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dez|2003 Resenha 60 O pensamento sobre as relações raciais atraiu as melhores cabeças do país. Em todos os estágios da nossa vida intelectual, pensadores debruçaram-se sobre o tema. Não raramente, as reflexões feitas por esses pensadores foram, voluntariamente ou não, orientadas pelas questões políticas prementes de cada época. O peso que as ideologias exerceram sobre as pesquisas e sobre as idéias dos intelectuais, bem como o uso ideológico das mesmas, é um tema à parte das Ciências Sociais e deveria receber maior cuidado dos estudiosos. Essa tendência perpassa a obra de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, para ficar apenas com esses exemplos. O negro, também, amiúde, refletiu sobre a sua condição. Nem sempre nos termos acadêmicos estabelecidos, mas a partir da sua problemática vivenciada cotidianamente. Nesse caso, como em todos aqueles advindos de extrema opressão, ocorreu uma práxis dialética em que se engendraram pensamento e ação política. Livro aborda pesquisas sobre relações raciais realizadas nas universidades brasileiras Publicação nasceu das apresentações do II Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, realizado na UFSCar em 2002 Noel dos Santos Carvalho* De Preto a Afro-Descendente – Trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil Lúcia Maria de Assunção Barbosa, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Valter Roberto Silvério (org.), 2003. EdUFSCar (www.ufscar.br/~editora)

Livro aborda pesquisas sobre relações raciais …univerci/n_5_6_a2/resenha.pdf– Trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil é fruto do trabalho de parte dessa

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Resenha60

O pensamento sobre as relações raciais atraiu as melhorescabeças do país. Em todos os estágios da nossa vidaintelectual, pensadores debruçaram-se sobre o tema. Nãoraramente, as reflexões feitas por esses pensadores foram,voluntariamente ou não, orientadas pelas questões políticasprementes de cada época. O peso que as ideologiasexerceram sobre as pesquisas e sobre as idéias dos intelectuais,bem como o uso ideológico das mesmas, é um tema à partedas Ciências Sociais e deveria receber maior cuidado dosestudiosos. Essa tendência perpassa a obra de NinaRodrigues, Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos e FlorestanFernandes, para ficar apenas com esses exemplos.

O negro, também, amiúde, refletiu sobre a sua condição.Nem sempre nos termos acadêmicos estabelecidos, mas apartir da sua problemática vivenciada cotidianamente. Nessecaso, como em todos aqueles advindos de extrema opressão,ocorreu uma práxis dialética em que se engendrarampensamento e ação política.

Livro aborda pesquisas sobre relaçõesraciais realizadas nas universidadesbrasileiras

Publicação nasceu das apresentações do II Congresso Brasileirode Pesquisadores Negros, realizado na UFSCar em 2002

Noel dos Santos Carvalho*

De Preto a Afro-Descendente – Trajetos de pesquisa sobrerelações étnico-raciais no BrasilLúcia Maria de Assunção Barbosa, Petronilha BeatrizGonçalves e Silva e Valter Roberto Silvério (org.), 2003.EdUFSCar (www.ufscar.br/~editora)

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Resenha 61

No período pós-abolição, ativistasnegros expressaram-se em órgãos daimprensa negra como Kosmos, O clarimda alvorada, Voz da raça e O menelik. AFrente Negra, fundada nos anos de1930, foi a materialização política dessemomento. Alguns anos depois, maisprecisamente após 1944, os intelectuaise artistas engajados no Teatro Experi-mental do Negro (TEN), sob a lide-rança intelectual de Abdias do Nasci-mento e Guerreiro Ramos, empre-enderam uma reflexão sobre a condiçãonegra no Brasil. O jornal Quilombo1

editado pelo grupo trazia como sub-título a inscrição: “vida, problemas easpirações do negro”.

Inúmeras outras mobilizaçõespolíticas dos movimentos negrosrefletiram sobre a condição do negrobrasileiro. Poderíamos discorrer aquisobre a emergência do MovimentoNegro Unificado (MNU) no final dosanos de 1970 e os seus desdobra-mentos. No entanto, a novidade aquié a reflexão emergente de uma novageração de intelectuais negros loca-lizados nos principais centros deestudos do país, surgida princi-palmente a partir do final dos anos de1980 e início dos anos de 1990. Essesintelectuais, quase todos oriundos damilitância anti-racista, estão re-definindo o campo dos estudos dasrelações raciais.

O livro De preto a afro-descendente– Trajetos de pesquisa sobre relaçõesétnico-raciais no Brasil é fruto dotrabalho de parte dessa geração.Nascido das comunicações apre-sentadas para o II Congresso Brasi-leiro de Pesquisadores Negros,realizado de 25 a 29 de agosto de2002 na Universidade Federal deSão Carlos (UFSCar), traça um

panorama esclarecedor dos estudose pesquisas no campo das relaçõesraciais realizadas nas principaisuniversidades brasileiras.

Evidentemente, nem todos ospesquisadores são negros. No entanto,o tom geral dos artigos incorporaavanços políticos e científicos caros aosnegros em suas investidas políticas. Otema do Congresso é, por si só, umreflexo das discussões que animam osmovimentos negros. Na apresentaçãodo livro, a Comissão Organizadora doCongresso assume a posição política:“É significativo destacar que, ao‘negarem’ a nomeação imposta depreto e ao se autonomearem comonegro, afro-brasileiro ou, mais re-centemente, como afro-descendentetêm, os negros, buscado por meio deseus intelectuais dentro e fora dasUniversidades, rever, recriar, res-significar sua participação na históriapassada e presente do Brasil”.

Política aqui, destaco, não é aquelados palácios e partidos, mas a realizadacotidianamente pelos grupos orga-nizados, isto é, a que dá sentido àsações dos agentes sociais e constituisuas identidades.

O leitor que se aventurar pelas maisde trezentas páginas do livro encontraráartigos que combinam conhecimentosdas áreas de ciência política, cultura,saúde, comunicação, educação, socio-logia, antropologia, história etc. Oestabelecimento de uma temática teveo efeito de dar unidade ao livro. Assim,o problema do negro na educação,abordado nos artigos dos pesquisadoresPetronilha B. Gonçalves da Silva,Delcele M. Queiroz e Gilberto F. daSilva, relaciona-se com os textos quetematizam a cultura, tal como osescritos por Alecsandro J. P. Ratts e

1Os dez números do jornal receberam uma cuidadosa edição fac-similar e foram lançados comercialmente.

Maria das Graças Gonçalves. No finaldo livro, um artigo escrito por ValterR. Silvério faz um cuidadoso balançoque ilumina o atual debate sobre aquestão das ações afirmativas no Brasil.

Outros artigos abordam assuntospolêmicos, como a trajetória de doismilitantes históricos do movimentonegro: Abdias do Nascimento e LéliaGonzales. O branqueamento, um dostemas centrais dos estudos de relaçõesraciais, é revisitado aqui por AndreasHofbauer em um texto instigante quedebate com os estudos correntes. Nãomenos interessantes são as conclusõesdo estudo de Luís E. Batista, umcruzamento de dados sobre mor-talidade e origem racial.

Há ainda um curiosíssimo texto sobrea presença de fractais na cultura africanae afro-descendente, que tem o efeitobenéfico de provocar o leitor para temasmenos estudados no campo da cultura.Penso que esse artigo mereceria seracompanhado de um suporte visual,como um vídeo ou filme, dada a próprianatureza do objeto tratado.

Em um livro com essas características,resultado de um congresso, o leitordesavisado poderia perder-se num ema-ranhado de artigos desconexos. Felizmentenão é o que acontece. Ganha o leitor duasvezes, pois a temática confere unidade àsvárias perspectivas teóricas e metodológicasadotadas, o que resulta em um diagnósticoda problemática vivida pela populaçãonegra, e, também, em um amplo pan-orama das pesquisas em relações raciaisdesenvolvidas no Brasil atualmente.

*Cineasta e documentarista, mestre emMultimeios pela Unicamp e doutorandoem Sociologia pela USP, onde pesquisa ocinema realizado pelos diretores negrosbrasileiros.