livro caminhadas

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UFRB

Copyright 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pr-Reitoria de Extenso. O contedo dos textos desta publicao de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenao da Coleo: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Ins Sousa Organizao da Coleo: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonalves Aline Pacheco Santana Ncleo de Produo Editoria da Extenso PR-5/UFRJ Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo

Programao Visual: Coordenao:

C183 Caminhadas de universitrios de origem popular : UFRB / organizado por Ana Ins Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pr-Reitoria de Extenso, 2009. 100 p. ; il. ; 24 cm. (Coleo caminhadas de universitrios de origem popular) Ao alto do ttulo: Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. Programa Conexes de Saberes : Dilogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-39-9 1. Estudantes universitrios Programas de desenvolvimento Brasil. 2. Integrao universitria Brasil. 3. Extenso universitria. 4. Comunidade e universidade Brasil. I. Souza, Ana Ins, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexes de Saberes : Dilogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal do Recncavo da Bahia. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81

Ministrio da Educao Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Programa Conexes de Saberes: dilogos entre a universidade e as comunidades populares

Organizadores

Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Ins Sousa

UFRB

Pr-Reitoria de Extenso - UFRJ Rio de Janeiro - 2009

Coleo

Autores Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministrio da Educao Fernando HaddadMinistro

Adriano Guedes de Souza Alessandra Rgis do Rosrio Anderson dos Santos da Silva Andr Bruno Santos da Anunciao Bruna Maria Santos de Oliveira Daniela de Souza Sales Daniela da Silva Santos Daniela de Melo Oliveira Deraci Souza dos Santos Edilon de Freitas dos Santos Edimilson Pereira dos Santos da Silva Ednlia Oliveira dos Santos Eliana Souza dos Santos Emanuel Silva Andrade rica Paixo da Silva Evanilda dos Santos Esmeralcy Almeida Santos

Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade SECAD Andr Luiz de Figueiredo LzaroSecretrio

Diretoria de Educao para a Diversidade - DEDI Armnio Bello Schmidt Coordenao Geral de Diversidade CGD Leonor Franco de Arajo

Programa Conexes de Saberes: dilogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e SilvaCoordenao Geral

Fabiana Aguiar Fonseca Geoston Caetanos Castro Oliveira Gerlan Cardoso Sampaio Iranildes Sales Bispo Jailton Almeida dos Santos Barbosa Jeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento Joana Angelina dos Santos Silva Jordana da Silva Chaves Jos dos Santos Jos Raimundo dos Santos Joselita de Jesus Bomfim Juliana de Jesus Santos Leila Pereira da Cruz Lucas Dias Reis Maria Joseni Borges de Souza Maria Gilcilene Maciel Rocha

Cludio Orlando Costa do NascimentoCoordenao Geral do Programa Conexes de Saberes/UFRB

Rita de Cssia Nascimento Leite Eduardo David de Oliveira Djenane Brasil da Conceio Priscila Carvalho Leo Sivanildo da Silva BorgesCoordenao Adjunta

Paulo Gabriel Soledade NacifReitor

Marly Silveira Meire Aparecida de Souza Fiuza Naiara Fonseca de Souza Nbia Oliveira Palmira Magaly Passos Gusmo Queilane Salvador Santos Rosiane do Carmo Teixeira Rosiane Rodrigues da Silva Robenilson Ferreira dos Santos Silmary Silva dos Santos Simone Santana da Cruz Solange Conceio Silva Tatiane Santos de Brito Toniel Costa do Carmo Santos Vanessa Morais Paixo Uirlon Sbigo Alves Cardoso

Silvio Luiz de Oliveira SgliaVice-Reitor

Rita de Cssia Dias Pereira de JesusPr-Reitora de Polticas Afirmativas e Assuntos Estudantis

PrefcioA sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construo de aes que permitam, sem abrir mo da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econmica que caracteriza o pas. E, para isso, a educao um elemento fundamental. A possibilidade da educao contribuir de forma sistemtica para esse processo implica uma educao de qualidade para todos, portanto, uma educao que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os nveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministrio da Educao persegue de forma intensa e sistemtica esses objetivos. Conexes de Saberes um dos programas do MEC que expressa de forma ntida a luta contra a desigualdade, em particular no mbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vnculos entre as instituies acadmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condies objetivas que contribuem para os estudantes universitrios de origem popular permanecerem e conclurem com xito a graduao e ps-graduao nas universidades pblicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa desenvolvido a partir da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evoluo e expanso, para o cenrio nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasio constitui-se uma Rede de Universitrios de Espaos Populares com ncleos de formao e produo de conhecimento em vrias comunidades populares da cidade. O Programa Conexes de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduao em cinco universidades federais, distribudas pelo pas: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministrio da Educao assegurou, em todos os estados do pas, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo includas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Atravs do Programa Conexes de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitrios que participam de um processo contnuo de qualificao como pesquisadores; construindo diagnsticos em suas instituies sobre as condies pedaggicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnsticos e aes sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulao de proposies e realizao de1

A partir da liberao dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas.

prticas voltadas para a melhoria das condies de permanncia dos estudantes de origem popular na universidade pblica e, tambm, aproximar os setores populares da instituio, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mos, caro(a) leitor(a), um marco dos objetivos do Programa: a coleo Caminhadas chega a 33 livros publicados, com o lanamento das 19 publicaes em 2009, reunindo as contribuies das universidades integrantes do Conexes de Saberes em 2006. Com essas publicaes, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades pblicas e em outros espaos sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moas, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas s universidades de excelncia do pas ou s o permite para os cursos com menor prestgio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construo de uma universidade pblica efetivamente democrtica, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Ministrio da Educao Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro

SumrioRita de Cssia Dias, Cludio Orlando Costa do Nascimento Eduardo Oliveira, Djenane Brasil da Conceio e Priscila Leo Texto autobiogrfico Adriano Guedes de Souza Autobiografia Alessandra Rgis do Rosrio Em busca de um sonho Anderson dos Santos da Silva

Apresentao

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Memorial Andr Bruno Santos da Anunciao Meus relatos Bruna Maria Santos de Oliveira

Caminhos cruzados: muitas vidas, uma histria Daniela de Souza Sales, Esmeralcy Almeida Santos, Gerlan Cardoso Sampaio, Iranildes Sales Bispo, Jailton Almeida dos Santos Barbosa, Joana Angelina dos Santos Silva, Juliana de Jesus Santos, Maria Joseni Borges de Souza , Naiara Fonseca de Souza, Rosiane do Carmo Teixeira, Rosiane Rodrigues da Silva, Robenilson Ferreira dos Santos, Silmary Silva dos Santos, Simone Santana da Cruz, Tatiane Santos de Brito e Vanessa Morais Paixo Caminhando contra o vento Daniela da Silva Santos Autobiografia Daniela de Melo Oliveira Memorial Deraci Souza dos Santos

27 36 38 40 41 45 47

Quem sou eu? Edilon de Freitas dos Santos

Memorial Edimilson Pereira dos Santos da Silva Em busca dos sonhos Ednlia Oliveira dos Santos

Autobiografia Uirlon Sbigo Alves Cardoso

Texto autobiogrfico Toniel Costa do Carmo Santos

Minha histria Solange Conceio Silva

A realizaao do sonho Queilane Salvador Santos

Texto autobiogrfico Nbia Oliveira

Superao Meire Aparecida de Souza Fiuza

LAmore Marly Silveira

Memorial Maria Gilcilene Maciel Rocha

Meus passos, minha caminhada Palmira Magaly Passos Gusmo

Texto autobiogrfico Lucas Dias Reis

Verdadeira identidade Leila Pereira da Cruz

Autobiografia Joselita de Jesus Bomfim

Texto autobiogrfico Jos Raimundo dos Santos

O impossvel aconteceu Jos dos Santos

Autobiografia Jordana da Silva Chaves

Texto autobiogrfico Jeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento

Texto autobiogrfico Geoston Caetano Castro Oliveira

Vrios obstculos, novas conquistas Fabiana Aguiar Fonseca

Texto autobiogrfico Evanilda dos Santos

Texto autobiogrfico rica Paixo da Silva

Trajetria da conquista de um sonho Emanuel Silva Andrade

Minha trajetria de vida Eliana Souza dos Santos

50 53 55 56 58 61 64 67 68 70 72 73 75 77 79 83 85 88 90 92 95 99

ApresentaoA Universidade Federal do Recncavo da Bahia - UFRB nasce impregnada de referenciais histricos e culturais da tradio do Recncavo Baiano, bero da nao brasileira. So saberes e experincias que se caracterizam, fundamentalmente, pelo reconhecimento e valorizao das formas de resistncia, reao e afirmao das diferenas e da possibilidade de coexistncia coletiva. A UFRB, imbuda do propsito de contribuir para a correo das distores sociais ainda presentes, compromete-se em propiciar a incluso social e a igualdade racial, atravs de polticas institucionais, assim que a UFRB torna-se pioneira no mbito das universidades brasileiras, na criao de uma Pr-Reitoria dedicada a implantar polticas de ao afirmativa associadas aos assuntos estudantis, instituindo a PROPAAE - Pr-Reitoria de Polticas Afirmativas e Assuntos Estudantis - cuja misso promover a execuo de polticas afirmativas e estudantis, garantindo comunidade acadmica condies bsicas para o desenvolvimento de suas potencialidades, visando a insero cidad, cooperativa, propositiva e solidria nos mbitos cultural, poltico e econmico da sociedade e o desenvolvimento regional. A PROPPAE nasce comprometida com a perspectiva multicultural, sintonizada com a luta dos movimentos sociais, e com as atuais polticas pblicas relativas diminuio das disparidades sociais e a promoo da igualdade racial e da diversidade, sobretudo, vincula-se quelas polticas que impliquem na promoo de prticas relativas democratizao do acesso, permanncia e ps-permanncia do estudante de origem popular no ensino superior. A UFRB/PROPAAE, de forma dialgica e articulada com os vrios segmentos contemplados pelas polticas institucionais, ps em prtica uma ao de co-responsabilidade e mutualidade no trato com as demandas da comunidade acadmica, instituindo o Programa de Permanncia embasado nos princpios da experincia universitria, que integra nas aes de permanncia, prticas de ensino, pesquisa e extenso, fomentadas em torno do conceito de permanncia qualificada. O Programa de Permanncia visa contribuir com a permanncia dos estudantes nos cursos de graduao da UFRB, assegurando formao acadmica qualificada, atravs de aprofundamento terico, por meio de participao em projetos de extenso, atividades de iniciao cientfica vinculadas a projetos de pesquisa e atividades de ensino relacionadas sua rea de formao e ao desenvolvimento regional. Implementando assim, uma poltica de permanncia associada excelncia na formao acadmica.

Conexes de Saberes na UFRBO Programa Conexes de Saberes: dilogos entre a universidade e as comunidades populares integra a poltica institucional da UFRB que vincula de forma inextrincvel, aUniversidade Federal do Recncavo da Bahia

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formao tcnico-cientfica, ao compromisso social e promoo do protagonismo dos cidados acadmicos. Baseado no plano de ao da PROPAAE-UFRB, de construo e implantao de polticas de acesso e permanncia para estudantes de origem popular, afro-descendentes e indgenas no ensino superior, a UFRB esteve presente no II Seminrio Nacional do Programa Conexes de Saberes, realizado no perodo de 1 4 de novembro de 2006, no Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, foi possvel vivenciar uma conexo nacional, constituda pela participao dos coordenadores locais e nacionais, dos estudantes bolsistas, das representaes comunitrias e das universidades integrantes do Programa, que contempla todas as unidades da Federao. A PROPAAE articulou no Projeto institucional a participao da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ensino de Ps-Graduao - PRPPG e da Pr-Reitoria de Extenso - PROEXT, instituindo uma coordenao colegiada, e um plano de trabalho que pudesse articular poltica de permanncia e de aes afirmativas, s aes de pesquisa e extenso. Segundo o Reitor Prof. Paulo Gabriel Nacif, a deciso de participarmos do Conexes de Saberes deveu-se, sobretudo importncia de envolver experincias entre Universidade-Comunidade, tendo os jovens de origem popular como protagonistas das aes que buscam valorizar tradies, saberes e experincias locais.

As caminhadas, experincias e saberes emancipatriosA escrita autobiogrfica foi o nosso ponto de partida para a execuo do Projeto. Consideramos que a escrita e a socializao dos textos sobre as histrias de vida possibilitou vrios olhares sobre itinerrios e itinerncias realizados pelos estudantes no decorrer de suas vidas. Esses textos, num primeiro momento, possibilitaram a condio de reconhecimento e apropriao dos sentidos correspondentes s caminhadas, ao vivido individual e coletivamente. O caminho percorrido, reconhecido, refletido e apropriado pelos sujeitos expressa suas vivncias, experincias e saberes. Em outras palavras, os estudantes ao escreverem sobre suas histrias, acordaram suas memrias, buscaram compreender as situaes vivenciadas, os contextos, os tempos-lugares de onde cada um fala, produz seus sentidos consoantes com suas vidas de agora. Podemos perceber muitas histrias diferentes e em comum, experincias protagonistas, vivncias tradicionais, culturais, saberes ancestrais, conhecimentos contextualizados, encarnados na regio do Recncavo, um Ethos que institui realidades e expressa a preponderncia de referenciais pertencentes a etnia negra.

Caminhadas no ensino mdio: s rodas de formaoOs textos das histrias de vida, experincias e saberes dos estudantes-conexistas presentes nesse livro destinam-se execuo do Programa na sua fase de extenso junto s escolas de ensino mdio, numa ao que consiste na realizao de atividades de formao junto aos alunos do 3. ano do ensino mdio nos espaos escolares. Pretendemos assim, favorecer o dilogo entre os estudantes da UFRB e os estudantes do ensino mdio atravs das Rodas de Formao para tratarem de temas transversais pertinentes formao cidad, social, cultural e protagonista dos Jovens.

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Caminhadas de universitrios de origem popular

As Rodas de Formao so constitudas e organizadas pelos estudantes e coordenadores do Conexes na UFRB e pelos alunos de escolas pblicas de ensino mdio da Regio do Recncavo. As Rodas promovem o debate de temas transversais do currculo dessas escolas, a exemplo das aes afirmativas, articulado com as polticas de acesso e permanncia no ensino superior. Essa ao de extenso nas escolas do ensino mdio, possibilita aos estudantes-conexistas uma permanncia qualificada, um exerccio protagonista implicado e comprometido com atividades de formao, que resulta em integrao, debate, pesquisa e formao. A metodologia de abordagem coletiva de temas previamente elencados, enfocados a partir da sistemtica de relatos e discusses. As Rodas so compostas por Jovens que se revezam nas funes de facilitadores, ao apresentarem seus relatos, saberes e experincias a fim de dinamizar o incio das discusses sobre os temas escolhidos para a formao.

Profa. Dra. Rita de Cssia Dias Pr-Reitora de Polticas Afirmativas e Assuntos Estudantis Prof. Dr. Cludio Orlando Costa do Nascimento Coordenador de Polticas Afirmativas CPA e do Programa Conexes de Saberes na UFRB Prof. Dr. Eduardo Oliveira Centro de Formao de Professores CFP Profa. Ms. Djenane Brasil da Conceio Centro de Cincias da Sade CCS Priscila Leo Assistente Social UFRB

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Texto autobiogrficoAdriano Guedes de Souza*Fiz o curso primrio em escola pblica, onde tive muitas dificuldades para estudar, pois muitas vezes no tinha material escolar suficiente. Mas com a ajuda de minha me, que sempre me incentivou aos estudos, eu conclu o ensino primrio sem nunca ter perdido um ano. O maior problema em estudar era financeiro, pois o meu pai no me reconheceu como filho e fui criado somente por minha me. Ela, por ser quase analfabeta - concluiu somente a 4 srie do primrio -, tinha dificuldades em conseguir um emprego. Ento, ela sempre trabalhou com bicos: lavadeira, faxineira, venda de produtos de catlogos de revistas. O dinheiro que entrava servia praticamente s para pagar aluguel e a comida. Entrei para o ensino fundamental com onze anos de idade. Foi nessa poca que minha me comeou a vender doces (balas, chicletes etc) e eu passei ajud-la. Pela manh ia escola e ela ficava na barraca de doces. Durante a tarde, eu ficava na barraca e ela podia fazer outras coisas, como vender produtos e fazer faxinas. Aos sbados era dia de eu trabalhar na feira com carrinho-de-mo (carregando compras) e ela ficar o dia inteiro na barraca. O dinheiro era pouco, mas dava para ajudar na alimentao para a famlia: minha me, eu e minha irm Adriana, que ainda era muito pequena. Conclu o ensino fundamental sem tambm perder nenhum ano. Nesse intervalo de tempo, a barraca foi perdendo freguesia, os doces foram acabando e eu fui procura de outros trabalhos como engraxate, ajudante de marceneiro e de ajudante de oficina de bicicletas. Durante o ensino mdio, comecei a trabalhar numa oficina de conserto de moto, recebendo metade do salrio mnimo na poca, onde alm de trabalhar aprendi a profisso. No perodo da manh eu estudava e tarde trabalhava. Tambm conclu o ensino mdio de forma regular, sem perder nenhum ano. Aps isso fiquei um ano sem poder estudar, pois passei a trabalhar o dia todo e chegava em casa muito tarde (20h) e cansado, mas no podia deixar de trabalhar porque minha me no conseguia mais trabalhar por motivos de sade (problemas de coluna e nervos) e tambm no podia se aposentar por nunca haver trabalhado com carteira assinada. Ento, era praticamente eu que sustentava a casa, e nessa poca j no pagvamos mais aluguel, pois o meu av havia falecido e deixou um terreno grande na roa, que foi vendido e o dinheiro dividido entre os filhos. Com esse dinheiro compramos um terreno e com a ajuda de uma prima da minha me, Eneide, e conseguimos construir uma casa. Nesse perodo eu passei a me engajar em grupos de jovens da Igreja Catlica, onde desenvolvamos trabalhos de evangelizao.

* Graduando em Engenharia Agronmica pela UFRB.

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Ento achei um emprego melhor, como balconista numa lanchonete, onde recebia melhor remunerao e com isso podia ajudar mais em casa. Foi nessa mesma poca que senti necessidade de entrar em um cursinho pr-vestibular. Por participar do grupo de jovens da igreja, consegui, atravs de um amigo, uma vaga em um cursinho pr-vestibular mantido pela Igreja Catlica, que era gratuito e direcionado para jovens de origem popular. Mesmo trabalhando, fiz o cursinho noite e aproveitava as horas vagas no trabalho para estudar. No final de 2003 me inscrevi para o vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no campus de Cincias Agrrias, em Cruz das Almas, que posteriormente se tornaria a Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB) e fui aprovado. Mas a surgiu um novo obstculo: o curso para o qual fui aprovado (engenharia agrnoma) era em perodo integral e isso dificultou as possibilidades de continuar trabalhando, pois eu era o nico funcionrio da lanchonete. E, alm disso, era eu sozinho quem sustentava a casa. Fiquei sem saber qual deciso tomar. Foi a que minha me me deu a maior fora para optar pelos estudos. Sa do emprego e entrei na universidade. Quando entrei na faculdade, uma ex-professora e um amigo me informaram que os estudantes tinham direito a uma bolsa alimentao, e que era somente para estudantes que morassem fora da cidade, mas que os que estivessem numa situao muito difcil poderiam tentar concorrer bolsa, mesmo morando na cidade. Ento tentei, e apesar de tudo, consegui. Com isso, os gastos em casa diminuram um pouco. Minha me passou a fazer outros bicos e conseguiu tambm a Bolsa-Famlia, um auxlio do governo federal de R$ 65,00 mensais. Uma tia, Enilda, passou a assinar a sua carteira de trabalho, para tentar garantir uma futura aposentadoria. Apesar de todas essas dificuldades, estou feliz e orgulhoso por cursar agronomia e apaixonado pelo curso. Mesmo tendo estudado em escola pblica, consegui entrar em uma universidade federal e passei de certa forma a ser uma referncia em meu bairro para os outros jovens, pois assim como eu consegui passar, eles tambm so capazes de conseguir. Desde que comecei a estudar na universidade, me empolguei com as informaes relacionadas ao meu curso de agronomia, quando algo dentro de mim me chamou muito a ateno. Sentia uma vontade muito grande de poder dividir com a sociedade, principalmente com os jovens como um todo; tudo aquilo que aprendi e venho aprendendo no meu curso e na minha luta como estudante pobre, vindo de espao popular e de origem afro. Sempre que chegava da universidade os amigos do meu bairro se aproximavam, e me perguntavam como era a faculdade, como eu havia conseguido entrar, algumas pessoas que nem falavam comigo antes, me paravam nas ruas me desejando parabns; eu achava tudo aquilo tudo o mximo. Quando estava no 5 semestre do curso fiquei sabendo de um Programa do governo federal, chamado Conexes de Saberes. Procurei mais informaes e, quando soube que a idia era trabalhar com questes sociais voltadas para comunidades populares, me interessei muito pelo Programa. Fiz o processo seletivo, mas veio logo em seguida a decepo, pois no fui selecionado. Fiquei triste, mas no desanimei, pois pessoas muito queridas haviam passado. Passado alguns meses, estava em casa noite, quando um primo veio at minha casa para dizer que a universidade tinha ligado para ele, dizendo que eu devia comparecer no dia seguinte na coordenao de assuntos estudantis. Fiquei muito curioso, mas nem me lembrava mais do programa do governo, pensei que era por outros motivos. Quando cheguei l, no dia seguinte, tive uma grande surpresa: fiquei sabendo que tinha sido escolhido como novo membro do programa. Esse foi um dos momentos mais emocionantes, depois de ter sido aprovado no vestibular, em minha caminhada estudantil.

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Caminhadas de universitrios de origem popular

AutobiografiaAlessandra Regis do Rosrio*Sou filha de Antonio Geraldo do Rosrio Filho e Maria Lucia Regis do Rosrio e tenho Luana e Anderson como irmos. Nasci em 28 de junho de 1980, na cidade de Valena, interior da Bahia, sendo a primeira filha de uma famlia de classe mdia baixa. Graas ao bom Deus, que ilumina nossa famlia, nunca passamos por dificuldades, meu pai sempre manteve a casa, pois era a nica pessoa que trabalhava. Ele nunca teve um emprego fixo, sempre trabalhou para si mesmo como produtor rural e na alta estao - como minha cidade costeira - ele tambm trabalhava com venda de mariscos num ponto que meu av cedeu pra ele, no fundo do mercado da cidade, e minha me sempre foi dona de casa. Meus pais no completaram os estudos, s cursaram at a oitava srie do ensino fundamental, mas sempre lutaram para que eu e meus irmos fssemos mais alm. Ento, com toda dificuldade e estudando sempre em colgio pblico, eu e meus irmos fomos adiante. Minha irm, mesmo sendo mais nova que eu, est concluindo a faculdade de administrao pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e eu agora entrei na Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB).

Meu caminho at a universidadeSempre estudei em escola pblica, cursei o ensino fundamental no Complexo Escolar Gentil Paraso Martins, na poca o nico colgio de ensino fundamental da cidade. Lembro que ia para o colgio sem nenhuma vontade, sem nenhum estmulo, pois a estrutura docente era precria . Os professores passavam o conhecimento de forma mecnica e me lembro que chegava muitas vezes a ter medo de alguns deles, nesta poca acabei repetindo a stima srie, atrasando assim minha formao. No ano seguinte consegui passar para a oitava srie e conclu o ensino fundamental. O meu ensino mdio cursei em uma escola tcnica - Escola Mdia de Agropecuria Regional (EMARC) onde fiz o curso tcnico em agropecuria. Na poca era considerado ensino mdio, optei por fazer este curso pensando em ajudar meu pai. Foi uma poca mais animadora em minha vida, pois a escola tinha uma estrutura bem melhor do que a outra, que eu tinha cursado o ensino fundamental. Porm, no final do curso, vi que no era aquilo que eu queria seguir e fiquei um pouco desesperada, pois agora a responsabilidade caa um pouco sobre mim. Tinha chegado a

* Graduanda em Histria pela UFRB.

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hora de retribuir um pouco a meus pais do que eles tinham feito por mim todo aquele tempo e ajud-los nas despesas, pois agora chegava a hora de meus irmos estudarem tambm, ento deixei de lado os conhecimentos que tinha aprendido no segundo grau (pois a dificuldade de conseguir emprego na rea era grande) e fui procurar emprego no comrcio da cidade. No foi fcil, como no consegui resolvi fazer um teste de seleo na outra instituio de ensino da minha cidade, o Centro Federal de Educao Tecnolgica da Bahia (CEFET), passei e comecei o curso tcnico em turismo, pois era uma rea que estava gerando muito emprego na cidade, pela vocao como cidade turstica. Comecei o curso, que era noturno, mas no desisti de procurar emprego e acabei conseguindo um estgio na prpria instituio, onde exercia a funo de monitora do laboratrio de informtica e recebia uma bolsa de meio salrio mnimo. L pude tambm aprender computao e esta bolsa foi de grande importncia para mim, pois alm do conhecimento tinha a ajuda de custo que me auxiliou muito. Aps o final do curso, e conseqentemente o final da bolsa, consegui um emprego no comrcio da cidade como vendedora em uma loja de calados. Este trabalho tomava praticamente todo o meu tempo, ento parei de estudar e s tinha tempo para o trabalho, que era muito cansativo e muitas vezes humilhante, devido s muitas cobranas dos chefes. Nesta poca minha irm passou no vestibular e entrou na universidade. Foi um momento muito feliz para mim e para meus pais, que ate ento no tinham noo do que era a filha de um produtor rural e de uma dona de casa na universidade. Essa vitria de minha irm foi cada vez mais me estimulando, cada degrau que ela alcanava me deixava mais interessada e feliz, de certo modo eu me realizava com as conquistas e descobertas dela. E foi ela mesma que me incentivou a voltar a estudar. Foi a que resolvi entrar em um cursinho pr-vestibular: trabalhava durante o dia e fazia o cursinho noite, e logo no comeo me senti muito feliz por estar ali, lutando por um sonho, porm muitas vezes chegava muito atrasada e cansada e no conseguia assistir as aulas. Alm disso, por eu ter optado por fazer meu ensino mdio em escola tcnica, deixei de lado muitas matrias que eram de suma importncia, essenciais para o vestibular, como fsica, qumica etc. Da, quando os professores do cursinho passavam estas matrias me sentia totalmente area, com os assuntos que nunca tinha visto. Isso me desanimava muito e eu pensava que nunca iria passar no vestibular. Infelizmente, devido ao cansao e os horrios irregulares, acabei desistindo do cursinho. Assim, como era de se esperar no passei no vestibular.

A grande decisoMesmo com a derrota do primeiro vestibular, no tinha desistido do meu objetivo, que era entrar na universidade. Depois de cinco anos de trabalho e sem perspectiva de melhora, veio em minha mente uma idia: largar o emprego e me dedicar exclusivamente ao vestibular. Cheguei em casa e comentei com meus familiares a minha deciso de sair do trabalho, sabia que seria uma deciso que poderia me trazer muitas preocupaes, pois no poderia ajudar nas despesas da casa e nem mesmo nas minhas prprias despesas. Minha famlia, apesar das dificuldades que iramos enfrentar, me deu o maior apoio e disse que eu poderia sair do trabalho o correr atrs dos meus objetivos. Nesse momento no posso deixar de falar na pessoa que a razo do meu viver: minha me, que acredita em mim at mais do que eu. Ela me deu toda fora e incentivo. Ento a deciso estava tomada: sa do

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Caminhadas de universitrios de origem popular

trabalho e comecei a estudar. Com o dinheiro da minha resciso de trabalho paguei o cursinho pr-vestibular e a pude chegar no horrio, sempre disposta a aprender tudo nas aulas, alm de estudar em casa tambm. Passaram-se oito meses, tinha chegado finalmente a reta final do cursinho e as provas de vestibular. Nessa poca o dinheiro que eu tinha recebido j havia acabado, ento como j estava mais segura do vestibular resolvi voltar a trabalhar. Consegui outro emprego, bem mais malevel que o antigo, e comecei a viajar para fazer vestibular. Eu tinha me escrito em duas universidades a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) para o curso de pedagogia e a Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB) para o curso de histria, que era o meu curso preferido. Fiz as provas, fiquei meio apreensiva, mas com muita f fiquei aguardando o resultado.

O grande diaLembro que entrava na internet todos os dias na esperana que o resultado sasse antes que o previsto mas via que seria realmente na data prevista. Exatamente no dia que eu no tinha entrado na net foi quando saiu o resultado. Eu estava no trabalho e logo que a loja abriu minha amiga Selma me deu os parabns, dizendo que eu passei no vestibular da UNEB. Eu fiquei sem graa e trmula, agradecia muito a Deus pela vitria de estar dentro de uma universidade. Fiquei a manh toda ansiosa para chegar a hora do almoo e contar a maravilhosa notcia para minha me e pra minha famlia. O que eu no sabia que Deus tinha me reservado uma surpresa ainda maior. Depois da comemorao de ter passado em um vestibular e confirmado que tinha valido a pena todos os meus esforos e abdicaes, outro amigo meu me ligou e disse que tinha sado o resultado da federal e eu tinha passado tambm. Eu no acreditava naquilo que eu ouvia, era muita felicidade para uma pessoa s (chorei muito junto com minha me, pois tinha passado na UFRB para o curso dos meus sonhos, foi o dia mais feliz da minha vida). Depois da euforia havia chegado hora de pensar como eu iria estudar, pois a universidade ficava em outra cidade e seria difcil achar um lugar para morar. Ento minha irm entrou em cena mais uma vez: ligou para uma amiga dela que morava prximo de Cachoeira e perguntou a ela se eu poderia passar um tempo em sua casa. Ela disse que eu poderia ficar quanto tempo quisesse, ento mais uma vez larguei tudo e fui atrs dos meus objetivos. Logo quando entrei na universidade tive a oportunidade de me inscrever na seleo para bolsista de um projeto maravilhoso que o Programa Conexes de Saberes, no qual fui selecionada e fiquei muito feliz no s pela ajuda de custo que me proporcionaria como tambm pela maravilhosa experincia de poder passar para muitos jovens a minha histria de vida e incentiv-los a correr atrs dos sonhos deles, mesmo com muitas dificuldades que ns sabemos que so inevitveis, principalmente para estudantes que so oriundos de comunidades pobres e de escolas pblicas. Veja, no diga que a cano est perdida Tenha f em Deus tenha f na vida Tente outra vez. Raul Seixas

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Em busca de um sonhoAnderson dos Santos da Silva*Vou contar a histria de um jovem que lutou bastante para conquistar seu sonho. Foram muitas as barreiras que ele encontrou no caminho, porm superou cada uma delas e correu como um verdadeiro atleta, a fim de alcanar seu objetivo: entrar na faculdade. A princpio gostaria que voc, leitor (a), o chamasse de Silva. O jovem Silva de uma famlia simples e humilde de interior da Bahia. Sua me, Railda, uma senhora amigvel e uma me formidvel, teve trs filhos. O Aprgio, o mais velho, o Ademir (que aps contrair uma doena ficou mudo e surdo) e o caula Silva. Seu pai chama-se Dermeval, um senhor que segundo sua me cercava seu filho caula de todo amor e carinho. Silva no conheceu a figura paterna, pois o pai morreu quando ele tinha trs anos de idade. No digo que foi uma dor para esta criana, pois ela desconhecia o significado desta palavra. Railda, mesmo abalada com a morte de seu marido, decidiu cuidar dos trs filhos. Tornou-se no s me, mas - porque no dizer - um pai tambm. Era uma guerreira, uma me brasileira, uma mulher que mesmo viva lutou pelo bem-estar dos seus filhos. Ela encontrou dentro de casa uma ajuda fundamental na criao das crianas: seu filho mais velho, Aprgio. Este, por sua vez, comeou a trabalhar cedo para ajudar a pagar as despesas de casa. Surgia ento um batalhador, um exemplo. Batalhador sim! Travou uma luta nada fcil, por ter que conciliar trabalho e estudo. Quantas noites mal dormidas teve este jovem, afim de que seus irmos ficassem bem. A ajuda dele foi indispensvel para a criao da famlia. Mas passados alguns anos e muitas lutas de sua me e irmo, chega a poca de Silva comear seus estudos numa escolinha chamada Menino Jesus. Os primeiros anos foram difceis para ele, por no conseguir entender o significado de estudar; deu muito trabalho para seu irmo e sua me. Uma das frases que ele no cansava de repetir era que escola no d futuro. Ledo engano. Essa fase turbulenta de Silva passou, e o Colgio Virglio de Senna, onde cursou o primrio, lhe ajudou a amar e admirar os estudos; a partir de ento Silva teve uma verdadeira histria de paixo com o conhecimento, mesmo com o Virglio de Senna deixando a desejar com relao estrutura. Em meio a tudo isso o jovem Silva concluiu as quatro sries iniciais neste colgio e passou a estudar em outro colgio, chamado Senador Pedro Lago. Mas antes de passar para a quinta srie, Silva passou as frias de fim de ano com sua tia Almira Nunes, irm de sua me, e conviveu com seus primos Adenilse (Lila) e Isaias (Sass), alm do tio Antnio Carlos, um policial militar. O que era para serem frias acabou se* Graduando em Comunicao Social pela UFRB.

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tornando a realidade de Silva, pois ele vive at hoje com essa famlia. Voc acha que ele abandonou sua me? Claro que no! Ele vive entre a casa de uma e outra me. Tia Almira tornou-se uma segunda me para ele. Foi ela que, tambm uma guerreira, o levou a conhecer o mundo sua volta. Enquanto uma das mes o superprotegia (Railda) a outra o ensinou a encarar seus desafios e medos (Almira). No Colgio Estadual Senador Pedro Lago o amor de Silva pelos estudos aumentou mais ainda. Era um colgio com novos professores, amizades, aprendizagens. E mesmo com tanta novidade, o colgio caa aos pedaos, o que levou os alunos a serem transferidos at a concluso de uma reforma local. Apesar das condies precrias de infra-estrutura, ele aprendera muitas lies que pde levar para o ensino mdio no Centro Educacional Teodoro Sampaio. O Teodoro Sampaio foi mais um colgio pblico na vida de Silva; mesmo assim, era uma fascinao a cada aula, a cada seminrio, havia uma verdadeira emoo no ato de estudar. Porm, nem tudo eram flores: havia tambm as dificuldades com alguns professores e muitas vezes a m qualificao e a falta de responsabilidades dos mesmos. Passados trs anos, ele concluiu o ensino mdio em 2004 e, a partir da, comeou a busca pelo seu sonho, o ensino superior. Inscreveu-se num programa do governo federal, Universidade para Todos, e obteve uma vaga. E neste momento comeou a dimensionar o quanto era grande a brecha entre o ensino pblico mdio e superior. Ele percebeu, na prtica, que havia muitos assuntos do ensino mdio que o vestibular cobrava e que ele no tinha a mnima noo. Ento ele comeou a esforar-se bastante para tapar os espaos que o ensino mdio deixou. Foram muitas madrugadas afora com a cara nos livros, para ver se conseguia pelo menos tornar-se competitivo no vestibular. Participou do processo seletivo do Centro Federal de Educao Tecnolgica (CEFET), para um curso tcnico, de nvel mdio: foi aprovado, mas no era isso que queria. O CEFET era apenas um aperitivo perto do seu sonho. Ele cursou parcialmente, mas no desistiu de entrar na faculdade. Logo aps inscreveu-se no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador e passou na primeira fase. Parecia que alcanaria seu sonho. Aps fazer a segunda etapa, com todas as dificuldades, foi saber no que deu: REPROVADO. Mesmo com a derrota, o que ele no podia era desistir, de seu sonho. Desta vez tentou a Universidade Estadual da Bahia (UNEB), novamente em Salvador, e achou que desta vez seria diferente, estava confiante, tinha que ser aprovado. Passados alguns dias saiu o resultado, e por incrvel que parea ele foi REPROVADO. Uma tristeza total para ele, sentia-se incapaz, temia no conseguir nunca. Mas sabia que s no alcanaria seu sonho se parasse de tentar! Foi tentar em outra cidade, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e durante os trs dias de prova acordava s quatro horas da manh e pegava o nibus s cinco. Depois de toda correria para realizar as provas, saa a lista de aprovados, e seu nome... no estava l, REPROVADO mais uma vez. J d para imaginar como estava difcil para ele, aps trs derrotas consecutivas, o qu fazer? O que voc faria, leitor(a)? Desistiria de seu sonho? Silva jamais desistiria, e por isso que escolhi a histria dele para vos contar. Ele continuou em busca do seu sonho. Cursou por mais um ano o Universidade para Todos, aprendendo e revisando todos os assuntos.

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Em seguida procurou pela iseno da taxa do vestibular da Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), e conseguiu pela quarta vez obter uma iseno. Fez sua inscrio para o curso de Comunicao Social, e pela primeira vez concorreria a um curso que o agradava. Finalmente chegou o dia da prova, fez a primeira fase e conseguiu ser aprovado. Desta vez no se alegrou tanto como da primeira vez, mas estudou bastante, afim de no ser reprovado como das outras vezes. Realizou a segunda fase e, aps alguns, dias saiu o resultado. Ele estava com muito medo do que poderia estar escrito l, temia mais uma vez ser reprovado, estudou muito e passar era tudo que mais queria. E quando tomou coragem para ver o resultado, contemplou o que assim poderia estar escrito como uma notcia de jornal: Depois de dois anos tentando ser aprovado numa universidade pblica, aps perder a vaga em trs vestibulares consecutivos, o jovem Silva APROVADO no processo seletivo da Universidade Federal do Recncavo da Bahia, para o curso de Comunicao Social. Finalmente Silva alcanou seu sonho, mas tenham certeza, muitos outros viro. E sabe por qu? Silva vai em busca de seu sonho. Ah! Quase esqueci seu nome... Anderson dos Santos da Silva, atual membro do Conexes de Saberes e o mesmo que vos escreve.

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MemorialAndr Bruno Santos da Anunciao*Eu prefiro ficar com os gestos a me perder com as palavras. Intuo a docilidade dos versos, a versificao da alma. Tua rima doce, teu propsito suave. Melindra no campo das flores, escorre saudades. Espero, um dia, amadurecer-te e coser-te de detalhes, encher-te de brilho. Tomara que venha minha boca e que eu no fale bobagens. Faa-me entend-la clara e precisa, que eu a compreenda leve e tranqila, mas no sucumba a tua verdade, doce palavra. Andr Bruno Santos da Anunciao

Histrico e caminhadasMeu nome, antes de eu nascer, j estava certo, iria ser Bruno, se menino; Poliana, se menina; depois que eu nasci, acrescentou-se o Andr por conveno de minhas outras duas irms primognitas, Andria e Adriana, ficando assim, Andr Bruno. H 24 anos eu nascia em Salvador, capital baiana. Era fofinho, bem cuidado e todo mundo queria um pedacinho meu. Talvez este tenha sido o meu primeiro momento entre tantas pessoas juntas. Sou filho de me solteira. Sou fruto da convivncia quase efmera entre minha me e meu progenitor. Minha me trabalhava como auxiliar de contas mdicas no Instituto de Dermatologia e Alergia da Bahia (IDAB) quando conheceu o meu pai, que era funcionrio pblico do municpio onde nasci. Namoraram por, mais ou menos, dois anos, at que eu nascesse e ele se eximisse de sua responsabilidade sobre mim quando descobriu que ela, sua namorada, aguardava um filho seu. Embora o fato de ser me solteira tenha comeado anos antes de eu nascer e ganhado maior impulso nos anos seguintes ao meu nascimento, mulheres de muita coragem como minha me j executavam a difcil tarefa de ser me e pai ao mesmo tempo.

* Graduando em Engenharia Agronmica pela UFRB.

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Estudei sempre em rede pblica de ensino. Fui aluno de creche, onde aprendi, entre outras coisas, a cantarolar. Coisa que fao at os dias de hoje debaixo do chuveiro. No me arrisco em pblico. Tive uma passagem breve por duas escolinhas de ensino pr-primrio que eram particulares, mas nada que onerasse as despesas de minha famlia (que era basicamente composta por mim, minhas irms, minha me e minha av [que guardo com muito carinho em minha memria]). Depois desse perodo pr-silbico, eu passei os anos ureos de minha infncia na Escola Vila Vicentina Vicentina em homenagem a So Vicente de Paula que apesar de ser Catlica, o ensino era gratuito, pois havia um convnio entre a igreja e o Governo do Estado. Entrar l foi o meu primeiro grande sacrifcio, pois embora fosse de carter pblico, o ensino era de excelncia e exigia-se muito para ingressar nela. Eu sa do pr-primrio sem base alguma, e uma das exigncias da escola era que soubssemos ler, escrever e fazer continhas. Mas eu no sabia, absolutamente, nada. Acabei por ser alfabetizado por minha me, em casa, sob belisces, safanes, xingamentos etc., bem ao modo em que ela aprendera. Mas eu s tenho a agradec-la por tudo, pois me motivou a querer mais e a perseguir isso. Havia todo um rito de entrada, sada e permanncia nas dependncias de l. Entrvamos enfileirados, executando alguma cano catlica propcia do ms, a caminho do ptio maior do antigo convento, onde ficvamos de frente matriarca da escola (catlica-nata) que nos regia, como ningum, acalmando nossos nimos com as canes que tratavam de amor, perdo, pacincia e paz, seguidos de sermes s vezes dados por ela prpria, pelo Monsenhor, ou mesmo pela secretria paroquial do Monsenhor. Ainda me lembro com muito carinho de uma que dizia assim: Eu te peo perdo, meu Deus; Se no perdoei, se no obedeci; Se no parei para agradecer: O meu despertar, o meu viver, Minha alegria de brincar E o meu sonho gostoso noite, ao deitar. Se era ms mariano, cantarolvamos Virgem Maria; se era a Pscoa, ressentamos o nascimento e a paixo de Cristo...

Duas pessoas muito importantesA primeira, minha av, a segunda, minha madrinha (alis, meus padrinhos). Falar de seres to angelicais, ternos, amigos como minha av e minha madrinha me remeter, assim como em todo momento anterior, a um mundo que me traz muitas boas recordaes: essas duas pessoas (ou melhor, trs, com o meu padrinho) sempre estiveram bastante presentes em minha vida. Tanto minha av como meus padrinhos eram aquele ombro amigo com o qual podia contar e ter em troca palavras confortveis, animadoras, amorosas e de esperana. Por diversas vezes, ambos, socorreram-me. Sinto falta de minha av querida! Meu padrinho a figura mais prxima que tenho de um pai, minha madrinha uma segunda me, grande amiga.

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Origem e manancialSou oriundo do ndio (do mato) e do preto (escravo e quilombola), com razes fincadas no Sul e Recncavo da Bahia. A universidade me deu a oportunidade fazer o caminho que os meus ancestrais no puderam fazer, por serem negros e, por isso, no tinham alma (negro vem do latim que quer dizer coisa sem alma). Como poderiam ter direito educao, se nem alma eles podiam ter? Minha tatarav era ndia que fora trazida por focinho (estrutura anloga a uma boca) de cachorro a um quilombo (de histria e elenco perdidos) que havia aqui no Recncavo, antes mesmo de haver a circunscrio poltica de Cruz das Almas. Meu bisav, Toms Nogueira, negro alto, espigado, nascera livre, no mato, provavelmente em algum quilombo, pois nascera por volta dos anos 1840, morrendo por volta dos anos de 1960, com cento e quinze anos de idade em Cruz das Almas, cuja causa mortis dada pelos seus foi uma feridinha no p.

LutasComecei a lutar (executar atividade remunerada) desde os dezesseis anos de idade com a oportunidade do meu primeiro emprego, chance que tive ao ser selecionado por concurso mirim para ser estagirio da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, onde levei um ano sob contrato. Aos dezessete, quase dezoito, tive o meu primeiro emprego com a Carteira de Trabalho e Previdncia Social (CTPS) assinada em Clnica Oftalmolgica, depois na Vivo Telecomunicaes. Nunca fui ativista de movimentos sociais, contudo encetei a primeira turma de instrutores de um Curso Pr-Vestibular da Organizao de Auxlio Fraterno (OAF), mantido pelo Ministrio da Educao (MEC), atravs do Programa Inovadores de Cursos (PIC) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), voltado, em especial, para os negros e jovens em situao de risco social. Nem por isso deixei de estudar, eu queria mais, mais do que os meus antepassados haviam conseguido ou tentado, eu queria uma carreira acadmica, uma formao intelectual, social e poltica... O meu primeiro vestibular foi para Cincias Contbeis no Instituto de Educao Superior Unyhana Salvador (IESUS), onde passei, mas no cursei. A instituio era particular e eu s o fiz porque fui isentado da taxa de inscrio. Eu continuei estudando. Queria ser militar, e, por isso, inscrevi-me no curso preparatrio para a Academia Superior de Armas do Exrcito Brasileiro, que tinha sede no Centro Federal de Educao Tecnolgica (CEFET), mas quando faltavam quatro meses para concorrer a uma vaga para cadete na Academia Superior de Armas (ASA) - Escola de Formao Militar das Agulhas Negras, que uma instituio de formao militar da Marinha do Brasil, desisti, fazendo o meu primeiro vestibular federal para a Escola de Agronomia, que pertencia Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas que agora compe um dos campi da Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), onde curso. Assim como eu pretendia antes de entrar na universidade, continuo perseguindo os meus sonhos (que eram: independncia, ascenso social, crescimento intelectual, moral, humano...) e tenho certeza de que chagarei l, unindo minha profisso, a minha realizao pessoal de estar fazendo o que gosto (em breve, ser engenheiro agrnomo).

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Meus relatosBruna Maria Santos de Oliveira*Meu nome Bruna Maria Santos de Oliveira, sou de Barreiros Distrito de Riacho do Jacupe, na Bahia, e vou contar alguns relatos de minha vida, talvez comuns a tantas outras marcada por uma trajetria de dificuldades e conquistas. Tudo comeou com o namoro de dois jovens, Odenice e Orlando, meus pais biolgicos. Nasci prematura de sete meses, na casa de meus avs maternos, sem nenhuma condio favorvel para um parto. Tive problemas de sade que quase me levaram morte, sobrevivi graas a Deus e aos cuidados de minha famlia. Por esses e outros motivos, quando tinha alguns meses de vida, fui morar na casa de meu av paterno, cuja morte ocorreu aps dois anos, e minha ida pra l, que era pra ser por alguns dias, ficou em definitivo, pois continuei l morando por toda a minha vida. Essa talvez tenha sido a parte mais difcil e prazerosa de minha vida, pois ganhei uma famlia maravilhosa composta de uma mulher (segunda mulher de meu av) que at faltamme palavras para descrev-la, cujo nome Maria de Jesus Ferreira, minha me ou, como costumo cham-la, mainha. Uma mulher batalhadora, guerreira e muito forte que criou seus sete filhos, que so meus tios-irmos. Mainha alm de me, foi o pai de seus filhos, netos e de algumas crianas que apareceram como eu. Trabalhou durante toda sua vida como lavradora para sustentar a todos e no tinha nem os domingos para descansar. Mesmo no sabendo ler e escrever e das demais dificuldades, sempre nos mostrou a importncia dos estudos. Sempre dedicou seu amor e cuidados pra mim igual aos seus filhos. Lembro-me dos cuidados especiais - e at exagerados - que recebia por causa dos meus ataques de bronquite asmtica e das muitas vezes onde todos perdiam noites e dias em revezamento para cuidar de mim, faltando at mesmo nos seus trabalhos, pois desde muito cedo todos j lidavam com isso para ajudar na renda familiar, tudo para dedicar total ateno a mim. Lembro-me tambm com muitas saudades das belas tranas que eram feitas em meus cabelos ao domingos, dia este em que eles eram lavados sempre s dez horas da manh, quando o sol estava quente, pois tinha que ficar aquecendo-me para secar mais rpido. Nesses momentos, como em tantos outros, parecia at que o mundo todo parava para dedicar-me amor, carinhos e segurana, e foi assim ao logo de minha vida. Estudei durante toda minha vida em escolas pblicas, etapa maravilhosa e marcante, onde comecei a traar meus objetivos e conviver com pessoas que me ajudaram em tal* Graduanda em Engenharia Agronmica pela UFRB.

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trajetria. Conclu o ensino mdio em 2004, apesar das dificuldades, pois alm da falta de preparao de alguns professores, no existia na comunidade uma sede prpria e adequada para o nico colgio de ensino mdio do lugar. Para tal finalidade foi utilizado um galpo de um ex-supermercado, desativado por falta de estrutura fsica, e tive tambm que trabalhar durante o perodo escolar para ajudar na renda familiar, o que no foi motivo para interromper meus objetivos. Em decorrncia da falta de oportunidade de emprego e estudo em Barreiros, em janeiro de 2005, fui pra Feira de Santana fazer um Curso Tcnico em Agropecuria pela Fundao Bradesco, que a princpio foi apenas a primeira oportunidade que encontrei pra continuar estudando. Entretanto, me apaixonei pela rea de atuao, que conseqentemente foi responsvel pela minha escolha profissional: a Engenharia Agronmica. O curso tcnico me proporcionou tambm a oportunidade maravilhosa de morar com meu irmo Paulo Marcos, com quem at ento tinha pouco contato. Foi nele que encontrei tambm total apoio para continuar estudando, pois ele uma pessoa maravilhosa e um dos meus exemplos. Aps concluir o curso tcnico, fui trabalhar em uma ONG, o Movimento de Organizao Comunitria (MOC). Meu trabalho era em Itiba, na Regio Sisaleira, desenvolvendo atividade com jovens e familiares baseado em agricultura familiar, agroecologia e crdito, com objetivo de melhorar a qualidade de vida e gerao de renda das pessoas daquela regio. O MOC foi uma academia importante em minha vida, pois a partir dele tive a oportunidade de me envolver verdadeiramente com os movimentos sociais e causas que at ento s me envolvia como coadjuvante. Me possibilitou tambm conhecimentos e momentos que me ajudaram no apenas profissionalmente, mas tambm pessoalmente, graas ao convvio com pessoas e lugares que me possibilitaram tal papel. Conquistei e fui conquistada por vrias pessoas e constru muitas amizades. Afastei-me do trabalho por causa da universidade, pois no tinha como conciliar o trabalho com os estudos acadmicos por serem em municpios diferentes e distantes, pois Itiba, fica aproximadamente 400 km de Cruz das Almas, onde est o campus de Engenharia Agronmica da Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB). Consegui, apesar de muitas dificuldades, ingressar na UFRB e fazer o curso Engenharia Agronmica. Consegui quebrar o paradigma que existe na cabea de muitas pessoas de que a universidade, apesar de pblica, no para todos. Realmente faltam polticas afirmativas contnuas e intensivas para erradicar as desvantagens que os grupos sociais de baixa renda enfrentam ao longo da histria e que dificultam sua insero igualitria na competio social, como ingressar e permanecer em uma unidade pblica de ensino superior. Pois os cursos oferecidos, na maioria das vezes, possuem um turno integral diurno, ficando quase impossvel conciliar trabalho e estudo. Isso muitas vezes define os que podem continuar e os que sacrificam o estudo. Sei tambm que a caminhada longa e que entrar no foi o maior desafio: concluir e enfrentar o competitivo mercado de trabalho ser ainda mais duro. O meu ingresso na UFRB possibilitou-me o conhecimento do Programa Conexes de Saberes, que despertou meu interesse no apenas pela possibilidade de ganhar uma bolsa que iria ajudar a manter-me na universidade com menos dificuldades financeiras por um perodo de tempo, como tambm pela proposta de poder ajudar e contribuir no crescimento de pessoas de classes populares como a minha.

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Sem dvida, os maiores responsveis pelo meu sucesso foram minha me Maria, meu irmo Paulo Marcos, minha famlia, alguns professores e amigos, que com certeza sabem da contribuio que tiveram durante minha vida. Fica aqui registrado o meu muito obrigada por terem me incentivado sempre e acreditarem em mim. Agradeo principalmente a Deus por te me dado a vida e a possibilidade de conviver com pessoas maravilhosas e poder conquistar meus objetivos.

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Caminhos cruzados: muitas vidas, uma histriaTexto a 16 mosIntroduoSo quase seis da tarde. As aulas j acabaram faz algum tempo. As salas esto vazias, chorando de saudades da euforia que h pouco tudo preenchia e agora se transforma em um vazio amistoso entre a angstia e o descanso. Olhando ao redor no se v uma alma sequer. J foram todos embora para seus afazeres, para suas tendas, para suas famlias. As luzes do ptio j se encontram apagadas e seria difcil encontrar direo caso a luz da sada no ficasse costumeiramente acesa, servindo de bssola. Parando no meio do ptio e fazendo ecoar trs palmas seguidas, logo surgir em meio ao breu um dos porteiros, seu Gerson ou seu Josaf, em dias alternados. O primeiro magro, queixo fino, olhos grandes, semblante amigvel. O outro rolio e contente, pronto para servir. Ambos negros - como a maioria dos brasileiros -, vagam pelos corredores espera do vigia noturno que chega s sete. Est tudo vazio. O silncio sonoro. Se apurar os ouvidos um instante, perceber um burburinho ao longo do corredor. Descendo as duas escadas, chegar frente de uma sala, s vezes a porta encontra-se aberta, outras vezes no. Ser fcil perceber que nem tudo silncio. Nessa sala, em um grande e irregular crculo, senta-se um pequeno grupo de jovens atentos. Descobrir-se-, em meio a muitas vozes, risos, contos, histrias de vida e de superao, trajetrias que se cruzam perfazendo um desenho nico. Esses jovens passaram por muitas dificuldades. Fizeram dos obstculos um meio de preparao para a vida, do estudo um alicerce e da negritude um orgulho de viver. So negros e pobres, critrio imprescindvel para compor o grupo de contemplados pelas polticas afirmativas da Universidade Federal do Recncavo da Bahia - UFRB. Guardamos lembranas maravilhosas, sonhamos, fazemos gracejos. Nossas histrias so bem parecidas, mas no so iguais... No somos iguais, pois uns so bolsitas da Fundao Clemente Mariane e outros do Programa Conexes de Saberes. Vivemos em lugares diferentes, cidades diferentes, temos famlias diferentes, cursos universitrios diferentes, mas tambm somos parecidos... estudamos em escolas pblicas, tivemos o mesmo sonho de ingressar na universidade, moramos em bairros populares, temos histrias marcadas pela desigualdade social e discriminao racial, somos protagonistas de nossas histrias, somos negros e negras que, historicamente excludos, resolveram responder com a insero, da que desejamos incluir os bolsitas da Fundao Clemente Mariane com trajetrias semelhantes s nossas, que, na verdade, entrelaam-se com nossas vidas. Por isso realizamos o desafio de escrever esse texto a 16 mos!

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InfnciaO cheiro da terra preenche o ar. Terra molhada, chuva forte, incessante... d vontade de ver um filme, comer pipoca, ficar enrolado no cobertor quentinho, olhar da vidraa a chuva caindo na calada, levando as folhas do cho na rua silenciosa. No entanto, numa casa de pau-a-pique, cho batido e coberta por palhas, a chuva no inspira momentos alegres... pai, me e quatro filhos... todas as crianas foram debaixo da mesa. L permaneceram at a chuva passar. Na zona rural de Mutupe a vida no era fcil. Ora comiam banana verde cozida em rodelas, ora comiam um ovo dividido para seis pessoas, e carne fresca s quando o pai fosse, no sbado, comprar uma cabea de boi na feira. A menina olhava impotente com os olhos marejados e irritados pela fumaa, o fogo a consumir suas lembranas e o trabalho de seus pais. Era a segunda vez que a casinha de paua-pique ardia em chamas. Da primeira, reduziu os sonhos da famlia a cinzas. Da segunda, a fumaa causou insuficincia respiratria no caula. O fogo, ento, lhe roubava a vida. Seu pequenino irmo morrera. Uma mesma vida, outras experincias. Um sorriso maroto e sapeca alegra seu rosto e ilumina qualquer corao angustiado. A menina brinca com os irmos... faz comidinha de ervas silvestres, fabrica bonequinhos e animais de chuchu com pernas e braos de taliscas de caf, corre feliz pelas campinas verdes... no se queixa da vida nem da sorte. Rosiane Teixeira sorri e encanta, sabe o que sonhar. Na zona urbana de Amargosa tinha uma rua com muitas crianas que brincavam o dia inteiro. Brincavam de casinha, amarelinha, comidinha, esconde-esconde, escolinha, desfiles... Daniela amava brincar com a turminha de sua rua. Era to divertido que Vanessa, moradora de outra rua, s vezes aparecia pra brincar tambm. Em casa, cantava com uma toalha na cabea fazendo graa para os pais. Tambm fazendo graa, Maria Joseni fazia o pai de brinquedo enchendo a cabea dele de xuquinhas coloridas. Era uma alegria s na zona rural de Ubara. Na zona rural de Elsio Medrado no era difcil encontrar Gerlan dentro do panacun, servindo de contrapeso para a lenha, enquanto seu av seguia puxando o jumento pelo caminho de terra seca. Para o menino, aquele era um divertido e prazeroso passeio. Ah! Que saudades! Da zona rural vem o alimento. So das razes firmadas na terra que brota o sustento no apenas do corpo, mas da cultura e da tradio de um povo. Iranildes e Robenilson moraram em lugares diferentes de Brejes e, aps alguns anos, ambos mudaram-se para a zona urbana da cidade. Maria Joseni saiu da roa aps conseguir a bolsa do Conexes de Saberes. A sua famlia continua morando no mesmo lugar. Jailton, Tatiane e Simone viveram na zona rural de Amargosa, mas logo migraram para a cidade. J Esmeralcy, ainda hoje, vive com sua me no campo, nos arredores de Amargosa. Quando a noite cai, no silncio ela ouve apenas o canto dos grilos, que vm do mato. Ento, pega um papel e uma caneta, senta-se na cama e, luz de uma vela, comea a escrever a sua histria. E assim, fazendo suas as palavras de Cora Coralina, diz: Eu sou aquela mulher A quem o tempo Muito ensinou.

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Ensinou a amar a vida. No desistir da luta. Recomear na derrota. Renunciar as palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos. Ser otimista. Cora Coralina Como vive no meio rural, encontra-se em estreito contato com a natureza, sentindo-se, muitas vezes, como um pssaro livre. Ali, respira um ar puro e sacia sua sede com a mais pura gua de uma nascente que se encontra ao p da mata, na propriedade da famlia. Foi ali que aprendera a dar os primeiros passos, fazer os primeiros riscos e, apesar de ter sido uma criana fechada e ciumenta, era tambm feliz, brincalhona e estudiosa, tornando-se, hoje, uma pessoa simples e humilde. Os mais velhos sempre gostaram de contar para as crianas, na zona rural ou urbana, histrias antigas e de assombrao que rendem muitas fantasias, pesadelos e sustos para a crianada, despertando a criatividade e a relao de respeito com as crenas dos antigos. Era um dia especial. A recepo era sempre calorosa: que milagre esse voc por aqui!?, a vov indagava. E com um brilho nos olhos, comeava a contar a histria que mais gostava: Os cangaceiros eram temidos em toda a regio, pois eram valentes. Andavam todo o nordeste. Piau, Cear, Pernambuco... e na Bahia eles saam em bando, assaltando e matando gente rica como coronis e outras autoridades da poca. Eles eram temidos por todos e admirados por alguns. Tinham fama de justiceiros, principalmente Lampio, o lder, com sua mulher e companheira, Maria Bonita. Ela sempre era vista como uma mulher corajosa, com chapu na cabea e arma na mo. Lampio e Maria Bonita lutaram juntos at a morte. Iranildes, atenta, ouvia as histrias que a av contava. beira do rio Jiquiri-Mirim o Sol se pe mais uma vez, e ao adentrar da noite o candeeiro aceso e colocado sobre a mesa junto ao pequeno caderno. Aps um longo e cansativo dia de trabalho, o corao de me sabe que passar o conhecimento uma linda forma de demonstrar amor. Ento, a mo calejada coloca-se sobre as mos pequenas e delicadas que desajeitadas desenham as primeiras letras luz do candeeiro. Tatiane foi alfabetizada em casa por sua me. Sentadas mesa da pequena sala, Daniela era orientada por sua me, que pacientemente ensinava-lhe as letrinhas e os nmeros. Era impressionante como ela aprendia rpido. Orgulhosa de ver a filha lendo e escrevendo, a me resolveu matricul-la numa escolinha pblica em que havia estudado e, alm disso, ficava prxima do bairro em que moravam. As histrias so diversas, mas formam um mesmo mosaico de infncias que se desenharam na mesma cena social, cada uma com seu colorido, cada uma com sua tristeza.

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Trajetria escolar: do ensino infantil ao fundamentalA professora ficava na porta recebendo os pequenos alunos, a me ia levando pela mo a garotinha Iranildes para o primeiro dia na escola. Robenilson era muito pequeno para ficar num lugar com tanta gente, ento, no rostinho assustado, comearam a escorrer lgrimas incessantes, fazendo o pequeno adormecer... s despertou quando a me chegou para busc-lo. No muito diferente aconteceu com Jailton que, ao entrar na escola, as portas foram fechadas e aquele porto grande de ferro foi trancado. No daria mais para alcanar a mame, ento no meio do ptio ele entregou-se ao desespero do choro. Rosiane Rodrigues no entrava na escola de jeito nenhum, ficava do lado de fora, entre a curiosidade e a vergonha. No final - indeciso completa - chorava. Simone entusiasmou-se com tudo que via e Silmary fez logo amizade e achou a escola o maior barato! Um toquinho de gente iria ser interna no Convento de Santa Clara, em Salvador. Muitas meninas de vrias idades olhavam para aquela garotinha recm-chegada. Aquela seria a famlia de Juliana por muitos anos. S iria para casa nos fins de semana e se o comportamento fosse satisfatrio. Juli era muito pequena para compreender as circunstncias que a levaram para aquele lugar to diferente do seu cotidiano. O convento era um lugar de disciplina e orao, mas para a interna, havia tantas obrigaes como oraes. A imposio religiosa era constante: s 6:00 acordava e rezava aos ps de Nossa Senhora; s 6:10 escovava os dentes e penteava os cabelos; 6:20: esperava at o horrio do caf; 6:30 era a fila e orao para o caf da manh; 7:00 orao de agradecimento, em seguida vinham as atividades de limpeza e at o fim do dia tantas outras rezas e obrigaes... a me de Juliana sabia que uma criana pobre, negra e mulher, s venceria na vida atravs de muito estudo e dedicao. Uma garotinha fofa... saia de prega azul marinho e um shortinho da mesma cor por baixo, blusa branca de tergal, um lindo lao nos cabelos, sapatinhos pretos e meias brancas. Feliz, andava em direo ao educandrio Imaculado Corao de Maria, em Amlia Rodrigues, administrado por irms missionrias, que ensinavam com dedicao os valores cristos. Joaninha passou muitos momentos bons no educandrio, mas certo dia sumiu uma lapiseira 0,7 mm na sala, e a dona da grafite asseverou: s saio daqui quando aparecer minha lapiseira! No precisa dizer que essa era a menina mais chata da turma. Todos procuraram em seus pertences, e as irms tambm revistaram e olharam a bolsa de todos, um por um. Entrevistaram cada aluno, individualmente, inquirindo sobre o objeto. No entanto, nem o culpado nem a lapiseira apareceram. Ento, as frias de So Joo terminaram em sabatina e limpezas do ptio das 8h s 17h. Acontece que no meio do ptio, entre o cimento, nascia um capim. Ajoelhadas, sol quente, arrancavam o matinho, assim como quem paga um pecado que no cometeu... Aos sete anos, sua me a matriculou na alfabetizao numa escola da zona urbana, porm a professora percebeu que a pequena j estava alfabetizada e a transferiu para a 1 srie. Na sala, tudo lhe parecia estranho e confuso, pois seus colegas lhe olhavam com desconfiana. Quase nada a inibia, a no ser um colega que todos os dias ao trmino das aulas cercava-lhe e tentava agredi-la fisicamente. Este dilema se estendeu por vrios e vrios meses, at que um dia, Tatiane disse a si mesma: Tenho que dar um jeito nisso! Ele no pode continuar me atormentando...! Ento, por mais irresponsvel que fosse seu ato, decidiu levar uma faca para a escola e ameaar o menino. Aps isso, ele no mais a incomodou. Depois de ter vivido tal experincia ela aprendeu uma lio que traz consigo em todos

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os momentos de sua vida, que nossos grandes medos s podem ser superados se enfrentados corajosamente. A pequena Maria Joseni que carinhosamente era chamada de Dodi. Estudava pela manh e, na volta da escola, as pernas curtas encaravam uma estrada longa de terra, os carros passavam a lanar poeira em seu meigo rosto. Sentia um vazio que parecia consumir a alma. Ento, sem outra reao mais espontnea para aquela situao, sentava e chorava em meio s vacas por trs da cerca e, olhando os meninos andando pelo caminho, as lgrimas no solucionavam nada, mas era a nica coisa que lhe ocorria naquele momento.

Trajetria escolar: ensino mdioD, R, Mi, F, Sol, L, Si... as notas da cano no podem ser esquecidas por nenhum dos msicos, pois um erro compromete todo o grupo, a msica um excelente veculo para levar alegria. Robenilson conheceu a msica no Colgio Estadual Ana Lcia Castelo Branco, o que lhe deu a oportunidade de tocar instrumentos musicais e de aprender a reger as experincias vividas rumo s conquistas. Lave todos os pratos! Deixe a cozinha limpa! Tire a poeira dos mveis! Arrume todas as camas! Varra a casa! Lave o banheiro, est imundo! O menino est chorando mais uma vez...! Esta era uma rotina triste para uma adolescente com muito desejo de estudar... e precisava suportar humilhaes, tristezas, dores, aflies, trabalhando como bab e domstica. Sozinha, naquela casa, servia de alvo para crticas cruis... sentia-se s, estava longe do abrao da me e do olhar protetor do pai. J no daria mais para agentar, era hora de Rosiane Teixeira voltar para sua casa, na roa. Ainda no havia raiado o sol, eram 4h da manh, o sono precisava dar lugar determinao, estava frio, chovia muito, seria bom ficar debaixo das cobertas... esticou o corpo, passou a mo nos olhos, bocejou, pensou em sonhar mais um pouco, mas para realizar os sonhos era necessrio levantar, ento vestiu a roupa e seguiu pelo caminho de terra, que era apenas lama a grudar em suas pernas e sapatos. Meia hora depois do trajeto e essa corajosa mocinha chegaria ao ponto para pegar o nibus que a levaria para a escola na cidade. No caminho de sempre, prestando ateno no pasto, no cheiro forte de esterco molhado, na paisagem que se desenhava tranquilamente sua frente, surpreendeu-se com um grande animal que desembestava em sua direo. Calafrio, taquicardia, pavor, correu desesperada, afobada e, sem saber medir o susto e a fuga, caiu na lama, lambuzou-se, mas livrou-se da vaca. Estava suja e cansada nos primeiros minutos da manh, isso no era uma novidade. Dentro da bolsa tinha sempre roupas limpas de reserva, entrou na plantao, trocou de roupa e seguiu a longa jornada em busca da realizao dos sonhos que acordada criava. As 4:00 da manh, em Ubara, Maria Joseni tambm carecia despedir-se do sono e enfrentar mais uma difcil jornada rumo escola. Como j era de costume nos dias de chuva, a roupa limpa ia dentro da bolsa, pois o risco de cair era grande e sempre acontecia. No dia da entrevista para a seleo do Programa Conexes de Saberes, Joseni chegou na universi-

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dade completamente suja de lama. Havia cado de moto em uma das ladeiras que tinha de subir para chegar em seu destino. A platia aplaudiu de p a estria do jovem grupo de teatro. As pessoas se divertiram muito naquele dia e os atores se sentiam realizados com os sorrisos e aplausos. A partir daquele momento, a paixo pela arte de interpretar nasceu no corao de Naiara, que passou todo o ensino mdio desenvolvendo seu talento. Tambm no ensino mdio, Juliana estudava num colgio perto do convento; ela se dividia entre a escola, a casa e as fugidas que dava do convento. Na vida h muitos encontros e desencontros. Em um encontro do colegiado escolar na 5 srie do ensino fundamental Jailton e Vanessa tornaram-se amigos. Nas histrias existem planos e coincidncias. Em uma dessas, Simone foi colega de Rosiane Rodrigues por muitos anos, vivendo alegrias e tristezas lado a lado. Gerlan era um rapazinho que dava n em pingo dgua. Certo dia armou com os colegas da sala e deu uma tortada na cara da vicediretora da escola. Foi o maior fuzu! Ele era colega da comportada Esmeralcy. Como Brejes no uma cidade muito grande, Robenilson e Iranildes foram colegas trs anos consecutivos. O mundo se faz pequeno quando quer, e planejando ou no, as conexes sempre acabam acontecendo.

Entrada na universidadeA filha de uma famlia de baixa renda no poderia de forma alguma fazer um cursinho pr-vestibular, pois isso significaria muito no oramento precrio da casa. Vanessa estudava sozinha em casa utilizando revistas, jornais e livros emprestados. O primeiro vestibular que fez foi um grande desafio para a moa de 17 anos que acabara de concluir o ensino mdio, mas, para sua surpresa, teve resultado satisfatrio e est cursando o to sonhado curso de Pedagogia. As longas noites de estudo no foram exclusividade de Vanessa. Todos os outros tiveram muita coragem e determinao para entrar na universidade, alguns pelo sistema de reserva de vagas, outros no, alguns com cursinho pr-vestibular, outros sem, mas todos, sem exceo, deram duro pra entrar na faculdade! Similar, Iranildes estudava em casa e, com um pequeno grupo de amigas, tambm almejavam cursar o ensino superior pblico. Fez algumas tentativas sem sucesso, porm, o momento de realizar seu objetivo estava se aproximando. Fez o vestibular e alcanou a realizao. Essas so nossas histrias comuns!

NegritudeTodos os alunos deveriam se reunir em grupos. E assim foi feito. Havia um grupo com meninas brancas e apenas uma negra. Ento em alto e bom som a professora gritou para a menina negra: Voc muito fraca para ficar nesse grupo de meninas mais fortes que voc! A menina negra e gordinha no sabia o que fazer, estava com vergonha, se sentido muito mal, como se estivesse lhe faltando cho nos ps. Pensava: como essa mulher, que nem me conhece, pode dizer que eu sou fraca? Fraca por qu? Triste, abaixou a cabea em meio quela cena constrangedora. Fez o trabalho no grupo dos fracos que acabou sendo o melhor de toda a sala. Silmary aprendeu a mostrar sua capacidade e determinao, o que iria ser fundamental na formao de sua identidade como negra. No ensino mdio, Mary no se atemorizava, pelo contrrio, organizava apresentaes sobre negritude e fazia exposies orais para todo o Colgio Estadual Pedro Calmon.

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Certa vez, Gerlan foi assistir a um filme na casa de sua tia. Um amigo negro sentou-se na cama dela. Ao cair da tarde, quando o garoto foi embora, a tia pegou o lenol e lavou com o maior desprezo. Esse acontecimento chocou Gerlan, que no cruzou os braos diante da ofensa. Junto com alguns colegas integrou uma comisso que organizou o Primeiro Desfile da Conscincia Negra, onde propuseram um evento que mostrasse o valor, a cultura e a beleza do negro. Chegou a uma loja para fazer um pagamento. Todos a olhavam com desconfiana e uma apreenso tomou seus passos, que divagavam em direo ao caixa sob olhares atentos e desconfiados. A funcionria da loja, depois de muito faz-la esperar, perguntou com indiferena: Voc veio pagar algo do seu patro? Qual o nome dele? Abateu-lhe uma tristeza e uma revolta que a levaram s perguntas que no calavam em sua mente: por que me julgam domstica? Por que a desconfiana? Acham que estou aqui para roubar? Olhou-se, e na pele encontrou o motivo das suspeitas: por ser negra, no mereceu confiana. Lembrou-se das inmeras vezes que, ao manifestar qualquer opinio em sala de aula, no ensino mdio, era chamada de negrinha atrevida. Ento, disse com altivez: No! A conta minha mesmo! Eu comprei, trabalhei e posso pagar com meu prprio dinheiro! Voc acha que no posso pagar porque sou negra, !? As aulas comeavam em Salvador. Pais e filhos iam s papelarias comprar os materiais escolares. Juliana entrou na loja e encontrou atendentes aparentemente de origem oriental. Inesperadamente um senhor a convidou a se retirar. Ser que ele achou que eu no tinha condies para comprar? Achou que eu poderia roubar, ou era s por eu ser negra? Depois de muito pensar, Juliana percebeu que eram as trs coisas juntas. Ento prometeu a si mesma que jamais se calaria novamente diante de um ato de preconceito. As crianas sentavam ao redor da mesa e Daniela ia explicando as lies, uma a uma. No meio delas havia uma menina que, apesar de ter apenas seis anos de idade, demonstrava atitudes preconceituosas, por isso quanto mais Dani se aproximava mais a menina se afastava. Era uma menina branca que no se esquivava das outras crianas brancas, porm, da professora negra do reforo escolar, ela fugia o quanto podia. Um sentimento desafiador tomou conta de Daniela, que resolveu mostrar criana que a nica diferena existente entre elas era a cor da pele e nada mais. Aps muito tempo de convivncia e insistncia, a criana aprendeu. Hoje ela est crescendo e sempre vai visitar sua ex-professora negra. Daniela no desistiu e contribuiu muito para a formao cidad daquela criana. Ela segurava com doura a mo da netinha indo para a missa. No caminho da igreja encontrou uma beata que perguntou: sua neta? Mas to moreninha?! Que moreninha bonita. E a av respondeu: minha neta sim, meu chocolate! E no era apenas na rua que a estranhavam. Na sua prpria casa alguns parentes diziam: voc foi trocada no hospital! Isso acontecia por que a famlia materna inteira possua pela clara e apenas sua me tinha se relacionado com um homem negro, gerando uma filha negra, consequentemente discriminada. A confuso na cabea da criana ficava completa por no ter contato com a famlia paterna, restando-lhe apenas enfrentar os preconceitos na casa de pessoas de pele branca. Hoje, Naiara no se importa com os comentrios sobre suas origens, pois se declara negra e orgulha-se disso! Na Escola Santa Bernadete, em Amargosa, no censo escolar, uma pergunta foi lanada para o rapaz: qual seu pertencimento tnico-racial? Ele rapidamente respondeu: negro. A professora, espantada, exclamou: voc pardo! Depois de uma longa

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discusso, Jailton foi declarado como pardo por determinao da professora, gerando muitos conflitos no rapaz. No colgio sempre havia aqueles que cantavam musiquinhas de provocao s crianas negras, o que deixava Jailton bastante triste e sem reao, mas hoje ele j sabe como agir diante de situaes semelhantes. Lugar de preto e pobre na escola e voc s ser gente se conseguir se formar!, j diziam os pais de Tatiane. Os meninos gritavam: nega preta! Tatiane, ao se dar conta que se dirigiam a ela, lembrava que sua me sempre dizia: quando esses meninos ficarem te chamando desse jeito voc tem que responder: sou negra sim, com muito orgulho! No deixe ningum pisar em voc! Entre lgrimas, Tati falava exatamente como a me lhe dizia e assim fez inmeras vezes. Algumas pessoas lhe diziam: essa sua cor cabo verde, outras diziam: sua pele to linda, que nem parece negra! E Tati, no esqueceu a lio da me, e, ainda hoje, diz: sou negra sim, com muito orgulho! Ser negro em um pas regido por valores que tm na aparncia a primeira razo de um ser, ir para uma entrevista de trabalho sabendo que as chances so mnimas, saber que nas penitencirias a maioria dos detentos so pretos, ser discriminado, sofrer a ideologia do branqueamento para ser mais aceito, ser marginalizado em qualquer situao, ser o primeiro suspeito sem investigao, sentir-se culpado pela falta de reconhecimento de sua humanidade, ter sua religio distorcida. Quantas vezes em uma rua escura e deserta, algum passou para outra calada ao ver um negro? At quando ser permitido? Ser negro no Brasil tambm ter na pele, na mente, na alma e no corao as marcas da histria desse povo que , antes de tudo, negro; ter a fora de no se deixar abater, ter sempre coragem pra lutar, estudar para se fazer ouvir, ter na arte um instrumento de liberdade, ter na tradio a imortalidade de seus ancestrais, ter na natureza a razo de sua existncia, ter confiana em suas divindades, cultuar seus orixs, conviver em famlias nucleares ou extensas, ter orgulho do samba no p, do sorriso no rosto, da resistncia opresso, da criatividade, da incluso, do colorido que povoa nossa pele; sonhar que nossas crianas no sofrero preconceitos, ter sensibilidade para ensin-las o caminho do respeito diversidade.

ProtagonismoSendo movimento social lutando pelos direitos da populao, l estava Joseni presente. A comisso de menores em Ubara conta com a colaborao de Dodi, que percebe as dificuldades que as crianas da sua localidade tinham para estudar, assim, comeou a dar reforo escolar para os pequenos, mesmo sabendo que financeiramente eles no poderiam retribuir. Os coraes jovens sempre acabam sendo invadidos pelos sonhos antigos ainda no alcanados. Jailton um desses jovens com sonhos antigos de solidariedade e amor ao prximo. Uma idia se concretizou quando ocorreu a II Gincana Entre Ruas de Amargosa para arrecadar alimentos, roupas, remdios e brinquedos que deveriam ser doados populao carente da cidade. Tambm arrecadavam livros para as bibliotecas. Esse evento ocupou alguns finais de semana de jovens, crianas e adultos que, participando de provas diversas e brincadeiras diferentes, contribuam para amenizar o sofrimento de muitas pessoas. Daniela, com seus colegas e amigos, tambm faziam o possvel para arrecadar o mximo de contribuies para ajudar pessoas de bairros humildes da cidade, mas ouvir lamentos e aflies a angustiava, no entanto - e apesar do sentimento de impotncia - jamais deixou de ser generosa e participativa.

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No Centro Sapucaia, Silmary e Vanessa ocupavam-se elaborando e contando histrias para crianas do Timb, localidade atendida pela ONG Sapucaia, que trabalha para preservar os recursos naturais de Amargosa e regio.

Polticas afirmativasNa estrada de cho, entre um carro e outro, s dava pra ver muita poeira com o Sol a arder na cabea. Em um dos carros que viajavam entre as cidades de Brejes e Amargosa, ia uma picape D20 a carregar em sua carroceria trs estudantes da UFRB, Iranildes, Robenilson e Paloma, que no bolsista. Essa realidade no era nada agradvel, mas a motivao mostrava-se to grande que no os deixava desistir. Essa situao findou quando Robenilson obteve a bolsa Conexes de Saberes, pois ele passou a ter condies de manter-se em Amargosa. No foi diferente com Naiara, Juliana, Joana, Joseni e Rosiane. Outros moravam em Amargosa, mas a famlia no tinha como dar subsdios para todas as despesas que demandava os estudos na universidade, assim era para Daniela, Gerlan, Simone, Vanessa e Esmeralcy. J Silmary, Jailton e Tatiane no conseguiam conciliar trabalho e estudos acadmicos, por esse motivo estavam numa situao difcil. Rosiane Rodrigues perdeu o emprego assim que resolveu estudar, pois os horrios coincidiam. Todos estavam com dificuldades para continuar a graduao... Vemos na roda de conversa nossas histrias encontrarem-se mais uma vez na UFRB, no programa de polticas afirmativas, que visa no s a permanncia qualificada do estudante na graduao, mas prioriza a valorizao e o reconhecimento tnico e racial como um dos fundamentos do Programa de Permanncia da Pr-Reitoria de Polticas Afirmativas e Assuntos Estudantis. O Programa Conexes de Saberes no oferece apenas um auxlio financeiro. Antes de tudo, uma oportunidade de um encontro mais profundo, verdadeiro e sincero consigo e sua histria. Muitos chegaram confusos: eu coloquei na inscrio que sou pardo, mas que cor tu achas que sou? Ou: sou afrodescendente, mas visivelmente parda!Assim, a confuso de pensamentos propagou-se, as discusses foram dando margens para que o reconhecimento tnico-racial comeasse a acontecer, j que eles vo muito alm da cor da pele. Como um indivduo pode desenvolver-se sem reconhecer sua etnia? Porque a vergonha de ser preto? Porque o medo das conseqncias que ser negro traz? Hoje, estamos em processo de reflexo. As lgrimas tomam um novo sentido, os sonhos moldam-se e tomam novos horizontes. Em nossos semblantes comea a surgir o orgulho que cresce dia-a-dia e a felicidade de poder assumir o que somos, sem mscara nem disfarce, sem vergonha ou receio. O melhor ficou para o final, que mais um comeo, para ns que nas polticas afirmativas encontramos o suporte para uma permanncia de qualidade na universidade. Enfim, os sorrisos esto chegando, os sonhos so grandes e a vontade de realiz-los ainda maior, o que d razo para muitas novas histrias de sucesso, determinao e superao de obstculos. As dezesseis mos que assinam esse artigo so: Daniela de Souza Sales (Dani), Esmeralcy Almeida Santos, Gerlan Cardoso Sampaio, Iranildes Sales Bispo, Jailton Almeida dos Santos Barbosa, Joana Angelina dos Santos Silva (Joaninha), Juliana de Jesus Santos (Juli), Maria Joseni Borges de Souza (Dodi), Naiara Fonseca de Souza, Rosiane do Carmo Teixeira, Rosiane Rodrigues da Silva, Robenilson Ferreira dos Santos (Rob), Silmary Silva dos Santos, Simone Santana da Cruz, Tatiane Santos de Brito (Tati) e Vanessa Morais Paixo.

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Caminhando contra o ventoDaniela da Silva Santos*Meu nome Daniela da Silva Santos, tenho 24 anos, nasci em dois de setembro de 1982, em Santo Antonio de Jesus, na Bahia. Falarei de minha me. Seu nome Sonia Maria da Silva Santos e teve trs filhos: Ana Paula, Luis Cludio e eu, que sou a terceira. No conheci meu pai e nunca tive meios para procur-lo e me aproximar dele. A verdade que eu tive uma vida madrasta, sofri muito, toda lembrana que tenho de minha infncia de sofrimento e tristeza. Comearei o relato de minha histria a partir de lembranas remotas que marcaram muito a minha vida. Minha me me levou muito cedo para a casa de uma de suas amigas, a qual no me recordo o nome agora. Ela foi para Salvador, e eu tive de ficar morando com essa amiga dela. Lembro-me muito bem que fiquei aos prantos,no entendia porque ela teria que se afastar de mim. Os dias se passaram e senti muito a sua falta. Aps alguns meses ela voltou, era uma poca de So Joo eu fiquei muito feliz de estar ao seu lado, mas o perodo de festas passou e ela logo voltou para Salvador para trabalhar e novamente nos afastamos. Foi difcil segurar, e o pior que tive que sair da casa dessa amiga de minha me para morar com outra amiga dela, que as pessoas chamavam de dona Nenm. Passei alguns anos morando na casa de dona Nenm, ela uma pessoa muito boa, pois cuidava bem de mim, mas eu precisava de uma me, de uma famlia, pra me passar valores, me ensinar as coisas da vida, enfim, precisava de um lar que me acolhesse e que fosse meu, precisava sentir os ps no cho. O perodo que fiquei na casa de dona Nenm foi muito angustiante pra mim, ficava o tempo inteiro na janela esperando minha me voltar, ficava na expectativa de que ela viesse me buscar e sonhava com a possibilidade de morarmos juntas pra sempre; por mais dura que fosse a minha realidade, eu, como criana, ainda tinha capacidade de sonhar com dias melhores. Depois de alguns anos na casa de dona Nenm, fui surpreendida com a notcia de que, a pedido de minha av, eu iria morar com meu tio Jos e sua esposa Lucia, que eram ento recm-casados. Fiquei feliz, pois pelos menos iria morar com um parente, mas as coisas no seguiram como eu imaginava. No incio, quando fui morar na casa de meu tio Jos, tudo foi bem, mas depois de algum tempo, sua esposa e eu j no convivamos bem, isso porque ela me maltratava muito. Eu ficava refletindo em alguns momentos, indagando o porqu de eu sofrer tanto? Porque eu tinha que passar por todas essas coisas?

* Graduanda em Comunicao pela UFRB.

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Toda experincia que passei no perodo na casa de meu tio Jos mexeu muito comigo, hoje eu sou uma pessoa muito conflituosa, inconstante e insegura. Tenho medo da vida em alguns momentos e em outros enfrento ferozmente os obstculos que surgem diante de mim, acredito que toda essa experincia que passei me tornou a pessoa que hoje eu sou, ou como diria o filsofo francs Jean Jacques Rousseau: O homem fruto do meio. Sinto que s vezes sou muito exagerada quando conto a minha histria de vida, mas eu fao um auto-reflexo e me questiono se houve durante minha infncia algum momento feliz. A resposta no, no tinha nenhum momento de felicidade, no sei como no morri de tristeza; sei, contudo, que essa situao me fez ver o quanto fui e sou forte e persistente. Fui escola pela primeira vez aos dez de idade, pois eu no tinha documentos em mos que me possibilitassem a inscrio em um colgio atrs de educao formal. At que minha tia Rita se disps a ir ao cartrio pegar a segunda via de minha certido de nascimento. Da fui matriculada, esse era o meu melhor momento. Gostava muito de ir a escola, me sentia algum, s no gostava quando tinha que realizar trabalhos escolares: era preciso comprar materiais e eu no tinha a quem recorrer. Eu observava que meus colegas tinham pai e me, que por mais humildes que fossem fariam um sacrifcio e comprariam materiais pros filhos. Quanto a mim, no tinha a quem pedir. Os anos passaram e cheguei adolescncia. Meus conflitos se acentuavam, eu percebia que j no dava mais pra continuar morando na casa de meu tio Jos, pois minha convivncia com Lucia estava insuportvel, da eu resolvi que sairia de l e moraria na casa de minha tia Minusinha. Ela no queria que eu fosse, pois no tinha condies de me sustentar, mas eu argumentei que no havia mais nenhuma possibilidade de conviver com a esposa de meu tio. Minha tia uma pessoa muito boa, mas no podia fazer por mim o que eu realmente precisava, porm eu fui seguindo em uma nova fase de minha vida. Quando fui morar com ela tinha treze anos de idade e uma longa experincia de vida. Na escola eu estava indo mal, havia perdido o ano e estava desolada, mas mesmo assim no desisti e prossegui minha caminhada. Quando completei dezessete anos comecei a namorar o Joel, quando tnhamos um ano e meio de namoro fomos morar juntos, e com dois anos juntos fiquei grvida de meu primeiro filho: Joilson. Eu cursava o primeiro ano do ensino mdio e, com o nascimento de meu filho minha irm Ana Paul