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Livro Rosana Ricalde

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livro sobre a obra de Rosana Ricalde editora Dardo - Espanha 2008

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direção | dirección : David Barrografismo | diseño: dardo ds / Cristina Moralejotextos | textos | texts: Paulo Reis / Luciano Vinhosa / Guillerme Bueno / Marisa Flórido Cesartraduções | traducciones: David Prescott / dardo dsimpresão | impresión: Litonor

© co-edição | co-edidicón: Artedardo S.L. / Galeria © fotografias, textos e traduções | fotografías, textos y traducciones os autores | los autores

ISBN: depósito legal:

Artedardo S.L.: rúa Lisboa, nº 6-A, 3ºA, Área Central, 15707 Santiago de Compostela (España)tel.: +(34) 881 976 986 / +(34) 607 491 8400 [email protected] / www.dardo-ds.com

colección:

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Rosana Ricalde

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a dobradura, 2007dobraduras feitas com o livro sobre o escritor Raymond Roussel

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paulo reis

paulo reis

Luciano Vinhosa

Luciano Vinhosa

Guilherme bueno

Guilherme bueno

Marisa Flórido Cesar

Marisa Flórido Cesar

Sumário / Índice

As palavras compartilhadas de Rosana Ricalde

Las palavras compartilhadas de Rosana Ricalde

O signo total

El signo total

Horizonte Azul

Horizonte Azul

Exercício da Possibilidade

Ejercício de la Possibilidad

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As Cidades e o Desejo, 2006/2007Plantas desenhadas com frases do livro As Cidades Invisíveis

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“Eu preciso destas palavras escritas”. Arthur Bispo do Rosário

Enveredar pelo território da filosofia da linguagem é usar as premissas de Ludwig Wittgenstein, que definiu que a função da linguagem é descrever a realidade, porque, a rigor, nada pode ser dado fora da linguagem. Pensamento e linguagem são uma e a mesma coisa para Wittgenstein; o pensamento é constituído de proposições complexas, que ligam entre si nomes, signos simples dos objetos. Não é possível retratar as semelhanças entre um retrato e o objeto retratado, tam-bém não é possível dizer, expressar mediante enunciados a forma lógica comum à linguagem e à realidade. Esta, a linguagem apenas se mostra, não se diz.1

Enveredar então pelas artes plásticas por meio de sua relação com a linguagem é uma tarefa her-cúlea. Se a palavra, ou melhor, o signo verbal foi utilizado no passado por cubistas, dadaístas e futuristas apenas como ícones, é no campo da arte conceitual que este verá evidenciado seu sig-nificante. Quando pintou Ceci n´est pas une pipe, René Magritte promoveu o deslocamento do signo lingüístico do campo puramente visual para o campo semântico epistemológico. Magritte inaugura a arte conceitual ao incorporar a lingüística de Wittgenstein ao espaço pictórico.

A Pipe de Magritte e, posteriormente, a Chair de Joseph Kosuth confirmam a assertiva de Mau-rice Merleau-Ponty de que a palavra não é o “signo” do pensamento, se compreendermos como tal um fenômeno que anuncia outro, como a fumaça anuncia o fogo. A palavra e o pensamento só

1 Ludwig Wittgenstein. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994.

paulo reis

As palavras compartilhadas de Rosana Ricalde

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admitiriam essa relação exterior se uma e outro fossem dados tematicamente; na realidade estão envolvidos uma no outro, o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido.2 Em A prosa do mundo, Merleau-Ponty defende que tudo se resume aos substantivos, estes são a forma como compreendemos as coisas, i.e. são a essência do mundo.3

Poderíamos afirmar que a obra da artista Rosana Ricalde busca essa essência do mundo na medi-da em que cataloga aquilo que está no mundo; ou o que chamamos de mundo, usando a expressão de Heidegger. Em Ser e tempo, o propósito do filósofo foi trazer à luz o que significa ser para o homem, ou como é ser.4 Assim, Rosana dá significado ao mundo a partir dos substantivos pró-prios – nomes de pessoas, lugares, espaços. Ao operar uma antropogeografia, a artista cria uma tessitura para a humanidade, coisificando o mundo. Assim como a história, a cultura, em suas variantes lingüística, literária ou filosófica, aparece na obra de Rosana Ricalde como base para uma construção plástica calcada numa imagética em que o significante e o significado são os mesmos. Mas sua obra não se restringe à semiótica, incorpora a poesia, a arte e a história da arte local e universal como evidência que faz arte e não lingüística ou semiótica.

Destarte, um texto autodescritivo de um poeta serve de pretexto à construção de uma superfície geométrica, aparentemente monocromática, que nos remete às pinturas abstratas. Aos nos apro-ximarmos da obra, percebemos que as imagens são compostas de letras de fitas rotuladoras. Cha-madas de Auto-retratos, essas “pinturas mecânicas”, nas cores amarelo, azul, vermelho, verde e negro, são como composições modernistas, retas e angulares, um modelo pictórico reducionista de um autor, como nas pinturas de Malevich. Nesses Auto-retratos – poemas de Manuel Ban-deira, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Graciliano Ramos e Augusto Massi –, a artista busca a (auto)descrição desses gigantes incontestes da poesia e da prosa. Esses trabalhos despertam nosso interesse em saber como eles se vêem e como os vemos e, para além do seu significado, são espelhos cegos de suas vozes.

O modernismo, ou melhor, as vozes modernistas aparecem também em outra série, a dos Ma-nifestos. Nestes, Rosana Ricalde apropria-se dos motes que mudaram os rumos da arte brasi-leira, desde o Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, o manifesto Ruptura, também o Neoconcreto e, por fim, o Objeto, este último pertencente ao artista Waldemar Cordeiro. O

2 Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

3 Maurice Merleau-Ponty. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

4 Martin Heidegger. Ser e tempo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1929

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primeiro manifesto Dada também interessa à artista e é associado aos manifestos brasileiros pela sua importância histórica e conceitual, pois acabou por abrir território para todos os outros ma-nifestos. Em todos esses trabalhos o que se torna evidente é a intervenção da artista, apagando ou sublinhando o significado das palavras, criando uma dislexia semântica no espectador.

Nos Contra-poemas a artista articula antagonismos existentes na linguagem a partir da alternân-cia dos fundos negros e brancos; no plano do significado, altera o sentido da poesia ao substituir as palavras do poeta por um poema feito por seus antônimos. Ao substituir não somente as pa-lavras, mas também o sentido da ação, a artista altera radicalmente o significado da obra. Esse mecanismo de alteração de significantes e significados é uma constante em sua obra. O jogo visual na série de trabalhos dos Provérbios – obras feitas em pinturas com frases coloridas para serem lidas com óculos coloridos (em vermelho ou azul) é uma verdadeira gestalt. A artista cria

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interferência nos significados à medida que ao trocarmos de uma cor para outra, “apagamos” visualmente letras e palavras que podem ser vistas a olho nu. As trocas visuais e as interferências nos significados são para a artista uma forma de abrir o canal de percepção do espectador. Essa gestalt, em que o espectador pode compor seu objeto final, funciona como um random walk da palavra, afinal, como afirma Wittgenstein, as palavras enunciam o mundo.

A lingüística e a cartografia são complementares na obra de Rosana Ricalde. Mapas de cidades, globos terrestres, labirintos, etc. são espaços de reconhecimento topográfico; mas são enuncia-dos lingüísticos para responder a grande questão ontológica. Gaston Bachelard na sua A poética do espaço� procedeu a uma reflexão singular sobre o espaço, criando uma topo-análise ao falar de uma poética do espaço dando à palavra a missão de elevar o objeto de sua análise, i.e. lugares e espaços, ao nível poético. Os principais espaços preferidos pelo homem, como a casa, o sótão, o porão, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha, etc. são espaços da imensidão íntima. A poesia bachelardiana aprofunda o sentido de relação metafísica e psicológica do espaço sobre o homem. Sua poesia pode e deve ser participada pelos seres humanos atentos, sensíveis, imagi-nativos e abertos ao devaneio. Para Bachelard as coisas do quotidiano devem ser redimidas pela atenção, pela nova significação a que devemos dar-lhes, devendo ser vistas em sua profundidade, pois fazem parte da nossa percepção mais íntima.

Onde será que isso começa / A correnteza sem paragem / O viajar de uma viagem / A outra viagem que não cessa / Che-guei ao nome da cidade / Não a cidade mesma espessa / Rio que não é Rio: imagens / Essa cidade me atravessa / Ôôôô êh boi êh bus / Será que tudo me interessa / Cada coisa é demais e tantas / Quais eram minhas esperanças / O que é ameaça e o que é promessa / Ruas voando sobre ruas / Letras demais, tudo mentindo / O Redentor que horror, que lindo / Meninos maus, mulheres nuas / Ôôôô êh boi êh bus / A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio / Será que pra meu próprio Rio / Este Rio é mais mar que mar / Ôôôô êh boi êh bus / Sertão ê mar. Caetano Veloso

5 Gaston Bachelard. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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as viagens de Marco Pólo, 2007livro de mesmo nome recortado em uma linha contínua formando um desenho. 120 x 140 x 4cm

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A vastidão de mundo é um tema que interessa aos artistas. Explorado pelos grandes autores uni-versais – de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa às Cidades invisíveis de Ítalo Calvino, a vastidão ocupa o centro das preocupações humanas. Só é possível conhecer a vastidão à medida que a percorremos através das viagens. As viagens por cidades, rotas marítimas ou fluviais, são espaços da memória e estes são os verdadeiros motivos de interesse de Rosana Ricalde. Em al-guns trabalhos, a artista cria um mapa urbano feito de ruas de palavras, usando o texto de Ítalo Calvino; noutros cria uma carta marítima imaginária das viagens de Marco Polo, um labirinto feito de um emaranhado de palavras para lembrar as rotas oceânicas percorridas pelo navegador. Todos são espaços de reconhecimento e perdição, afeição e tristeza, história e invenção, litera-tura e fantástico, descobrimentos e desaparecimentos, vida e morte.

Afinal, mapas de estradas, plantas urbanas, cartografias marítimas e o globo terrestre são sinais e formas de localização do homem. A artista utiliza-os de forma conceitual, sem esquecer a plas-ticidade inerente às suas formas. Assim, uma série de desenhos de mares ganha tons de azuis e dos rios, verdes. Na série dos Mares, à primeira vista saltam as referências à gravura japonesa de Hokusai. As vagas do gravador japonês se encrespam numa alusão ao sublime; as vagas dos mares de Rosana Ricalde são feitas dos próprios nomes dos rios, mar Egeu, Vermelho, Mediterrâneo, etc., escritos em filigrana. Também as correntezas dos rios brasileiros são feitos dos seus nomes. Os mares e rios de Rosana Ricalde têm a leveza de Hokusai na forma; a essência do espírito de continuidade de Nietzsche e a poética lingüística da repetição de Guimarães Rosa.

Concluindo estas observações sobre a obra da artista empreendo uma leitura aproximativa do “eu preciso destas palavras escritas”, de Arthur Bispo do Rosário. Tanto em Bispo do Rosário quanto em Rosana Ricalde há um frêmito de enunciação de tudo que está no mundo, desde lu-gares, nomes de pessoas, se homens ou mulheres, suas designações – poetas, médicos, musas, anônimos, enfermeiros – sujeitos da história. Devemos enxergar suas obras como uma biblioteca universal, aberta, afetiva, como a de Jorge Luis Borges. Englobando tempo, memória, pesso-as, lugares, ela é o corolário do verdadeiro artista. Ao necessitar das palavras escritas, Bispo do Rosário se apresenta ao mundo; Rosana Ricalde apresenta o mundo. Em ambos, há verdade em contemplar o mundo, apenas enunciando-o.

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As palavras compartilhadas de Rosana Ricalde

“Eu preciso destas palavras escritas”. Arthur Bispo do Rosário

Enveredar pelo território da filosofia da linguagem é usar as premissas de Ludwig Wittgenstein, que definiu que a função da linguagem é descrever a realidade, porque, a rigor, nada pode ser dado fora da linguagem. Pensamento e linguagem são uma e a mesma coisa para Wittgenstein; o pensamento é constituído de proposições complexas, que ligam entre si nomes, signos simples dos objetos. Não é possível retratar as semelhanças entre um retrato e o objeto retratado, tam-bém não é possível dizer, expressar mediante enunciados a forma lógica comum à linguagem e à realidade. Esta, a linguagem apenas se mostra, não se diz.

Enveredar então pelas artes plásticas por meio de sua relação com a linguagem é uma tarefa her-cúlea. Se a palavra, ou melhor, o signo verbal foi utilizado no passado por cubistas, dadaístas e futuristas apenas como ícones, é no campo da arte conceitual que este verá evidenciado seu sig-nificante. Quando pintou Ceci n´est pas une pipe, René Magritte promoveu o deslocamento do signo lingüístico do campo puramente visual para o campo semântico epistemológico. Magritte inaugura a arte conceitual ao incorporar a lingüística de Wittgenstein ao espaço pictórico.

A Pipe de Magritte e, posteriormente, a Chair de Joseph Kosuth confirmam a assertiva de Mau-rice Merleau-Ponty de que a palavra não é o “signo” do pensamento, se compreendermos como tal um fenômeno que anuncia outro, como a fumaça anuncia o fogo. A palavra e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se uma e outro fossem dados tematicamente; na realidade estão

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envolvidos uma no outro, o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido. Em A prosa do mundo, Merleau-Ponty defende que tudo se resume aos substantivos, estes são a forma como compreendemos as coisas, i.e. são a essência do mundo.

Poderíamos afirmar que a obra da artista Rosana Ricalde busca essa essência do mundo na me-dida em que cataloga aquilo que está no mundo; ou o que chamamos de mundo, usando a ex-pressão de Heidegger. Em Ser e tempo, o propósito do filósofo foi trazer à luz o que significa ser para o homem, ou como é ser. Assim, Rosana dá significado ao mundo a partir dos substantivos próprios – nomes de pessoas, lugares, espaços. Ao operar uma antropogeografia, a artista cria uma tessitura para a humanidade, coisificando o mundo. Assim como a história, a cultura, em suas variantes lingüística, literária ou filosófica, aparece na obra de Rosana Ricalde como base para uma construção plástica calcada numa imagética em que o significante e o significado são os mesmos. Mas sua obra não se restringe à semiótica, incorpora a poesia, a arte e a história da arte local e universal como evidência que faz arte e não lingüística ou semiótica.

Destarte, um texto autodescritivo de um poeta serve de pretexto à construção de uma superfície geométrica, aparentemente monocromática, que nos remete às pinturas abstratas. Aos nos apro-ximarmos da obra, percebemos que as imagens são compostas de letras de fitas rotuladoras. Cha-

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madas de Auto-retratos, essas “pinturas mecânicas”, nas cores amarelo, azul, vermelho, verde e negro, são como composições modernistas, retas e angulares, um modelo pictórico reducionista de um autor, como nas pinturas de Malevich. Nesses Auto-retratos – poemas de Manuel Ban-deira, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Graciliano Ramos e Augusto Massi –, a artista busca a (auto)descrição desses gigantes incontestes da poesia e da prosa. Esses trabalhos despertam nosso interesse em saber como eles se vêem e como os vemos e, para além do seu significado, são espelhos cegos de suas vozes.

O modernismo, ou melhor, as vozes modernistas aparecem também em outra série, a dos Ma-nifestos. Nestes, Rosana Ricalde apropria-se dos motes que mudaram os rumos da arte brasi-leira, desde o Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, o manifesto Ruptura, também o Neoconcreto e, por fim, o Objeto, este último pertencente ao artista Waldemar Cordeiro. O primeiro manifesto Dada também interessa à artista e é associado aos manifestos brasileiros pela sua importância histórica e conceitual, pois acabou por abrir território para todos os outros ma-nifestos. Em todos esses trabalhos o que se torna evidente é a intervenção da artista, apagando ou sublinhando o significado das palavras, criando uma dislexia semântica no espectador.

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Nos Contra-poemas a artista articula antagonismos existentes na linguagem a partir da alternân-cia dos fundos negros e brancos; no plano do significado, altera o sentido da poesia ao substituir as palavras do poeta por um poema feito por seus antônimos. Ao substituir não somente as pa-lavras, mas também o sentido da ação, a artista altera radicalmente o significado da obra. Esse mecanismo de alteração de significantes e significados é uma constante em sua obra. O jogo visual na série de trabalhos dos Provérbios – obras feitas em pinturas com frases coloridas para serem lidas com óculos coloridos (em vermelho ou azul) é uma verdadeira gestalt. A artista cria interferência nos significados à medida que ao trocarmos de uma cor para outra, “apagamos” visualmente letras e palavras que podem ser vistas a olho nu. As trocas visuais e as interferências nos significados são para a artista uma forma de abrir o canal de percepção do espectador. Essa gestalt, em que o espectador pode compor seu objeto final, funciona como um random walk da palavra, afinal, como afirma Wittgenstein, as palavras enunciam o mundo.

A lingüística e a cartografia são complementares na obra de Rosana Ricalde. Mapas de cidades, globos terrestres, labirintos, etc. são espaços de reconhecimento topográfico; mas são enuncia-dos lingüísticos para responder a grande questão ontológica. Gaston Bachelard na sua A poética do espaço procedeu a uma reflexão singular sobre o espaço, criando uma topo-análise ao falar de uma poética do espaço dando à palavra a missão de elevar o objeto de sua análise, i.e. lugares e espaços, ao nível poético. Os principais espaços preferidos pelo homem, como a casa, o sótão, o porão, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha, etc. são espaços da imensidão íntima. A poesia bachelardiana aprofunda o sentido de relação metafísica e psicológica do espaço sobre o homem. Sua poesia pode e deve ser participada pelos seres humanos atentos, sensíveis, imagi-nativos e abertos ao devaneio. Para Bachelard as coisas do quotidiano devem ser redimidas pela atenção, pela nova significação a que devemos dar-lhes, devendo ser vistas em sua profundidade, pois fazem parte da nossa percepção mais íntima.

Onde será que isso começa / A correnteza sem paragem / O viajar de uma viagem / A outra viagem que não cessa / Cheguei ao nome da cidade / Não a cidade mesma espessa / Rio que não é Rio: imagens / Essa cidade me atravessa / Ôôôô êh boi êh bus / Será que tudo me interessa / Cada coisa é demais e tantas / Quais eram minhas esperanças / O que é ameaça e o que é promessa / Ruas voando sobre ruas / Letras demais, tudo mentindo / O Redentor que horror, que lindo / Meninos maus, mulheres nuas / Ôôôô êh boi êh bus / A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio / Será que pra meu próprio Rio / Este Rio é mais mar que mar / Ôôôô êh boi êh bus / Sertão ê mar. Caetano Veloso

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Linha d’águaEm Alagoas me achei, achando o MAR

Desde então o conservo em mim, aberto,Porém nunca aprendi a soletrar

A insone cadência dos seus metros.Talvez porque o MAR, nervoso e inquieto,

No pacífico silêncio onde Deus viça,Não escreve nem repete o mesmo verso

No seu caderno de águas movediças.Achando o MAR me fiz cúmplice da beleza,

Mas ao me consumir em suas chamas

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Soube que a alma é uma onda de incertezaPresa na cela de nossa areia humana.

Aprendi com o Mar a ser constanteE a aceitar, sem pudor, as coisas frágeis:

A fazer da inconstância dos instantesLembranças o mais possível perduráveis.

Entregue ao MAR, pago ao MAR o meu tributo,E a o escutá-lo na minha humana cela,

Sinto que o MAR, fremido longe e oculto,Me conta coisas que a ninguém mais revela.

Jaci Bezerra, Linha d’água

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A vastidão de mundo é um tema que interessa aos artistas. Explorado pelos grandes autores uni-versais – de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa às Cidades invisíveis de Ítalo Calvino, a vastidão ocupa o centro das preocupações humanas. Só é possível conhecer a vastidão à medida que a percorremos através das viagens. As viagens por cidades, rotas marítimas ou fluviais, são espaços da memória e estes são os verdadeiros motivos de interesse de Rosana Ricalde. Em al-guns trabalhos, a artista cria um mapa urbano feito de ruas de palavras, usando o texto de Ítalo Calvino; noutros cria uma carta marítima imaginária das viagens de Marco Polo, um labirinto feito de um emaranhado de palavras para lembrar as rotas oceânicas percorridas pelo navegador. Todos são espaços de reconhecimento e perdição, afeição e tristeza, história e invenção, litera-tura e fantástico, descobrimentos e desaparecimentos, vida e morte.

Afinal, mapas de estradas, plantas urbanas, cartografias marítimas e o globo terrestre são sinais e formas de localização do homem. A artista utiliza-os de forma conceitual, sem esquecer a plas-ticidade inerente às suas formas. Assim, uma série de desenhos de mares ganha tons de azuis e dos rios, verdes. Na série dos Mares, à primeira vista saltam as referências à gravura japonesa de Hokusai. As vagas do gravador japonês se encrespam numa alusão ao sublime; as vagas dos mares de Rosana Ricalde são feitas dos próprios nomes dos rios, mar Egeu, Vermelho, Mediterrâneo, etc., escritos em filigrana. Também as correntezas dos rios brasileiros são feitos dos seus nomes. Os mares e rios de Rosana Ricalde têm a leveza de Hokusai na forma; a essência do espírito de continuidade de Nietzsche e a poética lingüística da repetição de Guimarães Rosa.

Concluindo estas observações sobre a obra da artista empreendo uma leitura aproximativa do “eu preciso destas palavras escritas”, de Arthur Bispo do Rosário. Tanto em Bispo do Rosário quanto em Rosana Ricalde há um frêmito de enunciação de tudo que está no mundo, desde lu-gares, nomes de pessoas, se homens ou mulheres, suas designações – poetas, médicos, musas, anônimos, enfermeiros – sujeitos da história. Devemos enxergar suas obras como uma biblioteca universal, aberta, afetiva, como a de Jorge Luis Borges. Englobando tempo, memória, pesso-as, lugares, ela é o corolário do verdadeiro artista. Ao necessitar das palavras escritas, Bispo do Rosário se apresenta ao mundo; Rosana Ricalde apresenta o mundo. Em ambos, há verdade em contemplar o mundo, apenas enunciando-o.

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Diante dos trabalhos de Rosana Ricalde, não posso deixar de me remeter à busca da língua per-feita. Tal pesquisa ocupou os gramáticos e os lingüistas pelo menos até o alvorecer do século XIX, quando o projeto de uma Língua Internacional Auxiliar� ganha força por refletir de forma mais pragmática o fenômeno inevitável da globalização que, desde aquela época, se insinuava (Eco, 2001)2. Contudo, antes de tocar neste assunto, gostaria primeiro de estabelecer sumaria-

mente uma diferença conceitual entre forma e imagem que nos ser

á útil para lançar um ponto de vista sobre a poética da artista.

Entendo por forma, a estrutura que permite uma imagem se configurar no espaço (e enquanto espaço), quer este seja real (superfície do papel, tela ou o meio ambiente), virtual (matrizes di-gitais) ou simplesmente mental (nossa interioridade ou, por assim dizer, espaços adimensionais subjetivos); por imagem, a projeção de um objeto (real ou ideal) sobre um anteparo qualquer, seja este, do mesmo modo, material, virtual ou apenas nossa mente. Fica evidente que toda imagem, para se instaurar, deve assumir uma forma e, em revanche, toda forma revela uma imagem. Desde já, forma e imagem são indissociáveis conquanto constituam uma só instância de conteúdo.

1 Uma tal língua foi pensada para servir de intermediária entre as diferentes línguas faladas pelos diferentes povos. Foram propostos vários projetos de línguas auxiliares, entre eles, o mais conhecido é o do Esperanto.

2 A busca da língua perfeita. Bauru : EDUSC.

Luciano Vinhosa

O signo total

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É fato notável que a fonte de inspiração da artista tem sido quase sempre os livros – e mais par-ticularmente os textos que eles contêm. Por esta razão, em grande parte dos trabalhos de Ro-sana, percebe-se uma passagem da forma literária para a forma visual. Apropriando-se de textos poéticos ou teóricos, a artista destrói sua estrutura gramatical para, em seguida, transformá-la em uma outra, predominantemente visual. Com efeito, observam-se também certos atravessa-mentos intencionais entre imagem poética e visual. A palavra ou os segmentos de frase que ainda persistem, se recontextualizam em uma nova arquitetura, em um novo sentido, agora epidérmi-co. Parece-me que, na superfície onde o signo emerge, forma e imagem estão em conexão direta com idéia.

É assim, por exemplo, em “As Viagens de Marco Polo”, onde a artista, apropriando-se do tex-to do navegante veneziano, extrai dele as linhas impressas para, em seguida, emaranhá-las em inúmeras rotas imaginárias. Dos desejos mais imponderáveis do aventureiro parecem emergir formas aleatórias que nos dão a ver a imagem insana de sua procura. Do mesmo modo, este pro-cedimento pode ser observado no trabalho “As Cidades e o Desejo” inspirado nos contos de Ítalo Calvino reunidos no livro As Cidades Invisíveis. Neste caso, Rosana recorta dele as palavras e as dispõe ao longo das ruas representadas nas cartas urbanas de diversas cidades. Surge-nos então, um entrecruzar de vocábulos desconexos que desenham um mapa urbano. Não seria este trabalho uma possível metáfora de nossas adversidades cotidianas? Da cidade como lugar do de-solamento e ao mesmo tempo dos encontros fortuitos? Em “As Palavras e as Coisas”, realizado a partir do texto homônimo de Michel Foucault, a operação se assemelha. O texto sendo ele mes-mo uma trama complexa de significações, é recortado em tiras, dobrado e trançado pela artista, de modo a estruturar pequenos cubos. Agora, antes que afirmar a palavra como coisa, a artista, de maneira mais franca, parece querer aproximar o signo da coisa, de modo a fazer coincidir o objeto que realiza com a representação mental que ele gera. Neste caso, a idéia não está separada do ato que a reifica: trançar, dobrar e elevar ao cubo.

Esta intenção me parece mais clara quando olho para série “Mares” ou para “Persisto”. Embora mantendo a mesma passagem da forma literária para a visual e o mesmo atravessamento entre a imagem legível e a visível, já observado nos trabalhos anteriores, a artista empreende um ligeiro deslocamento no procedimento. Em “Mares”, por exemplo, recolhendo seus nomes do planis-fério global, ela os reescreve caprichosamente sobre extensas superfícies, ora descontínuas, de papel arroz. A atitude observada é de entrega e abandono. Tudo se passa como se, em um estado de concentração profunda, seu corpo fosse subitamente tomado por uma instância autônoma

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que faz com que ele reencontre a freqüência da natureza. Conduzido pelo fluxo dos eventos na-turais, seu corpo pode esquecer-se e, assim, deixar de lado toda individualidade, toda particulari-dade que o singulariza, para agregar-se a uma espécie de consciência total. Neste estado, Rosana deixa que sua mente decida, de forma quase voluntariosa, o percurso que sua mão vai tomar para configurar o mar que ela procura. Deslizando sobre a superfície do papel, sua mão se deixa levar docilmente pela idéia que grava ali seus sulcos. Também em “Persisto”, onde a artista escreve repetidas vezes esta palavra até o limite da exaustão, parando somente quando o grafite do lápis se esgota, pode-se observar a mesma postura de abandono. A mão da artista sendo uma extensão de sua mente, o desenho será antes uma marca, verdadeiramente traços da idéia sobre o papel. Nestes trabalhos, corpo e espírito, me parecem, têm finalmente restituídas sua integridade.

Para Rosana, a palavra escrita é antes caligrafia que símbolo, quer dizer, seu sentido reside mais na epiderme do que na convenção do signo. Não é por acaso que os trabalhos da artista têm recurso constante ao caligrama, artifício poético aparentando ao ideograma porque, como ele, remete-se a idéias e a conceitos. Porém, ao contrário deste último, o caligrama escapa a todo contrato lingüístico, para afirmar-se na visualidade que ele constrói por si mesmo. É sobretudo

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neste sentido que os trabalhos de Rosana me fazem reportar a certos aspectos da pesquisa da lín-gua perfeita. Esta não é de maneira nenhuma a língua que todos poderiam falar e compreender, mas aquela que refletiria em sua substância a essência da própria coisa que ela designa, diz ou conceitua (Eco, 2001)3. Neste caso, seria a língua cujas formas e imagens estariam em perfeita conexão com as idéias que ela exprime. Donde a língua perfeita seria também capaz de eliminar todos os tipos de irregularidades que as línguas imperfeitas trariam em seu bojo, por exemplo, esta de estarem circunscritas pelo idioma e, por conseguinte, inscritas em uma cultura singular. A língua perfeita aspiraria a universalidade sem, contudo se propor a ser a língua universal, mas antes a língua da consciência total.

Dentre as línguas perfeitas, propôs-se a língua sem som, portanto puramente visual. A crença em uma língua perfeita das imagens se funda na convicção de que a imagem, sendo em si mesma portadora das qualidades daquilo que ela representa, extrapolaria em seu significado toda cir-cunscrição cultural. O fato é que, como observa Eco4, a linguagem visual pode exprimir diversos significados ao mesmo tempo e neste sentido ela encontra seu limite, porque seria ambígua e imperfeita enquanto código.

Se, ao contrário, pudéssemos pensar o signo visual não como código ou uma língua, mas antes, por sua instância epidérmica, veríamos que sua própria visualidade (forma + imagem) seria seu conteúdo perfeito porque indissociável de sua idéia estética. Então, no lugar da língua perfeita teríamos o signo total. Antes que significar, ele nos faz ver primeiramente e, sobretudo suas qualidades. Quando olho o trabalho de Rosana Ricalde, é assim que o vejo: exteriorizado sobre a superfície que lhe suporta, ele é para mim pura aparência, a própria consciência de sua visuali-dade que, emergindo sobre a superfície, me faz imaginar. Diante do signo total, não posso deixar de me surpreender por sua beleza, deveras uma forma de consciência total para além de todo significado. Seu sentido é estético.

3 Op. cite

4 Idem (p. 215-216)

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Diante dos trabalhos de Rosana Ricalde, não posso deixar de me remeter à busca da língua per-feita. Tal pesquisa ocupou os gramáticos e os lingüistas pelo menos até o alvorecer do século XIX, quando o projeto de uma Língua Internacional Auxiliar� ganha força por refletir de forma mais pragmática o fenômeno inevitável da globalização que, desde aquela época, se insinuava (Eco, 2001)2. Contudo, antes de tocar neste assunto, gostaria primeiro de estabelecer sumaria-

mente uma diferença conceitual entre forma e imagem que nos ser

á útil para lançar um ponto de vista sobre a poética da artista.

Entendo por forma, a estrutura que permite uma imagem se configurar no espaço (e enquanto espaço), quer este seja real (superfície do papel, tela ou o meio ambiente), virtual (matrizes di-gitais) ou simplesmente mental (nossa interioridade ou, por assim dizer, espaços adimensionais subjetivos); por imagem, a projeção de um objeto (real ou ideal) sobre um anteparo qualquer, seja este, do mesmo modo, material, virtual ou apenas nossa mente. Fica evidente que toda imagem, para se instaurar, deve assumir uma forma e, em revanche, toda forma revela uma imagem. Desde já, forma e imagem são indissociáveis conquanto constituam uma só instância de conteúdo.

1 Uma tal língua foi pensada para servir de intermediária entre as diferentes línguas faladas pelos diferentes povos. Foram propostos vários projetos de línguas auxiliares, entre eles, o mais conhecido é o do Esperanto.

2 A busca da língua perfeita. Bauru : EDUSC.

Luciano Vinhosa

O signo total

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É fato notável que a fonte de inspiração da artista tem sido quase sempre os livros – e mais par-ticularmente os textos que eles contêm. Por esta razão, em grande parte dos trabalhos de Ro-sana, percebe-se uma passagem da forma literária para a forma visual. Apropriando-se de textos poéticos ou teóricos, a artista destrói sua estrutura gramatical para, em seguida, transformá-la em uma outra, predominantemente visual. Com efeito, observam-se também certos atravessa-mentos intencionais entre imagem poética e visual. A palavra ou os segmentos de frase que ainda persistem, se recontextualizam em uma nova arquitetura, em um novo sentido, agora epidérmi-co. Parece-me que, na superfície onde o signo emerge, forma e imagem estão em conexão direta com idéia.

É assim, por exemplo, em “As Viagens de Marco Polo”, onde a artista, apropriando-se do tex-to do navegante veneziano, extrai dele as linhas impressas para, em seguida, emaranhá-las em inúmeras rotas imaginárias. Dos desejos mais imponderáveis do aventureiro parecem emergir formas aleatórias que nos dão a ver a imagem insana de sua procura. Do mesmo modo, este pro-cedimento pode ser observado no trabalho “As Cidades e o Desejo” inspirado nos contos de Ítalo Calvino reunidos no livro As Cidades Invisíveis. Neste caso, Rosana recorta dele as palavras e as dispõe ao longo das ruas representadas nas cartas urbanas de diversas cidades. Surge-nos então, um entrecruzar de vocábulos desconexos que desenham um mapa urbano. Não seria este trabalho uma possível metáfora de nossas adversidades cotidianas? Da cidade como lugar do de-solamento e ao mesmo tempo dos encontros fortuitos? Em “As Palavras e as Coisas”, realizado a partir do texto homônimo de Michel Foucault, a operação se assemelha. O texto sendo ele mes-mo uma trama complexa de significações, é recortado em tiras, dobrado e trançado pela artista, de modo a estruturar pequenos cubos. Agora, antes que afirmar a palavra como coisa, a artista, de maneira mais franca, parece querer aproximar o signo da coisa, de modo a fazer coincidir o objeto que realiza com a representação mental que ele gera. Neste caso, a idéia não está separada do ato que a reifica: trançar, dobrar e elevar ao cubo.

Esta intenção me parece mais clara quando olho para série “Mares” ou para “Persisto”. Embora mantendo a mesma passagem da forma literária para a visual e o mesmo atravessamento entre a imagem legível e a visível, já observado nos trabalhos anteriores, a artista empreende um ligeiro deslocamento no procedimento. Em “Mares”, por exemplo, recolhendo seus nomes do planis-fério global, ela os reescreve caprichosamente sobre extensas superfícies, ora descontínuas, de papel arroz. A atitude observada é de entrega e abandono. Tudo se passa como se, em um estado de concentração profunda, seu corpo fosse subitamente tomado por uma instância autônoma

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que faz com que ele reencontre a freqüência da natureza. Conduzido pelo fluxo dos eventos na-turais, seu corpo pode esquecer-se e, assim, deixar de lado toda individualidade, toda particulari-dade que o singulariza, para agregar-se a uma espécie de consciência total. Neste estado, Rosana deixa que sua mente decida, de forma quase voluntariosa, o percurso que sua mão vai tomar para configurar o mar que ela procura. Deslizando sobre a superfície do papel, sua mão se deixa levar docilmente pela idéia que grava ali seus sulcos. Também em “Persisto”, onde a artista escreve repetidas vezes esta palavra até o limite da exaustão, parando somente quando o grafite do lápis se esgota, pode-se observar a mesma postura de abandono. A mão da artista sendo uma extensão de sua mente, o desenho será antes uma marca, verdadeiramente traços da idéia sobre o papel. Nestes trabalhos, corpo e espírito, me parecem, têm finalmente restituídas sua integridade.

Para Rosana, a palavra escrita é antes caligrafia que símbolo, quer dizer, seu sentido reside mais na epiderme do que na convenção do signo. Não é por acaso que os trabalhos da artista têm recurso constante ao caligrama, artifício poético aparentando ao ideograma porque, como ele, remete-se a idéias e a conceitos. Porém, ao contrário deste último, o caligrama escapa a todo contrato lingüístico, para afirmar-se na visualidade que ele constrói por si mesmo. É sobretudo neste sentido que os trabalhos de Rosana me fazem reportar a certos aspectos da pesquisa da lín-gua perfeita. Esta não é de maneira nenhuma a língua que todos poderiam falar e compreender, mas aquela que refletiria em sua substância a essência da própria coisa que ela designa, diz ou

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conceitua (Eco, 2001)3. Neste caso, seria a língua cujas formas e imagens estariam em perfeita conexão com as idéias que ela exprime. Donde a língua perfeita seria também capaz de eliminar todos os tipos de irregularidades que as línguas imperfeitas trariam em seu bojo, por exemplo, esta de estarem circunscritas pelo idioma e, por conseguinte, inscritas em uma cultura singular. A língua perfeita aspiraria a universalidade sem, contudo se propor a ser a língua universal, mas antes a língua da consciência total.

Dentre as línguas perfeitas, propôs-se a língua sem som, portanto puramente visual. A crença em uma língua perfeita das imagens se funda na convicção de que a imagem, sendo em si mesma portadora das qualidades daquilo que ela representa, extrapolaria em seu significado toda cir-cunscrição cultural. O fato é que, como observa Eco4, a linguagem visual pode exprimir diversos significados ao mesmo tempo e neste sentido ela encontra seu limite, porque seria ambígua e imperfeita enquanto código.

Se, ao contrário, pudéssemos pensar o signo visual não como código ou uma língua, mas antes, por sua instância epidérmica, veríamos que sua própria visualidade (forma + imagem) seria seu conteúdo perfeito porque indissociável de sua idéia estética. Então, no lugar da língua perfeita teríamos o signo total. Antes que significar, ele nos faz ver primeiramente e, sobretudo suas qualidades. Quando olho o trabalho de Rosana Ricalde, é assim que o vejo: exteriorizado sobre a superfície que lhe suporta, ele é para mim pura aparência, a própria consciência de sua visuali-dade que, emergindo sobre a superfície, me faz imaginar. Diante do signo total, não posso deixar de me surpreender por sua beleza, deveras uma forma de consciência total para além de todo significado. Seu sentido é estético.

3 Op. cite

4 Idem (p. 215-216)

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Guilherme bueno

Horizonte Azul

Rosana Ricalde desenvolve uma série de trabalhos que tem como pont≤o de partida mares e oce-anos. Uma cartografia imaginária (se é que podemos atestar que exista uma literalmente real) constitui-se pela agregação de seus nomes, formando um território de palavras. Nota-se, desde o início essa estranha condição daquele espaço entre, ou antes sua matéria, que parece referendar este vazio aberto desde o desmembramento da Pangea – ocupado pelas águas do oceano –, tor-nar-se um continente, não só visual, mas, à semelhança de Maiakovsky, um continente poético. Através do alinhamento e costura das palavras, os mares se tornam terra firme, um solo que, de fato, palmilha e se assenta sobre a superfície do papel.

Indo adiante, contudo, da relação que a artista estabelece entre a coisa e sua representação grá-fico-verbal, emergem outras inter-relações atentas aos desafios de construir um espaço. A sem-pre presente tensão entre a palavra e a coisa que ela representa, parece intensificar seu acento. Afinal, se por um lado, a palavra se torna a própria coisa, uma vez que ela a um só tempo visual e verbalmente a faz real ou imaginária (mas sempre é quem lhe dá consistência), ela também é por si só,uma entidade material, .Tanto por sua existência enquanto tal, prévia às significações con-textuais que adquire, quanto por seu próprio modo de efetivar-se, isto é, seu processo objetivo de inscrição no mundo, que pode ir, desde a sua moldagem plástica por uma fôrma, ou a solidifi-cação da tinta liquefeita sobre a folha, a marca impressa em uma fita, o mosaico digital de zero e um na tela de um computador ou qualquer outra modalidade que se puder imaginar.

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Tais oceanos, portanto, assumem, sob este ângulo a própria realidade de sua imagem: pois, se as palavras são tão reais quanto aquilo que espelham, elas migram da sombra do representado para se tornarem a geografia da sombra; seus oceanos se transmutam no desenho de uma silhue-ta, a qual, justamente por esta condição, reafirma ainda mais sua presença enquanto algo que se desvencilha de seu conteúdo referencial, para admitir, naquilo que retém de simulacro, sua identidade. E, mesmo que se queira levar ao extremo a hipótese da realidade irrenunciável destes oceanos / continentes, pode-se retornar à sua materialidade enfática, uma vez que alguns dos trabalhos nascem factualmente líquidos – isto é, primariamente dependem do escorrer da tinta; um oceano de mililitros, portanto (e aqui poderíamos pensá-las, inclusive, ao lado das Liquid Words, de Ruscha).

Todas estas vias entrecruzadas inauguram, entretanto, mais uma, também evocada nos trabalhos. As palavras, no universo da língua, também formam mares incomensuráveis: um labirinto e uma vastidão titânica sem início, fim ou centro, talvez algumas margens. A aventura da palavra con-siste em saber atravessar ou em aprender a deixar se perder, permitir desmanchar a máscara dos significados nesta extensão infinita. Se a visualidade (ou, em alguns casos, o tato) é a contrapar-tida à palavra para permitir que seu sentido seja oferecido, seja lido – estranhamente ela é forma e imagem – sua caligrafia sintomática, mas não expressionista, faz ela dissolver-se em seu ritmo crispado. O significado lingüístico confirma-se e volatiliza-se, conjuntamente ao desenvolver da escrita e as equivalências, se tornam similitudes, coincidências.

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Guilherme bueno

Horizonte Azul

Rosana Ricalde desenvolve uma série de trabalhos que tem como pont≤o de partida mares e oce-anos. Uma cartografia imaginária (se é que podemos atestar que exista uma literalmente real) constitui-se pela agregação de seus nomes, formando um território de palavras. Nota-se, desde o início essa estranha condição daquele espaço entre, ou antes sua matéria, que parece referendar este vazio aberto desde o desmembramento da Pangea – ocupado pelas águas do oceano –, tor-nar-se um continente, não só visual, mas, à semelhança de Maiakovsky, um continente poético. Através do alinhamento e costura das palavras, os mares se tornam terra firme, um solo que, de fato, palmilha e se assenta sobre a superfície do papel.

Indo adiante, contudo, da relação que a artista estabelece entre a coisa e sua representação grá-fico-verbal, emergem outras inter-relações atentas aos desafios de construir um espaço. A sem-pre presente tensão entre a palavra e a coisa que ela representa, parece intensificar seu acento. Afinal, se por um lado, a palavra se torna a própria coisa, uma vez que ela a um só tempo visual e verbalmente a faz real ou imaginária (mas sempre é quem lhe dá consistência), ela também é por si só,uma entidade material, .Tanto por sua existência enquanto tal, prévia às significações con-textuais que adquire, quanto por seu próprio modo de efetivar-se, isto é, seu processo objetivo de inscrição no mundo, que pode ir, desde a sua moldagem plástica por uma fôrma, ou a solidifi-cação da tinta liquefeita sobre a folha, a marca impressa em uma fita, o mosaico digital de zero e um na tela de um computador ou qualquer outra modalidade que se puder imaginar.

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Tais oceanos, portanto, assumem, sob este ângulo a própria realidade de sua imagem: pois, se as palavras são tão reais quanto aquilo que espelham, elas migram da sombra do representado para se tornarem a geografia da sombra; seus oceanos se transmutam no desenho de uma silhue-ta, a qual, justamente por esta condição, reafirma ainda mais sua presença enquanto algo que se desvencilha de seu conteúdo referencial, para admitir, naquilo que retém de simulacro, sua identidade. E, mesmo que se queira levar ao extremo a hipótese da realidade irrenunciável destes oceanos / continentes, pode-se retornar à sua materialidade enfática, uma vez que alguns dos trabalhos nascem factualmente líquidos – isto é, primariamente dependem do escorrer da tinta; um oceano de mililitros, portanto (e aqui poderíamos pensá-las, inclusive, ao lado das Liquid Words, de Ruscha).

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Todas estas vias entrecruzadas inauguram, entretanto, mais uma, também evocada nos trabalhos. As palavras, no universo da língua, também formam mares incomensuráveis: um labirinto e uma vastidão titânica sem início, fim ou centro, talvez algumas margens. A aventura da palavra con-siste em saber atravessar ou em aprender a deixar se perder, permitir desmanchar a máscara dos significados nesta extensão infinita. Se a visualidade (ou, em alguns casos, o tato) é a contrapar-tida à palavra para permitir que seu sentido seja oferecido, seja lido – estranhamente ela é forma e imagem – sua caligrafia sintomática, mas não expressionista, faz ela dissolver-se em seu ritmo crispado. O significado lingüístico confirma-se e volatiliza-se, conjuntamente ao desenvolver da escrita e as equivalências, se tornam similitudes, coincidências.

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Marisa Flórido Cesar

Exercício da Possibilidade

Um texto que não enfrenta seu balbucio, sua própria afasia... Que não constata a impotência da palavra em se enunciar sem ambigüidades e equívocos... Que não confessa de antemão sua impossibilidade, talvez não mereça sequer a aventura de ser escrito.

Não que ecoe aqui a antiga sentença de Plutarco, emprestada do poeta grego Simonide de Céos, na qual a poesia é pintura falante, a pintura, poesia muda: a imagem requisitaria a palavra, a Pa-lavra clamaria pela imagem. Mas como escrever acerca dos exercícios de Rosana Ricalde sobre os manifestos modernos, sem arriscar-se a reduzir as possibilidades de recepção e os processos significação que justamente a artista faz ampliar ilimitadamente?

Na tensão entre a palavra e a imagem, no cruzamento de suas afasias e discursos, das opacidades e transparências dos duplos da representação, as artes visuais ergueram seu universo. Entre ver e falar, entre o Verbo e a Imagem, o Olho e a Palavra, duelaram antigas e “fraternas” rivais: a pintura e a poesia1. E, nas histórias das artes, essa relação mudaria os termos incessantemente, reivindicaria o mesmo estatuto para as artes irmãs, declararia suas especificidades como o fize-ram Lessing e Greenberg, trocaria de lugar e de materialidades como fariam Mallarmé e Picasso,

1 Se Platão em Fedro repudiaria a Escrita e a Pintura de irmãs, também selaria uma cumplicidade entre ambas con-denando-as O discurso escrito é o “irmão legítimo de outra eloqüência bastarda a pintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos.” Entre outros, Lomazzo, em seu Trattato dell’arte della pittura, scoltura et architettura, Milão, 1585, no-taria mesmo que elas nasceram juntas, sendo quase idênticas em sua natureza profunda, em conteúdo e finalidade. O argumento de Plutarco, por sua vez, é citado por Lessing, em Laocoonte, para corroborar sua teoria sobre a distinção e especificidade de cada arte em torno do tempo e do espaço.

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exporia o nexo arbitrário entre ver e falar como fizeram Magritte e Duchamp.

Entre a escrita e a imagem pictó-rica, entre um objeto qualquer e a palavra que o enuncia, Magrit-te e Duchamp explicitariam a lacuna ou a complexa e arbitrá-ria articulação entre eles. Uma descontinuidade que colocava, a descoberto, a inexistência de um vínculo, na origem, que encerra-ria uma ligação inequívoca entre ver e falar, que nos prometia uma decifração perfeita dos signos, uma tradução precisa de nossas

experiências neste mundo amorfo e enigmático. Estamos ao desabrigo daquela espessura inde-cifrável do Verbo e de seu dom de tudo decifrar, de revelar a verdade do real, de emboscá-la e fazê-la se desvelar das sombras. Assim como anunciou Nietzsche, tal como constatou a palavra fragmentada desenhando o acaso na página branca de Mallarmé.

Entre a palavra e aquilo que ela designa, arquiteta-se um espaço em que se tramam, ao infinito, o visível e o enunciável — todavia inexoravelmente insubordinados e irredutíveis um ao outro, como disse Foucault.

É, talvez, em torno desse colapso, dessa falha fundamental, que se ensaiam os discursos, que se atrevem as escritas, que se confrontam as inumeráveis das leituras que, do texto, o animam. A palavra instala-se entre o silêncio e a imensa possibilidade da interpretação. Exercícios de sua possibilidade.

É também nessa fissura, nesse espaço de complexa urdidura, em que se aventuraram Magritte e Duchamp, a poesia concreta e a arte conceitual, que Rosana Ricalde vai operar, enfrentando a escrita e seu paradoxo: ser a um só tempo imagem e palavra.

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Se a artista escolhe um determinado gênero de texto que orbita o universo histórico da arte, os ma-nifestos da arte moderna, sua opção não é um lance do acaso. Há ali uma intenção de fazer ecoar, dessas grandes narrativas de legitimação da arte como os denominou Arthur Danto2, os múltiplos enunciados por elas recalcados, de fazer fulgurar ali as visibilidades variadas. De exibir dessa his-tória sem finalidade comum em que hoje vivemos: não o fim da História, mas as várias direções possíveis, como uma finalidade dilatada e sem desenlace, uma finalidade plural e sem fim.

Ora, os manifestos são tão presentes na modernidade que a ela se confundem, como dirá Danto. Afinal, se o real revestia-se então de estranhezas, se aos objetos do mundo restava a atribuição fantasmagórica de coisa, como a arte poderia escravizar-se à uma representação mimética de um modelo indecifrável? A insuficiência desse modelo reservava à arte a problematização de seu estatuto ontológico, o fundamento de sua própria verdade.

2 Próximo à definição de Jean-François Lyotard sobre a condição pós-moderna, Arthur Danto identifica o fim da era moderna da arte, e da Arte com o fim da História, ou seja, com a falência dos grandes discursos de legitimação, que têm sua origem mais imediata nas filosofias de Hegel e Marx, denominando como narrativas mestras tanto aos manifestos artísticos quanto a crítica de arte, à exemplo da teoria formalista de Greenberg, essencialista e teleológica. DANTO, Arthur. After the end of art. .Princeton: Princeton University Press, 1997.

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A MORTE ABSOLUTA

MORRER.

MORRER DE CORPO E DE ALMA.

COMPLETAMENTE.

MORRER SEM DEIXAR O TRISTE DESPOJO DA CARNE,

A EXANGUE MÁSCARA DE CERA,

CERCADA DE FLORES,

QUE APODRECERãO – FELIzES! – NUM DIA,

BANHADA DE LÁGRIMAS

NASCIDAS MENOS DA SAUDADE DO QUE DO ESPANTO DA MORTE.

MORRER SEM DEIXAR PORVENTURA UMA ALMA ERRANTE...

A CAMINHO DO CÉU?

MAS QUE CÉU PODE SATISFAzER TEU SONHO DE CÉU?

MORRER SEM DEIXAR UM SULCO, UM RISCO, UMA SOMBRA,

A LEMBRANçA DE UMA SOMBRA

EM NENHUM CORAçãO, EM NENHUM PENSAMENTO,

EM NENHUMA EPIDERME.

MORRER TãO COMPLETAMENTE

QUE UM DIA AO LEREM O TEU NOME NUM PAPEL

PERGUNTEM: “QUEM FOI?...”

MORRER MAIS COMPLETAMENTE AINDA,

– SEM DEIXAR SEQUER ESSE NOME.

(Manuel Bandeira)

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A VIDA RELATIVA

VIVER

VIVER DE ESPÍRITO E DE CORPO

PARCIALMENTE.

VIVER DEIXANDO O ALEGRE DESPOJO DA ALMA

A VIGOROSA MÁSCARA DE CERA

CERCADA DE FLORES,

QUE REGENERARãO –TRISTES –NUMA NOITE,

SECA DE RISOS

MORTAS MAIS DA SAUDADE DO QUE DA TRANQUILIDADE DA VIDA

VIVER DEIXANDO CERTAMENTE UM CORPO SEDENTÁRIO

A CAMINHO DA TERRA?

MAS QUE TERRA PODE SATISFAzER TEU PESADELO DE TERRA?

VIVER DEIXANDO UM SULCO, UM RISCO, UMA LUz,

A DESLEMBRANçA DE UMA LUz

EM TODO CORAçãO, EM TODO PENSAMENTO,

EM TODA CARNE

VIVER TãO RELATIVAMENTE

QUE UMA NOITE AO LEREM TEU NOME NUM PAPEL

NãO PERGUNTEM: QUEM NãO FOI?

VIVER MENOS RELATIVAMENTE AINDA,

- DEIXANDO SEQUER ESSE NOME.

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DESESPERANçA

ESTA MANHã TEM A TRISTEzA DE UM CREPúSCULO.

COMO DóI UM PESAR EM CADA PENSAMENTO!

AH, QUE PENOSA LASSIDãO EM CADA MúSCULO. . .

O SILêNCIO É TãO LARGO, É TãO LONGO, É TãO LENTO

QUE DÁ MEDO... O AR, PARADO, INCOMODA, ANGUSTIA...

DIR-SE-IA QUE ANDA NO AR UM MAU PRESSENTIMENTO.

ASSIM DEVERÁ SER A NATUREzA UM DIA,

QUANDO A VIDA ACABAR E, ASTRO APAGADO,

RODAR SOBRE SI MESMA ESTÉRIL E VAzIA.

O DEMôNIO SUTIL DAS NEVROSES ENTERRA

A SUA AGULHA DE AçO EM MEU CRâNIO DOÍDO.

OUçO A MORTE CHAMAR-ME E ESSE APELO ME ATERRA...

MINHA RESPIRAçãO SE FAz COMO UM GEMIDO.

JÁ NãO ENTENDO A VIDA, E SE MAIS A APROFUNDO,

MAIS A DESCOMPREENDO E NãO LHE ACHO SENTIDO.

POR ONDE ALONGUE O MEU OLHAR DE MORIBUNDO,

TUDO A MEUS OLHOS TOMA UM DOLOROSO ASPECTO:

E ERRO ASSIM REPELIDO E ESTRANGEIRO NO MUNDO.

VEJO NELE A FEIçãO FRIA DE UM DESAFETO.

TEMO A MONOTONIA E APREENDO A MUDANçA.

SINTO QUE A MINHA VIDA É SEM FIM, SEM OBJETO...

- AH, COMO DóI VIVER QUANDO FALTA A ESPERANçA!

(Manuel Bandeira)

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ESPERANçA

ESSA NOITE NãO TEM A ALEGRIA DE UMA AURORA

COMO NãO DóI UM DELEITE EM CADA PENSAMENTO! AH,

QUE AGRADÁVEL TENSãO EM CADA MúSCULO...

O BARULHO É TãO ESTREITO, É TãO CURTO, É TãO RÁPIDO QUE

DÁ CORAGEM...O AR, EM MOVIMENTO, AGRADA, TRANQUILIzA...

DIR-SE –IA QUE SE DETEM NO AR UM BOM PRESSENTIMENTO.

ASSIM NãO DEVERÁ SER A NATUREzA UMA NOITE,

QUANDO A MORTE COMEçAR E, ASTRO ACESO,

PARAR SOBRE OS OUTROS FECUNDA E PLENA

O DEUS DESAJEITADO DAS TRANQUILIDADES DESENTERRA

A SUA AGULHA DE AçO DE MEU CRâNIO SãO.

NãO OUçO A VIDA CHAMAR-ME E ESTE NãO APELO ME ENCORAJA

MINHA RESPIRAçãO NãO SE FAz COMO UM BRADO.

JÁ ENTENDO A MORTE, E SE MENOS A DESARRAIGO,

MENOS A COMPREENDO E LHE ACHO SENTIDO.

POR ONDE ENCOLHA O MEU OLHAR DE REVIGORADO,

NADA A MEUS OLHOS TOMA UM PRAzEROSO ASPECTO:

E ACERTO ASSIM ACOLHIDO E AUTóCTONE NO MUNDO.

NãO VEJO NELE A FEIçãO QUENTE DE UM AFETO.

NãO TEMO O PROGRESSO E NãO APREENDO A IMUTAABILIDADE

NãO SINTO QUE A MINHA MORTE NãO É FINITA, COM OBJETO...

-AH COMO É CONFORTANTE MORRER QUANDO SOBRA A DESESPERANçA!

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SOBRE SUA PRÓPIA FACE NUM ESPELHO

Oh face estranha aíno espelho!

Companheiro libertinho,sagrado anfitrião

Oh meu bufão varridopela dor,

Que responder?Oh vós miríade

Que labutais, brincais,passais,

zombais, desafiais,Vos contrapondo!

Eu? Eu? Eu?E vós

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Buscando uma nova compreensão filosófica da arte, os manifestos anunciavam o fim de um tipo de arte e sua nova revelação: um caminho a seguir, “mais ou menos proclamando como o único tipo de arte a considerar.”3 À pergunta de Cézanne – “Qual a verdade da arte?”- , os manifestos modernos forneceram respostas distintas, mas cada um oferecia apenas uma como possível.

Como profetas do juízo final e arautos de uma nova era, determinavam a morte, a dissolução ou a antítese da arte como estratégia de sua sobrevivência. Guardavam ainda o prestígio dos orácu-los e seu poder de revelação, mas como narrativa histórica e finalista. Pois, se a narrativa mítica centrava-se na idéia de reencontrar a verdade original, as narrativas modernas foram teleológi-cas, fundamentando e legitimando a existência em um percurso histórico e progressivo, em uma finalidade comum que justificaria e autentificaria o presente.

3 DANTO, Arthur. op.cit. p. 28

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Falando em nome de uma coletividade, instalavam-se muitas vezes no exterior da própria obra de arte, uma metanarrativa expulsando a palavra de seu interior, como na pintura formalista. Falando de um topos público, enunciavam uma direção para a arte. A era dos manifestos, como dirá Danto, terminam por uma insuficiência: quando a questão o que é arte não encontra mais (apenas) uma resposta nas produções artísticas contemporâneas.

Esta seria a tarefa a que se propõe Rosana Ricalde: explorar a inaptidão da arte e de seus mani-festos em afirmar uma verdade para si; subtrair-lhes sua condição de Texto original ou finalista capaz de um decifração; apontar, no diálogo com a história da arte, histórias diversas; manifestar o fala-se e vê-se indeterminado da escrita. Ao deflagrar as ambigüidades, ao deslocar as tradu-ções, ao convulsionar as leituras consagradas, os “manifestos” enunciam-se e se doam ao visível para afirmar a pluralidade.

É assim que o manifesto dadaísta exibe suas traições e fugas: no lugar de uma palavra arbitrária - que declara publica e paradoxalmente, por um texto, seu sem sentido e sua enunciação absoluta de qualquer coisa -, a sobredeterminação de todas as palavras ali escritas, seus verbetes diciona-

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rizados abrindo-se a inúmeras significações. Se um signo apenas ganha significado relativo ao contexto e à situação a qual se relaciona, então à abertura a todos os deslocamentos possíveis, a todas as combinações possíveis, a todos os con-textos possíveis. Cada qual que teça, com seu fio de Ariadne, seus percursos nos labirintos da escrita.

O manifesto neoconcreto, por sua vez, trans-borda-se para o seu interior, dilui as molduras sintáxicas que estruturam as frases e os sentidos, implode a palavra e abole as fronteiras (?) entre a linguagem, a arte e a matemática em um quadro estatístico das letras e sinais que o compõe.

Ou como o manifesto antropofágico que digere e degusta suas várias dobras e elisões. Tanto saborear uma sopa de letras, como constatar a impossibilidade de encarar nossa identidade no espelho sem que nossa imagem, ali reluzida, oculte e devore a carne da palavra manifesta no reflexo.

Rosana Ricalde solicita, das formas visuais, sonoras e verbais que atravessam o campo das visibi-lidades e dos enunciados, seus encontros e combinações incontáveis. Permiti-los, é destituir a palavra de seu poder de designação unívoca. E, por que não, localizar no interior da construção dos discursos o intraduzível, este indizível que se aloja em “algum lugar” entre a palavra e a ima-gem. A devorar-se mutuamente.

Como este texto que, impotente e desnecessário, enfim resigna-se e cala-se.

Que uma realidade se oculte atrás das aparências é, em todo caso, possível; que a linguagem possa reproduzi-la, seria ridículo esperar. Por que, então, adotar uma opinião em lugar de ou-tra, recuar ante o banal ou o inconcebível, ante o dever de dizer ou escrever qualquer coisa? Um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do sorriso e da destruição.Cioran

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Marisa Flórido Cesar

Exercício da Possibilidade

Um texto que não enfrenta seu balbucio, sua própria afasia... Que não constata a impotência da palavra em se enunciar sem ambigüidades e equívocos... Que não confessa de antemão sua impossibilidade, talvez não mereça sequer a aventura de ser escrito.

Não que ecoe aqui a antiga sentença de Plutarco, emprestada do poeta grego Simonide de Céos, na qual a poesia é pintura falante, a pintura, poesia muda: a imagem requisitaria a palavra, a Pa-lavra clamaria pela imagem. Mas como escrever acerca dos exercícios de Rosana Ricalde sobre os manifestos modernos, sem arriscar-se a reduzir as possibilidades de recepção e os processos significação que justamente a artista faz ampliar ilimitadamente?

Na tensão entre a palavra e a imagem, no cruzamento de suas afasias e discursos, das opacidades e transparências dos duplos da representação, as artes visuais ergueram seu universo. Entre ver e falar, entre o Verbo e a Imagem, o Olho e a Palavra, duelaram antigas e “fraternas” rivais: a pintura e a poesia1. E, nas histórias das artes, essa relação mudaria os termos incessantemente, reivindicaria o mesmo estatuto para as artes irmãs, declararia suas especificidades como o fize-

1 Se Platão em Fedro repudiaria a Escrita e a Pintura de irmãs, também selaria uma cumplicidade entre ambas con-denando-as O discurso escrito é o “irmão legítimo de outra eloqüência bastarda a pintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos.” Entre outros, Lomazzo, em seu Trattato dell’arte della pittura, scoltura et architettura, Milão, 1585, no-taria mesmo que elas nasceram juntas, sendo quase idênticas em sua natureza profunda, em conteúdo e finalidade. O argumento de Plutarco, por sua vez, é citado por Lessing, em Laocoonte, para corroborar sua teoria sobre a distinção e especificidade de cada arte em torno do tempo e do espaço.

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João que amava Lili Raimundo que amava João

Maria que amava JoãoJoão que amava Joaquim

Teresa que amava JoãoJoão que amava J.Pinto Fernandes

Raimundo que amava LiliLili que amava Maria

Joaquim que amava LiliTeresa que amava Lili

Lili que amava J Pinto FernandesMaria que amava RaimundoRaimundo que amava Teresa

Teresa que amava MariaTeresa que amava J Pinto Fernandes

Raimundo que amava Joaquim Raimundo que amava J.Pinto Fernandes

Joaquim que amava MariaMaria que amava J.Pinto Fernandes

Joaquim que amava Teresa J.Pinto Fernandes que amava Joaquim

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ram Lessing e Greenberg, trocaria de lugar e de materialidades como fariam Mallarmé e Picasso, exporia o nexo arbitrário entre ver e falar como fizeram Magritte e Duchamp.

Entre a escrita e a imagem pictórica, entre um objeto qualquer e a palavra que o enuncia, Magritte e Duchamp explicitariam a lacuna ou a complexa e arbitrária articulação entre eles. Uma descon-tinuidade que colocava, a descoberto, a inexistência de um vínculo, na origem, que encerraria uma ligação inequívoca entre ver e falar, que nos prometia uma decifração perfeita dos signos, uma tradução precisa de nossas experiências neste mundo amorfo e enigmático. Estamos ao de-sabrigo daquela espessura indecifrável do Verbo e de seu dom de tudo decifrar, de revelar a ver-dade do real, de emboscá-la e fazê-la se desvelar das sombras. Assim como anunciou Nietzsche, tal como constatou a palavra fragmentada desenhando o acaso na página branca de Mallarmé.

Entre a palavra e aquilo que ela designa, arquiteta-se um espaço em que se tramam, ao infinito, o visível e o enunciável — todavia inexoravelmente insubordinados e irredutíveis um ao outro, como disse Foucault.

É, talvez, em torno desse colapso, dessa falha fundamental, que se ensaiam os discursos, que se atrevem as escritas, que se confrontam as inumeráveis das leituras que, do texto, o animam. A palavra instala-se entre o silêncio e a imensa possibilidade da interpretação. Exercícios de sua possibilidade.

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É também nessa fissura, nesse espaço de complexa urdidura, em que se aventuraram Magritte e Duchamp, a poesia concreta e a arte conceitual, que Rosana Ricalde vai operar, enfrentando a escrita e seu paradoxo: ser a um só tempo imagem e palavra.

Se a artista escolhe um determinado gênero de texto que orbita o universo histórico da arte, os ma-nifestos da arte moderna, sua opção não é um lance do acaso. Há ali uma intenção de fazer ecoar, dessas grandes narrativas de legitimação da arte como os denominou Arthur Danto2, os múltiplos

2 Próximo à definição de Jean-François Lyotard sobre a condição pós-moderna, Arthur Danto identifica o fim da era moderna da arte, e da Arte com o fim da História, ou seja, com a falência dos grandes discursos de legitimação, que têm sua origem mais imediata nas filosofias de Hegel e Marx, denominando como narrativas mestras tanto aos manifestos artísticos quanto a crítica de arte, à exemplo da teoria formalista de Greenberg, essencialista e teleológica. DANTO, Arthur. After the end of art. .Princeton: Princeton University Press, 1997.

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enunciados por elas recalcados, de fazer fulgurar ali as visibilidades variadas. De exibir dessa his-tória sem finalidade comum em que hoje vivemos: não o fim da História, mas as várias direções possíveis, como uma finalidade dilatada e sem desenlace, uma finalidade plural e sem fim.

Ora, os manifestos são tão presentes na modernidade que a ela se confundem, como dirá Danto. Afinal, se o real revestia-se então de estranhezas, se aos objetos do mundo restava a atribuição fantasmagórica de coisa, como a arte poderia escravizar-se à uma representação mimética de um modelo indecifrável? A insuficiência desse modelo reservava à arte a problematização de seu estatuto ontológico, o fundamento de sua própria verdade.

Buscando uma nova compreensão filosófica da arte, os manifestos anunciavam o fim de um tipo de arte e sua nova revelação: um caminho a seguir, “mais ou menos proclamando como o único tipo de arte a considerar.”3 À pergunta de Cézanne – “Qual a verdade da arte?”- , os manifestos modernos forneceram respostas distintas, mas cada um oferecia apenas uma como possível.

Como profetas do juízo final e arautos de uma nova era, determinavam a morte, a dissolução ou a antítese da arte como estratégia de sua sobrevivência. Guardavam ainda o prestígio dos orácu-los e seu poder de revelação, mas como narrativa histórica e finalista. Pois, se a narrativa mítica centrava-se na idéia de reencontrar a verdade original, as narrativas modernas foram teleológi-cas, fundamentando e legitimando a existência em um percurso histórico e progressivo, em uma finalidade comum que justificaria e autentificaria o presente.

Falando em nome de uma coletividade, instalavam-se muitas vezes no exterior da própria obra de arte, uma metanarrativa expulsando a palavra de seu interior, como na pintura formalista. Falando de um topos público, enunciavam uma direção para a arte. A era dos manifestos, como dirá Danto, terminam por uma insuficiência: quando a questão o que é arte não encontra mais (apenas) uma resposta nas produções artísticas contemporâneas.

Esta seria a tarefa a que se propõe Rosana Ricalde: explorar a inaptidão da arte e de seus mani-festos em afirmar uma verdade para si; subtrair-lhes sua condição de Texto original ou finalista capaz de um decifração; apontar, no diálogo com a história da arte, histórias diversas; manifestar o fala-se e vê-se indeterminado da escrita. Ao deflagrar as ambigüidades, ao deslocar as tradu-

3 DANTO, Arthur. op.cit. p. 28

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ções, ao convulsionar as leituras consagradas, os “manifestos” enunciam-se e se doam ao visível para afirmar a pluralidade.

É assim que o manifesto dadaísta exibe suas traições e fugas: no lugar de uma palavra arbitrária - que declara publica e paradoxalmente, por um texto, seu sem sentido e sua enunciação absoluta de qualquer coisa -, a sobredeterminação de todas as palavras ali escritas, seus verbetes diciona-rizados abrindo-se a inúmeras significações. Se um signo apenas ganha significado relativo ao contexto e à situação a qual se relaciona, então à abertura a todos os deslocamentos possíveis, a todas as combinações possíveis, a todos os contextos possíveis. Cada qual que teça, com seu fio de Ariadne, seus percursos nos labirintos da escrita.

O manifesto neoconcreto, por sua vez, transborda-se para o seu interior, dilui as molduras sin-táxicas que estruturam as frases e os sentidos, implode a palavra e abole as fronteiras (?) entre a linguagem, a arte e a matemática em um quadro estatístico das letras e sinais que o compõe.

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Ou como o manifesto antropofágico que digere e degusta suas várias dobras e elisões. Tanto saborear uma sopa de letras, como constatar a impossibilidade de encarar nossa identidade no espelho sem que nossa imagem, ali reluzida, oculte e devore a carne da palavra manifesta no reflexo.

Rosana Ricalde solicita, das formas visuais, sonoras e verbais que atravessam o campo das visibi-lidades e dos enunciados, seus encontros e combinações incontáveis. Permiti-los, é destituir a palavra de seu poder de designação unívoca. E, por que não, localizar no interior da construção dos discursos o intraduzível, este indizível que se aloja em “algum lugar” entre a palavra e a ima-gem. A devorar-se mutuamente.

Como este texto que, impotente e desnecessário, enfim resigna-se e cala-se.

Que uma realidade se oculte atrás das aparências é, em todo caso, possível; que a linguagem possa reproduzi-la, seria ridículo esperar. Por que, então, adotar uma opinião em lugar de ou-tra, recuar ante o banal ou o inconcebível, ante o dever de dizer ou escrever qualquer coisa? Um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do sorriso e da destruição.Cioran

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Sem vós e com meu cuidado.Querendo Amor esconder-vos

Em parte que vos não visse,Co ‘o extremo de querer-vos

Cegou-me os olhos com ver-vos,Levou-vos, sem que vos visse.

Eu, cego mas atinado,Quando vi que vos não via

Do mesmo Amor indignado,Já vedes qual ficaria

Sem vós e com meu cuidado.

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TEXTOSINGLÉS

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Formação Universidade Federal do Rio de Janeiro - Escola de Belas Artes - Bacharelado em Gravura;

Exposições Individuais

2008 Galeria Luis Adelantado – Valencia, Espanha; Palavras Compartilhadas – SESC Acre, Paraná, Maranhão,Ceará, Bahia, Tocantins, Amapá e Pernambuco.

2007 Cidades Ocultas – Arte em Dobro, Rio de Janeiro.

2006 Todos os Nomes – Galeria Amparo 60, Recife; Horizonte Azul – Galeria Mínima, Rio de Janeiro.

2005 Móvel Mar - Galeria Casa Triângulo, São Paulo; Poesia DES-Regrada Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro.

2004 Palavra Matéria Escultórica - Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Niterói; Programa de Exposições Centro Cultural São Paulo, São Paulo; Exercício da Possibilidade - Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo.

2003 Casa de Cultura da América Latina, Brasília; Insola(R)ções - Solar Grandjean de Montigny, Rio de Janeiro;

2002 Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho – Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro (individual);

2001 Vento Contentamento – Galeria do Centro de Artes UFF, Niterói; Verba Volant, Scripta Manent - Espaço Maria Martins, Rio de Janeiro (individual);

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rosana ricalde Niterói 16/12/[email protected]

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Exposições Coletivas

2007 Entre a Palavra e a Imagem – Museu da Cidade de Lisboa – Portugal / Centro Cultural Vila Flor – Guimarães, Portugal; La Casa Del Lago – UNAM (Universidad Autônoma de México) - Intervenção Urbana Cidade do México (trabalho em parceria com Felipe Barbosa); Coletiva de Gravura - Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza; Incisão – Centro Cultural Banco do Nordeste Cariri – CE ; Novas Aquisições 2006-2007 Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM RJ ;

2006 Entre a Palavra e a Imagem – Fundação Luis Seoane – A Coruña, Espanha; Primeira Pessoa – Itaú Cultural, São Paulo; 10 +1 Geração da Virada – Instituto Tomie Othake, São Paulo; Cambiando el curso de las águas - Centro Cultural de Espanha em Buenos Aires/Argentina (trabalho em parceria com Felipe Barbosa). Designu/Desdobramentos – Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza; Um Século de Arte Brasileira - Coleção Gilberto Chateaubriand – Pinacoteca do Estado de São Paulo / Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro; Troca de Cartões - Centro Cultural Banco do Nordeste – Intervenção Urbana, Fortaleza (trabalho em parceria com Felipe Barbosa); Doble Mano – Museu de Arte Contemporânea de Rosário, Argentina / Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro; É Hoje/Mostra da Coleção Chateaubriand – Santander Cultural, Porto Alegre; Corpo Ausente-Corpo Presente – Galeria Mauá, Rio de Janeiro; Intimidades: jogos perigosos - Marilia Razuk Galeria de Arte;

2005 In site 05– trienal internacional San Diego/ Tijuana (trabalho em parceria com Felipe Barbosa); Limite como potência – MNBA, Rio de Janeiro; Homo Ludens – Itaú Cultural, São Paulo;

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Outras Palavras – Espaço Cultural Paschoal Cittadino, Niterói; Amalgames Brésiliens – 18 artistes contemporains du Brésil -Musée del L’hôtel-Dieu de Mantes-la-Jolie, França; Novas aquisições – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife; Umas Grafias – Galeria Amparo 60, Recife; Projéteis de Arte Contemporânea – FUNARTE, Rio de Janeiro / Carreau du Temple - Espaço Brasil, Paris; Novas Aquisições – Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, Fortaleza; (NE): Fronteiras, fluxos e personas - Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza; Perambulações, Rotterdam;

2004 Trienal Poligráfica de San Juan, Porto Rico; Perfil de uma coleção – coleção Randolfo Rocha – Centro Cultural Usiminas, Belo Horizonte; Coletiva do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, São Paulo; Objeto como imagem – Galeria Virgílio, São Paulo; Seriações - Espaço Cultural Antônio Bernardo, Rio de Janeiro; Galeria de arte Mínima, Rio de Janeiro; Posição 2004 - Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro;

2003 MAD 03 - 2° Encontro Internacional de Arte Experimental de Madri, Madri ( trabalho em parceria com Felipe Barbosa); X Salão da Bahia, Salvador; Palavra Extrapolada – Mostra SESC Latinidades – Sesc Pompéia, São Paulo; Ponto de fuga || Área livre - Memorial da América Latina, São Paulo; Palavras + - SESC Copacabana, Rio de Janeiro; Repentes Visuais – Mostra SESC Latinidades, São Paulo; 3°Salão Nacional de Arte de Goiás, Goiânia; Heterodoxia – Memorial da América Latina, São Paulo; Projeto INClassificados – Espaço Bananeiras, SESC Niterói - Barra Mansa – Friburgo - Petrópolis;

2002 I Bienal Ceará América de Ponta-Cabeça, Fortaleza; IX Salão de Arte da Bahia, Salvador; Livro Objeto da Arte – Galeria Cândido Mendes, Rio de Janeiro; Prêmio de Interferências Urbanas – 4ª Edição (trabalho em parceria com Felipe Barbosa) Rio de Janeiro;

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Arte: Sistemas e Redes – Museu da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza; Vertentes da Produção Contemporânea – Instituto Itaú Cultural, São Paulo; Pupilas Dilatadas – Fundação Joaquim Nabuco, Recife; Sobre(a)ssaltos - Itaú Cultural, Belo Horizonte; Rumos da Nova Arte Contemporânea Brasileira 2001/2003 – Fundação Clóvis Salgado / Palácio das Artes, Belo Horizonte;

2001 Prêmio Interferências Urbanas 3ª Edição (trabalho em parceria com Felipe Barbosa), Rio de Janeiro; 1ª Edição zona franca – Fundição Progresso, Rio de Janeiro.

2000 7º Salão Victor Meirelles, Paraná; Prêmio Interferências Urbanas 2ª Edição, Rio de Janeiro (trabalho em parceria com Felipe Barbosa); Prêmio TRANSURB interferências Urbanas 1ª Edição, Rio de Janeiro(trabalho em parceria com Felipe Barbosa; Atrocidades Maravilhosas - Intervenção Urbana, Rio de Janeiro.

Coleções Públicas

Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, Fortaleza CE. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães , Recife PE. Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro RJ. Coleção Banco Itaú SA, São Paulo SP.

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Autores

AMADO, Guy. “Outras Sintaxes”. Exposição Centro Cultural São Paulo, 2004.ANJOS, Moacir dos. “Mar Móvel”. Catálogo Rosana Ricalde 2006.BARRUS, Edson. “Vento Contentamento”. Exposição Galeria de Arte UFF, Niterói, 2001BUENO, Guilherme. Poéticas Compartidas / Poéticas Expandidas,MAD 03, 2003BUENO, Guilherme. “ROSANA RICALDE – OS MANIFESTOS”, Exposição Palavras Compartilhadas – SESC Nacional, 2007.BUENO, Guilherme. “Palavra Matéria Escultórica”. Exposição MAC Niterói, 2004.BUENO, Guilherme. “Topologia de Idéias e Simulacros”, Catálogo Galeria Amparo 60, 2006.BUENO, Guilherme. “Horizonte Azul” Catálogo Rosana Ricalde, 2006FARIAS, Agnaldo. “Primeira Pessoa”, Itaú Cultural, 2007.FERREIRA, Glória. “O teu cenário é uma beleza...” Prêmio Interferências Urbanas – 2ª Edição, 2000.FLÓRIDO, Marisa. “Exercício da Possibilidade”. Projéteis da Arte Contemporânea e Catálogo Rosana Ricalde, 2006FUENTES, Elvis. Insertions, Poly/Graphic San Juan Triennial: Latin America and the Caribbean, 2005.FREIRE, Cristina. “Arte: Sistema e Redes”. Mapeamento Nacional da Produção Emergente 2001/2003. Rumos Itaú Cultural Artes Visuais.GOTO, Newton. “Arte ao Redor”. Prêmio Interferências Urbanas – 3ª Edição, 2001.INTERLENGHI, Luisa. [NE] Fronteiras, Fluxos e Personas. Centro Cultural Banco do Nordeste.LABRA, Daniela. “Exercício da Possibilidade”. Maria Antonia Centro de Arte da USPMATTAR, Denise. “Sensações - O Lúdico na Arte”, Itaú Cultural, 2005MELLADO, Justo Pastor. Grids, Poly/Graphic San Juan Triennial: Latin America and the Caribbean, 2005.RAGASOL, Tânia. inSite_05, San Diego/ Tijuana, World’s Best New Art, Unreal Projects, 2006.RAGASOL, Tânia. Jardines Móviles, catálogo da exposição Jardines Móviles. Casa Del Lago – Parque de Chapultepec Cidade do México, 2007.REIS, Paulo. “Da importação ao canibalismo”, Entre a Palavra e a Imagem, editora Dardo, 2007.REIS, Paulo. “As palavras compartilhadas de Rosana Ricalde”. Exposição Palavras Compartilha-das – SESC Nacional, 2007.SCHMIDT, Paulo. “Pupilas Dilatadas”. Mapeamento Nacional da Produção Emergente 2001/2003. Ru-mos Itaú Cultural Artes Visuais.VINHOSA, Luciano. “O Signo Total”. Catálogo Rosana Ricalde 2007.VINHOSA, Luciano. “O Tempo Muda Tudo”. Exposição Palavras Compartilhadas – SESC Nacional, 2007.

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Revistas e Periódicos

Concinnitas. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes UERJ, 2007.CARDOSO, Rafael. “Mostra no Centro da cidade”, Caderno B, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, terça-feira, 22 de março de 2005.LOPES, Fernanda. “Uma Palavra Mil Imagens”, Revista Bien’art no 29, março 2007.NOVAES, Tereza. “Fina estampa”, Ilustrada, Folha de São Paulo, quinta-feira, 29 de abril 2004.TINOCO, Bianca. “Uma artista no redemoinho das palavras”, Caderno B, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, quarta-feira, 19 de abril de 2006.Arte e Ensaio. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, 2004.Folha de São Paulo, Ilustração Caderno mais!, 30 de maio 2004.ARTE e PALAVRA como ARTE pela PALAVRA na ARTE em PALAVRA, número três, Centro Uni-versitário Maria Antônia, USP, 2003.IN CLASSIFICADOS, primeira edição, maio 2003.HERMANO, Ana Cristina. “Niterói mostra sua arte”, 2º Caderno, O Fluminense, Niterói, quarta-feira, 3 de maio de 2000.

Teses

BARBOSA, Felipe. “A Experiência da Arte Pública”. Dissertação de Mestrado em Linguagem Visuais do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Professor Paulo Venâncio, 2005.DE OLIVEIRA, Luiz Sérgio da Cruz. “inSITE: práticas de arte pública na fronteira entre dois mundos”. Tese de Doutoramento junto ao Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, área História da Arte, linha de pesquisa Estudos de História e da Crítica de Arte, Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Professora Doutora Glória Ferreira, 2006.CESAR, Marisa Flórido. “NóS, O OUTRO, O DISTANTE: o espectador da arte contemporânea”. Tese submetida ao corpo docente da Escola de Belas Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Artes Visuais, sob orientação da Professora Doutora Glória Ferreira, 2006.MARTINS, Suzana Filipecki. “de portas abertas e ladeira a baixo... arte pública nas ruas de Santa Teresa”, Rio de Janeiro. Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Produção Cultural da Universidade Fe-deral Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel, sob orientação do Professor Doutor Luiz Sérgio da Cruz Oliveira, 2007.

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Guilherme Bueno

Poéticas Compartilhadas / Poéticas Expandidas

De imediato, os trabalhos “públicos” de Rosana Ricalde e Felipe Barbosa colocam um problema: qual o lugar da arte? Esta pergunta não deve ser entendida restritivamente, isto é, a arte não se deposita seja lá onde for, mas, a um só tempo engendra e resulta de uma série de relações que a definem produtivamente.

A questão acima pode ser respondida da seguinte forma, ainda que precipitada: o lugar da arte é a cidade. Neste caso, não só pensando-a como suporte – ainda que no caso destes trabalhos este seja um dado decisivamente relevante – mas, historicamente, ela seria o seu local por exce-lência, seja vinculada a uma perspectiva civilizatória, seja como a possibilidade do momento da experiência desinteressada, reciprocidade assentada no fundamento da ação construtiva como materialização da “contemplação produtiva” e /ou organização de um princípio cognitivo. To-davia esta afirmação ainda não garante um ponto de estabilidade. Não existe em definitivo “a” cidade. Existem os paradigmas, os marcos e encruzilhadas – a Florença de Brunelleschi, Paris de 1789, da comuna de 1871, de 1968, a Nova York de Fitzgerald e da era do jazz, dos anos 40 e 50, de 2001, Brasília, a Ville Radieuse de Le Corbusier, a cidade dos futuristas, a quantidade de exemplos é infindável...

À cidade como suporte, a experiência contemporânea adiciona-lhe significado problematizan-do o modo como ela é vivida. Ocorre o extravasamento de uma determinada prática moderna, não somente aquela circunscrita à noção da especialização do meio, mas ainda da síntese ( ou, em contrapartida, dissolução ) entre as artes prevista seja nos sistemas construtivistas, seja nas ações dadaístas. Há nisto um movimento duplo, marcado inicialmente pela imersão no objeto

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expandido: em lugar da antítese entre sujeito e objeto, entre entidades complementares, porém inconciliáveis, a cidade é tomada como “obra”, permitindo-se o trânsito entre a continência dos limites pessoais e a exterioridade em relação ao seu “outro”.

As intervenções de Ricalde & Barbosa já aportam em si dois elementos que parecem absorvi-dos da cidade: o “anonimato” e a “surpresa”. Por “anonimato” entenda-se o surgimento de um trabalho que não é um produto nem individual nem divisível, mas uma confluência (ao invés de simples somatório) de experiências. Convergência e expansão. Se o trabalho “coletivo” já estava previsto nas antigas oficinas de corporação ou nas equipes de “associados” dos projetos mo-dernos, há contudo uma diferença fundamental: enquanto nos primeiros casos ocorre a adição de saberes técnicos especializados e partilhados, no caso de Ricalde & Barbosa, em se tratando mais da proposição de situações do que da construção de objetos, elas organizam-se segundo a possibilidade de expansões poéticas. Ou seja, é o trabalho de um “terceiro autor”, estabelecido conforme uma lógica que incorpora elementos de seus respectivos interesses individuais e gera outros tantos novos e comuns a partir daquilo a que ele objetivamente se oferece enfrentar.

Existe ainda uma outra espécie de “anonimato” ou despersonalização ou, melhor, repersonali-zação, a constituição de um novo sujeito que não se limita a ser o indivíduo, aquela que considera a concepção do trabalho além de sua materialização, fazendo-o realizar-se mediante sua sobre-vivência no mundo, isto é, submetida a tudo aquilo que não se pode seguramente prever. Deste modo, se ele se imiscui na cidade, se infiltra em meio a massa dos prédios ou em um detalhe arquitetônico, ele acaba deixando neste exato momento de – paradoxalmente – ser apenas mais um pedestre e atravessa a cidade como um dandy, uma voluntária invenção poética que vive e se afirma a partir de seu antípoda, um mundo integral e intencionalmente cinzento e anestésico e faz do inusitado uma ocasião de redescoberta e maravilhamento, um maravilhamento dinâmico, res-salte-se, dir-se-ia mesmo de reconstrução poética do sujeito. As poéticas ali inseridas guardam consigo, por vezes, a efemeridade e transitoriedade do ritmo dos negócios, das pequenas des-cobertas, dos inusitados acidentes poéticos, tais como aqueles já prenunciados por Baudelaire e pelo dandismo no século XIX. Por outro lado, estas ações de algum modo são objetos-dandy, situações-dandy, na medida em que reivindicam uma experiência estética resolutamente oposta ao comodismo burguês, à regularidade da ação previamente eficiente e produtiva, mas também por serem, tais como aquelas personalidades do século XIX existentes conforme a adoção de uma prática comportamental deliberadamente urbana e anti-pragmática. Elas pressupõem mais

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do que a redescoberta, a reinvenção, a refundação da cidade como experiência qualitativa de uma consciência amoral.

Assim como não há “o” autor privilegiado para “a” cidade ideal, igualmente não existe – ao me-nos desde o cubismo – o ponto de vista correto, exclusivo, pois a cidade, como um organismo, vive enquanto seus fluxos estão ativos, enquanto não há o repouso absoluto e inação (morte). Basta ter em mente alguns dos trabalhos da “dupla”: o espelho d’água do Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG) é substituído pelo seu preenchimento com garrafas de água mineral, que, por sua vez, só podem ser vistas no momento em que se percorre a rampa de acesso ao edifício. Em primeiro lugar nota-se a substituição do sujeito estático, do espectador imóvel, pois o trabalho requer (e aqui seria válido remeter-se, a título de comparação, com a cidade de Rodchenko, do Moholy-Nagy, de Mendelsohn, de Umbo, dentre outros) deste sujeito tanto o movimento quan-to, em conseqüência, a mudança de seu ponto de vista garantido, contemplativo, na verdade ideal e fictício. Contudo, para além disso, não é somente esta transposição de dispositivos visuais que constitui a sensibilidade do embate com a cidade com a qual se lida. Há um processo de transbor-damento de metáforas cotidianas inerentes a sua circulação, como o vendedor da rua, o resguar-dar do valor (assim como a garrafa envasilha a água e, protegendo-a do mundo a transforma em valor, o museu o faz com a obra) e assim por diante.

Em dois trabalhos mais recentes, o primeiro executado em Fortaleza e o segundo em Madrid, depara-se com um outro viés de suas investidas. No caso daquele realizado no Ceará, consistia na disputa de um jogo-da-velha em pleno cruzamento de duas ruas, enquanto no outro, na Espanha, em uma partida de damas em uma pequena praça / ilhota que separava duas pistas paralelas. Nes-tas duas ocasiões não se explora somente o inusitado do fato que, como se pode imaginar, escapa a mentalidade executiva reguladora do deslocamento, do tráfego, em uma palavra, da cidade. Recusa-se o cotidiano usufruto imediatamente aplicado e justificável do espaço, havendo aí a escolha do preciso local, o ponto único em que se reconhecem pequenos interstícios de vivência “móvel”, errática, não fixa, voláteis na macrovisão da cidade. Colocando o problema de outro modo, estas incursões contém a descoberta de outras surpresas que não seus marcos ou perso-nagens, mas o fato dela requerer para sua sobrevivência a determinação de non-sites, de pontos cegos, de que sua ordem se assegura na pontuação de pequenos momentos caóticos. Não se trata de congestionamentos, enchentes ou qualquer catástrofe assimilada, e sim de zonas de perplexi-dade, de indefinição racionalizada, nas quais – caso fosse possível parar nelas – serviriam para se fazer absolutamente nada. Curiosamente, porém, através deste dispositivo de jogo pelo qual se

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exponencia a tensão inerente ao valor utilitário e ao emprego da malha urbana, os projetos de Ri-calde & Barbosa atingem a raiz de uma série de coordenadas presentes desde a fundação da cida-de industrial e ainda hoje emblemáticas, acomodadas confortavelmente na construção de nosso imaginário urbano, tal como, a título de exemplo, a implantação das áreas de lazer, os parques de diversão, em resumo mecanismos “civilizados” de extravasamento e momentânea compensação idílica. Aquilo que faz estes trabalhos provocativos é a contrariedade a investir-se de uma fina-lidade urbanística “aceitável”, tampouco seu oferecimento como instante de distensão lúdica, apaziguadora. Uma provocação, entretanto, que não se consome na auto-mortificação niilista, mas na ironia espontânea de uma piada popular ou de uma lenda urbana, enfim, possuidores de uma vitalidade aberta e positiva frente ao mundo. Nem anedotário espetacular, nem comple-xo de impossibilidade e fatalismo. Em se tratando de jogos – e já que nos remetemos ao cotejo com a modernidade, de jogos schillerianos – cuja imprevisibilidade dos resultados se sobrepõe à circunscrição delimitadora das regras, faz emergir estratégias e resultados de um desconcerto instigante, radicalmente desafiador e – por quê não? – inovador.

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Guilherme Bueno

Poéticas Compartidas / Poéticas Expandidas

Los trabajos “públicos” de Rosana Ricalde y Felipe Barbosa plantean de inmediato un problema: ¿cuál es el lugar del arte?

La cuestión puede responderse, aunque de manera precipitada, diciendo que el lugar del arte es la ciudad, no sólo entendiéndola como soporte - por más que en estos trabajos éste sea un dato decisivamente relevante – sino, desde el punto de vista histórico, como su espacio por excelen-cia. Sin embargo, esta afirmación aún no garantiza un punto de estabilidad. No existe en sentido absoluto “la ciudad”. Existen los paradigmas, los marcos y encrucijadas: La Florencia de Bru-nelleschi; el París de 1789, de la comuna de 1871, de mayo de 1968; la Nueva Cork de Fitzgerald y la era del jazz, la de los años 40 y 50, la de 2001; Brasilia; la Ville Radieuse de Le Corbusier; la ciudad de los futuristas…La cantidad de ejemplos es interminable.

La experiencia contemporánea añade significado a la ciudad como soporte poniendo en cuestión el modo en que ella es vivida. Se abordan determinadas prácticas modernas, tanto las circunscri-tas a la noción de especialización del medio, como su simultánea contrapartida, la de la síntesis prevista desde los sistemas constructivistas o las acciones dadaístas. Hay un doble movimiento. Inicialmente la inmersión en el objeto, entre entidades complementarias, pero inconciliables, la ciudad es considerada como “obra”, el tránsito entre la continencia de los límites personales y la exterioridad en relación con su “otro”.

Las intervenciones de RICALDE y BARBOSA aportan dos elementos familiares a la ciudad: el “anonimato” y la “sorpresa”, “Anonimato” del surgimiento de un trabajo que no es un producto

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ni individual ni divisible, sino confluencia [ y no yuxtaposición] de experiencias. Se trata más de la proposición de situaciones que de la construcción de objetos, organizadas según la posibilidad de expansiones poéticas entre los dos artistas. Es el trabajo de un “tercer autor”, establecido según una lógica que incorpora elementos de sus respectivos intereses individuales y genera otros tantos nuevos y comunes.

Los trabajos proponen también otra especie de “anonimato”. El trabajo se realiza y se expone, se inmiscuye en la ciudad, se infiltra en medio de la masa de los edificios o en un detalle arquitec-tónico. En este preciso momento deja de ser, paradójicamente, sólo un peatón más y atraviesa la cuidad como un dandi, una voluntaria invención poética que vive y se afirma a partir de su opues-to, un mundo integral y intencionalmente gris y anestésico, y hace de lo inusitado una ocasión de redescubrimiento y estupefacción, una estupefacción dinámica, téngase en cuenta, y hasta podría decirse de reconstrucción poética del sujeto. Las poéticas allí insertas revelan, as veces, el carácter efímero y transitorio del ritmo de los negocios, de los pequeños descubrimientos, de los inusitados accidentes poéticos, tales como los ya anunciados por Baudelaire y por el dandismo en el siglo XlX. Por otro lado, estas acciones son de algún modo objetos-dandi, situaciones-dan-di, en la medida en que reivindican una experiencia estética resueltamente opuesta a la como-didad burguesa, a la regularidad de la acción previamente eficiente y productiva, pero también porque se basan, tal como aquellas personalidades del siglo XIX, en la adopción de una práctica de comportamiento deliberadamente urbana y contraria al pragmatismo. Presuponen, más que el redescubrimiento, la reinvención, la refundación de la ciudad como experiencia cualitativa de una conciencia amoral.

Así como no existe “el” autor privilegiado para “la” ciudad, como un organismo, vive mientras sus flujos están activos, mientras no hay reposo absoluto ni inacción [ muerte]. Basta tener en cuenta, algunos de los trabajos de la “pareja” : el espejo de agua del Palácio das Artes [Belo Ho-rizonte, Minas Gerais] se transforma llenándolo con botellas de agua mineral que, a su vez, sólo pueden verse en el momento en que se recorre la rampa de acceso al edificio. En primer lugar, se nota la sustitución del sujeto estático, del espectador inmóvil, pues el trabajo requiere [ y en este caso sería válido remitirse, por afán comparativo, a la ciudad de Rodchenko, de Molí-Nagy, de Mendelsohn, de Umbo, entre otros] de este sujeto tanto el movimiento como, en consecuencia, el cambio de su punto de vista habitual, contemplativo, en realidad ideal y ficticio. No obstante, además no es solamente esta trasposición de dispositivos visuales lo que constituye la sensibi-

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lidad del choque con la ciudad con la que nos relacionamos. Hay un proceso de traslación de metáforas cotidianas inherentes a su circulación, como el vendedor de la calle, el resguardo del valor [así como la botella envasa el agua y, protegiéndola del mundo la transforma en valor, el museo lo hace con la obra] y así sucesivamente.

En dos trabajos más recientes, el primero realizado en Fortaleza y el segundo en Madrid, se pro-duce otra variante de sus experiencias. En el caso del concretado en Ceará, consistía en una partida de tres en raya en pleno cruce de dos calles, mientras que en el otro, en España, en una partida de damas en una pequeña plaza-islote que separaba dos pistas paralelas. En estas dos oca-siones, no se explora solamente lo inusitado del hecho de que, como se puede imaginar, escapa a la mentalidad ejecutiva reguladora del desplazamiento, del tráfico, en una palabra, de la ciudad. Se niega el usufructo cotidiano inmediatamente aplicado y justificable del espacio, dándose la elección del lugar preciso, el punto único en el que se reconocen pequeños intersticios de viven-cia “móvil”, errática, no fija, volátiles en la macrovisión de la ciudad. Planteando el problema de otro modo, estas incursiones contienen el descubrimiento de otras sorpresas, no en el plano de sus marcos o personajes, sino en el hecho de que requiere para su supervivencia de la determi-nación de non-sites, de puntos ciegos, de que su orden se asegure en la puntuación de pequeños momentos caóticos. No se trata de congestionamientos, crecidas o cualquier catástrofe asimi-lada, sino de zonas de perplejidad, de indefinición racionalizada, las cuales – en el caso de que fuese posible detenerse en ellas – servirían para no hacer absolutamente nada. Curiosamente, sin embargo, a través de este dispositivo de juego por el cual se acrecienta la tensión inherente al valor utilitario y al empleo de la red urbana, los proyectos de RICALDE y BARBOSA alcanzan la raíz de una serie de coordenadas presentes desde la fundación de la ciudad industrial y aún hoy emblemáticas, acomodadas confortablemente en la construcción de nuestro universo ima-ginario urbano, tal como, a título de ejemplo, la implantación de las zonas de ocio, los parque de atracciones, en resumen mecanismos “civilizados” de expansión y momentánea compensa-ción idílica. Lo que vuelve provocativos a estos trabajos es su negativa a otorgarse una finalidad urbanística “aceptable” o a ofrecerse como instantes de relajamiento lúdico, apaciguador. Una provocación, no obstante, que no se agota en la auto mortificación nihilista, sino en la ironía espontánea de un chiste popular o de una leyenda urbana; poseedores, en fin, de una vitalidad abierta y positiva frente al mundo. Ni anecdotario espectacular, ni complejo de imposibilidad y fatalismo. Tratándose de juegos – y ya que nos remitimos al cotejo con la modernidad, de juegos schillerianos - , el carácter imprevisible de cuyos resultados se superpone a la circunscripción delimitadora de reglas, hace surgir estrategias y resultados de un desconcierto instigador, radi-calmente desafiante y, por qué no innovador.

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The “public” works of Rosana Ricalde and Felipe Barbosa pose an immediate question: What is the place of art?

The question may be answered in a hasty fashion, by saying that art’s place is the city, unders-tanding the latter not only as a support – much as it is decisively relevant in the works of these artists – but, from a historical point of view, as its space par excellence. However,this statement still not guarantee a point of stability. “The” city does not exist in an absolute sense. What does exist are paradigms, the contexts and the crossroads: the Florence of Brunelleschi, the Paris of 1789, of the Commune of 1871, of may 1968; the New York of Fitzgerald and jazz period, of the forties and fifties, of 2001; Brazilia; the Ville Radieuse of Le Corbusier; the city of futurists… the examples are interminable.

Contemporary experience adds meaning to the city as support by questioning the way in which it is lived; thus, a certain modern practices are approached, those that are circumscribed by the notion of the specialization of the medium, as well as their simultaneous counterpart, the synthe-sis anticipated by constructivist systems or Dadaist actions. There is a double play. Initially, the immersion in the expanded object: rather than the antithesis between the subject and the object, between complementary but irreconcilable entities, the city is considered as a “work”, the transit between the constraints of personal limits and the exteriority in relation to the “other”.

The interventions of Ricalde and Barbosa bring two elements familiar to the city: “anonymity” and surprise. The “anonymity” of the emergence of a work which is neither an individual nor

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Shared Poetics / Expanded Poetics

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a divisible product, but the confluence (and not the juxtaposition) of experiences. It is about proposing situations – rather than constructing objects – organized in accordance with the pos-sibility of poetic expansion between two artists. It is the work of a ^third author^ establish by a logic that incorporates the elements of their respective individual interests, and generates as many new common ones.

The works propose yet another sort of “anonymity”. The works is made and exhibited; it medd-les in the city, infiltrates a mass of buildings or an architectural detail. In this exact moment it, paradoxically, stops being just another passer-by and crosses the city like a dandy, a voluntary poetic invention which lives and asserts itself through its opposite – a world entirely sand in-tentionally grey and anaesthetic – and makes of the unexpected an occasion for rediscovery and astonishment, a dynamic amazement, mind you and, it might even sometimes be said, for the poetic reconstruction of the subject.

The poetics inserted there sometimes reveal the ephemeral and transitory nature of the pace of business, of the little discoveries, the unexpected poetic accidents, like those already announced by Baudelaire and the dandyism of the nineteenth century. On the other hand, these actions are in some way dandy-objects, dandy-situations, insofar as they claim an aesthetic experience radi-cally opposed to bourgeois comfort, to the regularity of the preciously efficient and productive action; also because, like those nineteenth –century personalities, they are based on the adop-tion of a behavioural practice that is deliberately urbane and contrary to pragmatism. Rather than a rediscovery, they presuppose the reinvention, the re-foundation of the city as a qualitative experience of an amoral conscience.

Thus, “the” privileged author for “the” ideal city does not exist; neither is there a correct, exclu-sive point of view – at least since cubism – given that the city, like an organism, lives so long as its pulse is beating, while there is no absolute repose or inaction [death]. Looking at a few of the works of the “couple” : the water mirror at the Palácio das Artes [Belo Horizonte, Minas Gerais] is transformed by filling it with bottles of mineral water, which may only be seen at the moment of walking on the ramp that gives access to the building. First of all, we note the substitution of the static subject, the motionless spectator; the work requires [and in this case, it would be valid to refer, for the sake of comparison, to the city of Rodchenko, of Moholy-Nagy, Mendelsohn, of Umbo, among others] of the subject both movement and, as a consequence, the change of his habitual point of view, contemplative, in reality ideal and fictitious. Nevertheless, in addition, it

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is not only this transposition of visual devices that makes us aware of the confrontation with the city to which we relate. There is also a process of translation of quotidian metaphors inherent to its circulation; the street vendor, the safekeeping of things of value [just like the bottle contains water and, protecting it from the world, transforms it into a value, the museum does the same with the work of art], and so on.

Two the artists’ more recent works, the first made in Fortaleza, and the second in Madrid, pre-sent another variation of their investigations. In the case of work in Ceará, it consisted of a game of ticktacktoe in the middle of a street crossing, while in Spain, it was a game of checkers on a little traffic island separating two parallel lanes. On these two occasions, the work does not me-rely explore the unexpectedness of the fact which, as we might imagine, escapes the mentality of the authority regulating movement, traffic, in a word – the city. The work denies the every-day, justifiable and immediately applied usufruct of space, selecting the exact place, the unique point

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in which interstices of “mobile”, erratic vital experience are recognized, small and volatile in the macro vision of the city. Putting it differently, these incursions contain the discovery of other sur-prises, not on the plane of their contexts or characters, but in the fact that, for its survival, the city requires the determination of non-sites, of blind spots, for its order to be assured in the punctu-ation of little chaotic moments. It is not a matter of congestion, floods or any similar catastrophe; rather, it is about zones of perplexity, of rationalized indefinition, which – were it possible to stop in them – would serve to do absolutely nothing, Curiously, however, by means of this device of a game which increases the tension inherent in the utilitarian value and the use of the urban network, the projects of Ricalde and Barbosa go to the root of a series of coordinates present since the foundation of the industrial city and still emblematic today, comfortably accommodated in the construction of our imaginary urban universe, such as, for instance, the implantation of recreational areas, fairgrounds, in sum, “civilized” mechanisms of expansion and momentary idyllic compensation. What makes these works provocative is their refusal to take on an “ac-ceptable” urbanistic en or to offer themselves as moments of pacifying recreational relaxation. It is a provocation which, nevertheless, does not end in a nihilistic self-mortification, but in the spontaneous irony of a popular joke or of an urban legend which, after all, have a positive vitality open to the world. This is not about games – and given our references to modernity. Schillerian games - ; the unforeseeable nature of their results goes beyond the delimiting circumscription of the rules; it elicits disconcerting and instigating strategies and effects, radically defiant and, why not? Innovative.

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Felipe Barbosa, Luciano Vinhosa, Guilherme Bueno,

Marisa Flórido, Paulo Reis, Davi Barro, Anna Irene

Ricalde da Silva, Viviane Bulcão, André Renaud,

Luis Sérgio, Sidney Philocreon, Mônica Rubinho,

Tânia Ragasol, Luciana Caravello, Cristina Magalhães

Pinto, Lucia Ma N. Barbosa, Rachel Korman, Galeria

Arte em Dobro, Galeria Luis Adelantado, Galeria

Amparo 60, minha família e aos amigos que colaboraram

neste projeto.

Agradecimentos / Agradecimientos / Aknowledgements

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