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Livro e-book Miolo Quando as ruas falam

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quando

as ruasfalam

Histórias de vidas extraordinariamente reais

quando

as ruasfalam

Histórias de vidas extraordinariamente reais

Letícia França

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Natal, 2021

©2021. Letícia França. Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição à autora. A reprodução de pequenos trechos desta publicação pode ser realizada por qualquer meio, sem a prévia autorização da autora, desde que citada a fonte. A violação dos direitos do autor (Lei n. 9610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Editora

Revisão

Fotos

Projeto Gráfico e Diagramação

Rejane Andréa Matias A. Bay

Janaina BarcelosCélia Maria de Medeiros

Ewiton Moura, José Filipe e a autora

Caule de Papiro

Caule de Papiro gráfica e editoraRua Serra do Mel, 7989, Cidade SatélitePitimbu | 59.068-170 | Natal/RN | Brasil

Telefone: 84 3218 4626www.cauledepapiro.com.br

Catalogação da Publicação na Fonte. Bibliotecária/Documentarista: Rosa Milena dos Santos - CRB 15/847

F814q França, Letícia.

Quando as ruas falam: histórias de vidas extraordinariamente reais / Letícia França. – Natal: Caule de Papiro, 2021.

105 p. : il.

ISBN 978-65-86643-58-9 (LIVRO VIRTUAL)

1. Vulnerabilidade social. 2. Pobreza urbana. 3. Pessoas em situação de rua. I. Título.

RN CDU: 364.614)

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Um ser humano, qualquer um, é infinita-mente mais complexo e fascinante do que o

mais celebrado herói.

(Eliane Brum)

Para todas as pessoas que tiveram as vozes abafadas e as vidas invisibilizadas.

Sumário

prefácioNarrativas que ecoam emoções…………...11

apresentaçãoQuando descobri o mundo…………...15

capítulo 1Uma chave para a felicidade…………...24

capítulo 2Tia Maria, dona do mundo e de si…………...36

capítulo 3Vi em Vera a minha avó e ela estava linda revestida de amor…………...48

capítulo 4Foi preciso uma pausa…………...64

capítulo 5Papel em branco…………...68

capítulo 6Viver é como ganhar na loteria…………...80

capítulo 7Vai ser feliz, Sandra…………...92

agradecimentos…………...101

Sobre a autora…………...104

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prefácio

Narrativas que ecoam emoções

Em tempos de isolamento social, como este momento pandêmico em que estamos vivendo, passar os olhos pelas narrativas tecidas neste

livro-reportagem me revela um misto de emoções. Quando as ruas falam: Histórias de vidas extraordinariamente reais, deLetícia França, faz você caminhar em outra direção, que ainda não tinha sido experimentada. E choca!

No Capítulo 1, Uma chave para a felicidade, a autora nos apresenta as histórias por trás da história de Wagner, um chaveiro de profissão que é apaixonado pela vida e diz ter encontrado fora de casa a liberdade com que tanto sonhou: “Eu gosto de ficar na rua. Aqui eu sou livre”.

No Capítulo 2, temos Tia Maria, dona do mundo e de si, que foi tomar conta dela e do mundo, aos 13 anos de idade. Histórias de superação são desveladas ao longo da entrevista cedida por essa senhorinha, pronome de tratamento tão carinhosamente reiterado na tessitura do texto.

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No Capítulo 3, Vi em Vera a minha avó e ela estava linda revestida de amor, mulher forte, figura representativa do “ser mãe”, que levou nossa jornalista às lágrimas, porque as histórias eram tão parecidas. Histórias que, por ironia do destino, cruzaram com as dela.

No Capítulo 4, Foi preciso uma pausa, Letícia contextu-aliza o adiamento da finalização deste livro, consequência do cenário de aumento dos casos de Covid-19 e da ocupação geral de leitos críticos acima de 90% nos hospitais públicos. Dessa feita, era preciso pensar na segurança e esperar.

No Capítulo 5, Papel em branco, documenta, com pre-cisão da notícia, o avanço da aplicação de vacinas, trazendo esperança por dias melhores e, assim, a autora retoma seus encontros com aquelas pessoas que tanto lhe ensinaram sobre a vida.

No Capítulo 6, Viver é como ganhar na loteria, conhecemos Wladimy, com seus tantos causos, muito bem narrados pela autora, personagem real traduzido no enunciado: “escapar da morte virou rotina para quem a chance de viver é quase como ganhar na loteria”.

No Capítulo 7, Vai ser feliz, Sandra, somos apresentados à nômade das ruas, que não deixou de sonhar e mantém a fé em Deus, apesar de todo o sofrimento vivido dia após dia, revelando força e resignação.

Como disse nosso grande poeta brasileiro Manoel de Barros: “Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes”, Letícia França consagrou importância às falas das ruas, falas de pessoas invisíveis na sociedade, falas

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que ecoam algum traço comum em cada leitor que possa viajar nas páginas deste livro-reportagem.

Célia Maria de Medeiros

Docente do Departamento de Letras da UFRN

Agosto de 2021

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apresentação

Quando descobri o mundo

Eu devia ter uns seis anos quando os meus olhos foram atraídos por uma cena que mar-cou minha memória. Em um dos cruzamentos

mais movimentados de Natal, uma família se abrigava sob uma árvore, no canteiro central, rodeada por sacolas e uma grande mochila. Pai, mãe e filhos. Os pequenos brincavam no chão de areia e pareciam não ouvir o barulho das buzinas de carros ao redor. Para eles, garrafa de plástico era avião, boneca, cavalo, carrinho e o que mais a imaginação pudesse criar. A mãe, sentada sobre um balde velho, segurava um bebê no colo, enrolado num pano rasgado para enganar o frio.

Quando o sinal fechava, o pai se aproximava dos moto-ristas para implorar ajuda. “Arruma um trocadinho para eu dar de comer aos meus filhos”, dizia o homem de pés descalços. O olhar denunciava dor e a magreza gritava fome. Esquecidos. Eram poucos os motoristas que abaixavam os vidros da janela dos carros. Alguns fingiam não ver aquele

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homem parado ao lado com a mão estendida. Sinal verde. Aceleravam com a pressa de quem foge de uma realidade com a qual não querem se sujar. A vida segue. No ritmo acelerado e frenético de uma capital. Enquanto isso, para quem fica, a vida paralisa, perde-se, esvai-se.

Pequena, eu assistia àquela cena sentada no banco confortável do Gol prata que meu pai dirigia. Por trás do vidro, meu corpo vestindo o fardamento da escola contrastava com a face daquelas crianças que viviam na rua. Pelo que a minha memória me permite saber, talvez essa tenha sido a primeira vez que, conscientemente, eu descobri o mundo. Descobri o mundo quando o enxerguei na sua forma mais humana e latejante, tal qual uma ferida aberta que sangra ou uma fratura exposta que traduz dor. Percebi um mundo que nada tinha a ver com as páginas coloridas dos meus livros favoritos. Um mundo diferente do meu mundo.

Mesmo sem conseguir processar tudo que aquilo repre-sentava, lembro-me de sentir tristeza. E raiva. E um pouco de estranheza. Eu queria pedir para meu pai parar o carro, pegar aquelas crianças pelas mãos e levá-las para dormir no meu quarto. Queria convidar aquela família para sentar à mesa do jantar e provar do tempero da minha mãe. Queria cessar aquela dor que não era minha, mas que doía como se fosse. O sinal verde apareceu à nossa frente e meu pai seguiu o caminho. À medida que o carro se afastava, assisti, pelo vidro de trás, àquela família ficar pequena, longe, distante. Distanciamo-nos até que minha vista já não os alcançava. Nunca mais os encontrei. E nunca mais os esqueci.

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Três anos depois, decidi que queria ser jornalista. Uma decisão, talvez, precoce para uma criança de nove anos. Enquanto os meus amigos sonhavam em ser astronautas e viajar ao espaço, eu almejava contar histórias e viajar nas páginas rabiscadas do meu caderno. Com o passar dos anos, aquela decisão de menina se tornou cada vez mais certa. Cresci devorando livros, desbravando noticiários e escrevendo textos e mais textos em um bloquinho velho guardado no fundo da gaveta. De lá para cá, tudo mudou e nada mudou.

Quase duas décadas separam a criança sonhadora da jornalista que hoje escreve estas páginas. No coração, o mesmo desejo de amar e mudar as coisas, como diria Belchior. No pensamento, a curiosidade latente que atiça todos os sentidos e me move a ir cada vez mais além. Na bagagem, memórias e retalhos de uma história que me costura, me molda e me (re)constrói. Das belezas e amarguras do jornalismo, o exercício do ouvir, mais que falar, é o que me cativa a cada encontro. Ser escuta, desprender-me de mim para desvendar o outro. Virá-lo pelo avesso e descobrir novas histórias. E contá-las. E potencializá-las numa tentativa de fazer ouvir as vozes que por tantas vezes foram socialmente abafadas. Viver o jornalismo me fez mais humana. Viver a humanidade me fez verdadeiramente jornalista.

E foi nessa via de mão dupla que cheguei até aqui. Nos primeiros anos da graduação, eu já sabia o que eu queria como tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Uma escolha que nasceu precoce, como tudo em minha vida, mas que nunca deixou de fazer sentido para mim. Por anos,

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carreguei na memória a imagem daquela família abrigada no canteiro central de uma avenida movimentada. Durante toda a minha vida, cenas como aquela se repetiram frente aos meus olhos, por vezes, apressados e cegos. Chegara, portanto, a hora de desvendar as histórias que, quando criança, eu não pude compreender.

A realidade das pessoas em situação de rua e/ou vulne-rabilidade social me atraiu como um imã. Quis ir ao encontro delas. Conhecê-las por inteiro. Descobrir os caminhos do passado que as trouxeram até o presente. Enxergar suas raízes, tocar suas vísceras, sentir a vida que pulsa em cada esquina, calçada, rua. E eternizar toda essa experiência em um livro. Um livro sensível e real, tal qual as histórias que o preenchem.

Traduzir essa realidade também esbarra na inexistência de dados concretos acerca da população de rua. Percebe-se que, no âmbito do Rio Grande do Norte, por muitos anos, esse assunto foi ignorado. Isso porque jamais se soube precisar o quantitativo de pessoas vivendo nas ruas. A obscuridade sobre esse contexto dificultou, portanto, a implantação de políticas públicas voltadas para essa parcela da população. Somente em 2021, ano em que este livro é produzido, o Estado teve a iniciativa de, pela primeira vez, realizar o censo demográfico da população em situação de rua no RN, sob a coordenação da Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social (Sethas/RN).

Sem o resultado desse levantamento, a Sethas/RN explicou não ser possível indicar com precisão o percen-tual de potiguares sem ter onde morar. De toda forma, em

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consulta à Secretaria Nacional do Cadastro Único (Secad) do Governo Federal, a secretaria estadual conseguiu informar que, em junho de 2021, estimava-se 1.106 pessoas vivendo em situação de rua no Rio Grande do Norte. No contexto de Natal, capital do estado, a Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas/Natal) também explicou não haver precisão quanto aos dados, mas mostrou que, segundo o mais recente relatório do Departamento de Informação, Monitoramento e Avaliação (Dimaps), realizado em julho de 2020, estavam inseridos na base de dados do Cadastro Único para Programas Sociais 732 pessoas identificadas em situação de rua na capital.

Em Natal, observa-se, ainda, que os efeitos da pande-mia da Covid-19 atingiram sobremaneira a população em situação de rua. Em dezembro de 2020, um levantamento da Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes (Seharpe) revelou que cerca de 3 mil pessoas têm a rua como moradia na capital potiguar. Estimativa superior à apresentada nos dados do Governo Federal. Esse número, de acordo com a secretaria, era de 400 no início da pandemia, revelando um aumento de 650% de pessoas nessa situação durante o ano de 2020.

A imprecisão estatística e os dados divergentes só comprovam que a temática da situação de rua, na nossa socie-dade, nunca foi urgente. É mais fácil ignorar a problemática, reforçando o estigma social, que buscar soluções efetivas. Foi por isso que, nadando na contramão dessa tentativa de inviabilizar as narrativas, optei por mergulhar de cabeça na profundidade que há por trás dessas vidas e agarrar-me na

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urgência que esse assunto pede. Para viabilizar essa missão, o Shalom Amigo dos Pobres, da Comunidade Católica Shalom, apareceu como providência.

Coordenado pelo missionário Tennesse Mendes, o projeto alcança pessoas que vivem em situação de rua e/ou que são afetadas pela vulnerabilidade social. Com foco na população de Natal, a iniciativa promove momentos de acolhimento atrelados à doação de lanches e almoços. Hoje, as ações ocorrem três vezes por semana na praça Padre João Maria, por trás da antiga Catedral, no bairro Cidade Alta. No auge da pandemia da Covid-19, o projeto chegou a realizar ações diárias, com a entrega de almoços, cestas básicas, auxílio com cuidados básicos de higiene pessoal e orientação sobre as medidas de biossegurança adotadas em prevenção à doença.

Financiado exclusivamente por doações de pessoas e empresas solidárias à causa, a iniciativa conta com o serviço de voluntários - integrantes ou não da comunidade católica - que doam tempo, amor e atenção às pessoas que sobrevivem nas ruas, calçadas e praças do Centro. Quando o mundo parou por causa de um inimigo invisível que devastou vidas e mudou para sempre nossas histórias, quando a sociedade se abrigava em suas próprias casas e almejava o fim da quarentena infinita, o Shalom Amigo dos Pobres e tantos outros projetos sociais iam ao encontro daqueles que não tinham onde morar e muito menos como se proteger. Foi a mão amiga desses voluntários que acolheu a população de rua e lhe deu um pouco de alento em meio ao cenário pandêmico.

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Calhou de a conclusão do meu curso cair exatamente no ano em que a Covid-19 se apresentou ao mundo. Em meio a tantas dúvidas e incertezas, o medo invadiu meu corpo e me fez pensar em desistir do objetivo que por tantos anos nutri. Eu tinha certeza de que não daria certo. Como eu iria desbravar um mundo de histórias na rua se eu mal podia colocar o pé na calçada? Eu me questionava todos os dias. E vivia sempre a um passo de jogar tudo para o alto. Até que li uma frase de Eliane Brum, em seu livro A Vida que Ninguém Vê (2006), que parecia escrita para mim naquele momento: “Não lembro de nenhuma reportagem que não tivesse me dado medo. Sinto medo até hoje. Medo de não dar certo, medo de não ver nada, medo de não conseguir, medo. Tenho insônia e, quando durmo, pesadelos. Antes, durante, depois. Medo é necessário, faz sentido. Só não dá para ter medo de ter medo, paralisar e deixar as histórias passarem sem encontrar quem as conte. (...) Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire”.

E, com o conselho daquela que tanto me inspira na profissão, agarrei-me ao medo e o usei como alavanca. Contei com o apoio e intermédio do Shalom Amigo dos Pobres nesse longo e surpreendente processo. Com os protocolos sanitários exigidos pela pandemia, atirei-me nas ruas, nos bancos de madeira surrada, na pracinha atrás da igreja, na calçada larga do Centro. Descobri-me “escutadeira” de histórias e desbravei a face mais íntima e oculta de vidas invizibilizadas.

Como resultado dessa viagem e com uma bagagem cheia de aprendizados, alegrias, angústias e sonhos, apresento,

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neste livro, seis pessoas que escancararam as portas de suas vidas para que eu pudesse entrar. Wagner, Tia Maria, Tia Vera, Faísca, Sandra e a moça bonita de rosto de boneca me acolheram num abraço e me levaram a passear por cada cômodo de suas histórias. Por noites seguidas, no meu quarto à luz penumbra, despejei sobre os teclados do computador tudo aquilo que vivi, ouvi e senti nesses encontros. Quando As Ruas Falam nasceu assim, natural e lentamente, quando menos esperei e quando mais desejei. Páginas que traduzem vozes de vidas marcadas para sempre em mim. Boa leitura!

Wagner Rodrigues Silvério

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capítulo 1

Uma chave para a felicidade

A primeira entrevista aconteceu em uma segun-da-feira. Desde sexta-feira, quando o encontro foi oficialmente marcado pelo coordenador

do projeto Shalom Amigo dos Pobres, Tennesse Mendes, eu já ansiava por esse momento. Seria no dia 8 de fevereiro de 2021, às 16 horas, na praça perto da Antiga Catedral. Passei o fim de semana me preparando. Estava prestes a mergulhar nas águas profundas da história de uma vida toda. O frio na barriga era sinal de que surgia um desafio pela frente, mas também de que havia muito a desbravar. Um mundo desconhecido que eu desejava abraçar, acolher e escutar. Três verbos que passaram a me guiar desde então.

Enfim, chegou a hora. Saio de casa com meu irmão, buscamos Tennesse e vamos para o Centro da Cidade. Encontramos o local, onde há uma praça e costumava fun-cionar o projeto, relativamente vazio. Enquanto caminhamos, Tennesse explica a dinâmica daquele lugar. “Às 15 horas,

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os traficantes descem para vender drogas. Quem fica lá é somente quem vai vender ou consumir. E tem uma questão: há duas facções opostas aqui perto. De um lado, fica o PCC e, do outro, descendo para Mãe Luíza, o Sindicato do RN”, esclarece, calmamente, o coordenador.

Chegamos à rua João Pessoa, e o cenário começa a mudar. A quantidade de pessoas em situação de rua era ainda maior, contrastando com o ritmo frenético do Centro, no qual o comércio funcionava a todo vapor e carros transitavam apressados pelas ruas estreitas.

Em um primeiro momento, o choque: na calçada de um estabelecimento comercial fechado, há uma espécie de ocupação. Colchões, lençóis, papelão, baldes, bolsas… E pessoas. A maioria homens, jovens. Na lateral da calçada, cruzando a rua principal, um beco. “Aqui é o beco do tráfico. Eles vêm aqui para consumir as drogas”, avisa Tennesse. Ao nos aproximarmos do local, rapidamente alguns garotos vêm cumprimentar Tennesse. Percebo que já se conhecem. Noto uma relação de respeito e gratidão. Alguns pedem a bênção, como em uma relação de pai e filho. Outros perguntam como ele está, sorriem e agradecem a sua presença. Percebo, naquele momento, que não há motivo para receios; fomos em busca de acolher, mas, na verdade, fomos acolhidos. Apesar das adversidades daquele lugar, há muita vida a ser vista e ouvida.

Paramos em frente a um banquinho de madeira ins-talado na calçada, ponto de encontro com a entrevistada. Para nossa surpresa, estava vazio. “Marquei com ela aqui, mas ela não apareceu”, comenta, preocupado, Tennesse. Ele

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anda rapidamente pelos arredores para ver se a encontra. Volta com uma mulher idosa, que tinha um cigarro na mão, uma grande bolsa nas costas e um pacote com latinhas. “Não encontrei a nossa entrevistada, mas encontrei esta mulher aqui. Vai ser ela”, diz Tennesse. Ela joga o cigarro fora, sentamos e ela sorri para mim. Pergunto seu nome, “Maria das Graças”, e explico a proposta. Ela me conta que estava indo pegar umas latinhas e depois seguiria para uma faxina. Como eu não queria atrapalhar o seu ganha pão, já que nossa conversa seria longa, sugeri nos encontrarmos outro dia. “Quarta-feira estarei aqui, neste mesmo lugar”, diz. “Combinado, vou te esperar”, aviso. Antes de sair, ela me pergunta se poderia levar um dos pacotes que eu havia preparado com lanche. Prontamente lhe dou um. Maria das Graças sorri, me olha com gratidão e segue o seu destino.

Ao olhar para o lado, vejo que Tennesse já trazia outra pessoa. “Letícia, este aqui é o Wagner. Ele seria entrevistado outro dia, mas acho que você já pode começar por ele hoje.” Assenti. Wagner é um homem de aproximadamente 50 anos, já com os cabelos grisalhos. Usa boné preto, óculos na cabeça e pochete na cintura. No rosto, uma máscara do Flamengo. Sentamos no banquinho de madeira surrada e ali iniciamos nosso diálogo. “Pode tirar foto, mostrar tudo. Não tenho nada a esconder mesmo”, diz Wagner, em tom de brinca-deira. Rimos juntos e seguimos a conversa por cerca de 1 hora horas 20 minutos. O barulho dos carros, das buzinas, das pessoas transitando na calçada, do comércio existindo, torna-se a trilha sonora do nosso diálogo. De tão imersa na história, aquela movimentação ao nosso redor nem atrapalha.

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Conheço a história do Wagner, que trabalha como chaveiro, mas foi na rua onde se sentiu realmente livre.

“Eu gosto de ficar na rua. Aqui, eu sou livre.” É assim que Wagner Rodrigues Silvério fala sobre o seu dia a dia nas ruas do Centro de Natal. Apaixonado pela vida, encontrou fora de casa a liberdade com que tanto sonhou. Como quem tenta provar que é feliz com tudo e apesar de tudo, ele garante: “Eu não mudaria nada. Não gosto de bens materiais. É o meu jeito”. O boné na cabeça esconde os cabelos grisalhos, mas o documento guardado na carteira surrada revela sua idade: pouco mais de meio século de vida. Em sua história, acumula mais de 30 anos de trabalho como chaveiro, dois casamentos, duas filhas e alguns amores.

Nasceu na manhã ensolarada do dia 27 de julho de 1968, na Maternidade Januário Cicco, em Natal. É o segundo de seis filhos. Todos do mesmo pai e da mesma mãe: Manoel e Terezinha. Cresceu em uma casinha no bairro Lagoa Seca, onde viveu os melhores momentos da infância ao lado dos irmãos. Desbravavam as ruas, improvisavam brinquedos com garrafas de plástico e compartilhavam confidências. Ainda criança, Wagner nutria um amor especial pelos animais e sonhava em ser biólogo. Os caminhos, porém, levaram-no para outra profissão: a de chaveiro, ofício que aprendeu com o irmão mais velho. Juntos, tinham uma barraquinha de chaves na praça Padre João Maria. No entanto, a reforma realizada pela Prefeitura de Natal retirou os pontos comer-ciais montados na região. Wagner ficou sem seu local fixo de trabalho.

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Hoje, sobrevive de doações e trocados que consegue entre um serviço e outro. É na rua que ele passa o dia. Passeia pelas praças, joga conversa fora, faz os serviços que aparecem e bebe uma cervejinha nas horas vagas. À noite, quando o frio aperta e os comércios fecham, recorre ao quarto minús-culo que utiliza como dormitório em um condomínio no Alecrim, onde trabalha limpando as áreas comuns todo dia pela manhã. Ao final do mês, recebe 200 reais pelo serviço prestado. O quartinho, na verdade, é um vão. Os moradores do próprio condomínio se uniram para doar móveis usados. Há uma cama, uma mesinha, alguns livros empilhados numa estante. Mesmo tendo estudado somente até a 6ª série em uma escola pública, o homem de cabelos brancos não abre mão da leitura e, mais que isso, sempre repassa os livros lidos para que outros também possam lê-los.

Sem luxo, sem apegos e feliz com o pouco que tem. É assim que Wagner vem levando a vida nos últimos dois anos, desde que se separou da segunda esposa. “A gente morava de aluguel. Aí nos separamos e, para evitar conflito, saí de casa e me aconcheguei nesse quartinho. Levei só minhas roupas e meus documentos. Não me arrependo. Ela dizia que queria me ver arrasado, na rua. Mas para mim aqui é tudo de bom. Agradeço a Deus a minha vida. Eu pesava 50 kg, vestia 36. Agora estou engordando, olha o corpo que estou agora, vestindo 42. O pessoal está me admirando”, conta.

Desse casamento, a parte boa que Wagner faz questão de frisar é sua filha de 20 e poucos anos, com quem mantém contato e carinho recíproco. “Minha filha é preciosa demais para mim. Ela é uma bênção e sempre me emociono quando

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falo sobre ela”, conta o homem, com os olhos marejados, enquanto retira da carteira uma foto 3x4 da menina de cabelos negros. Hoje, a menina cresceu, casou e terminou a graduação na universidade federal. Apesar da vida difícil, a educação da filha sempre foi prioridade para Wagner. “Ela sempre foi educada e obediente. Certa vez, eu comia pipoca com ela e caiu um pouquinho no chão. Aí ela, bem pequenininha, no meu braço, me repreendeu, dizendo para apanhar o que havia caído, porque não podia sujar”, relata, entre risos nostálgicos.

O olhar ao longe revela as memórias afetivas que Wagner guarda da garota. Mas o sentimento paterno vai além. Há outra filha na história, só que um oceano os separa. Hoje, ela tem quase 30 anos, mas, desde os quatro, mora na Alemanha. Durante todo esse tempo, nenhum reencontro. Apenas a saudade, que aperta toda vez que Wagner relembra o período que a tinha em seus braços. Como quem arranca à força uma flor do jardim, assim a filha mais velha foi levada da vida de Wagner. A mãe, primeira mulher com quem ele se casou ainda na juventude, conheceu um alemão e decidiu partir do país levando a criança. Na época, sem qualquer instrução, Wagner precisou assinar uns papéis na frente do juiz. Mal sabia que isso lhe retirava o direito à paternidade.

E assim ele perdeu. Perdeu de ver a filha crescer. Perdeu a chance de ensiná-la a andar de bicicleta, de ajudá-la a ler, de levá-la ao altar. E, mais recentemente, perdeu de vê-la ser mãe pela primeira vez. “Passei esse tempo todo procurando informações sobre ela. Somente quando fui a Parelhas, cidade onde minha ex-esposa nasceu, consegui falar com uma amiga em comum, que me ajudou a entrar naquilo que chamam

de ‘Face’ [Facebook]... Então, eu vi a foto da minha filha na Alemanha. Ela casou com um turco. E vi também a foto da minha netinha. Ela é linda!” O contato pela rede social, porém, foi perdido. “Minha ex-mulher soube, tirou a senha e até hoje eu não tenho mais contato com minha filha”, conta, enquanto tenta segurar o choro.

Mesmo lamentando a distância da primogênita, Wagner reconhece os erros que o levaram a essa situação. “Na época em que era casado com minha primeira esposa, eu tinha 18 anos e ela, 15. Nos conhecemos aqui em Natal e tivemos essa filha. Mas eu bebia muito. Antigamente, o ‘Beco da Lama’ era cheio de bares, e todo dia eu saía do trabalho e ia direto para lá. Passava a noite bebendo. Não era para farrear com mulher. Era para beber com os amigos. Chegava em casa só de madrugada, lá pelas 2 ou 3 horas. Qual esposa ia gostar disso? Então, por isso, ela quis se divorciar.”

Anos se passaram, mas a bebida ainda é uma realidade em sua vida. O dinheiro que recebe com os serviços como chaveiro acaba em cerveja. Não há um dia que passe sem consumir bebida alcoólica, e isso faz com que ele não tenha controle sobre os trocadinhos que ganha diariamente. Por outro lado, mesmo com esse vício, Wagner garante que nunca se envolveu com drogas. E lamenta a situação vivida por alguns de seus colegas de rua, que encontraram nas drogas a válvula de escape para a dor. “O povo manda comprar lá embaixo e fumar no beco. Como a loja Leader fechou, o pes-soal se instalou aí na calçada. E também na Ribeira e embaixo do Viaduto. Conheço todo mundo, eles me acolhem. O povo só sabe criticar o pessoal de rua e chamar de vagabundo.

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Dizem que não querem trabalhar. Mas o problema é que falta emprego. Falar é fácil. Mas, para mudar essa situação, os governantes deveriam fazer algo”, argumenta.

Wagner aponta para o nosso lado esquerdo, onde está o grupo com o qual cruzei há pouco. Aos nossos olhos, a prova do que dizia. Na falta de moradia, a calçada suja de um prédio abandonado serve de abrigo para uma dúzia de vidas marcadas pelo desprezo. Desprezo da família, da sociedade, dos governantes. De tão invisibilizadas, uma parte de si morreu um pouco e nem os documentos restaram para lembrá-las de quem são. Na ausência de oportunidades, a droga preenche o vazio.

Dentre os conhecidos afetados pelo vício, há uma pes-soa sobre a qual Wagner fala com os olhos cheios d’água e voz embargada. “Tem uma pessoa que eu conheci aqui na rua. Ela foi muito importante para mim.” As lágrimas escorrem. Wagner se emociona e silencia por alguns minutos, tentando retomar a fala interrompida pelo choro inevitável. Nessa hora, me faltam palavras. Apenas respeito seu silêncio, ao mesmo tempo em que luto para impedir que minhas próprias lágrimas caiam.

Percebo que adentramos uma janela delicada de sua história. Ele abaixa a cabeça e toca a ponta dos dedos, bus-cando coragem para continuar. Encosto minha mão levemente em seu ombro, na tentativa de transmitir o apoio que lhe falta. Mais alguns segundos de silêncio se passam, até que ele respira fundo e, com os olhos ainda vermelhos, continua a falar: “Eu a chamo de Morena. Nos conhecemos aqui na praça. Ela ia passando e eu a chamei. Descemos para a outra

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rua e ela me pediu quatro reais pra inteirar o dinheiro para comprar a pedra [de crack]. Puxei a pochete e dei vinte reais na mão dela. Mas ela recusou e decidiu comprar com o próprio dinheiro. Mas garantiu: ‘Vou ficar com você’. Foi lá e voltou. Desde então, ficamos juntos”, relata.

E assim nasceu um novo amor na vida de Wagner. Um amor avassalador, que chegou revirando as portas, derrubando muros, amenizando faltas. “Passávamos o dia juntos, dormíamos no meu quartinho e até na rua, na cal-çada. Gosto muito dela. Sinto aquele negócio grande por ela, sabe? De longe, eu já reconheço a voz. Onde ela estiver, eu a conheço de longe. A gente ficava junto aqui, sentado no banco, conversando.” Depois dos casamentos que não deram certo e das histórias que não pôde levar adiante, Wagner começou a escrever um novo capítulo em sua vida. Morena despertou nele um sentimento que há tempos não florescia. Ao meio século de vida, entre buzinas de carros, passos apressados e o fervor das ruas do centro, Wagner se permitiu amar mais uma vez.

Mas somente amar não foi suficiente. Da mesma forma avassaladora que chegou, Morena partiu. O vício a fez buscar as drogas e destruiu as páginas do capítulo que começava a ser escrito. “Ela estava bem magrinha por causa do vício, aí se recuperou e ficou forte, mas, depois, a abstinência a fez voltar mais uma vez para a droga. Antes eu corria atrás dela, mas agora não.” A Morena pela qual Wagner nutria tanto afeto chegou a ser levada para uma clínica de reabilitação, mas foi mandada embora após infringir as regras do local. “Esses dias, ela fez uma besteira, se envolveu numa confusão

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com um traficante e fugiu. Não sei mais onde ela está. Sinto falta. Fico sozinho aqui, pensando nela. Mas acho que não é possível retomar”, diz, ainda emocionado.

Acumulando amores incertos, Wagner tenta seguir em frente, apesar dos percalços, e mantém a porta do coração aberta. Foi nessas idas e vindas que conheceu Isabel. “Tem uma coroa que eu estou curtindo. A gente se dá bem, mas ainda não é nada sério, porque ela sabe que eu ainda gosto muito da Morena. Mas eu também gosto de estar com ela. Hoje, por exemplo, fomos almoçar juntos no Barriga Cheia [restaurante popular de Natal]. A gente fica junto e se encontra todo dia.” A história de Isabel, segundo o chaveiro, também é bastante sofrida, pois ela foi vítima de violência doméstica quando convivia com o antigo companheiro. “Sinto que ela tem medo de se relacionar novamente. Criou os filhos praticamente sozinha e tinha um ex-marido que batia muito nela. Acho que isso a fez ficar com um trauma.”

Entre amores e dores, Wagner passa os dias. Antes que o relógio marque 23 horas, e ele vá para seu refúgio, a vida acontece nas ruas. E, nesses dias inteiros, vai colecio-nando histórias. No coração, a gratidão pelos que o ajudam. “As doações chegam todo dia, principalmente por ações de católicos, evangélicos e espíritas. Todo dia tem. É assim que me alimento. E também no Barriga Cheia. Café, almoço e janta. Eu já sei os pontos e vou buscar. Passa a sopa do baú, passa o rapaz do cuscuz, passa a macarronada. Isso aqui que tenho [aponta para as roupas] é tudo doação.”

A essa altura da conversa, as lágrimas foram embora e o sorriso voltou para o rosto de Wagner. Penso que, por

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muitas vezes em sua vida, cenas como essa acontecem: o choro dando lugar ao riso. Mesmo quando a realidade cruel bate à sua porta a cada amanhecer, ele escolhe ser feliz. Mesmo quando lhe falta chão, permanece em pé. Mesmo quando as dores ocupam a maior parte da sua história, continua vivendo. Wagner é um ponto fora da curva nessa estrada tão tortuosa. E, antes de ir embora e partir para a próxima aventura, ele acrescenta: “Ter força de vontade e seguir em frente. Nunca desistir dos seus sonhos”. Esse é o conselho do homem que, aos 50 anos de idade, encontrou a chave que abriu a porta para a felicidade.

Terminamos a conversa, agradeci e nos despedimos como se fôssemos nos reencontrar qualquer outro dia naquele mesmo lugar. Ao me virar para o lado, vejo Tennesse e o meu irmão conversando com duas idosas que aparentam cerca de 70 anos. “Letícia, essas aqui são Tia Maria e Tia Vera. Tia Maria seria a sua entrevistada de hoje, mas combinei com ela de nos encontrarmos amanhã.” Já era por volta das 17 horas e 30 minutos e achamos mais prudente deixar as demais entrevistas para os outros dias. Combinamos, portanto, que eu entrevistaria Tia Maria, como era carinhosamente chamada, na terça-feira, e Tia Vera, na quarta. Mesmo horário, mesmo ponto de encontro. Despedimo-nos delas. “Vão com Deus, meus filhos! Até amanhã!”, dizem aquelas senhorinhas sentadas no banco de madeira. Aceno com um sorriso largo no rosto: “Fica com Deus as senhoras também. Amanhã nos vemos”.

Maria Barbosa Dias

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capítulo 2

Tia Maria, dona do mundo e de si

O sol raiou naquela terça-feira. O dia em que eu conheceria a história da senhorinha de cabelos brancos apelidada carinhosamente

de Tia Maria. Chego pontualmente às 16 horas ao local mar-cado, mas não a encontro por lá. Fui acompanhada do meu pai. Sentamos no mesmo banquinho de madeira surrada e aguardamos. Desta vez, o coordenador do Shalom Amigo dos Pobres, Tennesse Mendes, chegaria um pouco atrasado. Notamos os olhares curiosos dos garotos deitados na calçada. Os taxistas também nos olham com curiosidade. Damos uma volta pela calçada para ver se encontramos Tia Maria. Aproximamo-nos de um sapateiro, que tem seu carrinho estacionado na calçada, para saber se conhecia a idosa. Não lembrava, mas nos orienta a falar com o colega do lado, que varre as folhas na calçada. “Ah, sei sim! Uma magrinha, né?

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Ela vem todo dia perto das 17 horas. Pode aguardar, que já já ela chega por aí”, diz.

De repente, chega Wagner, o entrevistado do dia anterior. “Letícia, Letícia…”, cantarola meu novo amigo, aproximando-se. “Está esperando Tia Maria Vai Boiar?”, pergunta ele. Olho com expressão de dúvida: “Como assim, Vai Boiar?”. Ele responde, rindo: “É porque ela mora lá no Passo da Pátria, perto do mangue. Aí a gente chama ela assim”, explica Wagner, com seu jeito brincalhão bem carac-terístico. O homem que varria a calçada se aproxima. “Quer ser entrevistado não?”, pergunta Wagner ao colega. “Quero. É o quê?”, diz o homem, de nome Marcos Antônio. Explico a proposta e ele topa participar, enquanto Tia Maria não chega. Começamos a conversar, enquanto vou mergulhando em sua história. Ele conta que é aposentado por invalidez. Sofreu um acidente em alto mar, numa embarcação, quando trabalhava em uma empresa terceirizada da Petrobras.

No meio da conversa, percebo que talvez o perfil dele não se encaixe para o meu trabalho, mas sigo em frente, porque vi que ele estava feliz em ser ouvido. “Há quanto tempo alguém não o escuta?”, pensei. Dentre minhas idas e vindas à rua, percebi o quanto as pessoas em situação de vulnerabilidade são carentes não só de oportunidades, mas principalmente de afeto. Carecem de alguém que chegue, sem preconceitos ou julgamentos, e sente ao seu lado, nem que seja por cinco minutos, apenas para escutá-las. “O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: ‘Se eu fosse você…’ A gente ama não é a pessoa que

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fala bonito. É a pessoa que escuta bonito”, já dizia Rubem Alves, em seu livro O Amor que Acende a Lua.

Depois de alguns minutos de escuta, finalizo a conversa quando vejo, de longe, Tia Maria se aproximar. Agradeço a disponibilidade de Marcos Antônio e aguardo a senhorinha percorrer, a passos lentos, a calçada até o banco onde estamos. Assim como no dia anterior, ela carrega uma grande sacola nas costas. “Oi, minha filha!”, diz Tia Maria, ao se aproximar e sentar-se ao meu lado no banco de madeira surrada. Olho para ela: cabelos brancos, presos em um coque baixo. No rosto, uma máscara branca de tecido a protege dos males da pandemia. Veste-se de flores, numa estampa colorida que combina com seus olhos brilhantes. Apesar da máscara, eu consigo enxergar um sorriso traduzido nos olhos apertados. Os pés inchados com bolhas de varizes e as rugas na testa, porém, não escondem as marcas da dor. Dores de uma vida inteira.

“Quem sou eu?”, diz Tia Maria, aos risos tímidos, quando peço que se apresente. Alguns segundos de silêncio. Olhar ao longe. Nenhuma resposta. Ela me entrega seu docu-mento de identidade. O RG amassado, segurado nas mãos trêmulas e desgastadas, era o que ela tinha a me oferecer. “Eu só ando com a identidade, porque ninguém sabe o que pode acontecer, né? E com a identidade é fácil de achar.” Maria Barbosa Dias, registra o documento. Nasceu no dia 4 de outubro de 1952, em São Paulo do Potengi, interior do Rio Grande do Norte. Quem era ela? Quase 70 anos de vida cuja memória, talvez por causa da idade, lhe traía vez ou outra.

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“Quando eu era pequena… Eu não conheci minha mãe. Ela morreu. Ficaram sete filhos sem mãe e os padrinhos carregaram todos. Meu pai ficou só com dois rapazinhos. Eu vim para Natal com minha madrinha, mas ela não podia me criar e me deu para a irmã dela, que morava ali no Passo da Pátria”, conta Tia Maria, enquanto tenta, aos poucos, trazer à tona as memórias do seu passado. Cresceu sem afeto de mãe, longe do pai e sem amor. Com quatro anos, foi passada de mão e mão, até que encontrasse alguém que a acolhesse. “A irmã da minha madrinha me criou só até os 13 anos. Ela não aguentou mais e me entregou ao juiz. Eu era muito medonha”, conta, rindo de si mesma.

Algo que ela nunca esqueceu foi o olhar arrogante do juiz ao qual ela foi entregue. Na época, sem que existisse o Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças aban-donadas eram levadas ao chamado Juizado de Menor. Foi lá onde a pequena menina de pele negra e cabelos crespos ouviu algo que nunca esqueceu. “Ah, minha filha, sua mãe não aguentou, eu vou perder meu tempo com você? Vai embora tomar conta do mundo”, disse o juiz à Maria. Ela, sem que jamais lhe faltasse forças, respondeu em alto e bom som: “Vou tomar conta e dou conta mais do que você, que você não sabe tomar conta do mundo”. Aos 13 anos, deu as costas para o juiz e nunca mais voltou. A frase, porém, segue entoando em sua mente até hoje. “Vou tomar conta do mundo. Tomar conta e dar conta”, repete Tia Maria inúmeras vezes ao longo da nossa conversa, sempre abrindo um sorriso, como quem se orgulha do que diz.

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E assim Maria Barbosa foi criada no mundo, pelo mundo e para o mundo. Foi na rua que viveu desde então. Tirava forças das entranhas para lidar com a solidão, com o abandono, com a escuridão da noite. “Dormi muito na rua. Dormia nas calçadas. Dormia em qualquer lugar. Mas dormia bem armada. Se viesse dar em mim, eu danava a faca. Só dormia com a faca na cintura”, relata a idosa, ao lembrar-se dos tempos em que encontrou na rua seu único abrigo. Sem amor, sem casa, sem família. Abandonada à própria sorte. Mesmo assim, não tinha medo de nada. “Eu era bem novinha, como é que eu ia ter medo de alguma coisa? Tinha medo não. Era novinha. Os ‘homens do juiz’ vinham atrás das crianças, mas eram avisados para não chegar perto de mim porque eu carregava uma [arma] 12 comigo”, Maria faz um gesto com as mãos, tentando mostrar o tamanho da espingarda que ela possuía. “Eu era novinha, não sentia nada. Não tinha medo. Mas hoje tenho. Depois de velha, eu tenho medo. Tenho medo de fazerem algum mal para mim, por causa da idade.”

Na rua, dormiu, cresceu, sobreviveu. Passou fome e frio. Por vezes, encarou a morte de frente, mas fugiu em todas elas. Menina esperta, coração valente. Depois de alguns anos entre uma calçada e outra, a maturidade lhe bateu à porta e ela decidiu buscar um trabalho. Sem estudos, só sabia escrever o nome. Mas estava disposta a aprender o que quer que fosse para conseguir sair da rua. “Depois que fiquei com mais idade, vivia trabalhando. Nas casas ou em outro canto que eu arrumasse. Em qualquer trabalho. Eu trabalhava em tudo.” Como fruto do trabalho, conseguiu

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comprar uma casinha no Passo da Pátria, onde vive até hoje. É um pequeno vão, com a cama onde dorme e o fogão que usa para cozinhar. No cardápio, apenas macarrão ou arroz e, quando tem, a mistura. “É difícil colocar feijão no fogo.” Hoje, recebe o dinheiro da aposentadoria, que conseguiu há cerca de cinco anos. “O momento mais feliz da minha vida foi quando Deus deu meu dinheirinho e pude finalmente descansar. Lutei muito por ele”, diz Tia Maria, referindo-se à quantia que passou a receber mensalmente.

Do momento mais feliz ao mais triste. “Foi quando Deus levou meu menino”, fala, devagar, com voz embargada, quando questiono sobre qual seria a memória mais dolorosa que tinha de sua vida. O nome de seu caçula vem à tona: Fabrício. Novamente, o silêncio toma conta. Ela fecha os olhos, tentando não chorar. Abaixa a cabeça e fica pensativa. Aos poucos, retoma lentamente a fala, lutando contra a dor de contar sobre a morte precoce do seu filho. “Ele estava bonzinho de saúde e do nada adoeceu. Aí Deus o levou.” Faz uma nova pausa. Com olhos marejados e sorriso tímido, rememora o pequeno Fabrício: “Ele era pequenininho, estava começando a andar, a falar. Era sabidinho. A gente vivia na calçada da Igreja do Galo. Eu não pedia dinheiro ao povo de jeito nenhum. Era só ele quem pedia. Ele não falava, mas fazia assim com a mão…”, demonstra o movimento, com a palma da mão para cima. “E as pessoas entregavam as moedas na mão dele.” Com nostalgia, Maria conta que andava sempre com uma sacola de lado com as coisinhas do filho. “Quando ele estava com sono, eu pegava os paninhos dele e forrava o chão perto da porta da igreja. Aí ele dormia lá.”

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A filha que perdeu a mãe precisou lidar com a dor de também perder o filho. Uma dor que não tem nome. Quem perde a mãe vira órfão. E quem perde o filho, vira o quê? “Quando Deus levou o meu menino, eu quase enlouqueci de tanta tristeza, de tanta dor. Quase que eu ia ao hospício. Ainda chorei durante um ano inteiro. E dizia a Deus: ‘O Senhor sabe que mais tarde eu ia chorar mais. Então me cale. Faça eu me calar’.” As lágrimas escorrem. Maria olha para o céu. Nessa hora, engoli o choro, confesso, porque não há nada mais triste que ver a dor de uma mãe que perde o filho. “Deus sabia que mais tarde eu iria chorar mais. Aí levou ele pequenininho, como quem diz: ‘Vou guardar logo ele, para mais tarde ela não chorar mais’. Ele sabia que eu ia chorar de desgosto.” Demoro alguns segundos para entender o que ela quer dizer com essa fala, mas logo me dou conta. A verdade é que, desde cedo, o pobre já sabe que está fadado à dor. O pobre já nasce sabendo que vai morrer de doença ou de morte matada. Maria sabia. Mesmo sem querer, ela sabia qual destino estava reservado para seu filho. Mais tarde, a morte chegaria numa arma de fogo apontada na cabeça. Porque é assim que os filhos das suas vizinhas morrem. Todos os dias. Passa até no jornal. Porque pobre só aparece na tv no dia da morte.

O pequeno Fabrício, porém, não era o único. Outros dois filhos também morreram. Na verdade, eles já nasceram mortos. Sem assistência à saúde durante a gravidez, Maria perdeu os primeiros filhos na hora do parto. O nascimento virou sinônimo de morte. Na lista, só restou uma filha: Maria de Fátima, a única que ficou para contar história.

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Hoje, mora numa casinha perto da mãe, mas a relação das duas não parece ser das melhores: “Minha filha quer que eu vá morar com ela. Mas ela só me quer agora por causa do meu dinheiro. Porque quando eu vivia na rua, com um carrinho de mão buscando uns trocados para colocar comida em casa, ela não queria saber de mim. Ela não fazia questão de mim. Quando eu não tinha nada, ela nunca me quis. Pois não vou não. O Deus da minha casa é o mesmo Deus da dela. Prefiro ficar na minha casa mesmo.” Vi amargura em seus olhos ao falar sobre a única filha. Só ela sabe o que passou para guardar essa mágoa em seu coração. Da filha, nasceram os netos de Maria. “Dois rapazes e uma moça. A menina mora no Alecrim com o esposo e os três filhos deles, meus bisnetos. Eu já disse que, quando eu morrer, minha casinha vai ficar para essa minha neta.”

Tia Maria fala com naturalidade sobre a morte, porque sabe que um dia todos vão partir. Enquanto a sua hora não chega, ela vai vivendo um dia de cada vez. Saiu da rua há alguns anos, mas a rua nunca saiu dela. E é na rua que encontra seu único momento de lazer. “Acordo, faço minha comidinha, aí quando passa das 3 horas, subo aqui para a rua. Gosto de ficar aqui na pracinha. Fico por aqui até perto do anoitecer. Converso com as pessoas, vejo o movimento. Quando dá a hora, os carros passam fazendo a doação de alimentos, aí eu pego”, aponta para a sacola ao seu lado, onde estão as vasilhas que guardam a comida doada. “É a minha janta. Aí eu como e vou dormir. No outro dia, começo tudo de novo. Já trabalhei muito, minha filha. Somente agora eu posso descansar.”

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Foi mãe solo durante toda a vida. Dos homens que a engravidaram, nem os nomes lembra mais. Foram embora, sem olhar para trás. Desde sempre, aguentou tudo sozinha. Sozinha cresceu e sozinha lidou com todas as tempestades que cruzaram seu caminho. Mas, em um raro raiar de sol, encontrou espaço no coração para nutrir um amor. Talvez o único que realmente pediu licença para entrar e se aconchegar no coração de Maria, tão machucado e marcado pelas dores da vida. Era um cearense que ela conheceu no forró e com quem permaneceu durante mais de duas décadas. “Só nos separamos quando Deus o levou.” Novamente a memória falha e ela não soube mensurar há quantos anos ele tinha partido. Mesmo assim, consegue lembrar-se dos tempos que passaram juntos.

“Convivemos 25 anos. Foram muitos anos. A gente tinha umas terras em Ceará-Mirim. No inverno, enchíamos o terreno com tudo que você possa imaginar na área da agricultura para poder vender.” Maria relembra, com difi-culdade, que trocou os hectares pela casinha onde vive hoje. “Ele só saiu da minha casa no caixão”, conta, ao lembrar-se novamente da morte de seu companheiro. Maria conta que ele adoeceu e passou bastante tempo internado no Hospital Memorial, em Natal, custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Todo dia, eu podia ir lá olhar ele e voltava para casa. Até que, um dia, eu cheguei lá e notei que o doutor estava me enrolando. Então eu disse: ‘Doutor, olhe, o senhor é muito sabido nos estudos, mas eu sou mais sabida que você. Meu marido está aí morto, porque o senhor está só me enrolando. Diga logo que ele está morto. Eu sei como deixei ele aqui.

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Já andou por um monte de hospitais. Eu sei como eu deixei ele’.” A morte, então, foi confirmada pelo médico. “Eu já sabia. A gente sente quando a morte chega. Eu sofri muito na época, porque ele era muito bom para mim. Eu gostava dele. Foram 25 anos…”, conta, pausadamente, com o olhar distante, trazendo, para o presente, memórias antigas levadas pelo tempo.

Ainda curiosa sobre a vida daquela senhorinha de voz baixa, decido dar um novo rumo à conversa e faço algumas perguntas rápidas:

– A senhora se considera forte? Silêncio. Ela pensa por alguns segundos. –Me considero… - Fala, pausadamente, quase

sussurrando. –De onde a senhora tira forças? –De Deus. Ele é o meu sustento. –A senhora ainda tem algum sonho que gostaria de

realizar?–Eu acho que não, minha filha. Meu cantinho, Deus já

me deu. Chegou a minha idade, já arrumei meu dinheirinho. Tenho mais sonho não. Acho que o sonho que eu tenho é que Deus me dê saúde. A gente, com essa idade, só tem isso para pedir: saúde.

Por falar em saúde, quis saber dos forrós que ela havia comentado antes. Nessa hora, uma gargalha gostosa preenche o espaço. Vejo seu sorriso com poucos dentes se abrir ao lembrar-se do ‘Forró do Dagô’, que frequentava antes da pandemia. “Minha filha, não vejo a hora desta coisa ruim [pandemia da Covid-19] acabar para eu poder

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voltar para o meu forró”, comenta Maria. “Minha filha diz: ‘Mãe, a senhora não tem mais idade para essas coisas’. Aí eu respondo: ‘Mulher, eu não estou morta não. Para dançar precisa ter idade?’ O importante é saber dançar. Sei dançar tango, sei dançar forró, sei dançar tudo. Bolero, valsa, tudo. Para se divertir, não precisa de idade não. Quando terminar essas coisas desses vírus, eu vou. Se Deus quiser, eu vou. Se eu estiver viva, eu vou. E não é me achando não, sei dançar bem! Pegar um dançarino para dançar muito.” E acrescenta: “Não tenho namorado não. Desde que enterrei o meu marido, sou virgem. Virei moça de novo”.

Foi assim, nesse clima entre risos e perspectivas para o pós-pandemia, que terminamos nossa conversa. Tiro algumas fotos dela e entrego o lanche que preparei. O céu já está prestes a escurecer. Foram mais de duas horas desbravando as memórias guardadas por Tia Maria. Antes de ir embora, olho em seus olhos e agradeço-lhe a oportunidade de visitar o seu passado. E, para o futuro, o pedido: “Quero ver a senhora dançando forró assim que a pandemia passar, viu?” Ela ri novamente e nos despedimos. Quando me aproximo do meu pai e de Tennesse, que já havia chegado há algum tempo, vejo que Tia Vera Lúcia, que seria minha terceira entrevistada, estava com eles. Cumprimento-a e, como já estava perto de anoitecer, combinamos de nos encontrarmos no dia seguinte, às 16 horas, no mesmo local.

Vera Lúcia de Oliveira

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capítulo 3

Vi em Vera a minha avó e ela estava linda

revestida de amor

Dia de mais uma entrevista. Mesmo ponto de encontro. Ao chegar à calçada, já avisto de longe Tia Vera Lúcia sentada no banquinho

de madeira, com sua bengala ao lado. Marcamos às 16 horas, mas, desde às 15 horas, ela já ansiava pela minha chegada. Abre um sorriso ao me ver e me acolhe como quem se prepara para uma grande e longa viagem. Na mala, as memórias vívidas e pulsantes, que os mais de 70 anos de vida não foram capazes de apagar. Acomodo-me no banco ao seu lado para irmos juntas rumo ao seu passado. Ao olhar para aquela senhorinha, baixinha e magrinha, tenho a sensação de que a conheço de algum lugar...

Com pressa de chegar ao nosso destino, ela escancara as portas de sua história e me leva a todos os cômodos dessa grande casa carinhosamente chamada de vida. Na manhã

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de primavera do dia 28 de setembro de 1948, as águas de Rio Tinto, município da Paraíba, anunciaram a chegada da pequena menina revestida de coragem. Vera Lúcia de Oliveira já nasceu grande. Era pequena em estatura, mas grande em vontade de viver. Quando criança, provou das delícias da vida no sítio, rodeada pela natureza e pelo amor da família. “A minha infância foi muito boa. Tinha meu pai, minha mãe. Minha vida era correr dentro do sítio, colocar vaca para dentro do curral, ir para escola. Ia para o açude tomar banho. Era enorme. Eu dava um mergulho e ia sair só do outro lado. Não tinha um tico de medo dos jacarés que apareciam por lá”, relata Tia Vera, ao lembrar-se com carinho dos primeiros anos de vida.

No entanto, tudo mudou num piscar de olhos. A morte chegou de mansinho e, sem pedir licença, invadiu a janela da casa, destroçou as vidraças e levou embora o bem mais precioso de Vera Lúcia: sua mãe. Júlia Maria da Conceição partiu como quem dorme um sono profundo. Morreu no sítio, deitada em uma rede, longe de qualquer tipo de assistência à saúde. Um câncer no colo do útero foi o motivo da partida precoce. Com apenas 12 anos, Vera se viu sem mãe. Ela sentiu o coração rasgar. Ferida exposta, doída, ardente. “Eu queria muito bem a minha mãe. Quando meu irmão disse que ela estava morta, eu disse: ‘negativo. A minha mãe está dormindo’. Somente quando vi o caixão sair é que me dei conta do que tinha acontecido. Lembro que coloquei a mão na cintura e disse: ‘é verdade, ela vai embora e eu nunca mais vou ver’. Foi o momento mais triste da minha vida. O único. Mas eu não derramei uma lágrima. Eu não choro.

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Por nada.” A verdade é que o tempo pode até curar a ferida, mas jamais cura a cicatriz.

A menina sem mãe precisou amadurecer dez anos em um dia. Apesar do pai e dos irmãos que preenchiam os cômodos escuros, Vera só conseguia enxergar vazio. Espaços sem cor. Sem amor. A solidão lhe aprisionou e, antes mesmo de completar 13 anos, decidiu ir embora. Arrumou suas malas e pediu carona a uma família da vizinhança que partia para Natal. Chegou à capital potiguar com apenas uma sacola de roupas. Ainda criança, buscou trabalho. Precisava pagar o aluguel do quartinho que arrumou para dormir. Sozinha, em um estado desconhecido, desbravou as ruas e reconstruiu sua vida. A Noiva do Sol a acolheu numa dança em frente às ondas do mar. Durante quase seis décadas, foi em Natal que Vera Lúcia escreveu os capítulos da sua história.

Antes dos 15 anos, casou-se com um jovem rapaz dois anos mais velho. Juntos, provaram os prazeres da vida e tiveram quatro filhos. Ricardo, Ana Cláudia, Jorge e Ana Carla. “Me casei muito nova. Tivemos nossos filhos. Meu marido era muito bom, mas, depois de 10 anos, vi que não dava mais certo. Ele era mulherengo. Não me fazia sofrer, mas ia atrás de outras mulheres. Até que, um dia, deixei ele ir embora para nunca mais voltar. Chegou um circo em Parnamirim e ele começou a namorar uma mulher que trabalhava lá. Dito e feito. Foi embora junto com o circo e vive lá até hoje, viajando pelas cidades. Ele ainda chegou a mandar cartas para mim, mas um dia eu respondi: ‘Nem me mande notícias, porque sua vida não me interessa. Vá viver a vida que você escolheu’.” A mulher, cuja força era maior

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do que podia imaginar, precisou lidar não só com a traição do esposo, mas principalmente com a dor dos filhos. “Meus meninos eram doidos pelo pai. Na época em que ele saiu de casa, começaram a chorar. Eu mandei calarem a boca. Como pode? Aquele cachorro com outra mulher e os meus filhos chorando por ele”, conta Tia Vera, ao lembrar-se dessa época. O tempo cura a ferida, mas não a cicatriz. E, ainda que não derrame uma lágrima, a cicatriz grita a cada vez que Vera fala de seu passado.

Mãe solo. Quatro filhos para criar. Antes que pudesse reorganizar o rumo da própria vida, mais dois filhos che-garam para preencher a pequena casa. Um deles nasceu de um amor passageiro que veio como um vento torrencial quebrando todas as certezas que havia. “Quando nos conhe-cemos, ele disse que era solteiro e já me chamou para morar com ele. Eu recusei. Ele era rico e eu, pobre. Riqueza do mundo não presta. Riqueza só a de Deus. Mas ele continuou insistindo, até que eu cedi. Engravidei e tive o caçula, Daniel. O problema é que, somente depois, descobri que o homem era casado.” Traída, enganada, usada. Vera Lúcia continua, com pressa de contar o desfecho desse drama: “Quando eu soube, briguei muito com ele. Dei um batido danado. Mas aí não tinha mais o que fazer. Como eu queria que o meu filho tivesse direito às coisas, deixei que ele fosse registrado no nome do pai e da sua esposa. O meu menino ficou morando com eles dos 3 aos 17 anos. Só voltou para mim quando o pai e a madrasta faleceram.” Firme nas próprias decisões, Tia Vera conta que jamais se afastou do filho. Mesmo ele morando com essa outra família, ia visitá-lo toda semana.

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Nessas idas e vindas, acabou criando um vínculo de amizade com a mulher do pai do seu caçula. “Ela sempre foi muito prestativa comigo. No final, viramos amigas.” A relação genuína floresceu apesar dos espinhos.

Além dos cinco filhos gerados em seu ventre, a vida ainda lhe reservava uma surpresa. “Eu estava fechando a porta de casa para ir dormir quando a vizinha avisou que Bruna (a minha cadela) estava do lado de fora, latindo. Coloquei ela para dentro, só que ela continuou cheirando a porta. Aí a vizinha disse: ‘desceram duas mulheres e colo-caram uma caixa aí’. Era uma bebê... Toda enroladinha, pequena, do jeito que nasceu”, relata, saudosa. A pequena menina que acabara de vir ao mundo foi largada à própria sorte. A sorte é que Vera Lúcia sabia a dor de viver sem mãe e, sem pensar duas vezes, aconchegou aquele minúsculo pacotinho de vida em seus braços. De surpresa, sem que tivesse se preparado durante nove meses de gestação, Vera foi mãe novamente.

Deu à nova filha o nome de Fernanda, que quer dizer: “Ousada para buscar a paz”. E foi a paz que ela encontrou nesse novo lar quando, indefesa, já não tinha onde morar. “A minha nora, que estava de resguardo, foi quem deu de mamar à menina”, explica Vera, ao contar que, nessa época, um de seus filhos já era casado e tinha acabado de ser pai. Após três meses da chegada de Fernanda, uma amiga de Vera pediu para criar a pequena menina. “Eu trabalhava muito, aí Dona Niga, que era muito minha amiga, me pediu para dar a bebê para ela. Então foi ela quem criou a menina desde então. Hoje, Fernanda já é adulta, formada. Trabalha em um

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hospital, em Manaus. Ela ainda me chama de ‘Mamãe Vera‘, mas faz tempo que não a vejo. Rezo todos os dias por ela.” Olho para Vera e vejo um semblante nostálgico. Vejo amor. Vejo a maternidade transbordar. Nas mãos, no olhar, no peito, no coração. Vera foi mãe e nunca mais deixou de ser. Conta seis filhos na lista de presentes que a vida lhe deu. De sangue ou de coração, sempre caberia mais um nesse abraço que é eterno. Abraço. Materno. Que conforta, protege e guia.

Vera precisou ser mãe, pai, dona de casa, provedora, batalhadora, sonhadora. Vera é a cara e a alma da mulher brasileira que cria os filhos para o mundo. Sozinha, na perife-ria, numa casinha que mal cabem todos em pé. Trabalhando duro de dia e de noite para que na mesa não falte o que comer. Mas às vezes falta. Na escuridão da madrugada, sem que consiga pregar os olhos direito, o choro do menino pequeno denuncia o estômago vazio. A fome. Como Vera, tantas outras no Brasil. Rita, Conceição, Sebastiana, Antônia, Joana. Maria das Graças, Maria de Lourdes, Maria do Carmo, Maria das Dores. Esta última era minha avó materna. Maria das Dores Alves de França. Baixinha, magrinha e forte, igualzinha à Vera. Pele negra, enrugada pelo tempo. Cabelos crespos, com alguns fios brancos tomando conta do coque amarrado no alto da cabeça. No rosto, um sorriso lindo que dava gosto de ver. Igualzinha à Vera. Cinco filhos morreram no parto. Sete ficaram para contar história. Todos sem pai, criados por ‘Maria Pretinha’, como era conhecida minha avó no interior do Rio Grande do Norte. Igualzinha à Vera e a tantas outras.

Foi nessa hora que me dei conta de onde conhecia Vera. Eu a conhecia da minha própria história, do meu passado,

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das minhas raízes. Ainda que eu nunca antes a tivesse visto, a semelhança com a minha avó me fazia reconhecê-la. Hoje, a Maria que tanto amei já mora no céu. Por isso, olhar para Vera, sentada nesse banquinho de madeira, me faz ter a sensação de que estou novamente com a minha Pretinha. Mas as semelhanças não eram só físicas. As histórias tam-bém eram muito parecidas. Mais uma vez, como em todos os outros encontros, o meu coração quer transbordar em lágrimas. Seguro o choro. Diante de tamanha coincidência, minha vontade é de abraçar essa senhorinha como se fosse minha avó Maria. A pandemia me impede. Só que, de alguma forma, me sinto abraçada sem ao menos nos tocarmos. O olhar dela me aquece a alma e o coração.

Entre seus causos, seguimos. Vera conta que, para criar os filhos, foi na rua que conseguiu sustento. Andava de um lado a outro, pedindo ajuda, vendendo coisas. Depois de um tempo, conseguiu emprego em uma padaria no Centro da Cidade. “Eu trabalhava na padaria de dona Diná, mulher de Luiz Carlos. Lá eu fazia muito pão, bolo, bolacha. Dona Diná me dava algumas mercadorias para eu vender de porta em porta também. Os comerciantes daqui do Centro eram todos meus clientes. Eu vendia muito e levava o dinheiro para dar de comer aos meninos. Passei oito anos nessa padaria, mas aí ela foi vendida e eu tive que sair.”

Na cozinha, Tia Vera descobriu seu grande dom. Sem perder nenhuma oportunidade que aparecia em sua vida, aperfeiçoou as técnicas em um curso de cozinharia ainda na juventude. “Depois que fiz esse curso, meti a cara a cozinhar. Cozinhava para todo mundo aqui dentro de Natal. Trabalhei

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de cozinheira para muita gente rica. Tudo me chamavam para fazer almoço, fazer jantar,15 anos, casamento. Fazia de tudo. Sou de forno e fogão, sei cozinhar pra danado”, orgulha-se a senhorinha, ao lembrar-se da sua profissão. Foi assim, cozinhando para outras famílias, que conseguiu alimentar a própria família. “Recebia aquele dinheiro e usava para criar e educar meus filhos.”

De rua em rua, vendia seus pastéis e escrevia sua história. Antes de chegar ao próximo capítulo, ela revira mais um pouco as gavetas da memória e traz à tona a história do homem rico. Detalhe por detalhe, relata cada trecho da cena que viveu anos atrás. “Eu fazia muito pastel e vendia nos hospitais. Era disso também que eu vivia. Aí, em um dos hospitais por onde andei, um dos pacientes, um homem muito rico, olhou para mim e disse: ‘Ei, pelegrina’. Eu respondi: ‘Por qual motivo está me chamando assim?’”. No dicionário, pelegrina quer dizer o mesmo que peregrina: indivíduo andante, que viaja, que empreende longas jornadas. E foi em uma dessas jornadas que Vera ergueu o queixo na direção do homem rico e disse: “Eu sou pelegrina de Jesus. Dou Glória a Deus, porque a boca, a língua e voz que tenho foi Ele quem me deu.” Entregou os pastéis às enfermeiras e foi embora.

Só voltou ao mesmo hospital três meses depois. “Passei um tempão sem ir lá novamente, porque estava sem tempo, trabalhando demais. Até que, quando pude ir novamente, com o caldeirão cheio de pastel para doar, as enfermeiras me recepcionaram dizendo: ‘Vera, vamos ali no leito daquele paciente que disse que você era pelegrina. Ele está para morrer. Vamos orar por ele’”. Vera seguiu ao encontro dele.

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“Me perdoe. Ore por mim. Eu estou morrendo”, disse o homem rico à pequena Vera. Ela, por sua vez, garantiu: “O senhor vai se levantar, em nome de Jesus. Você vai voltar para a sua casa com os próprios pés”. Mulher religiosa, de fé, pôs as mãos sobre aquele idoso e rezou. Oito dias depois, recebeu a notícia de que ele tinha sido curado. “Fui mais uma vez visitá-lo. Ele estava bonzinho. Tinha sido curado de uma tuberculose. Ele me pediu perdão novamente, nos abraçamos e ele provou dos meus pastéis. Isso aconteceu há quase 40 anos. E até hoje rezo por ele e pela família.”

Anos depois, as idas frequentes ao hospital para entregar pastel ganharam um significado amargo para Vera Lúcia. A mulher cuja mãe faleceu de câncer precisou lidar com a notícia que jamais gostaria de ter ouvido. “Eu não sentia dor. Só vinha muito sangue. Eu dizia: ‘Jesus, o que é isso? Tenha misericórdia de mim’. Descobri que estava com câncer. O mesmo da minha mãe: câncer do colo do útero.” Nessa hora, Vera olha bem em meus olhos e posso ver a árdua batalha que esse período representou em sua vida. Novamente, lembro-me da minha avó, Maria das Dores. Ela, que se parecia tanto com Tia Vera fisicamente, também precisou enfrentar o câncer do colo do útero. Minha avó sangrou por anos, chorou por noites inteiras e, quando já não tinha espaço para tanta dor, partiu para morar no céu. Histórias tão parecidas. Histórias que, por ironia do destino, cruzaram com a minha.

“Foi tão de repente. Apareceu. Eu ia emagrecendo, os médicos passavam remédio, eu tomava e não fazia efeito. Eu perdia muito sangue. Até que uma série de exames revelou

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o que havia de errado comigo. Eu estava com câncer.” Vera dá uma pausa longa e continua: “Um dia, Daniel era peque-nininho, eu vim para casa depois de passar um período internada no hospital. Ele chegou perto de mim e, agarrado comigo, começou a falar:

Mamãe, quer que eu diga uma coisa? Diga! Deus está me dizendo que vai lhe curar, mamãe. É mesmo, meu filho? É sim!”.

Vera acreditou naquilo que o seu caçula tinha a dizer. Anjos costumam falar através de crianças. E foi assim que ela, apegando-se a crenças, encarou o tumor maligno que crescia em seu ventre. Durante meses, sofreu dias e noites, com um sangramento que não cessava. Mulher de muita fé, não tinha medo da morte. Confiou sua vida a Deus e deixou que os próximos capítulos de sua história fossem escritos por Ele. “Quando o médico disse que eu tinha uma semana de vida, retruquei: ‘Mas não foi Deus quem disse’. Fiquei internada e, todos os dias, orava muito pedindo para Deus ter misericórdia de mim. Meus filhos ainda eram muito pequenos e eu não podia deixá-los sozinhos no mundo.” Vera conta que, em uma de suas orações da madrugada, quando já fazia o tratamento em casa, ouviu uma voz dizendo para ela ir à rua pegar algumas folhas de uma planta milagrosa. “Eu pedi para que fosse me revelado o nome da planta e assim ouvi: ‘Logo ali tem um pezinho desse mato. Macambira. Você brincava tanto com seus irmãos fazendo as casinhas e cobrindo com essa planta’.”

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Com nostalgia, Vera segue relembrando esse dia que, segundo ela, foi a data em que recebeu a cura: “Fui até a árvore, peguei o matinho e fiz um chá. Tomei, do jeito que estava. Ainda hoje, lembro do canequinho pequeno. Quando acabei de tomar, ajoelhada, a voz disse: ‘Você está salva. Curada pela Glória de Deus’. Até hoje estou bem, nunca mais sangrei. Para os médicos, eu não tinha uma semana de vida, mas Jesus me curou”. Vera levanta as mãos para o céu, em gesto de gratidão. No rosto, o semblante de quem carrega consigo uma fé inabalável. Os olhos apertados, por detrás dos óculos, revelam o brilho de quem driblou a morte e segue viva, colecionando memórias.

Mais de uma vez, a pequena senhorinha precisou driblar a morte. Depois do câncer, outro episódio fez com que precisasse encarar, novamente, a morte de frente. “Fui atro-pelada por uma moto. O motoqueiro veio na minha direção enquanto eu atravessava a faixa de pedestres lá em Petrópolis, perto da Maternidade Januário Cicco. O pessoal me socorreu e me levou para o Walfredo Gurgel. A batida estragou o osso da minha perna. O médico viu que tinha quebrado e teve que operar. Fiquei com a perna toda engessada”, relata Vera, enquanto olha com descontentamento para a perna. “Sofro muito com ela. Até hoje sinto dor e tenho muita dificuldade para andar.” Na perna, a cicatriz do joelho ao pé denuncia o tamanho da dor. A muleta canadense, posicionada ao seu lado enquanto conversamos, revela as sequelas do acidente. É nela que a idosa se apoia ao andar. E, mancando, desbrava as ruas. A passos lentos, cruza a cidade. Com pés miúdos, torna-se grande e anseia mudar o mundo. Os reflexos de uma

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vida inteira marcada por traumas. Traumas que vão além do físico. Traumas que invadem a alma, o coração, a história.

É no Passo da Pátria que Tia Vera ainda mora. No mesmo quartinho alugado, pequeno e apertado. O lugar que sempre foi sinônimo de refúgio para a sua família nas noites frias. Na rua, o sustento. Em casa, o acalento. Hoje, a batalha de Vera se traduz nos filhos. Tem filho professor, cozinheiro, universitário e tantas outras coisas. Mas nem sempre foi assim. Um deles se envolveu com vícios e se viu no precipício. “Ele se drogava e bebia cachaça. Me dava muito trabalho, mas eu nunca levantei a voz para ele. Eu dava conselhos e ele voltava a fazer errado. Só me restava pedir a Deus para tirar esse vício dele. Até que, um dia, ele decidiu se livrar desse mal e conseguiu.” Hoje, os filhos de Vera criam os próprios filhos. Já são oito netos ao todo. Tem até bisneto. A família cresceu. Mas cada um foi para o seu lado.

Da família grande, nenhum vestígio de afeto. A solidão bate à porta de Vera todos os dias. “A minha rotina é de muito sofrimento. Não tenho pai, não tenho mãe, não tenho irmão. Só tenho aquele filho que mora comigo, mas não consegue emprego. O outro que mora em Parnamirim e não vem nem me visitar. Não está nem aí. O outro, às vezes, me ajuda, mas de mau grado. Tem as meninas, que quase não vejo. Passo uma dificuldade que não é brincadeira”, lamenta a senhorinha, cabisbaixa. A mulher que doou a sua vida em prol dos filhos hoje vivencia os últimos capítulos dessa mesma vida em um quarto solitário. “Eu me sinto sozinha. Acho um pouco ruim. Sempre trabalhei, mas agora não posso mais trabalhar por causa da minha perna, que não deixa.”

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Para tentar amenizar a solidão, foge para a rua. É na praça do Centro que Vera tem encontrado cor, movimento e vida. Já é conhecida na região. No banquinho de madeira surrada, Tia Vera senta para apreciar o que lhe resta do sabor da vida. “Fico só aqui na pracinha, olhando o movimento. Mas não gosto muito de conversar. Não tenho muitos amigos”, confessa.

No teatro da vida, Vera é o personagem que observa. Observa o vai e vem dos carros, os passos apressados, o asfalto marcado. Na calçada, os meninos a dormir. No frio. O relógio não faz mais sentido. Os dias passam, o calendário avança, e Vera segue em contraste com o cenário ao seu redor. Ela tem o próprio ritmo. Passos lentos. Um de cada vez. Dia após dia. Apoia-se na bengala, sua fiel companheira. Olha o passado e enxerga raízes. “Não mudaria nada do meu passado. Sou feliz, não posso fazer nada. Converso muito com Deus. Durmo tranquilamente.” E é na fé que encontra paz. “O momento mais alegre da minha vida foi quando corri para os pés de Jesus. Eu não tinha nada com negócio de igreja. Tudo meu era só com as coisas do mundo. Quando fui à igreja, achei bonito as pessoas cantando para Jesus. Aí gostei e quis seguir o mesmo. Então minha vida mudou muito.” Vera sorri e os olhos brilham. A fé estampa seu rosto. Para o futuro, um único sonho: “Permanecer na presença de Jesus”. A pequena senhorinha ainda compartilha o último diálogo que teve com Deus: “Hoje conversamos muito. Pedi para que Ele acabe com esse coronavírus. O povo está morrendo muito. Essa doença está acabando com o mundo. Que Deus tenha misericórdia. Amém!”.

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Amém. E amem, sem acento. Porque foi no amor que Vera curou a dor. Não haveria outra coisa que ela pudesse deixar de lição se não o verbo amar. “O meu conselho? Amar. Amar os filhos. Amar a sua família. Amar os seus amigos. Amar as pessoas necessitadas. Amar os animais. Amar a Deus”, fala Vera, pausadamente, olhando em meus olhos, como uma avó que aconselha sua neta para o mundo. Novamente sinto a presença da minha Pretinha. Criamos laços. Não quero ir embora. O céu pintado de roxo e laranja anuncia a chegada da noite. Precisamos partir. Ao nos des-pedirmos, prometemos um reencontro. Assim que possível, eu iria visitá-la em seu quartinho alugado. Ela prepararia os seus famosos salgados para que eu pudesse prová-los. Em devaneios, penso em silêncio: “Será que eles terão o mesmo gostinho de infância daqueles que, coincidentemente, a minha avó Maria amava cozinhar para me presentear?”. A resposta virá no futuro. Para hoje, a certeza: vi em Vera a minha avó e ela estava linda revestida de amor.

Natal/RN: pela janela do quarto | Pandemia, 2021

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capítulo 4

Foi preciso uma pausa

Imprevistos acontecem. Todas as vezes que ouvi essa frase ao longo da minha vida era sinal de que algo tinha dado errado. E, de fevereiro a junho

de 2021, tive que lidar com essa frase apitando em minha mente e me fazendo adquirir ansiedade por algo que saiu do controle. Foi preciso uma pausa. E, mais que isso, foi preciso compreender e aceitar que imprevistos acontecem, principalmente em meio a uma pandemia.

Saí da minha terceira entrevista com a certeza de que voltaria no dia seguinte para conversar com uma outra pes-soa e conhecer uma nova história. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Estávamos na semana do Carnaval e, como o comércio da Cidade estaria fechado, a quarta entrevista precisou ser adiada. Ficamos de marcar uma nova data assim que possível. Mas foi aí que, nesse meio tempo, o coordenador do Shalom Amigo dos Pobres, Tennesse, ficou com suspeita de Covid-19, e precisamos prolongar um pouco mais a pausa.

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O importante é que ele, a esposa e a filha pequena ficassem bem. Depois retomaríamos.

Os dia s se passaram e, fatalmente, não havia possibi-lidade de retorno. Isso porque a segunda onda da Covid-19 chegou de maneira avassaladora ao Rio Grande do Norte. O Ministério da Saúde confirmou a circulação de duas novas variantes do coronavírus em terras potiguares, fazendo o RN entrar em estado de alerta. De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap), essas linhagens estavam associadas a uma maior dispersão e transmissibilidade do vírus. A confirmação sobre as novas cepas ocorreu em meio ao aumento dos casos de Covid-19 e à ocupação geral de leitos críticos acima de 90% nos hospitais públicos, segundo a plataforma Regula RN.

Tudo precisou fechar novamente. A governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), anunciou a ampliação das medidas restritivas no estado. Decretos foram publica-dos e um novo toque de recolher veio à tona. Passou a ser proibida a circulação de pessoas nas ruas no período de 20 às 6 horas e, aos domingos, em tempo integral. O medo da doença, que ainda não tinha ido embora após um ano de pandemia, reacendeu intensamente.

Noticiei, no portal de notícias onde trabalho, o surto de coronavírus que havia acometido o Albergue Municipal de Natal, local onde muitas das minhas fontes costumavam dormir. Não sabíamos ao certo quantos estavam infectados, mas a informação que circulou na época apontava que, dos 50 usuários do serviço, pelo menos 27 testaram positivo para a Covid-19. Dois funcionários também foram contaminados

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pelo vírus. A preocupação era gigante. Queria vê-los bem e livres dessa doença. Já não bastasse toda a dor de uma reali-dade dura e difícil, tinham que lidar também com a expres-sividade de um vírus nefasto, que não escolhe hora, nem lugar, nem classe social, mas que, certamente, é ainda mais cruel com quem já tem uma vida rasgada pela desigualdade.

Ao mesmo tempo, não queria colocar a minha família em risco. Meus avós moram conosco, meu pai tem uma doença crônica e minha mãe tem sinais de obesidade. Àquela altura, a vacina ainda não era uma realidade, e a incerteza sobre a imunização me fez optar pela pausa. Não podia mais me expor nas ruas, não naquele momento. O tempo corria e o tic-tac do relógio não iria me esperar. Com o avançar do calendário, precisei tomar decisões complicadas. Essa foi a hora de pensar primeiro na vida. Na vida dos meus e na vida daqueles que só tinham a rua como alternativa. Não era seguro continuar. E, por isso, tomei a decisão de adiar a elaboração deste livro. Foi preciso uma pausa.

Menina do rosto de boneca

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capítulo 5

Papel em branco

Nossas histórias são marcadas por imprevistos, mas também por recomeços. A vacina contra Covid-19 chegou revestida de esperança. O

primeiro lote da vacina contra a Covid-19 chegou ao Rio Grande do Norte na madrugada do dia 19 de janeiro de 2021, com 82,4 mil doses do imunizante Coronavac, fabricado pelo Instituto Butantan. Era o início de uma grande jornada de recomeço. A primeira potiguar a receber a aplicação da vacina foi a técnica de enfermagem Maria das Graças Pereira de Oliveira, de 57 anos. Durante toda a pandemia, ela trabalhou na linha de frente no Hospital Giselda Trigueiro, referência em doenças infectocontagiosas.

A imunização no Rio Grande do Norte avançou len-tamente, começando pelos profissionais de saúde, passando pelos idosos e seguindo para grupos com comorbidades. Aos poucos, uma fresta de sol adentrava a janela, anunciando dias melhores. Em meados de junho de 2021, o sistema RN + Vacina

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mostrava que os municípios potiguares tinham aplicado mais de 1,2 milhões de doses da vacina. Ao todo, 875 mil pessoas tinham tomado pelo menos a primeira dose, enquanto 388 mil haviam completado o esquema vacinal. O caminho ainda era longo, já que a população do RN é composta por 3,5 milhões de habitantes. Na época, a governadora Fátima Bezerra (PT) anunciou a estimativa de que, até setembro, todos os potiguares até 18 anos estariam vacinados.

As dose s aplicadas no braço de cada pessoa represen-taram o recomeço da vida. Uma vida que, de fato, nunca mais será a mesma, porque milhões de outras vidas ficaram pelo caminho. Histórias foram interrompidas e não poderão recomeçar. Do lado de cá deste mundo, seguimos adiante por todos eles que não puderam continuar. Recomeçamos com dor, com saudade, com luto. Mas, sempre com esperança, do verbo esperançar. Foi esperançando dias melhores que retomei meus encontros com aquelas pessoas que tanto me ensinavam sobre a vida.

O recomeço veio em uma tarde ensolarada de quin-ta-feira, quando o relógio marcava 15 horas. Desta vez, não havia nenhum nome anotado na minha agenda. Queria que a rua me mostrasse o caminho. Eu seria voluntária na ação realizada pelo projeto Shalom Amigo dos Pobres. Enquanto aguardo a chegada do coordenador e dos demais voluntários, coloco-me como observadora no cantinho da praça Padre João Maria, na Cidade Alta. Ao longe, noto a movimentação das pessoas naquele local. São numerosas. Algumas sentadas nos bancos, outras no chão. Há, ainda, aquelas que andam, perdidas, de um lado a outro. Carregam mochilas, sacolas

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e até garrafas de bebidas. Dividem-se em pequenos grupos. Conversam entre si, mas não consigo identificar o assunto. A união de tantas vozes faz burburinho no meu ouvido. Um ou outro sentam-se sozinhos, em silêncio. Do lado oposto, a alguns metros, há outra praça igualmente tomada por pessoas em situação de rua.

Poucos minutos se passam e vejo Tennesse se apro-ximar em um carro pequeno. No interior, dá para ver as caixas de isopor onde se guardam os lanches. Na mala, os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) utilizados. Macacões brancos, face-shields e luvas para evitar possí-vel exposição ao coronavírus, que ainda é uma realidade. Tennesse nos passa orientações. A ação do projeto consiste em, no primeiro momento, ir ao encontro daquelas pessoas para conversar, ouvir, acolher. Por ser uma iniciativa religiosa, a oração também é permitida. Em seguida, tem a distribuição dos lanches. Contando comigo, somos sete voluntários nessa tarde. A quantidade de pessoas na praça, porém, é o triplo.

Com caderno e caneta na mão, inicio minha jornada naquela tarde. Involuntariamente, meus olhos apontam para uma mulher de aproximadamente 40 anos, sentada em um dos bancos. Pele negra, revestida de cor. Nas pernas, cicatrizes. Na cabeça, uma faixa de tecido prende seus cachos escuros. Cabisbaixa, abre um sorriso tímido ao notar minha chegada. Peço licença para sentar-me ao seu lado. Ela assente e abre espaço no banco para me acolher. Percebo que fecha os olhos com frequência e não consegue levantar a cabeça por muito tempo. Todo o movimento que ela faz é lento, devagar, pausado. Questiono se algo lhe havia acontecido

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e ela me conta que tinha tomado a primeira dose da vacina contra Covid-19.

Ela põe a mão sobre o braço e faz uma expressão de sofrimento. “O que você sente?”, pergunto. “Acho que sinto dor.” Diferenciar a dor se torna difícil quando dói todos os dias. Dor física, dor na alma, dor na vida. Explico que a vacina pode causar algumas reações e tento tranquilizá-la, prometendo que ficará tudo bem. A dor passará. Pelo menos a da vacina. Lamento por ela não ter onde encostar a cabeça e descansar o corpo. Ao mesmo tempo, em meus próprios devaneios, alegro-me por ver aquela mulher imunizada com a primeira dose. As secretarias de saúde vinham, pouco a pouco, criando estratégias para fazer a vacina chegar à população de rua.

Segundo a Prefeitura de Natal, o cadastro dos mora-dores para a vacinação tinha sido realizado previamente por grupos de voluntários que trabalham com essa população. Com isso, um cartão de identificação foi gerado contendo o nome e o local onde essas pessoas geralmente se concentram. Uma estrutura foi montada na Toca de Assis, fraternidade da Igreja Católica que tem a finalidade de aliviar o sofrimento de pessoas que vivem na rua. Além disso, ônibus foram disponibilizados para transportar essas pessoas até o local de vacinação. Há algumas semanas, nem a vacina contra a Covid-19 existia. Hoje, ver o avanço da ciência salvando vidas, especialmente as mais invisibilizadas, provoca alento ao meu coração.

Lentamente, respeitando seu espaço, tento captar nuan-ces da sua história. Com a mão trêmula, ela rabisca o seu

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nome completo em meu caderno. “Eu não tenho documentos. Roubaram meus documentos”, conta, enquanto aponta para a grande bolsa de tecido ao seu lado. Ao que minha vista alcança, há roupas, sabonete, vasilhas e papéis dobrados lá dentro. É como se, ali, ela carregasse consigo a própria casa. Tudo que ela tinha, todo o bem material que lhe restava cabia dentro daquela grande bolsa de tecido. Observo-a em silêncio. No pescoço, a máscara pendurada não cumpre seu papel de proteção. Na ponta dos dedos, um cigarro aguarda o momento para ser aceso. No rosto, muitas marcas. Uma cicatriz forma uma cruz na lateral da sua testa. Os cílios têm resquícios de brilho cor de rosa. As sobrancelhas estão pintadas, desenhando seu semblante. Ela tem rosto de boneca e boca de coração. A beleza é única, rara, ainda que as marcas das ruas insistam em ofuscá-la.

Enquanto tentamos conversar, porém, percebo uma movimentação ao nosso redor. Alguns dos homens que estavam na praça se aproximam para falar com ela. Um deles parece bastante alcoolizado, com olhos avermelhados. Agressivo, ele se senta ao lado dela e tenta abraçá-la à força. A mulher pede que ele saia. Em vão. Ele é alto e negro. No corpo, apenas uma bermuda de tecido. Está descalço, sem camisa. A expressão em seu rosto denuncia que está fora de si. Silencio, mas permaneço firme ao lado daquela mulher, como quem está ali para ser apoio para o que precisar. Novamente, ela pede que ele se afaste e, enfim, o homem sai perambulando pela praça.

A orientação do projeto, nesses casos, é que tentemos manter uma postura tranquila. Como muitas das pessoas

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atendidas estão sob efeito de álcool ou drogas, é necessário que saibamos lidar de maneira pacífica para evitar possíveis conflitos. Ao ver o homem se afastar, pergunto se ela quer continuar a conversa; poderíamos ir para um local mais reservado. Ela responde que poderíamos continuar ali e que ele não iria mais perturbá-la. As movimentações ao nosso redor, contudo, seguem. E outro homem, também alcoolizado, aproxima-se dela e começa a conversar. Notei que esse, apesar de bêbado, não tinha semblante agressivo. “Oi, como é seu nome?”, pergunta o segundo homem, olhando em meus olhos. Respondo e ele estende a mão para apertar a minha. Alguns segundos depois, pergunta novamente o meu nome. Ele segue ao nosso lado e a mulher não parece incomodada com sua presença. “Você é uma pessoa boa. Cuide dela, viu?”, diz ele, mais uma vez se direcionando a mim. “Você viu como ela está bonita? Ela fez a sobrancelha”, diz o homem. Nesse momento, a moça sorri timidamente e encosta a cabeça no ombro do rapaz. Ele tem estatura média, cabelos lisos e castanhos. Também veste apenas uma bermuda. Em seu peito, há uma tatuagem. Não consigo identificar do que se trata.

De longe, o primeiro homem começa a esbravejar pala-vrões e a incitar uma briga com aquele sentado ao nosso lado. “Saia de perto dela! Saia agora!”, ordena o homem mais agressivo, enquanto se aproxima do outro. “Não saia, fique aqui. Pode ficar! Ele não manda em nada!”, diz a mulher, segurando o braço do segundo homem, mantendo-o perto de si. Nesse meio tempo, vejo se aproximar uma senhora que, depois, compreendo ser a mãe do primeiro homem. “Você

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não se dá o respeito, mulher. Fica com meu filho e depois quer ficar com esse outro. Você só quer o dinheiro do meu filho!”, grita a mulher contra a entrevistada. Pacientemente, peço que se acalmem.

Nessa hora, o coordenador do projeto, Tennesse, e os demais voluntários se aproximam para acalmar os ânimos. Mas, sem que pudéssemos prever, o homem mais agressivo corre até a entrevistada e lhe dá um tapa no rosto. As pessoas que ali estão o seguram rapidamente e o levam para longe. Fico imóvel, inerte. Sinto-me assustada, impotente. Uma mulher acabou de ser agredida ao meu lado e a minha von-tade é apenas protegê-la de tudo isso. Olho para ela, com a mão acariciando a face ferida. Seguro em sua mão e olho em seus olhos, cheios de lágrimas. “Eu estou aqui, viu? Conte comigo. Eu estou aqui!”, são as únicas palavras que consigo dizer, enquanto minha mente gira e tenta processar tudo que tinha acabado de acontecer. Ao longe, ouço um dos homens gritando: “Eu vou matar ele! Eu vou matar!”. A mulher ao meu lado chora e, em um impulso, ofereço o meu abraço. Rezo baixinho em seu ouvido, como numa prece para que a dor cesse.

Sinto medo. Sinto indignação. Mesmo assim, reúno as poucas forças que me restam e levo aquela mulher para um banco mais distante. O coordenador do projeto e os voluntários conseguem apartar a confusão e voltam a realizar a ação com as demais pessoas. O agressor vai embora e os ânimos se acalmam aos poucos. Olho para a mulher e ela parece inquieta, um pouco confusa. Pergunto se ela se sente à vontade para continuarmos conversando e ela responde

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que sim. Porém, noto que a linha de raciocínio em sua fala não se completa. Questiono-me, em silêncio, qual seria a história daquela mulher. Observo seus movimentos. Lentos e perdidos. Não consigo identificar se é apenas o efeito da vacina ou se ela está também sob efeito de alguma substância. Seus olhos estão baixos e, a todo instante, pede que um dos companheiros traga cigarro aceso para ela. Também pede bebida. Reclama de fome. Olha ao redor, inquieta.

Continuo nossa conversa, mas sem saber ao certo se aquele diálogo preencheria o papel em branco. Tento fazer perguntas sobre o dia a dia, a história de vida, mas a maioria das respostas fica inacabada. Ela se perde entre um relato e outro e me olha como quem não se lembrasse mais do que falava. Das poucas informações que consigo captar, a que mais me toca é sua relação com as filhas. Sempre que fala sobre isso, sorri. Ela conta que as duas mais velhas já estão casadas e moram em suas próprias casas. Tem também a caçula, de apenas sete meses. “É a coisa mais preciosa da minha vida”, sorri. Questiono onde a bebê está, mas não obtenho resposta. Ela fica em silêncio e o pensamento voa ao longe. Respeito o seu espaço.

Tento perguntar novamente sobre a sua vida, o que a trouxe até aqui. “A minha vida é muito difícil. Já sofri muito, sabe?” A mulher me conta, entre pausas prolongadas, que já foi espancada pelo ex-marido. “Ele colocou fogo em mim”, revela, enquanto aponta para algumas marcas no braço. “Outra vez, eu apanhei na rua. Bateram na minha cabeça e ela se abriu. Passei dias internada no Hospital Walfredo Gurgel”, lembra. Ouvir aquilo me dói e, involuntariamente, penso

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em quantas histórias como aquela se repetem diariamente. Quantas mulheres são espancadas, ameaçadas e mortas por homens covardes. Lembro-me de todos os casos de femini-cídio que noticiei nos poucos anos que atuo no Jornalismo. Vidas que foram brutalmente interrompidas. Como num instinto feminino, as minhas entranhas clamam por Justiça. “Quando isso vai acabar?”, questiono-me, incrédula, em meio aos meus próprios devaneios. A vontade é de chorar, gritar, pedir que parem. Parem de nos matar!

Tento seguir a conversa com aquela mulher. As marcas em seu corpo revelam os sofrimentos pelos quais ela passou e sobre os quais jamais saberei com detalhes. Com frases inconclusas e interrompidas pelo silêncio, nosso diálogo não avança. Ela para, silencia e deixa o olhar ser guiado ao longe. Apenas a observo, em silêncio. Ela olha para mim e sorri timidamente. “Tenho fome”, diz. Pouco depois, os demais voluntários começam a entregar os lanches. Busco um kit para ela, que come, devagar, saboreando cada pedaço do alimento. Bebe um gole do café quente. “Está bom?”, per-gunto. Ela acena a cabeça em sinal positivo e segue fazendo sua refeição. Talvez a primeira depois de dias sem comer. Continuo observando, enquanto ela finaliza o lanche.

O olhar caído, as cicatrizes no rosto, os dentes destruí-dos, que quase já não mais existem na boca… Ao lado, apenas uma bolsa com roupas. Nem documentos tinha mais. Mas eu sabia e sentia que, por trás daquela mulher, havia muita dor. Havia uma história que talvez nunca ninguém conseguirá desvendar. Havia traumas, dilemas, lutas. Havia resistência. Havia coisas que nem mesmo ela conseguia traduzir em

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palavras. Em dado momento, como num instinto, olho em seus olhos e digo o quanto ela é forte, o quanto ela é capaz e quantas coisas já superou para chegar até aqui. Ela retribui o olhar e percebo que há lágrimas em seu rosto. Seguro novamente em sua mão e ela dá um novo sorriso tímido. “Eu sei que eu sou forte. Eu sei”, sussurra, mais para si que para mim. Era como se ela quisesse lembrar a si mesma aquilo que era dito.

Nesse momento, olho para o meu caderno e me deparo com o papel em branco. No cantinho, apenas o rabisco com o nome daquela mulher que me abriu o coração. Nome este que opto por não escrever aqui neste livro. Antes mesmo que eu pudesse concluir a nossa conversa, somos surpreendidas mais uma vez pelo homem que, há pouco, havia desferido um tapa em seu rosto. Desta vez, aparenta estar mais calmo. “Vamos embora, mulher!”, diz ele que, a essa altura, percebo ser o atual companheiro dela. Ela olha para ele e depois para mim. “Eu vou com ele”, declara. Seguro em sua mão firmemente e, olhando em seus olhos, pergunto: “Você tem certeza disso? Se não quiser, não precisa ir. Eu estou aqui com você! Você não precisa ir”. Ela se levanta lentamente, recolhe a sua bolsa e sussurra baixinho: “É melhor eu ir!”, e assim vai embora, antes mesmo que eu possa esboçar qualquer reação. Novamente, sinto-me impotente. Observo-a caminhando, ao longe, ao lado daquele homem. Nem conseguimos nos despedir. A história fica inacabada e o meu coração, apertado. Respiro fundo e apenas imploro aos céus para que proteja aquela mulher cujo nome guardarei para sempre rabiscado no cantinho do papel em branco.

Wladimy Paiva Burlamaqui

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capítulo 6

Viver é como ganhar na loteria

Sábado. O relógio marca 9 horas. Chego para mais um dia de ação, desta vez com a entrega de almoços. Aos fins de semana, a movimentação

é mais intensa e o tempo para conversar com as pessoas atendidas é ainda maior. As horas da manhã são inteiramente preenchidas com esses encontros. Isso me deixa entusiasmada e ansiosa pelas histórias que eu poderia descobrir. Ao chegar ao mesmo ponto de encontro das outras vezes, já noto muitas pessoas na praça Padre João Maria. A ação será coordenada por Adriana Vasconcellos, missionária do Shalom, mas ela ainda não chegou. Em pontos espalhados da praça, vejo alguns voluntários já conversando com as pessoas.

Aproximo-me de um pequeno grupo e sou recepcio-nada com calorosas boas-vindas. O cenário é acolhedor. Na calçada ali perto, uma fogueira improvisada cozinha uma panela de sopa. Homens, mulheres, crianças, idosos

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e até cachorros se confraternizam naquela manhã de sol, enquanto provam a sopa de seu Wladimy. “Ah, sempre que eu posso, trago comida para dividir com eles”, diz o homem de aproximadamente 50 anos, que também vive na rua. Muito simpático, ele nos acolhe na praça como quem recebe uma visita em sua casa. Usa uma camisa surrada de tricot ao avesso, um boné colorido e óculos espelhados. No pescoço, pendura um grande terço de madeira e uma cruz de mesmo material. Empolgado, começa a contar sua história. Enquanto ouço, planejo em pensamento o passado para o qual eu iria viajar naquela manhã: “Vai ser ele”, falo mentalmente, com os olhos apontados para Wladimy.

Nesse meio tempo, mais voluntários do projeto se juntam à conversa. Poucos minutos depois, Adriana chega trazendo os EPIs. No carro, como da outra vez, estão também as caixas de isopor com as refeições. A coordenadora nos reúne em um local reservado, explica a dinâmica daquela manhã e pede para vestirmos os macacões brancos, as luvas e as faces shields. Há muitas pessoas naquele sábado e, cer-tamente, muitas histórias para serem contadas.

Papel e caneta na mão, dirijo-me diretamente para Wladimy. “Opa, venha cá. Sente-se! Fique à vontade!”, diz ele, sempre receptivo. Acomodamo-nos em um dos bancos, ao lado de onde sua cachorra, carinhosamente chamada de Estrelinha, dorme um sono profundo. “Diga-me, o que a senhorita quer saber? Eu conto tudo, minha flor!”, fala Wladimy, com um sorriso grande à mostra. Ele tira do bolso uma carteira amassada, onde guarda alguns de seus documentos. “Eu era bonito aí, viu?”, aponta para a foto

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3x4 em seu RG. Na imagem, um homem, uns 20 anos mais jovem, com barba longa e cabelos negros. Wladimy Paiva Burlamaqui, nascido em 20 de janeiro de 1972, dizem as informações grifadas na identidade. “Nessa época aí, eu era fuzileiro naval, acredita?”. A curiosidade me invade, quero saber mais sobre ele.

Antes de continuar, porém, ele franze a testa. “Isso não é para dar dinheiro para Bolsonaro não, né?”, questiona, referindo-se ao papel em minha mão. “Porque, se for, eu rasgo. Se for dar algo para o governo, não dê não. Porque o governo não nos ajuda. Tem gente que chega aqui e não nos ajuda. Vem só na época de política. Aí eles pegam o dinheiro e querem dar para os ricos. Tem muita gente que não foi vacinada. O governo não traz a vacina para a gente. Traz só para os ricos. Vá ali no Palácio dos Esportes, só tem carro. Se você chegar para tomar a vacina, eles não dão não. E a gente aqui morrendo. Eu estou morrendo”, lamenta o homem, entre palavrões e xingamentos ao Poder Público.

Posso ver a veia dilatada no seu pescoço. Há raiva, indignação. Compreendo e me solidarizo com a sua justa revolta. Como ele, dezenas de outras pessoas sentadas ao nosso redor denunciam o descaso. Largados à própria sorte. Abandonadas. No corpo, roupas sujas e rasgadas. Vestem-se de medo, dor e fome. Na pele, as marcas do perigo. Há feri-das, cicatrizes, manchas de sangue. Não têm onde dormir. Deitam-se sobre sacolas, nos bancos da praça, nas calçadas, nas ruas. Não têm o que comer. Comem os restos, o que sobra, o que alguém, vez ou outra, oferece-lhes.

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Respeitando a sua dor e espaço, peço licença para revirar as gavetas do passado e compreender o seu presente. “Eu nasci em Natal, mas conheço metade do Brasil. Fui para Teresina, morei nos bairros Cidade Jardim e Monte Castelo. Depois, para Brasília, morei em Águas Claras, Ceilândia e Paranoá. Aí, parti para Goiânia, a terra de que eu mais gostei. Morava na Avenida Goiás, pertinho da rodoviária”, diz, na velocidade de um viajante. Depois de encontrar morada em diferentes estados, Wladimy hoje permanece no Rio Grande do Norte, mas sem ter onde morar. “Cheguei aqui e fiquei na rua. Eu não gosto de estar aqui. Não gosto.” Por três vezes, repete essa última frase, enquanto diminui o volume da voz. Olha para baixo e silencia por segundos, com o semblante marcado de tristeza. Sinto que ele tem muito mais a contar.

Antes mesmo que eu pudesse fazer menção para con-tinuar, ele retoma a fala, como num repente: “Meu nome é Wladimy, mas meu apelido é Faísca. Todo mundo me conhece assim. Eu saí de casa com dez anos de idade. Saí para rua. Maconha para mim não presta. Cola para mim não presta. Eu virei bandido. Igual a um matador”, confessa Wladimy.

Dentre as andanças da vida, ele relembra quando certa vez deu de cara com a morte: “Uma vez eu estava no relógio, no Goiás, aí de repente começou uma confusão, de madrugada. Estava com duas facas e comecei a furar o cara lá. A confusão aumentou e entrei em um córrego para fugir. Corri, mas os caras me pegaram e quase me mataram. Cinco homens me pegaram dentro desse córrego. Apanhei tanto! Eles me puxaram pela perna e me bateram muito. Saíram me arrastando, fiquei todo rasgado. Cinco contra um. Dei

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uma de doido e desmaiei. Fingi que estava desmaiado para escapar da morte. Eles acharam que tinham me matado e me deixaram lá. Aí, depois, levantei e fui andando… Foi uma coisa doida, uma lombra”, detalha Faísca.

Episódio s como esse foram e ainda são constantes em sua vida. Escapar da morte virou rotina para quem a chance de viver é quase como ganhar na loteria. Tudo começou ainda na juventude, quando ingressou na Marinha do Brasil. “Eu era fuzileiro naval. Fui bater na África do Sul, trabalhando. Mas eu não era assim como hoje não. Era novo, tinha uns 22 anos. Era forte, o povo tinha medo de mim. Isso foi por volta de 1994. Fomos para África. Chegamos na corveta da Marinha, que leva o carro-tanque até lá. Eu era homem-rã, usava capacete-azul e tinha uma metralhadora que atirava embaixo d’água. Éramos eu e mais quatro homens na tropa. Chegamos e os caras meteram bala. Eu dizia: ‘Vamos para cima’. E a gente atirava mesmo. Mas não atirava em criança nem em mulher. Atirava nos inimigos que queriam atirar na gente. E morreram todos eles.”

Das imag ens que mais lhe marcaram na África, Wladimy confessa nunca se esquecer da crueldade que, segundo ele, os inimigos faziam com os inocentes. “Os caras saíam com o facão, matando a mulher, arrancando os peitos delas. Eles pegavam as crianças e cortavam as pernas”, reme-mora. Sinto repulsa ao imaginar as cenas da história contada por ele. Não sei ao certo o que é real ou o que é delírio, mas permaneci atenta a cada sílaba narrada.

Wladimy conta que o seu serviço na Marinha, porém, foi interrompido. “Fui expulso da corporação. Sabe por quê?

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Eu vou falar para a senhora: eu não bebia ainda não. Sabe o que é que eu fazia? Cheirava pó. Para não ter medo de morrer. A gente cheirava cocaína, pura. A minha tropa cheirava”, admite Wladimy. Ao ser expulso, ele conta que foi levado para o Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. “Quando cheguei da África do Sul, me prenderam lá na Papuda. Passei dois anos e seis meses. Depois, o Governo me tirou, dizendo que eu era militar e não podia ficar lá.” Foi então que partiu para Goiás, estado vizinho. “Quando cheguei lá, me prenderam de novo. Fiquei pensando: ‘Vou ser preso quantas vezes?’.” Anos se passaram entre um presídio e outro, e Wladimy viveu parte de sua vida vendo o sol nascer quadrado, amontoado sobre os erros que cometeu.

Talvez por medo ou vergonha, ele não detalhe sobre os crimes que carrega na bagagem da vida, mas garante que pagou por cada um deles. Algumas memórias são mais difíceis de trazer à tona, principalmente quando tocam em feridas que ainda não cicatrizaram por completo. Em dado momento, ele ainda deixa escapar um momento que viveu, já em terras potiguares. “Sabe a rebelião que teve em Alcaçuz? Eu estava lá. Eu vi os homens morrendo na minha frente. Era sangue para todo lado. Eu estava na guerra. Sabe o que é guerra? Eu estava na guerra. Aquilo ali foi uma guerra.” O episódio ao qual ele se refere aconteceu em janeiro de 2017, quando presos do Pavilhão 5 da Penitenciária de Alcaçuz invadiram o Pavilhão 4 para matar os rivais. Ao menos 26 homens foram mortos no mais brutal e sangrento massacre da história do sistema prisional potiguar.

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Uma pausa. Wladimy olha ao redor e, de longe, avista um colega segurando uma lata de cachaça. “Ei, me dá uma dose. Venha cá, só um golinho”, grita para que o homem no outro lado da praça possa ouvir. “Só um instante, venho já”, diz para mim. Ele se levanta rapidamente e dá alguns passos em direção ao colega. Pega a lata e despeja a bebida na própria boca. Fecha os olhos e respira fundo, saboreando cada gota daquele líquido. Retorna para o banco, senta-se novamente ao meu lado e continua a conversa. Quero saber mais sobre a sua história e os caminhos que o trouxeram até aqui. Ele conta: “Eu tinha uma mulher lá no Centro-Oeste. Ela era linda. Mas o traficante a tomou de mim. O bagulho foi doido. Aí eu decidi voltar para Natal. Vim de avião. Sabe aquele Aeroporto em São Gonçalo? O novo? Pronto, o avião parou lá e eu desci. Aí cheguei a Natal. Cheguei e fiquei na rua”, lamenta, com voz embargada. “Tem polícia que chega aqui e, quando eu mostro meu documento, não acreditam. Dizem assim: ‘Rapaz, tu foi tudo isso? E tu és agora um alcoólatra?’”, conta Wladimy, que hoje carrega nas costas o peso do vício.

“O momento mais feliz da minha vida foi com minha família. Quando tinha meus oito filhos pequenos e minha mulher morando comigo. Era um homem feliz. Mas, depois que perdi tudo, virei alcoólatra… Não fumo craque, nem maconha. Cigarro, ainda fumo um pouco. Mas o álcool… Foi ele que me fez perder tudo. Acabou com minha vida. Perdi minha família. Foi um nocaute. É como se tivessem me dado um murro e me derrubado.” Há lágrimas em seus olhos. Faísca, como é conhecido pelos colegas, relembra

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também o momento mais triste: “A rua. A rua é o momento mais triste da minha vida. Ficar aqui na rua de madrugada, com os meus cachorros, com fome e frio. Quando chove, o frio vem. E o bagulho fica doido. Não tem malandro que fique perto.”

O momento mais triste, na verdade, não é um momento. É uma vida. É uma rotina sofrida que se repete todo dia. Há anos. “Tenho uma amiga que mora ali perto da outra praça e, às vezes, me dá a chave para eu dormir lá no barraquinho dela, no chão. Eu gosto dela. Ela me ajuda. Lá tem geladeira, tem fogão, mas nem sempre tem comida. Às vezes, ela deixa uns ovos, cuscuz. Aí eu trago a panela e dou aqui para a galera toda. Eu gosto de ajudar quando posso. Eu faço tudo pelo povo de rua.” Wladimy aponta para a calçada ao lado, onde há uma panela sobre uma fogueira improvisada com tijolos, no cantinho da rua. Mais cedo, a sopa que Wladimy cozinhou, serviu de alimento para dezenas de outras pessoas ali. Do pouco, fez muito. Dividiu a refeição com aqueles que, assim como ele, há dias não tinham o que comer. “Eu rezo de madrugada. Acordo às 3 horas da madrugada, venho aqui para a praça e começo a beber. Fico sentado com meus cachorros. Eu sou um alcoólatra”, fala, pausadamente.

“Eu sou um alcoólatra”, ele repete, só que desta vez olhando profundamente em meus olhos. Wladimy faz men-ção para segurar a minha mão. Eu permito. Ele crava os olhos nos meus e diz, baixinho: “Moça, eu posso te pedir um favor?” Respondo que sim, sem saber ao certo o que está por vir. “Me ajude…”, diz, quase sussurrando. “Por favor, me ajude. Me leva para uma clínica. Me interna. Eu vou

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agora. Pego as minhas roupas e vou”. Antes que eu pudesse responder, ele continua: “Estou morrendo. Eu me sinto mal demais. Queria conseguir ficar internado pelo menos 20 dias. Porque eu não paro de beber. Bebo 24 horas. Preciso me internar, porque o médico falou que eu tenho que tirar o álcool do meu sangue”, explica em súplica.

Wladimy conta que, há três anos, sofre com uma hérnia inguinal. Ele precisa passar por uma cirurgia para a retirar e já até conseguiu que o procedimento seja realizado no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal. Mas, para isso, precisa desintoxicar o álcool do corpo. “Me ajuda! Não tenho medo de nada não. Tá entendendo? Não tenho medo de polícia, não tenho medo de traficante, não tenho medo de nada não. Eu sou bandido. Agora é o seguinte: eu tenho medo da cirurgia. Eu tenho medo dessa hérnia que já está do tamanho de uma laranja. Dói tanto. Deixa minhas pernas dormentes. Tem dias que não consigo andar. Eu preciso fazer essa cirurgia. Eu queria tirar isso de mim.”

Vejo-me inerte, sem reação. Tento pensar em formas de ajudar aquele homem, mas todas as possibilidades fogem da minha mente. Fui pega de surpresa, sem saber ao certo como proceder. Há dor em seu rosto. O sofrimento é latente. A dor dele respinga em mim. Tenho a sensação de enxergá-lo em alto mar, afogando-se no próprio vício. A morte chega em doses homeopáticas. A cada dia, ele morre um pouco mais. Morre de fome, de frio, de dor, de vício. Ele pede que eu estenda a minha mão em sua direção. Ele implora. “Me ajuda, por favor, me ajuda!” Sem pensar duas vezes, seguro a sua mão. Digo que sim. Prometo ajuda. Prometo sem nem

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saber como posso ajudar. Prometo com medo e insegurança, mas com a mão estendida para alguém que sofre. Aos poucos, aquele homem ao meu lado vai se acalmando. Respira fundo e devagar. O cheiro do álcool toma conta do espaço. Em meus próprios pensamentos, decido que compartilharei o pedido de Wladimy com a coordenação do Shalom Amigo dos Pobres, que saberá a melhor forma de viabilizar a ajuda necessária.

Depois de segundos de silêncio, ele mesmo retoma a fala. “Eu posso falar um negócio?” Digo que sim. E, para minha surpresa, começa um novo assunto. “Você sabe o que eu faço? De artesanato? Faço tudo de corda e de cobre. Faço cortina, faço cadeira, faço tudo de cobre e de corda grande. Sou um artesão profissional. Desde bebê, meu pai me ensinou. Meu pai era artesão e me ensinou a fazer. Faço escorpião, o psi, letra grega, balança da advocacia… Tudo no cobre. E também peças grandes de corda, jarro lindo, caqueira. O ruim é que eu bebo. Mas se eu investisse nessa arte, dava dinheiro. É uma arte linda que eu faço. Eu também desenho. É porque o material não está aqui. Se não eu desenhava para você, de presente, o rosto de Cristo, bem lindo. Parece até vivo. Desenho com o giz. Ia ficar lindo”, explica Wladimy, enquanto abre um grande sorriso ao relembrar a arte que pulsa em sua veia.

Observo-o por mais alguns segundos e meus olhos são atraídos para o terço e a cruz pendurados em seu pes-coço. Sinto curiosidade. Ele os segura com as mãos e diz: “Esses aqui foram os padres da igreja que me deram. É a minha proteção. Você quer um?”, me oferece, num ato gene-roso, como se também quisesse que eu ficasse igualmente

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protegida. Agradeço o presente, mas recuso. Eu sabia que ele iria precisar mais que eu. “O almoço vai sair daqui a cinco minutos!”, grita alguém ao nosso lado, despertando minha atenção. Fiquei tão envolvida nas reviravoltas da história de Wladimy, que não vi o tempo passar.

A movimentação ao nosso redor está intensa e as filas para a entrega das refeições começam a se formar. A maioria das pessoas comemora a oportunidade de comer a feijoada preparada pelos voluntários do Shalom Amigo dos Pobres. Era um sábado diferente. Para mim, ainda mais especial. Olho novamente para Wladimy e agradeço a oportunidade de escutá-lo. De conhecer a sua história. De enxergar o seu coração. De desvendar as suas dores. Agora a vida segue e, quem sabe, numa outra manhã de sábado, não nos esbar-ramos por aí.

Sandra Barbosa de Almeida

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capítulo 7

Vai ser feliz, Sandra

Mais uma manhã ensolarada de sábado me convida a ir ao encontro de novas histórias de vida. Como na semana anterior, acom-

panho a equipe do Shalom Amigo dos Pobres na entrega dos almoços. Chego ao local marcado por volta das 9 horas. É o mesmo ponto de encontro de sempre: praça Padre João Maria, por trás da antiga Catedral. Ao me aproximar, vejo que outro grupo religioso, a Comunidade Católica Lumen, realiza uma ação social com as pessoas que ali vivem. Eles cantam, rezam e organizam a entrega do café da manhã. Os voluntários do Shalom se unem à iniciativa e, juntos, fazem um momento de acolhimento às pessoas em situação de rua.

Vestindo os EPIs, posiciono-me próxima a uma árvore. Com caderno e caneta na mão, começo a observar silencio-samente o momento vivido naquela manhã. Faz sol e sinto o suor escorrer na minha espinha. O vento que sopra ameniza o calor, enquanto balança as folhas da árvore sobre a minha

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cabeça. Olho ao redor. Há tantas pessoas ali: homens, mulhe-res, crianças. Todas as idades. Parecem bastante confortáveis e felizes com aquele momento. Cantam músicas, louvam a Deus e recebem orações dos membros das comunidades. Em alguns pontos, noto alguns tímidos, outros mais extrovertidos e tem até os que se emocionam. Posicionado à minha frente, um homem de touca e camisa de time encosta a cabeça no tronco da árvore. Ele chora. Chora como criança. Talvez por perceber a minha presença, olha em minha direção e diz: “É muito sofrimento, moça… É um sofrimento sem fim”. Antes que eu esboçasse alguma reação, volta a apoiar a cabeça no tronco e faz, baixinho, uma prece.

Segundos depois, a oração em grupo chega ao fim. Um dos coordenadores propõe uma apresentação coletiva, para que todos se conheçam. Uma senhorinha de baixa estatura, com um casaco marrom cobrindo os braços, espontanea-mente, é a primeira, bastante animada com a interação. “Sou Sandra!”, diz, levantando o braço. Todos a aplaudem e ela abre um grande sorriso. “Quero conhecê-la”, penso comigo mesma. Espero as apresentações terminarem para ir ao encontro de Sandra. Enquanto isso, converso com algumas pessoas ali, na curiosidade de desbravar um pouco mais aquela realidade.

Esbarro em um senhor baixinho, com bermuda cáqui, camisa azul e chinelo de dedo. Ele olha para mim e sorri. “Você tem um papel e uma caneta?”, pergunta. Respondo que sim e entrego o material em suas mãos. “Posso fazer um desenho para você?”, diz, sorridente. Animo-me com a proposta e espero para ver o que virá. Enquanto rabisca a

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folha do caderno, ele diz que é artista. Vive da arte, dorme na rua. Já até desenhou o rosto de Cristo em frente ao Forte dos Reis Magos. “Ficou a coisa mais linda”, conta, com orgu-lho. Olho em direção ao movimento de suas mãos e vejo o desenho se formar. Em poucos minutos, a face de Jesus aparece em meu caderno. “Um presente para você. Qual o seu nome?”, pergunta, enquanto escreve uma dedicatória. Finaliza a obra de arte com a sua assinatura: “Francisco”, diz o nome ao pé da folha. Ele me entrega o papel e fico encantada com o que vejo. Quanto talento! Ele se despede e segue o próprio caminho.

Olho novamente ao redor. Os grupos já se dispersam pela praça. Vejo Sandra sentada na calçada, tomando o café da manhã que acabara de receber. Ela mastiga lentamente, enquanto olha para o horizonte sem perceber minha presença. Ao seu lado, um senhor de chapéu também faz a refeição. Aproximo-me devagar e ela sorri timidamente quando me vê. Peço licença e sento-me também na calçada. Pequena, frágil, enrolada em um casaco marrom desbotado. A magreza grita e denuncia a fome. Posso ver seus ossos saltarem. No cabelo, os fios brancos tomam conta da raiz. Embaraçados, se unem em um rabo de cavalo baixo. No queixo, a máscara de tecido com desenhos coloridos aguarda Sandra terminar o café.

“Sou Sandra Barbosa de Almeida. Mas não sei assinar o meu nome não”, avisa de antemão. Quando questiono sua idade, a memória a trai. Conta que seus documentos foram roubados. “Acho que tenho 52 anos. Fiz agora há pouco. Foi no dia 20 de junho, né Seu China?”, olha para o senhor ao lado, pedindo que confirme a informação. “Eu sou das

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antigas. Nasci no Goiás, em Goiânia, sou natural de lá. Mas estou aqui em Natal desde quando perdi a minha mãe, com dois aninhos de idade.” Percebo a tristeza em seus olhos. “Perdi minha mãe e meu pai. A minha mãe morreu primeiro, por causa de um arroto. Depois, o meu pai morreu, de coração, dentro do banheiro.” Sandra foi criada por uma tia. “Era Tia Maria. Ela já morreu também. Quando perdi meus pais, ela virou a minha tutora e me trouxe para cá.” Além de Sandra, Sebastião e Cícera deixaram órfãos outros cinco filhos: Leônia, Elsa, Euripe, Neco e Sônia. Hoje, vivem espalhados pelo Brasil. As duas primeiras ainda moram em Goiânia, os homens estão em terras potiguares e a mais nova se mudou para Recife.

“Sinto falta da minha mãe desde que ela morreu. Não tinha ânimo para viver nem para dormir… Até hoje eu não tenho. A gente sente uma falta tão grande da mãe! É grande, é grande mesmo. Quando perde a mãe e o pai, a gente não é nada na vida. Ninguém quer saber da gente. A não ser Jesus. Ele nunca me abandonou. Sempre foi meu advogado.” A dor de Sandra transborda nos olhos. Ela chora. Mesmo depois de tantos anos, a morte dos pais ainda a atormenta. Tem dor que nunca passa. Tem ausência que nunca se preenche. Viver sem pai e mãe predestinou Sandra para sempre. Ela sabia, desde pequena, que não seria ninguém pelo resto da vida. “A relação com minha tia, irmã do meu pai, era normal. Ela me criou meio que por obrigação, porque eu era filha de Sebastião. Mas ela também se foi, quando eu tinha 15 anos. Morreu e ficou só eu e meu primo morando em um quartinho abandonado, perto da feira do Carrasco.”

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Sandra foi levada ao internato, onde passou boa parte da juventude. “Era triste. Eu sofria demais. Porque lá o povo não podia usar arma, mas, mesmo assim, queriam usar. Eles nos agrediam, nos castigavam. Era triste. Passei muitos anos. Quase minha juventude toda. Só Deus sabe”, relembra. Antes mesmo que pudesse viver a fase adulta, foi mandada para a cadeia. “Tive um negócio da Justiça, fui para a cadeia. Fiquei na prisão. Foi um negócio sério”, narra, sem dar detalhes. Respeito sua escolha. “Se eu for contar, você vai chorar. Porque é uma história muito triste. O povo só quer judiar com as pessoas. Mais nada.” Foram quatro anos dormindo e acordando atrás das grades. “Na prisão é muito triste. Não queira nem saber. Mas eu me comportava lá. Trabalhava na cozinha, ganhava meu salário. Todo dia 5, recebia meu dinheiro e mandava para minha família. Tinha um compor-tamento excelente, então consegui sair mais rápido. Quando saí, usei aquela pulseirinha no pé [tornozeleira eletrônica]. Mas já paguei tudo e não devo mais nada nessa vida”, garante.

Das tragédias que viveu, Sandra cita ainda os relaciona-mentos que não deram certo e as decepções que amargaram, para sempre, sua história. Não teve um homem que passasse pelo seu caminho sem deixar cicatrizes. “Nunca tive sorte com marido. Era espancada. Apanhava em silêncio. Sofria toda noite”, conta a senhorinha. Ela enterrou um por um. “Estão todos debaixo da terra. Ou mataram ou morreram.” Das relações conturbadas, nasceram cinco filhos. “John Lennon é o mais velho. Ele deu uma pancada na minha cabeça e eu não falo mais com ele não. Johny Eberton nasceu depois. Bruce Lee Johny é o especial, que mora com a avó,

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em Mãe Luiza. Ele tem problema por causa da raiva que senti do meu marido. Quando estava grávida, ele arrumou uma amante. Descobri e comecei a brigar com eles, estando com o bebê na barriga. Isso afetou a gravidez e meu filho nasceu com um distúrbio”, relata.

Tento compreender a dor de Sandra. Em vão. Uma mulher grávida, traída, agredida. Uma mulher que precisou lidar, sozinha, com a doença do filho e enfrentar o mundo com outras quatro crianças para criar. Ela continua: “Tem ainda o anjo Gabriel, o caçula. Nasceu prematuro, com sete meses. Mas foi a avó quem criou, porque foi bem na época que fui presa. Faz tempo que não o vejo. Sinto saudade. Qual é a mãe que não sente saudade dos filhos?”, lamenta. De repente, abre um sorriso tímido, ao lembrar-se da filha Poliana. A única mulher. “Minha menina é o único motivo da minha felicidade. Tenho lembrança de quando ela era pequenininha. Faz tempo que a gente não se vê. Por causa da Covid-19, ela não veio mais me visitar. Ela fez uma tatuagem em minha homenagem, com a frase: ‘Amor só de mãe’ e uma coroa. Ela é tudo para mim. É o meu amor, a minha vida. Ela diz: ‘Mãe, você pode ser uma assassina, mas eu sempre vou te amar’. Ela é muito boa para mim, diferente dos irmãos mais velhos”, conta, emocionada.

Hoje, Sandra vive longe de todos os filhos. Tenta seguir a vida sozinha, morando na rua, dormindo nas calçadas, sobrevivendo ao frio e à fome. “Durmo na rua. Durmo nessa subida perto do Sesc. Coloco os lençóis e deito no chão. Não tenho medo. O povo às vezes passa e deixa comida para a gente. Alguns dias, durmo no vão de uma amiga, que

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mora ali perto da outra praça. Ela deixa eu dormir lá, numa caminha improvisada no chão.” A comida já lhe faltou e falar sobre isso faz com que a expressão de dor tome conta de seu rosto mais uma vez. “Já faltou comida, sim. Já passei fome. Já faltou a ponto de eu chegar a dizer: ‘Meu Deus, não tenho nem um pão duro para comer’. Era desesperador. Mas Deus providenciou. Uma vez, estava angustiada com fome e a vizinha me deu um prato de comida. A coisa mais triste é você passar fome.”

Como Sandra, quantos por aí? Quantas barrigas per-manecem vazias por dias? Quantas famílias sofrem em silêncio a dor da fome? Lembro-me das mães com as quais, inúmeras vezes, cruzei nos sinais da cidade. Elas imploravam por comida, enquanto carregavam os filhos pequenos no colo, sob o sol escaldante do meio-dia. A fome não tem hora. Chega devastadora. Esvazia a alma e faz doer. Penso nos projetos sociais que auxiliam na missão de saciar a fome. E se não fossem eles? Se não fosse a solidariedade dos poucos? Quantos teriam morrido pela falta de um prato de comida? Quantos já morreram? Perco-me em meus pensamentos, enquanto condeno, em minha mente, a ineficiência do Poder Público.

Sandra me retoma a atenção. “Tem algumas pessoas que ajudam, sabe? Sou muito grata a eles. Têm os que doam roupas. Outros doam comida. Aí tem a doação do kit de higiene, que vem com creme dental, sabonete, barbeador, toalhas, essas coisas. Tem um lugar onde a gente pode tomar banho também”, detalha a mulher, enumerando as ajudas que recebe pelas ruas do Centro de Natal.

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Foi nas andanças pela cidade que conheceu seu atual companheiro. “De todos os homens que passaram em minha vida, o único que serve é esse senhor aqui sentado ao meu lado. Ele é excelente para mim. O nome dele é Severino Benevides, mas o apelido é Seu China. A gente conversa há muito tempo. Vai fazer 11 meses que estamos juntos. A gente se dá bem. E assim vamos vivendo”, enquanto fala, olha para o lado, onde se senta o homem a quem se refere. Eles sorriem, tímidos, um para o outro. Um sentimento genuíno que nasceu na rua e, por entre os paralelepípedos tortos, floresceu.

Felicidade, porém, é palavra rara na vida daquela mulher. “Sinto tristeza. E falta de amor. Mais nada. Desde que perdi meus pais. Isso que eu sinto. Nunca saiu do meu peito. Toda hora me dá vontade de chorar. Mas eu converso com Deus e fico mais calma. Porque eu tenho um Deus que pode tudo. Ele nunca me abandona. Eu posso sofrer o que for. Choro ali, choro na esquina, choro em outro canto, mas Deus está comigo”, fala pausadamente, entrelaçando as mãos como num gesto de oração e fé. Conta que, se pudesse, mudaria a vida. Recomeçaria do zero. Reescreveria a sua história desde a página um. “Queria mudar minha vida. Desde que perdi minha mãe, ando para cima e para baixo que nem uma cigana. Queria viver uma vida normal como todo mundo. De que adianta estar na rua, morando na casa de um e outro? Isso não é vida não.”

Apesar da dor, Sandra ainda nutre sonhos que ali-mentam a alma. “Meu sonho é ter a minha casa própria. Ter todos os meus móveis. E depender só de Deus e de mais

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ninguém.” E acrescenta um desejo particular, que até então não havia sido comentado ao longo da conversa: “Sou alco-ólatra. Tenho o sonho de um dia Deus me tirar desse vício. Ele me tirou do crack, já faz quatro anos. Ele então vai me tirar do álcool também. Eu creio. É ter fé e força de vontade. Ele vai me tirar. Eu tenho muita fé em Deus. Tenho um Deus que pode tudo. Muita fé. Eu posso ser derrotada, mas não sou derrotada pelo inimigo. Mas eu tenho um Deus poderoso que me protege e nada me derruba. Tem muitas pessoas que querem me derrubar, mas tem um Deus que me segura”, reforça, repetidamente.

Sandra me fita com olhos marejados. A emoção é recí-proca. Observo calmamente aquela mulher. Como pode caber tanta força em um corpo tão frágil e pequeno? Nos ombros, o peso de uma vida inundada por tormentas. No passado, uma história que já nasceu fadada ao fim. O barulho na praça atrai nossa atenção. Os voluntários cantam músicas, enquanto as pessoas dançam ao redor, batendo palmas e sorrindo. Sandra olha com carinho para a cena. “Moça, eu vou para lá, viu?”, ela me diz, já se levantando num ímpeto. Carrega a pressa de quem não pode perder a chance de ser feliz, nem que seja por um mísero instante. Observo-a afastar-se e, com o coração em despedida, exclamo: “Vai ser feliz, Sandra!”

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agradecimentos

Tenho tanto a agradecer. Uma das sensações mais reconfortantes é olhar para o lado e saber que há com quem contar. A caminhada fica mais

leve quando compartilhada. Escrever é um ato solitário, mas este livro certamente é um somatório de todo o incentivo, amor e apoio que recebi pelas estradas da vida.

Agradeço a Deus, pelo dom da vida e da escrita.Ao meu pai, Júnior, por não me deixar desistir. À minha

mãe, Fátima, por ser consolo nos dias difíceis. Ao meu irmão, Filipe, por me acompanhar nas entrevistas. À minha irmã, Beatriz, por ouvir meus desabafos quase diários. Ao meu grande amor e companheiro de vida, André, por me lembrar, todos os dias, que tudo vai dar certo. Aos meus avós, Zé e Rita, por compreenderem meus passos apressados e me abençoarem todas as vezes em que eu cruzo a porta de casa.

À professora Janaina Barcelos, pela orientação impecável durante toda a construção deste livro e por me inspirar a trilhar o caminho do Jornalismo humanizado, sensível e transformador. À professora Célia, por toda generosidade com que me encaminhou à jornada acadêmica, por me incentivar

102 | Quando as ruas falam

durante toda a graduação e, claro, pelo lindo prefácio que abrilhanta esta obra. A todos os professores e educadores com os quais aprendi em minha vida: obrigada pela nobre missão de ensinar!

Ao missionário Tennesse Mendes, por viabilizar os encontros com as histórias que compõem este livro e por toda dedicação ao projeto Shalom Amigo dos Pobres. Estendo o agradecimento à missionária Adriana Vasconcellos e a todos os voluntários que me acolheram nas ações e me ensina-ram tanto sobre humanidade, empatia e amor. O mundo é um lugar melhor porque vocês existem. Agradeço também ao fotógrafo e voluntário Ewiton Moura, por fazer lindos registros das ações e gentilmente cedê-los para ilustrar este meu trabalho.

Às minhas melhores amigas, Bia e Julia, por estarem ao meu lado desde a infância e por serem verdadeiros anjos da guarda em minha vida. Aos meus amigos do ‘Balão Mágico’, Endy, Mireli, Yuana, Penélope, Igor e Willian, por colorirem os meus dias e por serem os melhores presentes que o IFRN poderia me dar.

Aos amigos da UFRN, Dani, Bruno, Michelle, Mariana, Naiara e tantos outros que dividiram comigo as alegrias e angústias da graduação. E novamente à Endy, minha eterna duplinha, por estar ao meu lado não só no ensino médio, mas também na faculdade. Agradeço também aos amigos das redações de jornais, de ontem e de hoje, pelos conselhos e ensinamentos compartilhados. Descobrir o Jornalismo com vocês tem sido uma grata aventura.

Letícia França | 103

Um agradecimento mais que especial aos personagens que dão vida a este livro, Wagner, Tia Maria, Tia Vera, Faísca, Sandra e a moça bonita de rosto de boneca, por escancararem as portas de suas histórias e me permitirem traduzir em palavras tudo que têm a falar. Quem dera o mundo também parasse para ouvi-los!

Por fim, agradeço a você que leu este livro até aqui. Foi para você que ele foi escrito. “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas.” (Mário Quintana)

Letícia França veio ao mundo em uma manhã ensolarada de primavera, no ano de 1997. Nasceu em Natal, cidade banhada pelo sol e pelas águas do Rio Potengi. Aos nove anos, decidiu que queria ser jornalista. Uma decisão precoce, mas certamente a mais sábia. Cresceu des-bravando as bibliotecas das escolas por onde pas-sou e encontrou nos livros um refúgio. A escrita veio logo depois, como conse-quência de um mundo que conheceu nas páginas de cada história que leu. Descobriu-se apaixonada por palavras e percebeu que é escrevendo que se sente realmente viva. Estudou Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e assim iniciou a profissão que todos os dias a convida a um cons-tante exercício de ouvir. De sentir. De olhar para o outro e enxergar nele uma narrativa que precisa ser contada. Para o futuro, anseia seguir em busca de muitas outras histórias extraordinariamente reais, assim como as que dão vida a este livro.

Encontre a autora: @le_ticiafranca

Sobre a autora

gráfica e editora

Composto naCAULE DE PAPIRO GRÁFICA E EDITORA

Rua Serra do Mel, 7989, Cidade SatélitePitimbu | Natal/RN | (84) 3218 4626

cauledepapiro.com.br

editora

ISBN 978-65-86643-58-9

9 786586 643589 >

A realidade das pessoas em situação de rua e/ou vulnerabi-lidade social me atraiu como um imã. Quis ir ao encontro delas. Conhecê-las por inteiro. Descobrir os caminhos do passado que as trouxeram até o presente. Enxergar suas raízes, tocar suas vísceras, sentir a vida que pulsa em cada esquina, calçada, rua. E eternizar toda essa experiência em um livro. Um livro sensível e real, tal qual as histórias que o preenchem.

Viver o jornalismo me fez mais humana. Viver a humanidade me fez

verdadeiramente jornalista.

Letícia França