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LivRo pOvoS indiGenAs

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Livro Povos Indigenas

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  • Antonio Carlos de Souza LimaMaria Macedo Barroso[orgs.]

    Povos Indgenas e Universidade no Brasil:Contextos e perspectivas, 2004-2008

    Rio de Janeiro, 2013

  • Antonio Carlos de Souza Lima e Maria Macedo Barroso. Todos os direitos reservados aos autores. proibida a reproduo ou transmisso desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prvia autorizao dos editores. Impresso no Brasil. ISBN: 978-85-7650-388-0Projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de Indgenas2 etapa: 2009-2010 (http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br)CoordenaoAntonio Carlos de Souza Lima (DA/Museu Nacional/UFRJ)SubcoordenaoMaria Macedo Barroso (PPGSA/IFCS/UFRJ)Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (http://www.laced.etc.br)SEE/Departamento de Antropologia Museu Nacional/UFRJQuinta da Boa Vista, s/n. So Cristvo Rio de Janeiro BrasilCep: 20940-040 Tel: 5521 2562-6091Coordenao Editorial da SrieAntonio Carlos de Souza LimaAssistente de Coordenao EditorialLuis Felipe dos Santos CarvalhoProjeto grfi co e capa Andria Resende Reviso e preparao de textosMariza de Carvalho SoaresRevisoHel Castro

    O presente trabalho foi publicado com recursos da doao n. 1040-0422-2 da Fundao Ford para a realizao da segunda etapa do Projeto Trilhas de Conhecimentos. Resultou, ainda, de investimentos realizados com recursos: 1) da Finep obtidos na concorrncia do Edital de Cincias Sociais em 2006 para o projeto Diverso Polticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de Direitos: estudos antropolgicos das prticas, gneros textuais e organizaes de governo (Convnio Finep/FUJB n. 01.06.0740.00, REF: 2173/06), 2) da Faperj, por meio de Bolsas Cientistas do Nosso Estado concedidas a Antonio Carlos de Souza Lima para os perodos 2007-2009 (processo n. E-226/100.460/2007) e 2011-2013 (processo n. E-26/102.926/2011); 3) do CNPq, atravs de bolsas de produtividade em pesquisa (nvel IB), para o mesmo pesquisador, nos perodos 2009-2012 (processo n. 300904/2008-8), e 2012-2015 (processo n. 308048/2011-3).

    Disponvel para download gratuito em: http://www.laced.etc.br/livros venda em verso impressa no site da Editora E-papers: http://www.e-papers.com.br Rua Mariz e Barros, 72, sala 202 Praa da Bandeira Rio de Janeiro Brasil CEP 20.270-006

    CIP-Brasil. Catalogao na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

    P894Povos indgenas e universidade no Brasil : contextos e perspectivas, 2004-2008 / organizao Antonio Carlos de Souza Lima , Maria Macedo Barroso. 1. ed. Rio de Janeiro : E-papers, 2013.346 p. ; 23 cm. (Abrindo Trilhas ; 2)Inclui bibliografi a e ndiceISBN 97885765038801. ndios do Brasil. 2. ndios do Brasil Aspectos sociais. 3. Antropologia. I. Lima, Antonio Carlos de Souza. II. Barroso, Maria Macedo. III. Srie.13-05083 CDD: 980.41 CDU: 94(=87)(81)

  • Sumrio

    Nota editorial 13

    Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008:as bases e dilogos do Projeto Trilhas de Conhecimentos 15Antonio Carlos de Souza Lima

    A presena indgena na construo de uma educao superior universal, diferenciada e de qualidade 45Antonio Carlos de Souza LimaMaria Macedo Barroso

    Da formao de professores presena indgena nos cursos universais: o Trilhas e a superao da tutela pelo ensino superior 79Maria Macedo Barroso

    O ensino superior e os povos indgenas: a contribuio da Funaipara a constituio de polticas pblicas 109Maria Helena S. S. FialhoGustavo Hamilton MenezesAndr R. F. Ramos

    Educao superior indgena: de que estamos falando? 119Renata Grard Bondim

    Indgenas no Programa Internacional de Bolsas de Ps-Graduaoda Fundao Ford e os aportes do Trilhas de Conhecimentos 133Flvia RosembergLeandro Feitosa Andrade

  • O Programa de Diversidade na Universidade e as aes afi rmativas para o acesso de negros e indgenas ao ensino superior 163Nina Paiva Almeida

    A diversidade sociocultural nas polticas pblicas educacionais 195Susana Grillo Guimares

    Ensino superior e povos indgenas 207Kleber Gesteira Matos

    Negros e indgenas cotistas da Uems: desempenho acadmico do ingresso concluso do curso 241Maria Jos de Jesus Alves Cordeiro

    Aes afi rmativas para indgenas no Paran 273Marcos Moreira Paulino

    Questes ao Subsistema de Sade Indgena a partir das bolsaspara universitrios indgenas do Vigisus/Funasa 307Guilherme Martins de Macedo

    Bibliografi a 331

    Sobre os autores 347

  • Lista das abreviaturas

    AA Ao Afi rmativa (Afi rmative Action)

    ABRAPPS Associao Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justia Social

    AIS Agente Indgena de Sade

    Ana Associao Nacional de Ao Indigenista

    Andifes Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais

    Apib Articulao dos Povos Indgenas do Brasil

    Apoinme Articulao dos Povos Indgenas do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo

    Arpinsul Articulao dos Povos Indgenas do Sul

    Arpipan Articulao dos Povos Indgenas do Pantanal e Regio Centro-Oeste

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

    Cadai Comisso Assessora de Diversidade para Assuntos Indgenas

    Cadara Comisso Assessora de Diversidade para Assuntos Relacionados aos Afro-descendentes

    Cafi Centro Amaznico de Formao Indgena

    Capes Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    Cedi Centro Ecumnico de Documentao e Informao

    Ceei Comit de Educao Escolar Indgena

    Cesi Comisso Especial para Polticas de Educao Superior Indgena

    CGAEI Coordenao-Geral de Apoio s Escolas Indgenas (depois CGEEI)

    CGDIE Coordenao-Geral de Diversidade e Incluso Educacional

    CGE Coordenao Geral de Educao

    CGEEI Coordenao-Geral de Educao Escolar Indgena (antes CGAEI)

    CGTT Conselho Geral da Tribo Ticuna

    Cimi Conselho Indigenista Missionrio

    Cinep Centro Indgena de Estudos e Pesquisas

    CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

  • CNE Conselho Nacional de Educao

    CNEEI Comisso Nacional de Educao Escolar Indgena (antes CNPI)

    CNPI Comisso Nacional de Poltica Indigenista

    CNPI Comisso Nacional de Professores Indgenas (depois CNEEI)

    CNPI Conselho Nacional de Proteo ao ndio.

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfi co e Tecnolgico

    Coiab Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira

    Comin Conselho de Misses entre ndios

    Consed Conselho Nacional dos Secretrios de Educao

    Copiam Comisso dos Professores Indgenas da Amaznia

    Copiar Comisso dos Professores Indgenas do Amazonas e Roraima

    CPI/AC Comisso Pr-ndio do Acre

    CPI/RJ Comisso Pr-ndio do Rio de Janeiro

    CPI/SP Comisso Pr-ndio de So Paulo

    Crub Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras

    CTI Centro de Trabalho Indigenista

    Cuia Comisso Universidade para os ndios

    DEM Diretoria de Ensino Mdio

    Depes Departamento de Poltica da Educao Superior

    DOU Dirio Ofi cial da Unio

    DSEIS Distritos Sanitrios Especiais Indgenas

    ECO-92 Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento 1992

    Enem Exame Nacional do Ensino Mdio

    FF Fundao Ford (Ford Foundation)

    Fiocruz Fundao Oswaldo Cruz

    FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao

    Foirn Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro

    Forgrad Frum de Pr-Reitores de Graduao

    Funai Fundao Nacional do ndio

    Funasa Fundao Nacional de Sade

  • Fundeb Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profi ssionais de Educao

    GIZ Deutsche Gesellschaft fr Internationale Zusammenarbeit (Agncia de Cooperao Tcnica Alem)

    GT Grupo de Trabalho

    IAA Instituies de Acompanhamento e Avaliao

    Iam Instituto de Antropologia e Meio Ambiente

    Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica

    IES Instituio de Ensino Superior

    Iesalc Instituto Internacional para a Educao Superior na Amrica Latina e no Caribe

    Ifes Instituies Federais de Ensino Superior

    IFF International Fellowships Fund

    IFP International Fellowships Program

    IHS Indian Health Service

    Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    Inpa Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

    IO Instituio Operadora

    Iphan Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    ISA Instituto Socioambiental

    Laced Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    LPP Laboratrio de Polticas Pblicas

    MCT Ministrio da Cincia e Tecnologia

    MEC Ministrio da Educao

    Meiam Movimento de Estudantes Indgenas do Amazonas

    MJ Ministrio da Justia

    MMA Ministrio do Meio Ambiente

    MN Museu Nacional

    MPF Ministrio Pblico Federal

  • MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

    OGPTB Organizao Geral de Professores Tikuna Bilngues

    OI Organizao Indgena

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    ONG Organizao no governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    Opan Operao Anchieta (hoje Operao Amaznica Nativa)

    Opir Organizao dos Professores Indgenas de Roraima

    PAC Programa de Acelerao do Crescimento

    PDPI Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PDU Programa de Diversidade na Universidade

    PFL Partido da Frente Liberal

    PHE Pathways to Higher Education

    PHEI Pathways to Higher Education Initiative

    Pobid Programa Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia

    PIC-PI Projetos Inovadores de Cursos Professores Indgenas

    PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio

    PNASPI Poltica Nacional de Ateno Sade dos Povos Indgenas

    PNE Plano Nacional de Educao

    PNGATI Poltica Nacional de Gesto Territorial e Ambiental de Terras Indgenas

    PNPG Plano Nacional da Ps-graduao

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PPCOR Programa Polticas da Cor

    PPGAS/MN

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional

    Prolind Programa de Apoio Educao Superior e Licenciaturas Indgenas

    Promed Programa de Melhoria e Expanso do Ensino Mdio

    Prouni Programa Universidade para Todos

    PT Partido dos Trabalhadores

  • PTC Projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indgenas no Brasil

    Reuni Programa de Apoio ao Plano de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais

    SEB Secretaria de Educao Bsica

    Secad Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade

    Secadi Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade e Incluso

    Secrie Secretaria do Programa Bolsa-Escola em Secretaria de Incluso Educacional

    Seduc Secretaria Estadual de Educao

    Seea Secretaria Extraordinria Nacional de Erradicao do Analfabetismo

    Seif Secretaria de Ensino Fundamental

    Semtec Secretaria de Ensino Mdio e Tecnolgico

    Seppir Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial

    Sesu Secretaria de Educao Superior

    Setec Secretaria de Educao Profi ssional e Tecnolgica

    Seti Secretaria de Tecnologia

    SIE Secretaria de Incluso Educacional

    SIL Sociedade Internacional de Lingustica (antigo Summer Institute of Linguistics)

    SPI Servio de Proteo aos ndios

    SSI Subsistema de Sade Indgena

    STF Supremo Tribunal Federal

    SUS Sistema nico de Sade

    TI Terra Indgena

    TIRSS Terra Indgena Raposa Serra do Sol

    UCDB Universidade Catlica Dom Bosco

    UEA Universidade do Estado do Amazonas

    UEL Universidade Estadual de Londrina

    UEM Universidade Estadual de Maring

    Uems Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul

  • UEP Unidade Executora do Projeto

    UEPG Universidade Estadual de Ponta Grossa

    Uerj Universidade Estadual do Rio de Janeiro

    UF Universidade da Floresta

    Ufac Universidade Federal do Acre

    Ufam Universidade Federal do Amazonas

    Ufba Universidade Federal da Bahia

    UFF Universidade Federal Fluminense

    UFG Universidade Federal de Gois

    UFGD Universidade Federal da Grande Dourados

    UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

    UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

    Ufpa Universidade Federal do Par

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UFRR Universidade Federal de Roraima

    UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    UnB Universidade de Braslia

    Uneb Universidade Estadual da Bahia

    Unemat Universidade Estadual de Mato Grosso

    Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    Unespar Universidade Estadual do Paran

    UNI Unio das Naes Indgenas

    Uniafro Programa de Aes Afi rmativas para a Populao Negra nas Instituies Pblicas de Educao Superior

    Unicamp Universidade de Campinas

    Unicentro Universidade Estadual do Centro-Oeste

    Unifap Universidade Federal do Amap

    Unigram Centro Universitrio de Grande Dourados

    Unioeste Universidade Estadual do Oeste do Paran

    Unitins Universidade Estadual do Tocantins

    USP Universidade de So Paulo

    Vigisus Projeto de Modernizao da Vigilncia e Controle de Doenas

  • Nota editorial 13

    Nota editorial

    Os textos que integram esta coletnea foram elaborados ao longo de 2008 e devem ser lidos com as marcas daquele momento. O coorde-nador editorial desta publicao assume a responsabilidade da de-mora para a publicao do livro.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 15

    Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008: as bases e dilogos do Projeto Trilhas de Conhecimentos

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Este livro trata do contexto prvio e simultneo implementao de uma experincia de fomento e de produo de subsdios presena indgena em universidades, intitulada Projeto Trilhas de Conheci-mentos: o ensino superior de indgenas no Brasil (PTC). O projeto foi concebido como ao temporria de uma equipe de pesquisadores sediados em uma Instituio de ensino superior (IES) para o fomento de experincias-piloto de suporte ao acesso e permanncia de indge-nas em universidades. Sua realizao deu-se nos quadros de recursos e normas da Pathways to Higher Education Initiative (PHEI) da Ford Foundation, com fi nanciamento da Fundao Ford, no Brasil. China Filipinas1

    O projeto foi desenvolvido entre os anos de 2004 e 2010. Aps as duas doaes oriundas dos fundos da PHEI e da deciso de no mais fi nanciar recursos, embora formalmente encerrado em 2010 ainda hoje a PHEI apresenta desdobramentos. Sob a coordenao de Antonio Carlos de Souza Lima e Maria Macedo Barroso,2 o PTC foi desenvolvido no mbito do Laboratrio de Pesquisas em Etnici-dade, Cultura e Desenvolvimento (Laced). O Laced um laboratrio universitrio de pesquisas e intervenes com coordenao conjunta de Joo Pacheco de Oliveira e Antonio Carlos de Souza Lima. Est

    1 Para o site da Fundao Ford, ver: http://www.fordfoundation.org/. A PHEI est disponvel em: http://www.fordfoundation.org/pdfs/library/pathways_to_higher_education.pdf.

    2 Para Souza Lima ver: http://lattes.cnpq.br/0201883600417969; para Macedo Barroso (ex-Barroso Hoffmann) ver: http://lattes.cnpq.br/0346342034718575. Acesso em: 6 abr. 2013.

  • 16 Povos indgenas e universidades no Brasil

    vinculado ao Setor de Etnologia e Etnografi a/Departamento de An-tropologia/Museu Nacional (UFRJ).3

    Nosso objetivo nesta publicao refl etir sobre os desafi os im-plcitos nos debates acerca da formao de indgenas no ensino su-perior no Brasil contemporneo. Considera-se aqui o esforo dos movimentos indgenas de se qualifi carem para efetivamente pensar a questo da redefi nio da relao dos indgenas com o Estado no Brasil. Trata-se, portanto, de mostrar como, no momento atual da(s) histria(s) indgena(s) a reconfi gurao imaginria do Brasil como pas pluritnico impe a necessidade de dominar conhecimentos e formas de transmisso de saber sem abandonar ou escolarizar va-lores, tradies culturais e histrias diferenciadas prprias a cada segmento da populao indgena.

    Breves informaes sobre os povos indgenas no Brasil contemporneo

    Mais de duas dcadas depois da promulgao da Constituio de 1988 que declarou o Brasil como uma nao pluritnica possvel di-zer que o cidado comum, o brasileiro mdio, a opinio pbli-ca (ou qualquer outro constructo de existncia imaginria) tem par-cas informaes sobre os povos indgenas do pas. Esta constatao refl ete a formao obtida no ensino fundamental e mdio, e muitas vezes (quando se chega a tanto), tambm no nvel universitrio e na ps-graduao. O sistema de ensino brasileiro, como instituio, in-capaz de se contrapor avalanche de preconceitos do senso comum; tambm desinteressado e desatualizado sobre o que se passou e se passa na histria indgena. Leis parte, nos contedos curriculares continuam a prevalecer verdadeiros guetos de conhecimento.4

    3 Informaes disponveis em: http://www.laced.etc.br/site Acesso em: 6 abr. 2013.4 Em 2011 a Fundao Perseu Abramo realizou uma extensa pesquisa de opinio

    intitulada: Indgenas no Brasil: demandas dos povos e percepes da opinio pblica, coordenada pelo Professor Gustavo Venturi, da Universidade de So Paulo (USP). A pesquisa mostra o baixo conhecimento sobre a realidade dos povos indgenas, seus problemas e confl itos, direitos e ameaas s suas terras. Mostra tambm as percepes dos ndios que vivem nas cidades em relao a temas como intolerncia, preconceito e discriminao. Ver: http://bit.ly/14q5Mhs Acesso em: 6 abr. 2013. Os resultados da pesquisa esto publicados em Ventura e Bokany, 2013.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 17

    Fato que muito pouco se sabe (ou se quer saber) sobre os 817.963 indivduos autodeclarados indgenas no Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica (IBGE). Eles represen-tam cerca de 0,4% da populao brasileira, esto distribudos em todos os estados da federao, divididos em cerca de 274 povos, fa-lando 180 lnguas distintas.5 Para fazer frente a este descaso, as lide-ranas indgenas envolvidas no processo reagem a tais imagens com indignao e com a certeza de que precisam estar preparadas para se fazer presentes na esfera pblica brasileira. Como dizem, precisam substituir arcos, fl echas, bordunas, enxadas e machados por canetas, computadores e diplomas.

    As aes polticas dos povos indgenas viabilizaram mudanas signifi cativas incorporadas Constituio de 1988 e ratifi cao da Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e tm sido marcos contra desmandos dos poderes pblicos.6 Em fun-o de muita luta, desde os anos 1970 at hoje, os indgenas tiveram suas demandas materializadas em 688 terras indgenas dispersas por quase todos os estados da federao, numa rea total de 112.960.604 hectares.7 Segundo estimativas do Instituto Socioambiental (ISA), 417 delas encontram-se na Amaznia Legal, correspondendo a um total de 111.192.360 hectares (21,73% do territrio brasileiro). a que se concentra o maior nmero de organizaes indgenas, nas quais, sobretudo aps 1988, os ndios buscam se articular para a luta poltica e para o monitoramento das aes de Estado a eles direcionadas. As terras indgenas perfazem em torno de 13,1% de todas as terras brasileiras; e esto entre as mais ricas e cobiadas em recursos naturais (biodiversidade e recursos minerais).

    Os lderes indgenas sabem dessas conquistas, mas sabem tam-bm o quanto esses grandes avanos podem ser precrios e revers-veis. As lideranas tambm sabem que o conhecimento pblico da questo indgena superfi cial. Mesmo nos grandes centros onde a

    5 No tocante populao indgena os dados do Censo de 2010 esto disponveis em http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf. Acesso em: 6 abr. 2013.

    6 A Conveno 169/OIT foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 143 de 20.06.2002. Disponvel em: http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfi le.php?fi leId=131 Acesso em: 19 nov. 2007.

    7 Para dados do ISA ver: http://bit.ly/18fFZKa Acesso em: 6 abr. 2013.

  • 18 Povos indgenas e universidades no Brasil

    opinio pblica lhes favorvel, a ignorncia justifi ca toda sorte de violncias. Se esse o cenrio atual, no custa lembrar que nos ltimos 40 anos diversas foram as mudanas nas relaes entre o Estado Nacional e os povos indgenas. A partir dos anos 1990, de uma poltica desenvolvimentista marcada por um assimilacionismo desenfreado chegamos at a demarcao de extensas partes do ter-ritrio brasileiro, sob a fi gura jurdica de terras indgenas. At 1988 os ndios eram legalmente tutelados pelo Estado, equiparados em termos de Direito Civil, aos brasileiros no indgenas menores de 18 e maiores de 16 anos. Eram considerados apenas parcialmente responsveis por seus atos e necessitados, para efeitos da estrutura jurdico-administrativa brasileira, da mediao e da conduo de um tutor. Por efeito da nova Constituio passaram a ser reconhecidos como civilmente capazes de se representar juridicamente por meio de suas organizaes. Outra conquista importante foi terem tido o estatuto de povos reconhecido por fora da ratifi cao pelo governo brasileiro da Conveno 169/OIT, deciso ratifi cada pelo Congresso Nacional, em junho de 2002.

    Desde ento, os grupos indgenas so coletividades reconhecidas como povos que contam com demandas por sustentabilidade e de-senvolvimento diferenciado. Tais demandas so identifi cadas e aten-didas atravs de aes combinadas e parcerias, atravs de projetos. Todas as partes envolvidas nesta parceria, e especialmente as orga-nizaes indgenas esto legalmente aptas a discutir e decidir sobre qualquer deciso que as afete. Dentre os principais parceiros esto diversas organizaes de interveno indigenista. Destacamos entre elas as organizaes no governamentais (ONGs) indigenistas, hoje altamente profi ssionalizadas, que exercem funes de governo; e as agncias de cooperao tcnica governamentais e no governamen-tais (bi ou multilaterais), dentre as quais redes ambientalistas con-servacionistas. Nos movimentos indgenas e em suas organizaes evidencia-se a incorporao do lxico (neo)desenvolvimentista como modo de expressar necessidades amplas e interesses multifacetados num cenrio de tentativas de mudana social induzida (externas) e de transformaes aceleradas (internas), com grandes decalagens en-tre as geraes indgenas.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 19

    No plano governamental, comparando os anos 1990 e incio dos anos 2000, em aparncia to promissores de mudanas e novas perspectivas, primeira vista as ltimas dcadas parecem desani-madoras. Entretanto, hoje possvel constatar que aqueles tempos deixaram pouco ou nada institucionalizado. A entrada do governo Lula trouxe inmeras expectativas, expressas na macia adeso elei-toral dos indgenas a Lus Incio Lula da Silva. Mas j no primeiro ano do governo as frustraes eram grandes. O primeiro governo Lula (2003-2006) estabeleceu pouca ou nenhuma interlocuo efe-tiva com os povos indgenas e suas organizaes no tocante a te-mas como terra, sade e educao, dentre outros. Um dos principais temas da pauta do movimento indgena foi longamente evitado: a criao de um conselho propositor e deliberativo para as polticas indigenistas, paritrio entre Estado e organizaes indgenas, com participao da sociedade civil organizada e do Ministrio Pblico Federal (MPF).

    A ideia de um conselho dessa natureza, sedimentada durante a reunio do Frum Social Mundial de 2003, foi apresentada aos di-versos setores de governo ( prpria Funai, ao Ministrio da Justia, Casa Civil etc.) e insistentemente apresentada por uma ampla articu-lao de atores indgenas e pr-indgenas, que resultaria na organiza-o do Frum em Defesa dos Direitos Indgenas, barrada por setores especfi cos em momentos de tramitao bastante avanada. Como um suposto teste criao do conselho, em 22 de maro de 2006, foi criada a Comisso Nacional de Poltica Indigenista (CNPI).

    A disperso das polticas indigenistas, saudvel pela quebra da tutela, gerou grande estilhaamento de aes, por total falta de co-ordenao, quando no por concorrncia entre elas. A escolha do antroplogo Mrcio Gomes, que ocupou a presidncia da Funai de setembro de 2003 a maro de 2007 (em seguida demisso de Eduardo Almeida, primeiro presidente da Funai no governo Lula, que presidiu o rgo de fevereiro a agosto de 2003) representou a vitria das alianas interpartidrias contra os compromissos assu-midos pelo PT e por Lula com o movimento indgena ao longo da campanha. Isso acarretou na total quebra de dilogo e no retorno de perspectivas pr-tutelares, com direito inclusive a efusivas comemo-

  • 20 Povos indgenas e universidades no Brasil

    raes pelos 30 anos do caduco e inconstitucional Estatuto do ndio (Lei 6.001/1973).

    Do mesmo modo que o compromisso de homologao da demar-cao da Terra Indgena-TI Raposa Serra do Sol s se efetivaria em 2005, a demanda pelo conselho s se viu satisfeita em abril de 2008. Sua criao foi noticiada em meio s manifestaes do Abril Indge-na, ms de intensa mobilizao anual dos povos indgenas em torno da data de celebrao do Dia do ndio, em 19 de abril. O acima referido conselho, com carter deliberativo, at o momento no foi implementado. Em seu lugar continua a existir a Comisso Nacional de Poltica Indigenista, carente de representatividade, efi ccia e em larga medida hegemonizada pela Funai.

    A mobilizao indgena durante o governo Lula fi nalmente re-dundou na substituio de Mrcio Gomes pelo antroplogo Marcio Meira que, junto com Gilney Vianna, fi zera o relatrio sobre poltica indigenista para a equipe de transio ao governo Lula. Gilney Vian-na recebeu, em primeira mo, muitas reivindicaes ainda hoje vli-das. Meira procurou, num primeiro momento, retomar a busca pela resoluo dos problemas fundirios indgenas, sobretudo os situa-dos fora da Amaznia, bem como esboar uma articulao com os rgos de outros ministrios encarregados de polticas indigenistas. Pouco a pouco sua administrao cedeu ao flego desenvolvimentis-ta governamental em que o crescimento econmico o imperativo principal, sem estar alicerado necessariamente em parmetros sus-tentveis ou em horizontes em que a propalada dimenso pluritnica do Estado-Nao brasileiro, ps-1988, esteja de fato reconhecido. Nesse perfi l ideolgico j bastante conhecido, a Funai passou a deter funes importantes, muitas vezes atropeladas por instncias supe-riores, como as de responsabilizar-se pelo componente indgena do licenciamento ambiental sob o controle ltimo do Instituto Brasilei-ro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama).

    As metas e projetos que organizam esse raid desenvolvimentista de cunho neonacionalista em sua retrica esto enfeixados em torno do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). A resistncia in-dgena tem sido grande, e aqui a chance de uma retomada de rumos mais polticos que tcnicos singularmente tem-se por vezes esbo-ado, para logo depois desaparecer. O caso emblemtico do momen-

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 21

    to e que tem suscitado inmeros posicionamentos, sem dvida o do licenciamento da hidreltrica de Belo Monte. A registrar, no rol das ambiguidades, deve-se ressaltar que esse mesmo desenvolvimen-tismo est voltado para outras relaes com o empresariado e com as classes populares. O empresariado cresce em controle de partes do territrio brasileiro pela enorme autonomia obtida em espaos de mega-empreendimentos; ao mesmo tempo, por meio de polticas de redistribuio de renda, as classes populares vm recebendo recursos em ltima instncia vinculados ao crescimento econmico propicia-do pelo presente modelo. Assim, tais polticas de redistribuio, diri-gidas sobretudo s populaes das grandes cidades mas que tambm atuam entre os povos indgenas, baseiam-se tambm na extrao de minrios e petrleo, nos proventos do agronegcio que avassalam as terras dos ndios. Comparado ao cenrio dos anos 1970, se h simi-litudes, as diferenas so enormes.

    Diante desse amplo quadro delineado ao longo dos dois governos Lula e ainda est em plena vigncia no de Dilma Rousseff, Meira e seus aliados buscaram redefi nir o papel da Funai. Foi uma estratgia consoante diretriz mais geral dos governos de Lula de fortaleci-mento de reas especfi cas da administrao pblica, suportada pela estabilizao fi nanceira que colocou, com grande alarde da impren-sa, o Brasil dentre as potncias econmicas emergentes. No toa sua administrao sofreu ataques na imprensa, como se dcadas de desmandos e de funcionamento tutelar pudessem ser rapidamente revertidas; como se um concerto entre diferentes polticas pudesse emergir sem instrumentos de intermediao. Sua substituio por Marta Azevedo no parece ter alterado o quadro de fortes presses sobre a agncia indigenista para liberao de processos de licencia-mento ambiental visando a abertura de grandes empreendimentos em terras indgenas.

    Muito haveria a recuperar e sistematizar sobre a histria recente das relaes entre os povos indgenas e o Estado nacional brasileiro. O regime de preconceitos que se manifesta contra esses povos de di-versas formas foi capturado claramente pela j mencionada pesquisa Indgenas no Brasil: demanda dos povos e percepes da opinio pblica que mostra que grande a ignorncia do brasileiro mdio, seja das grandes cidades, seja do interior, acerca dos modos de vida

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    indgenas (Indgenas no Brasil, 2013) Nesse regime o lugar de ndio na fl oresta, as mesmas fl orestas que so devastadas para gerar o conforto das grandes metrpoles.

    De novidade a se destacar, nesses anos registre-se o associati-vismo indgena que no se iniciou com a Constituio de 1988 mas teve, desde ento, um estmulo considervel. Desde os anos 1970-1980, o movimento indgena e suas inmeras formas de expresso institucional sobretudo no modelo no-autctone das j mencio-nadas organizaes indgenas (OIs) tem feito a diferena. As OIs tm amplitudes de ao muito distintas. Podem representar aldeias, povos, ou mesmo segmentos de mbito regional ou nacional. Entre elas esto grandes redes de organizaes, como a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira-Coiab ou a Arti-culao dos Povos Indgenas do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo-Apoinme, a Articulao dos Povos Indgenas do Sul-Arpinsul, Articulao dos Povos Indgenas do Pantanal e Regio Centro-Oes-te-Arpipan, ou a tentativa de reuni-las na Articulao dos Povos In-dgenas do Brasil-Apib. Essas novas organizaes se baseiam em pa-dres distintos de tentativas anteriores como a da criao da Unio das Naes Indgenas (UNI) (1980) que, na prtica, se desarticulou no imediato ps-Constituinte.8

    As funes das organizaes indgenas que eram inicialmente voltadas para a defesa de direitos e para a ao poltica foram se tecnifi cando ao longo dos anos 1990, sendo direcionadas opera-o de projetos e planos no explicitados de transformao mais abrangente. O protagonismo indgena a moeda corrente. Trata-se de expresso cara aos movimentos e que marca a busca por auto-nomia nos processos sociais em que os indgenas e seus parceiros

    8 O livro O ndio brasileiro, de autoria de Gersem Baniwa, analisa o tema a partir do movimento indgena. O autor, da etnia baniwa, mestre e doutor em Antro-pologia pela UnB e tem larga experincia de atuao em diversas instncias par-ticipativas e postos burocrticos na administrao pblica brasileira, sendo con-siderado um importante ator e pensador da participao indgena nas aes do Estado nas ltimas dcadas. Foi gerente-tcnico do Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas-PDPI do Ministrio do Meio Ambiente-MMA, e coordenador geral de Educao Escolar Indgena da ento Secretaria de Educao Continua-da, Alfabetizao e Diversidade-Secad, do Ministrio da Educao, tendo sido o principal articulador da I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena. Foi membro do Comit Assessor do PTC ao longo dos seis anos do projeto.

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    esto envolvidos. Mas como efeito colateral, presenciamos a singular despolitizao da ao de representantes indgenas e, to ao gosto do mundo do desenvolvimento, sua tecnifi cao.9

    Os ganhos e perdas desses processos ainda esto por ser sopesa-dos adequadamente. Eles no s aportaram muitos novos conheci-mentos, mas tambm implicaram na assuno de responsabilidades para as quais essas organizaes de distintos matizes e naturezas, mbitos e especializaes, no estavam preparadas. No novo con-texto elas carecem de subsdios adequados para aquisio de capaci-dades variadas necessrias aos novos papis e ao intenso trabalho de participao poltica. Os movimentos indgenas tm sido crticos da descontinuidade imposta pelo formato projeto que determina uma espcie de contrato entre um dado fi nanciador e uma organizao, onde so previstos conjuntos de aes a serem executadas com certas fi nalidades com valores e tempos precisos de execuo, sendo o pro-cesso de formalizao de um projeto extremamente criativo na sua interlocuo, mas tambm uma negociao penosa entre as partes envolvidas e mesmo entre faces e geraes de um ou mais povos benefi cirios.

    O mais importante, porm, o que o texto constitucional tem signifi cado para a formulao de outra ideia de Estado, como supor-te para a imaginao social, onde o reconhecimento dos direitos dos indgenas joga um papel de destaque. A Constituio de 1988, junto com a Conveno 169/OIT, criou um horizonte de construo de novas prticas administrativas, e consequentemente, de construo de espaos polticos abertos necessria participao das organiza-es indgenas. Esses elementos foram essenciais quebra da viso unitarista que defendia a necessidade da tutela, supondo-a como es-sencialmente protetora.10

    Um convvio mais estreito com os movimentos indgenas mostra que no bojo do surgimento e da formao de um intenso ativismo, constitui-se uma intelectualidade de militantes indgenas que tm o potencial (pois tenta faz-lo em mltiplas escalas) de transformar as

    9 Sobre os efeitos despolitizantes das intervenes desenvolvimentistas, ver, entre outros, Ferguson (1994). Dentre os muitos ttulos sobre desenvolvimento, ver Es-cobar (1995) e Rist (1999).

    10 Sobre a tutela como forma de exerccio de poder, ver Souza Lima (1995).

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    relaes entre o Estado e as suas coletividades. Tal intelectualidade militante tem buscado pensar e propor relaes com os mundos dos brancos e vem se formando no bojo da luta poltica tanto quanto de universidades e faculdades no indgenas, produzindo snteses e interpretaes que buscam espelhar as orientaes vindas de suas coletividades de origem. Com todas as limitaes e contradies, tais snteses apresentam uma fi na percepo do que so esses mundos dos brancos e do que o Estado nacional. No limite, esses intelec-tuais militantes podem ser capazes de reconhecer aspectos positivos e negativos tanto nas coletividades indgenas quanto nos espaos no indgenas, estabelecendo bases mais slidas para a luta poltica e alianas nas quais os indgenas demonstram estar dotados de bases slidas para a conquista da real autonomia.

    O ensino superior de indgenas: elementos para pensar

    Contra esse pano de fundo muito impressionisticamente delineado, alguns trabalhos tm surgido como tentativas de construir novos ca-nais de formao e informao que permitam aos indgenas atuar na esfera pblica, prescindindo de mediadores no indgenas. A busca de qualifi cao que apresentada como parte do interesse indgena pela formao no ensino superior tambm um esforo para entender e dominar a avassaladora entrada das polticas pblicas nas aldeias indgenas, seja na esfera poltica, seja em outras esferas sociais mais recnditas como o parentesco e as relaes intergeracionais. Nes-te novo regime de poder a participao dos indgenas nas agncias de Estado um imperativo que coloca desafi os variados. Contando ou no com a efetiva presena indgena nas etapas de formulao e implementao das aes governamentais, na prtica, a luta por au-tonomia se entretece com as formas tutelares e coloca a necessidade de se conhecer o carter multifacetado das polticas governamentais incidentes sobre os povos indgenas. Tal constatao faz com que se torne imperativo proceder a estudos nos quais analisar o Estado no tocante s polticas indigenistas implique em analisar os povos ind-genas nelas entramados.

    Essa intelectualidade indgena militante em surgimento e conso-lidao vem formulando concepes que partem de seu aprendizado distributivamente variado em suas tradies culturais e do que

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    tais tradies propiciam como chaves de leituras das intervenes de Estado em seus modos de vida, nos contextos locais e regionais es-pecfi cos de seus povos no presente. Muito dessa refl exo vem sendo cunhada na militncia e hoje em espaos acadmicos de graduao e ps-graduao, cujo crescimento foi exponencial nos anos que os textos deste livro abordam. Mas se tal o ponto de partida, parece--me que estes intelectuais indgenas buscam adquirir a capacidade de extrapolar seus contextos e formular interpretaes sobre as relaes entre povos indgenas e Estado em dilogo com outros contextos locais e regionais, nacionais e internacionais. Em suma, esto em jogo modos indgenas de entender e conceber formas e processos es-tatais. Foi tendo em mente essas realidades esboadas e reivindicadas em 2002 que elaboramos, para uma concorrncia interna prpria Fundao Ford, as linhas gerais do projeto em torno do qual o Laced enfeixou suas aes no tocante educao superior de indgenas no Brasil, cujos cenrios mais amplos os textos aqui presente delineiam.

    A Fundao Ford, fi nanciadora do Trilhas de Conhecimentos uma fundao fi lantrpica no sentido da palavra no contexto anglo--saxo. Fica sediada nos Estados Unidos da Amrica que atua em diversos pases em padres de governana muito prximos aos de outros mecanismos internacionais de fi nanciamento. Estabelecida em 1936 por Edsel Ford, fi lho e sucessor de Henry Ford, criador da Ford Motor Company, seu objetivo hoje fi nanciar programas de promoo da democracia, de reduo da pobreza e gerao de com-preenso internacional.11 Com ampla atuao nos pases da Amrica Latina, a Fundao Ford doou importantes quantias para projetos e estabelecimento de instituies e formao especializada de quadros de diversos nveis. Ainda hoje apresenta uma importncia notvel em muitos pases e em muitas questes, como se evidencia na visi-

    11 Para breves informaes sobre a Fundao Ford, ver: http://www.fordfounda-tion.org/about-us/history Acesso em: 6 abr. 2013. Para um balano muito bem documentado sobre os 40 anos de ao da Fundao Ford no Brasil, promovido por ela mesma, Ver Brooke & Witoshynsky (2002). Disponvel em: http://bit.ly/15bxoUK Acesso em: 6 abr. 2013. Ainda que mais interessadas na dimenso de renncia fi scal, muito recentemente famlias brasileiras de elite (ou instituies brasileiras que surgiram a partir de empreendimentos industriais ou fi nanceiros por elas controlados) comearam a desenvolver atividades de natureza similar. De modo geral, se voltam para o campo da cultura e esto pouco comprometidas com a transformao social. Acesso em: 6 abr. 2013.

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    bilidade com que tem contado o Programa Internacional de Bolsas (International Fellowships Program), executado no Brasil pela Fun-dao Carlos Chagas, ou na discusso sobre cotas para negros nas universidades.12

    certo que podemos encontrar muitos problemas na fi lantropia internacional e na norte-americana em especial. Mas, concretamen-te, no Brasil, diversas iniciativas s se tornaram realidade porque essas fundaes disponibilizaram recursos e deram condies para que segmentos de nossas as elites intelectuais atuassem em esferas que as elites poltico-fi nanceiras no tinham qualquer interesse em intervir.13 Nas Cincias Sociais, a FF foi e em certos casos ainda essencial na estruturao de inmeros centros de investigao e linhas de pesquisa. Alguns dos primeiros cursos de ps-graduao do Brasil foram fi nanciados com recursos da Fundao Ford.

    No Laced, o PTC teve como antecedentes uma srie de investi-mentos realizados desde o fi nal dos anos 1990, tanto em pesquisa pura quanto aplicada, que redundaram em publicaes, seminrios e na elaborao de modelos de curso de ps-graduao que hoje se dis-seminam atravs de seus participantes, muitos dos quais fi nanciados pela Fundao Ford (FF).14 Foram exatamente estes investimentos que em 2002 levaram a Fundao Ford a aprovar um projeto volta-do para a formao de lideranas indgenas e de populaes tradi-

    12 Visando infl uir na mudana de perfi l da liderana mundial, entre 2001 e 2010, o International Fellowship Program (IFP) foi responsvel pela doao de bolsas de estudo a nvel de ps-graduao para segmentos sub-representados (afro-descendentes, mulheres, povos indgenas etc.) em 22 pases. Ver: http://www.for-dfoundation.org/about-us/special-initiatives/ifp. Para projeto no Brasil ver: http://www.programabolsa.org.br/ifp_programa.html Acesso em: 6 abr. 2013. Ver tam-bm o captulo de Flvia Rosemberg e Leandro Feitosa Andrade, nesta coletnea.

    13 Isto foi especialmente verdade no campo da educao em geral e da educao superior no Brasil. Um exemplo foi a criao de cursos de enfermagem, implan-tados no Brasil no incio do sculo XX, com recursos da Fundao Rockefeller (CASTRO-SANTOS, 1987).

    14 Dentre outras publicaes ver, Souza Lima e Barroso Hoffmann (2002a, 2002b, 2002c). Disponveis on-line em: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/; os semin-rios Bases para uma nova poltica indigenista I e II, esto disponveis em http://laced.etc.br/site/atividades/seminarios/; e os cursos de ps-graduao realizados em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (http://laced.etc.br/site/ati-vidades/cursos/curso-gestao-em-etno/) e com a Universidade Federal de Roraima (http://laced.etc.br/site/atividades/cursos/curso-gestao-em-etnodes/). Acesso em: 6 abr. 2013.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 27

    cionais, uma forma bastante especfi ca de ao afi rmativa-AA. Por meio das lideranas indgenas com as quais interagia, o Laced tinha como objetivo garantir a essas lideranas o poder de atuar sobre elas mesmas e na sua relao com o Estado e outras instituies. O obje-tivo era, portanto, empoderar (usamos aqui um aportuguesamento derivado da palavra inglesa empowerment) essas comunidades, ofe-recendo as estruturas universitrias como espaos de formao que poderiam ser tornados receptivos a esse formato.

    O primeiro movimento nessa direo foi um concept paper apre-sentado pela equipe do Laced em 2002, por solicitao do ento as-sessor do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FF no Rio de Janeiro, o economista norte-americano Jos Gabriel Lopez. Este concept paper, reelaborado por Lopez e ainda sem qualquer vinculao com o Laced, foi aprovado como pr-proposta pelo escri-trio da FF do Brasil. Atravs dele foram reservados US$1.200.000 (um milho e duzentos mil dlares) para o trabalho com indgenas e outras populaes tradicionais no Brasil.15 Em junho de 2003 o projeto Trilhas de Conhecimentos estava pronto para ser submetido avaliao fi nal na sede da Ford Foundation, em Nova Iorque.16

    Assim sendo, como j dito, o Trilhas foi desenhado visando con-tribuir para a produo de polticas governamentais voltadas para o acesso, a permanncia e o sucesso de estudantes indgenas e de ou-tras populaes tradicionais no ensino superior, vistos como via im-prescindvel ao empoderamento de coletividades territorializadas no Brasil. A inteno inicial era proceder a uma ampla srie de reunies e seminrios entre segmentos de IES pblicas e comunitrias, or-ganizaes e lideranas indgenas, e segmentos governamentais, de modo a produzir uma rede articulada de iniciativas dispostas nacio-nalmente, com especial ateno para as demandas de formao dos quadros dos movimentos indgenas. O PTC no pretendia atingir indivduos, ainda que tambm considerasse os indgenas residentes

    15 O cmbio poca era extremamente favorvel aos fi nanciamentos estrangeiros (US$1,00 = R$3,23).

    16 Em Souza Lima e Paladino (2012) esto publicados alguns textos sobre as ex-perincias desenvolvidas com indgenas a partir da PHEI; um dos textos desta coletnea trata exatamente do PTC, de modo mais aprofundado. Nesta coletnea Encontram-se textos relativos ao PTC abordando seus mltiplos aspectos e suas fases (SOUZA LIMA e BARROSO, 2013).

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    em centros urbanos, mas pensava, neste e em todos os casos, em uma necessria conexo dos universitrios com os movimentos sociais, em especial com os movimentos indgenas em suas variadas facetas.

    O projeto foi lanado formalmente no dia 1 de fevereiro de 2004 e sua primeira etapa encerrou-se em maro de 2007.17 Por diversas determinaes, a inteno de atingir e facilitar o acesso ao espao universitrio a outras populaes tradicionais, notadamente aque-las no contexto amaznico, foram revistas, e o projeto centrou-se apenas em cenrios indgenas. O projeto voltado para empoderar coletividades formando lideranas, fi cou restrito tarefa de pro-piciar a mudana das instituies universitrias a fi m de promover transformaes sociais mais amplas via capacitao de indivduos. Tal cerceamento resultou do predomnio de uma linha de entendi-mento dos problemas educacionais e da efi ccia potencial das aes afi rmativas no interior da FF em sua sede estadunidense que alte-rou as diretrizes da Pathways to Higher Education Initiative, assim como das alteraes na composio da equipe do escritrio FF-RJ.

    Paralelamente, e como consequncia das mudanas nas prprias orientaes da PHEI, houve mudanas na equipe do Laced, que at meados do ano de 2003 foi integrada tambm pelo antroplogo Joo Pacheco de Oliveira. Com isso o projeto teve suas metas revistas no segundo semestre de 2003. Os programas de ao desenhados foram compulsoriamente orientados, segundo as novas linhas dire-toras da PHEI naquele momento, a propiciar a ao de universi-dades, na crena de que a mudana social rumo a sociedades mais equnimes, seria obtida pela transformao de instituies como as universidades e pela produo de lideranas portadoras de forma-o adequada, em detrimento da nfase em articulao poltica de coletividades para obter a formulao de polticas governamentais que pautassem uma mudana de maiores escalas. Nessa linha de entendimento, formar ncleos destinados ao acompanhamento dos indgenas em universidades serviria para mud-las, capacitando-as a formar futuros ps-graduandos que viessem a se confi gurar como

    17 Houve, assim, um ano e dois meses de preparao prvia entre a elaborao do concept paper e a concepo de uma proposta a partir de um desenho inicial da PHEI, cujo ponto de partida se deu em 2001.

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    profi ssionais indgenas capazes de ingressar no mercado de trabalho, lideranas em seus campos de atuao.

    Na prtica e contrariando as diretrizes da PHEI que nos foram apresentadas como aquelas que em 2003 deveramos passar a seguir, executar o PTC foi um permanente exerccio de demonstrao dos erros de avaliao dessa linha focada na mudana institucional e na formao de lideranas individuais para o caso dos povos indgenas em sua relao com a universidade no Brasil. Julgo mesmo que se alguns dos objetivos que mais almejamos ainda esto por ser plenamente alcanados isso se deve ao fato de que se produziu uma insufi ciente articulao entre indgenas e universidades capaz de efi cazmente pressionar por orientaes e recursos governamentais adequados.

    Durante sua primeira etapa (2004-2007) o Trilhas de Conheci-mentos teve como objetivos principais: 1) fomentar nas universida-des iniciativas de ao afi rmativa de carter demonstrativo e mo-delar destinadas a dar suporte ao etnodesenvolvimento dos povos indgenas, atravs da formao de indgenas de nvel universitrio; 2) fomentar a capacitao de profi ssionais universitrios para lida-rem juntamente com universitrios indgenas em dilogo com suas coletividades intervenes institucionais visando a democratizao do acesso e da permanncia em seus cursos de indivduos integrantes de povos indgenas; e 3) acompanhar e infl uenciar as polticas gover-namentais do ensino superior de modo a garantir sustentabilidade e replicabilidade s experincias universitrias desenvolvidas nos qua-dros do projeto.

    Para isso a equipe sediada do PTC desenvolveu um conjunto de atividades especfi cas:

    1) coordenou, por demanda incentivada, a seleo de propostas a ncleos de docentes vinculados a universidades que se propuse-ram a participar do projeto e estimular e viabilizar o acesso e permanncia de indgenas em cursos universitrios, visando sua titulao no terceiro grau;

    2) acompanhou, junto aos ncleos docentes, criao e implementa-o de programas destinados preparao de alunos indgenas portadores do ttulo de concluso do ensino mdio para o exame

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    vestibular e posteriormente para seu acompanhamento tutorial na universidade;

    3) coordenou esforos para, atravs da rede dos ncleos, acumular e potencializar a capacidade operacional e investigativa, contri-buindo para tornar as instituies de ensino superior mais demo-crticas e plurais;

    4) acompanhou, em parceria com organizaes indgenas, os deba-tes sobre as polticas governamentais que afetam os povos indge-nas no tocante s demandas por profi ssionais indgenas ao nvel do terceiro grau, de modo a infl uenci-las, construindo as bases sociais da sustentabilidade dessas iniciativas;

    5) coordenou investigaes sobre este processo de interveno so-cial bem como sobre as instituies de ensino superior em seu cotidiano organizacional, gerando o conhecimento crtico neces-srio ampliao dos efeitos do processo.

    Partindo dessas linhas de ao, o PTC pode ser melhor descrito por meio do agrupamento de suas diversas atividades. Ainda na sua primeira etapa o PTC teve como suas principais realizaes:

    1) aes de incentivo demanda: o estabelecimento de inmeros contatos com universidades e organizaes indgenas desde o in-cio de 2004 at o fi nal de 2005, incentivando-se a apresentao de duas propostas plenamente aprovadas envolvendo trs universi-dades, compondo-se experincias-modelos em uma universidade federal, a Universidade Federal de Roraima (UFRR), por meio do ento Ncleo Insikiran de Formao Superior Indgena;18 uma universidade estadual, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems); e uma universidade confessional, a Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB).19 As duas primeiras pblicas e gra-tuitas; e a terceira comunitria e paga.

    2) monitoramento do trabalho dos ncleos contratados, feito entre 2005 e 2007, por meio de visitas peridicas, leitura e anlise de

    18 Hoje Instituto Insikiran de Formao Superior Indgena.19 Para chegar a este formato fi nal foram feitos diversos contatos. Duas outras uni-

    versidades chegaram a apresentar propostas, uma enviada duas vezes; e outra pr-proposta chegou a ser apresentada. Nenhuma delas foi plenamente desenvol-vida por desistncia das equipes face s exigncias apresentadas.

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    relatrios juntamente com um Comit Assessor do PTC, idealiza-do pela Fundao Ford para dirimir qualquer possvel dvida;20

    3) organizao do seminrio Desafi os para a educao superior dos povos indgenas no Brasil, de mbito nacional fi nanciado pela FF e pelo Fundo de Incluso Social/Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID. Realizado em Braslia em 30 e 31 de agosto de 2004 contou com ampla participao de organizaes e intelectuais indgenas, setores governamentais, ONGs, orga-nismos de fomento e docentes universitrios. Dele resultou uma publicao que em termos latos mantm-se atual (SOUZA LIMA e BARROSO-HOFFMANN, 2007a). O seminrio estimulou as Secretarias de Educao Superior-Sesu e de Educao Continu-ada, Alfabetizao e Diversidade-Secad do MEC a fi nalmente tomarem posio no tocante educao superior de indgenas, gerando o lanamento, um ano depois, do edital Programa de Apoio Educao Superior e Licenciaturas Indgenas-Prolind, publicado em 2005;21

    20 O comit assessor foi composto por Beatriz Maria Alasia de Heredia: antro-ploga, que assessorou a Fundao Ford na montagem do projeto ao longo do segundo semestre de 2003 e docente da UFRJ; Carlos Coimbra Jr.: antroplogo, docente da Fundao Oswaldo Cruz e especialista na rea de sade indgena, do-natrio de recursos da FF no Brasil; Flvia Rosemberg: psicloga, coordenadora no Brasil do International Fellowship Program/FF, na Fundao Carlos Chagas, instituio privada sem fi ns lucrativos reconhecida como de utilidade pblica nos mbitos federal, estadual e municipal e, autora de um captulo desta coletnea; Etelvina Santana da Silva: conhecida como Maninha Xukuru-Kariri, estudan-te de fi losofi a, liderana indgena de grande importncia sobretudo nas regies Nordeste e Leste do Brasil, falecida em outubro de 2006; Gersem Jos dos Santos Luciano, Baniwa: liderana indgena de expresso nacional, antroplogo, repre-sentante indgena no Conselho Nacional de Educao; Maria Conceio Pinto de Ges: historiadora, representante da reitoria da UFRJ; e Nietta Lindenberg Mon-te: mestre em educao e especialista em educao indgena vinculada ONG Comisso Pr-ndio do Acre.

    21 Ver: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/Desafi os.pdf Acesso em: 6 abr. 2013. Sobre a atuao da Sesu, atravs de seu Departamento de Poltica da Educao Superior-Depes ver Bondim (2006). Para o Prolind, ver: http://bit.ly/gjia9b Acesso em: 6 abr. 2013. O Prolind foi o programa de trs editais publicados pelo MEC destinados a apoiar a constituio de cursos de licenciatura intercultural para a formao superior de professores indgenas que atuam em escolas indgenas de educao bsica. O primeiro edital foi publicado em 2005 e o ltimo julgamento foi em 2010.

  • 32 Povos indgenas e universidades no Brasil

    4) elaborao de um conjunto de livros paradidticos. Nos anos de 2005 e 2006, o PTC contratou a elaborao de livros paradid-ticos destinados especialmente formao superior de indge-nas: a implementao do PTC e a avaliao dos impactos sobre o movimento indgena da formao de ps-graduados indgenas no Brasil mostrou a importncia de se disponibilizar textos para processos de formao de indgenas e no indgenas no tocante a variadas dimenses da vida social desses povos. Tal gnero de textos usualmente tem sido escrito por no indgenas. Julgou-se que quando possvel isso deveria ser revertido em favor de auto-res indgenas, fornecendo novos eixos de refl exo para os jovens indgenas em formao de modo a que possam construir uma imagem positiva de uma intelectualidade indgena engajada e refl exiva com que se identifi car. Montou-se ento a srie Vias dos Saberes executada pelo PTC ao nvel de direo editorial, projeto grfi co e editorao, e veiculada sob a forma de e-books no stio web do projeto.22 Estabeleceu-se tambm uma parceria com a Secad/MEC e com a Unesco, para impresso dos livros na Coleo Educao Para Todos. A edio foi feita com recursos do BID, em tiragens de cinco mil exemplares de cada volume, destinados distribuio nacional para escolas indgenas, alunos indgenas de cursos universitrios de todas as carreiras, orga-nizaes indgenas, ONGs indigenistas, bibliotecas pblicas etc. Seu contedo serve de base tambm a mdulos de um curso de capacitao distncia de gestores universitrios e de secretarias municipais e estaduais de educao que so as executoras da edu-cao fundamental de indgenas no pas.23

    22 Ver: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/ Acesso em: 6 abr. 2013.23 O primeiro livro da srie uma introduo geral aos aspectos da vida dos povos

    indgenas no Brasil contemporneo, de autoria do j citado Gersem Luciano Ba-niwa. O segundo, escrito pelos antroplogos Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ) e Carlos Augusto da Rocha Freire (Museu do ndio/Funai/MI) um trabalho sem similar at hoje em nossa produo acadmica, apresentando de modo crtico e didtico a presena indgena na Histria do Brasil. O texto serve de base para reviso do sistema de preconceitos vigente: tais preconceitos fazem crer, por exemplo, que indgenas no tm direitos nem apresentam demandas por cursos universitrios. O terceiro trata dos direitos indgenas, foi coordenado por Ana Valria Arajo (secretria executiva da ONG Fundo Brasil de Direitos Humanos, advogada no indgena especializada no direito indigenista brasileiro).

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    5) produo de um site, iniciado em 2004, com informaes relati-vas ao ensino superior de indgenas. O PTC criou e mantm uma lista de discusso eletrnica Educao Superior de Indgenas na base do Yahoo! que vem sendo bastante utilizada;24

    6) produo de um vdeo tambm intitulado Trilhas de Conheci-mentos a partir da experincia dos estudantes indgenas do Mato Grosso do Sul, realizado com a participao dos estudantes. O material bruto lhes foi enviado para ser utilizado em outros fi l-mes futuros e tem sido intensamente utilizado em palestras, con-ferncias e reunies como instrumento de sensibilizao;

    7) participao no comit de avaliao do Prolind de agosto de 2005 a 2010 e no seminrio de avaliao do mesmo, em novem-bro de 2006;

    8) promoo, em parceria, de dois seminrios fi nanciados com um resduo de recursos destinados a ncleos universitrios, aps as subdoaes para a UFRR, a UCDB e a Uems: a) por meio de uma subdoao ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Ufpa, importante centro na rea de direitos humanos e detentor de mecanismos de ao afi rmativa, um seminrio sobre o ensino de Direito para indgenas no Brasil, que gerou um site, um vdeo e um documento a ser publicado; b) por meio de uma subdoao

    Por longos anos Ana Valria Arajo vem advogando e trabalhando no acompa-nhamento da formao de estudantes indgenas em Direito; a ela se reuniram quatro advogados indgenas: dentre eles, Paulo Celso de Oliveira Pankararu mes-tre em Direito, ex-bolsista do IFP e ouvidor-geral da Funai; Jonia Batista de Carvalho Wapichana, advogada da organizao indgena Conselho Indgena de Roraima, mestre em Direitos Indgenas pela Universidade do Arizona; Lucia Fer-nanda Belfort Kaingng (tambm mestre em Direito) diretora-executiva do Insti-tuto Indgena Brasileiro para Propriedade Intelectual; e Vilmar Moura Guarany (mestre com bolsa do IFP), professor das Faculdades do Vale do Juruena. Tam-bm compe o grupo o renomado pesquisador e ativista dos direitos indgenas no plano internacional, o indgena norte-americano S. James Anaya, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Arizona. Cada um deles desenvolveu temas de seu interesse e grande importncia para os direitos dos povos indgenas. O ltimo dos livros da srie (sem similar na produo intelectual brasileira) um manual de lingustica destinado ao estudo de lnguas indgenas e do bilinguismo, escrito pelo linguista da UFRJ Marcus Antonio Resende Maia, um dos primeiros a trabalhar com contedos de portugus como segunda lngua na formao de professores indgenas.

    24 Ver em: http://br.groups.yahoo.com/group/superiorindigena/. Acesso em: 6 abr. 2013.

  • 34 Povos indgenas e universidades no Brasil

    Ufba, centro de referncia na rea do sanitarismo, um semin-rio sobre a formao de indgenas na rea de sade, que tambm produziu um site e que tem no prelo o relatrio fi nal sob forma de texto impresso;25

    9) estmulo refl exo sobre a relao entre indgenas e educao em particular com o suporte fi nanceiro a pesquisas para teses de doutorado e publicao da coletnea Educacin escolar ind-gena, publicado na Argentina (PALADINO e GARCA, 2007).

    10) realizao de um intenso trabalho de advocacy em diversas fren-tes, procurando apresentar elementos para pensar os problemas da formao de indgenas no ensino superior sob diversos ngu-los, sobretudo o da permanncia e futura insero profi ssional dos estudantes.

    A segunda etapa do PTC teve incio em abril de 2007, acompa-nhada de uma ampla mudana na concepo do projeto redesenhado ao longo da primeira etapa. O projeto foi formalmente encerrado em 2009. Ainda mantendo o trabalho de assessoramento aos ncleos, os objetivos foram:1) contribuir para a melhoria das polticas institucionais relativas

    ao acesso formao universitria de estudantes indgenas, sua permanncia e o sucesso em cursos de nvel superior por meio do treinamento de integrantes de seus quadros docentes e tcnico--administrativos;

    2) contribuir para a capacitao de organizaes indgenas para que pesquisem, monitorem e avaliem a implantao das polticas governamentais e institucionais para o ensino superior de ind-genas, de modo a se tornarem aptas a debater esses temas, com nfase especial no reconhecimento dos conhecimentos tradicio-nais indgenas e em seu valor para a gesto de territrios de suas coletividades;

    3) produzir refl exes crticas sobre o prprio processo de implan-tao do projeto e a conjuntura em que tal se deu, as dinmicas estabelecidas nos ncleos e possibilidades futuras;

    25 Para o seminrio sobre formao de indgenas em direito, ver: http://www3.ufpa.br/juridico/ Acesso em: 6 abr. 2013.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 35

    4) contribuir para produo de conhecimentos acerca da criao de polticas governamentais e institucionais voltadas para a pro-moo de mecanismos de acesso e permanncia de indgenas em universidades pblicas e privadas no pas.

    Nessa segunda etapa, participantes da equipe produziram duas dissertaes de mestrado (ALMEIDA, 2008; PAULINO, 2008) e uma tese de doutorado posteriormente publicada (BARROSO HO-FFMAN, 2008; 2009), e premiada pela Capes como melhor tese de Antropologia de 2008. Concebeu-se e deu-se incio elaborao da srie de livros Abrindo Trilhas dos quais o presente volume inte-grante, e que juntamente com Caminos hacia la educacin superior: los programas Pathways de la Fundacin Ford para pueblos indge-nas em Mxico, Per, Brasil y Chile (SOUZA LIMA e PALADINO, 2012) e Trilhas de Conhecimentos: uma experincia de fomento a aes afi rmativas para povos indgenas (SOUZA LIMA e BARRO-SO, 2013) procuram contextualizar e sistematizar as aes do PTC.

    Foi ainda realizado um curso a distncia de capacitao de ges-tores de governo e de instituies de ensino superior a cargo da FGV On-line cujas turmas piloto foram executadas em parceria com a Secad/MEC. Ainda nesta segunda etapa, o PTC contribuiu para a estruturao e passou a atuar como assessor do Centro Indgena de Estudos e Pesquisas, com o qual o Laced tem mantido uma parceria de trabalho.26

    O PTC encerrou-se em outubro de 2009. A partir da, e no mais, com recursos da Pathways to Higher Education Initiative, o escritrio da Fundao Ford no Rio de Janeiro concedeu ao Laced dois outros fi nanciamentos.

    O primeiro desses projetos intitulou-se Educao Diferencia-da, Gesto Territorial e Intervenes Desenvolvimentistas. Pesquisa, Sistematizao de Conhecimentos, Produo de Material Didtico. Durante o perodo de vigncia desse projeto, concludo no incio de 2013, alm de manter-se trabalhando em parceria com o Cinep e em contato com o ncleo de Mato Grosso do Sul estruturado na

    26 Para o curso on-line ver: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/curso_distan-cia.htm, tambm acessvel por meio do site de Trilhas de Conhecimentos. Quanto ao Cinep, ver: http://www.cinep.org.br Acesso em: 6 abr. 2013.

  • 36 Povos indgenas e universidades no Brasil

    primeira etapa de Trilhas de Conhecimentos, o Laced estimulou a produo de mais dois livros de cunho paradidtico para publica-o em parceria com o MEC, um deles intitulado Sade indgena: uma introduo ao tema, concebido e organizado por Luiza Garne-lo e Ana Lucia Pontes (Fiocruz), tambm nesse caso contando com a participao de autores indgenas; o segundo foi intitulado Gesto territorial em terras indgenas no Brasil, organizado por Cassio No-ronha Inglez de Souza e Fabio Vaz Ribeiro de Almeida, em conjunto com Maira Smith, os trs ex-tcnicos do Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas (PDPI)/Ministrio do Meio Ambiente, e Gui-lherme Martins de Macedo, no momento perito tcnico da Agncia de Cooperao Tcnica Alem (GIZ) para o Tratado de Cooperao Amaznica no tocante aos assuntos indgenas.27

    Dois outros livros, de cunho mais instrumental, foram elabora-dos: um, de autoria dos antroplogos Lus Roberto De Paula (pro-fessor da Licenciatura intercultural para professores indgenas da UFMG) e Fernando de Lus Brito Vianna que apresenta um pano-rama das polticas governamentais para os povos indgenas, ensi-nando os estudantes indgenas a pesquisar e informar-se sobre elas; outro de autoria de Mariana Paladino (Faculdade de Educao/UFF) e Nina Paiva Almeida (Funai) com reviso tcnica de Kleber Gesteira Matos retraa o itinerrio da poltica de educao indgena ao longo do perodo dos dois governos de Lus Incio Lula da Silva.28

    Em todas essas iniciativas a variao do dlar moeda em que so feitas e indexadas as doaes da Fundao Ford trouxe inme-ros tropeos durante a maior parte do tempo, por conta da queda do cmbio nas duas doaes para o PTC e na imediatamente posterior, para a execuo de projetos envolvendo um largo circuito de agen-tes, e tarefas demoradas e custosas, apenas sinteticamente referidas

    27 O livro coordenado por Garnelo e Pontes est disponvel para download em: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/saude-indigena/. O livro de gesto territorial em breve estar tambm no link: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/, aguardan-do para isso apenas ltimas alteraes que a CGEEI/Secadi ainda est por fazer. Os dois sero impressos ainda no ano de 2013, segundo esta coordenao em ti-ragens de 10 mil exemplares, juntamente com a reimpresso dos primeiros quatro volumes. Acesso em: 6 abr. 2013.

    28 Livros disponveis para download em: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/ Aces-so em: 6 abr. 2013.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 37

    anteriormente. Em especial, o componente relativo refl exo sobre a experincia desenvolvida e os inmeros aspectos da mesma, viu-se prejudicado e limitado.

    O outro projeto, intitulado A Educao Superior de Indgenas no Brasil: avaliao, debate e qualifi cao, que tambm conta com recursos do CNPq e da Faperj foi efetivamente iniciado em novem-bro de 2011. Foca-se na avaliao dessa dcada de trabalhos para promoo e fomento formao superior de indgenas, na continui-dade da assessoria aos movimentos indgenas, seja pela participao em espaos de formao dos quadros de movimentos indgenas, em parceria com o Centro Indgena de Estudos e Pesquisas (Cinep), na produo e disponibilizao ampla de subsdios didticos via inter-net em forma escrita e audiovisual, assumindo-se agora plenamente a direo de contribuir para a formao de intelectuais indgenas. nfase especial est sendo dada formao de profi ssionais indge-nas na rea da comunicao, j que as mdias so reas de combate importante dos movimentos indgenas.

    O ano de 2010 confi gurou-se como perodo eleitoral e de prepa-rao para a transio governamental, o que no tocante a parcerias com setores do governo, em especial com a Secad, hoje reunida Secretaria de Educao Especial e nomeada Secadi. O i de Inclu-so, tornou muitas coisas instveis, sujeitas a incertezas, demoras e a partir de maro de 2011 implicou ainda em renegociar acordos, como os das parcerias para impresso de livros. As transformaes no MEC, com a sada do secretrio Andr Lzaro, em dezembro de 2010, e a consequente perda signifi cativa da importncia da pauta da diversidade, tornaram bastante incertas as aes governamentais relativas educao para a diversidade29.

    Alguns resultados alcanados e limitaes

    A presena de indgenas em IES federais, estaduais, comunitrias ou privadas stricto sensu, tem-se colocado como realidade nos ltimos

    29 O cargo passou a ser ocupado pela Sra. Claudia Dutra, ex-secretria de Educao Especial do MEC durante o segundo governo Lula, dedicada especialmente s polticas de incluso de defi cientes que s deixou o cargo em fevereiro de 2013. S aps sua sada e a entrada da prof Maca Evaristo no cargo est se vendo a recuperao de inmeros aspectos do desenho inicial da Secad.

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    10 anos. Quando, em agosto de 2004, a equipe executora da primei-ra etapa do PTC realizou o seminrio Desafi os para uma educa-o superior para os povos indgenas no Brasil: polticas pblicas de ao afi rmativa e direitos culturais diferenciados, o representante da Funai, nica agncia de Estado a ter informaes mais concre-tas, ainda que com pouca ou nenhuma sistematicidade, estimou em algo por volta de 1.300 o nmero de indgenas que cursavam o en-sino superior, em geral, em IES particulares de baixa qualidade.30 A CGEEI/Secadi-MEC estima hoje em oito mil o nmero de estudan-tes indgenas em IES de todos os tipos.

    Em 9 de janeiro de 2001 foi aprovado o Plano Nacional de Edu-cao (PNE), o primeiro plano posterior ao artigo n. 214 da Cons-tituio Brasileira de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educa-o Nacional (LDB) 1996. Nele estava prevista a formao superior de professores indgenas. Em 2011, quando um novo plano veio a entrar em vigor, muito pouco tinha acontecido seja no mbito go-vernamental, das instituies de ensino, ou mesmo dos movimentos indgenas. De positivo e, como conjuntura de fundo ao longo desses anos, em especial aps a Conferncia de Durban, o debate em prol de aes afi rmativas nas universidades pblicas focado na defesa das demandas do movimento negro. Tal demanda, facultou uma cres-cente abertura de aes afi rmativas sob a forma quase to somente de cotas para o acesso dos estudantes afrodescendentes, indgenas, portadores de necessidades especiais e provenientes das redes pbli-cas aos cursos de universidades estaduais e federais. Isto propiciou e potencializou o movimento espontneo de busca do ensino superior por parte de estudantes indgenas, que de resto preexistia a todos esses investimentos, apesar de todas as difi culdades.

    De positivo ainda, deve-se destacar que pela prpria realizao do seminrio de 2004 e em larga medida pelo trabalho de advocacy realizado pela equipe do PTC, que acabou se disseminando de modo muito mais amplo, ainda que pouco percebido como ligado a um trabalho intenso e cotidiano dessa equipe, o governo federal criou

    30 Ver Desafi os para uma educao superior para os povos indgenas no Brasil (SOUZA LIMA e BARROSO-HOFFMANN, 2007a, especialmente pginas 85-111). Disponvel em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/Desafi os.pdf Acesso em: 6 abr. 2013.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 39

    o Programa de Formao Superior e Licenciaturas Indgenas (Pro-lind), antes mencionado. Pesa(va) sobre o MEC a tarefa de facultar possibilidades de acesso titulao em nvel superior a professores do ensino mdio (indgenas e no indgenas), de modo a superar os ndices baixssimos de qualifi cao de pessoal docente no Brasil, ao conjunta da ento Secad e da Sesu. Hoje esto em ao 26 li-cenciaturas interculturais para formao de professores indgenas. A ao foi essencialmente da Secad/Secadi, a Sesu pouco ou nada tendo de concreto feito.

    De negativo, h que o governo federal no tomou qualquer ini-ciativa no sentido de estabelecer aes governamentais de longo pra-zo ou de carter permanente aquilo que a vulgata poltica cha-ma de polticas de Estado no sentido de fomentar a educao superior de indgenas, ainda que esta seja uma demanda cada dia mais presente no cenrio das demandas indgenas. A Lei Federal 12.711/2012, que dispe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituies federais de ensino tcnico de nvel mdio a Lei de Cotas no veio, at o momento acompanhada de alteraes substantivas quer na ao da Sesu, em especial, na da Secretaria de Educao Bsica (Sebe) ou na da Secretaria de Educao Profi ssional e Tecnolgica (Setec).

    Estuda-se a possibilidade de implantao de uma bolsa-manu-teno para os estudantes que pleiteiem acesso via aes afi rmativas. Mas a manuteno de estudantes indgenas, ao menos, no se resolve apenas com bolsas, ainda que estas sejam fundamentais. Apesar do muito j feito em uma dcada de aes, falta sistematizao, avalia-o, refl exo e reorientao governamental e institucional para a for-mao superior voltada diversidade sociocultural. Se existem hoje muitas experincias de sucesso, o MEC e as secretarias estaduais de educao falham em orientar a luta contra o preconceito no ensino superior, os esquemas de acompanhamento formao de indgenas dentro de universidades como monitorias qualifi cadas etc., e mais ainda no sentido de fomentar a ultrapassagem de sua prpria bu-rocracia universalizante de modo a gerar formas de adaptao dos currculos universitrios s demandas por conhecimentos surgidas desde as realidades dos povos indgenas em sua vida cotidiana. Me-nos ainda de pode falar, exceo talvez de algumas licenciaturas,

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    de qualquer aproximao mais sria em face dos conhecimentos tradicionais indgenas. Enquanto crescem em nmero e qualidade diversos cursos universitrios ligados ao Movimento dos Trabalha-dores Sem Terra (MST) em vrias reas do saber, estamos bem dis-tante disso no tocante aos povos indgenas, salvo por alguns cursos de licenciatura intercultural. A comparao com o MST nos ajuda a iluminar o que no desenvolveremos nesse momento , que um ator especialmente omisso tem sido o prprio movimento indgena. Muitas explicaes podem existir, como a precariedade relativa das organizaes indgenas na prpria articulao da luta pelos seus di-reitos territoriais; o recrudescimento ou acirramento de severas ame-aas motivadas a estes pelo desenvolvimentismo atual etc. Cremos que falta tambm uma melhor percepo do crescimento dessa de-manda e de seus variados lugares sociais em meio a variados povos.

    Tambm as licenciaturas apresentam inmeros problemas. O Prolind foi implantado por meio de trs editais, o que tornou o fl uxo de recursos extremamente instvel e, embora a dinmica de editais possa conduzir a pensar que seja mais fcil realizar um processo de avaliao consistente, esse no tem sido realizado.31 A passagem aos recursos oramentrios das universidades parece ter se dado de modo muito desnivelado. Os modelos de cursos propugnados e im-plementados no podem prescindir da participao da Funai para assegurar meios a muitos dos alunos indgenas nas universidades. No entanto, esta agncia teve reduzida ou encerrada a grande maio-ria de seus investimentos na rea de educao.

    Sem uma agenda claramente formulada com que Estado e movi-mentos indgenas se comprometam, ainda que os problemas estejam identifi cados e as solues prefi guradas torna-se praticamente im-possvel aferir alguma efi ccia real e reorientar processos educacio-nais em seus aspectos polticos e administrativos, seja no plano de prticas de governo, seja no de prticas institucionais. Programas como o Prouni e o Reuni, que de diferentes maneiras atingem es-tudantes indgenas, no apresentam como parte de suas resultantes

    31 Prepara-se nesse momento (maio de 2013) um quarto edital.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 41

    quaisquer subsdios que permitam pensar efetivamente os indgenas no ensino superior.32

    Assim, prevalece, em todas as esferas de ao, um nvel muito primrio de refl exo sobre o acesso, a permanncia, o sucesso ou o fracasso em cursar e concluir um curso universitrio, e a partir dele conseguir uma capacitao tcnico-poltica e/ou uma insero profi ssional que mantenha conexes com, e oportunidades para, as identidades indgenas enquanto tais. A nfase excessiva e descabida na continuidade dos estudos ao nvel de ps-graduao, que com frequncia marcou alguns programas Pathways em outros pases da Amrica Latina, em uma associao indevida e limitada com opor-tunidades (elas mesmas muito restritas) facultadas pelo Internatio-nal Fellowship Program, na perspectiva de formar novas lideran-as dentre segmentos menos privilegiados, acabou por obscurecer a necessria pergunta sobre o destino dos egressos de todos esses pro-gramas e cursos. Se intervenes no plano da graduao, em especial como estas tm sido concebidas, atreladas importante dinmica de abertura de cotas, em tudo coerente com a presena negra no Brasil, tendem a processos de universalizao. Isso o avesso das demandas indgenas que pugnam pelo que lhes seria especfi co e diferenciado, de modo a valorizar suas tradies e conhecimentos especfi cos.

    Tambm os movimentos e organizaes indgenas tm falhado em perceber que h uma mudana acentuada no perfi l geracional dos seus potenciais militantes. No so mais somente lideranas for-madas nas aldeias a partir de processos de socializao pautados em suas tradies ou em uma limitada faixa de interao com no ind-genas. So tambm jovens formados em escolas, com grande trnsito entre aldeias e cidades, detentores de uma gama ampla de conheci-

    32 O Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Programa Diversidade na Uni-versidade (PDU) (Lei 10.558/2002 e Decreto n. 4.876/2003) tm como fi nalidade a concesso de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduao e sequenciais de formao especfi ca, em instituies privadas de educao supe-rior. Ver: http://prouniportal.mec.gov.br/index.php Acesso em: 06 abr. 2013. O programa de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais (Reuni), institudo pelo decreto 6.096/2007 visa a expanso da educao superior com medidas para retomar o crescimento do ensino superior pblico, criando condi-es para que as universidades federais promovam a expanso fsica, acadmica e pedaggica da rede federal de educao superior. Ver: http://reuni.mec.gov.br Acesso em: 6 abr. 2013.

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    mentos e desejosos de uma insero pblica pautada no s pela vi-timizao (real diante de inmeros confl itos), pela infrao aos seus direitos, pelos relatos de atos violentos e carncias, mas tambm por registros positivos de conquistas, muitas delas no mbito universi-trio-profi ssional, poltico e sociocultural o que, por vezes, parece sobrepujar a sua identifi cao como indgenas.

    Longe de certo esprito sindicalista tpico das organizaes de professores, no qual o culto do diploma e a exibio de graus pas-saram a ser dominantes, seguindo os tons dominantes do prprio processo educacional brasileiro, muitos graduandos e graduados in-dgenas esto preocupados em como se inserir profi ssionalmente de maneira compatvel com a manuteno positiva da identidade ind-gena e o orgulho tnico, e ainda de como gerir suas terras em novos regimes de espacialidade e poder. preciso reconhecer que a prpria luta pela terra tem assumido novos contornos, no qual a demanda por fomento a alternativas de sustentabilidade se mistura aos novos espaos buscados por esta gerao formada em escolas e no trnsito entre aldeia e cidade. Com os ataques aos direitos territoriais indge-nas que nesse momento se colocam no horizonte a partir do prprio governo, a situao tende a se complexifi car e colocar desafi os ainda maiores a essa gerao de jovens lideranas.

    Os profi ssionais formados em domnios de saberes no indge-nas, cuja nica real possibilidade de atuar, sem deixar a identifi cao tnica, passa, ambiguamente, pela condio de indgena, cresceram em nmero, mas no necessariamente esse crescimento foi acompa-nhado pelo aumento de um suporte direcionado e em funo de uma ao proativa dos movimentos indgenas. A iminncia da instalao da Poltica Nacional de Gesto Territorial e Ambiental de Terras In-dgenas (PNGATI), instituda em 5 de junho de 2012 pelo Decreto n. 7.747, que ainda no saiu do papel, pe em tela a necessidade de for-mao sem par de indgenas em reas para as quais a formao do-cente minimamente incua. Vemos a um dos principais limites de muito do que foi feito at o momento, concentrado na expanso das licenciaturas interculturais, cumprindo metas colocadas pelo Plano Nacional de Educao de 2001, aprovado pelo Decreto n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que recobre muito parcialmente as demandas indgenas.

  • Cenrios da educao superior de indgenas no Brasil, 2004-2008 43

    s vsperas de uma conferncia de nacional de educao, agen-dada para 2014, com conferncias preparatrias a acontecer nos municpios e estados, estamos em um cenrio em que os avanos especfi cos obtidos na rea de educao podem ser facilmente engo-lidos pelo retrocesso mais geral do reconhecimento dos direitos es-pecfi cos dos indgenas no cenrio desenvolvimentista do governo de Dilma Rousseff. Mais do que nunca a educao fundamental.

    O presente livro rene trabalhos que tratam de temas especfi cos que desenham um cenrio vigente poca da instalao do PTC e ao longo da maior parte de sua trajetria, temas estes que merece-ram a refl exo de membros da equipe do projeto ao longo dos anos. Seus autores, a parte os integrantes do PTC, estavam envolvidos em diferentes instncias diretamente ligadas educao indgena, em posies vitais para a questo do ensino superior.

    Maria Helena Fialho era coordenadora na Coordenao Geral de Educao da Funai, onde tambm atuavam Andr Ramos e Gusta-vo Menezes. Foi inequivocamente a Funai a primeira a dar suporte permanncia de indgenas em universidades e depois a articular vestibulares indgenas com diversas universidades do pas, como no caso das universidades do Paran explorado no captulo de autoria de Marcos Moreira Paulino.

    Renata Grard Bondim era poca, na gesto de Nelson Macu-lan Filho como secretrio de ensino superior, consultora da Unesco para polticas relativas lngua portuguesa na Sesu, onde foi cha-mada a pensar as questes relativas presena dos indgenas no en-sino superior, at ento irrefl etidas (o interesse pelo tema em larga medida retrocedeu depois de sua sada).33 Renata Bondim colaborou de modo fundamental na defi nio do Prolind, tendo dele uma vi-so mais ampla do que aquela que aps sua sada se fi xou, pautada apenas pelo desenvolvimento, via editais, das licenciaturas intercul-turais.34

    33 O professor Nelson Maculan foi reitor da UFRJ de 1990 a 1994, perodo durante o qual o prof. Godofredo de Oliveira Pinto, da Faculdade de Letras, foi sub--reitor de Pesquisa e Ps-graduao e Renata G. Bondim superintendente geral da mesma Sub-reitoria. Depois de deixar as questes indgenas, Renata Bondim deu continuidade ao seu trabalho como consultora no tocante lngua portuguesa.

    34 Veja-se sua proposta em Souza Lima e Barroso Hoffmann, 2007a .

  • 44 Povos indgenas e universidades no Brasil

    Kleber Gesteira Matos era coordenador-geral de Educao Es-colar Indgena na ento Secad, onde atuou de 2003 a 2008. Susana Marteletti Grillo Guimares atuava e atua, vinculada funcionalmen-te ao longo do tempo de diferentes maneiras, na CGEEI/Secadi, onde exerce um papel fundamental de formulao e orientao das mais variadas atividades. Ao longo dos anos vem sendo o real elo de liga-o entre diferentes administraes. Sobre a constituio da Secad, a partir do PDU, escreveu Nina Paiva Almeida, na poca integrante da equipe de Trilhas de Conhecimentos.

    Maria Jos de Jesus Alves Cordeiro era pr-reitora de Graduao da Uems. Em 2003 foi a principal responsvel pela implantao de cotas para alunos indgenas e afrodescendentes, experincia sobre a qual seu texto traz inmeras contribuies.

    Flvia Rosemberg foi a principal idealizadora e a responsvel pela implantao do Programa Internacional de Bolsas da Funda-o Ford (http://www.programabolsa.org.br/), a partir da Fundao Carlos Chagas (http://www.fcc.org.br). Este programa foi o segmen-to brasileiro do International Fellowship Program e teve imenso su-cesso em relao aos programas dos demais pases, com notvel im-pacto principalmente na formao de mestres e doutores indgenas e negros. Leandro Feitosa Andrade foi integrante destacado da equipe do programa.

    Guilherme Martins de Macedo foi professor na Universidade Fe-deral do Amazonas, onde (co)coordenou um curso de Gesto em Etnodesenvolvimento promovido em parceria com o Laced/Museu Nacional-UFRJ, com recursos da Fundao Ford para cotas desti-nadas a alunos indgenas. Elaborou juntamente com outros docentes uma pr-proposta de ncleo para ser apresentada ao PTC, o que no chegou a acontecer.35 Posteriormente, quando de sua atuao como coordenador tcnico do projeto Vigisus II, implementou um conjun-to de bolsas para alunos indgenas na rea da sade.

    35 Para o referido curso, ver: http://laced.etc.br/site/atividades/cursos/curso-gestao--em-etno/ Acesso em: 6 abr. 2013.

  • A presena indgena na construo de uma educao superior universal... 45

    A presena indgena na construo de uma educao superior universal, diferenciada ede qualidade

    Antonio Carlos de Souza LimaMaria Macedo Barroso

    O texto que se segue uma verso revista daquele que introduz a pu-blicao dos resultados do seminrio Desafi os para uma educao superior para os povos indgenas no Brasil realizado em Braslia sob nossa coordenao, nos dias 30 e 31 de agosto de 2004 como atividade do projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indgenas no Brasil (SOUZA LIMA e BARROSO HOFFMAN, 2007a).1 Reproduzi-lo aqui no apenas permite evocar parte do contexto prvio instalao do PTC como tambm introduzir o pri-meiro produto do projeto e resultado do seminrio, que aqui est co-locado ao fi nal do volume na seo que intitulamos Documentos. Referimo-nos ao relatrio enviado a todos os participantes, organi-zaes indgenas, universidades, instncias de governo que partici-param ou que deveriam entrar em contato com o que acumulamos sobre o tema nos dias do evento.

    O documento de 2004 e a publicao mais ampla de 2007 visa-vam:

    1) Registrar o estado da discusso como parte da agenda da luta pelo reconhecimento dos direitos indgenas, com foco nos rumos da educao superior, contribuindo para que os movimentos in-dgenas retivessem a memria de suas lutas e refl exes.

    2) Apresentar toda a pluralidade de vises por meio das quais dis-tintos atores, governamentais ou no, indgenas ou no, perce-biam as razes de ser das reivindicaes indgenas por acesso, permanncia e sucesso no ensino superior.

    1 Disponvel em: http://trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/Desafi os.pdf.

  • 46 Povos indgenas e universidades no Brasil

    3) Perceber e enfrentar as tendncias que levavam a subsumir a heterogeneidade de propostas e perspectivas que ento condu-ziam os povos indgenas a demandar o direito de estarem pre-sentes nas universidades a um dado conjunto de solues. Por fora da interveno de polticas governamentais, da presena das agncias internacionais de cooperao fi nanceira e tcnica, alm de fundaes fi lantrpicas, embora generosas, tais solues acabaram por produzir novas homogeneidades potencialmente discriminatrias. Isso ocorria pelo no reconhecimento de es-pecifi cidades em situaes genericamente reconhecidas como de diferena, enfeixadas em chaves interpretativas como cotas, ao afi rmativa, luta contra o racismo, igualdade racial e incluso social.

    4) Contribuir para que o debate sobre as aes governamentais frente ao ensino superior se benefi ciasse dos desafi os colocados pela busca indgena por acesso e permanncia (no caso indgena o maior desafi o) universidade. Essa meta vai desde o reconheci-mento da presena dos conhecimentos tradicionais desses povos em nossas tradies culturais, at a crtica radical do ensino su-perior que tm deixado os povos indgenas em lugar perifrico e distante na conscincia social brasileira.

    5) Acumular elementos para criticar e melhor propor planos e aes governamentais na direo de um ensino superior de indgenas que, longe de padres predefi nidos e genricos, viessem a permi-tir a oferta de solues compatveis aos projetos de futuro dos povos indgenas.

    6) Avanar na produo de novos parmetros para polticas gover-namentais que pudessem adquirir o estatuto de polticas de Esta-do de mdia e longa durao, dotadas de institucionalidade com-patvel e fruns de participao indgena adequados, voltadas ao reconhecimento da diversidade e da autoctonia, bem como dos direitos coletivos.

    O contexto de realizao

    Os debates ocorridos durante o seminrio se deram sob um clima de pondervel ambiguidade na relao entre organizaes e povos in-

  • A presena indgena na construo de uma educao superior universal... 47

    dgenas, por um lado, e governo federal, por outro. O macio apoio dos povos indgenas eleio do presidente Lula, em seu primei-ro mandato, ao contrrio do acertado e esperado, no reverteu em aes positivas e muito menos na abertura de dilogo por parte do novo governo com as organizaes indgenas.

    Do ponto de vista das polticas indigenistas mais amplas, at aquele momento o governo Lula havia dado pouco ou nenhum sinal de interlocuo efetiva com os povos indgenas e suas organizaes no tocante a temas como terra, sade e, principalmente, a criao de um conselho propositivo e deliberativo para as polticas indige-nistas. A proposta era a da criao de um conselho paritrio com-posto por representantes do Estado e das organizaes indgenas, com participao da sociedade civil organizada e do MPF, conforme concebido e pactuado a partir do seminrio Bas