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Livro - Crime, Polícia e Justiça no Brasil - Páginas 35 ... · Faltava, porém, um livro de referência, à semelhança do ... tornaram-se parte de novas ... desenvolvidas na Inglaterra

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A área de estudos sobre crime

e violência no Brasil vem ganhan­

do espaço nos últimos 40 anos. Importantes pesquisas empíricas

ornadas a uma ret1exão própria

da realidade brasileira foram pro­

duzidas. Faltava, porém, um livro

de referência, à semelhança do

handbooks de tradição anglo-saxã,

oferecendo um quadro do "esta­

do da arte" dessa área de pesqui­

sa. Crime, polícia e justiça no Brasil

mapeia e apresenta as principais

abordagens e focos temáticos dos

estudos sobre a área no país. Dessa

forma, a obra traz não apenas as

principais correntes da literatura

internacional, como também in­

corpora os avanços teóricos e me­

todológicos produzidos no Brasil.

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CRIME, • POLICIA

E JUSTIÇA NO BRASIL

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Conselho Acadêmico Ataliba Teixeira de Castilho Carlos Eduardo Lins da Silva

José Luiz Piorin Magda Soares

Pedro Paulo Funari Rosãngela Doin de Almeida

Tania Regina de Luca

Proibida a reproduçáo total ou parcial em qualquer mídia sem a aurorizaçãe escrita da editora.

Os infratores estão sujeitos às penas da lei.

A Editora não é responsável pelo conteúdo da Obra, com o qual não necessariamente concorda. Os Organizadores e os Autores conhecem os fatos narrados,

pelos quais são responsáveis, assim corno se responsabilizam pelos juízos emitidos.

e Consulte nosso análogo cornplcco C úJ1imos lançamentos em www.editoraco11texto.com.br.

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CRIME, ,

POLICIA E JUSTIÇA NO BRASIL

RENATO SÉRGIO DE LIMA JOSÉ LUIZ RAITON

RODRIGO GHIRINGHELU DE AZEVEDO (orgs.)

FORD '... FOUNDATION I ~Ó~UM BWtWAO DE

S1HUll(A P•auu C A P E S

cg editora contexto Estado de Goiás

ACADEMIA DE POLICIA MILITAR BIBLIOTECA (62) 3201-16)4

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Iodes os dirciros desta edição reservados à &licor:i Contexto (Editora Pinsky Lrda.)

Monwgrm tÚ c-ap,t e diagr,m1fl{Jio G ustavo S. Vilas Boas Prtparo[dll d, textos Beatriz Rodriguez. Laís Figueiredo Patricia Nogueira Liliaa Aquino

Revisão Tomoe Moroizurni

Dados lncemacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Crime, políc;ia e justiça no Brasil/ Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ranon e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. - 1. ed., Ja reimpressão. -São Paulo: Contexto, 2014.

Vãnos autores. Bibliografia. ISBN 978-85-7244-744-7

l. Crimes e criminosos- Brasil 2. Criminologia-Aspectos sociais 3. jusiiça penal - Brasil 4. Problemas sociais 5. Segurança pública - Brasil 6. Violência L Lima, Renato Sérgio de. Il, Rarron, josé Luiz. III. Azevedo, Rodrigo Chiringhelli de.

14-02523 CDD-364.981 Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil : Crime, polícia e justiça: Problemas sociais 364.981

EDITORA CONTP.XTO Diretor cdi1orial:J11íme Pimlry

Rua Dr. José Elias, 520 - Alto da Lapa 05083-030 São Paulo - sr

PASX! (11) 3832 5838 [email protected]

www.cdiu,racontel{m.com.br

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Sumário

Um livro necessário -.1 l

Introdução 13

Modernidade tardia e violência 16 José.Vicente Ttwares-dos-Santos

Violência e ordem social 26 Luiz Antonio Machado da Silva

Etos guerreiro e criminalidade violenta 35 Alba Zaluar

Teorias clássicas e positivistas .51 Marcos César Alvarez

Violência e representações sociais 6 Maria Sicla Porw

Urbanismo, desorganização social e crim inatidade 71 Brardio Silva e Frederico Couto Marinho

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Crime, polícia e justiCtl no !knsil

da "violência urbana", que é o ponto de união de todo esse conjunto, altamente diferenciado, de práticas. Produz-se, assim, uma espiral de conflitos, fazendo com que as atividades de "controle" adquiram vários sentidos, que só se resolvem con­ rexrualrnente e a partir de confrontos sempre mais violentos; controle pela policia "regular", pelo "crime" ou pela "milícia" (apesar da atuação ilícita e violenta, esta não se define e tampouco é vista, pelos moradores dos territórios onde atua, como parte do mundo do crime).

Tudo isso cria uma situação paradoxal. O crescimento económico, apesar das oscilações conjunturais, vem beneficiando as camadas populares, sobretudo nas últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, elas são penalizadas por um intenso processo de segregação socioterritorial que as afasta do debate público e provoca um silenciamento político nefasto para a democracia brasileira. Como tentei sugerir, o eixo a produzir essa divergência é o debate coletivo que reduz a produção da ordem social aos processos territorializados de controle social rotineiro.

PARA SABER MAIS

llECKER, H. Uma teoria da ação coletiva. Rio d.e Janeiro: Zahar, 1976. COUINS, R. V-r.olnu::e-; a micro-sociological t.heory. Princeron and. Oxford: Princeron

Universirv Press, 2008. FOUO.ULT, M. Ai palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 3. ed. São

Paulo: Martins Fontes, 1985.

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Etos guerreiro e criminalidade violenta

Alba Zaluar

U m modo de abordar as questões relacionadas com a violência e a criminalidade vem de teorias que procuram articular a dimensões objetivas, rnacrossociais ou estruturais, com as di­ mensões subjetivas, microssociais ou <lo agir, estas pertinentes

ao psiquismo humano. Tais teorias tratam os envolvidos nas ações consideradas violentas ou criminosas como indivíduos em permanentes relações entre si, para as quais trazem a bagagem da socialização que tiveram quando crianças, e as qu desenvolvem com outros atores e instituições com os quais interagem frequente-­ mente em outras fases da vida.

Uma dessas teorias é a de Norbert Elias, um sociólogo europeu que pensou sobre a violência interna aos pulses e a tragédia das guerras externas, entre as nações no continente europeu, elaborando uma teoria sobre o processo civilizador em processos históricos de longa duração interpretados pelos conceitos de eros guerrerro e eros cii1ilizado. O primeiro modo de agir seria exclusivo às guerras em que seres

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. . , e ltre si por considerarem rivais como inimigos, agredindo-os humanos maram·~t.: • ~ _ . . · . . . . . . de f-eroddade e crueldade. Nao se refere, portanto, a capacidade conn•ana\et~ graus - . . J l en ho em conseouir alcancar um objetivo pessoal ou coletivo ma . . 1e ma e ao emp · º · . , . l od essa luta é empreendida pela violência flsica e à maneira como ao m o como ~-, 0

_ • •

os conl1itos ou ri\'alidades são resolvidos pela suprcssao física de uma das partes. Comparando as histórias de alguns países europeus - Inglaterra, França e

Alemanha -, 0 autor entende que, nos dois primeiros, os jogos parlarnentare

ou esporàvos e os hábitos da cortesia teriam produzido maior sensibilização para

0 sofrimento alheio e controle de emoções básicas (ódio, medo, inveja, ciúmes,

paixão etc.) que impelem os indivíduos a agir explosivamente, dando ensejo a acões violentas e cruéis. No seu primeiro livro sobre o processo civilizatório, cs­ ~ito em 1939 na lingua alemã, esse autor registra o investimento (e prazer) que os !!llerreiros medievais punham nas atividades destrutivas da guerra, cantando as

a delicias de matar os inimigos e vencê-Los com a completa eliminação deles. Não havia limites na época medieval e em alguns séculos seguintes para a liberdade de agredir outro ser humano no contexto do duelo ou da guerra, como existe hoje a partir da criação de um Tribunal Internacional de crimes de guerra, assim como

da Organiz.ação das Nações Unidas. Elias se impressionou com a crueldade aberta dos guerreiros medievais que

cantavam claramente os prazeres da guerra em suas canções, sem constrangimen­ tos, alternando com momentos de extremo arrependimento e compaixão, o que é próprio das emoções descontroladas:

[ ... ] nem comer, nem beber, nem dormir têm tanto sabor ... quanto ouvir o grito "para frente", de ambos os lados, e cavalos e cavaleiros refogando e relin­ chando I ... ] e ver o pequeno e o poderoso tombarem na grama das trincheira e os mortos atravessados pela madeira de lanças adornadas com flâmulas 1 ... 1. Amo o entrevera do azul e do vermelho dos escudos, das flâmulas e bandeiras, as tendas e pavilhões espalhados pela planície, a quebra de lanças, a perfura· ção de escudos, os capacetes faiscantes fendidos pela clava, os golpes dados e recebidos. [ ... ] Cobrirei de vergonha cada cavaleiro que capturar, cortarei seu nariz ou orelhas. Se for mercador ou sargento, perderá um pé ou um braço 1 ... 1 (apud Elias, 1990, passirn).

esses processos históricos de longa duração, hábitos cotidianos de asseio pessoal, modo de comer, sentar, andar, competir, dirigir-se aos outros, enfim as etiquetas e códigos de boas maneiras do cotidiano vão se constituindo e difundindo até perpassar as classes sociais nunca atingindo, porém, todos os indivíduos do mesmo modo nem ao mesmo tempo. O habitus, conceito que o autor utiliza para nomear 0 autocontrole assim interiorizado pelos indivíduos que fazem parte da mesma sociedade, cria, então, uma segunda natureza que contém, controla ou disciplin~ a

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Elos guerreiro e crimlnalídade violenta

primeira natureza, a das emoções básicas, explosivas e potencialmente destrutivas. A segunda natureza é feita de acordos tácitos não conscientes, mas regrados. Con­ tudo, há uma distinção entre o habítus social, aquele que é partilhado pela maioria dos membros de uma sociedade, e o habitus individual, que se refere às disposições emocionais e práticas que o indivíduo desenvolve por si. O primeiro é como se fosse a base, a matéria prima ou o solo sobre a qual as diferenças individuais vão surgin­ do. Articulando teorias de Marx, Weber e Freud, Norbert Elias é o sociólogo que consegue incorporar tais estruturas psíquicas dos individues às formações grupais coletivas com o conceito de figuração que remete à interdependência entre seres humanos, criada e modificada em processos sociais de constante movimentação. Esta, porém, não se desenrola em única direção - a da civilização >, podendo haver retrocessos naquilo que já havia sido predominantemente compartilhado, pois há sempre os que não aderem totalmente ou os que rejeitam e não interiorizam tais práticas de controle das emoções, além de nem sempre serem previsíveis os desfechos de disputas de poder na sociedade.

Entre os hábitos civilizados repartidos socialmente nos processos de socializa­ ção que diminuem a violência nas relações, estariam aqueles que, por meio de regras acordadas socialmente e interiorizadas pelos indivíduos, regulam as competições (jogos) entre rivais em várias esferas sociais. Em séculos anteriores, na Europa, tais disposições foram partilhadas socialmente porque se aceitou a inclusão no jogos sociais, políticos ou esportivos de membros de classes sociais sem o prestígio e o poder da aristocracia então dominante. Com a inclusão da então nascente burguesia em jogos que deixaram de ser exclusivos, principalmente quando essa admissão foi acompanhada por mudanças institucionais, as disposições "civilizadas" tornaram-se parte de novas configurações relacionais, espalhando-se pela sociedade. Na Inglaterra, por exemplo, com o desenvolvimento do jogo parlamentar, as partes em disputa, embora pertencendo a diferentes grupos sociais, passaram a confiar que não seriam mortas ou exiladas pelos seus adversários caso perdessem a disputa, apostando cada vez mais nesse jogo. O mesmo se deu nas competições esportivas, desenvolvidas na Inglaterra para reunir pessoas de classes sociais diferentes, em que as regras acordadas garantiam que os competidores permaneceriam vivos após o fim da peleja, apesar de ser um jogo profundo que trazia à tona as emoções básicas dos participantes. No primeiro caso, as regras seriam seguidas pelos parceiros que participassem do jogo político no intuito de resolver conflitos verbalmente; no segundo caso, pelo exímio uso da técnica esportiva de modo a não causar danos físicos aos contendores e garantir a continuidade dos jogos, dando idealmente a vitória a quem fosse melhor, sem importar sua posição social.

Na França, os hábitos da corte, com a sua etiqueta específica, foram partilha­ dos também por membros da burguesia incipiente, pois a participação na corte

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Cr1 me, p, .. ,Jkw e jusli~'<l no Bmsil

adveio do aquisição de posições de poder na administração estatal e da liberdade ara ganhar dinheiro no mercado. Esse processo também ficou conhecido como

cit,i!i:;:~dar. Civilizados eram aqueles que sabiam se comportar digna, natural e agradavelmente, que eram competentes ao usar o código de boas maneiras, nem ... ernpre escrito, nas suas interações com os demais.

Na Alemanha, ao contrário, a aristocracia ainda militarizada (dos Junkers), não admitia membros da burguesia nem na corte nem no governo, o que criou cerco isolamento dessa burguesia, que se dedicou às artes e às letras no que ficou conhecido como Kultur (Elias, 1939, apud Fletcher, 1997: 7-9), algo exclusivo de uma elice cultural que não participava da política. O processo civilizatório não teria se difundido nem transformado os que governavam o pais em adeptos dos jogos sociais mais integradores, permanecendo sob o jugo das disposições violentas e guerreiras que eram a base do domínio [unker sobre os demais. Elias analisa,

im, os retrocessos na Europa civilizada ou culta, escrevendo longamente sobre o nazismo na Europa na ótica da teoria que construiu (Elias, 1990).

As figurações têm muitas dimensões. lnstitucionalmente, o controle da violência é garantido pelo monopólio legítimo da violência pelo Estado, que emerge em alguns países europeus com a proibição de duelos, dos circuitos intermináveis da vingança pessoal e da justiça feita pelas próprias mãos, alem do controle de armas nas mãos dos cidadãos. O monopólio legítimo beneficia­ ria, portanto, todos os cidadãos que abdicariam de suas armas e do seu direito de fazer justiça pessoalmente, na medida em que era com essas armas, nos eternos circuitos da vingança, que se matavam entre si cada vez que surgia um conflito, mesmo que pessoal. Em vez de ser simplesmente o braço armado dos dominantes, o monopólio da violência - basicamente a proibição de que os cidadãos portem e usem armas para resolver seus conflitos - seria um benefício público, pois diminuiria efetivamente a prevalência de agressões e homicídios, cujas taxas eram sempre mais altas entre os mais pobres e os mais excluídos. Mas esse monopólio de nada valeria se não houvesse, nos planos sociais e psíquicos, as modificações nas características pessoais e subjetivas de cada cidadão - o controle das emoções e da violência física, o fim da autoindulgência excessiva, a diminuição do prazer de infligir dor ao alheio, de destruir fisicamente o rival, o respeito às leis do pais, começando por aquelas que garantem o monopólio da violência pelo Estado. Em outras palavras, para que a sociedade seja pacificada e os conflitos se resolvam pela competição regrada, pela negociação e pelo uso de signos e símbolos na comunicação entre as pessoas envolvidas, tais regras básicas dos jogos, que garantem a sobrevivência dos contendores e a civilidade no tratamento mútuo, precisam estar interiorizadas e serem praticadas pelas pessoas na sua vida cotidiana como se fossem naturais, ou seja, tacitamente

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Etos ~ucrrciro e criminalidade violenta

aceitas sem reflexão. Esse autocontrole é o que Elias chama de segunda natu­ reza, uma instância controladora do psiquismo humano.

Na teoria das figurações, o poder não é coisa, estado ou objeto que possa ser adquirido e possuído por pessoas sobre outras, mas uma dimensão de qual­ quer relação em que qualquer um pode usá-lo para manter ou não o equilíbrio entre os envolvidos. Tampouco se confunde com a dominação, um dos possíveis desfechos da disputa pelo poder quando se emprega a força física, a repressão e a opressão mais do que a sedução, a persuasão e o convencimento. Não haveria, assim, indivíduo sem algum poder; apenas aqueles com menos força e, portanto, com menos possibilidade de escolher os rumos da ação e das relações em que se inserir. Restaria sempre a possibilidade de dizer não, resistir, discutir ou sair do jogo. Para ele há, então, uma diferença entre o domínio obtido pela violência física com a destruição dos opositores ou rivais e o poder exercido por meio do reconhecimento, mesmo que precário, da superioridade dos que ocupam posições acima em relações marcadas pela assimetria. Ainda é poder, mas o inferiores, os opositores e os rivais poderiam apostar nos jogos, visto que não seriam eliminados fisicamente por resistirem ou disputarem esse poder. Ainda assim há muitos modos (ou figurações) de exercício da autoridade, mais ou menos fechadas, mais ou menos impositivas, mais ou menos inclusivas, mais ou menos legitimadas pelos participantes.

O processo civilizador não foi, contudo, uniforme na Europa que o autor estudou, visto que o habitus provinha de disputas pelo poder das quais decorre­ riam diferentes equilíbrios e razões (ratios) de poder que não poderiam se reduzir à dicotomia entre o dominador e o dominado. Onde o Estado era fraco, ou seja, onde o monopólio legítimo da violência não fora instituído, o valor dado ao papéis militares resultara na consolidação de uma classe dominadora militar, na continuidade dos duelos, inclusive entre civis, e do uso privado de armas para resolver conflitos individuais (Elias e Dunning, 1993: 233), como ocorreu na Alemanha ainda no século XIX e primeiras décadas do século XX. Isso explicaria, para esse judeu alemão, a ascensão do nazismo em seu país de origem. De outro modo e com consequências diferentes, onde os laços segmentais ou paroquiai fossem mais fortes - o que acontece em áreas sob o regime oligárquico ou em bairros populares e vizinhanças pobres em cidades modernas, isoladas ou afastadas do centro da cidade -, o orgulho e o sentimento de adesão ao grupo anulariam a pressão legal para o controle das emoções e da violência física, resultando em baixos sentimentos ele culpa no uso aberto da violência para resolver os conflitos de vários tipos, desde os domésticos até os surgidos na vizinhança e na cidade. É isso, por exemplo, que explicaria, segundo o autor, a violência das torcidas orga­ nizadas de futebol na Inglaterra (Elias e Dunning, 1993: 233).

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runc, p .. ,lil'i.L é JUS!ic;,1 no Hl\lSil

Elias dá, portanto, grande importância aos desdobramentos nas relações entre as classes e os grupos sociais concretizadas na edificação de instituições que limitaram o poder ou domínio dos mais prestigiados, privilegiados, ricos e armados, que antes podiam se impor pelo uso da força bruta, Emende que os indivíduo e as instituições estão em permanente interação, contagiando-se mutuamente, modificando-se na própria ação mesmo que esta não seja planejada nem prevista. egundo ele, é a rede de interdependências entre os seres humanos que os vincula

entre si, pois um ser humano depende do outro, primeiro pela própria natureza e, posteriormente, pelo aprendizado ou socialização, assim como pela geração de necessidades mutuas que os faz existirem apenas enquanto pluralidades, enquanto figurações. Mas estas não são sempre harmoniosas como uma máquina lubrificada. Ao contrário, são feitas de relações amigáveis e pacificas, assim como de relaçõe tensas e hostis, ficando por isso em constante mutação. No âmago dessa mutação esta um equilíbrio tenso e flutuante da balança de poder entre as partes envolvida nos diversos jogos sociais. O que importa é a função que a violência física, com eus tons de brutalidade, teria ou não em cada uma delas.

Por isso, repele as teorias que abordam o individuo isolado - o homo clausus -, para ele a base da filosofia ocidental e de teorias sociais hoje entendidas como a teoria da escolha racional e a do individualismo metodológico, adotando conceitos que remetem aos indivíduos como parte de vasta rede de relações (ou figuração) marcada pela interdependência entre eles, em que relações amigáveis não anulam as tensões e os conflitos permanentes (Elias, 1990). Foi essa a perspectiva relacio­ nal que adotou. Em virtude dessa crítica, agora não se fala mais de um sujeito central independente que usa a racionalidade para tomar um rumo de ação, mas da intersubjetividade que tornaria a ação menos solitária e mais complexa, no enrído de levar em conta também o emocional, o corpóreo, o psíquico, o tenso, o contraditório e o que não está consciente no ator. Hoje, novas teorias tangenciam essa abordagem, como a de Roberto Putnam que tenta entender as questões da criminalidade pelo viés da cultura da civilidade e da associação para a ação coletiva, o que este autor denominou cultura cívica, assim como da integração interna de bairros da cidade e dos bairros entre si.

Ourro sociólogo, de grande prestígio entre os cientistas sociais brasileiros, que utiliza uma abordagem relacional é Pierre Bourdíeu, mas em perspectiva teórica bem diferente. Bourdieu, que era amigo e interlocutor de Elias, pretende como ele focalizar os indivíduos em suas relações com outros indivíduos, sem tratá-Los como "coisas" determinadas pela infraestrutura econômica. Tal como Elias, Bour<licu nega as dicotomias sujeito/objeto, indiv!duo/sociedac.le, mente/corpo, micro/ macro, agência/estrutura para se concentrar na interiorização de práticas sociais ou no conjunto de dísposições igualmente <lenominadns de hahitus. Tal como Elias,

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l:t.o~ guerreiro e críminahdade violenta

Bourdieu se refere às práticas sociais cotidianas do vestir, comer, falar etc. como as constitutivas <lo liabitus. Entretanto, suas teorias abordam diferentemente a tensão existente entre a subjetividade e a objetividade, pois, para Bourdieu, o que importa não são as interações subjetivas entre os indivíduos, mas as suas relações estrutu­ radas, histórica e objetivamente dadas porque fora da consciência individual. Não há propriamente uma teoria sobre a formação psíquica ou a figuração subjetiva, mas tão somente o que já está dado nas estruturas de poder da sociedade baseadas na única dicotomia que se mantém na teoria deste autor, aquela estabelecida pela dominação que gera dominadores e dominados por meio do poder simbólico, ou seja, os diferentes capitais acumulados pelos indivíduos, porém marcados pela de­ sigualdade das relações entre eles (Bourdieu, 1989). No entanto, em certos trecho da sua reflexão, o autor admite a importância da criatividade no senso prático que impulsiona os indivíduos a participar dos jogos nos diferentes campos sociai .... Chega mesmo a falar das disposições individuais como "arte".

A sociedade é por ele apresentada como composta de diversos campos de força (ou de poder) - os campos social, político, intelectual, religioso e esportivo -, em que o jogo do poder (ou dominação) se impõe a quaisquer indivíduos que neles entrem. A entrada no campo exige do indivíduo certo capital acumulado e o conjunto de disposições que constitui o habitus, o que vai definir a participação dele nos jogos (de poder) que caracterizam o campo específico. Ao indivíduo ca­ beria apenas a ação possível de acordo com a sua posição nessa estrutura social e a trajetória que segue nela, se ascendente ou descendente, por sua vez dependendo dos capitais (social, econômico, cultural) que ele teria acumulado durante as sua relações com os outros indivíduos de suas redes sociais e as instituições das qual fez parte (Bourdieu e Wacquant, 1992). Os indivíduos acumulam algo que pode ser quantificado - o capital -, que podem usar exímia e criativamente, mas sua estrutura psíquica segue inalterada.

No entanto, a principal diferença entre os dois autores que usam o conceito de etos ou habitus, é o conceito de poder. Para Bourdieu, todo poder é violento, pois se baseia na violência simbólica, ou seja, no mascaramento do arbitrário cultural que é inculcado no indivíduo. Além disso, a matriz do poder é a dominação masculina, também chamada etos da masculinidade, que obriga o homem a ocupar a posição de <laminador (Bourdieu, 1989). Como não diferencia a dominação da hegemonia baseada no convencimento e na persuasão, toda forma de poder é simbolicamente violenta. O poder ê um só: a dominação que insidiosamente estabelece a assimetria de poder entre dominantes e dominados. A própria linguagem (ou poder simbólico}, mera mediadora elas relações de poder, criaria a dominação pela inculcação (nào consciente) de sua lógica prática ou senso prático como algo natural, que cuminlu por si e não é contestado nem discutido por ser considerado natural.

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s indivíduos não teriam consciência desse arbitrário simbólico no qual são socializados, razão pela qual Bourdicu chama o lwbirus de illasio, pois este seria opac parn os atores em cada campo de forças. Por isso Bourdieu critica Elias afirmand que este autor mio se preocupa cm saber cm beneficio de quem o monopólio legiti­ mo da violência é exercido, nem entende que há um monopólio legítimo do poder simbólico que divide os indivíduos cm dominadores e dominados. Assim sendo, não há, na teoria de Bourdieu, uma reflexão sobre a violência física nem muito menos sobre o crime, mas sobre a desigualdade, a reprodução e as divisões sociais em cada um dos campos de poder entre os dominantes e os dominados. Embora tenha segmentado a sociedade em muitos campos, em cada um deles prevalece a ideia de que há sempre uma classe, um grupo ou indivíduos dominantes.

A teoria de Bourdieu é importante para nos lembrar de que há coerções e consrransimentos às acões individuais devidos ao poder constituído, mesmo para "' . aqueles que aceitaram as regras da convivência pacífica com os seus semelhantes, mas não ajuda a entender como, apesar de tais coerções, as mudanças acontecem nem porque em algumas sociedades há muito mais violência física interna do que em outras, embora as guerras entre nações sejam ainda parte do atual quadro da humanidade. A sua reflexão é sobre a desigualdade dos capitais (poder) entre as pessoas, não sobre a violência ftsica nas relações devido à falta de controle emo­ cional ou aos sentimentos intensos que anulam a empatia ou compaixão para com o inimigo ou rival. Entretanto, pela sua teoria, não há como avaliar avanços institucionais e os ganhos para todos os cidadãos de um mesmo país. Apenas a revolução ou o deslocamento de um grupo entre campos sociais muito distintos provocaria um rearranjo no h.abitus e no capital (ou poder) de cada individuo dentro deles (Bourdíeu e Wacquant. 1992).

A perspectiva relacional, com o conceico de h.abitus ou de etos, permite en­ tender, sob nova luz, o quadro da violência no Brasil. Levar em conta não tanto o código de boas maneiras ou as etiquetas, mas o que poderia se chamar de "cultura da civilidade", que transforma a relação entre o Estado e a sociedade, dividida em classes sociais, etnias, raças, grupos de idade, gêneros, afiliações religiosas, pode ser ainda mais revelador. Ao sublinhar a civilidade, interpreta-se o processo civilizató­ rio pelo viés político-institucional do monopólio legítimo da violência pelo Estado e pelo foco nas mudanças da formação subjetiva devidas ao fair p/ay e no controle das emoções destrutivas, especialmente no que se refere à violência.

Assim, é possível apreender que, na segunda metade do século xx, mais precisamente desde o final dos anos 1960, estava em andamento um retrocesso nos códigos de conduta e no autocontrole individual das emoções mais primitivas devido à aposta na repressão violenta de qualquer oposição e à militarização <las funções administrativas, inclusive da polícia. O autoritarismo nas relações entre

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Etos ~uerrciro e criminalidade violenta

policiais e cidadãos, principalmente os mais pobres, entre governantes e governa­ dos, a censura aos que se opunham ao regime e o enfraquecimento e atrclarnento do Congresso Nacional ao Executivo desacreditaram os jogos da negociação, do diálogo e do conflito limitado moral e institucionalmente para que os opositores não fossem violentamente reprimidos, mesmo desobedecendo aos decretos im­ postos pelo regime. Simultaneamente a essas mudanças na esfera institucional e política, houve um aumento na criminalidade violenta, a partir de meados dos anos 1970, cm percentuais tão altos que ficou difícil negar ou disfarçar o fenômeno com teorias do tipo "medo veiculado pela mídia", embora esse medo também fosse real e veiculado pela mídia.

No entanto, o processo histórico da violência costumeira é muito mais antigo no Brasil. Enquanto os países europeus haviam sofrido nos dois séculos anteriores um processo bem-sucedido de desarmamento de sua população civil, proibindo duelos, efetivando o monopólio da violência pelo Estado, nos Estados Unidos a Constituição continuou a garantir a qualquer cidadão o direito de ter, negociar e usar armas em sua defesa pessoal. Nesse país, assim como na Colômbia e no México, onde ocorreram prolongadas e mortíferas guerras civis, armas de fogo se espalharam pela população civil mesmo depois do fim dessas guerras. lsso explicaria em grande medida por que tantos jovens pobres e negros foram mortos nas últimas década. nos Estados Unidos, na Colômbia e no México. Há, portanto, um claro contraste entre os países europeus, onde existe um controle severo de armas e onde os grupos juvenis não estão tão vinculados ao crime organizado de estilo violento, e os paí do continente americano, inclusive os Estados Unidos da América e o Brasil, onde impera a conjunção entre a facilidade para obter armas de fogo e a penetração do crime organizado na vida econômica, social e política do país.

o Brasil, a ausência do monopólio legitimo do uso da violência, que gera conflitos armados e circuitos de vingança disseminados na sociedade, persistiu por séculos, mesmo depois da proclamação da República. A violência costumeira de proprietários de terra, com seus exércitos privados que lhes valeram o título de "coronéis", mais tarde com seus capangas e pistoleiros atuando também nas cidndes para matar seus desafetos, impediu que se concretizasse o monopólio legitimo da violência pelo Estado até mesmo no século xx. Hoje, a facilidade para obtenção informal ou ilegal de armas de fogo em alguns locais aumentou muir com o advento de novas formas de crime organizado vinculadas ao tráfico ilegal de drogas que adquiriu um estilo violento e vem se espalhando pelo país desde meados dos anos 1970. Com o aumento da criminalidade e do medo, a situacão s agravou ainda mais com a multiplicação de grupos de extermínio e de justiceiros, de empresas de segurança privada, que tornaram essa ausência ainda mais clara persistt:ntc do que há algumas décadas.

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Crime, p,11icill ,. j11sli~1t 11(, flrusil

Na verdade, o Estado brasileiro ainda não cumpriu satisfatoriamente a princi­ pal função de todo o estado: dar segurança a seus cidadãos, um direito muito valo­ rizado por todos, sem importar sua escolha sexual, sua religião, sua cor da pele, seu gencro, seu nlvel de renda, sua escolaridade etc. Isto é particularmente importante para todas as categorias minoritárias que não possuem os meios para sua defesa no caso de ataque de quem está mais bem armado, pois precisam da proteção estatal contra seus predadores. Todavia, ainda têm tido predadores violentos entre os que deveriam estar proporcionando proteção, ou seja, entre alguns policiais. Assim, a corrupção institucional, a irreverência pela lei, a ineficácia no sistema de Justiça, a ineficiência das políticas de prevenção e tratamento no uso abusivo de drogas, conspiraram para que a violência urbana aumentasse desastrosamente, onerando custos do sistema de saúde e da segurança, impossibilitando a execução de outras políticas no combate à pobreza.

Grande parte do problema decorre da proibição ao uso e tráfico de certas substâncias, denominadas drogas, que, ao se tornarem ilegais pelas leis deste Esta­ do, criaram organizações subterrâneas que ameaçam a organização, a governança e abalam ainda mais o monopólio legítimo da violência. Não surpreende que o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas tenha concluído que o crime organizado, com a capacidade de expandir suas atividades a ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente os que estão em transição e desenvolvimento, representa o maior perigo que os governos têm de enfrentar para assegurar a estabilidade, segurança e preservação da tessitura social, e a continuidade do desenvolvimenro econômico.

Nas várias pesquisas de campo que realizei com assistentes de pesquisa no Rio de Janeiro, sempre foi assinalada, desde 1980, a facilidade e a quantidade de armas disponíveis para os jovens moradores das favelas tidas como perigosas. elas, jovens passaram a andar armados para se proteger de outros jovens arma­

dos; juntaram-se a quadrilhas por crer que assim contariam com a sua proteção militar, jurídica, política e pessoal; preparam-se para a guerra, aprenderam a ser cruéis e a matar sem hesitação outros jovens pobres como eles que fazem parte dos comandos, quadrilhas ou favelas "inimigas". Pessoalmente, acreditaram que permaneceriam impunes nesse crime, porém acabaram vitimas nas estatísticas crescentes de homicídios. Como membros das quadrilhas e comandos que dispu­ tavam o domtnio de territórios na cidade, incorporaram a ideia de uma espécie de corrida armamentista, que passou a vigorar para dissuadir os oponentes de fazer a guerra ou tomar os territórios alheios. Adicione-se nessa figuração o circuito infindável da vingança, próprio do etos guerreiro, e compreende-se por que falavam em uma "guerra sem fim" até que a política de segurança mudou a partir <le 2008.

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Etos ~uerrciro e criminalidade violenta

om a teoria e.lo habitus que é inculcado, modificado e regredido dependendo do equilíbrio e do racio de poder, fica claro que, simultaneamente com a maior facilic.lade de obter armas de fogo, inclusive os fuzis de guerra, houve também nlteraçõcs na sensibilidade <los que eram envolvidos nas atividades do tráfico ar­ mado, as quais se tornavam cada vez mais cruéis. Entre os jovens que se juntavam às quadrilhas de traficantes, houve também a interiorização progressiva do eto guerreiro, a hipermasculinidade ou o excesso na virilidade agressiva e destrutiva que passou a impregnar o lugar onde viviam. A difusão do uso de armas de fogo para resolver conflitos comerciais, passionais e de pequenas desavenças deu-se no ambiente das favelas pela facilidade em obtê-las e pela socialização que acontece nas ruas e vielas. Crianças e adolescentes cresciam vendo a exibição ostensiva das armas como símbolos de poder e o seu uso cruel para punir ou vingar quem atravessava o caminho dos traficantes armados e dos policiais corruptos. O contágio de ideias e as posturas da crueldade e insensibilidade ao sofrimento alheio se espalharam entre eles. O tiroteio então cada vez mais comum nos bairros populares e favelas, o uso de armas de fogo nas ruas, praças e escolas, assim como a proibição expressa de traficantes quanto ao ir e vir de favelados e servidores públicos, prejudicaram o moradores, obrigados a mudar ou a enfrentar a obstrução das poucas vias existentes nas favelas que impedia a entrada de inimigos, mas também a de vans, ambulâncias e caminhões de lixo ou de entrega.

Ao adotar seus códigos ou suas práticas sociais não conscientes, eles procu­ ravam conquistar o respeito e a consideração dos membros da quadrilha, para serem aceitos e construírem uma reputação, como se este contexto social fosse a composição natural do social. Vários deles tinham amigos ou parentes que faziam parte da rede de traficantes, por isso não ousavam contrariar as regras do "contexto", um termo empregado para falar da situação de poder existente na favela. Assim se tornaram conformistas e perdiam a autonomia, passando a ser chamados de ceie­ guiados pelos trabalhadores locais. Então, progressivamente iam sendo preparado para entrar na guerra e matar impiedosamente seus inimigos. Assim iam send anestesiados para o sofrimento infligido aos outros. Tais práticas sociais mudaram a forma de pensamento, sentimento e ação dos homens jovens envolvidos nas trama do tráfico de drogas ilegais no Brasil, fazendo-os agir de forma cada vez mais brutal e mais insensível para com o sofrimento alheio.

Essa figuração do etos guerreiro entre os traficantes de drogas pode ser rever­ tida, pois não é natural, a não ser na visão de senso comum dos que estão tomados pela identificação com tal cros, nem é eterno, pois tudo está em perpétua mudança. A guerra, que começou, está tendo um fim no presente momento.

No entanto, para a reversão do etos guerreiro, há caminhos já trilhados na sociabilidade e nos rumos rornndos hü mais de um século pelo que poderia ser

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harnado de processo civilizatório no Brasil. Além da inegável importância d ortc na vida cotidiana de vários setores da população, mesmo que apenas como

espectadores que internalizarn o espirita esportivo e a necessidade de deixar o competidor sobreviver para que o jogo continue sempre, tivemos outro processo que se espalhou pelo pais a partir do Rio de Janeiro: a instituição de torneios, concursos e desfiles carnavalescos envolvendo bairros e segmentos populacionai rivais. Desde o inicio do século XX, os conflitos ou as competições entre bairros, vizmhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram apresentados, representa­ dos e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas vindas de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades, criando associações, ligações, encenações metafóricas e estéticas das suas possíveis desavenças, seguindo regra cada vez mais elaboradas.

Nessas expressões do fair play e da civilidade, não estavam em questão, por­ tanto, as boas maneiras que permitiriam o acesso às elites ou aos grupos fechados dos bem-nascidos e bem-criados, mas sim o respeito às regras do jogo que valeriam para todos os envolvidos nos espaços públicos, ou seja, além da paróquia. Pode-se dizer que, nos esportes e desfiles competitivos, opera-se no registro da igualdade diante das regras, do senso de justiça informal que se aprende ao longo da sociali-

. zação, muito mais do que na corrida pela ascensão social. Como reúnem pessoas de diferentes familias, gerações e bairros da cidade em espaços públicos, propiciam a interiorização da sociabilidade entre concidadãos. Poderiam ser também a base para a solidariedade interna da classe social ou de movimentos reivindicativos.

De fato, o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, e de outras cidades brasileiras, se deu por duas vias: uma de encontro e competição regrada entre os vários bairros da cidade, entre os ilustrados e os humildes moradores na produção artística; outra de repressão na política de segurança montada pelas polícias, mais particularmente a polícia militar a partir do início dos anos 1970, exatamente quando começava a crescer o tráfico de drogas e de armas na cidade e a sua repres­ são passou a ser violenta. No Rio de Janeiro, muitos desencontros foram sendo produzidos ao longo dos últimos 40 anos, desencontros que resultaram na con­ centração de homicídios e outros crimes violentos justamente nos subúrbios e no cenrro da cidade, de povoamento antigo (Zaluar e Ribeiro, 2009), berço das mai importantes escolas de samba, blocos de carnaval e outras associações vicinais que marcaram a imagem alegre e sociável da cidade no país e no mundo.

Sem contar com os controles informais que se enfraqueceram no processo de militarização dos traficantes, nem com a mediação de conflitos entre estes últi­ mos sempre disputando o controle dos pontos de venda e de poder local, o poder policial entrava em locais já conflagrados pelo conflito armado. Em um círculo vicioso infindável, esta situação só fez reforçar aquelas práticas policiais baseadas

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Etos guerreiro e criminalidade violenta

110 poder de fogo e na perspectiva das práticas repressivas da "guerra contra <Y inimigos internos" estabelecidas nas últimas décadas. Mas a polícia não deveria fazer guerra contra cidadãos trabalhadores, crianças, idosos, jovens estudantes e donas de casa, nem mesmo contra suspeitos de praticarem crimes. A ideia da guerra contra outro poder armado "paralelo", com alta capacidade de corromper, dificulta enormemente a adesão às normas que legalizam a ação policial.

No entanto, apesar dos sinais de que a classe social estaria partida, as organi­ zações vicinais ficariam paralisadas e movimentos sociais, esvaziados ou cooptados por políticos clientelistas, apesar do processo civilizador ter sido interrompido, provocando a explosão de violência intraclasse e intrassegmento, a convivência com pessoas de diversas faixas etárias ocupa um local de suma importância nos espaços familiares, de trabalho e de lazer. Continuaram sendo importantes a memória e a transmissão oral de conhecimentos nos ofícios, tanto no mundo do trabalho, quanto no samba e nas práticas esportivas, a partir de uma tradição passada pelos mais velhos na rua, no bairro, na associação vicinal. A convivência intergeracional também permaneceu na família, na qual os mais velhos cuidam da educação do mais novos, tendo vínculos biológicos ou não, aconselhando e orientando para o estudo, encaminhando-os, sem obrigações formais, para longe de atos violento (Zaluar e Ribeiro, 2009).

Assim, o que essas figurações encontradas no país indicam é que, ao abordar fenômenos do crime e da violência pelas relações sociais locais, precisa-se levar em conta a dimensão da sociabilidade já constituída, qualquer que seja o nome dado a ela, para buscar as saídas, principalmente naquelas áreas onde se concentram as mais altas taxas de criminalidade e as mais baixas taxas de registro de crimes cometido. contra os moradores delas. Estudos indicam que vizinhanças pobres se distinguem das vizinhanças prósperas - mesmo aquelas em que há níveis semelhantes de crimes nelas cometidos - pelo grau mais baixo de registro dos crimes nas primeiras. A preservação de laços sociais entre vizinhos e o sentimento de insegurança, no caso brasileiro, provavelmente exacerbado pelo alto grau de desconfiança nos policiai s , paralisariam as pessoas para registrar danos a elas causados. Segundo estudos internacionais, a impunidade relativa explica por que, embora criminosos sejam conhecidos pelos moradores de favelas, uma espécie de omerta ou lei do silêncio, ou cumplicidade forçada, impede a denúncia daqueles.

Além disso, os estudos sobre o crime no espaço urbano localizam aquelas áreas onde a desorganização social e, portanto, o controle social, estaria mais enfraque­ cido. O foco desses estudos é posto no enfraquecimento dos mesmos mecanismos habituais de controle social que os moradores teriam sobre os espaços onde vivem, ao qual estariam atrelados os demais processos físicos, econômicos e éticos. Nc Rio de Janeiro, os bairros e as favelas com mais altas taxas de homicídios são ram-

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hem aqueles onde moram pessoas de estratos sociais marcados pela baixa renda, baixa escolaridade, famílias chefiadas por mulheres, com altas taxas de gravidez na adolescência. Ecologicamente, são bairros marcados pela escassez de centros culturais e esportivos, embora muitos deles, como Madureira, tenham alta ativi­ dade comercial e muitas atividades esportivas e culturais vinculadas a associaçõe vicinais. Os órgãos e serviços públicos disponíveis são raros, quando comparados com o centro ou com as regiões abastadas, não conseguindo suprir a demanda.

ovas teorias inspiradas em Elias falam também de mudanças profundas na estrutura psíquica dos individuas que resultaram no que um autor chamou de processo de inforrnalização ou emancipatório. Esse processo significaria, na relação entre as gerações, ultrapassar a figura da autoridade peremptória e in­ contestável cujas ordens teriam que ser obedecidas sem discussão. Alternativas de padrões de conduta, principalmente vindas da cultura jovem, passam a ser admissíveis, objetos de negociação entre figuras de autoridade e os jovens. Na economia psíquica dos indivíduos, a responsabilidade e, portanto, a racionalidade diante das escolhas feitas entre as alternativas possíveis aumentaram, assim como maior igualitarismo social na medida em que diminuiria a distância social entre os hierarquicamente considerados inferiores e superiores. Nessa nova figuração, uma terceira natureza surgiria em cena.

Embora o triunfo do mercado na década de 1980 tenha significado um retomo à necessidade de escalar a hierarquia social, mais desigualdade e mais conformismo perante as elites estabelecidas, o surgimento de uma terceira natureza provoca o diálogo entre as emoções reprimidas (primeira natureza) e a etiqueta aprovada socialmente (segunda natureza). A terceira natureza se caracterizaria pela maior flexibilidade moral e maior entendimento entre consciência e impulsos, de tal modo que os bem-sucedidos seriam os que combinariam firmeza e flexibilidade, franqueza e tato (Wourers, 2004: 208-10).

Em texto anterior, o autor considera que criminosos seriam os indivíduos que não conseguem, por vários motivos, essa nova integração psíquica, na qual as emoções e os códigos de conduta disponíveis se tornam objeto de reflexão e de racionalização. E admite que os indivíduos mais propensos a cometer crimes seriam aqueles que não têm autocontrole sobre as suas emoções e, portanto, falham na negociação entre a consciência moral e os impulsos. A própria transição entre o modelo de conduta convencional e o da conduta informal explicaria o aumento da criminalidade, especialmente porque a propensão a cometer crimes seria mais forte entre os que vivem a integração social precária, como os imigrantes, os jovens e os desempregados das periferias nas cidades europeias. Se, além de serem desprc­ zados socialmente, carecem do "capital de personalidade", ou seja, da flexibilidade moral para promover o diálogo entre os impulsos da emoção e a moralidade, assim

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Elos guerreiro e criminalidade violenta

como a capacidade de refletir sobre os modelos de conduta d isponiveis, com mais probabilidade vão se enredar cm atividades criminosas.

De fato, seria importante analisar como o capital de personalidade entre os jovens das cidades brasileiras está comprometido pela interrupção e incompletude do processo de informalizaçâo/Igualitarísmo social, visto que a democratização social não se deu no mesmo ritmo da democratização política. A permanência do autoritarismo social (ou da hierarquia social no Brasil) - sobretudo as formas de poder despótico surgidas a partir dos anos 1970 nas áreas urbanas mais desfavore­ cidas e em muitas organizações, inclusive as do Estado-, teria abortado o processo de informalizacão ou de maior diálogo com as figuras de autoridade, também a discussão das regras do jogo. Isso é especialmente verdadeiro para as camadas menos escolarizadas e mais subalternas.

Mais uma vez, depara-se com um processo de redemocratização inconcluso, parcial e excludente que combina diferentes estágios na consolidação do Estado de Direito. Mais uma vez, manifesta-se a desigualdade social, agora também no processo de socialização e na aquisição das disposições e posturas mais condizente com a participação ou inclusão na sociedade.

Outros autores radicalizam a teoria de Elias sobre o controle das emoçõe e transformam o autocontrole individual, ou seja, a capacidade subjetiva do indivíduos de controlar seus impulsos, em conceito central para explicar a crimi­ nalidade. Não seria nem a privação, mesmo que relativa, ou a desigualdade, nem as carências na escolaridade que inclinariam uma pessoa para o comportamento criminoso, mas sim o grau de autocontrole que ela teria sobre suas emoções em momentos de tensão. Tais tendências ou disposições estariam presentes desde logo, pois se manifestariam cedo na infância, com características relacionadas ao baixo autocontrole: impulsividade, insensibilidade, imprudência e a tendência a agir mais física do que mental ou verbalmente.

O problema é que essas características não são exclusivas do comportamento criminoso, mas também de atividades que envolvem risco ou reação impensada, não necessariamente criminosa. Além disso, explicariam muito mais os crimes cometidos em explosões ernocion iis, como os crimes tio ódio ou da paixão, mas dificilmente explicariam a criminalidade que se desenvolve como um negócio de longo prazo e que exige o uso racional da violência por causa da ilegalidade e, consequentemente, da falta de meios legais para resolver conflitos e da necessidade imperiosa de manter a clandestinidade e a impunidade dos envolvidos nesse tip de crime que chamei de crime-negócio.

Tnis autores apclnrn, então, para a socialiaação infantil na familia, durante a qual o autocontrole se consolidaria por volta dos 8 anos de idade. Por isso, os pais deveriam estar atentos para os comportamentos desviantes das crianças, punindo-as

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'rime, pi.11íi:i11 e justiça no Brasil

qurmuo ocorressem. Quando a socialização e falha por causa do descuido ou da mdíferença materna e paterna, a criança pode vir a agir com violência para obter .1uc deseja. Isso quer dizer que os pais deveriam ser capazes de reconhecer quando regras sociais de respeito aos demais participantes dos jogos sociais são quebradas. Participar de jogos da sociabilidade, conviver em locais públicos, portanto fora da familia, são modos imprescindíveis para conhecer as regras da civilidade e do respeito aos outros, adquirindo noções "informais", "básicas" ou "populares" do que é justo u injusto nas relações pessoais, usualmente regidas pelas regras da reciprocidade.

Proporcionar a convivência social em espaços públicos e a socialização na ordem pública vem a ser, portanto, parte da dinâmica que vai permitir romper o círculo vicioso da violência que também ocorre na família, mas não apenas nela.

PARA SABER MAIS

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