gneros e, com seu desejo de mudar a vida, certamente

    estimulou nossos modernistas a enfrentar o establishment e usar o

    legado vanguardista para finalmente nos libertar literariamente do

    Velho Mundo.

    Oswald vagamundo

    Como sempre aconteceu em nossa trajetria de nao

    colonizada, mais uma vez fomos buscar no alm-mar as tendncias

    estticas destinadas a se disseminar planeta afora. Vale ressaltar,

    porm, que as propostas vanguardistas foram nossa ltima grande

    importao, afinal, depois de se voltar para seus prprios materiais,

    que faltava literatura inaugurar? Restava, isso sim, o trabalho a

    ser realizado por poetas e prosadores das diferentes latitudes. Em

    nosso caso, a conscincia literria se somou conscincia poltica

    para resultar em produtos impregnados de brasilidade.

    Um dos grandes responsveis pela nova safra foi Oswald

    de Andrade, que j em 1912 fez um tour pela Frana e outros pases

    durante o qual se embebeu do esprito vanguardista. De volta a So

    Paulo deu asas cada vez mais soltas prpria iconoclastia e, em 1916,

    publicou trechos de Memrias sentimentais de Joo Miramar (1924),

  • Ensaios 46

    considerado um verdadeiro divisor de guas da prosa nacional por

    analistas to diferentes quanto Antonio Candido (1970) e Haroldo

    de Campos (1964).

    De fato, o romance um concentrado de novidades, a

    comear por sua composio fragmentria, reflexo a um s tempo

    do estilhaamento da viso de mundo e da canibalizao da esttica

    cinematogrfica. Ao se limitar a eventos aparentemente estanques

    e colhidos na prpria existncia do autor, o enredo atesta uma

    mudana decisiva no tocante ao aproveitamento da imaginao,

    que no sculo XIX valia principalmente pelo poder de fantasiar

    histrias e, com a crise da narrativa, passou a importar muito mais

    pela capacidade de recriar a linguagem. No texto oswaldiano, este

    ltimo uso se mostra com toda evidncia no fato de vrios trechos

    parecerem poemas.

    A essa poetizao da prosa correspondeu a prosificao da

    poesia em Pau-brasil (1925), no qual Oswald desceu a nvel rasteiro

    o verso, tradicionalmente resultante do uso mais refinado do

    idioma. A exacerbao do coloquialismo e a adoo do deboche so

    alguns dos recursos com os quais o modernista insuflou vida a uma

    forma de expresso que os parnasianos haviam levado ao mximo

    do aristocratismo e da assepsia.

    Para rematar a subverso de gneros, Oswald fez propostas

    custicas e irreverentes como o Manifesto antropfago (1928),

    que se mantm atualssimo nestes tempos globais, ao defender

    a assuno de nossa raiz verdadeiramente selvagem de modo a

    devorarmos quem quer que se meta a nos colonizar. Da mesma

    forma que o guerreiro indgena se fortalecia ao deglutir o inimigo,

    podemos ir ainda mais longe em nossa produo caso ingiramos

    conscientemente o que nos chega das matrizes imperialistas.

  • 47Viva a vanguarda...

    Em suma, Oswald foi um literato no sentido mais amplo

    possvel, pois pensou em profundidade nossas letras, para revolu-

    cionar a poesia e a fico, o ensaio e o teatro. A essa febril produo

    associou uma energia para a militncia que o fez um grande desco-

    bridor de talentos, com os quais articulou nosso maior movimento

    artstico-literrio de todos os tempos. Entre seus parceiros, aquele

    que mais contribuiu para o feito certamente o outro Andrade a

    que se dedicam os prximos pargrafos.

    Mrio traa

    Ao esprito andarilho de Oswald contrapunha-se o amor de

    Mrio por So Paulo, de onde saiu apenas para imerses nas bre-

    nhas sul-americanas e no Nordeste, alm de uma estada no Rio de

    Janeiro durante a qual se disse saudoso da cidade natal. Sua absor-

    o da nova esttica se deu principalmente por meio da leitura da

    revista francesa LEsprit Nouveau, da qual retirou o essencial desses

    mistos de teorizao e profisso de f que so o Prefcio interes-

    santssimo (1922) e A escrava que no Isaura (1925).

    A Mrio coube publicar o primeiro livro modernista

    Pauliceia desvairada (1922) , no qual funde subjetividade e existn-

    cia coletiva, usa palavras do dia-a-dia para retratar cenas cotidianas

    e se aproveita do -vontade vanguardista no trato da forma para se

    deixar conduzir pelo pulsar urbano da capital talhada para o Futu-

    rismo. O desenvolvimento econmico e a mistura de sotaques eram

    alguns dos muitos indcios de que terra dos bandeirantes caberia

    o papel de locomotiva material e cultural.

    Todavia, Mrio diferenciou o bairrismo que incitava cria-

    o daquele passvel de resvalar em narcisismo ou puro apreo pela

  • Ensaios 48

    mquina. Disse que s incorporaria os traos de modernidade que

    seus prprios escritos demandassem e ofereceu o citadino cenrio

    que tanto amava a Macunama, filho dos confins, portanto propcio

    costura de causos dos quatro cantos do pas. Ao resgatar o que o

    povo cristalizou no folclore e em outras manifestaes, o poeta, pro-

    sador e ensasta fincou as sementes vanguardistas definitivamente

    nos trpicos onde os frutos continuam nos alimentando.

    Resgate da exclamao

    Nas pginas anteriores, encontram-se restries e reser-

    vas animao dos ditos anos de ruptura, arruinada por guerras

    de dimenses nunca vistas, pactos monstruosos como aquele

    firmado entre Stalin e Hitler e traies de todo tipo aos ideais de

    melhoria do mundo. Nos exguos limites da esttica, a descrena

    na orquestrao benfazeja do coletivo inibe tentativas de articu-

    lao e deixa no ar a incmoda suspeita de que a originalidade

    menos meta que visa produo plural do que condicionamento

    imposto pelo individualismo.

    Contudo, a desiluso e a desconfiana no conseguem

    ofuscar o fato de a parcela mais rentvel de nossa literatura atual

    ser, em alguma medida, filha do Modernismo. Se no temos motivos

    para acreditar que o Brasil finalmente deixar de parecer o pas do

    futuro, nem por isso podemos perder a perspectiva histrica, que

    nos possibilita enxergar que, exatamente cem anos depois de nossa

    independncia poltica, a Semana de Arte Moderna inaugurou um

    novo momento. A partir de ento a poesia e a prosa tupiniquins

    passaram a se espelhar em si mesmas e atualmente se caracterizam

    por uma produo copiosa.

  • 49Viva a vanguarda...

    Assim se explica o tom quase exclamativo do ttulo deste

    texto, que se pretende homenagem aos movimentos que transfor-

    maram radicalmente o fazer artstico e defesa da manuteno do

    que h de melhor no esprito vanguardista.

  • Ensaios 50

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  • 51Viva a vanguarda...

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