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Livro Das Mil e Uma Noites - Vol. 1 - Anonimo

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1001 noitesVolume 01Completo

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  • volume 1 ramo sriotraduzido do rabe por Mamede Mustafa Jarouche

    3 edio, 5 reimpresso

  • Copyright da traduo 2005 by Editora Globo s.a.Copyright da introduo, notas e apndices 2005 by Mamede Mustafa JaroucheTodos os direitos reservados. Nenhuma partedesta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnicoou eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancosde dados, sem a expressa autorizao da editora.ttulo originalKitb alf layla wa laylarevisoBeatriz de Freitas MoreiraEugnio Vinci de Moraescapa e projeto grficoRaul LoureiroClaudia WarrakProduo para ebookS2 BooksDados Internacionais de Catalogao na Publicao [cip]Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil

    Livro das mil e uma noites, volume i: ramo srio /Annimo; [introduo, notas, apndice e traduo do rabe: Mamede Mustafa Jarouche.] 3 ed. So Paulo: Globo, 2006952 kb; ePUB

    isbn 978-85-250-5246-9 O livro das mil e uma noites - volume 1 (epub)1. Contos rabes 2. Fbulas orientais 3. Fbulas orientais Histria e crtica i. Jarouche, Mamede Mustafa

    05-1419 cdd-892.73008

    ndice para catlogo sistemtico:1. Fbulas: Literatura oriental: Coletneas 892.73008

    Direitos de edio em lngua portuguesaadquiridos por Editora Globo s.a.Avenida Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo spwww.globolivros.com.br

  • agradecimentos a

    Ali Mohamad El Jarouche, Mahmud Ali Makki, El Sayed Bahrawy, Federico Corriente Crdoba,Roshdi Rashed, Gamal El Ghitani, Talaat El Shayeb, Mamduh Ali Ahmad, Abdurrahman ElSharqawy, Afaf El Sayed, Muhammad El Arabi El Dawudi, Riyad Abou Awad, Yusuf Abu Raya,Magdi Youssef, Biblioteca Nacional do Egito, Biblioteca da Liga dos Estados rabes;fapesp, Adma Fadul Muhana, Alberto Sismondini, Andreas Hofbauer, Fernanda Vanzolini Razuk,Francis H. Aubert, Joaci Pereira Furtado, Joo Adolfo Hansen, Jlia Maria de Paiva, Juliana deMatos Donzelli, Leon Kossovitch, Michel Sleiman, Miguel Attie Filho, Renato Marques Gadioli,Richard Max de Arajo, Safa Alferd Abou-Chahla Jubran, Servio de Aquisio da Biblioteca dafflch-usp.

  • livro das mil e uma noites

    CapaFolha de rostoCrditosAgradecimentos aNota editorialUma potica em runasEm nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador em quem est a minha fO gnio e a jovem sequestradaO burro, o boi, o mercador e sua esposaO mercador e o gnioO primeiro xeiqueO segundo xeiqueO pescador e o gnioO rei Ynn e o mdico DbnO mercador e o papagaioO filho do rei e a ograO rei das ilhas negras e sua esposaO carregador e as trs jovens de BagdO carregadorO primeiro dervixeO segundo dervixeO invejoso e o invejadoO terceiro dervixeJafar, o vizirA primeira jovem, a dona da casaA segunda jovem, a chicoteadaAs trs masOs vizires Nruddn Al, do Cairo, e seu filho Badruddn asan, de Basra

    O corcunda do rei da ChinaO jovem mercador e sua amadaO jovem de Bagd e a criada de madame ZubaydaO jovem de Mossul e sua namorada ciumentaO jovem Manco e o barbeiro de Bagd

  • O barbeiro de Bagd e seus irmosO primeiro irmo do barbeiroO segundo irmo do barbeiroO terceiro irmo do barbeiroO quarto irmo do barbeiroO quinto irmo do barbeiroO sexto irmo do barbeiroAnexosAnexo 1Anexo 2Anexo 3Anexo 4Anexo 5Anexo 6Anexo 7Anexo 8Anexo 9Anexo 10

  • nota editorial

    Eu penso em As mil e uma noites: falava-se, narrava-se at o amanhecer para afastar a morte, para adiar oprazo deste desenlace que deveria fechar a boca do narrador.Michel Foucault

    Um rei chamado hriyr (pronuncia-se Xahrir, aspirando o h), membro de poderosa dinastia,descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo. Em crise, esse rei sai pelo mundo, iniciandouma busca que tambm de fundo espiritual: ele quer saber se existe neste mundo algum maisinfeliz do que ele. A resposta positiva, com um agravante: ningum pode conter as mulheres oque lhe garante uma bela jovem que trai o marido. Ento ele retorna para o seu reino decidido atomar uma medida drstica e violenta: casar-se a cada noite com uma mulher diferente, mandandomat-la na manh seguinte.

    Depois de muitas mortes e pnico entre as famlias, d-se a interveno da herona: ela filha dovizir mais importante do reino, possui grande cultura e inteligncia, chama-se ahrzd (pronuncia-se Xahrazd ) e elaborou uma estratgia infalvel por meio de histrias que vai sucessivamente,noite aps noite, desfiando diante de um rei a princpio assustado, mas depois cada vez maisseduzido e encantado.

    So fbulas de terror e de piedade, de amor e de dio, de medos e de paixes desenfreadas, deatitudes generosas e de comportamentos cruis, de delicadeza e de brutalidade. Um repertriofantstico que at hoje nenhuma outra obra humana igualou, e que, desde o incio do sculo xviii,vem sendo traduzido para os mais diversos idiomas do mundo, a tal ponto que, para Jorge LuisBorges, passou a ser parte prvia da nossa memria.

    Esta a primeira traduo direta do rabe para o portugus. O trabalho foi buscar, nos originaisdo livro, o ritmo, o sabor e o poder da palavra de ahrzd, inumervel como a prosa do mundo efonte de inspirao para escritores to diversos quanto Marcel Proust, Machado de Assis, Voltaire,Edgar Allan Poe, Jean Potocki e Borges. Sua narrativa, como bem disse o filsofo francs MichelFoucault, o avesso encarniado do assassnio, o esforo de noite aps noite para conseguirmanter a morte fora do ciclo da existncia.

  • uma potica em runas

    No mundo rabe, circulou pelo menos desde o sculo iii H./ix d.C.[1] uma obra com ttulo ecaractersticas semelhantes ao Livro das mil e uma noites.[2] Contudo, foi somente entre a segundametade do sculo vii H./xiii d.C. e a primeira do sculo viii H./xiv d.C. que ela passou a ter, demaneira indubitvel, as caractersticas pelas quais hoje conhecida e o ttulo que Jorge Luis Borgesconsiderava o mais belo de toda a literatura. Sua histria pode ser feita com base em fragmentosremotos e formulaes digressivas, em manuscritos aparentemente incompletos conservados peloacaso e compilaes tardias cuja completude fez correr demasiada tinta, bem como em silncios eregistros lacnicos e lacunares que no raro estimulam fantasias e desejos da crtica. Tal o caso deuma obstinada crena de diversos crticos de literatura: a de que o Livro das mil e uma noites seriaum conjunto pouco mais ou menos fabuloso de fbulas fabulosamente arranjadas. Isto , um livroelaborado por centenas de mos, em dezenas de idiomas, em muitssimos tempos e lugares, quepode ser produo de todos e por isso mesmo de ningum, projetado no limbo da indeterminaoabsoluta que permite dizer qualquer coisa sobre ele e pensado como um processo de constituioque de to inesgotvel se tornou uma espcie de funo, tudo isso entremeado por uma oralidademeio analfabeta mas (ou por isso mesmo) muito sbia que excita e deslumbra.

    Ainda que vez por outra divertidas, essas crticas, continuamente repostas na esfera do que sepensa como puro exerccio literrio, subtraem ao livro a sua materialidade e desconsideram oconjunto de prticas letradas em idioma rabe que de fato o constituram enquanto tal. Comoqualquer outra obra, o Livro das mil e uma noites tem uma histria, embora controversa pelaexiguidade dos dados que nos chegaram at hoje, e fruto dos decoros das pocas em que foielaborado ou reelaborado. Convencionalmente supe-se, de acordo com documentos que serodiscutidos, que o livro deriva de uma matriz iraquiana, algo como o primeiro estgio, pode-se dizerassim, da redao independente em rabe de uma obra de remota origem persa sobre a qualtambm se falar adiante. A reelaborao que chegou completa aos dias de hoje remonta, como jse disse, ao perodo entre a segunda metade do sculo vii H./xiii d.C. e a primeira do sculo viiiH./xiv d.C., quando o Estado mameluco abrangia as terras da Sria e do Egito. Fundamentada naanlise dos manuscritos, parte da crtica[3] desenvolveu a hiptese da existncia de dois ramosdessa reelaborao, o srio e o egpcio, este ltimo por sua vez subdividido em antigo e tardio. Sosomente os manuscritos da fase dita tardia que contm, de fato, mil e uma noites, conforme seexplicar adiante.

    Da matriz iraquiana h um nico e escasso resqucio documental: a mais antiga evidnciamaterial de um livro cujo ttulo fala em mil noites consiste em dois fragmentos de folhas datadasde 266 H./879 d.C., em Antioquia, na Sria, contendo precrias vinte linhas no muitoesclarecedoras. A pesquisadora iraquiano-americana Nabia Abbott (Nabha Abbd), que aslocalizou em meio a uma resma de papiros rabes adquiridos pela Universidade de Chicagodurante a Segunda Guerra Mundial, transcreveu-as e escreveu um longo artigo a respeito.[4] Atraduo dessas vinte linhas a seguinte (tudo o que se encontra entre colchetes inferncia deNabia Abbott, a partir de trechos ilegveis no manuscrito):Primeira pgina:Livroque contm histria(s) [ou: a histria]

  • das mil noites [ou: histrias pertencentes s mil noites]. No h poderioou fora seno em Deusaltssimo e poderoso.Segunda pgina:Em nome de Deus, Misericordioso, MisericordiadornoiteE quando foi a noite seguintedisse Dnzd: minha delcia, se noestiver dormindo, conte-me a histriaque voc me prometeu ou um paradigma sobrea virtude e a falta, o poderio e a ignorncia,a prodigalidade e a avareza, a valentia e a covardia,que sejam no homem inatas ou adquiridas[ou] que sejam caracterstica distintiva ou decoro srio[ou be]duno[e ento rzd contou-lhe uma his]tria que continha graa e beleza[sobre fulano, o..., e sua m]emria[... e] se torna mais merecedor quem no[...] a no ser mais astucioso do que eles.[5]V-se bem como a crtica das traas e do tempo foi caprichosa com a dita matriz iraquiana das Mil[e uma] noites: a nica informao concreta que essas linhas fornecem a da existncia de umacoletnea com esse nome, o que chega a ser irnico com um livro sobre o qual foram lanadastantas hipteses, algumas absurdas, outras inverossmeis. Alm do fato de que a obra j existia nosculo iii H./ix d.C., as linhas e o material permitem poucas inferncias. Nabia Abbott ensaiaalgumas, das quais duas parecem pertinentes: a primeira, alm de no terem sido escritas no Egito a datao, como se viu, de Antioquia , as folhas no haviam sido produzidas ali, pois naqueleperodo a provncia fabricava exclusivamente papiro; e, segunda, a formulao inicial, livro quecontm histrias pertencentes s mil noites [kitb fhi ad alf layla], indica que se tratava de umextrato ou resumo de suas histrias, e no do livro todo.

    A datao em Antioquia pode no significar muita coisa, sobretudo quando se pensa na grandemobilidade territorial da populao muulmana, atestada por abundante literatura da poca. NabiaAbbott, porm, lana a hiptese de que a cpia resumida teria sido realizada por encomenda dealgum srio, com base no texto originariamente produzido em Bagd, sob a recomendao expressade que o escriba copiasse coisas concernentes sua regio da a enftica meno ao decoro[adab] srio. Depois, azares e peripcias diversas teriam tangido o material e seu dono ao Egito,durante o governo de Amad Bin ln (868-884 d.C.).

    O mais importante, porm, que tais linhas no permitem, apesar de todos os esforosespeculativos de Nabia Abbott, dizer uma nica palavra categrica sobre quais seriam as histrias eparadigmas que uma personagem chamada Dnzd (ou, possibilidade mais remota, Dunyzd)pede, durante a noite, que lhe sejam contadas por outra personagem feminina, a quem chama deminha delcia [y malaat], tratamento esse que no ocorre no Livro das mil e uma noites talcomo hoje conhecido. J o contedo de tais histrias e paradigmas dedutvel a partir da

  • terminologia empregada, que aponta para alguma proximidade com a linha didtico-moralizanteverificvel em obras como Kalla e Dimna e O sbio Sindabd.[6]

    No sculo iv H./x d.C., duas menes a esse livro, localizadas em obras de renome, lanamalgumas luzes, ainda que esbatidas, sobre a obscuridade de sua constituio. A primeira,aparentemente incidental, do historiador Ab Alasan Al Bin Alusayn Bin Al Almasd(morto em 346 H./956 d.C.) no livro Murj Aahab wa Madin Aljawhar [Pradarias de ouro e minasde pedras preciosas]. No texto, Almasd associa a obra a um relato que ele afirma pertencer aodomnio da fbula, e no da histria. Breve e digressiva, a meno difcil de compreenderisoladamente, motivo pelo qual se traduziu um trecho mais longo:

    [Entre os templos exaltados pelos gregos e outros povos] est um enorme templo na cidade deDamasco, conhecido como Jayrn, do qual j falamos antes neste livro. Tal templo foi construdopor Jayrn Bin Sad Ald, que para ali transportou as colunas de mrmore; esse templo a cidadede Iram flt Alimd, mencionada no Alcoro. O nico a contraditar isso foi Kab Alabr, quandofoi ter com o califa Muwiya Bin Ab Sufyn,[7] que o indagou a respeito de tal cidade. Kabento lhe falou sobre sua espantosa estrutura de ouro, prata, almscar e aafro, e tambm que elafora adentrada por um beduno cujos camelos haviam se extraviado; ele saiu procura dos animaise acabou topando com a cidade e mencionou o ardil[8] utilizado pelo homem. E, voltando-separa a assembleia de Muwiya, disse: Eis aqui o homem aquele beduno que entrara na cidade procura de seus camelos extraviados. Ento Muwiya deu um prmio a Kab, e se demonstrou averacidade de sua fala e a clareza de sua prova. Se essa notcia transmitida a partir de Kab forverdadeira, timo. Mas trata-se de uma notcia na qual entrou a corrupo em vrios aspectos,devido transmisso e a outras coisas; uma fabricao de contadores de histria. As pessoaspolemizam a respeito dessa cidade e de sua localizao. Entre os narradores de tradies histricas[ibriyyn] que iam em delegaes at o califa Muwiya, e que conheciam bem as crnicas dosantigos e as biografias pretritas dos rabes e de outros povos antigos, somente se confirmou anotcia dada por Ubayd Bin arya, que deu notcias sobre tempos passados e sobre os seres, fatos eramificaes de descendncias que neles haviam existido. O livro de Ubayd Bin arya circula entreas pessoas e bem conhecido. Muitos conhecedores das notcias constantes desse livro afirmam queelas so elaboradas[9] a partir de fbulas[10] forjadas [urft mana], arranjadas por quempretendia aproximar-se dos reis narrando-as para eles. Essas notcias se impuseram aoscontemporneos por meio da memorizao e da citao constante. O caminho [sabl] percorrido porelas o mesmo de livros transmitidos at ns e traduzidos para o nosso idioma a partir do persa, dosnscrito e do grego, e a maneira pela qual foram compostos esses livros que mencionamos semelhante do livro Hazr Afsna, cuja traduo do persa mil fbulas, pois fbula em persa sediz afsna. As pessoas chamam esse livro de as mil e uma noites, e ele d a notcia do rei, do vizir, desua filha e de sua serva, que so razd e Dnzd. tambm semelhante maneira do livro deFarzah e Sms [ou ms] e o que ele contm de notcias sobre os reis da ndia e os vizires, etambm ao Sindabd e de outros livros no mesmo sentido.[11]

    A segunda meno de um livreiro de Bagd, Ab Alfaraj Muammad Bin Ab Yaqb Isq,ou mais simplesmente Annadm Alwarrq, morto em 390 H./990 d.C., e se encontra no Alfihrist[Catlogo], obra na qual, com muito zelo, pretendeu compendiar todos os livros at ento escritos

  • em rabe. Consta da oitava parte, oitavo artigo, cuja primeira arte [alfann alawwal] d notciasdos musmirn [pessoas dadas a tertlias noturnas] e dos muarrifn [nesse caso, pessoas que contamfbulas], bem como dos livros compostos sobre asmr [histrias que se contam noite] e urft[fbulas]:

    Quem primeiro produziu fbulas, e as ps em livros, e guardou [tais livros] em bibliotecas, ecomps uma parte disso na linguagem de animais, foram os persas; a seguir, aprofundaram-se nissoos reis anidas, terceira gerao dos reis persas. Depois, semelhantes fbulas se difundiram eampliaram na poca dos reis sassnidas, e ento os rabes as passaram para o seu idioma, e oseloquentes e disertos poliram-nas e ornamentaram-nas, elaborando, no mesmo sentido, fbulasequivalentes. O primeiro livro feito nesse sentido foi Hazr Afsn, que significa mil fbulas. O motivodisso foi que um de seus reis [dos persas], quando se casava com uma mulher e passava com elauma noite, matava-a no dia seguinte; ento, casou-se com uma jovem [jrya] filha de rei, chamadaahrzd, que tinha inteligncia e discernimento; logo que ficou com ele, ela comeou a tuarrifuhu[entret-lo contando fbulas]: quando a noite findava, ela interrompia a histria, fato que levava orei a preserv-la e a indag-la na noite seguinte sobre a continuao da histria, at que secompletaram mil noites, e ele, nesse perodo, dormiu com a jovem, que ento teve um filho dele,mostrou-lhe a criana e o inteirou de sua artimanha; assim, o rei passou a consider-la inteligente,tomou-se de simpatia por ela [mla ilayh] e lhe preservou a vida. O rei tinha uma aia [qahramna]chamada Dnrzd, que a apoiava em sua artimanha [la]. Diz-se que esse livro foi elaborado paraumna, filha de Bahman, e tambm h notcias diferentes. E o correto, se Deus quiser, que oprimeiro a passar a noite entretido em colquios [asmr] foi Alexandre [da Macednia]: ele tinhaum grupo que o divertia e o entretinha contando histrias, com as quais ele buscava no o prazer,mas sim a proteo e a viglia. Depois dele, os reis utilizaram com essa finalidade o livro Hazr Afsn,composto de mil noites e menos de duzentas histrias, porque uma nica histria s vezes eranarrada em vrias noites. Em diversas oportunidades vi esse livro completo, e ele, na verdade, umlivro ruim, de narrativa frvola. Ab Abdillh Muammad Bin Abds Aljahiyr, autor do Livrodos vizires e dos escribas, comeou a escrever um livro para o qual escolhera mil dentre os asmr dosrabes, dos persas, dos gregos e de outros; cada parte [desse livro] seria independente, sem ligaouma com a outra. Ele reuniu os contadores de histrias noturnas [musmirn] e deles recolheu o quede melhor e mais belo conheciam; e escolheu, nos livros j elaborados, os asmr e as urft que lheagradaram. Era um homem de mrito, e reuniu quatrocentas e oitenta noites, cada noite compostade uma histria completa, [num livro] constitudo de pouco mais ou menos cinquenta folhas. Amorte, porm, colheu-o antes que realizasse o que seu esprito almejava, que era completar as milnoites. Isso eu vi em vrias partes, com a letra de Ab Aayyib, irmo de Afi. Antes disso,quem compunha asmr e urft na linguagem de seres humanos, aves e quadrpedes era um grupode pessoas entre as quais se contavam Abdullh Ibn Almuqaffa, Sahl Bin Hrn Bin Rhyn eAl Bin Dawd, escriba de Zubayda,[12] e outros cujas notcias e obras j demos no localapropriado deste livro. Existem divergncias quanto ao livro Kalla e Dimna; diz-se que foi feitopelos indianos, e a informao relativa a isso est no prprio livro; diz-se que foi feito pelos reisanidas e copiado pelos indianos; e diz-se que foi feito pelos persas e copiado pelos indianos. Eum grupo disse que quem o fez foi o sbio Buzurjumihr [vizir do rei sassnida Kosroes], em vrias

  • partes, mas Deus sabe mais. Quanto ao livro O sbio Sindabd, do qual h uma cpia longa e outracurta, tambm ocorrem divergncias iguais s do livro Kalla e Dimna. Mas o mais provvel eprximo da verdade que os indianos o tenham feito.[13]

    Ambos os textos, de Almasd e de Annadm, reportam um quadro geral que no correspondeexatamente ao que se conhece hoje do Livro das mil e uma noites. Em Almasd, a meno rarefeita, limitando-se a informar que tal livro d a notcia do rei, do vizir, de sua filha e de suaserva, cujos nomes so razd e Dnzd, sem delinear como se davam as relaes entre essespersonagens.[14] Introduzindo o Livro das mil e uma noites no conjunto das obras que contmurft, fbulas, Almasd o mobiliza contra o que se pode chamar de elaborao ficcional, ou, paraser mais preciso, contra os homens que a utilizavam para se aproximar do poder, ou ainda, indomais longe, contra o prprio poder que legitima tais elaboraes pelo simples fato de aceit-las semmaior discernimento e aproximar os responsveis por elas. Como cronista e historiador, isto ,letrado que organiza narrativas a respeito de eventos pretritos, Almasd sabia muito bem eaproveitava esse princpio em suas obras, imitando outros historiadores por ele admirados, comoAabar (morto em 310 H./923 d.C.) que os relatos histricos so comumente constitudos deverses, muitas vezes discrepantes entre si, transmitidas ao historiador por quem participou doevento ou o presenciou, ou ainda ouviu sobre ele relatos de terceiros. Um dos recursos dessaprtica, fundamental na recolha dos relatos dos ades do profeta Maom, era o isnd, que consistiano encadeamento de testemunhos que efetuam uma regresso temporal linear ouvi de fulano,que ouviu de beltrano, que ouviu de sicrano, que ouviu de alano etc.. Eventualmente, oshistoriadores muulmanos utilizam, alm do princpio de regresso temporal, o da dispersogeogrfica, obedecendo a estrutura de formulao semelhante: ouvi de fulano, que esteve em tallugar etc.. Ao lado disso, outro recurso, mais comum nas obras de adab [decoro], a citao defonte escrita precedida da frmula li [ou fulano disse ter lido] em certo livro da Prsia [ou dandia, ou da Grcia] etc.. Esses procedimentos pressupem variedade e contradio, pois fazemconviver numa mesma obra, em geral sucedendo-os da frmula Allhu alam [Deus sabe mais],diferentes relatos sobre um nico evento histrico. Assim, o decoro de gnero desse historiador estmenos na matria narrada constante dos vrios relatos a respeito de determinado evento e mais emsua prpria consistncia e encadeamento, conforme se comprova na introduo de sua obra: Oque me levou a elaborar este meu livro, a respeito da histria e das notcias do mundo, do que sepassou sob o abrigo [aknf ] do tempo, das notcias e conduta de profetas e reis e das naes e suasmoradas, foi o desejo de imitar o proceder almejado pelos sbios e perseguido pelos doutos, a fimde que [este livro] permanea como uma memria louvvel no mundo, e um saber bem composto earrumado.[15] De maneira diversa, as fbulas [urft] pertenciam a outro gnero, estando, porconseguinte, submetidas a outro decoro, tal como se d com o livro de Farzah e Sms e [...] o livrode Sindabd.

    A ttulo de comparao, pense-se na histria da construo de Alexandria no texto de Almasd: segundo ele, monstros marinhos destruam noite o que os trabalhadores construam duranteo dia, o que obrigou Alexandre a descer ao mar numa espcie de caixo com tampa de vidro,acompanhado de dois de seus homens; foi ento que ele constatou que se tratava de demnios comcorpo humano e cabea de feras, munidos de machados, serrotes e bastes, imitando os artfices etrabalhadores que construam a cidade. Alexandre e seus auxiliares fizeram desenhos dos tais

  • demnios, retornaram superfcie e mandaram construir esttuas semelhantes queles animais,colocando-as na praia. Quando anoiteceu, os demnios vieram destruir as fundaes da cidade,mas toparam com as esttuas, assustaram-se e nunca mais voltaram. E Alexandria pde afinal serconstruda.[16] Almasd incorpora sua obra essa narrativa sobre a histria de Alexandria semlhe fazer restrio alguma, pois a grandiosidade do feito narrado a introduz previamente no gnerohistrico, ao contrrio das urft, fbulas, como o relato sobre a cidade de Iram flt Alimd ou olivro O sbio Sindabd. Diferena de gnero que tambm, hierarquicamente, de estatuto: a histria superior fbula.

    Bem mais pormenorizado do que o de Almasd, o resumo que Annadm oferece do prlogo-moldura do livro permite afirmar desde logo que, apesar das analogias, o Hazr Afsn aludido peloCatlogo tem pouco que ver com o(s) livro(s) hoje conhecido(s) como Mil e uma noites. Podem-se fazer reparos, entre outros, aos seguintes dados do enredo: ali, o rei no tem nome; ahrzd jrya de reis, e no filha de um vizir; Dnrzd aia do rei, e no irm de ahrzd; no se declina omotivo pelo qual o rei matava mulheres; no se faz aluso ao irmo do rei nem ao nome desteltimo; no se cita em que circunstncias se deu o casamento entre o rei e a jovem. O maisimportante, entretanto, que no se menciona nenhuma das histrias com as quais ahrzdentretm o rei. E, do ponto de vista estritamente gramatical, a afirmao de que os eloquentes edisertos poliram tais histrias no est de acordo com o que se conhece do ramo srio do livro, cujaredao transgride as regras do rabe clssico e lana mo do dialetal, assunto sobre o qual sediscorrer adiante com mais pormenores. Situando o Livro das mil e uma noites num captulodedicado a contadores noturnos de histrias, o Catlogo acaba por esboar, antes de tudo,algumas caractersticas de um gnero disseminado na cultura da poca e tipificado por meio decategorias narrativas chamadas de urft, fbulas, asmr, narrativas noturnas, e abr, crnicas,notcias ou, conforme prope Nabia Abbott, relatos quase histricos. De maneira bem decorosa,Ibn Annadm vai defendendo os diferentes gneros que aborda; para os asmr e as urft, nada maisnobilitante que o apreo de Alexandre Magno.

    O mesmo Annadm refere uma proliferao de textos dessa natureza: As histrias noturnas efbulas eram muito apreciadas e consideradas suculentas na poca dos califas abssidas, em especialna poca de Almuqtadir [295 H./908 d.C. 320 H./932 d.C]. Ento os livreiros passaram a fazerobras e a mentir. Entre os que praticavam tais artifcios estava um homem conhecido como BinDalln e chamado Amad Bin Muammad Bin Dalln, e um outro conhecido como Ibn Alar, eum grupo.[17] Entretanto, malgrado essa irrecorrvel disseminao, sucedia por vezes que algumletrado reproduzisse juzos desdenhosos sobre esse gnero de narrativa, como no seguinte passo emque o historiador Ab Bakr Muammad Bin Yay Al, morto em 335 H./946 d.C., explica orancor que o califa Arr (297 H./910 d.C.329 H./940 d.C.) nutria pela av:

    Lembro-me de que certo dia, quando ainda era governador, ele [Arr] recitava para mim umtrecho de poesia de Bar [Ibn Burd, poeta do sculo ii H./viii d.C.], tendo diante de si livros degramtica e de crnicas, quando chegaram alguns funcionrios da senhora sua av e levaram todosos livros que se encontravam diante dele, colocando-os numa trouxa que traziam consigo; no nosdirigiram palavra alguma e saram. Notando que ele ficara soturno e irritado com aquilo, deixei-oem paz e lhe disse: O prncipe no os deve condenar, pois algum lhes disse que o prncipe l livrosque no devem ser lidos, e eles resolveram ento examin-los. Isso me deixou feliz, pois eles vero

  • somente coisas belas e agradveis. Passaram-se algumas horas e eles devolveram todos os livros.Arr disse ento aos funcionrios: Digam a quem lhes deu tal ordem que vocs j examinaram oslivros, e que eles so de ad [nesse caso, dilogos do Profeta], fiqh [jurisprudncia], poesia,gramtica e histria; so livros de sbios, pessoas a quem Deus concedeu a perfeio e o benefciopor terem lido livros semelhantes; no se trata da mesma categoria de livros [em cuja leitura] vocsabundam, como o caso do [livro das] maravilhas do mar, [do livro da] histria de andiyr[18] e[do livro do] gato e do rato.[19]

    Note-se que a passagem pressupe a superioridade de diversos gneros sobre a urfa, imprpriapara quem pretenda estar habilitado ao exerccio do poder. Tal pressuposto, porm, fruto daprpria hierarquizao, que a coloca num nvel inferior, no consistindo em uma negao pura esimples. O exerccio do poder afirmava o uso do intelecto que para tanto deve ser exercitado pormeio de obras adequadas, tais como as de ad proftico, jurisprudncia, poesia, gramtica ehistria e advogava, conforme os tratados da poca sobre o decoro dos reis, no o desprezo dossentidos, mas seu controle, que o contnuo comprazimento em fbulas poderia afetar.

    O trao distintivo da primeira elaborao das Mil [e uma] noites estaria, de um lado, napredominncia de uma narradora feminina por todo o livro, e, de outro, na encenao do atonarrativo no perodo noturno, em uma espcie de emulao das prprias categorias narrativas que aconstituam, os asmr, que so, como se viu, histrias para se contar noite.[20] Isso se aliava ironia de serem contadas a um rei, o qual, segundo formulaes como a de Al, no deveria, apriori, dedicar-se a elas enquanto detentor do poder, a menos, caso se lembre a viglia deAlexandre, que a audio no se constitusse em uma finalidade sem utilidade, vertigem secreta dogozo.

    No mais, essa primeira elaborao devia apresentar semelhanas acentuadas com outrasnarrativas classificadas no mesmo gnero: um quadro inicial, ou prlogo-moldura, em que se contaa histria das histrias, ou seja, os motivos por que as conversaes nele contidas foramentabuladas ou compostas, como notrio no livro O sbio Sindabd, cujo prlogo-moldura relata osmotivos em virtude dos quais sete vizires se revezam para contar histrias a um rei, a fim dedissuadi-lo de matar injustamente seu filho nico, entremeadas pelas histrias da mulher do rei,que pretende, ao contrrio, induzi-lo a matar o filho, e mesmo no livro Kalla e Dimna, cujassucessivas redaes em rabe foram, de modo aparentemente paulatino, introduzindo explicaessobre as origens do livro, at que enfim se produziu um tardio prlogo-moldura no qual sehistoriam os motivos que levaram o personagem-narrador, o filsofo Baydab, elaborao dolivro. Esses personagens, propostos quer como autores, quer como narradores, so sempre, por suavez, objeto da narrao de uma voz impessoal que os instaura enquanto tais, no apenas noprlogo-moldura, mas tambm imediatamente antes de suas prprias narrativas: a voz que lhes dvoz dizendo disse o primeiro (ou o segundo, ou o terceiro etc.) vizir, em Sindabd, disse o filsofoBaydab, em Kalla e Dimna, disse ahrzd, no Livro das mil e uma noites.

    Tanto O sbio Sindabd como Kalla e Dimna decerto tambm tinham em comum com essaprimeira elaborao das Mil [e uma] noites o uso do que em rabe se chama maal, vocbulotraduzvel como paradigma ou, ainda, histria-exemplar. A trajetria do vocbulo maal nacultura rabe complexa: primeiramente, equivalia a provrbio, em geral uma sentena curta eincisiva. J no livro Kalla e Dimna verifica-se uma duplicidade de uso: a palavra serve seja para

  • designar as sentenas curtas, que funcionam simultaneamente como argumento, seja para asnarrativas ou fbulas propriamente ditas, que expandem o argumento e o ilustram, conformeobserva Bin Wahb Alktib, autor do sculo v H./xi d.C.: Quanto aos paradigmas [aml, plural demaal ] e s histrias [qia], os eruditos, os sbios e os letrados continuam a aplic-los e a demonstrarpara as pessoas a reviravolta das condies [inqilb alawl] por meio de comparaes [nair],similitudes [abh] e imagens [akl], pois consideram que essa modalidade de discurso [qawl]proporciona mais sucesso na busca do objetivo e um mtodo mais fcil [...]. Os sbios assimprocederam porque a notcia [ou crnica, abar], por si s, mesmo que seja possvel, necessita dealgo que indique a sua correo; o paradigma acompanha o [ou est associado ao] argumento[almaal maqrn bilijja], e por isso que os antigos registraram a maior parte de seus decoros eescreveram seus saberes em paradigmas e histrias sobre as diversas naes, e colocaram uma partedisso na linguagem de aves e feras.[21] Nessa perspectiva, os aml funcionam como alegoria quealoja o saber, depositando-o na linguagem de animais e oferecendo-o interpretao dos doutos eao deleite dos nscios. No entanto, conforme observa a crtica egpcia Olfat al-Rouby, seu sentido seexpandiu, passando a abranger a narrativa moralizante, a histria e a fbula [urfa] com objetivodidtico.[22] A histria exemplar utiliza comumente o maal em todas essas acepes, embora comele no se confunda, devendo antes ser considerada uma das funes que lhe foram atribudas.

    Podem ser consideradas histrias exemplares as que, baseando-se num sistema de metforas eanalogias que mantm uma relao de espelho com seu contexto de enunciao, tm a funo demover algum a praticar determinada ao ou ento demov-lo de pratic-la. As histriasexemplares so um discurso de autoridade e pretendem provar que a inobservncia de suasproposies resulta em prejuzo: se voc agir assim, ou se voc no agir assim, ir suceder-lhe omesmo que sucedeu a x. Eram largamente aplicadas (irib l maalan, aplique-me um paradigma, uma das tpicas que as introduz) no somente na cultura rabe-muulmana, mas em toda a culturaantiga e medieval, conforme o atesta a difuso universal de Kalla e Dimna e Sindabd. A existncia ea valorizao da histria exemplar pressupe, como parece bvio, um mundo em que a experincia pensada como algo que se comunica e cuja possibilidade de transmisso dada pela repetio: soestruturas semelhantes que se reproduzem incessantemente, sem que no entanto possam serreduzidas, em seu funcionamento no interior de determinado quadro narrativo mais amplo, a umprocesso previsvel e automtico, visto que a prpria dinmica interna da narrativa determina oresultado das sucessivas histrias exemplares que se vo sucedendo. Assim, por exemplo, no livro Osbio Sindabd as histrias exemplares dos vizires sempre atingem a sua meta, ao passo que as damulher do rei sempre fracassam, pois a finalidade precpua das primeiras, ao contrrio dassegundas, salvar a vida do personagem que justifica a sua existncia; j em Kalla e Dimna, demodo diverso, as histrias exemplares podem ou no atingir a sua meta sem que exista umapredeterminao formal, embora, quando no a atingem, sempre provoquem rplicas econtestaes, que afinal consistem num claro ndice de valorizao.

    As urft, fbulas, e asmr, histrias para se contar noite que circularam entre rabes emuulmanos, e entre as quais se incluam as constantes do Hazr Afsn persa e mais tarde daprimitiva elaborao do Livro das mil [e uma] noites , certamente obedecem a uma dupla funo,que as fez oscilar na avaliao dos letrados: de um lado, so fbulas que entretm, sobretudo comsentido ornamental; de outro, podem tambm ser histrias exemplares e paradigmas que

  • transmitem experincia acumulada e, consequentemente, saber, o que as subtrai ao desprezo. Issofica visvel na obra Alimt wa Almunasa [Deleitamento e afabilidade], escrita em 374 H./984 d.C.pelo letrado bagdali Ab ayyn Attawd, cujo critrio de apropriao mobiliza a terminologiafilosfica para conceituar tais narrativas:

    Quando lhe perguntaram: Voc se aborrece com histrias?, lid Bin afwn respondeu: Oque aborrece so as velharias,[23] pois as histrias so amadas pelos sentidos com o auxlio dointelecto, e por isso que os meninos e as mulheres as apreciam. Perguntou-se: E qual auxlio esses[os meninos e as mulheres] podem receber do intelecto, se so dele desprovidos?. Respondeu:Existe um intelecto em potncia e um intelecto em ato; eles possuem um deles, que o intelectoem potncia; existe ainda, j pronto [muzmi], um intelecto intermedirio entre a potncia e o ato, oqual, quando se manifesta, passa a ser em ato; caso esse intelecto permanea, alcanar oshorizontes. Por causa da imensa necessidade que se tem de tais histrias, nelas foram postas coisasfalsas, misturadas a absurdos e relacionadas ao que agrada e causa o riso, mas no provocaquestionamentos nem investigaes, a exemplo do livro Hazr Afsna e todas as espcies de urft[fbulas] que entraram em livros dessa espcie; os sentidos, imediatos, so sedentos de incidentes[di], novidades [muda] e histrias [ad], e buscam o que curioso.[24]

    Assim, em linha aristotlica,[25] a passagem tem como implcito que tais histrias, feitas paradeleitar os sentidos em especial, podem igualmente beneficiar o intelecto. possvel arriscar ahiptese de que essa concepo toma as ocorrncias relatadas nas fbulas como particularidadeligada aos sentidos, enquanto as sentenas ali contidas, essas sim universais, so ligadas ao intelecto,donde a eventual utilidade da mistura, j que impossvel subtrair-se s injunes e exigncias dossentidos, dada a imensa necessidade que se tem de tais histrias. sem dvida dessainevitabilidade que derivam os contnuos esforos dos letrados para produzir obras que agrupemhistrias e sejam proveitosas. Esse fenmeno, bastante disseminado no perodo, acabou conduzindoa outros modos de apropriao, tal como o verificado na supracitada obra de Ab ayn Attawd,que retoma o gnero exemplificado por Hazr Afsn tal como o descrevem Almasd e Annadm. Olivro Alimt wa Almunasa [Deleitamento e afabilidade] est dividido em noites e possui umaintroduo (prlogo-moldura) curiosa, na qual o autor relata que, tendo sido apresentado por umamigo a um vizir, frequentou as assembleias noturnas deste ltimo por quarenta noites, findas asquais, a instncias desse mesmo amigo, Ab ayn Attawd teria ento redigido a obra; assim,aps a introduo, segue-se o registro das palestras travadas durante aquele perodo entre ele,outros convivas letrados e o vizir, que chegou a lhe propor um emprego melhor. Essas quarentanoites, alis, servem como princpio de diviso formal do texto, tal como ocorre no Livro das mil euma noites.

    A elaborao do Livro das mil e uma noites na poca do Estado mameluco, forma mais antigaque chegou inteira aos dias de hoje, tambm resultado de um processo de fuso de gneros. Almdas urft e dos asmr propriamente ditos, motivados na estrutura peculiar antes descrita, queencena o ato narrativo de histrias noturnas no perodo noturno mesmo, o texto adapta narrativasdo gnero histrico, como o caso da histria do barbeiro, e de outro gnero, o faraj bada aidda,libertao depois da dificuldade, cujas caractersticas so resumidas pelo nome. Pertenciam a elehistrias como as dos irmos do barbeiro ou do jovem de Bagd e a criada da senhora Zubayda.Composto entre a segunda metade do sculo viii H./xiii d.C. e a primeira do sculo viii H./xiv

  • d.C., o Livro das mil e uma noites contemporneo de acontecimentos que os historiadores julgamdevastadores para o mundo rabe e islmico, autnticas lies para quem reflete, conforme umatpica clebre em narrativas moralizantes da poca: as invases monglicas, que culminaram, em656 H./1258 d.C., na destruio de Bagd e na extino do califado abssida.[26] A estritacontemporaneidade de ambos os eventos, irrupo dos mongis e elaborao do Livro das mil euma noites, realada pela tpica da destruio por invaso: Por Deus que sairei sem rumo pelomundo, nem que eu v parar em Bagd, diz um personagem na septuagsima segunda noite, eento recebe o seguinte conselho: No faa isso, meu filho. O pas est em runas, e eu temo porsua vida. No se trata aqui, como bvio, de realismo ou algo que o valha, mas to somente deuma tpica, cujo laconismo programtico tem grande eloquncia, pois permite datar com seguranao texto como posterior a 655 H./1258 d.C. Como o manuscrito mais antigo do ramo srio, mais bempreservado do que o egpcio, do sculo viii H./xiv d.C., fcil constatar que a obra contempornea dos primrdios da invaso mongol, cujo efeito imediato, alm da destruio, foi odesmonte das estruturas do Estado abssida.

    As narrativas da elaborao mameluca do Livro das mil e uma noites pertencem ao gnero daurfa, fbula, mas operam uma modificao em seu funcionamento tradicional. Encenam acircunstncia de sua produo e enunciao na periferia de um imprio poderoso, cujo iminentecolapso alegorizado pelo adultrio das rainhas e o subsequente extermnio das mulheres do reinopor ordem do rei ensandecido.[27] Introduzem uma narradora feminina caracterizada por seusatributos espirituais, e no fsicos. ahrzd descrita apenas pelo intelecto: [...] tinha lido livros decompilaes, de sabedoria e de medicina; decorara poesias e consultara as crnicas histricas;conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sbios e dos reis; conhecedora dascoisas, inteligente, sbia e cultivada, tinha lido e entendido. tal personagem que ir se encarregarde devolver o rei sensatez e boa senda. Smula de saberes, suas leituras abarcam vrios gneros,menos aquele do qual lanar mo, o da urfa, fbula, ao qual ahrzd adapta os outros.Adaptando-os, opera como que uma inverso hierrquica, ou ao menos deslocamento, proporoque subordina os demais gneros fbula.[28] Obedecendo a um plano preestabelecido quetambm opera deslocamentos na escala hierrquica do funcionamento da fbula, o Livro das mil euma noites prioriza a narrativa aparentemente despojada de valor didtico-moralizante e evidencia,por meio de ahrzd e de sua fala, um menosprezo tambm aparente pela histria exemplar e peloparadigma. Quando seu pai, o vizir, lhe conta duas histrias exemplares, uma atrs da outra, a fimde demov-la de seu projeto de casar-se com o rei, ahrzd lhe responde, primeiro comindiferena: absolutamente imperioso que eu v at esse sulto e que voc me d em casamentoa ele; e depois ameaadora: Por Deus que no voltarei atrs. Essas histrias que voc contou nome faro hesitar quanto minha inteno. E, se eu quisesse, poderia contar muitas histriassemelhantes a essas. Mas, em resumo, tenho a dizer o seguinte: se voc no me conduzir ao reihriyr de livre e espontnea vontade, eu entrarei no palcio escondida das suas vistas e direi aorei que voc no permitiu que algum como eu se casasse com ele, mostrando-se avaro com seumestre. ahrzd no apresenta rplica alguma s histrias do pai, num procedimento suspensivoou deceptivo que ser reproduzido por seus personagens,[29] com exceo da histria do reiYnn e do mdico Dbn, na qual a histria exemplar contada pelo vizir invejoso funciona.Contudo, a circunstncia em que isso ocorre irnica, tanto pela histria exemplar ali contada

  • como pelo fato de que ela provoca a morte de um inocente, conforme nota Muhsin Mahdi.Nas fbulas que conta ao rei sassnida, ahrzd lana mo do suspense, funde tempos

    distantes, transgredindo a mais elementar verossimilhana histrica, faz mulheres ciumentasenfeitiarem homens desprevenidos, enfileira gnios malignos e ingnuos que refratam o destinoimplacvel, produz rainhas-bruxas e reis metamorfoseados fora do espao temporal da civilizaomuulmana, para depois constituir uma Bagd com a qual hriyr jamais poderia ter sonhado,fundada pelos adeptos de uma f que foi o pesadelo e o fim de sua dinastia. Mas em tudo quantoela diz, em suma, j no se trata de mover ou demover dizendo faa (ou no faa) isso que lheacontecer x, mas sim de mover ou demover dizendo ou deixando subentendido: faa (ou nofaa) isso se voc gostar do que lhe direi. Em ambos os casos h troca, mas no primeiro a narrativase prope como algo a mais do que , ao passo que no segundo ela se prope como narrativa pura esimples que se oferece a juzos arbitrrios e caprichos de opinio. Para usar uma comparaocomercial, pertinente em um texto repleto de mercadores, compra-se o tecido porque belo, e noporque seja bom material para fazer roupas. Trata-se, alis, de procedimento que imita e amplia ocaso longnquo do personagem urfa, reproduzido pelo prprio Profeta.[30] Rechaando a tpicada comunicao da experincia, o Livro das mil e uma noites parece estar propondo uma outratpica, derivada de uma concepo diversa da histria exemplar e das relaes que esta pressupe:engenho que apodrece a constituio da experincia alheia como instrumento de aprendizado.Uma de suas encenaes mais recorrentes salvar vidas, e para tanto se narram fbulas recheadasde traio, perfdia, cime, crimes diversos, injustia etc., cujos personagens esto sempre com avida por um fio, em geral numa Bagd figurada como antro de crueldade, de esperanas frustradase concupiscncia, alegorias da runa de um devir que ontem mesmo foi frustrado. Centroimportador e exportador de seres, mercadorias e narrativas, suas mulheres j no praticam afeitiaria, que se d em tempos e espaos exteriores a ele, mas traem, provocam desejo, matam,exploram, so retalhadas em postas que o rio Tigre recebe, sangram at a morte em relaes decime doentio, se oferecem cheirosas e ofegantes em encontros furtivos e se prostituem como iscaativa em arapucas do crime, enquanto seus homens desejam, cobiam e se deixam mutilar,incessantes como o movimento de seus mercados: mercadorias se compram, se vendem e seroubam na medida em que homens e mulheres explodem na impacincia do gozo iminente:Rpido, um beijo, minha senhora!; Voc j vai alcanar seu intento; Que tal possuir umamulher de face formosa?. Elogio da fbula, agenciamento de prazeres e desditas, proliferao denarradores (ahrzd disse que y disse que z disse que x disse...), o texto mileumanoitesco gememais e melhor do que quaisquer amantes ou moribundos jamais o fariam.

    O que deve ficar claro, desde j, que o Livro das mil e uma noites no literatura oral, aomenos no na medida em que oralidade vulgarmente pensada como atributo de espontaneidadeou alegre caos impensado, mas em todo caso profundo porque proveniente de uma seiva popularetc. etc.[31] Trata-se de um trabalho letrado cujo percurso foi da elaborao escrita apropriaopela esfera da oralidade, e no o contrrio. Ou seja: no so lendas ou fbulas orais que algum umdia resolveu compilar, mas sim histrias elaboradas por algum, por escrito, a partir de fontesdiversas (das quais algumas por acaso poderiam ser orais, embora no exista nenhuma evidnciadisso) que foram sofrendo, de maneira crescente, a apropriao dos narradores de rua, os quaisencontraram nelas um excelente material de trabalho.[32] A performance dos narradores dehistrias decerto no se limitava narrao mecnica: eles cantavam os versos, afinavam a voz

  • quando reproduziam a fala de personagens femininas, imitavam dialetos e encenavam; pode-semesmo imagin-los atirando-se ao cho e revirando-se, por exemplo, quando descreviam cenassexuais ou lutas.

    Conforme se afirmou acima, essa reelaborao mameluca do Livro das mil e uma noites dividida em dois ramos, o srio e o egpcio antigo. Por algum motivo do qual os registros histricosno guardaram memria, o ramo srio preserva melhor as caractersticas do que Muhsin Mahdichama de arqutipo [dustr] do livro. Desse ramo existem quatro manuscritos, dos quais o melhor emais antigo, remontando ao sculo viii H./xiv d.C., o Arabe 3609-3611, em trs volumes, daBiblioteca Nacional de Paris. Pertenceu a Jean-Antoine Galland, primeiro tradutor e na opiniode alguns o pior do Livro das mil e uma noites. Os outros trs manuscritos so o Arabo 872, daBiblioteca Apostlica Vaticana (sculo ix H./xv d.C.), o Arabic 647, da John Rylands Library, emManchester (sculo xviii d.C.), e o Arabic 6299, do India Office Library (sculo xix d.C.), emLondres. Com exceo do ltimo, que foi transcrito do anterior, os outros trs no guardamnenhuma relao genealgica entre si. Todos contm duzentas e oitenta e duas noites e seencerram abruptamente no mesmo ponto, passadas onze noites da Histria do rei Qamaruzzamne seus filhos Amjad e Asad. Como no se trata de coincidncia fortuita, possvel falar de umainterrupo da elaborao por motivos ignorados. Os manuscritos do ramo egpcio antigo noajudam a esclarecer a questo, pois suas cpias so tardias (a mais antiga do sculo xvii) evisivelmente remanejaram o texto primitivo. Sem contar o prlogo-moldura em que se apresentamhriyr, hzamn, ahrzd e Dnrzd, o ramo srio contm dez histrias principais: O mercadore o gnio, O pescador e o gnio, O carregador e as trs moas de Bagd, As trs mas, Osvizires Nruddn Al, do Cairo, e Badruddn asan, de Barsa, O corcunda do rei da China,Nruddn Bin Bakkr e a serva amsunnahr, A serva Ansuljals e Nruddn Bin qn,Jullanr, a martima, e seu filho, o rei Badr, e O rei Qamaruzzamn e seus filhos Amjad e Asad, sendo que esta ltima, como j foi dito, se encontra interrompida logo em seu incio. Alinguagem em que o manuscrito est redigido, sem ser estritamente dialetal, est repleta dedialetalismos. Para Muhsin Mahdi, trata-se de uma fuso entre o clssico e o dialeto urbano daSria, e seria um correlato de subgneros poticos como o zajal, no qual, conforme seusproponentes, o acerto (gramatical) erro, e o erro, acerto.[33]

    Foi somente no que se chama de ramo egpcio tardio, elaborado na segunda metade do sculoxii H./xviii d.C., que o ttulo do Livro das mil e uma noites passou a equivaler, de fato, ao nmerode noites que continha. Nesse perodo, no s as histrias introduzidas para completar o livromuitas vezes apresentavam caractersticas distintas de seu ncleo original, como mesmo este ltimoteve suas caractersticas formais e de contedo modificadas: as histrias mais antigas foramresumidas e agrupadas em um nmero bem menor de noites. O corpus do ramo egpcio tardioseria, de acordo com avaliao de especialistas, fruto da iniciativa isolada de um copista do Cairo,que teria reunido materiais dispersos conforme critrios prprios e dado obra o seu conhecidoremate. Estes so assuntos que sero tratados a seu tempo.So cinco as principais edies rabes do Livro das mil e uma noites:a) Primeira edio de Calcut:Dada estampa em dois volumes, publicados, respectivamente, em 1814 e 1818; baseia-se no jcitado manuscrito Arabic 6299, do India Office Library, em Londres. Trata-se de uma edio de

  • escasso valor crtico-filolgico, uma vez que o manuscrito no qual se baseou e o qual, durante oprocesso de impresso, adulterou ainda pode ser consultado. Foi objeto de curiosas apropriaes,nitidamente associadas ao imperialismo britnico; na introduo, escrita em persa, o editor AmadBin Mamd irwn Alyamn, professor de rabe na Faculdade de Fort William, recomendava olivro a quem quisesse aprender a falar como os rabes:

    No segredo que o autor das Mil e uma noites um indivduo de lngua rabe da Sria. Seuobjetivo, com a elaborao deste livro, foi que o lesse quem pretenda conversar em rabe: com talleitura, ele ganhar grande fluncia ao conversar nesse idioma. Por isso, foi escrito com vocabulriosimples, que como os rabes conversam, utilizando-se ainda, em alguns pontos, expressesincorretas, conforme a fala rabe coloquial. Assim, aquele que o folhear, e encontrar expressesincorretas, no deve imaginar que isso se deva desateno do responsvel; tais incorrees foramali registradas de propsito, pois foi isso mesmo que o autor pretendeu.[34]

    Rarssima, essa edio somente pode ser consultada em (poucas) bibliotecas. Seu mrito, nico, o da primazia.b) Edio de Breslau:Publicada nessa cidade alem entre 1825 e 1843, em doze volumes, os oito primeiros porMaximilian Habicht e os quatro ltimos por Heinrich Fleischer, a edio de Breslau apresenta apeculiaridade de ser a primeira completa, isto , composta de mil e uma noites. Originariamentefoi uma fraude, pois seu primeiro e principal responsvel, Maximilian Habicht, alegou estarreproduzindo um manuscrito tunisiano, que na realidade jamais existiu. Por outro lado,apresenta variantes que, conquanto no tenham maior valor filolgico, so de grande interesse paraa determinao dos acrscimos e das modificaes realizadas por Jean-Antoine Galland em suatraduo do incio do sculo xviii. Outro ponto de interesse, negligenciado pelos orientalistas, suacontribuio para a publicao de muitos contos rabes que, do contrrio, estariam at hojeconfinados em manuscrito. E, enfim, nunca demais observar que ela incorporou parte do corpusde manuscritos falsificados do Livro das mil e uma noites, como o caso, por exemplo, dochamado manuscrito de Bagd, forjado em finais do sculo xviii ou no incio do sculo xix. Foirepublicada em fac-smile no Cairo em 1998.c) Edio de Blq:Trata-se da primeira edio baseada em um nico manuscrito do ramo egpcio tardio ainda quefalho. Foi publicada em 1835, no Cairo, em dois volumes, pela grfica instalada por MuammadAl no bairro de Blq. Embora seja uma edio muito importante, deve-se levar em conta doisfatos: o manuscrito no qual se baseou, hoje perdido, apresentava numerosos defeitos, e, nobastasse isso, a edio em si mesma defeituosa, por falhas do revisor, que no atentou para asupresso de diversas pginas durante o processo de impresso. Por isso, sempre conveniente l-lacom apoio em algum manuscrito desse ramo: a nica maneira de saber o que falha de edio e oque problema nos originais utilizados. Por exemplo: o final da histria do mdico Dbn, nessaedio, apresenta problemas de concatenao lgica que no constam nem do ramo srio nem doramo egpcio antigo. Pareceria, primeira vista, uma falha de reviso, mas a consulta aosmanuscritos evidencia que tal defeito remonta aos prprios originais, e que, portanto, na raiz desseramo est um nico autor ou compilador, ou, no limite, um nico manuscrito compilado. Foirepublicada em fac-smile em Beirute em 1997. Apesar de todos esses senes, importantssima

  • para o estudo das transformaes operadas pelo ramo egpcio tardio no Livro das mil e uma noites.d) Segunda edio de Calcut:Frise-se que esta edio nada tem que ver com a primeira, excetuando-se a coincidncia quanto cidade em que foi impressa. Composta de quatro volumes publicados entre 1839 e 1842 porWilliam . Macnaghten, foi muito utilizada por crticos e tradutores do livro. Trata-se de umaedio curiosa, de pouco valor filolgico, que procurou incorporar ao livro tudo quanto caa diantedos olhos dos responsveis um administrador ingls e sua equipe de indianos muulmanos. Suabase, como a da edio de Blq, um manuscrito do ramo egpcio tardio. Est corrigida em vriospontos e chegou a ser utilizada para cotejo na segunda edio de Blq, publicada em 1872. Foirepublicada em fac-smile no Cairo entre 1996 e 1997, em oito volumes. Na presente traduo,toda remisso edio de Calcut refere-se a essa segunda edio, salvo indicao expressa emcontrrio.e) Edio de Leiden:Publicada em 1984, em dois volumes (o primeiro com o corpus e o segundo com o aparato crtico),, na verdade, uma edio crtica do ramo srio. O responsvel por essa edio, o crtico e fillogoMuhsin Mahdi, solucionou diversos problemas textuais intrincados; pelo rigor, sua edio dereferncia obrigatria para qualquer estudioso do assunto. Mahdi utilizou como base o manuscritomais antigo dessa obra, que pertenceu a Galland, e se serviu, para cotejo, dos supracitadosmanuscritos do ramo srio e dos infracitados do ramo egpcio antigo, bem como da edio de Blq.A edio de Mahdi evidencia, por exemplo, a importncia dos nveis de linguagem para averossimilhana da narrativa, como a imitao, por exemplo, da fala de personagens baixas.Fontes para a presente traduoFundamentalmente, esta traduo foi realizada a partir do conjunto de trs volumes do manuscritoArabe 3609-3611 da Biblioteca Nacional de Paris. Na avaliao de Muhsin Mahdi, ele foi copiadono mnimo um sculo antes da mais antiga datao nele constante, que de 859 H./1455 d.C.Como sua leitura bastante dificultosa em vrios trechos, devido a dialetalismos hoje obscuros,lacunas, erros de cpia e deteriorao, o tradutor consultou as edies de Breslau, Leiden, Blq e asegunda de Calcut, alm de duas edies recentes de Beirute (1981, 4 vol.; e 1999, 2 vol.).Registre-se que, nas notas, a meno genrica a edies impressas no inclui a primeira deCalcut nem a de Breslau, a no ser que haja referncia expressa em contrrio. Para suprimirlacunas do original e apontar variantes de interesse para a histria das modificaes operadas nolivro, utilizaram-se os seguintes manuscritos do ramo egpcio antigo: 1) Arabe 3615, da BibliotecaNacional de Paris, de finais do sculo xvii ou incios do xviii; 2) Gayangos 49, da Real Academiade la Historia, em Madri, do final do xviii ou incio do xix; 3) Bodl. Or. 550, da BodleianLibrary, de Oxford, datado de 1177 H./1764 d.C.; 4) Arabe 3612, da Biblioteca Nacional deParis, do sculo xvii, que pertenceu a Benot de Maillet (1636-1738), cnsul-geral da Frana noEgito entre 1692 e 1702. Todas as intervenes de relevo operadas sobre o texto do manuscritoprincipal foram apontadas nas notas, que tambm serviram para expor ao leitor o quoproblemtica, neste caso, a ideia de texto pronto e acabado. As notas explicam ainda aspectoslingusticos e histricos de cuja leitura ficam dispensados os leitores que no se interessam por taisassuntos. Houve-se por bem manter o nico dispositivo do texto para sua diviso formal earejamento, que a prpria sucesso das noites. Entretanto, como no se trata de uma traduo

  • fac-similar, considerou-se pertinente, tal como fizeram alguns proprietrios de manuscritos doLivro das mil e uma noites, apontar os locais em que se inicia cada histria ou sub-histria.

    Bosque de inquietantes sombras, a traduo da poesia merece ao menos uma observao banalporm curta: ela dificilmente conseguiu estar altura do original, no s pelas dificuldadesinerentes tarefa como tambm pelos problemas especficos at hoje no resolvidos de legibilidadecolocados por muitas das poesias nas Mil e uma noites. Falando concisamente, a poesia rabeantiga, com poucas excees, possui mtrica rigorosa (ainda que, muita vez por adotar algumgnero popular ou ento por problemas de cpia, tal mtrica no se verifique em diversaspoesias), monorrima e em geral apresenta versos de dois hemistquios grafados na mesma linhacom um espao entre ambos. Para resumir: esta traduo, alm de abrir mo da mtrica, sempre, eda rima na maioria das ocasies, optou por trazer os hemistquios separados por linha.

    A presente traduo do Livro das mil e uma noites, a primeira em portugus feita diretamentesobre os originais rabes, est projetada em cinco volumes: os dois primeiros contero o ramo srio,o restante da Histria do rei Qamaruzzamn e seus filhos Amjad e Asad e anexos com atraduo de algumas fontes e histrias que parecem ter constado do ramo egpcio antigo. J os trsltimos contero as histrias que fazem parte apenas do ramo egpcio tardio.

    Foi inestimvel o auxlio prestado por diversos calepinos, sem os quais o trabalho, obviamente,nem sequer poderia ser feito. Destarte, citem-se os seguintes: Lisn alarab, de Ibn Manr (Qum,1984, reimpresso de Beirute, 1955); Mu almu , de Burus Albustn (Beirute, 1985); Supplmentaux dictionnaires arabes, de R. Dozy (Beirute, 1991, reimpresso de Leiden, 1881); Diccionariorabe-espaol, de F. Corriente (Madri, 1977); e Almunjid, de L. Malf (Beirute, 1982). Emportugus, o socorro veio, entre outros, do Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, de A. Houaiss(Rio de Janeiro, 2002), do Dicionrio da lngua portuguesa, de A. de Morais Silva (Lisboa, 6a. ed.,1858) e do Dicionrio analgico da lngua portuguesa, de F. dos Santos Azevedo (Braslia, 1983),alm dos dicionrios de regncia verbal e nominal de F. Fernandes e C. P. Luft.A transliterao do rabeDurante o processo de produo do livro, tradutor e editora se viram diante de um pequenodilema: como transcrever os nomes rabes? Simplificar a transcrio facilitaria as coisas para o leitorou seria um desrespeito a ele? Sabe-se que o idioma rabe possui sons que no existem emportugus nem em qualquer outro idioma indo-europeu, como a farngea sonora ayn, somtipicamente semita. Se no existem, de que adianta utilizar um smbolo para graf-los? Fazdiferena, para o leitor no especialista, ler Al em vez de Ali? E h o problema das demaisconvenes, como o som do ch em portugus; em ingls, usa-se o sh. J as vogais longas, emborainexistentes em portugus, podem ser consideradas semelhantes s tnicas. O nome da narradora,como graf-lo? Chahrazad, Xahrazad, Shahrazad ou a forma correta, que ahrzd? Depois dealguma hesitao, estabeleceu-se que seria melhor evitar solues precrias e adotar a convenointernacional, que, alm de evitar os dgrafos, bastante til e operacional. Abaixo, as descries:1 As vogais longas se transcreveram , , . Podem ser pronunciadas como se fossem vogais

    tnicas;2 A gutural larngea (hamza) se transcreveu com um apstrofo fechado (). No foi marcada

  • quando em incio de palavra;3 A a breve final (alif maqra), se transcreveu ;4 Os chamados sons enfticos do rabe, , se transcreveram , , , . Sua

    pronncia semelhante a s, d, t, z, porm com maior nfase;5 A farngea aspirada se transcreveu . No h equivalente para esse som em portugus;6 A velar surda se transcreveu . Seu som semelhante ao do j espanhol ou do ch alemo;7 A velar sonora se transcreveu . Seu som semelhante ao do r parisiense em Paris;8 A interdental surda se transcreveu . Seu som semelhante ao do th na pronncia inglesa

    em think;9 A interdental sonora se transcreveu . Seu som semelhante ao do th na pronncia inglesa

    em the;10 A farngea sonora se transcreveu . No tem som semelhante em nenhuma lngua ocidental;11 A larngea surda se transcreveu h, e se pronuncia sempre como o h do ingls home;12 A uvular surda se transcreveu q. Seu som equivalente ao do k, porm com maior exploso;13 A palatal surda se transcreveu . Seu som equivalente ao do x ou ch do portugus, como

    nas palavras xarope e chapu;14 A palatal sonora se transcreveu j, e seu som semelhante ao do portugus;15 O s se pronuncia sempre como em sapo e massa, independentemente de sua posio na

    palavra;16 O artigo definido invarivel do rabe, al, foi grafado junto palavra que determina, sem

    separao por hfen; e, quando a palavra determinada pelo artigo comea com um fonema que

    assimila o l, optou-se por sua supresso, como em assayf (em lugar de alsayf);17 Para os nomes de cidades, utilizou-se a forma convencional em portugus quando esta existe,

    como o caso de Bagd (em lugar de Badd), Basra (em lugar de Albara), Mossul (em lugar

    de Almawil), Damasco (em lugar de Dimaq) etc. Caso contrrio, adotou-se a transcrio

    fontica;18 Desde que no contivessem Ab, pai de, ou Bin, filho de, os nomes prprios que formam

    sintagma de regncia mediado por artigo se transcreveram aglutinados. Assim, grafou-se

  • amsuddn, sol da f, em lugar de ams Addn; Nruddn, luz da f, em lugar de Nr

    Addn; Abdullh, servo de Deus, em lugar de Abd Allh; Qamaruzzamn, lua do tempo,

    em lugar de Qamar Azzamn etc.

    Finalmente, um detalhe que faz jus a esta derradeira observao: os personagens do livro, quaseque invariavelmente, dizem; eles no perguntam, no respondem, no afirmam, noexclamam; apenas dizem. J houve quem observasse que variar os verbos dicendi um recursovulgar, mas no presente caso tal variao se fez necessria, uma vez que os personagens soautnticas mquinas de dizer e a repetio ficaria demasiado montona.Mamede Mustafa JaroucheSo Paulo, 12 de setembro de 2004

  • Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiadorem quem est a minha f

    Louvores a Deus, soberano generoso, criador dos homens e da vida,[35] e que elevou os cus sempilares, e estendeu as terras e os vales, e das montanhas fez colunas; que de secos rochedos fez agua jorrar; e que aniquilou os povos de fiamd e d, e tambm os poderosos faras.[36]Reverencio o altssimo pela orientao com que nos agraciou, e louvo-lhe os mritosincomensurveis.

    E, agora, avisamos aos homens generosos e aos senhores gentis e honorveis que a elaboraodeste agradvel e saboroso livro tem por meta o benefcio de quem o l: suas histrias so plenas dedecoro, com significados agudos para os homens distintos; por meio delas, aprende-se a arte debem falar e o que sucedeu aos reis desde o incio dos tempos. Denominei-o de livro das mil e umanoites, que contm, igualmente, histrias excelentes, mediante as quais os ouvintes aprendero afisiognomonia:[37] no os enredar, pois, ardil algum. Este livro, enfim, tambm os levar aodeleite e felicidade nos momentos de amargura provocados pelas vicissitudes da fortuna,encobertas de sedutora perversidade. E Deus altssimo quem conduz ao acerto.

    Disse o autor :[38] conta-se mas Deus conhece mais o que j ausncia, e mais sbio quantoao que, nas crnicas dos povos, passou, se distanciou e desapareceu que havia em temposremotos, no reino sassnida,[39] nas pennsulas da ndia e da Indochina,[40] dois reis irmos, omaior chamado hriyr e o menor, hzamn.[41] O mais velho, hriyr, era um cavaleiropoderoso, um bravo campeo que no deixava apagar-se o fogo de sua vingana, a qual jamaistardava. Do pas, dominou as regies mais recnditas, e, dos sditos, os mais renitentes. E, depoisde assenhorear-se do pas e dos sditos, entronizou como sulto, no governo da terra deSamarcanda, seu irmo hzamn, que por l se estabeleceu, ao passo que ele prprio se estabeleciana ndia e na Indochina.

    Tal situao se prolongou por dez anos, ao cabo dos quais hriyr, saudoso do irmo, mandouatrs dele seu vizir[42] o qual tinha duas filhas, uma chamada ahrzd, e a outra, Dnrzd.[43]O rei determinou a esse vizir que fosse at hzamn e se apresentasse a ele. Assim, o vizir muniu-sedos apetrechos necessrios e viajou durante dias e noites at chegar a Samarcanda. hzamn saiupara receb-lo acompanhado de membros da corte, descavalgou, abraou-o e pediu-lhe notciasacerca do irmo mais velho, hriyr. O vizir informou-o de que seu irmo estava bem e que oenviara at ali a fim de conduzi-lo sua presena. hzamn, dispondo-se a atender o pedido doirmo, instalou o vizir nas cercanias da cidade, abasteceu-o das provises e do feno de quenecessitava, sacrificou algumas reses em sua homenagem e presenteou-o com joias e dinheiro,corcis e camelos, cumprindo assim com suas obrigaes de anfitrio. Durante dez dias, preparou-se para a viagem, e, deixando em seu lugar um oficial, arrumou as coisas e foi passar a noite com ovizir, junto ao qual permaneceu at bem tarde, quando ento retornou cidade, subindo ao palcioa fim de se despedir da esposa; ao entrar, porm, encontrou-a dormindo ao lado de um sujeito, umdos rapazes da cozinha: estavam abraados.[44] Ao v-los naquele estado, o mundo se escureceutodo em seus olhos e, balanando a cabea por alguns instantes, pensou: Isso e eu nem sequerviajei; estou ainda nos arredores da cidade. Como ser ento quando eu de fato tiver viajado atmeu irmo l na ndia? O que ocorrer ento depois disso? Pois , no mesmo possvel confiar

  • nas mulheres!. Depois, possudo por uma insupervel clera, disse: Deus do cu! Mesmo eusendo rei, o governante da terra de Samarcanda, me acontece isso? Minha mulher me trai! issoque se abateu sobre mim!. E como a clera crescesse ainda mais, desembainhou a espada, golpeouos dois o cozinheiro e a mulher e, arrastando ambos pelas pernas, atirou-os do alto do palcioao fundo da vala que o cercava. Em seguida, voltou at onde estava o vizir e determinou que aviagem fosse iniciada naquele momento.

    Tocaram-se os tambores e comeou-se a viagem. No corao do rei hzamn, contudo, ardiauma chama inapagvel e uma labareda inextinguvel por causa do que lhe fizera a esposa: comopudera tra-lo, trocando-o por um cozinheiro, alis simples ajudante na cozinha? Mas a viagemprosseguia clere: atravessando desertos e terras inspitas por dias e noites, chegaram afinal terrado rei hriyr, que saiu para receb-los. Logo que os viu, abraou o irmo, aproximou-o,dignificou-o e hospedou-o num palcio ao lado do seu: com efeito, o rei hriyr possua um amplojardim no qual construra dois imponentes, formosos e elegantes palcios, reservando um deles paraa hospedagem oficial e destinando o outro para sua prpria moradia e tambm para o harm.Hospedou, portanto, o irmo hzamn no palcio dos hspedes, e isso depois que os camareiros jo haviam lavado, limpado e mobiliado, abrindo-lhe as janelas que davam para o jardim.

    hzamn permanecia o dia inteiro com o irmo e em seguida subia ao referido palcio paradormir; mal raiava a manh, dirigia-se de novo para junto do irmo. Mas, mal se via a ss consigomesmo, punha-se a remoer os sofrimentos que o afligiam por causa da esposa, suspirava fundo,resignava-se melancolicamente e dizia: Mesmo eu sendo quem sou, aconteceu-me tamanhacatstrofe. Comeava ento a mortificar-se, amargurado, dizendo: O que me ocorreu no ocorreua mais ningum, e sua mente era invadida por obsesses. Diminuiu a alimentao, a palidez seacentuou e as preocupaes lhe transtornaram o aspecto. Todo seu ser comeou a dar para trs: ocorpo definhava e a cor se alterava.

    Disse o autor : notando que seu irmo, dia a dia, se debilitava a olhos vistos, definhando econsumindo-se, cor plida e fisionomia esqulida, o rei hriyr sups que isso se deveria ao fato deestar ele apartado de seu reino e de sua gente, dos quais se encontrava como que exilado; pensoupois: Esta terra no est agradando a meu irmo; por isso, vou preparar um bom presente para elee envi-lo de volta ao seu pas, e, pelo perodo de um ms, dedicou-se a lhe providenciar ospresentes; depois, mandou cham-lo e disse: Saiba, meu irmo, que eu pretendo correr com asgazelas: vou sair para caar por dez dias e, ao retornar, farei os arranjos para a sua viagem de volta.Que tal ir caar comigo?. Respondeu-lhe: Irmo, opresso trago o peito, e turvo o pensamento.Deixe-me e viaje voc, com a bno e a ajuda de Deus. Ao ouvir tais palavras, hriyr acreditouque, de fato, o irmo tinha o peito opresso por estar afastado de seu reino, e no quis for-lo anada; por conseguinte, deixou-o e viajou com membros da corte e os soldados; penetraram numaregio selvagem, onde demarcaram e cercaram o espao para caar e montar armadilhas.

    Disse o autor : quanto a hzamn, depois que o irmo saiu para a caada, ele ficou no palcio:olhando pela janela para a direo do jardim, observava pssaros e rvores e pensava na esposa e noque ela fizera contra ele; suspirou profundamente, o semblante dominado pela tristeza.

    Disse o narrador : enquanto ele, assim absorto em seus pensamentos e aflies, ora contemplavao cu, ora percorria o jardim com o olhar merencrio, eis que a porta secreta do palcio de seuirmo se abriu, dela saindo sua cunhada: entre vinte criadas, dez brancas e dez negras, ela se

  • requebrava[45] como uma gazela de olhos vivos. hzamn os via sem ser visto. Continuaramcaminhando at chegar ao sop do palcio onde estava hzamn, a quem no viram: todosimaginavam que viajara na expedio de caa junto com o irmo. Assentaram-se sob o palcio,arrancaram as roupas e eis que se transformaram em dez escravos negros e dez criadas, emboratodos vestissem roupas femininas: os dez agarraram as dez, enquanto a cunhada gritava: Masd! Masd!; ento um escravo negro pulou de cima de uma rvore ao cho e imediatamente achegou-se a ela; abriu-lhe as pernas, penetrou entre suas coxas e caiu por cima dela. Assim ficaram at omeio do dia: os dez sobre as dez e Masd montado na senhora. Quando se satisfizeram eterminaram o servio, foram todos se lavar; os dez escravos negros vestiram trajes femininos emisturaram-se s dez moas, tornando-se, aos olhos de quem os visse, um grupo de vinte criadas.Quanto a Masd, ele pulou o muro do jardim e arrepiou caminho. As vinte escravas, com asenhora no meio delas, caminharam at chegar porta secreta do palcio, pela qual entraram,trancando-a por dentro e indo cada qual cuidar de sua vida.

    Disse o copista: tudo o que ocorreu foi presenciado pelo rei hzamn.Disse o autor : ao ver o procedimento da esposa de seu irmo mais velho, e discernir sobre o que

    havia sido feito isto , tendo observado essa atroz calamidade, essa desgraa que ocorria ao irmodentro de seu prprio palcio: dez escravos em trajes femininos copulando, ali, com suasconcubinas e criadas, alm da cena da cunhada com o escravo Masd , enfim, ao ver tudo isso, ocorao de hzamn se libertou de aflies e transtornos, e ele pensou: Eis a nossa condio! Meuirmo o maior rei da terra, governante de vastas extenses, e isso despenca sobre ele em seuprprio reino, sobre sua esposa e concubinas: a desgraa est dentro de sua prpria casa!Comparado a isso, o que me ocorreu diminui de importncia, justo eu que imaginava ser a nicavtima dessa catstrofe; estou vendo, porm, que qualquer um pode ser atingido! Por Deus, aminha desgraa mais leve que a do meu irmo!. Depois, perplexo, ps-se a censurar a fortuna, decujas adversidades ningum est a salvo. Estava assim esquecido de suas angstias e entretido comsua desgraa quando lhe trouxeram o jantar, que ele devorou com apetite e gosto; tambm lhetrouxeram bebida, que ele bebeu com igual vontade. Dissiparam-se as mgoas que trazia nopensamento, e ele, tendo comido, bebido e se alegrado, disse: Depois de ter padecido sozinho emrazo dessa desgraa, agora me sinto bem. E durante dez dias comeu e bebeu.

    Ao retornar da caa, o irmo mais velho foi recebido por um hzamn alegre, que se disps aservi-lo com um sorriso no rosto. Estranhando aquilo, o rei hriyr disse: Por Deus, meu irmo,que senti saudades de voc durante a viagem! Eu queria mesmo que voc estivesse comigo.

    Disse o copista: hzamn agradeceu ao irmo e ficou conversando com ele at o crepsculo,quando ento lhes foi servido o jantar. Ambos comeram e beberam. hzamn bebeu comsofreguido.

    Disse o autor : e hzamn continuou pelos dias seguintes bebendo e comendo. Suaspreocupaes e obsesses se dissiparam, seu rosto ficou rosado, seu nimo se fortaleceu: elerecobrou as cores e engordou, retomando e at mesmo melhorando sua condio inicial. Emborapercebesse as mudanas que se operavam no irmo, o rei hriyr guardou aquilo no corao. Masum dia, estando a ss com ele, disse: Meu irmo hzamn, eu quero que voc me esclarea algoque trago c na mente, e me liberte do peso que carrego no corao. Vou lhe fazer uma perguntasobre um assunto e voc deve responder a verdade. Perguntou hzamn: E qual a dvida, meu

  • irmo?. Respondeu hriyr: Logo que chegou aqui e se hospedou comigo, notei que voc dia adia definhava a olhos vistos, at que seu rosto se alterou, sua cor se transformou e seu nimo sedebilitou. Como essa situao se prolongasse, julguei que semelhante acometimento se devia aofato de voc estar afastado dos seus parentes e do seu reino. Por isso, evitei indagar a respeito epassei a esconder as minhas preocupaes de voc, muito embora o visse definhar e se alterar maise mais. Porm, depois que eu viajei para a caa e regressei, vi que a sua situao se consertou e suacor se recobrou. Agora, eu gostaria muito que voc me informasse sobre isso e me dissesse qual foio motivo das alteraes que o atingiram aqui no incio e qual o motivo da recuperao de seu vio.E no esconda nada de mim.

    Disse o copista: ao ouvir as palavras do rei hriyr, hzamn manteve-se por alguns instantescabisbaixo e depois disse: rei, quanto ao motivo que consertou o meu estado, eu no possoinformar-lhe a respeito, e gostaria que voc me poupasse de mencion-lo. Muitssimo intrigadocom as palavras do irmo, que lhe atiaram chamas no corao, o rei hriyr disse: absolutamente imperioso que voc me informe sobre isso. Agora, no entanto, fale-me sobre oprimeiro motivo.

    Disse o autor : ento hzamn contou em pormenores o que lhe sucedera por parte da esposa nanoite da viagem. Disse: Enquanto eu estava aqui, rei dos tempos, nos constantes momentos emque pensava na calamidade que minha esposa fizera abater-se sobre mim, era atingido por aflies,obsesses e preocupaes. Meu estado ento se alterou, e esse foi o motivo. E se calou. Ao ouvir ahistria, o rei hriyr balanou a cabea, tomado de grande assombro por causa das perfdiasfemininas e, depois de ter rogado auxlio divino contra sua perversidade, disse: Por Deus, meuirmo, que voc agiu da melhor maneira matando sua mulher e o tal homem. Est justificado omotivo pelo qual voc foi atingido por preocupaes e obsesses, e por que seu estado se alterou.No presumo que isso que lhe sucedeu tenha sucedido a qualquer outro. Juro por Deus que, sefosse eu, no me bastaria matar menos de cem mulheres ou mil mulheres; no, eu ficaria louco esairia por a alucinado. Porm agora, graas a Deus, como as suas preocupaes e tristezas sedissiparam, deixe-me a par do motivo que desvaneceu as suas preocupaes e o fez recobrar a cor.Respondeu hzamn: rei, eu gostaria que, por Deus, voc me poupasse disso. Disse hriyr:Mas absolutamente imperioso. Disse hzamn: Eu temo que voc seja atingido porpreocupaes e obsesses bem mais graves do que as minhas. Disse hriyr: E como pode serisso, meu irmo? No, j no existe possibilidade de retorno: fao questo de ouvir a histria.

    Disse o autor : ento o irmo menor lhe relatou o que vira atravs da janela do palcio, e adesgraa que ocorria em seu palcio que dez escravos em trajes femininos dormiam entre suasconcubinas e mulheres durante a noite e o dia etc. etc., pois repetir agora toda a histria seria perdade tempo e ao ver a desgraa que se abateu sobre voc, as preocupaes por causa da minhaprpria desgraa se dissiparam, e eu disse de mim para mim: mesmo sendo meu irmo o maior reida terra, sucedeu-lhe tamanha desgraa dentro de sua casa. Foi assim que me libertei daspreocupaes e desapareceu aquilo que no peito eu carregava; reconfortei-me, comi e bebi. Eis omotivo de minha alegria e da recuperao de minha cor.

    Disse o autor : ao ouvir as palavras do irmo sobre o que estava ocorrendo em seu palcio, o reihriyr ficou terrivelmente encolerizado, a tal ponto que quase comeou a pingar sangue. Depoisdisse: Meu irmo, s acreditarei no que voc disse se eu vir com meus prprios olhos. E sua clera

  • aumentou. Ento hzamn lhe disse: Se voc precisa mesmo ver sua desgraa com seus prpriosolhos para acreditar em mim, ento arme uma nova expedio de caa; sairemos eu e voc com ossoldados, e quando estivermos acampados fora da cidade deixaremos nossos pavilhes, tendas esoldados como estiverem e retornaremos, eu e voc, secretamente cidade. Voc subir comigo ato palcio e poder ento ver tudo com seus prprios olhos.

    Disse o autor : o rei reconheceu que a proposta de seu irmo era correta. Ordenou aos soldadosque se preparassem para viajar e permaneceu com o irmo naquela noite. Quando Deus fezamanhecer o dia, os dois montaram em seus cavalos, os soldados tambm montaram e saram todosda cidade. Foram precedidos pelos camareiros, que carregaram as tendas at as encostas da cidadee ali montaram o pavilho real e seu vestbulo. E o sulto e seus soldados se instalaram. Aoanoitecer, o rei enviou uma mensagem ao seu secretrio-mor ordenando-lhe que ocupasse seulugar e que no deixasse nenhum dos soldados entrar na cidade durante trs dias, bem comooutras instrues relativas aos soldados.

    Ele e o irmo se disfararam e entraram na cidade durante a noite, subindo ao palcio no qualhzamn estava hospedado. Ali dormiram at a alvorada, quando ento se postaram na janela dopalcio e ficaram observando o jardim. Conversaram at que a luz do dia se irradiou e o sol raiou.Olharam para a porta secreta, que fora aberta e da qual saiu a esposa do rei hriyr, conforme ohbito, entre vinte jovens; caminharam sob as rvores at chegar ao sop do palcio em que ambosestavam, tiraram as roupas femininas, e eis que eram dez escravos que se lanaram sobre as dezjovens e as possuram. Quanto senhora, ela gritou: Masd! Masd!, e eis que um escravonegro pulou ligeiro de cima de uma rvore ao cho; encaminhou-se at ela e disse: O que voctem, sua arrombada?[46] Eu sou Saduddn Masd!.[47] Ento a mulher riu e se deitou de costas,e o escravo se lanou sobre ela e nela se satisfez, bem como os outros escravos nas escravas. Emseguida, os escravos levantaram-se, lavaram-se, vestiram os trajes femininos que estavam usando ese misturaram s moas, entrando todos no palcio e fechando a porta. Quanto a Masd, ele pulouo muro, caiu na estrada e tomou seu rumo.

    Disse o autor : em seguida, ambos desceram do palcio. Ao ver o que sua esposa e criadas lhefaziam, o sulto hriyr ficou transtornado e disse: Ningum est a salvo neste mundo. Issoocorre dentro de meu palcio, dentro de meu reino. Maldito mundo, maldita fortuna. Essa umaterrvel catstrofe. E, voltando-se para o irmo, disse: Voc me acompanha no que eu vou fazeragora?. O irmo respondeu: Sim. hriyr disse: Vamos abandonar nosso reino e perambularem amor a Deus altssimo. Vamos desaparecer daqui. Se por acaso encontrarmos algum cujadesgraa seja pior do que a nossa, voltaremos; caso contrrio, continuaremos vagando pelo mundo,sem necessidade alguma de poder. Disse hzamn: Esse um excelente parecer. Eu vouacompanhar voc.

  • O GNIO E A JOVEM SEQUESTRADADisse o copista: ato contnuo, ambos desceram pela porta secreta do palcio e, saindo por outrocaminho, puseram-se em viagem. E viajando continuaram at o anoitecer, quando ento dormiramabraados a suas aflies e dores. Mal amanheceu, retomaram a caminhada, logo chegando a umprado repleto de plantas e rvores na orla do mar salgado. Ali comearam a discutir sobre suasrespectivas desditas e o que lhes sucedera. Enquanto estavam nisso, eis que um grito, um bradoviolentssimo, saiu do meio do mar. Tremendo de medo, eles supuseram que os cus se fechavamsobre a terra. Ento o mar se fendeu, dele saindo uma coluna negra que no parava de crescer atque alcanou o topo do cu. Tamanho foi o medo dos dois irmos que eles fugiram e subiramnuma rvore gigante na qual se instalaram, ocultando-se entre as suas folhagens. Dali, espicharamo olhar para a coluna negra que, flanando pela gua, fazia o mar fender-se e avanava em direoquele prado verdejante. Assim que botou os ps na terra, ambos puderam v-lo bem: tratava-se deum ifrit[48] preto, que carregava cabea um grande ba de vidro com quatro cadeados de ao. Aosair do mar, o ifrit caminhou pelo prado e foi instalar-se justamente debaixo da rvore em que osdois reis estavam escondidos. Depois de se sentar debaixo da rvore, ele depositou o ba no solo,sacou quatro chaves com as quais abriu os cadeados e dali retirou uma mulher de compleioperfeita, bela jovem de membros gentis, um doce sorriso no rosto de lua cheia. Retirou-a do ba,colocou-a debaixo da rvore, contemplou-a e disse: senhora de todas as mulheres livres,[49] aquem sequestrei na noite de seu casamento, eu gostaria agora de dormir um pouco. Ato contnuo,o ifrit depositou a cabea no colo da jovem e estendeu as pernas, que chegaram at o mar. E,mergulhando no sono, ps-se a roncar. A jovem ergueu a cabea para a rvore e, voltandocasualmente o olhar, avistou os reis hriyr e hzamn. Ento ergueu a cabea do ifrit de seu colo,depositou-a no cho, levantou-se, foi at debaixo da rvore e sinalizou-lhes com as mos: Desamdevagarzinho at mim. Percebendo que haviam sido vistos, eles ficaram temerosos e suplicaram,humildes, em nome daquele que erguera os cus, que ela os poupasse de descer. A jovem disse: absolutamente imperioso que vocs desam at aqui. Eles lhe disseram por meio de sinais: Masisso a que est deitado inimigo do gnero humano. Por Deus, deixe-nos em paz. Ela disse: absolutamente imperioso que vocs desam. Se acaso no o fizerem, eu acordarei o ifrit e lhepedirei que os mate, e continuou fazendo-lhes sinais e insistindo at que eles desceram lentamenteda rvore, colocando-se afinal diante dela, que se deitou de costas, ergueu as pernas e disse:Vamos, comecem a copular e me satisfaam, seno eu vou acordar o ifrit para que ele mate vocs.Eles disseram: Pelo amor de Deus, minha senhora, no faa assim. Ns agora estamos com muitomedo desse ifrit, estamos apavorados. Poupe-nos disso. A jovem respondeu: absolutamenteimperioso, e insistiu e jurou: Por Deus que ergueu os cus, se vocs no fizerem o que estoumandando, eu acordarei meu marido ifrit e mandarei que mate vocs e os afunde nesse mar.[50]E tanto insistiu que eles no tiveram como divergir: ambos copularam com ela, primeiro o maisvelho, e em seguida o mais jovem. Quando terminaram e saram de cima dela, a jovem disse:Deem-me seus anis, e puxou, do meio de suas roupas, um pequeno saco. Abrindo-o, sacudiuseu contedo no cho, e dele saram noventa e oito anis de diferentes cores e modelos. Elaperguntou: Por acaso vocs sabem o que so estes anis?. Responderam: No. Ela disse: Todosos donos desses anis me possuram, e de cada um eu tomei o anel. E como vocs tambm mepossuram, deem-me seus anis para que eu os junte a estes outros e complete cem anis; assim,

  • cem homens tero me descoberto bem no meio dos cornos desse ifrit nojento e chifrudo, que meprendeu nesse ba, me trancou com quatro cadeados e me fez morar no meio desse mar agitado ede ondas revoltas, pretendendo que eu fosse, ao mesmo tempo, uma mulher liberta e vigiada. Masele no sabe que o destino no pode ser evitado nem nada pode impedi-lo, nem que, quando amulher deseja alguma coisa, ningum pode impedi-la. Ao ouvir as palavras da jovem, os reishriyr e hzamn ficaram sumamente assombrados e, curvados de espanto, disseram: Deus, Deus, no existe poderio nem fora seno em Deus altssimo e grandioso! De fato, vossasartimanhas so terrveis.[51] Retiraram os anis e os entregaram jovem, que os recolheu eguardou no saco, indo em seguida sentar-se junto ao ifrit, cuja cabea ergueu e recolocou no colo,conforme estava antes. Depois, fez-lhes sinais: Tomem seu caminho seno eu acordo o ifrit.

    Disse o autor : ento eles fizeram meia-volta e se puseram em marcha. Voltando-se para o irmo,hriyr disse: meu irmo hzamn, veja s essa desgraa: por Deus, muito pior do que anossa. Esse a um gnio que sequestrou a jovem na noite de seu noivado, e a trancafiou num bade vidro com quatro cadeados, e a fez morar no meio do mar alegando que assim a preservaria dojuzo e decreto divinos. Mas voc viu que ela j tinha sido possuda por noventa e oito homens, eque eu e voc completamos os cem. Vamos retornar, mano, para nossos reinos e cidades. Novoltaremos a tomar em casamento mulher alguma. Alis, de minha parte, eu vou lhe mostrar o quefarei.

    Disse o autor : ento eles apressaram o passo no caminho. E no deixaram de marchar mesmodurante a noite, chegando, na manh do terceiro dia, at onde estavam acampadas as tropas.Adentraram o pavilho e se sentaram no trono. Secretrios, delegados, nobres e vizires foram tercom o rei hriyr, que estabeleceu proibies, distribuiu ordens, fez concesses, deu presentes eddivas. Depois, determinou que se entrasse na cidade, e todos entraram. Ele subiu ao palcio edeu a seu vizir-mor pai das j mencionadas jovens Dnrzd e ahrzd a seguinte ordem:Pegue a minha mulher e mate-a, e, entrando no aposento dela, amarrou-a e entregou ao vizir,que saiu levando-a consigo e a matou. Depois, o rei hriyr desembainhou a espada e, entrandonos aposentos de seu palcio, matou todas as criadas, trocando-as por outras. E tomou a resoluode no se manter casado seno uma nica noite: ao amanhecer, mataria a mulher a fim de manter-se a salvo de sua perversidade e perfdia; disse: No existe sobre a face da Terra uma nica mulherliberta. E, equipando o irmo hzamn, enviou-o de volta para sua terra carregando presentes,joias, dinheiro e outras coisas. hzamn despediu-se e tomou o rumo de seu pas.

    Disse o autor : o rei hriyr instalou-se no trono e ordenou a seu vizir o pai das duas jovens que lhe providenciasse casamento com alguma filha de nobres, e o vizir assim o fez. hriyrpossuiu-a e nela satisfez seu apetite. Quando raiou a manh, ordenou ao vizir que a matasse.Depois, naquela prpria noite, casou-se com outra moa, filha de um de seus chefes militares.Possuiu-a e, ao amanhecer, ordenou ao vizir que a matasse, e este, no podendo desobedecer,matou-a. Depois, na terceira noite, casou-se com a filha de um dos mercadores da cidade. Dormiucom ela at o amanhecer e depois ordenou ao vizir que a matasse, e ele a matou.

    Disse o narrador : e o rei hriyr continuou a se casar a cada noite com uma jovem filha demercadores ou de gente do vulgo com ela ficando uma s noite e em seguida mandando mat-laao amanhecer at que as jovens escassearam, as mes choraram, as mulheres se irritaram e os paise as mes comearam a rogar pragas contra o rei, queixando-se ao criador dos cus e implorando

  • ajuda quele que ouve as vozes e atende s preces.[52]Disse o copista: o vizir encarregado de matar as moas tinha uma filha chamada ahrzd, mais

    velha, e outra chamada Dnrzd, mais nova. ahrzd, a mais velha, tinha lido livros decompilaes, de sabedoria e de medicina; decorara poesias e consultara as crnicas histricas;conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sbios e dos reis. Conhecedora dascoisas, inteligente, sbia e cultivada, tinha lido e entendido.

    Disse o autor : certo dia, ahrzd disse ao pai: Eu vou lhe revelar, papai, o que me anda ocultopela mente. Ele perguntou: E o que ?. Ela respondeu: Eu gostaria que voc me casasse com orei hriyr. Ou me converto em um motivo para a salvao das pessoas ou morro e me acabo,tornando-me igual a quem morreu e acabou. Ao ouvir as palavras da filha, o vizir se encolerizou edisse: Sua desajuizada! Ser que voc no sabe que o rei hriyr jurou que no passaria comnenhuma moa seno uma s noite, matando-a ao amanhecer? Se eu consentir nisso, ele vai passarapenas uma noite com voc, e logo que amanhecer ele vai me ordenar que a mate, e eu terei demat-la, pois no posso discordar dele. Ela disse: absolutamente imperioso, papai, que voc med em casamento a ele; deixe que ele me mate. Disse o vizir: E o que est levando voc a colocarsua vida assim em risco?. Ela disse: absolutamente imperioso, papai, que voc me d a ele emcasamento: uma s palavra e uma ao resoluta. Ento o vizir se encolerizou e disse: Filhinha,Quem no sabe lidar com as coisas incide no que vedado, Quem no mede as consequnciasno tem o destino como amigo. E, como se diz num provrbio corrente, Eu estava tranquilo esossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado.[53] Eu temo que lhe suceda o mesmo quesucedeu ao burro e ao boi da parte do lavrador. Ela perguntou: E o que sucedeu, papai, ao burroe ao boi da parte do lavrador?. Ele disse:

  • O BURRO, O BOI, O MERCADOR E SUA ESPOSASaiba que certo mercador prspero tinha muito dinheiro, homens, animais de carga, e camelos;tambm tinha esposa e filhos pequenos e crescidos. Vivia no interior, inteiramente dedicado lavoura, e conhecia a linguagem dos quadrpedes e demais animais; no entanto, se ele revelasse talsegredo a algum, morreria. Ele sabia, portanto, a linguagem de todas as espcies de animais, masno dizia nada a ningum por medo de morrer. Em sua fazenda viviam um boi e um burro, eambos ficavam prximos um do outro, amarrados ao pesebre. Certo dia, o mercador sentou-se, coma esposa ao lado e os filhos pequenos brincando diante de si, e olhou para o boi e o burro. Ouviu oboi dizendo ao burro: Muitas congratulaes para voc, mano esperto, pelo conforto e pelosservios de escovao e limpeza que recebe. Voc tem quem cuide de si; s o alimentam comcevada escolhida e gua fresca e limpa. Quanto a mim, pegam-me no meio da noite para lavrar ecolocam no meu cangote uns utenslios chamados canga e arado; trabalho o dia inteiro, escavandoa terra e sendo obrigado a tarefas insuportveis; sofro com as surras do lavrador e com o relho;meus flancos se lanham e meu cangote se esfola; fazem-me trabalhar de noite a noite, e depois melevam ao paiol, onde me do fava suja de barro e palha com talo; durmo no meio da merda e domijo a noite inteira. Agora, voc no, voc est sempre sendo es