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Livro Fernando Pessoa

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Livro Fernando Pessoa

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  • 2

  • 3POEMAS

  • 4POEMASde FERNANDO PESSOA

  • 5SumrioA Abelha 7

    A Cada Qual 7

    Acima da Verdade 8

    A Flor que s 8

    Aqui, Dizeis 9

    Aqui, Neera 9

    Aqui 11

    Ao Longe 11

    Aos Deuses 12

    Antes de Ns 12

    Anjos ou Deuses 13

    A Palidez do Dia 13

    Atrs No Torna 14

    A Nada Imploram 14

    As Rosas 15

    Azuis os Montes 16

    Bocas Roxas 18

  • 6Breve o Dia 18

    Cada Coisa 20

    Cada dia sem gozo no foi teu 21

    Cada Um 22

    Como 22

    Coroai-me 23

    Cuidas, ndio 23

    Da Lmpada 26

    Da Nossa Semelhana 26

    De Apolo 27

    De Novo Traz 28

    Deixemos, Ldia 29

    Dia Aps Dia 31

    Do que Quero 32

    Domina ou Cala 33

    Ests s. Ningum o sabe. 35

    Este Seu Escasso Campo 35

    to Suave 36

    Feliz Aquele 38

  • 7Felizes 39

    Flores 40

    Frutos 40

    Gozo Sonhado 42

    Inglria 44

    J Sobre a Fronte 46

    Lenta, Descansa 48

    Ldia 48

    Melhor Destino 50

    Mestre 50

    Meu Gesto 52

    Nada Fica 54

    No a Ti 54

    No a Ti, Cristo 55

    No Canto 57

    No Consentem 58

    No Queiras 58

  • 8A

  • 9FERNANDO PESSOA

    A Abelha A abelha que, voando, freme sobre A colorida flor, e pousa, quase Sem diferena dela vista que no olha,

    No mudou desde Cecrops. S quem vive Uma vida com ser que se conhece Envelhece, distintoDa espcie de que vive. Ela a mesma que outra que no ela.S ns tempo, alma, vida, morte! Mortalmente compramosTer mai vida que a vida.

    A Cada QualA cada qual, como a statura, dada A justia: uns faz altos O fado, outros felizes.

    Nada prmio: sucede o que acontece. Nada, Ldia, devemos Ao fado, seno t-lo.

  • 10

    POEMAS

    Acima da VerdadeAcima da verdade esto os deuses. A nossa cincia uma falhada cpia Da certeza com que elesSabem que h o Universo.

    Tudo tudo, e mais alto esto os deuses, No pertence cincia conhec-los,Mas adorar devemosSeus vultos como s flores,

    Porque visveis nossa alta vista,So to reais como reais as floresE no seu calmo OlimpoSo outra Natureza.

    A Flor que sA flor que s, no a que ds, eu quero. Porque me negas o que te no peo. Tempo h para negaresDepois de teres dado.Flor, s-me flor! Se te colher avaro A mo da infausta esfinge, tu perere Sombra errars absurda, Buscando o que no deste.

  • 11

    FERNANDO PESSOA

    AguardoAguardo, equnime, o que no conheo Meu futuro e o de tudo.No fim tudo ser silncio, salvo Onde o mar banhar nada.

    Aqui, DizeisAqui, dizeis, na cova a que me abeiro, No st quem eu amei. Olhar nem riso Se escondem nesta leira. Ah, mas olhos e boca aqui se escondem! Mos apertei, no alma, e aqui jazem. Homem, um corpo choro!

    Aqui, NeeraAqui, Neera, longeDe homens e de cidades,Por ningum nos tolherO passo, nem vedaremA nossa vista as casas,Podemos crer-nos livres.

  • 12

    POEMAS

    Bem sei, flava, que indaNos tolhe a vida o corpo,E no temos a moOnde temos a alma;Bem sei que mesmo aquiSe nos gasta esta carneQue os deuses concederamAo estado antes de Averno.

    Mas aqui no nos prendemMais coisas do que a vida,Mos alheias no tomamDo nosso brao, ou passosHumanos se atravessamPelo nosso caminho.

    No nos sentimos presosSeno com pensarmos nisso,Por isso no pensemosE deixemo-nos crerNa inteira liberdadeQue a iluso que agoraNos torna iguais dos deuses.

  • 13

    FERNANDO PESSOA

    AquiAqui, neste misrrimo desterro Onde nem desterrado estou, habito,Fiel, sem que queira, quele antigo erro Pelo qual sou proscrito.O erro de querer ser igual a algum Feliz em suma quanto a sorte deu A cada corao o nico bemDe ele poder ser seu.

    Ao LongeAo longe os montes tm neve ao sol, Mas suave j o frio calmo Que alisa e agudece Os dardos do sol alto.

    Hoje, Neera, no nos escondamos, Nada nos falta, porque nada somos. No esperamos nada E ternos frio ao sol.

    Mas tal como , gozemos o momento, Solenes na alegria levemente, E aguardando a morte Como quem a conhece.

  • 14

    POEMAS

    Aos DeusesAos deuses peo s que me concedam O nada lhes pedir. A dita um jugo E o ser feliz oprime Porque um certo estado.No quieto nem inquieto meu ser calmo Quero erguer alto acima de onde os homens Tm prazer ou dores.

    Antes de NsAntes de ns nos mesmos arvoredos Passou o vento, quando havia vento, E as folhas no falavamDe outro modo do que hoje.

    Passamos e agitamo-nos debalde. No fazemos mais rudo no que existe Do que as folhas das rvoresOu os passos do vento.

  • 15

    FERNANDO PESSOA

    Anjos ou DeusesAnjos ou deuses, sempre ns tivemos,A viso perturbada de que acimaDe nos e compelindo-nosAgem outras presenas.

    Como acima dos gados que h nos campos O nosso esforo, que eles no compreendem, Os coage e obrigaE eles no nos percebem,

    A Palidez do DiaA palidez do dia levemente dourada.O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas Dos troncos de ramos Secos. O frio leve treme.

    Desterrado da ptria antiqssima da minha Crena, consolado s por pensar nos deuses, Aqueo-me trmulo A outro sol do que este.

    O sol que havia sobre o Partnon e a Acrpole O que alumiava os passos lentos e graves De Aristteles falando.

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    POEMAS

    Mas Epicuro melhorMe fala, com a sua cariciosa voz terrestreTendo para os deuses uma atitude tambm de deus, Sereno e vendo a vida distncia a que est.

    Atrs No TornaAtrs no torna, nem, como Orfeu, volve Sua face, Saturno.Sua severa fronte reconhece S o lugar do futuro.No temos mais decerto que o instante Em que o pensamos certo.No o pensemos, pois, mas o faamos Certo sem pensamento.

    A Nada ImploramA nada imploram tuas mos j coisas, Nem convencem teus lbios j parados, No abafo subterrneoDa mida imposta terra.S talvez o sorriso com que amavas

  • 17

    FERNANDO PESSOA

    Te embalsama remota, e nas memrias Te ergue qual eras, hojeCortio apodrecido. E o nome intil que teu corpo morto Usou, vivo, na terra, como uma alma, No lembra. A ode grava, Annimo, um sorriso.

    As RosasAs Rosas amo dos jardins de Adnis, Essas volucres amo, Ldia, rosas, Que em o dia em que nascem,Em esse dia morrem.A luz para elas eterna, porque Nascem nascido j o sol, e acabam Antes que Apolo deixeO seu curso visvel.Assim faamos nossa vida um dia, Inscientes, Ldia, voluntariamente Que h noite antes e apsO pouco que duramos.

  • 18

    POEMAS

    Azuis os MontesAzuis os montes que esto longe param.De eles a mim o vrio campo ao vento, brisa, Ou verde ou amarelo ou variegado,Ondula incertamente.Dbil como uma haste de papoila Me suporta o momento. Nada quero.Que pesa o escrpulo do pensamento Na balana da vida?Como os campos, e vrio, e como eles, Exterior a mim, me entrego, filho Ignorado do Caos e da Noites frias em que existo.

  • 19

    FERNANDO PESSOA

    CAPITULO

    B

    B

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    POEMAS

    Bocas RoxasBocas roxas de vinho,Testas brancas sob rosas, Nus, brancos antebraos Deixados sobre a mesa;Tal seja, Ldia, o quadroEm que fiquemos, mudos, Eternamente inscritos Na conscincia dos deuses.

    Antes isto que a vidaComo os homens a vivem Cheia da negra poeira Que erguem das estradas.S os deuses socorremCom seu exemplo aqueles Que nada mais pretendem Que ir no rio das coisas.

    Breve o DiaBreve o dia, breve o ano, breve tudo. No tarda nada sermos.Isto, pensado, me de a mente absorve Todos mais pensamentos.O mesmo breve ser da mgoa pesa-me, Que, inda que mgoa, vida.

  • 21

    FERNANDO PESSOA

    CAPITULO

    C

    C

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    POEMAS

    Cada CoisaCada coisa a seu tempo tem seu tempo. No florescem no inverno os arvoredos, Nem pela primaveraTm branco frio os campos. noite, que entra, no pertence, Ldia, O mesmo ardor que o dia nos pedia. Com mais sossego amemos A nossa incerta vida.

    lareira, cansados no da obra Mas porque a hora a hora dos cansaos, No puxemos a vozAcima de um segredo,E casuais, interrompidas, sejam Nossas palavras de reminiscncia (No para mais nos serveA negra ida do Sol)

    Pouco a pouco o passado recordemos E as histrias contadas no passado Agora duas vezesHistrias, que nos falem

    Das flores que na nossa infncia ida Com outra conscincia ns colhamos E sob uma outra espcieDe olhar lanado ao mundo.

  • 23

    FERNANDO PESSOA

    E assim, Ldia, lareira, como estando, Deuses lares, ali na eternidade,Como quem compe roupas O outrora compnhamos

    Nesse desassossego que o descanso Nos traz s vidas quando s pensamos Naquilo que j fomos,E h s noite l fora.

    Cada dia sem gozo no foi teuCada dia sem gozo no foi teu Foi s durares nele. Quanto vivas Sem que o gozes, no vives.

    No pesa que amas, bebas ou sorrias: Basta o reflexo do sol ido na guaDe um charco, se te grato.

    Feliz o a quem, por ter em coisas mnimas Seu prazer posto, nenhum dia negaA natural ventura!

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    POEMAS

    Cada UmCada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre.Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de s-lo.No tenhamos melhor conhecimentoDo que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos dado.

    ComoComo se cada beijo Fora de despedida,Minha Cloe, beijemo-nos, amando. Talvez que j nos toqueNo ombro a mo, que chama barca que no vem seno vazia; E que no mesmo feixeAta o que mtuos fomosE a alheia soma universal da vida.

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    FERNANDO PESSOA

    Coroai-meCoroai-me de rosas,Coroai-me em verdade, De rosas Rosas que se apagamEm fronte a apagar-se To cedo!Coroai-me de rosasE de folhas breves. E basta.

    Cuidas, ndioCuidas, nvio, que cumpres, apertando Teus infecundos, trabalhosos dias Em feixes de hirta lenha,Sem iluso a vida.A tua lenha s peso que levasPara onde no tens fogo que te aquea, Nem sofrem peso aos ombrosAs sombras que seremos.Para folgar no folgas; e, se leoas, Antes legues o exemplo, que riquezas, De como a vida bastaCurta, nem tambm dura.Pouco usamos do pouco que mal temos.

  • 26

    POEMAS

    A obra cansa, o ouro no nosso.De ns a mesma fama Ri-se, que a no veremosQuando, acabados pelas Parcas, formos, Vultos solenes, de repente antigos,E cada vez mais sombras, Ao encontro fatal O barco escuro no soturno rio,E os novos abraos da frieza stgia E o regao insacivelDa ptria de Pluto.

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    FERNANDO PESSOA

    D

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    POEMAS

    Da LmpadaDa lmpada noturnaA chama estremeceE o quarto alto ondeia.Os deuses concedemAos seus calmos crentesQue nunca lhes tremaA chama da vidaPerturbando o aspectoDo que est em roda,Mas firme e esguiadaComo preciosaE antiga pedra,Guarde a sua calmaBeleza contnua.

    Da Nossa SemelhanaDa nossa semelhana com os deuses Por nosso bem tiremos Julgarmo-nos deidades exiladasE possuindo a VidaPor uma autoridade primitiva E coeva de Jove.

    Altivamente donos de ns-mesmos, Usemos a existncia

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    FERNANDO PESSOA

    Como a vila que os deuses nos concedem Para, esquecer o estio.No de outra forma mais apoquentada Nos vale o esforo usarmosA existncia indecisa e afluente Fatal do rio escuro. Como acima dos deuses o Destino calmo e inexorvel,Acima de ns-mesmos construamos Um fado voluntrioQue quando nos oprima ns sejamos Esse que nos oprime,E quando entremos pela noite dentro Por nosso p entremos.

    De ApoloDe Apolo o carro rodou pra foraDa vista. A poeira que levantaraFicou enchendo de leve nvoa o horizonte;

    A flauta calma de P, descendo Seu tom agudo no ar pausado, Deu mais tristezas ao moribundo Dia suave.Clida e loura, nbil e triste,

  • 30

    POEMAS

    Tu, mondadeira dos prados quentes, Ficas ouvindo, com os teus passos Mais arrastados,

    A flauta antiga do deus durando Com o ar que cresce pra vento leve, E sei que pensas na deusa clara Nada dos mares,

    E que vo ondas l muito adentroDo que o teu seio sente cansadoEnquanto a flauta sorrindo chora Palidamente.

    De Novo TrazDe novo traz as aparentes novas Flores o vero novo, e novamente Verdesce a cor antigaDas folhas redivivas.No mais, no mais dele o infecundo abismo, Que mudo sorve o que mal somos, torna clara luz superna A presena vivida.No mais; e a prole a que, pensando, dera A vida da razo, em vo o chama,Que as nove chaves fecham, Da Estige irreversvel.

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    FERNANDO PESSOA

    O que foi como um deus entre os que cantam, O que do Olimpo as vozes, que chamavam, Scutando ouviu, e, ouvindo,Entendeu, hoje nada.Tecei embora as, que teceis, Grinaldas. Quem coroais, no coroando a ele? Votivas as deponde,Fnebres sem ter culto.Fique, porm, livre da leiva e do Orco, A fama; e tu, que Ulisses erigira,Tu, em teus sete montes, Orgulha-te materna,Igual, desde ele s sete que contendem Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos, Ou heptpila TebasOggia me de Pndaro.

    Deixemos, LdiaDeixemos, Ldia, a cincia que no pe Mais flores do que Flora pelos campos, Nem d de Apolo ao carro Outro curso que Apolo.

    Contemplao estril e longnquaDas coisas prximas, deixemos que ela Olhe at no ver nada Com seus cansados olhos.

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    POEMAS

    V como Ceres a mesma sempre E como os louros campos intumesce E os cala prs avenas Dos agrados de P.V como com seu jeito sempre antigo Aprendido no orige azul dos deuses, As ninfas no sossegam Na sua dana eterna.

    E como as heniadrades constantes Murmuram pelos rumos das florestas E atrasam o deus P. Na ateno sua flauta.

    No de outro modo mais divino ou menos Deve aprazer-nos conduzir a vida, Quer sob o ouro de Apolo Ou a prata de Diana. Quer troe Jpiter nos cus toldados. Quer apedreje com as suas ondas Netuno as planas praias E os erguidos rochedos.

    Do mesmo modo a vida sempre a mesma. Ns no vemos as Parcas acabarem-nos. Por isso as esqueamos Como se no houvessem.

    Colhendo flores ou ouvindo as fontes A vida passa como se temssemos.

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    FERNANDO PESSOA

    No nos vale pensarmos No futuro sabido

    Que aos nossos olhos tirar Apolo E nos por longe de Ceres e onde Nenhum P cace flauta Nenhuma branca ninfa.

    S as horas serenas reservandoPor nossas, companheiros na malcia De ir imitando os deuses At sentir-lhe a calma.

    Venha depois com as suas cs cadas A velhice, que os deuses concederam Que esta hora por ser suaNo sofra de SaturnoMas seja o templo onde sejamos deuses Inda que apenas, Ldia, pra ns prprios Nem precisam de crentesOs que de si o foram.

    Dia Aps DiaDia aps dia a mesma vida a mesma. O que decorre, Ldia,No que ns somos como em que no somos Igualmente decorre.

  • 34

    POEMAS

    Colhido, o fruto deperece; e cai Nunca sendo colhido.Igual o fado, quer o procuremos, Quer o speremos. SorteHoje, Destino sempre, e nesta ou nessa Forma alheio e invencvel.

    Do que QueroDo que quero renego, se o quer-lo Me pesa na vontade. Nada que haja Vale que lhe concedamos Uma ateno que doa.

    Meu balde exponho chuva, por ter gua. Minha vontade, assim, ao mundo exponho, Recebo o que me dado, E o que falta no quero.

    O que me dado queroDepois de dado, grato.

    Nem quero mais que o dadoOu que o tido desejo.

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    FERNANDO PESSOA

    Domina ou CalaDomina ou cala. No te percas, dando Aquilo que no tens.Que vale o Csar que serias? Goza Bastar-te o pouco que s.Melhor te acolhe a vil choupana dada Que o palcio devido.

  • 36

    POEMAS

    Capitulo

    E

    E

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    FERNANDO PESSOA

    Ests s. Ningum o sabe.Ests s. Ningum o sabe. Cala e finge. Mas finge sem fingimento.Nada speres que em ti j no exista, Cada um consigo triste.Tens sol se h sol, ramos se ramos buscas, Sorte se a sorte dada.

    Este Seu Escasso CampoEste, seu scasso campo ora lavrando, Ora solene, olhando-o com a vistaDe quem a um filho olha, goza incerto A no-pensada vida.Das fingidas fronteiras a mudanaO arado lhe no tolhe, nem o empece Per que conclios se o destino rege Dos povos pacientes.Pouco mais no presente do futuroQue as ervas que arrancou, seguro vive A antiga vida que no torna, e fica, Filhos, diversa e sua.

  • 38

    POEMAS

    to Suave to suave a fuga deste dia, Ldia, que no parece, que vivemos. Sem dvida que os deuses Nos so gratos esta hora,Em paga nobre desta f que temos Na exilada verdade dos seus corpos Nos do o alto prmio De nos deixarem serConvivas lcidos da sua calma, Herdeiros um momento do seu jeito De viver toda a vida Dentro dum s momento,Dum s momento, Ldia, em que afastados Das terrenas angstias recebemos Olmpicas delcias Dentro das nossas almas.E um s momento nos sentimos deuses Imortais pela calma que vestimos E a altiva indiferena s coisas passageirasComo quem guarda a croa da vitria Estes fanados louros de um s dia Guardemos para termos, No futuro enrugado,Perene nossa vista a certa provaDe que um momento os deuses nos amaram E nos deram uma hora No nossa, mas do Olimpo.

  • 39

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    F

    F

  • 40

    POEMAS

    Feliz AqueleFeliz aquele a quem a vida grata Concedeu que dos deuses se lembrasse E visse como eles Estas terrenas coisas onde mora Um reflexo mortal da imortal vida.

    Feliz, que quando a hora tributriaTranspor seu trio por que a Parca corte O fio fiado at ao fim, Gozar poder o alto prmio De errar no Averno grato abrigo Da convivncia.Mas aquele que quer Cristo antepor Aos mais antigos Deuses que no Olimpo Seguiram a Saturno

    O seu blasfemo ser abandonadoNa fria expiao at que os DeusesDe quem se esqueceu deles se recordem Erra, sombra inquieta, incertamente, Nem a viva lhe pe na boca O bolo a Caronte grato, E sobre o seu corpo insepulto No deita terra o viandante.

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    FERNANDO PESSOA

    FelizesFelizes, cujos corpos sob as rvores Jazem na mida terra,Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem Das doenas da lua.

    Verta Eolo a caverna inteira sobre O orbe esfarrapado,Lance Netuno, em cheias mos, ao alto As ondas estoirando.

    Tudo lhe nada, e o prprio pegureiro Que passa, finda a tarde,Sob a rvore onde jaz quem foi a sombra Imperfeita de um deus,

    No sabe que os seus passos vo cobrindo O que podia ser,Se a vida fosse sempre vida, a glria De uma beleza eterna.

  • 42

    POEMAS

    FloresFlores que colho, ou deixo,Vosso destino o mesmo.Via que sigo, chegasNo sei aonde eu chego.

    Nada somos que valha,Somo-lo mais que em vo.

    FrutosFrutos, do-os as rvores que vivem, No a iludida mente, que s se orna Das flores lvidasDo ntimo abismo.Quantos reinos nos seres e nas cousas Te no talhaste imaginrio! Quantos, Com a charrua,Sonhos, cidades!

    Ah, no consegues contra o adverso muito Criar mais que propsitos frustrados! Abdica e sRei de ti mesmo.

  • 43

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    G

    G

  • 44

    POEMAS

    Gozo SonhadoGozo sonhado gozo, ainda que em sonho. Ns o que nos supomos nos fazemos,Se com atenta mente Resistirmos em cr-lo.No, pois, meu modo de pensar nas coisas, Nos seres e no fado me consumo.Para mim crio tanto Quanto para mim crio.Fora de mim, alheio ao em que penso,O Fado cumpre-se. Porm eu me cumpro Segundo o mbito breveDo que de meu me dado.

  • 45

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    I

    I

  • 46

    POEMAS

    InglriaInglria a vida, e inglrio o conhec-la. Quantos, se pensam, no se reconhecem Os que se conheceram!A cada hora se muda no s a hora Mas o que se cr nela, e a vida passa Entre viver e ser.

  • 47

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    J

    J

  • 48

    POEMAS

    J Sobre a FronteJ sobre a fronte v se me acinzenta O cabelo do jovem que perdi.Meus olhos brilham menos.

    J no tem jus a beijos minha boca. Se me ainda amas, por amor no ames: Traras-me comigo.

  • 49

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    L

    L

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    POEMAS

    Lenta, DescansaLenta, descansa a onda que a mar deixa. Pesada cede. Tudo sossegado.S o que de homem se ouve. Cresce a vinda da lua.Nesta hora, Ldia ou Neera Ou Cloe,Qualquer de vs me estranha, que me inclino Para o segredo ditoPelo silncio incerto.Tomo nas mos, como caveira, ou chave De suprfluo sepulcro, o meu destino,E ignaro o aborreo Sem corao que o sinta.

    LdiaLdia, ignoramos. Somos estrangeiros Onde que quer que estejamos.Ldia, ignoramos. Somos estrangeiros Onde quer que moremos, Tudo alheio Nem fala lngua nossa.Faamos de ns mesmos o retiro Onde esconder-nos, tmidos do insulto Do tumulto do mundo.Que quer o amor mais que no ser dos outros? Como um segredo dito nos mistrios, Seja sacro por nosso.

  • 51

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    M

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  • 52

    POEMAS

    Melhor DestinoMelhor destino que o de conhecer-seNo frui quem mente frui. Antes, sabendo, Ser nada, que ignorando:Nada dentro de nada.Se no houver em mim poder que vena As Parcas trs e as moles do futuro,J me dem os deuses o poder de sab-lo; E a beleza, incrivel por meu sestro,Eu goze externa e dada, repetida Em meus passivos olhos, Lagos que a morte seca.

    MestreMestre, so plcidas Todas as horas Que ns perdemos, Se no perd-las, Qual numa jarra, Ns pomos flores.

    No h tristezas Nem alegrias Na nossa vida.Assim saibamos, Sbios incautos, No a viver,

  • 53

    FERNANDO PESSOA

    Mas decorr-la, Tranqilos, plcidos, Lendo as crianas Por nossas mestras, E os olhos cheios De Natureza ...

    beira-rio, beira-estrada, Conforme calha, Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo.

    O tempo passa, No nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase Maliciosos, Sentir-nos ir.

    No vale a pena Fazer um gesto. No se resiste Ao deus atrozQue os prprios filhos Devora sempre.

    Colhamos flores. Molhemos leves As nossas mos

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    POEMAS

    Nos rios calmos, Para aprendermos Calma tambm. Girassis sempreFitando o sol,Da vida iremosTranqilos,tendoNem o remorsoDe ter vivido.

    Meu GestoMeu gesto que destriA mole das formigas,Tom-lo-o elas por de um ser divino;Mas eu no sou divino para mim.

    Assim talvez os deusesPara si o no sejam,E s de serem do que ns maioresTirem o serem deuses para ns.

    Seja qual for o certo, Mesmo para com essesQue cremos serem deuses, no sejamos Inteiros numa f talvez sem causa.

  • 55

    FERNANDO PESSOA

    Capitulo

    N

    N

  • 56

    POEMAS

    Nada FicaNada fica de nada. Nada somos.Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos Da irrespirvel treva que nos peseDa humilde terra imposta, Cadveres adiados que procriam.

    Leis feitas, esttuas vistas, odes findas Tudo tem cova sua. Se ns, carnesA que um ntimo sol d sangue, temos Poente, por que no elas?Somos contos contando contos, nada.

    No a TiNo a Ti, Cristo, odeio ou te no quero.Em ti como nos outros creio deuses mais velhos. S te tenho por no mais nem menosDo que eles, mas mais novo apenas.

    Odeio-os sim, e a esses com calma aborreo,Que te querem acima dos outros teus iguais deuses. Quero-te onde tu sts, nem mais altoNem mais baixo que eles, tu apenas.

  • 57

    FERNANDO PESSOA

    Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia Como tu, um a mais no Panteo e no culto, Nada mais, nem mais alto nem mais puro Porque para tudo havia deuses, menos tu.

    Cura tu, idlatra exclusivo de Cristo, que a vida mltipla e todos os dias so diferentes dos outros, E s sendo mltiplos como elesStaremos com a verdade e ss.

    No a Ti, CristoNo a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo Que aos outros deuses que te precederam Na memria dos homens.Nem mais nem menos s, mas outro deus.

    No Panteo faltavas. Pois que viesteNo Panteo o teu lugar ocupa,Mas cuida no procuresUsurpar o que aos outros devido.

    Teu vulto triste e comovido sobreA steril dor da humanidade antiga Sim, nova pulcritudeTrouxe ao antigo Panteo incerto.

  • 58

    POEMAS

    Mas que os teus crentes te no ergam sobre outros, antigos deuses que dataramPor filhos de SaturnoDe mais perto da origem igual das coisas.

    E melhores memrias recolheramDo primitivo caos e da NoiteOnde os deuses no soMais que as estrelas sbditas do Fado.

    Tu no s mais que um deus a mais no eterno No a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.Panteo que preside nossa vida incerta.

    Nem maior nem menor que os novos deuses, Tua sombria forma dolorida Trouxe algo que faltava Ao nmero dos divos.

    Por isso reina a par de outros no Olimpo, Ou pela triste terra se quiseresVai enxugar o prantoDos humanos que sofrem. No venham, porm, stultos teus cultores Em teu nome vedar o eterno cultoDas presenas maiores Ou parceiras da tua.

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    FERNANDO PESSOA

    A esses, sim, do mago eu odeioDo crente peito, e a esses eu no sigo, Supersticiosos leigosNa cincia dos deuses.

    Ah, aumentai, no combatendo nunca. Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando Cada vez maior foraPlo nmero maior.

    Basta os males que o Fado as Parcas fez Por seu intuito natural fazerem.Ns homens nos faamos Unidos pelos deuses.

    No CantoNo canto a noite porque no meu canto O sol que canto acabara em noite.No ignoro o que esqueo. Canto por esquec-lo.

    Pudesse eu suspender, inda que em sonho, O Apolneo curso, e conhecer-me,Inda que louco, gmeo De uma hora imperecvel!A irrespirveis pncaros, Perenes sem ter flores.

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    POEMAS

    Esse livro foi impresso com as fontes tipogrficas Humanst521 e Kaufmann.

    Capa em papel craft 300 g/m2. Miolo em papel Plen Bold 90 g/m2. Formato 133 x 203 mm.

    Grfica Impressa. 25.000 exemplares

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    FERNANDO PESSOA

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    POEMAS

    POEMAS

    Viver ser outro. Nem sentir possvel se

    hoje se sente como ontem se sentiu: sentir

    hoje o mesmo que ontem no sentir -

    lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser

    hoje o cadver vivo do que ontem foi a vida

    Fernando PessoaFernando Pessoa