28
Universidade de Brasília Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literaturas - TEL LÍVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE TRADUÇÃO E COMENTÁRIO DO DISCURSO CONTRA A MADRASTA, DE ANTIFONTE ORIENTADORA: PROFª DRª SANDRA LÚCIA R. DA ROCHA Brasília/2013 LÍVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE

LÍVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE - bdm.unb.brbdm.unb.br/bitstream/10483/7264/1/2013_LiviaMedeirosDeAlbuquerque.pdf · os litigantes, obtida através da possibilidade de cada um deles

  • Upload
    lythien

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Universidade de Braslia

Instituto de Letras

Departamento de Teoria Literria e Literaturas - TEL

LVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE

TRADUO E COMENTRIO DO DISCURSO CONTRA A

MADRASTA, DE ANTIFONTE

ORIENTADORA: PROF DR SANDRA LCIA R. DA ROCHA

Braslia/2013

LVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE

TRADUO E COMENTRIO DO DISCURSO CONTRA A

MADRASTA, DE ANTIFONTE

Monografia apresentada ao

Departamento de Teoria

Literria e Literaturas do

Instituto de Letras da

Universidade de Braslia

como requisito para a

obteno do ttulo de

Licenciado em Letras

Lngua Portuguesa e

Respectiva Literatura.

Braslia/2013

Universidade de Braslia

Instituto de Letras

Departamento de Teoria Literria e Literaturas - TEL

ALBUQUERQUE. Lvia M. Traduo e comentrio do discurso Contra a

Madrasta, de Antifonte. Monografia de Graduao. Braslia: TEL/IL/UNB,

2013.

Monografia apresentada ao Departamento de Teoria Literria e Literaturas

do Instituto de Letras da Universidade de Braslia como requisito para a

obteno do ttulo de Licenciado em Letras Lngua Portuguesa e

Respectiva Literatura.

Aprovada por: Sandra Lcia Rodrigues da Rocha

Braslia/2013

RESUMO

O presente trabalho uma proposta de traduo do discurso Contra a

Madrasta, de Antifonte, com dois objetivos principais. O primeiro

oferecer uma contextualizao acerca do universo em que o texto se insere,

a partir de comentrios sobre questes sociais, polticas e culturais da

Atenas clssica que aparecem no discurso. O segundo valorizar, no

processo tradutrio, a transposio de algumas categorias de estilo que

possuem uma fora persuasiva notvel e contribuem com a construo do

pathos do discurso. Essas categorias foram descritas por Aristteles no

Livro III da Retrica, e possuem um papel importante dentro de um

discurso que, diante da falta de evidncias concretas quanto autoria do

crime, se baseia principalmente no apelo emocional aos jurados.

Palavras-chave: Antifonte; estilo; retrica; oratria; Aristteles; traduo.

ABSTRACT

The present work is a translation of Antiphons speech Against the

Stepmother and it has two main goals. The first goal is to provide some

contextualization on the universe in which the text is inserted, with

comments on social, political and cultural aspects of classical Athens that

appear in the speech. The second goal is to give greater value, in the

translating process, to the transposition of some categories of style that

possess a remarkable persuasive force and contribute to the establishment

of the speeches pathos. These categories were described by Aristotle in

Book III of his Rhetoric, and possess an important role within a speech

that, given the lack of evidence regarding the crime, relies primarily on the

emotional appeal of the jurors.

Keywords: Antiphon; style; rhetoric; oratory; Aristotle; translation.

NDICE

Introduo......................................................................................................1

O contexto de produo do discurso Contra a Madrasta.............................2

Anlise do discurso Contra a Madrasta........................................................4

Categorias da lexis.........................................................................................6

A repetio do atigo............................................................................6

As perfrases verbais...........................................................................8

Traduo......................................................................................................10

Referncias Bibliogrficas..........................................................................20

1

Introduo

Esse trabalho consiste em uma proposta de traduo do

discurso Contra a Madrasta, de Antifonte, com os objetivos de

contextualizar o leitor acerca de alguns aspectos da vida ateniense no

sculo V a.C., que aparecem ao longo do texto, e de valorizar, na traduo

para a lngua portuguesa, alguns recursos de estilo empregados pelo orador

e que desempenham um papel importante na construo da persuaso

dentro do discurso. Em um trabalho anterior1 foram analisadas duas

categorias da lxis aristotlica dentro do Contra a Madrasta a repetio

do artigo no sintagma nominal e o uso de perfrases e constatou-se que

(1) essas estruturas so importantes na atribuio do carter persuasivo ao

discurso, principalmente por causa da falta de evidncias concretas em

relao autoria do crime, que leva o orador a recorrer ao pathos o apelo

emocional aos jurados; e (2) a sua fora persuasiva nem sempre

transposta para as tradues2. Os resultados desse trabalho motivaram a

preocupao em transpor esses traos estilsticos para o portugus nessa

traduo do discurso.

Para alcanar os objetivos propostos, foi utilizada uma

bibliografia secundria, com a finalidade de inserir comentrios ao longo

do texto, em forma de notas de rodap, e que trazem uma noo sobre os

aspectos da vida na Atenas clssica retratados no texto, como o

funcionamento do sistema judicirio, o papel da madrasta e dos escravos na

1 Pesquisa realizada por mim em Projeto de Iniciao Cientfica da UnB (Pibic), sob o ttulo A lexis

Aristotlica no Discurso Contra a Madrasta de Antifonte e os Problemas de Traduo, que analisou a

estrutura retrica do discurso em questo, em relao a duas categorias da lxis descritas por Aristteles

no Livro III da Retrica.Os objetivos desse trabalho foram (1) identificar algumas categorias da lxis no

discurso de Antifonte, para verificar em que medida o estilo transposto para as tradues consultadas,

em lngua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa; (2) propor solues de traduo que preservem essas

estruturas estilsticas; e (3) verificar se o orador antecipava, na prtica, as sistematizaes propostas por

Aristteles, que escreveu quase um sculo depois. 2 Foram analisadas as seguintes tradues: traduo francesa, de Louis Gernet; traduo inglesa, de K. J.

Maidment; traduo portuguesa de Luiz Felipe Bellintani Ribeiro; e a traduo espanhola, de Jordi

Redondo Snchez.

2

sociedade, a religio, entre outros. Alm disso, as estruturas de estilo

estudadas no Pibic a partir de trechos do discurso foram melhor analisadas

com a traduo completa do discurso, principalmente em relao sua

funo especfica na construo do pathos ganhar a simpatia dos juzes

ou incitar neles uma antipatia pela parte contrria, conforme discutido por

Carey (1994). A traduo completa do texto possibilitou tambm encontrar

outras ocorrncias desses recursos e perceber outras formas, alm das

categorias estudadas, de sensibilizao dos jurados.

Antes de passar traduo, sero feitas algumas consideraes

acerca do contexto de produo do discurso. Em seguida, as categorias de

estilo sero brevemente analisadas e as suas ocorrncias no discurso sero

comentadas em notas, assim como as consideraes lingsticas e as

reflexes acerca do processo tradutrio.

O contexto de produo do discurso Contra a Madrasta

O discurso Contra a Madrasta um discurso do tipo judicial,

conforme a classificao clssica de Aristteles3, escrito por Antifonte, no

sculo V a.C., para ser apresentado no tribunal.

O sistema de justia Ateniense dos sculos V e IV a.C.

funcionava de forma diferente dos sistemas judicirios atuais. Os litigantes

em um processo deveriam proferir seus discursos de acusao ou defesa,

que poderiam ser produzidos por eles prprios ou encomendados a pessoas

com habilidade para tal os loggrafos , perante um grande nmero de

jurados. Os discursos deveriam abordar tanto os fatos quanto os aspectos

legais, contendo as prprias interpretaes do orador para as leis. Alm

disso, as provas no eram fundamentais no processo4, de forma que os

3 Aristteles classifica os discursos em trs categorias: epidticos, judiciais e deliberativos.

4 Segundo Thr (2006), determinar a verdade no era to fundamental quanto permitir a igualdade entre

os litigantes, obtida atravs da possibilidade de cada um deles apresentar seu discurso, de defesa ou

acusao. O julgamento ocorria logo aps a apresentao dos discursos.

3

oradores se utilizavam bastante do apelo emocional aos jurados, atravs de

recursos retricos5, alm de toda a persuaso que a prpria performance

poderia conter.

Foi nesse contexto da prtica da oratria nos tribunais que

surgiu e comeou a se especializar em meados do Sculo V a prosa

tica judicial escrita, ao mesmo tempo em que se desenvolvia tambm o

estudo formal da retrica como tcnica. Gagarin (2006) afirma que os

textos desse perodo revelam um clima intelectual produtivo, e que a

oratria servia para a apresentao de novas idias, formas de expresso e

mtodos de argumento.

Antifonte foi um dos principais oradores atenienses do Sculo

V a.C. e um dos primeiros a escrever em prosa tica. Alm disso, conforme

destaca Edwards (1985), o orador possua uma boa reputao devido sua

habilidade discursiva. Alm de fragmentos, seis discursos seus chegaram

aos dias de hoje, dos quais trs foram escritos para a performance nos

tribunais Contra a Madrasta, Acerca do Assassinato de Herodes e

Acerca do Coreuta e trs para serem lidos, como um exerccio de

argumentao as Tetralogias (GAGARIN, 1997, p.7, 8 & GERNET,

2002). Todos esses discursos so do tipo judicial, conforme a classificao

de Aristteles.

O orador produziu seus discursos durante o estgio de fixao

escrita da prosa tica (aproximadamente na segunda metade do sculo V),

perodo em que comeam a se desenvolver as principais caractersticas

encontradas na prosa do Sculo IV a.C. Por essa razo, a prosa de

Antifonte ainda experimental, contendo muitos traos poticos os quais

5Todd aborda esses aspectos do sistema jurdico ateniense em Law and Oratory at Athens (2006). Ele

afirma que a atuao em um processo judicial era to importante quanto o prprio aparato legal.

Acrescenta, ainda, que as decises eram tomadas por maioria de votos, sem necessidade de se apresentar

as razes para tal e sem a possibilidade de discusses, devido ao nvel de autoridade da instituio. Yunis

(2006) tambm apresenta um quadro interessante sobre o sistema legal de Atenas, em The Rethoric of

Law in Fourth-Century Athens, como introduo para uma anlise sobre o poder da retrica nesse meio.

4

Gagarin (1997) entende como uma escolha do orador para conferir um tom

artstico a seu trabalho alm de variaes lexicais, dialetais, morfolgicas

e sintticas.

Gagarin (1997) e Edwards (1985) fazem uma anlise do estilo

do orador, destacando sua grandiosidade, e apontando as suas principais

caractersticas, como o vocabulrio raro e muitas vezes potico, com o uso

de neologismos e criao de palavras (verbos compostos, nomes abstratos);

o uso do potencial sem a partcula ; construes perifrsticas; hiprbatos;

antteses; paralelismos, entre outras.

Anlise do discurso Contra a Madrasta

O discurso Contra a Madrasta o nico discurso de acusao

de Antifonte ao qual se tem acesso hoje. Os outros dois trabalhos escritos

para o tribunal Acerca do Assassinato de Herodes e Acerca do Coreuta

so discursos de defesa. Ele trata da acusao da madrasta6 do proponente

pelo assassinato premeditado de seu pai, por envenenamento.

Como o acusador no dispunha de evidncias concretas quanto

autoria do crime7 como o testemunho de escravos, por exemplo ,

Antifonte trabalhou todo o discurso com base no apelo emocional (pathos).

Partindo do argumento da recusa dos meios-irmos em interrogar os

escravos a fim de verificar o ocorrido o nico argumento significante do

discurso , inicia uma narrativa vvida, repleta de metforas e imagens

trgicas que apelam diretamente para o lado emocional dos jurados.

6A madrasta era uma figura comum na sociedade ateniense dos sculos IV e V. Patricia Watson (1994)

faz um estudo interessante sobre essa figura na antiguidade clssica a partir da anlise das histrias que

rodeavam o imaginrio da poca e afirma que a maioria das histrias trata da figura feminina (a

madrasta), e nunca da masculina (o padrasto), e quase sempre o fazem caracterizando-a de forma

negativa, como uma vil que ou maltrata os enteados ou procura garantir a herana dos seus filhos,

matando os enteados ou o prprio marido. Essa figura j estereotipada, por definio, como uma mulher

maligna. 7As provas no tcnicas ( ) segundo Aristteles so cinco: leis, testemunhos, juramentos,

contratos e confisses sob tortura. Thr (2006) afirma que estudos recentes tm reconhecido que apenas

os testemunhos eram realmente relevantes dentro do sistema legal ateniense.

5

Carey (1994) analisa as formas de se persuadir uma audincia

atravs do pathos, ou seja, do apelo emocional aos jurados. Segundo ele,

esse era um dos principais componentes dos manuais de retrica e

desempenhava um papel importante nos tribunais. Dentre as estratgias

apresentadas, so relevantes para este trabalho os meios de se conseguir a

simpatia dos jurados e de incitar uma antipatia pela parte contrria

aspectos explorados por Antifonte em Contra a Madrasta, principalmente

atravs dos recursos de estilo analisados, uma vez que o orador no dispe

de evidncias concretas quanto autoria do crime.

Uma das formas de se conseguir a simpatia dos juzes ocorre

nos promios. No caso de Contra a Madrasta, o proponente se apresenta de

forma modesta, reconhecendo sua pouca idade e sua inexperincia. Dessa

forma, ele demonstra possuir qualidades a modstia e a humildade

passveis de conseguir o respeito e a simpatia dos jurados.

Outras formas de atrair os jurados para a causa compreendem

transform-la em uma causa de interesse tambm dos jurados ou de toda a

cidade, fazendo com que a ofensa ou o mal cometido no diga respeito s

ao proponente e isso, de certa forma, tambm contribui para criar uma

viso negativa da parte contrria; e mencionar a extenso dos danos

causados, para sensibilizar a audincia atravs do sentimento de pena.

Para despertar um preconceito ou criar uma hostilidade em

relao aos acusados, as estratgias mais comuns so a caracterizao

negativa dos envolvidos e sua associao a personagens mitolgicos,

trgicos ou cmicos que possuem um esteretipo negativo (Carey, 1994).

No caso de Contra a Madrasta, Antifonte compara a madrasta

Clitemnestra, personagem mtica e tambm trgica, que assassinou o

marido.

Esses aspectos do discurso voltados para o phatos so

trabalhados no Contra a Madrasta em grande parte atravs do uso das

6

categorias da lxis aristotlica estudadas: as perfrases e a repetio do

artigo.

Essas estruturas foram sistematizadas por Aristteles, em sua

obra Retrica, na qual ele aborda a arte da comunicao com fins

persuasivos atravs de trs livros: o primeiro e o segundo, dedicados s

formas de persuaso disponveis ao orador; e o terceiro, que foi utilizado

neste trabalho, dedicado ao estilo () e organizao do discurso

().

Elas esto elencadas no captulo 6 do Livro III da Retrica,

que trata do , traduzido pela traduo portuguesa por solenidade. J a

traduo inglesa, embora tenha traduzido o termo como expansiveness,

comenta, logo no incio do captulo, que, apesar de a traduo literal para

ser massa, volume (bulk, mass, swelling), ela se refere, nesse caso

elevao, dignidade, ou seja, pode ser entendida como solenidade

(KENNEDY, 2007, p. 206). Essas categorias sero apresentadas

brevemente no tpico seguinte e explicadas em notas quando aparecerem

na traduo.

As categorias da lexis

As categorias da lexis que receberam uma ateno maior na

traduo sero introduzidas abaixo, de forma breve. Elas sero apontadas

ao longo da traduo, juntamente com a sua funo persuasiva. A opo de

mant-las nesse trabalho tradutrio surgiu da constatao da fora

persuasiva que elas carregam e sua importncia na construo do pathos do

discurso.

A repetio do artigo

Conforme postula Aristteles, usar um artigo definido para

cada palavra, ao invs de junt-las com um artigo apenas para ambas uma

7

forma de deixar o discurso mais volumoso e mais solene. A forma em que

esse recurso aparece em Contra a Madrasta sempre a mesma: artigo +

substantivo + artigo + adjetivo possessivo8.

A repetio do artigo uma estrutura difcil de ser mantida nas

tradues, pois no comum nas lnguas analisadas. Por essa razo, o

tradutor opta por uma forma mais concisa que consiste em determinar o

substantivo e o possessivo por um s artigo: o meu pai, as vossas leis etc9.

Essa forma concisa indicada na Retrica em oposio

forma mais extensa e mais solene. De alguma forma, a noo que o uso

mais extenso carrega acabou se perdendo nas tradues, ao utilizarem a

forma oposta. Assim, importante pensar numa forma de traduo que

preserve a funo da estrutura. Dentro do Contra a Madrasta, esse recurso

tem a funo de enfatizar o termo ou a situao a que se refere. No trecho

abaixo, por exemplo, ocorre a repetio do artigo se referindo s leis e

tambm aparece uma referncia morte do pai (

10

):

, ,

,

,

[...] (1.3)

Peo-vos, homens, se eu demonstrar que a me deles

assassina do pai, do nosso pai, com inteno e

premeditao, e que no uma, mas muitas vezes, foi pega

8 Exemplo: (o pai o meu), (as leis as vossas).

9 A forma concisa utiliza um s artigo: (o meu pai), (as vossas leis).

10Literalmente: a morte a dele. esse trecho, a repetio do artigo construda com o adjetivo ,

que se refere ao pai ()

8

em flagrante tramando a morte, a morte dele, que vingai

primeiro as leis, as vossas leis11

[...]

A repetio do artigo em relao morte do pai tem o objetivo

de enfatizar o objeto das maquinaes da madrasta a morte dele. Da

mesma forma, as ocorrncias relativas ao pai ao longo do discurso

aparecem em sentenas que mencionam o mal que ele sofreu, como forma

de chamar a ateno dos jurados ao crime e s injustias sofridas por ele.

J a ocorrncia relativa s leis responsabiliza os juzes em relao adoo

de providncias para reparar esse mal afinal, as leis que foram

desrespeitadas, embora sejam leis da cidade, so atribudas a eles. Essa

uma forma de transpor o caso a uma esfera maior, concernente tambm aos

jurados e no apenas ao proponente.

As perfrases verbais

As perfrases verbais so estruturas recorrentes em Contra a

Madrasta. Foram encontradas perfrases de dois tipos: (1) aquelas formadas

por um substantivo, um adjetivo ou um particpio e um verbo simples

(, , e ), que so a maioria; e (2) aquelas que

consistem em um nome abstrato no lugar de um verbo simples. Dentre as

primeiras h uma exceo com relao aos verbos mais simples, que utiliza

o verbo e consiste em uma perfrase de difcil entendimento,

conforme afirma Gagarin (1997, p.108).

Apesar de agregarem volume ao texto, as perfrases no

parecem torn-lo mais solene, pois, na maioria das vezes, simplificam o

entendimento. Porm, elas possuem objetivos estilsticos interessantes,

como colocar o foco na situao apresentada ao invs de na ao narrada

11

Jaqueline de Romilly (2004) afirma que, no final do Sculo V e comeo do Sculo IV a.C., os cidados

atenienses adquiriam uma conscincia maior com relao s leis, que garantiam, por um lado, a sua

liberdade, e, por outro, a autoridade dos jurados, passando, portanto, a respeit-la e a cobrar obedincia a

elas.

9

(GAGARIN, 1997, p.29), e caracterizar positiva ou negativamente os

personagens, ao transferir o valor semntico do verbo para um

adjetivo/substantivo. Um exemplo disso aparece em uma perfrase que tem

o objetivo de caracterizar a madrasta como culpada: ao invs de o orador

dizer que ela assassinou o pai, prefere dizer que ela a assassina dele12

.

A traduo dessas estruturas varia muito: em alguns casos a

noo do uso da perfrase mantida, enquanto se perde em outros, sendo

traduzidas pelos verbos que representam ou por outras formas perifrsticas

que no produzem o mesmo efeito, como demonstra o exemplo a seguir,

com a perfrase do verbo :

, ,

[...] (1.3)

Peo-vos, homens, se eu demonstrar que a me deles a

assassina de nosso pai, com inteno e premeditao [...]

(1.3)

Apenas as tradues portuguesa e espanhola13

mantiveram a

perfrase original, em que o uso de um verbo simples () com o adjetivo

() tem a funo no apenas de afirmar que ela matou o pai, mas de

caracteriz-la como assassina, de atribuir a ela essa condio. A traduo

francesa se utiliza de uma perfrase com substantivo (leur mre a commis

un meurtre avec intention et prmeditation sur la personne de mon pre) e

a inglesa emprega o verbo a que a construo se refere (my opponents

mother murdered our father), deixando de lado esse importante recurso na

argumentao, uma vez que a construo do carter da madrasta de

extrema importncia diante da falta de evidncias concretas.

12

(ser assassina), perfrase do verbo (assassinar). 13

Traduo espanhola: La madre de stos es de forma voluntaria y premeditada la asesina de mi padre e

traduo portuguesa: a me deles a assassina, com inteno e premeditao, de nosso pai

10

Traduo

(1) Sou novo e ainda inexperiente em assuntos jurdicos14

, homens, e

este processo est sendo difcil e terrvel para mim, se, por um lado, eu no

acusar os assassinos de meu pai, j que ele me instruiu a acus-los, e se, por

outro, acusando-os, for preciso estabelecer um litgio contra quem menos

deveria irmos de mesmo pai e a me desses irmos. (2) Pois o acaso e

eles prprios me foraram a estabelecer o processo contra eles mesmos, dos

quais era esperado que se tornassem vingadores do morto15

e meus

auxiliares16

. E agora, aconteceu o oposto disso: pois eles prprios se

estabeleceram como adversrios neste processo e como assassinos, da

forma que tanto eu como a ao penal afirmamos. (3) Homens, se eu

demonstrar que a me deles a assassina17

de nosso pai, com inteno e

premeditao18

, e que no uma, mas muitas vezes, foi pega em flagrante

tramando a morte, a morte dele19

, peo-vos que vingai, em primeiro lugar,

14

Conforme mencionado na pgina 4, esse tipo de promio em que o orador apresenta sua pouca idade e

inexperincia tem a funo de ganhar a simpatia dos jurados. 15

A questo da lealdade para com o pai, que impele o proponente a entrar na justia, est relacionada ao

conceito de , vocbulo comumente traduzido por vingana, mas que implica mais que uma

simples reparao, conforme Silva (2010), pois o vocbulo tambm guarda a noo de honra. Alm disso,

a tambm pode ser invocada como uma medida de salvaguarda, embora em Contra a madrasta

seja usado no sentido de reparao, tanto em relao ao morto quanto em relao s leis, que foram

desonradas. Dessa forma, Antifonte amplia o sentido da para alm da esfera privada do

proponente, levando o caso a uma dimenso maior: toda a cidade. 16

Perfrases do verbo e , formadas pelo verbo e os adjetivos e .

A transferncia do valor semntico do verbo para os adjetivos tem a funo de caracterizar negativamente

os irmos, uma vez que a vingana do morto e a proposio da ao penal tambm responsabilidade

deles. Alm disso, ao colocar os irmos no plo da acusao, o proponente consegue hostiliz-los perante

os jurados, pois conforme afirma Carey (1994), a acusao de parentes tinha um impacto negativo em

uma sociedade que atribui grande valor solidariedade familiar. 17

Perfrase do verbo , utilizada como exemplo no tpico que introduz as categorias de anlise (ver

pg. 9) 18

Antifonte destaca vrias vezes durante o discurso o fato da premeditao do crime um agravante

segundo as leis atenienses. Loomis (1972), em seu artigo The Nature of Premeditation in Ahenian Law,

apresenta um quadro detalhado dos procedimentos judiciais para discutir a natureza da premeditao para

os atenienses. Segundo o autor, h cinco tipos de cortes diferentes para julgar os casos de assassinato ou

agresso vida. No Arepago eram julgadas as causas de assassinato e de agresso premeditados,

incluindo envenenamento. Para o crime, a pena poderia ser o exlio ou a execuo, alm do confisco dos

bens do acusado. Para saber mais sobre as cortes atenienses para homicdio e sobre os procedimentos

legais, ver Sealey (1983). 19

Repetio do artigo: (a morte, a morte dele) ver pgs. 7 e 8

11

as leis, as vossas leis20

, as quais recebestes dos deuses e dos antepassados

e, de acordo com isso mesmo, estais julgando em relao condenao21

deles. Em segundo lugar, vingai aquele que morreu e, ao mesmo tempo,

ajudai a mim, que fui deixado sozinho22

. (4) Pois vocs so aqueles que

devem fazer isso23

, porque aqueles que deviam se tornar vingadores do

morto e meus auxiliares24

, tornaram-se os assassinos dele e se

estabeleceram como meus adversrios. A que auxiliares uma pessoa deve

recorrer, ou em que outro lugar procurar abrigo25

, seno junto a vs e

justia?

(5) Eu estou surpreso tanto com o meu irmo, por ele ter tido, em

algum momento, uma certa opinio, com a qual se colocou como

adversrio contra mim, quanto com o fato de ele considerar que isso

piedade no entregar a me. E eu penso ser muito mais profano

abandonar o resgate da honra26

daquele que morreu, ou melhor, daquele

que morreu involuntariamente de premeditao, do que daquela que matou

20

Repetio do artigo: (as leis, as vossas leis), com a funo de atrair os

jurados para a causa, responsabilizando-os por vingarem as leis, pois a afronta no foi feita s ao

proponente, mas tambm s leis, cuja responsabilidade pelo cumprimento o orador atribui a eles (ver pgs.

7 e 8). 21

Perfrase do verbo (condenar): (julgar em relao

condenao). Gagarin (1997) afirma que essa uma perfrase de difcil entendimento. Ao contrrio das

outras perfrases, ela formada pelo verbo (julgar), que no se encaixa na classificao de verbo

simples, e pelo substantivo , precedido pela preposio . Seu uso retira o foco da simples

ao de condenar e o coloca no processo de julgar pela condenao, direcionando a deciso para a

condenao e no deixando aos jurados a opo de um julgamento diferente desse. 22

Esse apelo tem a funo de despertar um sentimento de pena nos jurados, e, consequentemente, de

atrair a boa vontade dos juzes para a causa. 23

: Em seu comentrio sobre o discurso Contra a Madrasta, Gagarin (1997)

afirma que o termo , de necessrio, passou a significar famlia (related by blood), conforme

sua traduo You are now my family. Porm, quando usado para pessoas, pode designar, alm de um

vnculo de sangue, um vnculo por obrigao o que parece ser mais adequado ao caso em questo, j

que os jurados so as pessoas a quem se deve recorrer para buscar a reparao; essa a obrigao deles. 24

Repetio da mesma perfrase que ocorre em 1.2, conforme nota 16. 25

Perfrase do verbo (refugiar-se): (encontrar refgio). A transferncia

do valor do verbo para o substantivo () retira o foco da ao e o coloca na situao,

dramatizando a situao em que o proponente foi deixado, e tentando, assim, sensibilizar a audincia

atravs do sentimento de pena. 26

: conforme mencionado na nota 15, a palavra pode

significar tanto vingana quanto honra. Optei por traduzir aqui como honra, pois o vocbulo aparece em

uma construo antittica e se refere tambm a madrasta, que est sendo processada e tendo sua imagem

abalada com a acusao.

12

voluntariamente com inteno27

. (6) E ele no dir isso: que ele est certo

de que a me dele no matou o pai, o nosso pai28

. Pois sobre as coisas das

quais ele tinha a possibilidade29

de conhecer com clareza, mediante

interrogatrio com tortura30

, no quis saber, mas sobre as coisas que ele no

tinha a possibilidade de investigar, isso sim foi objeto do seu esforo31

. De

fato, isso mesmo isso que eu tambm propus descobrir era preciso ser

objeto do esforo dele, a fim de que o que foi feito fosse revelado. (7) Pois

caso os escravos no concordassem comigo, tanto ele, conhecendo bem os

fatos, poderia se defender e partir avidamente contra mim, como a me dele

poderia se livrar dessa responsabilidade. A partir do momento em que ele

no quis fazer a averiguao dos atos cometidos32

, como cabe a ele

conhecer esses fatos que no quis investigar? Ento, jurados, como

verossmil que ele saiba das coisas cuja verdade ele no aceita?

27

Anttese contrastando a morte do pai, que foi involuntria, e o ato premeditado de assassin-lo, por

parte da madrasta. Esse tipo de anttese opondo assassino e assassinado aparece com freqncia no

discurso, inclusive com as mesmas estruturas de particpio, que tambm so recorrentes Antifonte se

refere tanto ao pai quanto madrasta com os particpios do verbo (morrer) e

(matar): (aquele que morreu) versus (aquela que matou). 28

Repetio do artigo: (o pai, o nosso pai), enfatizando o assassinato do pai pela

madrasta. 29

Perfrase formada por um nome abstrato ( - possibilidade) e o verbo no lugar de um verbo

simples ( ser possvel): o objetivo dessa perfrase deixar claro que o acusado tinha a possibilidade

de conhecer os fatos claramente. 30

Gagarin (1996), no artigo intitulado The Torture of Slaves in Athenian Law, faz uma anlise sobre o

funcionamento do na lei ateniense e na oratria judicial. significa originalmente pedra

de toque para identificao de ouro e seu significado se estendeu a qualquer teste para identificar a

genuinidade de algo ou de algum. No mbito dos discursos judiciais comumente traduzido por

interrogatrio sob tortura. O consiste na tortura de escravos inocentes a fim de verificar

informaes para uma causa particular. Gagarin denomina esse tipo de tortura de tortura evidenciria, em

contraste com outros dois tipos comuns de tortura: a penal (aplicada como punio) e a judicial (na qual

apenas uma das partes realiza o interrogatrio). A tortura evidenciria era realizada pelas duas partes, pois

era proposta como um desafio, e possua regras especficas. Em Contra a Madrasta, o proponente

desafiou os irmos a realizarem o interrogatrio mediante tortura dos seus escravos a fim de verificar os

fatos. O testemunho dos escravos s era reconhecido se fosse tomado mediante tortura e era mais efetivo

que o relato de testemunhas livres. 31

Perodo antittico. Aristteles, no Livro III da Retrica, aponta as construes antitticas como forma

de tornar o discurso mais claro e facilitar seu entendimento. 32

Perfrase do verbo (por prova, averiguar), formada pelo verbo e pelo substantivo

(argumento), colocando o foco na situao de averiguar os fatos mediante tortura, e no na

simples ao de averiguar algo.

13

(8) Enfim, o que ele falar em sua defesa me preocupa. Pois da tortura33

dos escravos ele bem sabia que a me dele no podia ser salva, mas

pensava que a salvao estava no fato de no realizar a tortura pois

imaginaram que os acontecimentos seriam mantidos em segredo com isso.

(9) Pois eu quis torturar os escravos deles, que sabiam que, h muito, esta

mulher, a me deles, estava planejando a morte do pai, do nosso pai34

, por

envenenamento; que o meu pai a pegou em flagrante; e que ela no era

aquela que diz no35

, exceto que ela declarava ter dado a droga no para a

morte, mas como poo do amor. (10) Por causa disso, ento, eu quis fazer

uma tortura de tal tipo em relao aos escravos: aps registrar em um

documento as coisas das quais eu estou acusando esta mulher, recomendei

que eles prprios se tornassem torturadores36

na minha presena, a fim de

que dissessem, sem serem forados, o que quer que eu perguntasse37

. Pois

para mim, bastava fazer uso dos testemunhos por escrito. E isso se tornou

essa evidncia legal para mim de que eu estou processando o assassino do

meu pai com retido e justia. E se os escravos se tornarem contestadores

ou disserem depoimentos discordantes a tortura os foraria a apresentar a

acusao dos fatos. Pois ela tambm far aqueles que preparam as mentiras

dizerem a verdade para apresentar a acusao. (11) Na verdade eu sei muito

bem que se eles, tendo vindo at mim assim que lhes fosse relatado que eu

33

O termo ser traduzido apenas como tortura daqui em diante. 34

Repetio do artigo referente ao pai, enfatizando o mal que o pai sofreu. 35

Perfrase do verbo (recusar, negar, dizer que no), formada pelo verbo e o adjetivo

(aquele que nega). uma perfrase de difcil traduo, pois o adjetivo no tem um

correspondente em portugus (a negadora, por exemplo). uma noo mais comumente traduzida por

uma perfrase (aquela que nega). A funo dessa perfrase caracterizar a madrasta como o tipo de pessoa

que no nega o que faz, e por essa razo, por no ter negado o que fizera, culpada. 36

Perfrase do verbo (interrogar mediante tortura), formada pelo verbo e pelo

substantivo (interrogador, torturador), com o objetivo de chamar ateno para a situao

proposta pelo acusador: os acusados interrogarem os prprios escravos, o que no era a prtica comum,

conforme nota seguinte. 37

Um desafio de fornecia detalhes sobre quando e onde ocorreria a tortura e quais questes

seriam perguntadas. Os escravos respondiam sim ou no apenas. O desafio era registrado por escrito e

observado por testemunhas. A parte contrria poderia aceit-lo, rejeit-lo ou propor modificaes. Se o

desafio fosse aceito, o escravo era interrogado na presena do dono, pela parte contrria na ao (Gagarin,

1996). O proponente em Contra a Madrasta prope um interrogatrio em que os prprios donos dos

escravos pudessem interrog-los e usa a recusa deles em aceitar o desafio como evidncia a seu favor.

14

processaria o assassino de meu pai, quisessem entregar os escravos que eles

tinham e eu no quisesse receb-los, eles apresentariam esses prprios fatos

como as maiores evidncias de que no so culpados pelo assassinato. Pois

na realidade, eu sou aquele que quer que se tornar o prprio torturador38

,

porm, j que ordeno a eles mesmos tortur-los diante de mim, verossmil

para mim que esses mesmos fatos so evidncias de que eles so culpados

pelo assassinato. (12) [Pois se, mesmo querendo entreg-los para tortura eu

no os recebesse, esses fatos seriam uma evidncia para eles. Ento, que

isso se torne tambm evidncia para mim, se verdade que, quando eu quis

fazer a averiguao dos fatos, eles no quiseram entregar os escravos]39

. A

mim parece ser terrvel se, por um lado, eles tentam implorar a vocs para

no votarem contra eles, enquanto por outro, eles no consideram justo se

tornar jurados deles mesmos ao permitir torturar os prprios escravos. (13)

Em relao a esses fatos, no est oculto que eles evitaram investigar a

clareza das coisas feitas. Pois eles sabiam que o mal relacionado a eles

estava prestes a se revelar, de modo que, mantendo o crime em silncio e

sem interrogatrio, quiseram deix-lo de lado. Mas vs certamente no

deixareis, homens, eu bem sei, mas buscareis a clareza40

.

Ento, at aqui, isso em relao aos acontecimentos, tento contar

a vs a verdade. Que a justia governe!41

(14)42

Havia um piso superior na nossa casa, no qual o Filneo ficava

quando passava um tempo na cidade um homem belo, bom e amigo do

38

Mesma perfrase mencionada na nota 36, porm aqui se refere ao prprio acusador. Possui a mesma

funo de colocar o foco na situao: o proponente queria realizar a tortura, e, de fato, essa era uma

atribuio que lhe cabia, mas ainda assim ele props que os acusados fossem os torturadores, de forma

que isso uma evidncia clara a seu favor. 39

Segundo Mirhady (1996), em quase todos os relatos, os desafios para realizao de interrogatrio com

tortura foram recusados e no h relatos de casos em que a tortura tenha acontecido como resultado de um

desafio. 40

O argumento da recusa dos acusados em realizar a tortura, o nico argumento relevante de que o orador

dispe, explorado pela repetio, desde a seo 6 do discurso. 41

Metfora. Aristteles, no livro III da Retrica, recomenda o uso de metforas nos discursos, desde que

sejam claras e de fcil entendimento. 42

Incio da narrativa dos fatos.

15

nosso pai. Ele tinha tambm uma concubina, que ele estava a ponto de

colocar em um prostbulo. Ento, ao perceb-la, a me do meu irmo se fez

amiga dela. (15) Percebendo que a concubina estava a ponto de ser

injustiada, manda cham-la e, quando esta veio, disse-lhe que tambm ela

seria injustiada pelo pai, o nosso pai43

. Ento, se ela quisesse persuadi-lo,

disse ser suficiente para a concubina se fazer amvel ao Filneo e para ela,

se fazer amvel ao meu pai, afirmando ser isso uma descoberta dela e

servio da outra. (16) Ento, comeou a perguntar-lhe se ela queria fazer o

servio, a qual se comprometeu rapidamente, como penso. Depois disso,

por acaso, havia para o Filneo um templo dedicado ao Zeus Ctsio no

Pireu, enquanto o meu pai44

, estava prestes a navegar para Naxos. Ento,

pareceu uma boa ideia ao Filneo acompanhar o meu pai45

nesse caminho

at o Pireu, pois era amigo dele, e, ao mesmo tempo, aps fazer os

sacrifcios46

, oferec-lo um banquete. Ento, a concubina do Filneo

acompanhava-o por causa do sacrifcio. (17) E quando estavam no Pireu,

como natural, comeou a realizar o sacrifcio. E depois que sacrifcios

foram concludos por ele, ela comeou a deliberar como daria a poo a

43

Repetio do artigo: . Traz uma nfase ao termo em uma ocorrncia que,

embora no mencione diretamente o mal que foi feito ao pai, enfatiza de certa forma a atitude da madrasta

de julg-lo como algum ruim, que tramava contra ela. 44

Na seo 16 a repetio do artigo aparece duas vezes, mas em ambas foi traduzida pela forma concisa.

Nessa primeira ocorrncia, a estrutura seguida imediatamente pelo locativo , que parece ter

sido deslocado para a posio logo aps o verbo, para junto dessa estrutura, justamente para enfatizar o

fato de que o pai do proponente viajava para uma localidade diversa daquela em que ocorreu o

envenenamento de seu amigo. E foi justamente em razo da amizade com Filneo, mencionada tambm

com o uso da repetio do artigo, na linha seguinte, que o pai seguiu um caminho diferente, levando-o

situao do envenenamento. Assim, a repetio do artigo atribui um carter mais trgico morte do pai,

uma vez que seu destino aparentemente era outro. Considerando que a prpria estrutura da sentena j

marca bem a distino entre os destinos dos dois homens, e que a orao participial relativa da segunda

ocorrncia ( ) se encarrega de estabelecer a relao entre os homens e explica a mudana dos

planos, a estrutura pode ser traduzida pela forma concisa de uso do artigo. 45

Na seo 16, durante a narrativa dos fatos que precederam o crime a viagem do pai e seu encontro

com o Filneo , aparecem as trs nicas ocorrncias no discurso do termo pai com o adjetivo possessivo

de primeira pessoa do singular. Em todas as outras ocorrncias, o orador utiliza o possessivo no plural.

Nessas ocorrncias ainda no h menes ao mal que lhe foi feito, ao contrrio das outras. O orador

provavelmente utiliza essa alternncia entre os possessivos para deixar claro, principalmente quando fala

do crime, que o pai no apenas pai do acusador, mas tambm daqueles que se colocaram contra ele

nessa ao, contribuindo para a hostilizao deles em relao falta de solidariedade familiar. 46

O discurso no fornece informaes suficientes para se determinar o tipo de sacrifcio que Filneo

ofereceu ao Zeus Ctsio. Os gregos ofereciam aos deuses o sangue de animais e as ddivas de primcias

da alimentao, que provinham da caa, da pesca ou da colheita de frutos (BURCKET, 1993).

16

eles, se antes ou depois do jantar. Ento, ao planejar, lhe pareceu ser

melhor dar o veneno depois da refeio, servindo, ao mesmo tempo, aos

propsitos desta Clitemnestra47

, a me deles. (18) Com relao aos outros

detalhes, a histria da refeio seria longa demais tanto para eu narrar

quanto para vs ouvirdes: mas tentarei contar o restante com as palavras

mais breves possveis como ocorreu a administrao do veneno48

. Pois

quando fizeram a refeio, como natural enquanto um estava fazendo o

sacrifcio e recebendo o amigo, o outro estava prestes a navegar e jantava

na casa do companheiro dele eles comearam as libaes e colocaram

incenso sobre eles prprios49

. (19) E a concubina do Filneo serviu o

veneno ao mesmo tempo em que servia o vinho para a libao50

deles,

enquanto faziam suas preces, as quais no seriam atendidas. E, imaginando

agir de forma inteligente, deu mais a Filneo, pois ainda no havia

percebido que fora enganada pela madrasta, a minha madrasta51

, antes que

o mal j estivesse ocorrido. J ao pai, ao nosso pai52

, deu menos. (20)

Depois que eles fizeram as libaes, entregando-se assassina deles

prprios, bebem o ltimo gole. E o Filneo morre naquele mesmo instante,

47

Personagem mitolgica, esposa de Agammnon, que premeditou seu assassinato como vingana pelo

sacrifcio de sua filha Ifignia. 48

Perfrase do verbo (dar), formada pelo verbo e pelo substantivo (a

administrao). A funo dessa perfrase retirar o foco da ao de dar o veneno e colocar na situao

narrada, em como foi administrado o veneno. A concubina do Filneo, seguindo as ordens da madrasta,

deu o veneno aos dois homens quando eles terminaram o jantar, pensando tratar-se de uma poo

afrodisaca. 49

A queima de incenso faz parte dos rituais religiosos, assim como as libaes, os sacrifcios e as preces.

(BURCKET, 1993). 50

As libaes eram atividades sacrificiais e consistiam no derramamento de lquidos. A palavra usada

para se referir s libaes , e se refere s libaes com vinho. A libao a forma mais pura de

renncia, pois aquilo que foi derramado no pode ser recuperado (BURCKET, 1993). 51

Repetio do artigo, (a madrasta, a minha madrasta). Essa a nica vez, em todo

o discurso, que ela mencionada como madrasta do acusador. Em geral essa figura tratada como me

dos irmos, com o substantivo , ou como ela, com o adjetivo . Porm, em alguns momentos, o

orador se refere a ela como esta esposa, esta Clitemnestra, a responsvel e at a assassina. Aqui, o termo

tem a funo de agente da passiva. Embora construes passivas enfatizem o

paciente da ao, a repetio do artigo chama a ateno ao carter da madrasta. O trecho selecionado

narra a forma como o veneno foi administrado pela concubina do Filneo, mas, ao final, menciona a

madrasta para no focar ou desviar a culpa para a outra mulher. 52

Repetio do artigo: (ao pai, ao nosso pai): repetio enfatizando o fato de que o

pai foi envenenado com uma dose menor. Foi graas a isso que ele ainda sobreviveu por alguns dias e

pode narrar os fatos ao filho e pedir-lhe que honrasse a sua morte quando tivesse a idade para tal.

17

imediatamente, enquanto o pai, o nosso pai53

, pega uma doena, da qual

tambm morreu, vinte dias depois. Em face dessas coisas, a mulher que

serviu madrasta e executou o servio com as prprias mos tem o castigo

do qual era merecedora, mesmo no sendo culpada pois aps ser

torturada na roda, foi entregue ao carrasco54

e a verdadeira culpada, que

sabia e concebeu o plano, ter o castigo que merece, se vs e os deuses

quiserem.

(21) Ento, refleti sobre o quo mais justo o que vos pedirei em

relao ao que meu irmo pedir. Pois eu vos convoco a se tornarem

vingadores do homem que morreu e que foi injustiado pela eternidade55

.

Este nada vos pedir em relao ao que est morto, que digno de

conseguir de vs compaixo, auxlio e honra ele que abandonou a vida

sem deus e sem gloria, antes do tempo fixado pelo destino, devido queles

que menos deveriam56

(22) mas pedir, em favor daquela que matou,

coisas ilcitas, profanas e vs, que no deveriam ser ouvidas nem pelos

deuses e nem por vs, rogando-vos em relao quilo que ela mesma no

se convenceu de que no usara de ardil57

. Mas vs no sois os auxiliares

daqueles que matam, mas daqueles que morrem por premeditao, e essas

coisas pelas quais eles menos deveriam morrer. Agora, ento, est em

vossas mos decidir isso corretamente que vs faais isso tambm. (23)

Ele vos pedir pela me dele que est viva, e que matou aquele de forma

premeditada e mpia, a fim de que ela no sofra a punio se vos persuadir

53

Mais uma repetio do artigo: , em outra meno ao mal sofrido por ele. A

repetio do artigo nas sentenas que mencionam o mal que o pai sofreu tentam sensibilizar os jurados,

lembrando-lhes o tempo todo da injustia que foi cometida contra ele, para que eles se comovam com a

morte do homem. 54

As rodas eram instrumentos de tortura utilizados na Grcia. Provavelmente, a concubina recebeu a

tortura punitiva mencionada na nota 30. Cohen (2006) afirma que a tortura era um dos meios legais de

punio e era encontrada, de alguma forma, na lei ateniense. 55

Terceira ocorrncia da perfrase mencionada na nota 15, porm, agora, ela se refere aos jurados. Essa

uma forma de cham-los ao caso, de atribuir a responsabilidade de honrar o morto tambm a eles. O

orador ainda utiliza uma imagem um pouco exagerada, apelando para a comoo dos jurados, ao pedir

que se tornem vingadores daquele que foi injustiado pela eternidade. 56

Tentativa de ampliar as dimenses da injustia cometida e, assim, comover os jurados. 57

Anttese opondo aquele que morreu e aquela que matou.

18

sobre as coisas que ela errou. E eu imploro em nome do meu pai que est

morto, a fim de que ela seja punida de todos os modos por todas essas

coisas. E vs vos tornastes e fostes considerados juzes por causa disso

mesmo para que aqueles que agem injustamente sejam punidos. (24) E,

por um lado, eu mesmo acuso [dizendo] isso, para que seja feita a justia

para as pessoas que ela injustiou e que tanto o pai, o nosso pai, como as

leis, as vossas leis58

, sejam vingados nessa situao, suficiente que

tambm vs todos me auxiliem, se digo a verdade. Enquanto ele, ao

contrrio, se apresenta como auxiliar dela, a fim de que aquela que

despreza as leis no receba a punio das pessoas que injustiou. (25) E de

fato o que mais correto? Fazer justia quele que matou com

premeditao ou no? preciso sentir mais pena do homem que morreu ou

da mulher que matou?59

Eu penso que daquele que morreu pois tambm

seria mais justo e mais piedoso para vs tanto perante os deuses quanto

perante as pessoas. Portanto, agora eu penso que da mesma forma que ela

matou o meu pai sem piedade e sem compaixo, assim tambm ela prpria

deve morrer, devido a vs e tambm justia60

. (26) Enquanto ela planejou

matar voluntariamente, ele morreu involuntariamente e de modo violento.

Pois como no morreu de modo violento, homens, ele que pretendia

navegar desta terra aqui, e que jantava na casa de um amigo dele? E aquela

que enviou o veneno, ordenou que o dessem para ele beber e matou o nosso

pai? Como ento justo ela ter a piedade ou conseguir o respeito da parte

de vs ou de algum outro aquela mesma mulher que no considerou ter

pena do prprio marido, mas o matou de forma mpia e vergonhosa? (27)

Assim, seguramente, mais conveniente ter piedade em relao aos

58

Ultima repetio do artigo, similar quela que aparece em 1.3, em que o proponente atribui aos jurados

a responsabilidade pelas leis. Aqui ele tambm inclui o pai na vingana, como forma de mostrar que o

casos em questo o assassinato do pai e o desrespeito s leis dos jurados devem ser vingados. 59

Outra anttese opondo o morto e a assassina 60

No apelo final, as antteses so freqentes. O orador ope o tempo todo a madrasta e o pai, sempre

como aquele que morreu e aquela que matou. Aqui, a oposio deixa claro para os jurados que ocorreu

uma injustia e que ela precisa ser reparada da mesma forma.

19

sofrimentos inesperados do que em relao s injustias voluntrias e

premeditadas e aos delitos. E da mesma forma que ela o matou sem

vergonha e sem temor dos deuses, dos heris e dos homens, assim tambm

ela deve morrer por causa de vs e da justia, e no obter nem respeito,

nem piedade e nenhum constrangimento da vossa parte (28) E eu mesmo

estou surpreso com a audcia e com a inteno do meu irmo: o fato de

jurar, em favor da sua me, que est certo de que ela no fez essas coisas.

Pois como algum poderia saber bem essas coisas s quais ele no assistiu?

Pois, provavelmente, os que planejam as mortes no maquinam e se

preparam para essas coisas perto de testemunhas, mas, certamente, so

capazes de maquinar da forma mais secreta possvel, para nenhum dos

homens saber. (29) J os que so alvo de conspirao nada sabem, antes de

j estarem nessa situao ruim e de tomarem conhecimento da runa na

qual se encontram. E ento, se puderem ou tiverem tempo antes de morrer,

chamam os amigos e seus prprios parentes de sangue, do testemunho,

dizem a eles por quem foram destrudos, e recomendam-lhes vingar os que

foram injustiados. (30) Essas coisas o meu pai recomendou a mim, quando

sofria uma lamentvel e derradeira doena. Se falham em relao a essas

coisas, escrevem textos, chamam os escravos deles como testemunhas, e

deixam claro por quem foram destrudos. E ele me revelou esses fatos,

quando eu ainda era novo, e incumbiu a mim de dizer isso e no aos

escravos dele.

(31) Ento, que essas coisas sejam por mim narradas e que possam

servir de auxlio ao morto e s leis, enquanto est em vossas mos

examinar os fatos restantes e julgar as coisas justas, por vs mesmos. E eu

penso que aqueles que cometem injustia dizem respeito tambm aos

deuses do submundo.

20

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

BIBLIOGRAFIA BSICA

Fontes Primrias: edies, tradues e comentrios

ARISTOTLE. Rhetoric. Translated by George A. Kennedy. Oxford and

New York: Oxford University Press, 2007.

_________. Retrica. Traduo e notas Manuel Alexandre Jnior, Paulo

Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, 1998.

ANTIFONTE. Testemunhos, Fragmentos e Discursos. Prefcio e traduo

de Lus Felipe Bellintani Ribeiro. So Paulo: Edies Loyola, 2002.

ANTIFONTE. ANDCIDES. Discursos y Fragmentos. Introduccin,

traduccin y notas de Jordi Redondo Snchez. Madrid: Editorial

Gredos,1991.

ANTIPHON. The Speeches. Edited by M. Gagarin. Cambridge: CUP,

1997.

. Discours, Fragments dAntiphon Le Sophiste.Texte tabli et

traduit par Louis Gernet. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

. Minor Attic Orators, Volume I: Antiphon, Andocides (Loeb

Classical Library n 308).Edited by K. J. Maidment, 1941.

ANTIPHON & ANDOCIDES. Translated by Michael Gagarin & Douglas

M. MacDowell. (The oratory of Classical Greece, v.1). Austin: University

of Texas Press, 2006.

ANTIPHON & LYSIAS. Translated with commentary and notes by M. J.

Edwards e S. J. Usher. Greek Orators I, Warminster: Aris & Phillips, 1985.

21

Gramticas e Dicionrios

BAILLY, A. Dictionnaire grec-franais. Paris: Hachette, 1950.

FREIRE, A. Gramtica Grega. Porto: Apostolado da Imprensa, 1959.

LIDDELL., SCOTT, R., JONES, H., MCKENZIE, R. A Greek-English

lexicon. Rev. and augm. throughout. Oxford: Clarendon Press; New York:

Oxford University Press, 1996.

MALHADAS, Daisi, DEZOTTI, Maria Celeste C. et alli (orgs.).

Dicionrio Grego-Portugus Vol. 1, 2, 3 e 4. Cotia (vol. 1, 2006; vol. 2,

2007; vol. 3, 2008; vol. 4, 2009; vol. 5, 2010).

SMYTH, H. Greek Grammar. Harvard University Press, 1956.

BIBLIOGRAFIA SECUNDRIA

BURKERT, Walter. A religio grega na poca clssica e arcaica. Traduo

de M. J. Simes Loureiro. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993.

CAREY, Christopher. Rethorical Means of Persuasion. In:

WORTHINGTON, Ian (org.). Persuasion Greek Rhetoric in Action. New

York London: Routledge, 1994.

COHEN, David. Theories of Punishment. In: The Cambridge Companion

to Ancient Greek Law. Edited by Michael Gagarin and David Cohen. EUA:

Cambridge University Press, 2006.

GAGARIN, Michael. Probability and Persuasion: Plato and early Greek

Rhetoric. In: WORTHINGTON, Ian (org.). Persuasion Greek Rhetoric in

Action. New York London: Routledge, 1994.

. The torture of slaves in Athenian Law. Classical Philology,

vol. 91, n. 1, jan/1996, pp. 1-18

LOOMIS, W. T. The Nature of Premeditation in Athenian Homicide Law.

The Journal of Helenic Studies, vol. 92, 1972, pp. 86-95.

MIRHADY, David C. Torture and Rhetoric in Athens. The Journal of

Helenic Studies, vol. 116, 1996, pp. 119-131.

22

ROMILLY, Jacqueline de. La ley em La Grecia Clsica. Buenos Aires:

Biblos, 2004.

SEALEY, Raphael. The Athenian Courts for Homicide. Classical

Philology, vol. 78, n 4 (oct.1983), pp. 275-296.

SILVA, L. E. C. B. Timoria em Tucdides. In: III Seminrio do Ncleo de

Estudos Clssicos, 2010, Braslia. Anais do III Seminrio do Ncleo de

Estudos Clssicos. Braslia: Ncleo de Estudos Clssicos, 2010. v. 1. p. 61-

69.

TODD, S. C. Law and Oratory at Athens. In: The Cambridge Companion

to Ancient Greek Law. Edited by Michael Gagarin and David Cohen. EUA:

Cambridge University Press, 2006.

THR, Gerhard. The role of the witness in Athenian Law. In: The

Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Edited by Michael Gagarin

and David Cohen. EUA: Cambridge University Press, 2006.

WATSON, Patricia A. Ancient Stepmothers: Myth, Misogyny and Reality.

Leiden; New York; Kln: Brill, 1994.

YUNIS, Harvey. The Rethoric of Law in Fourth-Century Athens. In: The

Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Edited by Michael Gagarin

and David Cohen. EUA: Cambridge University Press, 2006.