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Biblioteca Nacional de Portugal

– Catalogação na Publicação REIS, Amândio, 1989- O livro encenado : escrita e representação em Ana Teresa Pereira.

– (Extra-colecção)

ISBN 978-989-689-549-5 CDU 821.134.3Pereira, Ana Teresa.09

Título: O Livro Encenado.

Escrita e Representação em Ana Teresa Pereira

Autor: Amândio Reis

Editor: Fernando Mão de Ferro

Capa: Raquel Ferreira

Imagem da capa: Dew-Drenched Furze,

de John Everett Millais

Depósito legal n.º 403 086/15

Lisboa, Dezembro de 2015

Este livro é financiado por Fundos Nacionais através da FCT

– Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do Pro-

jecto de Investigação “Falso Movimento – Estudos sobre Escri-

ta e Cinema” (PTDC/CLE-LLI/120211/2010) e do Financiamento

Estratégico (UID/ELT/0509/2013) do Centro de Estudos Com-

paratistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Índice

Prefácio: Da importância dos substitutos (Fernando Guerreiro) ............ 9

Preâmbulo ............................................................................................... 13

0.1. Escrever mal (Ana Teresa Pereira em contexto e fora dele) ............. 14

0.2. Inventar um outro livro ..................................................................... 21

Capítulo 1: O Fim de Lizzie ou o princípio da incerteza ...................... 29

1.1. Entre imagens e realidades, uma estética não-aristotélica ................ 32

1.2. Usar a arte como se fosse magia ....................................................... 44

Capítulo 2: Livros paralelos e fantasmas eloquentes ........................... 57

2.1. O naufrágio do discurso em O Verão Selvagem

dos Teus Olhos ................................................................................. 59

2.2. A Outra: um “inconsciente do texto” em The Turn of the Screw ...... 68

Capítulo 3: Livro, palco e mundo .......................................................... 77

3.1. Autores e actores em duas novelas teatrais: Inverness

e A Pantera ....................................................................................... 79

3.2. Alice do outro lado do Lago ............................................................. 97

Epílogo: Das maquetas em literatura ................................................. 113

Bibliografia citada ................................................................................ 117

A Fernando Guerreiro,

que iluminou o caminho.

Ao Zé,

que leu primeiro.

Prefácio

Da importância dos substitutos

“tento lembrar-me das coisas essenciais”

Ana Teresa Pereira

O Verão Selvagem dos Teus Olhos

“Interessa-me o mesmo não o outro”

Paulo Varela Gomes

Passos Perdidos

Se escrevemos/vivemos na situação de “queda” de um mundo original

– do plano arqui-real ideal de seres = arquétipos em que, como cria Poe

(Eureka), o belo coincidia com a verdade (“thus Poetry and Truth are

one”) –, então é relevante a importância que lhes damos e a escolha que

fazemos dos representantes = símbolos = substitutos em que ainda exis-

te/cintila algo dessa origem (estado anterior) e que, nesta escada de Jacob

em que os anjos tanto sobem para baixo como descem para cima, nos po-

dem servir de conectores/veículos de acesso a uma substância e um senti-

do distantes, talvez, mas não de todo perdidos.

Daí, compreende-se, a importância dos substitutos (A Outra), ou seja, dos

simulacros no sentido que Pierre Klossowski dá a esse termo e que Amândio

Reis discute no seu ensaio sobre Ana Teresa Pereira. Recordemos Klos-

sowski, de um texto sobre as telas de Balthus: “Le tableau [no caso de Ana

Teresa Pereira, a cena de escrita] n’est pas contemplation même, mais son

simulacre, et c’est pourquoi la vie figée à sa surface exerce une telle fascina-

tion; le tableau n’a pas d’être en soi, mais grâce au non-être du simulacre, ce

qu’il nous fait voir, c’est l’être où les choses ne peuvent plus mourir parce

qu’elles ne vivent plus; (…) le tableau nous offre moins un objet de contem-

plation, qu’il ne nous met dans l’attente du spectacle que cependant nous

10 FERNANDO GUERREIRO

voyons, mais qu’animent les démons intermédiaires entre l’artiste et le spec-

tateur” (Tableaux Vivants, Le Promeneur, 2001 [110-111]).

Também a “escrita” e(in)volui de uma sua concepção se não “miméti-

ca” – e que ganhava densidade/volume pela refracção nos ecrãs imaginá-

rios (fornecedores de modelos: tipos: imagens) da Literatura (por exem-

plo, a referência a um género, o policial, ou a um registo, o fantástico) ou

da Pintura (a certa altura, o caso dos pré-rafaelitas) – para uma sua per-

cepção mais “descarnada” (“uma escrita simples mas não seca”, de “ima-

gens fortes” e marcada pela “presença do que não estava escrito”, escreve

a autora em A Pantera [76-77]) que se entende e pratica como “drama” =

“acção”, isto é, performance.

Passa-se, assim, como refere Amândio Reis [39], de uma escrita-

-pintura (metafórica ou analógica, funcionando por analogias) a uma es-

crita-kinema (combinando intersticialmente dynamis e enargeia) que, ela

própria, um pouco como sucede com a linha ornamental (gótica) teoriza-

da por Heinrich Worringer, cada vez mais se encena: auto-apresenta (se-

gundo um “processo auto-reflexivo em que o texto performatiza a sua

própria natureza” [Reis: 22]) e, no gesto de o fazer, se dramatiza (nomea-

damente enquanto “encenação do acto de escrita” [Reis: 13]).

Se nessas primeiras fases da obra de Ana Teresa Pereira (cuidadosa-

mente estudadas por Rui Magalhães e, agora, Amândio Reis), a “escrita”

se tende a situar no (não-)lugar (ou lugar vago “entre”) da interface de

uma “concepção xadrezística das linguagens” [Reis: 98], fá-lo, pensamos,

para acentuar uma ocasião mais de “desencontro” do que de “síntese” das

“artes” – e daí, também, o carácter “estrangeiro”, a posição “orbital”

[Reis: 15] da autora nas “letras portuguesas” (?), mal habitando (e sempre

habitando mal) qualquer nicho que lhe seja proposto, para se situar antes

no horizonte de uma região “polar” (Eduardo Prado Coelho) que, contu-

do, constitui um inesperado reservatório de novas espécies de “formas” e

de “monstros” (o que talvez não seja muito diferente).

Impõe-se então – talvez a partir de A Neve ou, de forma mais marcada,

O Fim de Lizzie – uma escrita-teatro, mais nua e essencial, cuja dimen-

são performativa (trata-se de uma escrita dada em constante estado de

“ensaio”, dentro ou fora do palco, da página ou do livro [Reis: 19]) cons-

trói um tipo novo, agora encarnado, de “teatralidade”: um agir do real

(“as palavras de um escritor são acções”, teria dito Freud, citado pela au-

tora [Reis: 20]) na e pela representação.

PREFÁCIO 11

Como em Klossowski, com efeito, o “teatral” constitui uma acentua-

ção dos traços: contornos do “simulacro” pelos quais se refere não só o

“vivo” mas também se convoca, procura atrair, fazer vir (descer até/em

nós) o “divino” (Le Bain de Diane). Ou seja, contra o apagamento dos

seus sinais, a aparente fatalidade do desfalecimento da sua presença, an-

tes de mais produzir real. “À equivalência entre escrever e pintar, escre-

ver e encenar, escrever e representar, subjaz uma tarefa comum de reali-

zação, isto é, de transformação em realidade de uma espécie de texto

primordial, em infinita reescrita”, recorda-nos Amândio Reis [24].

É esse também o lado pornográfico da escrita. Algo que se dá a ver:

mostra: exibe (através da “artificação”, carnalização mesmo da “arte”

[Reis: 55]) para seduzir = encarnar o divino. “Le tableau [ou o texto] en

tant que simulacre ne fait que reproduire le stratagème diabolique”, es-

creve Klossowski, que precisa: “Ainsi, travailler à un tableau [cena: qua-

dro: maqueta de um texto], quel qu’en soit le «motif», reviendrait à con-

trefaire son modèle invisible – l’analogue démoniaque de sa propre émo-

tion – et donc à le séduire par la «ressemblance» de son simulacre et à le

circonscrire par une figure dont l’aspect ressemblant agirait sur le con-

templateur au même titre que son modèle agissant sur l’artiste” (“Du si-

mulacre” [idem: 144]).

Efeito de redução, isto é, dramatização = essencialização de uma fic-

ção que funciona ela própria como corpo = simulacro [Reis: 62] e que

nos conduz ao presente estado da escrita de Ana Teresa Pereira: o de

uma arquitectura (cenografia?) elementar mas essencial de construção

de maquetas.

Já no capítulo 3 (“Livro, palco, mundo”), que incide em particular so-

bre os “meta-dramas” (“narrativas dramáticas”, “dramas de bastidores”

[77]) Inverness (um”drama teatrológico” [80]: “drama de dramaturgia”

[82]) e A Pantera (“drama logográfico” [83]), Amândio Reis, trabalhando

a questão da representação (nos seus diferentes sentidos: mimético, esté-

tico), sublinha o duplo estatuto dos “personagens” enquanto “actores” (ao

fim e ao cabo, o sonho ou pesadelo de um personagem literário) e do “es-

critor” enquanto “encenador”, ou, talvez melhor, “cenó-grafo” [88], já

que ela trabalha = escreve com coisas, corpos, lugares, ensaiando e refa-

zendo o guião cósmico de uma peça (drama) diabólica (A Outra [36])

que reequaciona peça a peça, jogada a jogada, a divisão do mesmo e do

outro no grande caos pânico e genésico de tudo.

12 FERNANDO GUERREIRO

A maqueta surge assim como o lugar (primeiro e último) de um drama

= acção mínimos, ou seja, de um fazer imagem (todas estas cenas, sequên-

cias, imaginárias – por imagens –, de corpos e palavras, são, à letra, qua-

dros vivos) em que, convocados pela escrita, pelo factor de evidência =

realização das imagens (“fazer a imagem (escrevê-la, imaginá-la) é fazer o

«acontecimento»”, sublinha Reis [90]), ante os nossos olhos se revelam:

objectivam os simulacros = fantasmas (leia-se, deste ponto de vista, o que

Amândio Reis escreve sobre o trabalho de kosmetika do personagem pa-

limpsesto da Rebecca em O Verão Selvagem dos teus Olhos [59-61]).

Assim, o que do real e do ser, nesta poética da criação = realização (no

sentido do “realismo figural” de Auerbach [Reis: 98]), aqui se depõe, é

algo da ordem do comportamento das marionetas como Kleist (metafisi-

camente) as entendia.

Escreve Kleist: “Vemos que, no mundo orgânico, à medida que a refle-

xão se torna mais obscura e mais fraca, a graciosidade se apresenta cada

vez mais radiosa e soberana. – Porém, tal como a intersecção de duas li-

nhas por um lado de um ponto, depois de percorrido o trajecto pelo infinito,

se volta a verificar subitamente pelo outro lado do mesmo ponto, ou como

a imagem do espelho côncavo, depois de se afastar até ao infinito, volta

subitamente a surgir perante nós: assim também a graciosidade, depois de,

por assim dizer, o conhecimento ter atravessado o infinito, volta a apresen-

tar-se; e de tal maneira que surge em simultâneo e de modo mais puro na-

quela estrutura de um corpo humano que ou não possui consciência algu-

ma, ou possui uma consciência infinita, i.e., ou no boneco articulado, ou

num deus” (Heinrich von Kleist, Sobre o Teatro das Márionetas e outros

escritos [trad. José Miranda Justo], Antígona, 2009 [143]).

Em maior ou menor grau, seja este acto de “convocação” mais ou me-

nos conseguido, é essa realidade (verdade) da imanência, do “estar-lá”

das coisas (visíveis e invisíveis) antes mesmo de terem “sido” (como em

Poe), que os textos-feitiço (sempre momentos/situações de “epifania”

[Reis: 92]) de Ana Teresa Pereira, para nosso benefício, antecipam.

É, pensamos, produto da argúcia e da sageza de Amândio Reis, no seu

estudo, ter-nos conseguido desvelar partes (e portas) do “cerimonial” por

essa escrita – aracnídea, venenosa mas também fulgurante [Reis: 87] –,

no próprio real, minuciosamente entretecido.

Fernando Guerreiro

(Fevereiro de 2016)

Preâmbulo

As oroilles vient la parole

ausi come li vans qui vole

Chrétien de Troyes

Yvain, le Chevalier au Lion

O ensaio que aqui apresento propõe uma leitura de um conjunto de obras

recentes de Ana Teresa Pereira centrada nas relações entre escrita e repre-

sentação. Partindo da hipótese de que este binómio conceptual conforma

um problema teórico importante na abordagem às obras em apreço, inter-

rogo as diversas instâncias em que ele se manifesta nos vários textos, to-

mando sobretudo em linha de conta a encenação do acto de escrita e de

outros actos de criação, bem como o recurso da autora a um campo semân-

tico do domínio do teatro com o qual a narrativa se entretece para pôr em

evidência e em diálogo diferentes acepções do conceito de representação.

A reflexão que se segue assenta essencialmente em três eixos transversais a

boa parte das ficções de Ana Teresa Pereira: 1) o pensamento sobre arte

que atravessa e modaliza as narrativas; 2) a figuração auto-reflexiva do

texto; 3) o desenvolvimento de uma noção própria de teatralidade na articu-

lação entre escrever e representar. Esta articulação é também a que une

ideias de livro, de palco e de mundo, gerando tensões consequentes entre

ficção, realidade e literatura que merecem aqui atenção.

14 AMÂNDIO REIS

0.1. Escrever mal (Ana Teresa Pereira em contexto e fora dele)

A associação de Ana Teresa Pereira a correntes e famílias literárias surge

como um problema maior em boa parte da bibliografia crítica que sobre

ela se tem vindo a compor, tendo o seu lugar no panorama da literatura

portuguesa contemporânea chegado ao extremo de uma localização num

“deserto” e numa “região polar” (Coelho, 2006: 16). Nesta reflexão, a

nacionalidade da autora não é um dado totalmente posto de parte, não

sendo minha pretensão, porém, utilizá-la como critério crítico, uma vez

que isso seria pouco adequado ao tipo de abordagem que adopto, ancora-

da na leitura aproximada e na análise formal das obras em causa, ambas

conduzidas por uma interrogação das tensões entre diversas formas de

(auto-)representação da escrita e da literatura e por uma ideia multímoda

de teatralidade integrada na ficção.

A parte mais relevante da bibliografia crítica dedicada até hoje a Ana

Teresa Pereira é composta por artigos em periódicos impressos e electróni-

cos (JL, Público, Colóquio/Letras, Ciberkiosk), pelas mãos de, essencial-

mente, Eduardo Prado Coelho, António Guerreiro e Rui Magalhães. Duas

peças também importantes, que caem fora deste conjunto, e que sugeriram

algumas coordenadas de leitura fundamentais para este estudo, são o volu-

me teórico e filosófico O Labirinto do Medo, que reúne uma colecção de

ensaios de Rui Magalhães sobre a generalidade da obra publicada até 1999,

e o incontornável posfácio de Fernando Guerreiro à segunda edição de

O Fim de Lizzie, “O Mal das Flores (notas para Ana Teresa Pereira)”.

Propondo uma reapreciação crítica do que para a autora parece significar,

na interface com outras artes, o literário, a leitura que aqui se segue orientar-

-se-á sobretudo por coordenadas de diferentes linhas de pensamento sobre

arte e literatura que se têm debruçado sobre a compreensão e a descrição de

alterações nos paradigmas estéticos ocidentais normalmente associadas, de

maneira explícita ou não, quer aos Modernismos e às vanguardas do século

XX, quer à tradição que a partir deles tem sido descrita. Neste sentido, e

também à luz de reflexões exercidas noutros contextos e com outros alvos,

proponho uma reconsideração do que me parecem vários traços relevantes e

tendencialmente ignorados da obra de Ana Teresa Pereira.

Proponho ainda evidenciar a solidez com que se tem vindo a construir

esta obra, bem como a coerência com que ela segue e retrabalha determi-

O L IVRO ENCENADO 15

nados princípios, sejam eles auto-estabelecidos ou recebidos na filiação a

determinadas tradições artísticas – não entendidas com estanqueidade,

mas sempre “a partir de uma perspectiva dinâmica”, de onde sobressai “o

seu potencial dialógico” (Buescu, 1995: 26) – e a determinadas ideias de

literatura, isto é, atenho-me ao seu carácter eminentemente teórico, para

perceber com mais exactidão o que pode ser um programa de literatura

entrelinhado na ficção, pervasivo a todos os níveis e, no entanto, sempre

difícil de circunscrever1. É certo que não me refiro a um programa literá-

rio em sentido tradicional, que presida à escrita e a pré-determine de

acordo com uma agenda estética e ideológica, mas a uma particular e de-

sinteressada forma de teorizar (de olhar) que emana da autoconsciência

da escrita, como reflexão colateral desta, e, em última instância, apenas a

ela dirigida e aplicável. Ver-se-á que, em Ana Teresa Pereira, a prática da

escrita e o pensamento sobre essa prática são dimensões indissociáveis.

Perspectivar Ana Teresa Pereira no âmbito da literatura portuguesa

enquanto disciplina é observar necessariamente a sua posição orbital. No

que é a um tempo reconhecer um descentramento comum e um parentes-

co com Jorge Luis Borges, Ana Teresa Pereira inscreveu numa crónica a

sua morada no universo anglo-saxónico2. Este enquadramento passa pelas

linhas principais, de nenhum modo exclusivas, da literatura inglesa oito-

centista (Jane Austen, ocasionalmente, e com mais candência as irmãs

Brontë e Lewis Carroll) e dos americanos Edgar Allan Poe e Henry Ja-

mes, cultores de variantes problemáticas de realismo e naturalismo, bem

como pelo cinema clássico (Alfred Hitchcock, Joseph L. Mankiewicz,

Nicholas Ray, entre outros), contando ainda com a importância funda-

1 A crítica de Hugo Pinto Santos a As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães dá con-

ta desta aparente fluidez teórica, assente na auto-reflexividade, com a qual qualquer crí-

tico e leitor se defronta: “Diversas vezes, a escrita da autora reflecte sobre as suas pró-

prias condicionantes, num jogo de espelhos, dissimulações e desfigurações que sustenta

(ainda que em bases sempre instáveis) o seu próprio caminho, e a figura, em estruturas

fantasmáticas – «Um escritor não tem mais do que dois ou três temas. E escreve varia-

ções sobre eles» (p. 45); «No caso de Tom, creio que só há um tema» (idem). Nestas

afirmações, simples esboços teóricos – pistas falsas, como as que surgiriam nas histórias

de mistério que fazem parte do cosmos da autora –, Ana Teresa Pereira não avança

princípios sólidos: cria discretos marcos miliários para os mais atentos e mais perple-

xos” (Santos, 2013: §7). 2 “É estranho que nunca nos tenhamos encontrado. Afinal, vivemos no mesmo lugar: uma

infinita biblioteca de livros ingleses” (Pereira, 2002: 75).

16 AMÂNDIO REIS

mental de um conjunto de autores populares de romance policial (John

Dickson Carr, William Irish e Ellery Queen, entre outros).

Acredito que, defendendo ela própria a sua genealogia literária estran-

geira, Ana Teresa Pereira não será alheia à profunda distância que, nas

margens de onde escreve, a separa de um centro. Parecendo ter libertado

o português inidiomático em que se expressa de quase todos os traços

idiolectais e culturais mais vinculativos, a escritora apresenta, numa rara

e sucinta referência à literatura portuguesa, uma contra-resposta directa à

condição existencial propalada por António Vieira: “nós não somos o sal

da terra. Nós não somos a luz do mundo” (Pereira, 2011a: 108). Estou em

crer que, talvez mais do que uma posição político-filosófica, ou humanis-

ta, este poderá ser o sinal de uma preferência de Ana Teresa Pereira pela

exclusão, isto é, pela não-pertença e pela marginalidade, no que toca à

arte e aos motivos da sua prática.

Acresce a isto o facto de, numa interessante triangulação entre a obra

e a vida de Cornell Woolrich, escritor de policiais, o “ensaio” de Francis

M. Nevins sobre ele, e o seu próprio trabalho, a autora se opor critica-

mente a determinadas expectativas quanto à literatura e à sua normatiza-

ção, preferindo uma forma particular de “escrever mal” em detrimento –

ainda que implícito – daquilo que António Guerreiro identificou pejorati-

vamente, em contraste com a sua escrita e a propósito dos círculos cultu-

rais e literários de que se afasta, como “literatice” (Guerreiro, 2012: 30):

“Talvez [Woolrich] escrevesse mal. A sua escrita era uma corrida contra

o tempo, contra a morte, onde por vezes se notava a falta de disciplina e a

paixão levada ao extremo. Só espero, um dia, escrever tão mal como ele”

(Pereira, 2002: 37).

Não obstante este quadro, não deixa de ser possível estabelecer pontos

de contacto entre a obra de Ana Teresa Pereira e a de outros autores por-

tugueses. A busca talvez tenha de acontecer em lugares inesperados, co-

mo seja o caso – mencionado, como todos os restantes, apenas a título de

exemplo –, da poesia de Herberto Helder, e da sua concepção revisiva e

cumulativa da obra, que tende para reuniões sucessivas de fragmentos no

todo de uma súmula ou palimpsesto (cf. Gusmão, 2010: 362-6).

Esta forma de deslaçamento ligado é uma espécie de qualidade para-

doxal dos textos de Ana Teresa Pereira, separados entre si por continui-

dades suspensas: cliffhangers, ou irresoluções que apontam para a imi-

nência do passo seguinte, nos limites que os separam entre si e que tam-

O L IVRO ENCENADO 17

bém os unem. Esta característica é apenas identificável ao adoptar-se uma

visão panorâmica – talvez a situação de leitura ideal – não da obra com-

pleta, um conceito eternamente adiável neste caso, mas da obra manifes-

ta. Ou seja, ao reconhecer o carácter sumativo que é precisamente poten-

ciado pela multiplicação, talvez se vislumbre uma espécie de horizonte da

obra, ou de ponto ideal de convergência de todas as versões da história

das histórias.

Neste sentido, e recorrendo a uma identificação fulcral da escrita de

Ana Teresa Pereira com o cinema, Rui Magalhães afirmou:

Os textos de Ana Teresa Pereira são fragmentos de um filme impossí-

vel que contasse eternamente a mesma história. Eternamente porque a

história é, naturalmente, infinita; não através de factos, nem de acon-

tecimentos, mas de ambivalências exaustivamente repetidas e deslo-

cadas. Toda a história residiria na interpretação dessas deslocações.

Os factos são muito pouco para Ana Teresa Pereira; eles são apenas a

imagem do que é suposto ser real. (Magalhães, 1999b: 137-8)

Por outro lado, parece-me que, também como Helder, e segundo Ma-

nuel Gusmão, a autora “constrói a sua alteridade e a sua singularização

num processo de configuração da sua própria genealogia, e no modo co-

mo abre o seu caminho pelas margens das várias conjunturas poéticas que

a sua obra atravessa” (Gusmão, 2010: 372).

Com Maria Gabriela Llansol, Ana Teresa Pereira partilhará uma “evi-

dência imagética” (Cantinho: §17) trabalhada sobre a representação do es-

paço-tempo, ou “[d]o que [lhe] aparece como real” (§16), ou como “[o]

que é suposto ser real” (Magalhães), em cenas fulgor – o que aqui assumirá

uma analogia muito directa, embora de maneira nenhuma simplificada,

com o conceito de cena no cinema e no teatro –, e na reconvocação a-

-histórica de elementos humanos (actores, actrizes, escritores e artistas ins-

critos na História), de personagens, animais, objectos e elementos arquetí-

picos, enquanto figuras do texto, para os “inserir numa outra ordem de sig-

nificação”, através de uma “técnica visual de sobreimpressão” (§17-8).

Por fim, e sobre Luiza Neto Jorge e o seu lugar numa tradição moder-

na que é “uma poética do ver e da descrição”, Fernando Cabral Martins,

voltando a descrever o poeta como um “fazedor de imagens”, que redese-

nha o mundo e a sua relação com ele, diz aquilo que gostaria de repetir

agora em relação a Ana Teresa Pereira: “A formidável impossibilidade de

18 AMÂNDIO REIS

usar as palavras, que são comuns, para representar a experiência indivi-

dual, que é única, é rasgada pela ponta de fogo de uma máquina de ima-

gens” (Martins, 2000: 242).

“Máquina de imagens”, “máquina de produzir fantasmas” (Guerreiro,

2011: 7) ou dispositivo visual são formulações possíveis para as ideias

que exploro com recorrência no que toca a uma escrita feita de imagens,

ou baseada no acto de fazer imagens, que, quando qualificada como ci-

nematográfica, tem muito mais do que uma relação íntima, temática ou

formal com os géneros fílmicos. Por meio de uma sintaxe maioritaria-

mente fundada numa concepção própria de montagem, dando a ver os

segmentos narrados e descritos muito mais do que entretecendo-os num

texto lógico-causal de índole realista, esta escrita assente na hipotipose

emula através do verbo a expansão da “imagem-movimento” numa luz

reveladora (por outras palavras, o modo de representar – ou de se mani-

festar – próprio do cinema), de tal maneira que descrever a visão e o pró-

prio acto de visualizar pode dar a uma tela de pintura o dinamismo de

uma tela de cinema, afectando a nossa leitura do que Jean-Louis Baudry,

pioneiro de uma corrente teórica que toma em consideração as implica-

ções psíquicas do filme, chamou “efeito-cinema” (Baudry, 1975: 66):

Sentou-se no chão em frente da tela.

No centro, dois meninos. Iguais. Sentados com ar muito sério, como

se posassem para uma fotografia. Mas à volta o quadro parecia enlou-

quecer.

Havia pássaros e asas soltas, sangue… Um pássaro azul, enorme, per-

seguia uma figura que parecia um aborto… (Pereira, 1996b: 116-17)

Enquanto meio de captação do real, o aparato fílmico pode ser encarado

como uma tecnologização da visão humana, aproximável, em termos fe-

nomenológicos, do processo de ver na Natureza, ao mesmo tempo que,

tratando-se de uma representação “percepcionada” enquanto tal [représen-

tation perçue] (Baudry, 1975: 67)3, ultrapassa esse processo. Na verdade,

segundo Baudry, o modo alucinatório do sonho e do cinema origina um

3 Por motivos de coerência e de economia de espaço, são citadas sempre que possível as

versões originais da bibliografia de apoio.

O L IVRO ENCENADO 19

“real-mais-do-que-real”4. Tentarei demonstrar adiante de que formas a es-

crita de Ana Teresa Pereira, em contacto próximo com o cinema e figuran-

do-se muitas vezes como prolongamento deste, terá também incorporado

em si a exploração e a autocrítica da visualidade que lhe são inerentes.

A selecção das obras incluídas neste estudo tem por base a proposta de

que de O Fim de Lizzie (2008) a O Lago (2011) se pode circunscrever

uma fase particular na escrita da autora, em que, atenuando certos traços

até aí mais evidentes, determinados tópicos e referências recorrentes fo-

ram reduzidos a um estatuto vestigial. Considerando particularmente o

esquema policial e a trama detectivesca, que na verdade foram sempre

corrompidos por intersecções com outros géneros literários e cinemato-

gráficos, e pela escrita supra-genológica de Ana Teresa Pereira, pode ver-

-se que estes elementos quase desapareceram. Nas obras aqui em análise,

a ficção concentra-se fundamentalmente, quando não em si mesma, em

campos semânticos e temáticos associados à criação artística e ao sistema

da acção literária (no que se entende tanto a escrita como a leitura), em

correlação essencial com o teatro e outras artes do palco.

A escrita e o ofício do escritor surgem no conjunto de ficções que se-

leccionei como um problema obsidiante, quando não o problema funda-

mental, e são objecto de tratamento tanto literal quanto alegórico, num

texto ostensivamente metaficcional em que a porta para outras escritas,

ou actos de significação, se encontra na representação entendida em dois

sentidos: por um lado, como o modo de (re-)apresentação do mundo (e da

arte) na arte, e, por outro lado, como designação dada à actividade de ac-

tores e autores (e personagens), quer no mundo, quer na ficção.

O corpus seleccionado pretende acentuar o desenvolvimento gradativo

de um processo. Considerando O Fim de Lizzie, em certa medida, uma

obra de charneira, na qual a relação com um regime de representação tea-

tral e com a actuação de uma figura pigmaliónica (de autor) começam a

ser mais axialmente trabalhadas, parto para as publicações seguintes, di-

vidindo-as em dois pares em variação e exponenciação dos aspectos refe-

ridos: O Verão Selvagem dos Teus Olhos e A Outra (prequelas impuras

de Rebecca, de Daphne du Maurier, e de The Turn of The Screw, de

4 “[L]a perception […] acquière en tant que perception le mode d’existence propre à

l’hallucination, se remplisse du caractère de réalité spécifique que la réalité ne confère

pas, mais que l’hallucination provoque: un réel-plus-que-réel” (Baudry, 1975: 67).

20 AMÂNDIO REIS

Henry James), e Inverness e A Pantera (novelas de enredo e de temática

teatrais). O ponto de chegada desta análise será O Lago, novela bipartida,

em que tanto o pendor fantasmático e guionístico das prequelas quanto a

problematização dramática e teatral das “novelas de bastidores” se reú-

nem em iguais proporções, sincretizando-se numa súmula formal.

Através do encontro com o cinema e com o teatro, coloco uma hipóte-

se de teorização literária para Ana Teresa Pereira que tem por vezes em

linha de conta certas (con)fusões categoriais, nomeadamente, entre o es-

critor e o encenador, as personagens e os actores, o texto narrativo e uma

forma textual híbrida que se aproxima do drama pelo reconhecimento das

qualidades performáticas do texto, tornado visível através da acção da

linguagem sobre o pensamento: nos termos de Baudry, através de um

“efeito-sonho” e de um “efeito-cinema”.

Resumidamente, a reflexão que aqui apresento tem em atenção o de-

senvolvimento ficcional de uma hipótese lançada na epígrafe de A Última

História (1991) e atribuída a Sigmund Freud: “As palavras de um escritor

são acções”.

O L IVRO ENCENADO 21

0.2. Inventar um outro livro

Metamorfosear (mais tarde, di-

rei fulgurizar) é um acto de cri-

ação. E criar é sempre criar Al-

guém. E este Alguém não é um

exclusivo do humano.

Maria Gabriela Llansol

O Senhor de Herbais

A ficção de Ana Teresa Pereira dedica-se desde cedo à descrição de situ-

ações de escrita que denunciam estratégias de sobreposição entre o livro

que se lê, isto é, aquele a que o leitor tem acesso, e o livro que está a ser

ou já foi escrito enquanto objecto do enredo5, uma metalepse que parece

constatar, no seio da ficção, a imanência literária do real entendido como

uma forma de potenciação da escrita6. Estes aspectos contribuem para a

formação de um campo semiótico centrado numa ideia de grafia.

A etimologia permite inclusivamente que se recupere o verbo grafar

como indicador de qualquer acto de representação de formas legíveis

numa superfície, incluindo ao mesmo tempo os conceitos de escrever e

pintar, uma vez que, em última instância, “l’écriture est une figuration”

(Zumthor, 1987: 138)7. O conceito de escrita que aqui é convocado terá

pois de equivaler mais rigorosamente a inscrição, como registo materiali-

5 Em A Cidade Fantasma: “«Mas eu estou a escrever isto», pensou” (Pereira, 1993: 30). 6 Em Matar a Imagem: “«Se eu ainda escrevesse», pensou, «podia nascer tanta coisa

desta porta fechada»” (Pereira, 1989: 74). 7 Na mesma passagem, o autor observa que: “L’ancien français escrire signifie aussi bien

«dessiner» ou «peindre» que tracer des lettres […]. Et ce qui nous apparaît comme un

flottement sémantique est profondément motivé dans les mentalités de ce temps: le grec

byzantin graphein référe, lui aussi, à l’inscription e à l’image, au récit et à la fresque”

(138-9). Embora não faça referência à obra de Zumthor no seu estudo sobre a écfrase,

João Adolfo Hansen explora nele uma ideia semelhante: “[N]os textos gregos o verbo

graphein significa tanto escrever quanto pintar, assim como o substantivo graphé signi-

fica escrita e pintura. A equivalência de escrita e pintura no grego graphein permite

propor não a identidade da poesia e da pintura, por exemplo, mas a homologia dos pro-

cedimentos miméticos aplicados a uma e outra” (Hansen, 2006: 91).

22 AMÂNDIO REIS

zador de um escrito num espaço susceptível à intervenção artística, aná-

logo do papel em branco ou da tela. Esta noção de inscrição é ainda ex-

plorada nestes textos como imagem transversal da Criação.

O termo escrever sofre também em Ana Teresa Pereira uma dilatação

de limites, para passar a abarcar e a mediar todo o acto (plástico) de cria-

ção-significação, num entendimento quase concretista da acção da escri-

ta. É por esta razão que, para a intérprete de Tarot do conto “Forget-me-

-not” – que “[c]omo noutros tempos dispunha as cartas […] agora escre-

via versos soltos no caderno branco tentando ler nas palavras obscuros

sinais” –, “[e]screver era como mergulhar as mãos em argila”, “criar for-

mas que depois voltavam à massa amorfa” (Pereira, 1997: 13; 17).

O fenómeno aparentemente simples da representação em literatura de ac-

tos de criação interessa a esta análise por abrir ao leitor um espaço de tensão

entre o que é escrito e quem é escritor. Ao mesmo tempo, trata-se de uma

particularidade narrativa, mas também de um processo auto-reflexivo em que

o texto performatiza a sua própria natureza. Iluminando o que se vem a en-

contrar em Ana Teresa Pereira, Rosa Maria Martelo desenvolveu o seguinte

argumento num breve estudo sobre “cenas de escrita” na poesia portuguesa:

A asserção “j’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je

l’écoute”, de Rimbaud, pode servir como referência para o distancia-

mento meta-reflexivo do qual as cenas de escrita são uma espécie de

efeito secundário, digamos assim. E não é por acaso que uso aqui a

palavra cena, com tudo o que ela tem de alusão ao teatro, pois a espe-

cularidade da escrita que absorve o acto de se escrever, ou que o figu-

ra, tem algo de cenografia, de uma ceno-grafia. Quando um poema se

transforma em cena de escrita, o que nos é dado ver é sempre a poéti-

ca que lhe está subjacente, numa situação que lhe dá corpo, espessura

e concreção – naquele mesmo sentido em que, como faz notar Patrice

Pavis, hoje, a cenografia se apresenta como um dispositivo que tem

em vista “iluminar” o texto, “figurar uma situação de enunciação”, es-

tabelecendo um intercâmbio entre um espaço e um texto. […] Nada é

inocente nas cenas de escrita, e elas são concebidas – e lidas, também

– nesse pressuposto. (Martelo, 2010: 323-5)

Ana Teresa Pereira identificou o “grito” como o seu género preferen-

cial: “Num ensaio de Francis M. Nevins lê-se que existe uma arte em que

a forma não é o romance nem o conto, mas o grito; e nessa arte William

O L IVRO ENCENADO 23

Irish [pseudónimo de Cornell Woolrich] era um mestre. O meu mestre”

(Pereira, 2002: 37)8. Não se tratando este “grito” de uma denominação de

género minimamente fundamentada, ou sequer sustentável quando trans-

posta para o discurso crítico habitual, ele parece-me precisamente a rei-

vindicação de um certo desprendimento formal e intelectual, em favor do

qual são desprezadas determinadas expectativas comuns em relação à

ficção literária, e através do qual Ana Teresa Pereira parece chegar a uma

estetização do espontâneo e do subjectivo. Assim, parece-me pertinente a

hipótese de que as ficções de Ana Teresa Pereira estão mais próximas da

poesia e da expressão lírica (a “massa amorfa” ou a “forma informe”

[Martelo, 2010]), do que da prosa romanesca construída com base na ve-

rosimilhança e na determinação aristotélicas.

Regressando à sistematização taxonómica dos actos de fala de John

Austin, e reformulando-a nalguns pontos relativos à linguagem literária,

Jonathan Culler observou que, não sendo sujeita aos valores de “verda-

deiro” ou “falso”, mas também não, como argumentara o filósofo da

linguagem, aos de “bem sucedido” ou “mal sucedido”, uma obra literá-

ria “performatively brings into being what it purports to describe” (Cul-

ler, 2006: 144). A afirmação de Culler vem ao encontro do antes expos-

to, especialmente recuperando a citação de Freud com que se abre

A Última História, ao alinhar-se com uma tradição de pensamento sobre

a actuação e o poder originador da matéria verbal (“brings into being”),

que enfatizou na obra literária uma qualidade performática, passando a

encarar o seu inscritor – enunciador figurado9 – como performer ficcio-

nalizado retroactivamente: “The performative utterance automatically

fictionalizes its utterer when it makes him a mouthpiece for a conventi-

onalized authority” (148).

A autoridade convencional do narrador e da sua voz enunciativa será

então, figurativamente, o vaso em que se verte a voz de uma autora que

sabemos ser real e humana. No entanto, defrontamo-nos também nestas

obras com autores ficcionais que cumprem funções numa fábula.

8 Curiosamente, Rosa Maria Martelo dedicou um subcapítulo da sua tese à “Estética do

Grito” na poesia portuguesa neo-realista, na qual detecta justamente a “vigência de uma

componente expressionista” (Martelo, 1996: 127). 9 Remeto aqui para a expressão de Pavis, citado em Martelo, 2010: 325, segundo o qual a

cenografia (ceno-grafia) pretende “figurar uma situação de enunciação”.

24 AMÂNDIO REIS

Uma vez que criar seja um desígnio atribuído, aquele que cria está a

tornar-se, no cumprimento do seu papel, a criatura de outro. A distinção

entre o plano da ficção e o plano da realidade esbate-se quando o juízo de

ficção emana dela mesma. O plano da realidade (exterior) sofre uma ex-

plicitação no plano fictício destes textos, de tal modo que ser de faz-de-

-conta se torna a realidade da obra:

Tivera várias vezes a sensação de que se tratava de uma farsa, que nin-

guém ali falava espontaneamente, que tudo obedecia a um plano prévio. [Q]uando estava no jardim, o mundo parecia imobilizar-se do outro

lado da rua. “Como se fosse um cenário. Uma tela. E não houvesse

nada por detrás”. As descrições de Tom eram extremamente secas […]. As suas páginas

eram visíveis, os cenários tinham três dimensões, as personagens ti-

nham carne, sangue… e medo. […] Era quase como ver um filme.

(Pereira, 1993: 43; 108; 122)

À equivalência entre escrever e pintar, escrever e encenar, escrever e

representar, subjaz uma tarefa comum de realização, isto é, de transfor-

mação em realidade, de uma espécie de texto primordial inacessível, em

infinita reescrita. O resultado de o que está a ser escrito ter já sido pres-

crito são sucessivas narrativas de encenação da escrita de textos em se-

gundo grau, manifestações hipotéticas de um arquitexto maior, versões

parcelares, repetições que são “[c]omo uma aproximação infinitamente

diferida que sempre que estivesse prestes a tocar o seu destino este se

deslocasse infinitesimalmente” (Magalhães, 1999a: 2).

Como ensaios de teatro, os diferentes textos produzem efeitos de reac-

tualização sistemática daquela pré-escrita original, o que, em última aná-

lise, é estruturalmente semelhante ao processo de interpretação literária.

Por vezes, e no limite, as equivalências sugeridas desdobram-se em es-

crever e ser – e ser lido e ser escrito –, resvalando para um ensaísmo da

identidade, em sentido teatral, que parece responder à comparação de

Paul Ricoeur entre personagem e humano com base na imitação da acção

que – deixa o autor implícito – é comum aos dois10.

10 “Les personnages de théâtre et de roman sont des humains comme nous. Dans la

mesure où le corps propre est une dimension du soi, les variations imaginatives autour

O L IVRO ENCENADO 25

Também Antonin Artaud, no primeiro manifesto do seu “Teatro da

Crueldade”, sublinhou uma confluência aqui relevante, com a qual substi-

tuiu a velha dualidade, entre “l’auteur et le metteur en scène, remplacés

par une sorte de Créateur unique, à qui incombera la responsabilité dou-

ble du spectacle et de l’action” (Artaud, 1985: 144).

Segundo o poeta e ensaísta, para quem “il n’y a rien d’existant et de

réel,/ que la vie physique extérieure” (Artaud, 1974: 110), cabem ao Cri-

ador as tarefas de projectar no abstracto as palavras ou ideias, e de orga-

nizar no espaço, materialmente, as acções, para formar e sequenciar enfim

os signos de uma linguagem unificada, fisicamente concretizável. O seu

tratado em verso sobre o “teatro da crueldade” diz: “La terre se peint et se

décrit/ sous l’action d’une danse terrible” (115). A missão desta forma de

teatro é então “achever de construire la réalité./ Car la réalité n’est pas

achevée,/ elle n’est pas encore construite” (110). Parece-me então pertinen-

te ler os contos e as novelas de Ana Teresa Pereira, adoptando-se esta linha

de análise, enquanto objectos literários dotados de uma hiperconsciência da

sua própria poiesis, ou da construção da (sua) realidade.

Como já referido, a argumentação que orienta este trabalho lida com

uma acepção dupla do termo “representação”: enquanto uma acepção gene-

ralizada da imitação ou mimesis clássica, e enquanto função atribuída aos

actores, a acção de representar ou de interpretar. A par desta segunda acep-

ção estará também o que, em “Turning the Screw of Interpretation”,

Shoshana Felman (1982: 94-207) classificou como o “acting out” do texto,

uma ideia de figuração do discurso, inspirada na novela de Henry James,

que se pode localizar no cerne da prática literária de Ana Teresa Pereira11.

Ao citar nesta introdução apenas as obras iniciais da autora, a minha

intenção é constatar a genealogia possível de uma problemática. É de no-

tar que, no primeiro caso (Matar a Imagem [1989]), o início da narrativa

coincide já com o fim de uma escrita (“Terminara o livro” [9]). A cons-

de la condition corporelle sont des variations sur le soi et son ipséité. […] La Terre est

ici plus et autre chose qu’une planète : c’est le nom mythique de notre ancrage corporel

dans le monde. Voilà ce qui est ultimement présupposé par le récit littéraire en tant que

soumis à la contrainte qui en fait une mimèsis de l’action. Car l’action «imitée», dans

et par la fiction, reste elle aussi soumise à la contrainte de la condition corporelle et ter-

restre” (Ricoeur, 1990: 178). 11 Este ponto e uma leitura do texto de Felman são abordados no subcapítulo 2.2.

26 AMÂNDIO REIS

trução implica que a protagonista terá concluído, ao princípio daquele

livro, a escrita de um outro. O primeiro bloco de texto faz-se, depois, de

pequenas meditações sobre o sucedido: tratou-se de uma entrega sacrifi-

cial (“um vampiro visitara-a todas as noites e sugara-lhe o sangue até ao

amanhecer”); ela tinha estado “muito longe”, “[n]a quinta dimensão”; a

ficção tinha passado a integrar a sua realidade, mas fora finalmente bani-

da para o espaço do papel (“As personagens com as quais vivera ultima-

mente tinham partido e ela estava só”), e, mais do que banida, “a história

ficava aprisionada, já não podia fugir, desaparecer no ar” (9-10).

Além de abrir caminho a este conjunto de (im)possibilidades episte-

mológicas e experienciais, escrever pode prolongar-se numa forma terrí-

fica de ontologia (“havia nela um medo feroz da escrita, de cair no poço

sem fundo que era ela própria”), e desperta a necessidade psicanalítica de

repetição da experiência e recuperação do convívio com os “seres fan-

tasmagóricos”, regressando ao esquema de vampirismo: “Era preciso co-

meçar de novo, inventar um outro livro” (11-2), como se a realidade, sem

a ficção, permanecesse inacabada.

O diálogo com Der Himmel über Berlin (1987) dita claramente a po-

sição da protagonista desta novela no espaço interdimensional: “O anjo

da biblioteca, o da solidão, o narrador... ela mesma” (20). É também do

filme de Wim Wenders que vem um dilema aparentemente crucial: “Ha-

via dois caminhos, talvez: ser um poeta no mundo da palavra ou ser um

poeta na vida”. Crucial, no entanto, é que em qualquer dos casos, no

“mundo da palavra” ou na “vida”, o caminho seja ser poeta, indiferenci-

ando-se, por conseguinte, literatura e vida.

Além destes exemplos, há que referir o caso representativo de As Per-

sonagens (1990), novela em que, lembrando os pressupostos críticos em

relação a Henry James e ao “texto actuante” elaborados por Shoshana

Felman, Ana Teresa Pereira recorre ao motivo da carta enquanto pedra-

-de-toque da ficção e do livro. As personagens que se encontram aqui são

convocadas para o texto e reunidas numa mesma casa através de cartas-

-convite que as chamam a cumprir determinados papéis, sob contrato,

numa peça não identificada. Entre elas está, por exemplo, um escritor que

responde à proposta de interpretar o papel de um escritor, ou, mais espe-

cificamente, de um argumentista.

As personagens mostram-se perturbadas ao aperceberem-se de que,

uma vez reunidas na ‘casa-texto’ e sem quaisquer instruções sobre o que

O L IVRO ENCENADO 27

deverão fazer, há num quarto vazio uma máquina de escrever que expele

sistemática e autonomamemte páginas que descrevem cada um dos seus

movimentos pela casa. Sabe-se pouco antes do fim que “[o]s jogos e as

personagens preexistem” (92), e que o texto subjuga à sua prescrição o

escritor contratado para o escrever, ele próprio tornado objecto da máqui-

na indómita e auto-suficiente.

Sobre a ideia de construção literária que está no centro desta parábola,

Rui Magalhães já havia detectado que:

Há em Ana Teresa Pereira qualquer coisa que não se compadece com

a facilidade do literário, que recusa, por exemplo, aquele artifício tão

literário, que consiste em sugerir. Ana Teresa Pereira não sugere,

enuncia, constrói situações, mesmo quando essas situações se asseme-

lham quase perigosamente a estereótipos. (Magalhães, 1999b: 32)

Nos termos do estudioso, Ana Teresa Pereira adopta uma concepção

literária no âmbito da qual toda a realidade é encarada como poesia, e

toda a poesia é uma forma de realidade que, como uma máquina de es-

crever em rebelião, a primeira constrói à sua medida, por um efeito reac-

tivo constante. Afinal, “[o] livro não dorme enquanto está fechado, trans-

forma-se noutra coisa, o tempo todo” (Pereira, 1990: 112).

Como se verá, a arte, para Ana Teresa Pereira, não parece aspirar à

imitação da natureza, mas à inclusão na natureza, sendo a natureza enten-

dida como o Todo, o pré-existente ou o inventado. Disse Todorov que

“[l]’art n’a pas à représenter la vie, dans ce qu’elle a de plus essentiel, il

doit l’être” (1971: 223). A ficção não é entendida como alternativa, mas

sim como uma dimensão aumentativa do mundo. A realidade da ficção é

tão contingente quanto a realidade do real, e prende-se, muitas vezes,

com questões de construção da autoria e da identidade. Recordando a li-

ção de Narciso, o reflectido e o reflexo existem em dependência mútua.

Cancelar a visão e aquilo a que ela dá acesso significa nestes textos,

‘edipianamente’, matar a imagem de si mesmo12.

12 “À volta dos olhos começavam a surgir rugas pequeninas. Fechou-os com força, ma-

tando a imagem que detestava profundamente” (Pereira, 1989: 11).