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Fundamentos de Direito Administrativo Disciplinar 35 Capítulo 1 NOÇÕES BÁSICAS DE DIREITO E DE DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR 1.1 INTRODUÇÃO O estudo ora apresentado possui a finalidade de trazer ao leitor, profis- sional da área jurídica afeta ao serviço público, um manual de procedimentos administrativos disciplinares, onde se analisam os aspectos materiais e formais das relações jurídicas que envolvem o Estado-administração e os seus agentes públicos, fornecendo arcabouço a uma síntese amparada na teoria geral do pro- cesso e na teoria geral do direito sancionador, alinhavada em garantias decorren- tes de um direito punitivo geral, comprometido com o atual Estado Democrático de Direito 3 e, assim, com os direitos e garantias fundamentais, plasmados na Constituição Federal de 1988. Pode-se afirmar, dentro de um ambiente que apresente a teoria geral do direito administrativo disciplinar, que a proposta é a de elencar, a par dos institu- 3 Contreiras de CARVALHO, na sua obra Estatuto dos Funcionários Públicos Interpretado , p. 28, dissertando sobre o tema “Estado de Direito” , assevera que “ no meio social em que atua e se desenvolve, o homem não age senão submetendo a sua vontade e ação a princípios a que deve obediência, princípios esses que se impõem à própria vontade do Estado, que, no exercí- cio de suas atividades fundamentais, como órgão de equilíbrio dos interesses individuais e co- letivos, tem os seus atos disciplinados por leis que limitam a sua autoridade. Quando por essa forma governa e administra, o Estado é de Direito,assim denominado, como ensina HERMES LIMA, porque a estrutura política repousa em relaçõ es jurídicas, porque o Poder Político se obriga a respeitar as leis e, quando legisla, sua autoridade está limitada por preceitos garan- tidores das liberdades individuais”. Assim, com enfoque em um Estado Democrático de Direi- to, impõe-se ao presente estudo uma abordagem em co nsonância com os limites dos poderes do Estado, mormente os princípios e garantias constitucionais que dão sustentação a uma acusação disciplinar justa, célere e segura. No mesmo sentido são as lições de Carl SCHMITT, na clássi- ca obra Legalidade e Legitimidade , p. 2, onde profere que em um Estado democrático de di- reito “ são as ‘leis que regem’ e não os indivíduos, as aut oridades ou as instâncias superiores ”, regulando com sua vigência o exercício do poder, com base ou fundamento em uma lei, deno- tando que a legitimidade do poder encontra-se na lei e no povo, pois estes são os responsáveis pela escolha dos seus representantes os quais confeccionam o ato formal de obrigação-lei. http://www.jurua.com.br/bv/pagina.asp?id=22426 1 de 1 2/8/2013 03:05

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Fundamentos de Direito Administrativo Disciplinar 35

Capítulo 1

NOÇÕES BÁSICAS DE DIREITO E DE DIREITO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR

1.1 INTRODUÇÃO

O estudo ora apresentado possui a finalidade de trazer ao leitor, profis-sional da área jurídica afeta ao serviço público, um manual de procedimentosadministrativos disciplinares, onde se analisam os aspectos materiais e formaisdas relações jurídicas que envolvem o Estado-administração e os seus agentespúblicos, fornecendo arcabouço a uma síntese amparada na teoria geral do pro-cesso e na teoria geral do direito sancionador, alinhavada em garantias decorren-tes de um direito punitivo geral, comprometido com o atual Estado Democráticode Direito3 e, assim, com os direitos e garantias fundamentais, plasmados naConstituição Federal de 1988.

Pode-se afirmar, dentro de um ambiente que apresente a teoria geral dodireito administrativo disciplinar, que a proposta é a de elencar, a par dos institu-

3

Contreiras de CARVALHO, na sua obra Estatuto dos Funcionários Públicos Interpretado ,p. 28, dissertando sobre o tema “Estado de Direito” , assevera que “ no meio social em que atuae se desenvolve, o homem não age senão submetendo a sua vontade e ação a princípios a quedeve obediência, princípios esses que se impõem à própria vontade do Estado, que, no exercí-cio de suas atividades fundamentais, como órgão de equilíbrio dos interesses individuais e co-letivos, tem os seus atos disciplinados por leis que limitam a sua autoridade. Quando por essaforma governa e administra, o Estado é de Direito,assim denominado, como ensina HERMESLIMA, porque a estrutura política repousa em relaçõ es jurídicas, porque o Poder Político seobriga a respeitar as leis e, quando legisla, sua autoridade está limitada por preceitos garan-tidores das liberdades individuais”. Assim, com enfoque em um Estado Democrático de Direi-to, impõe-se ao presente estudo uma abordagem em co nsonância com os limites dos poderes doEstado, mormente os princípios e garantias constitucionais que dão sustentação a uma acusaçãodisciplinar justa, célere e segura. No mesmo sentido são as lições de Carl SCHMITT, na clássi-

ca obra Legalidade e Legitimidade , p. 2, onde profere que em um Estado democrático de di-reito “ são as ‘leis que regem’ e não os indivíduos, as aut oridades ou as instâncias superiores ”,

regulando com sua vigência o exercício do poder, com base ou fundamento em uma lei, deno-tando que a legitimidade do poder encontra-se na lei e no povo, pois estes são os responsáveispela escolha dos seus representantes os quais confeccionam o ato formal de obrigação-lei.

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DEZAN, Sandro Lucio Dezan. Fundamentos de dreito administrativo disciplinar. 2. ed., rev. e atual. Curitiba: Editora Juruá, 2011. Sandro Lucio Dezan é Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais e Professor de Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado de Polícia Federal; Corregedor de Polícia Federal.
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tos componentes do atuar administrativo, direitos e garantias fundamentais doagente público ante ojus persequendi e o jus puniendi estatais, atuação estatutá-ria correicional, sem, contudo, declinar das categorias jurídicas que dão legiti-midade ao Estado para a sua persecução.

Com isso o viés dado ao estudo será o garantidor de tutelas do servidorpúblico sob a égide de nossa Carta Maior, dispensando especial atenção ao prin-cípio da legalidade do tipo definidor de ilícito e seus princípios e implicaçõesjurídicas decorrentes.

Não obstante, desenvolver-se-á análise do instrumento (processo e de -mais procedimentos administrativos disciplinares) posto à administr ação públicapara o exercício do seu direito de apurar ilícitos disciplinares e de punir o servi-dor público responsável e a ela vinculado por relação jurídica de direito materiale por direito formal, processual.

Para tanto, importante tecerem-se, ainda que de forma incipiente, classi-ficações conceituais de direito, com o fim de se chegar ao objeto da pesquisa oraproposto, qual seja, agora de forma delimitada, o direito administrativo discipli-nar, a persecução estatal e a legalidade da ação administrativa sobre o funda-mento de validade da dignidade da pessoa humana.

Sem qualquer pretensão de exaurir discussões acerca do tema, busca-se ,em síntese, a análise de institutos de direito administrativo disciplinar, sistemati-zados com o direito constitucional e, assim, a possibilidade de interpretação eaplicação do direito sancionador estatutário tendo como paradigma as teorias dodelito, oriundas do direito penal, as quais, amparadas nos direitos e garantiasconstitucionais fundamentais, dão tutela à justa aplicação da norma ao casoconcreto em casos de repreensão à prática do ilícito.

Antes de nos determos no cerne do estudo do direito administrativo dis-ciplinar, especificamente na análise do ilícito administrativodisciplinar e suasimplicações materiais e formais no âmbito do regime jurídico es tatutário, bemcomo, também de modo analítico, nos procedimentos que permitem o exercíciodo poder disciplinar estatal, importante localizá-lo topograficamente dentro dosistema jurídico4. Deste modo, traremos básicas noções de introdução ao estudodo direito, de direito administrativo e de seus princípios fundamentais, de formaa introduzir o tema que se ora pretende estudar.

4 Importante aferir de plano, como se verificará no decorrer dos estudos ora propostos, que

sistema jurídico não se confunde com ordenamento ju rídico, pois o sistema, a par o ordenamen-to em si, apresenta-se como unidade lógica e coeren te de um determinado ordenamento jurídi-

co. Daí se entender que o conceito de sistema abarca e ultrapassa a noção de ordenamento, àmedida que só se considerará sistêmico o ordenamento lógico, coerente e com contornos epis-

temológicos definidos. Assim, podem-se apresentar o rdenamentos jurídicos assistemáticos, àmedida que dotados de antinomias (normas contraditó rias regulando as mesmas relações inter-

subjetivas) que os inviabilizem como normas de conduta.

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1.2 DIREITO E EPISTEMOLOGIA – CORRELAÇÃO ENTRE

ORDENAMENTO, SISTEMA E REGIME JURÍDICOS

1.2.1 Conceito jurídico e origem epistemológica do vocábulo “direito”

Tema por demais polêmico e tormentoso para os operadores das ciên-cias jurídicas é a tentativa de se conceituar o direito, semse expressar de formatautológica, quer seja o conceito incidente sobre o estudo do objeto “norma ”,quer incidente sobre o objeto epistemológico5, “ciências do conhecimento”, eeste, sobre o direito positivo (iuriprudentia) e o direito natural (iurisscientia).No entanto, faremos de modo singelo, com vista a apenas introduzir o estudo dodireito administrativo disciplinar.

O vocábulo “direito” deriva do latim directum, vinculado em seu radicalfonético-ortográfico ao vocábulo rectum, representando o que é “direto” e “re-to”. Assim, “direito” significa aquilo que é reto, correto, sem c ontornos ou des-vios, equidistante, proporcional, razoável ou devido e, modernamente, aponta oque é jurídico ou jurisdicizado.

Trata-se de vocábulo afeto ao conceito de jurisdição, que também derivado latim jus, iuris ou iustum e significa, na essência, tudo que for “direto”, “reto” e“justo”, ou seja, tudo o que for devido a alguém po r razões de justiça. A interpre-

tação a contrario sensu delimita também o alcance do vocábulo “injusto” ( iustumet iniustum), contrário à justiça, e do vocábulo “ilícito”, contrário à lei.

Percebe-se que o conceito do termo “direito” relaciona-se intri nseca-mente com o conceito do vocábulo “justiça” e “jurisdição”, como signi ficado (i)da ação humana de dizer o justo, com base em parâmetros normativos, ao casoconcreto, ou, em um sentido genérico e abstrato, (ii) de assentar a prescriçãogeral regulatória do corpo social, com fundamento na razão humana e sua noçãode justiça e ou de injustiça (fundamentada na teoria da razão pura, em Kant,aprimorada pelo foco objetivo do conhecimento a priori material, apontado porHusserl e contraposta ao empirismo, em Hume e ao racionalismo, de Leibniz eWolff), na medida em que o Estado busca verter em fómulas legais o que enten-de por justiça.

Daí se denotar a estreita relação entre o Direito e a Justiça e a relatividadedesta para afetar a noção conceitual do direito, co nquanto a justiça, como sentimentoinato ao ser humano, reestrutura-se e se “reinventa ” pari passu com o evoluir ouretroceder do Estado e da Sociedade que o representa.

O direito quer seja entendido como ciência, quer caracterizado comonormas dispostas em um ordenamento, sistema ou regime jurídico e detentoresde regras e princípios – não importa a acepção –, sempre dependerá do v alor“justiça”, tanto para a positivação das leis, quanto para a interpre tação, integra-

5 Epistemologia significa o apreender ou o saber científico; o vocábulo deriva dos termos gregos

episteme (conhecimento científico) e logos (estudo ou reflexão), denotando, assim, uma teoria

geral do conhecimento ou gnosiologia.

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ção e aplicação delas ao caso concreto sub examine, exprimindo suas caracterís-

ticas como fruto de manifestação do corpo social, como pressuposto lógico do atual estágio social6.

1.2.2 O direito como norma jurídica

Pelo sentido de norma jurídica na acepção de Kelsen, podemos entendero direito como o mandamento de fazer ou não fazer, ou então tolerar ou permitirque se faça, sob pena, com a sua não observância, de incidência de sa nção. Hádaí decorrente a noção de coação estatal, por meio de instrumentos pa ra issoapropriados, denotando a relação existente entre direito e poder. Esse manda-mento e essa sanção, coação e coercibilidade, podem ser escritos ou v erbais esão conceituados como preceito primário e preceito secundário, ou antecedente econsequente, ou ainda, como prescritor e descritor.

Sob esse aspecto, o direito apresenta o sentido de lei (regras), postu-lados aplicativos e princípios, regimes jurídicos, sistema e ordenamento jurí-dico na qualidade de mandamento normativo ou conjunto harmônico demandamentos normativos, prescritores de imperativos que obrigam o indiví-duo a determinado comportamento ativo, omissivo ou permissivo, de obser-vância cogente e garantida pelo Estado, conquanto r epresentante do povo,titular do poder soberano.

1.2.3 O direito como instrumento de regulação social

Esse sentido de direito como norma jurídica ou conjunto de normas ju-rídicas coerentes e harmônicas apresenta a primordial função de ins trumento deregulação do corpo social organizado. Visa à manutenção da ordem pública esocial por intermédio de prescrições gerais e abstratas, ou à soluç ão de impassesem casos concretos.

Deste modo, o direito constitui-se em instrumento essencial à defini-ção do Estado, com suas características próprias, da ordem e da sociedade,primando, não obstante, pela segurança da previsibili dade dos comportamen-tos esperados pelos indivíduos que compõem esse mesmo corpo social, refle-tindo o cultural, pois o “ Direito é a projeção normativa que instrumentaliza osprincípios ideológicos (certeza, segurança, completude ) e as formas de con-trole do poder de um determinado grupo social”7. Disso surgem as noções de

direito objetivo e de direito subjetivo, de direito natural e de direito positivo,conforme se verá adiante.

6 Para aprofundamento do tema “direito pressuposto”, indicamos a obra do Professor Eros Roberto

GRAU: Direito Posto e Direito Pressuposto, onde o autor faz o desenvolvimento de sua teoriaacerca dos valores existentes no bojo do corpo social e que denotam a expressão em forma depositivação jurídica.

7 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, e stado e direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2003. p. 154.

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1.2.4 O direito como ciência

O vocábulo “direito” é também comumente empregado como ciência dodireito, denotando a sua face epistemológica, teoria da ciência do direito. Destafeita, direito como norma não se confunde com o direito epistemologia ( teoriada ciência). O comportamento do direito enquanto norma de conduta socialrepresenta o objeto de estudo do direito enquanto ciência aplicada.

O alcance de determinada norma, a forma de interpretá-la ou de aapli-car, ou mesmo a conotação principiológica existente em determinado orde na-mento jurídico, bem como a identificação e a conceituação de instit utos e decategorias jurídicas, delimitando suas implicações e efeitos, const ituem objetoda ciência do direito. Vale dizer o direito enquanto ciência aplicada a um objetode estudo, no caso as leis, as normas dela decorrentes e todo o ordenamento denormas, os sistemas e regimes jurídicos daí formados.

A ciência do direito se ocupa desses objetos e com eles não seconfun-de, malgrado o termo “direito” ora ser empregado como o objeto (leis e normas),ora como o resultado do estudo ou o próprio ato de estudar o seu objeto (episte -mologia jurídica).

1.2.5 O direito como ordenamento jurídico

O direito entendido como norma (objeto do estudo da ciência do direito)compõe o ordenamento jurídico, onde se definem os contornos objetivos, gené-ricos e abstratos, erga omnes, regulatórios do corpo social.

O conjunto de normas vigentes, dos mais variados ramos da epistemo-logia jurídica, forma a ordem jurídica vigente ou o ordenamento jurídico. Cum-pre ressaltar que ordenamento jurídico não se confunde com sistema jurídico, eestes, ordenamento e sistema, distinguem-se, ainda, de regime jurídico.

Assim, as diversas leis e as normas nelas contidas formam a legislaçãodo Estado, que tem por objetivo reger toda e qualquer norma de conduta, querseja por meio de previsões gerais e abstratas, quer seja por suas aplicações aoscasos concretos apresentados.

Ordenamento jurídico é, por assim dizer, o conjunto de leis, de princí-pios e de normas destes decorrentes, que dão os contornos do jurisdiciza do, doregulado, e a forma de como o são regulamentados, os diversos institutos jurídi-cos para o harmônico convívio social.

Apresenta a ideia de unidade, ordem e hierarquia, onde normas se subordi-nam a outras normas, com vista a estabelecer relacionamentos e fundamentos devalidade ascendentes, com base na Constituição e no mandamento de obediência aesta Constituição – norma hipotética fundamental, d e Hans Kelsen. No entanto,consideramos o ordenamento jurídico somente enquanto sistema dinâmico , que,para Kelsen, seria o ordenamento correlacionado enquanto hierarquizado, indepen-dentemente de seu conteúdo, decorrendo normas em razão de outras normas, porsucessivas delegações de poder, em uma relação mera mente formal.

Se acaso denotarmos relação de unicidade, ordem e hierarquia tendocomo cerne o conteúdo, o aspecto material da norma em si, o que Kelsen classi-

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ficou como ordenamento baseado em um sistema dedutivo e similar ao sistemade normas morais, classificá-lo-emos comosistema jurídico. Daí a nossa distin-ção entre ordenamento jurídico e sistema jurídico.

Assim, considerando as normas envoltas em um ambiente formal, queas una de modo ordenado e hierarquizado, em razão de uma norma hipotéticafundamental que delegue validade para a produção de umas por outras, de hie -rarquia superior, servindo umas de fundamento de validade para outras, até sechegar à norma máxima, elementar o entendimento de tratar-se de conceito ounoção de ordenamento jurídico em si. No entanto, se a coesão, ordem e hierar-quia decorrerem do conteúdo epistemologicamente abrangente do conjunto denormas, poderemos falar em sistema jurídico, considerando-o, ainda, inserto noordenamento jurídico. Se a coesão e a ordem decorrerem de uma análise de con-teúdo específico e contido dentro de certo sistema, classificaremos esse subcon-junto de normas em regime jurídico.

Deste modo, para ilustrar, temos o ordenamento jurídico brasileiro,com todas as normas vigentes e válidas segundo a Constituição Federal de 1988,onde se apresentam diversos sistemas jurídicos, a exemplo do sistema de direitoadministrativo, formado por diversos regimes, a exemplo dos regimes jurídicosdas licitações e contratos , dos atos administrativos, da intervenção do Estadona propriedade privada, do exercício do poder disciplinar (regime jurídico ad-

ministrativo disciplinar) etc.

1.2.6 O direito como sistema jurídico

O conjunto de normas jurídicas sobre os diversos temas das relaçõessociais, com unidade e coesão postas por uma ordem maior e fundamental,forma o ordenamento jurídico, e este, quando composto de normas e princí-pios logicamente dispostos e interrelacionados, com a tendência de coesão eunidade em razão do conteúdo abordado, dará ensejoa um ciclo de normascoerentes, denotando um sistema jurídico. Com base nesses fundamentos éque se pode falar em sistema de direito sancionador geral, sistema de direitocivil, ou de direito processual.

Assim também se pode falar em sistema constitucional, referente à uni-dade dogmática do direito constitucional. Possível também se referir a um gran-de sistema, qual seja o sistema do direito, denotando a sua unicidade e indivisi-bilidade, detentor de normas alinhadas e logicamente postas, formando um todoque somente se divide para se tornar didático (afere-se aqui, considerando odireito como um grande sistema de normas, a classificação de sist ema em Kel-sen, que divide o ordenamento em sistemas estáticos e sistemas dinâmicos. Comefeito, o ordenamento jurídico é analisado sob a óptica dos sistemas estático edinâmico: se analisado quanto à hierarquia das normas, apresenta-se o or dena-mento fundado no sistema dinâmico, ao passo que, se analisado quanto ao con-teúdo das normas em si, apresenta-se o ordenamento baseado no sistemaestáti-co, aproximando-se mais do conceito de sistema moral, por agrupar conjunto denormas em razão de seu conteúdo).

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Surge, assim, a noção de direito como uno e indivisível, porém frag-mentado para a sua melhor apreensão, o seu melhor estudo, interpretação e apli-cação, conquanto formado por ramos apenas didaticamente, epistemologicam en-te, autônomos.

1.2.7 O direito como regime de normas e o regime jurídico disciplinar

O sistema jurídico, quando reduzido em sua unidade mínima, porémmantendo a coerência lógica e associações materiais (de conteúdo) internas,identifica a noção de regime jurídico, ou seja, o conjunto de normas e princípiospostos de forma a delinear grupo de institutos jurídicos relacionados e com umfim específico, dentro do sistema jurídico originário como um todo. Com feito,podemos identificar o regime jurídico das sucessões, derivado do sistem a dedireito civil, ou o regime jurídico do direito das coisas, também dentrodo siste-ma de direito civil brasileiro, ou ainda o regime jurídico da prescrição penal,decorrente do sistema jurídico de direito penal.

Assim temos um conjunto de normas que formam o direito positivo e odireito objetivo, bem como, o direito subjetivo, todos dispersos em vários di-plomas normativos e envolvidos por leis e princípios informativos ou gerais, quetratam, e.g., dos assuntos internos da administração pública, no que tange ao seurelacionamento com os seus servidores públicos, vinculados por relação j urídicaestatutária. Nesse ambiente, apresentam-se direitos, deveres, obrigações e proi-bições, aplicáveis ao agente público, bem como, o dever-poder disciplinar(apu-rar e sancionar), com os instrumentos necessários ao seu regular exercício.

Deste modo, podemos aferir que os diversos diplomas normativos coe-rentes entre si, com coesão, unidade e objetivos, dão azo ao conceito de regimejurídico, e este, conquanto vinculado à finalidade de manutenção da ordem in-terna e eficiência do serviço público,e.g., a Lei 8.112/90 combinada com a Lei9.784/99, forma o regime jurídico disciplinar, no caso exemplificado dos servi-dores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas fede-rais, apresentando um escopo, qual seja, a garantia de eficiência da máquinaestatal com a regular prestação dos serviços públicos, como bem assenta Marcel -lo Caetano, ao alinhavar que, “para realizar eficientemente os fins de que éinstrumento, torna-se necessário que na vida interna do serviço sejam observa-das certas normas de comportamento dos agentes que o constituem”8. O referi-do autor conclui acrescentando que a noção de regime disciplinar é inerente atodo e qualquer serviço administrativo.

Importante ilustrar que a Lei 4.878/65 não compõe o regime jurídicoacima referido, uma vez que, por ser aplicável somente aos servidores policiaisfederais, não guarda correlação lógica e coerente com as apurações dos demaisservidores civis da União. Não obstante, se, por outro giro, o vértice de análisefor o regime jurídico disciplinar dos servidores policiais federais, os três diplo-mas normativos o compõem, uma vez que as Leis 8.112/90 e 9.784/99 são apli-cadas de modo subsidiário à Lei 4.878/65, guardando uma unidade identificável.

8 CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro:

Forense, 1977. p. 387.

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Há de se apontar também que um regime jurídico pode ser composto denormas contidas em dois sistemas distintos, quando estes sistemas guardem entre siuma base principiológica específica, com normas apl icáveis em um e em outro sis-tema e assim, mantida a coerência interna, formando um regime jurídico composto.Exemplo desse fenômeno jurídico ocorre com o direit o administrativo disciplinar,que se constitui em um regime jurídico cujo cerne é permeado por normas tanto dosistema de direito administrativo quanto de direito sancionador geral.

Conclui-se, portanto, que as normas em si, componentes de um ou maissistemas jurídicos, podem, ou não, considerando o objeto de estudo, ser parte deum mesmo regime jurídico ou estar alijadas a ele, à medida que al terne o objetoepistemológico do direito, ou seja, à medida que se relacione a um ou a out roramo do direito ou categoria ou grupo de pessoas delimitadas.

1.3 A JUSTIÇA DO DIREITO

O pospositivismo da idade contemporânea apresenta como marco teóri-co, na lição de Konrad Hesse9, a força normativa da Constituição e como marcofilosófico a reaproximação entre o direito e a ética e, em decor rência, a reapro-ximação do direito ao conceito de justiça.

Essa noção de justiça que permeia o direito é fruto do racionalismo mo-derno no qual se baseou o Estado liberal (liberalismo clássico que se opunhaformalmente aos poderes absolutos do Estado), elevando a certeza da razãohumana (i) como fonte do conhecimento (direito natural válido por sua raciona-lidade, concebida dentro do jusnaturalismos moderno) e (ii) fundamentada noprincípio universal da justiça10.

Com o advento do neopositivismo ou positivismo lógico, pós-Estado li-beral, na segunda década do século XX, buscou-se firmar as bases doconheci-mento na filosofia analítica, empirismo lógico, mesmo quando o objeto sobanálise estava afeto às ciências sociais, a exemplo do movimento conhecidocomo “Círculo de Viena” – onde os doutos estudiosos e cientistas se r euniampara discutir a cientificidade dos métodos –, firmada nas experiências, na medi-da em que, paulatinamente, aproximavam ou restringiam, reduziam, o direito oua ciência do direito à lei e aos signos que a representam11.

O pospositivismo, como marco filosófico do neoconst itucionalismo, volveo direito ao entendimento de não se conceber soment e como norma positivada, as-pecto subjetivo de determinado sistema de normas ou fato social, mas, sim, comociência a qual visa, por meio do jurista, intérprete e aplicador, a realizar a finalidadede uma vontade social, em sua justa medida – aspect o objetivo da ordem social.Assim, serve como exigência de um valor, qual seja: o valor de justiça em sua con-

9

HASSE, Konrad. A força normativa da constituição . Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

10 KANT, Immanuel. Introdução ao estudo do direito. Doutrina do direit o. 2. ed. Tradução deEdison Bini. São Paulo: Edipro, 2007.

11 Para um estudo aprofundado sobre o “Círculo de Vien a”, importante conferir artigo de Paulo de

Barros CARVALHO: O Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena . C. A. FIL. – PUCSP,Pasta 117/09.

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cepção alinhavada com os anseios do corpo social e em determinada fase de seuevoluir12. Daí a necessidade social de se pautar o direito como algo justo, plasmadono conceito de justiça firmada pela razão humana, c oncebendo que o direito, paraser válido, deve, antes de tudo, ser justo. Por esse aspecto, direito não se confundecom lei, uma vez que representa o “devido”, o “cert o”, o “igualitário”, o “razoável”e o “proporcional”, com o amparo na noção de “justi ça”.

Em que pese o conceito de direito, conquanto ciência ou conjunto denormas, buscar a realização da justiça, com esta também não se c onfunde, poisapenas a tem como referencial a ser axiologicamente alcançado ou mirado.

De certo que, em que pese o positivismo jurídico afirmar o contrário,pode-se decidir pela invalidade de qualquer norma, por ofensa a esse ideal dejustiça a que deve se reportar toda e qualquer norma do sistema. De corre, assim,a noção de suprapositividade desse princípio, orientando todo e qualquer r amodo direito, qual seja o princípio da justiça do direito .

Os próprios princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, oumesmo o princípio da igualdade, representam a força normativa do princí pio dajustiça do direito, à medida que fundamentam decisões de invalidade, com am-paro na não razoável ou não proporcional eficácia e, por conseguinte, aplicaçãoda norma, que nada mais é que a sua rotulação como “injusta”.

À vista disso, o direito, como formador de uma ordem social justa em suas relações intersubjetivas, deve deferência à noção de valor a bsoluto à pessoahumana, sem a qual não se concebe um Estado que se diga democrático, à medi-da que “ a justiça consiste essencialmente no reconhecimento prático que o ho-mem [e o Estado como um todo] faz da dignidade dos demais homens”13.

Assim, o estudo ora pretendido, parte da premissa da tentativa, por maisque tentemos fugir do reducionismo, de reconhecimento de simetria, aproxima-ção, entre o conceito de validade e o conceito de justiça, considerand o-se, noentanto, o atual estágio do evoluir da ordem social, situando deste modo o orde-namento jurídico válido, justo, em um contexto fático e histórico. Considera-se,assim, que a noção de justiça não se constitui em uma verdade absolut a, mate-mática, mas, sim, fluida e variável, conforme o estágio da ordem s ocial em si,porém sendo aceitável como absoluta dentro e nos limites desse contexto e sem-pre abalizada pela deferência de dignidade à pessoa humana.

No entanto, a definição de que uma norma é justa e, por consequência,válida, não é de fácil aferição, pois, partindo-se d a consideração de que todo direi-to posto é válido até que se prove o contrário – princípio da validade do ordena-mento jurídico –, há de se reconhecer o importante papel do intérprete e aplicadordo direito ao caso concreto, quer seja em sede de Poder Judiciário, quer em sede

12 Segundo KANT, Immanuel. Introdução ao estudo do direito... , cit., p. 47, pelo princípio

universal do direito, “ qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todosde acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um pu-der coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal”. Ensina o filósofo quea injustiça, conquanto resistência a uma liberdade, justiça em si, não pode coexistir com umaliberdade, de acordo com uma lei universal que se expressa: “ age extremamente de modo que olivre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos”.

13 MONTORO, André Franco.Introdução à ciência do Direito. 28. ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2009. p. 167.

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de Poder Executivo, posto que, para abalizada corrente doutrinária, o direito nãose confunde com a justiça, malgrado tratar-se de um ideal a se buscar, uma vezque pode haver normas injustas, porém válidas em razão de sua harmonia formal ematerial com o sistema jurídico. No que tange a essa harmonia material, porém,modernamente se tem reconhecido a invalidade da norma injusta, por obra doexegeta, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Para Bobbio14, ao discorrer sobre a teoria da norma jurídica, conclui queo conceito de validade não pode ser coincidente com o conceito de justiça , apre-sentando-se como institutos distintos, uma vez que, se há o dever de obediênciaao ordenamento jurídico, mesmo que os seus destinatários o considereminjusto,há de se entender que a norma injusta deve ser considerada válida,ante essedever de observância pelo corpo social.

Não obstante, entendemos, para os fins ora proposto s, a ocorrência de sime-tria e interdependência entre o conceito de “validade” e o conceito de “justiça”, pararegular o agir dos operadores do direito, seus intérpretes e aplicadores.

1.4 A CERTEZA DO DIREITO

Conquanto vértice principiológico, a justiça do direito reflete um ide alde valor a ser firmado pelo Estado em suas positivações, aplicações concretas doPoder Executivo e concreção da norma pela jurisprudência. Como se falar emdireito justo se também não for o certo? Disso, importante entender a existênciade uma aproximação e simetria – correlação – entre o direito e a justiça do direi-to e entre esses e a certeza, dentro dos limites do razoável e do proporcional,formando a certeza do direito, como representação do ideal de justiça a ser mi-rado pelo Estado. Inconcebível um conceito de direito justo se também não oseja, do mesmo modo, considerado certo, preciso, em seus termos e afinado como fluido conceito momentâneo de justiça, experimentado pela sociedade.

Os princípios da justiça do direito e da certeza do direito devem andarlado a lado e, assim, dar sustento a todo sistema de normas, constituindo-se emreferencial a ser buscado, quer com a positivação de leis, quer c om a sua inter-pretação e aplicação aos casos concretos.

O direito deve ser certo e justo com base num imperativo maior, qualseja, como acima afirmado, a necessidade de deferência à pessoahumana, con-quanto sujeito de direitos e deveres.

Há de se considerar a dignidade da pessoa humana como referencial,ainda, aos referenciais já citados, pois estes, o direitojusto e o direito certo, sóapresentam razão de ser, se as relações intersubjetivas forem permeadas pelanoção de dignidade afeta aos sujeitos da relação.

Assim, desenvolvendo um raciocínio lógico, importante se faz concluirque os ideais de justiça e de certeza do direito repousam sobre a a mplitude doconceito de “dignidade” atribuído à pessoa humana e, no entanto, sobre a am pli-tude do conceito de “verdade”.

14 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2005. p. 58.

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1.5 A CONCEPÇÃO DE VERDADE PARA O DIREITO

As teorias da verdade completam-se mutuamente e podem ser classificadaspelos critérios ontológico (verdade metafísica), ló gico (verdade semântica) e episte-mológico (verdade epistemológica). O primeiro relacion a verdade com realidade, aoposso que se deferirá ostatus de “verdadeiro” ao real, ao fato que seja a essência da(ou a própria) coisa analisada, assim considerada c omo tangível. O segundo critérioestá afeto àcorrespondência ou adequação entre o discurso enunciativo, referen te àrealidade e a própria realidade a que se visa retra tar. O terceiro critério, epistemoló-gico, parte da noção de compreensão dos fatos pelo intérprete, sujeito cognoscente,concebendo conceitos e dando azo a inferências15.

Dentro dessa acepção, ensina Eliomar da Silva Pereira que

a verdade como correspondência expressa a idéia deuma relação entre afirmações

e fatos existentes (MOSER, MUDER e TROUT, 2004, p. 73), entre o conhecimentoe a coisa (ABBAGNANO, 2003, p. 994). Essa é, em essência, sua noção fundamen-tal, que relciona o que se diz (linguagem) ou se conhece (ideia) ao que existe (reali-dade). Nesse sentido, a coisa, a realidade externa ao conhecimento seria a medidada verdade. Existindo, há verdade, por haver correspondência entre conhecimento,íntimo ou expresso na linguagem e a coisa que se pensa ou se diz16.

A correspondência, congruência e correlação, entre o conceito enuncia-do do fato e a sua essência real, partindo-se da óptica, análise conclusões, le-vadas a efeito por um sujeito, é o que basicamente interessa para o Direito, ga-rantindo eficácia das decisões jurídicas.

No entanto, tal conceito, “verdade”, apresenta-se deveras relati vo, poissomente pode um fato ser, assim, posto juridicamente como verdadeiro, se seconsiderar a pessoa do observador, julgador, interprete, e, com efeito, o seuconhecimento a priori do objeto sob análise.

A depender dos conhecimentos apreendidos, pressupostos pelo sujeitoanalisador, determinado fato pode ser considerado verdadeiro ou, então, fals o.Disto decorre a relatividade do conceito e dos conceitos dele decorrentes, aexemplo da certeza e da justiça do Direito, denotando que a verdade par a o Di-reito é uma verdade jurídica, relativa, portanto.

Se os princípios da certeza do direito e da justiça do direito dependem danoção de verdade existente em determinado momento do evoluir social, variandocom isso, tornam-se princípios relativos, uma vez que também ficam ao alvedriodo intérprete observador e do alcance e profundidade de sua análise sobre o fato.

No entanto, o que se busca com o princípio da certeza do direito ampa-rado no conceito de verdade, é a harmonia de ambos com o valor “verdade” quepermeia a sociedade, de acordo com as normas e regras que, por indução, podemlevar a se falar em ocorrência ou inocorrência de um fato, ou, por as sim dizer,ser um fato “verdadeiro” ou ser ele “falso”, inverídico. Daí a íntima correlação

15 PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal . São Paulo: Almedina Brasil,

2011. p. 95.16 PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal ..., cit., p. 97.

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entre o observador-intérprete (e seus conhecimentos socioculturais adquiridos,ou referenciais postos pelo ordenamento jurídico como um todo) e o conceito decerteza, de verdade e de justiça.

1.5.1 A verdade judicial

Partindo-se da premissa do conceito de “verdade” como “correspondên-cia”, dois princípios que relacionam “verdade” e “direito”, quais se jam: o prin-cípio da verdade formal e o princípio da verdade real. O primeiro, como se veráadiante, pauta-se pela suficiência dos autos processuais em si mesma, para seconsiderar provada determinada alegação, subsidiado pelo jargão de que “o quenão está nos autos não está no mundo”. Disso decorre a possível admissibilidadede ficções jurídicas, para subsidiar a decisão judicial e, com ef eito, a noção deexistência ou inexistência de um fato jurídico.

O segundo, o princípio da verdade real, aponta a necessidade e a instru-mentalização de se coligir para os autos do processo toda e qualquer prova do quese alega, sob pena de não ser reconhecida pelo julg ador uma alegação sem a suademonstração de ocorrência ou inocorrência. Não permite, ou permite em menorgrau, ao julgador a utilização de ficções jurídicas pa ra o embasamento da decisão,devendo, se for o caso e havendo necessidade, agir de ofício para a elucidação dosfatos que subsidiam a demanda.

No entanto, há de se considerar, mesmo dentro do conceito de “verdadereal” ou “verdade material”, a noção de relatividade, consoante ac ima estudado,validando, destarte, a possibilidade de utilização de indícios para o subs ídio dadecisão, mesmo quando regida por este último princípio.

A verdade judicial apresenta-se, assim, como uma verdade relativa eamparada pelo conceito de justiça e certeza que permeiam a sociedade.

1.5.2 A verdade administrativa disciplinar

Da mesma forma que a verdade judicial, a verdade para o direito adminis-trativo disciplinar, dentro de uma noção ampla de p rocesso, é firmada na relativida-de de seu conceito, à medida que depende dos pressu postos existentes no seio dasociedade, para a análise, a interpretação e a consideração, sempre relativa, de ocor-rência jurídica dos fatos e atos administrativos. Essa relatividade, porém, não aaproxima da verdade formal, mas, sim, da verdade consubstanciada na realidade dosconceitos sociais, referentes aos padrões tidos com o aceitáveis para se entender umfato provado, ocorrido ou não ocorrido, ou não prov ado.

Prima-se em processo administrativo disciplinar e no direito disciplinarcomo um todo pela verdade real ou material, aceitando em pouquíssimos casosficções jurídicas para o embasamento da decisão, qualquer que seja ela.

1.6 A CONCEPÇÃO DE VALIDADE PARA O DIREITO

Adentraremos a análise da existência, da validade, da nulidade e da anu-labilidade, bem como, da convalidação dos atos administrativos, aplicadas ao

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direito administrativo disciplinar em capítulo apropriado, porém, neste ponto,cumpre apresentar a noção de validade dos atos e fatos jurídicos pa ra o direitocomo um todo.

A validade diz respeito à norma em si e se trata de institut o interno aoordenamento jurídico e dele derivado, uma vez que somente o próprio orden a-mento poderá fornecer a noção de suas bases e o que delas se afasta. Com efeito,a norma será válida se apresentar harmonia com o ordenamento jurídico, masnão só, devendo ser alinhada às normas de hierarquias superiores.

Há, assim, um escalonamento entre as diversas espécies normativas,onde as superiores fornecem fundamento de validade para as inferiores, estipu-lando, por exemplo, a forma de confecção, os critérios para o ingresso no mundojurídico e o seu campo de incidência.

Uma vez em dissonância com as normas superiores do ordenamento, asquais dão esse fundamento de validade para as normas hierarquicamente inferio-res, serão consideradas inválidas, nulas, pelo próprio ordenamento, cabendo aointérprete e aplicador do direito esse reconhecimento, obstando os efeitos inicial-mente almejados pelo ato.

1.7 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS DE DIREITO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

1.7.1 Direito natural

O direito natural pode-se classificar em teológico, racional e s ocial.Tem-se por direito natural teológico o que firmava a origem divina do poder edas normas de conduta de determinado corpo social. Foi utilizado, em parte econquanto interpretado de forma tendenciosa, para fundamentar os excessosverificados nos governos absolutistas dos séculos XV e XVI. Odireito naturalsocial considera o direito originado no meio social, fruto do próprio evoluir

sociocultural. O direito natural racional considera o direito como originário dopoder racional do homem, que afere as noções de justiça e de certeza , para asregras de conduta do corpo social. Apresentaram-se Kant e Rousseau como seusprincipais expoentes.

Conjunto e valores axiológicos, absolutos e suprapositivos, superioresàs noções de Estado e de soberania, inerentes à própria natureza humana e quedevem orientar toda e qualquer produção normativa, quer seja ela escr ita, positi-vada, ou meramente verbal. Interessa-nos em nossos estudos o direito naturalsob os aspectos racional e social17.

17 Segundo FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de Direito Constitucional Brasileiro –

Teoria Geral, v. I, p. 17, o direito natural social apresentou uma corrente mais antiga chamada

de Escola Histórica do Direito que representou, na essência, a contraposição entre o direito po-sitivo e o direito natural, à medida “ que floresceu em princípios do século XIX e teve oseu focoprincipal na Alemanha e especialmente na obra de SAVIGNY. A Escola Histórica coincidiu

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Segundo Kant, esses valores referem-se à certeza do racionalis mo comofonte do conhecimento humano, acrescentando que o “ direito inato é aquele quepertence a todos por natureza, independente de qualquer ato que estabelecesseum direito”18, vinculando-se a uma noção de aquisição subjetiva de direitos,independentemente de qualquer positivação, representado na formulação meumvel tuum internum. Surge de modo mais incisivo em um período de transição do

Estado moderno para o Estado liberal, frente ao absolutismo massivo, predeces-sor das revoluções americana e francesa e ao iluminismo, fazendo, c onquantoconceito de moral racional de um povo, recepcionar-se pelo direito positivo –firmando-se, assim, em sólidas bases do jusnaturalismo racionalista.

Como assenta Contreiras de Carvalho,

primitivamente, havia um conceito de direito natural que se opunha ao de di-reito positivo, compreendendo o primeiro, “ um conjunto de princípios imutá-veis, absolutos e eternos, superiores à vontade do homem e decorrente daprópria natureza social deste ”, e o segundo, “ um complexo de normas con-tingentes, variáveis, estabelecidas pelo legislador ”. Esse conceito de direitonatural sofreu, todavia, variações no tempo, e mode rnamente ele representa asbases eternas e imutáveis sobre que deve assentar o direito positivo19.

E, consoante afirmado, também qualquer outra norma de conduta,mesmo as não positivadas, não escritas. Modernament e não há oposiçãoentre o direito natural e o direito positivo, mas, sim, harmonia e complemen-tação entre ambos, para a composição, formação, do sistema jurídico, o qualpassa a aceitar, dentro de sua noção de sistema de direitos objetivos e dedireitos subjetivos, o direito escrito e o direito não escrito, desde que esteseja característico e inerente à natureza humana, o u seja, amparado, consoan-te lições de Kant, em direitos da humanidade em nos sa própria pessoa, direi-tos dos seres humanos, finalidades da humanidade em nossa própria pessoa efinalidades dos seres humanos20.

Os direitos humanos e, com efeito, os direitos e garantias constitucio-nais fundamentais, são, deveras, hauridos à positivação por força do direito natu-ral, tendo neste axioma as balizas, orientações, as serem visada s e seguidas. Noentanto, nada obsta à conclusão de existência e ao reconhecimento, pelo intér-prete e aplicador do direito, mesmo em sede de direito disciplinar, de direitosfundamentais não escritos, mas pautado na noção social de direito natural.

Deste modo, não há como se conceber qualquer disciplina jurídica de-samparada de um plexo de valores racionais, proporcionais e razoáveis, ineren-

com o romantismo literário e o liberalismo político . Aparentada, como era, ao grande movi-mento romântico, opunha-se à ordem integrativa do C ódigo de Napoleão e das codificaçõesem geral, que se consideravam construções clássicas e rígidas, e optava por uma espécie dedinamismo haurido na espontânea vida cultural dos p ovos, produto genuíno da evolução histó-rica, de que a razão jurídica seria simples coletor a e ordenadora”.

18 KANT, Immanuel. Introdução ao estudo do direito... , cit., p. 53.19 CARVALHO, A. A. Contreiras de. Estatuto dos funcionários públicos interpretado . Rio de

Janeiro: Freitas Bastos, 1957. p. 53.20 KANT, Immanuel. Introdução ao estudo do direito... , cit.

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tes à própria natureza humana e em harmonia com os padrões sociocul turais dedeterminado corpo social.

1.7.2 Direito positivo

Resultado do processo evolutivo do Estado amparado no direito natural,na noção de razão como fonte do conhecimento, evoluída para o jusnaturalismoracionalista acima descrito, o direito positivo se consubstancia no direito legis-lado, cogente por força da atividade legislativa de um povo e em dete rminadaépoca histórica e de evolução social e, no entanto, materializado em normasescritas, decorrentes das experiências jurídicas, sob um enfoque pragmático.Consigna, assim, o resultado da ciência do direito, em forma de teoriajurídicaaplicada. Reflete, em parte, conquanto na medida do possível, os anseios oriun-dos do direito natural, ao passo que tenta plasmar em fórmulas legais , o que opovo, titular do poder no Estado Democrático de Direito, refletindo o plexodevalores humanos, elegeu como certo e justo em determinada sociedade.

É, assim, composto de normas jurídicas formais, em contraposição aoscostumes jurídicos, visto que (aquelas) são necessariamente escr itas e apresen-tam carga direta de determinação de conduta social, com o objetivo regulatóriodesse mesmo corpo social em suas interatividades, plasmadas nas diversas rela-ções jurídicas, materiais e instrumentais ou processuais.

1.7.3 Direito público

A divisão dicotômica do direito em público e privado remonta ao direitoromano21, onde Upiano já apontava, em seus escritos, os aspectos assim estabe-lecidos, asseverando que o direito público referia-se às questões do Es tado e oprivado, às questões dos particulares22.

Nesse arcabouço, atribuímos ao direito publicístico o seguimento do di-reito positivo que regula as relações jurídicas que envolvem o Esta do e suaspessoas políticas e jurídicas de direito público – ou de direito privado/partícula-res que prestam serviços públicos –, entre si ou com os particulares, de notando ointeresse predominantemente do Estado23, quando atuam na condição de gestorda coisa pública ou com finalidade pública. São ramos do direito público, porexemplo, o direito tributário, o direito previdenciário, o direito administrativo, odireito penal, o direito processual, o direito constitucional, o direito econômico e

21 Há autores, porém, que fazem menção não ao direitoromano, mas, sim, ao direito francês, onde

Jean Domat em seus estudos sobre a ciência da administração fez a primeira distinção entre asleis civis e as leis públicas, dando subsídios e fundamentos para a confecção, mais tarde, em1804, do Código Civil de Napoleão.

22 MONTORO, André Franco.Introdução à ciência do direito. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2009. p. 455.

23 MONTORO, André Franco.Introdução à ciência do direito. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2009.

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financeiro, dentre outros que envolvam relação entre o Estado e o par ticular ouentre pessoas jurídicas ou órgãos estatais24 e, como afirmado, exteriorizeminteresses predominantemente estatais, ao passo que tal ramo é posto para arealização da finalidade pública, do bem comum da colet ividade administrada,em contraposição às normas de direito privado, as quais são postas no interes-se predominante do particular, na justa medida para que alcancem interessesindividuais.

Essa é a tradicional distinção entre direito público e direito privado,considerando o direito público como o direito do Estado e o direito privado co-mo direito da sociedade (separação entre Estado e Sociedade), sem e mbargo deessa concepção estar-se paulatinamente transformando, para que a do utrina en-tenda não haver sensível distinção entre ambas, pois “ público, hoje, denota es-

paço público, no qual atua não exclusivamente o Estado ”25, mas, sim, todos osindivíduos componentes do corpo social.

1.7.4 Direito privado

Ramo do direito positivo que regula as relações ent re particulares,entre os particulares ou o Estado e uma coisa determinada ou indeterminada,ou, ainda, entre os particulares e o Estado ou entidades públicas, de direitopúblico ou privado, quando estes não estejam investidos no poder de impériodas pessoas políticas ou jurídicas que representam, perfazendo direitos edeveres subjetivos, dentro de uma relação de iguald ade, sem supremacia deum sujeito para com o outro, denotando, destarte, interesse predominante-mente particular e relegando para segundo plano, eventual interesse públicoexistente na relação jurídica.

1.7.5 Direito objetivo

Constitui-se no conjunto de normas abstratas e genéricas (sem se con-fundir com o direito subjetivo abstrato), formadoras do ordenamento jurídicopositivado pelo Estado, reguladoras das relações pú blicas e privadas interpessoais,gerais e abstratas.

24 Acerca da origem da divisão dicotômica do direito e m público e privado, Contreiras de Carvalho

ensina que das “ normas morais, ou éticas, destacaram-se, porém, asque iriam plasmar a ma-

téria jurídica propriamente dita. Umas passaram a interessar ao Estado como Poder Público,

enquanto outras diziam respeito, em particular, aos indivíduos, isto é, tutelavam os interes-

ses destes. Dessa diferenciação da natureza dos int eresses que disciplina decorreu a divisão

do Direito, pelos romanos, em jus publicum e jus privatum, segundo significasse, respecti-vamente, um conjunto de normas disciplinadoras das relações que afetavam o Estado, sua

constituição e administração, ou um complexo de pri ncípios que regulassem os direitos e

obrigações de ordem privada, concernentes às pessoa s (físicas e jurídicas particulares), às

coisas e ÀS suas relações ”. 25 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros,

2008. p. 69.

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