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 " DRAMATURGIAS: Estudos sobre teoria e hist—ria do teatro e artes em contato MARCUS MOTA 2011

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DRAMATURGIAS:

Estudos sobre teoria e hist—ria do teatro e artes

em contato

MARCUS MOTA

2011

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Apresenta•‹o

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 Nesse sentido, os textos aqui disponibilizados dialogam com o seguinte

contexto: com a consolida•‹o de cursos superiores e programas de pesquisa em teatro,

tem havido, desde o in’cio deste sŽculo uma crescente demanda por publica•›es que

tanto ampliem discuss›es te—ricas estŽticas em curso, quanto revisem pressupostos de

estudo e an‡lise de eventos cnicos2. A velha estrutura dos cursos - que se baseava

em mŽtodos de periodiza•‹o liter‡ria Ð cede lugar para orienta•›es mais

interdisciplinares e interart’sticas, na conscincia de que a atividade cnica integra

saberes e habilidades v‡rios em uma realidade multitarefa e complexa.

Parte dessa atualidade inovadora parece contemplada em trabalhos

acadmicos de mestrado e doutorado, mas com publica•‹o limitada ou inexistente.

Em raz‹o da escassez de publica•›es, amplia-se o fosso entre gradua•‹o e p—s-

gradua•‹o, o que provoca uma inusitada situa•‹o: de um lado, as pesquisas em p—s-

gradua•‹o tendem a ficar ensimesmadas, inventando um ponto zero, um novo in’cio

constantemente, ao reperpeturar o fasc’nio com imediatos desejos e par‡frase de

1  A dramaturgia musical de ƒsquilo: investiga•›es sobre composi•‹o, realiza•‹o erecep•‹o de fic•›es audiovisuais, Bras’lia, Departamento de Hist—ria- UnB, 2002.Publicado pela Editora da UnB com o mesmo t’tulo em 2009,recebendo o 2o. lugar noPrmio Nacional de Ensaios Mario de Andrade, da Biblioteca Nacional.2 ƒ o que se pode constatar pela leitura da colet‰nea  Metodologias de Pesquisa em

 Artes Cnicas (Rio de Janeiro: 7Letras:2006), organizada por A. Carreira.

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 bibliografias e tendncias mais prestigiadas por seus orientadores; de outro, nos

cursos de gradua•‹o, abriga-se uma resistncia ˆ especula•‹o e debate te—rico,

expressa seja por meio da nfase na dimens‹o Ôpr‡ticaÕ, operativa do teatro, seja pela

leitura dos mesmos textos ainda acess’veis aos estudantes.

Os textos aqui disponibilizados procuram enfrentar esse fosso, procurando

renovar o encontro com a tradi•‹o bimelenar que v em eventos teatrais um desafio

 para o pensamento, como forma de se estimular um encontro mais diversificado e

revigorante com idŽias e experincias n‹o circunscritas ˆ pontuais injun•›es. Os

textos foram elaborados a partir de questionamentos evidenciados em sala de aula ao

longo de 15 anos de docncia e debates em diversos congressos acadmicos nacionais

e internacionais. A necessidade de fundamentar e problematizar v‡rias das discuss›es

e an‡lises que se deram no processo de ensino-aprendizagem motivaram as p‡ginas

aqui escritas. 

9)-/&' 3)%%,< o livro organiza-se em trs se•›es. Na primeira, temos o estudo

e an‡lise de aspectos das chamadas poŽticas hist—ricas. Aqui abre-se o espa•o para

obras, autores e idŽias que n‹o se reduzem a uma par‡frase das repetidas observa•›es

sobre  A poŽtica, Arist—teles. Com isso, ao apresentar reflex›es presentes em

 Natyasastra, atribu’do ao s‡bio Bharata, e nos ensaios de Zeami tanto subsidiamos a

compreens‹o de debates contempor‰neos sobre as rela•›es entre teatro e antropologia,

quanto fornecemos aos estudantes um contato com as idŽias desse autores,as quais

 podem ser apropriadas e transformadas a partir de seu conhecimento. Sempre lembrar

que o contato com o passado se faz em fun•‹o de quest›es e pontos de partida do

 presente. Nesse caso ao se propor a leitura e reflex‹o das poŽticas hist—ricas, objetiva-

se ampliar a conscincia hist—rica do estudante, inserindo-o em uma longa tradi•‹o,

que conecta o seu saber ˆ constru•‹o de sua identidade.

 Na segunda parte, procedemos a  42- +'(')&4+- 3' .'/%-3,+'% '

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imposs’vel apresenta•‹o de teorias teatrais no œltimo sŽculo ou de um panorama

superficial dos mesmo, optamos por coment‡rios de partes das contribui•›es desses

autores.

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Ou seja, no sŽculo XX os artistas passaram a expor mais enfatidamente suas

idŽias e analisar suas realiza•›es em textos em ensaios, notas e entrevistas. Este

desdobramento entre a reflex‹o e processos criativos pode ser enfrentado pelos

estudantes a partir do momento em que eles participam de situa•›es de debate e

an‡lise dos materiais publicados desses artistas, vendo nos textos lidos a correla•‹o

entre modos de agir e questionar atividades orientadas para a cena em todos as suas

dimens›es.

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Enfim, espero que a presente publica•‹o sej‡ œtil para consolidar a amplia•‹o

de interesses nos estudos teatrais, por meio do provimento de est’mulos intelectuais e

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argumentos formativos para a reflex‹o e realiza•‹o de processos criativos em artes

cnicas.

Bras’lia, 15 de Setembro de 2011

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SUMçRIO

PRIMEIRA PARTE

1-Sobre o conceito de Teoria

2-  Natyasastra:Teoria Teatral e a Amplitude da Cena 

3- Catarse, rasa, flor: contextualizando a produ•‹o de emo•›es a partir da

compara•‹o de tradi•›es performativo-musicais

4- Genealogias da dan•a

SEGUNDA PARTE

1- Preliminares

2- A.Appia: a encena•‹o como renova•‹o da pr‡tica teatral

3- C. Stanisl‡vski: a cincia do ator e a estŽtica do espet‡culo 

4- V. Meyerhold: A materialidade do evento cnico

5-Erwin Piscator e o fim da ilus‹o da ilus‹o teatral

6- B. Brecht A dramaturgia como teoria da a•‹o

TERCEIRA PARTE

1-Arte e Subjetiva•‹o

2- As raz›es do jogo segundo H.G. Gadamer

3- O drama como metaestŽtica

4-- Luigi Pareyson e a an‡lise da experincia estŽtica

5- Raz‹o, fic•‹o e Hist—ria 

6- Hist—ria cultural e teatralidade: Roger Chartier e a textualidade de obras

 performativas 7- Tradi•‹o e raz‹o : modernidade e mito em Rumble Fish

8- Aproxima•›es a uma dramaturgia f’lmica a partir do caso Eisenstein 

9- Cinema e teatralidade: O beb (santo) de M‰con, de Peter Greenaway

10- As implica•›es performativas da escrita fugal: Uma leitura de A arte da

 fuga, de J.S. Bach

11- Notas sobre o drama musical de Claudio Monteverdi

12- Do —pera Studio de C. Stanislavski aos musicais de Brecht: notas por umanova historiografia do teatro.

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13- Dire•‹o cnica de obras dram‡tico-musicais:O trabalho de Matthew Lata

no Florida State Opera

14- A realiza•‹o de —peras como campo interart’stico: dramaturgia,

 performance e interpreta•‹o de fic•›es audiovisuais.

15- Dramaturgia musical: notas sobre o conceito

16- An American in Paris: cinema, mœsica e teatro 

17- Dramaturgia, colabora•‹o e aprendizagem

18-Todos os teatros de Hugo Rodas

19- Dramaturgia Musical e Cultura Popular

20- A discuss‹o da idŽia de espa•o em Kant e seu contraponto na teatralidade

de Hugo Rodas

21-Todos os teatros de Hugo Rodas

22- Dramaturgia e Comididade: notas de pesquisa em curso

23- Teatro e Conceitos: um debate em aberto

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PRIMEIRA PARTE

1- SOBRE O CONCEITO DE TEORIA

A aproxima•‹o entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos teatrais tem acarretado a

redefini•‹o de diversos conceitos e experincias. Entre eles temos o de Theoria.

Recentes pesquisas contextualizam mais efetivamente a atividade que na maioria das

vezes se viu relacionada ao campo da especula•‹o filos—fica pura.

Segundo Andrea Nightgale ÒNo per’odo cl‡ssico , theoria adotou a forma de

 peregrina•›es rumo a or‡culos e festivais religiosos. Em diversas situa•›es, o

theoros/espectador foi enviado por sua cidade como um embaixador oficial: esse

theoros c’vico viajava para um centro de or‡culos e festivais, observava os eventos e

espet‡culo que l‡ ocorria, e retornava para casa trazendo um relato oficial de

testemunha presente aos acontecimentos. Um indiv’duo poderia tambŽm emprender

uma viagem te—rica por meios privados; entretanto, o theoros  ÔparticularÕprestava

contas somente a si mesmo, e n‹o tinha necessidade de tornar pœblicas as suas

descobertas quando do retorno ˆ cidade. Seja c’vica ou particular, a pr‡tica da theoria 

abrangia a viagem em sua totalidade, incluindo o afastamento do lar, a experincia de

observar e o retorno. Mas no seu centro estava o ator de ver, geralmente focado em

um objeto sagrado ou espet‡culo. De fato, o theoros  em um festival religioso ou

santu‡rio testemulhava objetos e eventos que eram sacralizados por meio de rituais: o

observador adentrava em uma zona de Ôvisualidade ritualizadaÕ na qual modoscoditianos de observar eram revistos por pr‡ticas e ritos religiosos. Este modo

sacralizado de platŽia era um elementos central da theoria tradicional, e oferecia um

 poderoso modelo para a no•‹o filos—fica de ÔverÕ as verdades divinas ( NIGHTGALE

2004:3).3Ó 

3 No original : ÒIn the classical period, theoria took the form of pilgrimages tooracles and religious festivals. In many cases, the theoros was sent by his city as anofficial ambassador: this ÒcivicÓ theoros  journeyed to an oracular center or festival,viewed the events and spectacles there, and returned home with an official eyewitness

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O longo texto acima supracitado nos ajudar a melhor contextualizar a

atividade da teoria, aproximando-a da atividade cnica.

Ou seja, em termos tŽcnicos, podemos identificar que, antes de sua

codifica•‹o filos—fica, o exerc’cio da THEORIA desdobrava-se em atividades

 privadas ou publicamente comissionadas de indiv’duo ou grupo de indiv’duos para

 participar, observar e transformar em relato um programa de eventos religiosos.

Como se pode observar, a defini•‹o de THEORIA n‹o Ž pontual: h‡ um

conjunto heterogneo de atos, saberes e deslocamentos, que projetam a complexidade

de uma pr‡tica cultural espec’fica, cuja matriz Ž religiosa, mas que se espraia como

institui•‹o c’vica.

Partido dessa heterogeneidade de base, podemos come•ar a detectar alguns de

seus aspectos mais relevantes. O exerc’cio da THEORIA demanda inicialmente uma

Òdramaturgia da jornadaÓ, com suas etapas de partida e retorno como marcos bem

caracter’sticos. Ao se colocar em movimento, em transcurso, em participe da jornada,

o agente da THEORIA inicia o processo cujo limites s‹o ao mesmo tempo as

expectativas e os par‰metros que contextualizam a atividade: ir para ter de voltar Ž o

que especifica o agente da THEORIA.

A dramaturgia da jornada efetiva-se apenas pelo transcurso, pelo cumprimento

do circuito de partida e retorno. H‡ uma experincia na amplitude da jornada que

somente a consuma•‹o de todo o transcurso atesta que a THEORIA foi realizada.

Assim, h‡ uma homologia entre a experincia da THEORIA e a amplitude da jornada.

Logo a amplitude da jornada e, consequentemente, a da THEORIA, explicita-

se pela diferen•a radical entre os momentos iniciais e finais do transcurso. ƒ pela

impossibilidade de haver a completa identidade entre a partida e a chegada que o

sujeito da THEORIA precisa por-se em caminho, para, alŽm de seu lugar, porque,

onde ele est‡, a THEORIA n‹o se realiza, e no espa•o de emergncia da observa•‹o l‡

report. An individual could also make a theoric journey in a private capacity: theÒprivateÓ theoros, however, was answerable only to himself and did not need to

 publicize his findings when he returned to the city. Whether civic or private, the practice of theoria  encompassed the entire journey, including the detachment fromhome, the spectating, and the final reentry. But at its center was the act of seeing,generally focused on a sacred object or spectacle. Indeed, the theoros at a religiousfestival or sanctuary witnessed objects and events that were sacralized by way ofrituals: the viewer entered into a Òritualized visualityÓ in which secular modes ofviewing were screened out by religious rites and practices. This sacralized mode ofspectating was a central element of traditional theoria, and offered a powerful modelfor the philosophic notion of ÒseeingÓ divine truthsÓ.

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mesmo a jornada n‹o se completa. H‡ uma paradoxal din‰mica na configura•‹o das

 partes da THEORIA: tudo se encaminha para a incompletude de cada etapa, com a

n‹o identidade entre agente e local. Em um primeiro momento, o agente da

THEORIA precisa dirigir-se para um outro espa•o-tempo a fim de dar in’cio ao

 processo. Chegando a este outro espa•o-tempo, ele ainda n‹o atingiu todo o percurso.

Dessa maneira, para o exerc’cio da teoria em sua amplitude o agente exercita-

se em um conhecimento que o envolve totalmente, que o leva para um outro tempo e

lugar. O deslocamento f’sico do agente da THEORIA Ž a imagem da mudan•a, da

transposi•‹o necess‡ria que tal conhecimento reivindica. Para que o conhecimento

te—rico se efetive Ž necess‡rio que o sujeito participe de algo que n‹o est‡ relacionado

ou reduzido ao seu universo familiar e cotidiano. H‡ pois um intr’nseco la•o entre a

THEORIA e seu exerc’cio: participar da THEORIA Ž tanto conhec-la quanto

conhecer-se.

O segundo momento Ž o da participa•‹o nos rituais. Ap—s a jornada, o agente

da THEORIA integralmente deslocado figura um novo desdobramento: entre aquele

que toma parte do intenso e variado programa das celebra•›es rituais e aquele que as

observa, descreve, analisa, assimila. Sons e imagens dos cultuantes em suas can•›es,

dan•as e palavras povoam a mente. Trata-se de um saber testemunhal que articula

diversas competncias. Alem disso tal saber est‡ submetido ˆ atualidade da co-

 presen•a dos rituantes e do observador. Pois, do contr‡rio, a jornada seria irrelevante.

Existe a jornada porque o tipo de conhecimento que se adquire na THEORIA Ž algo

que n‹o pode ser realizado completamente ˆ distancia, na ausncia. O agente da

THEORIA deve deixar seu lugar pois n‹o est‡ em si e nem onde mora aquilo que vai

conhecer.

Dessa forma, a atualidade da performance dos cultuantes promove um

contexto experiencial œnico, irrepet’vel, que se transforma no horizonte dosdesdobramentos do peregrino.

PorŽm, no prosseguir do tempo de contato com os eventos observados, ocorre

uma redefini•‹o do Òestranhamento te—ricoÓ: aquilo que antes era extraordin‡rio e

inusual, que acarreta tamanho esfor•o da jornada, torna-se ent‹o o cotidiano, o

habitual. A intensa carga de eventos do programa das festividades religiosas lan•a o

agente da THEORIA de um padr‹o anterior deixado na cidade de outrora para o

 padr‹o constru’do a partir das celebra•›es de agora.Se se observar bem h‡ v’nculos estreitos entre os conhecimentos e

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experincias do agente da THEORIA nas etapas do transcurso e da participa•‹o nos

rituais: em ambos os momentos h‡ um desdobramento de a•›es e habilidades, que

demandam uma amplia•‹o da percep•‹o que o agente venha a ter de si ao se ver

diante de eventos que o colocam nos limites de sua mundividncia. Ao partir e ao

chegar nos festivais, o agente da THEORIA confronta-se com a abertura provocada

 pela simultaneidade de expectativas e padr›es, do entrechoque entre experincias

 prŽvias e novas situa•›es.

O terceiro momento Ž o do retorno. Tudo que viu e ouviu deve caber em um

relato. O relato contŽm o registro dos eventos e sua aprecia•‹o. Aqui temos duas

 perspectivas, a do peregrino e a de sua comunidade de origem. Para o peregrino h‡

um intervalo radical entre o relato e os rituais: tudo o que ele disser n‹o vai englobar o

que aconteceu. Mas o que for selecionado para ser apresentado Ž o que ele traz

consigo. A constru•‹o do relato explicita tanto as experincias observadas com a

transforma•‹o destas em um conjunto organizado de referncias. As habilidades em

compor esse conjunto conjugam-se com a amplitude dos eventos observados. Da’ a

segunda perspectiva: o que importa Ž mostrar para aqueles que n‹o foram aos rituais

que eles foram bem representados, que, mesmo que n‹o empreenderam o transcurso

 para alŽm dos muros da cidade, ainda s‹o capazes de experimentar e dar completude a

uma experincia de certa maneira a eles vinculada. O relato Ž uma experincia de

correla•‹o, n‹o se esgotando no conteœdo de sua mensagem, nem na atividade de seu

realizador: h‡ algo para alŽm do circuito observado-observador, uma modalidade de

saber que parte da unicidade do intŽrprete mas se encaminha para a comunidade.

Com isso, a jornada do agente da THEORIA Ž o percurso de atualiza•‹o de

uma sŽrie de contradi•›es que definem um conhecimento em performance. Tal saber

 processual e peregrino projeta-se como uma via de acesso para muitas das quest›es

que envolvem artistas inseridos na inteligibilidade de seus processos criativos. Arealiza•‹o de pesquisas em artes aproxima-se da produ•‹o de conhecimento em

 processos criativos.

REFERæNCIAS BIBLIOGRçFICAS

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2- NATYASASTRA: TEORIA TEATRAL E A AMPLITUDE DA CENA

 ƒ antes do —pio que a minh'alma Ž doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

 E eu vou buscar ao —pio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

Fernando Pessoa, Opi‡rio 

O  Natyasastra  Ž um tratado sanscr’tico sobre as rela•›es entre palavra,

mœsica e movimento. Um estudo mais detido de suas estratŽgias de constru•‹o de

objetos observacionais pode possibilitar uma melhor compreens‹o da amplitude da

cena, ou seja, uma compreens‹o da concretude material de obras audiovisuais.

O estudo do tratado  Natyasastra se constitui como uma provoca•‹o contra

nossos h‡bitos de teorizar as artes da cena4.

Inicialmente, a op•‹o por uma outra tradi•‹o, diferente da chamada ocidental

europŽia, coloca-nos diante de uma oportunidade rara de acompanhar tanto as formas

4 O Ocidente entrou em contato com o tratado Natyasastra, que possui mais dedois milnios de existncia, apenas a partir da segunda metade do sŽculo XIX. Mesmoem pleno sŽculo XX, ainda o conhecimento da obra se encontrava extremamentelimitado, como se pode ler nessa breve nota de C. Lanman ao Journal of AmericanOriental Society, em 1920: ÒAlguns membros de nossas associa•‹o querem inteirar-sesobre o conteœdo de cartas escritas pelo professor Belvalker, de Poona, êndia. ƒ queele possui uma edi•‹o e uma vers‹o anotada desse antigo e important’ssimo

(exceedingly important ) tratado. Tais obras manifestam claramente as enormesvantagens que os nativos Indianistas tem sobre n—s, Indianistas do Ocidente.Ó Naedi•‹o do professor Belvalker, alŽm da cr’tica textual de manuscritos do tratado, h‡referncias Òa 93 admir‡veis ilustra•›es pintadas nas paredes internas de um templodo sŽculo XIII, que apresentam v‡rias das coreografias descritas no cap’tulo 4 dotratado. (...)Tais ilustra•›es nos habilitam a compreender Bharata claramente.ÓLANMAN,C. Bharata's Treatise on Dramaturgy.  Journal of American OrientalSociety, 40:359-360,1920. Mesmo na pr—pria historiografia moderna do teatro indianoh‡ dificuldades em se localizar teoricamente o  Natyasastra. Para a modernahistoriografia do teatro indiano e o inst‡vel lugar de o  Natyasastra v. SOLOMON,R.H. From Orientalist to Postcolonial Representations: A Critique of Indian TheatreHistoriography from 1827 to the Present. Theatre Research International , 29: 111-127, 2004.

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de constru•‹o e organiza•‹o do dom’nio da an‡lise (objetos), quanto o conseqŸente

reflexo dessa diversa constitui•‹o de objetos em nossas tradicionais categorias e

mŽtodos de an‡lise.

Por exemplo. Diferentemente de nossos padr›es escol‡sticos de investiga•‹o,

que procuram submeter objetos de pesquisa a um rigoroso tratamento racional-

descritivo (prescritivo, muitas vezes), estabelecendo ordens e subordina•›es, o

 Natyasastra se apresenta como uma compila•‹o de diversas fontes, uma edi•‹o

fundamentada na acumula•‹o e sobreposi•‹o de excursos, digress›es de mitologia,

ensino, norma, conselho, valendo-se tanto de met‡foras e conceitos, quanto de

 pr‡ticas de classifica•‹o e enumera•‹o de distin•›es5.

Essas fontes, pertencendo a tempos e regi›es diversos, promovem uma

sucess‹o de cap’tulos topicalizados nos quais a acumula•‹o de interesses mœltiplos Ž

o que predomina.

Tal emaranhado imediatamente ca—tico e disperso, sem um identific‡vel

centro de orienta•‹o expl’cito, seja na macroestrutura do texto, seja em comando de

uma voz autoral, reveste-se, contudo, com o transcurso da leitura, de uma espec’fica

coerncia: o da experincia cnica em sua amplitude.

Do come•o do tratado, temos a inser•‹o da atividade do   performer  em uma

ambincia m’tica e c—smica6. Segundo o relato, em um passado primordial, o povo

deste mundo, imerso em profunda selvageria, suplicou aos deuses algo que n‹o s—

trouxesse sabedoria como tambŽm deleite tanto aos olhos quanto aos ouvidos.

Brahma os atendeu e integrou, em um espet‡culo s—, todas as artes e cincias,

5 Tal aspecto comulativo e dispersivo do texto de  Natyasastra Ž interpretadode forma negativa e redutora por G.Ley, que v a obra como um compndio de regrasque imp›e certo controle sobre as performance individuais, escrito sob a perspectivade um diretor de companhia e Òbem distante de um manual de performance e de umdramaturgoÓ A forte presen•a do mito e da religi‹o refor•aria uma autoridade distanteda pr‡tica, ocasionado o tratado ser mais um discurso entre discursos sobre o fazerteatral, como A PoŽtica de Arist—teles, e os textos de Zeami. Igualando teoria ediscurso, Ley acaba por invalidar a materialidade presente nos tratados que comenta.O forte modelo aristotŽlico seleciona seus coment‡rios sobre Natyasastra e Zeami. V.LEY, G. AristotleÕs Poetics,BharatamuniÕs  Natyasastra, and ZeamiÕsTreatises:Theory as discourse. Asian Theatre Journal 17:(191-204),2000.

6  Para cita•›es do texto do  Natyasastra, seguimos RANGACHARYA,Adya. Natyasastra, Munshiram Manoharlal Publishers, 1996.

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formando um espet‡culo de palavras, mœsica, movimentos, atua•‹o e cenotŽcnica que

requer para sua efetiva•‹o pessoas inteligentes, s‡bias, diligentes e com autocontrole7.

A promo•‹o desta integra•‹o de habilidades e conhecimentos, deste campo

interart’stico e realizacional Ž a meta de  Natyasastra. Note-se como tal impulso

integrativo difere de empresas intelectuais como as de Arist—teles. N‹o h‡ em

 Natyasastra a sobrevaloriza•‹o de um elemento n‹o performativo, de um material que

ser‡ transformado em performance8. Ao contr‡rio, sem uma perspectiva unificadora, o

 Natyasastra aplica a cada uma das atividades de composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e

 produ•‹o de espet‡culo tanto uma incessante enumera•‹o de seus tipos e formas,

conhecidos a partir de tradi•›es de performance, quanto interconex›es, junturas,

sobreposi•›es. O labirinto em que se torna o texto de  Natyasastra  advŽm deste

excesso de nexos e pluralidade de aspectos pelos quais cada evento significativo Ž

apresentado.

Para mentalidade educadas no aristotelismo, o quase-cap’tulo sobre rasa 

revela-se atrativo9. Mas reduzir a contribui•‹o do Natyasastra a uma teoria do efeito

emocional (rasa) Ž algo temer‡rio. Mesmo na tradi•‹o indiana, a partir do sŽculo IX

iniciou-se uma abstra•‹o do conceito.  Rasa, associado ˆ experincia concreta de

7  Ravi Chaturvedi enfatiza a ÔinterdisciplinaridadeÕ do  Natyasastra.PorŽm, usa o termo como sin™nimo dos aspectos interart’sticos do teatro s‰nscrito - avelha no•‹o de diferentes artes reunidas e somadas. A partir dessa abstra•‹o, n‹o levaem conta o contexto efetivo para a realiza•‹o - a produ•‹o do espet‡culo. Assim, as’ntese das artes tomada como interdisciplinaridade revela um tru’smo acadmico,uma peti•‹o de princ’pio. Conf. CHATURVEDI,Ravi. Interdisciplinarity: ATradicional Aspect of Indian Theatre. Theatre Research International,26:164-171,2001.

8  Arist—teles, por exemplo, enumera os elementos da tragŽdia, mas

centra-se no eixo trama-efeito emocional. Para os descompassos entre a abordagemaristotŽlica e a realidade efetiva do teatro em Atenas v. WILES, David. GreekTheatre Performance. Cambridge University Press, 2000. Para uma investiga•‹o maisdetalhada da performance da tragŽdia grega v. MOTA, Marcus.  A dramaturgiamusical de ƒsquilo. Tese de Doutorado, Universidade de Bras’lia, 2002.

9  Cf. THAKKAR, B.K. On the Structuring of Sanskrit Drama:Structure of Drama in Bharata and Aristotle. Ahmedabad, Saraswati Pustak Bhnadar,1984, e GUPT, G.  Dramatic Concepts Greek and Indian: A Study of The Poetics andThe Natyasastra. Nova Deli, D.K.Printworld, 1994. M. Heath, em sua resenha desteœltimo livro, afirma que, em virtude da negligncia de Arist—teles em rela•‹o ˆ

 performance, Ò a tradi•‹o grega de fato n‹o oferece nada remotamente compar‡vel ˆdetalhada an‡lise do gesto e atua•‹o que existe no  Natyasastra.ÓV. HEATH, M.Resenha de GUPT 1994. Journal of Hellenic Studies, 115: 195-196, 1995.

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sorver um l’quido, e disto o prazer dessa experincia, o gosto, torna-se depois a

essncia da poesia, a essncia de tudo, do universo10.

Mas no contexto de Natyasastra, rasa n‹o Ž um conceito isolado. A met‡fora

do fruto e de seu suco e do suco sorvido e do prazer do suco sorvido procura

apresentar a globalidade de atos envolvidos na efetiva•‹o multidimensional da

 performance. ƒ para a situa•‹o de performance que a met‡fora aponta. Ao invŽs do

aspecto pontual e un’voco que um modelo comunicacional-afetivo conduz,

 pressupondo uma l—gica de causa efeitos (est’mulo-resposta) para clarificar o

 processo representacional, em  Natyasastra  temos um encadeamento de distin•›es

cada vez mais detalhado.

Ainda ao se definir rasa, no Natyasastra encontramos outra imagem:

 pessoas comendo comida preparada com diversos condimentos e molhos

misturados, se elas tm sentidos apurados, apreciam diferentes gostos e sentem prazer

(satisfa•‹o) com isso. Semelhantemente, espectadores de sentido apurado, ap—s

apreciarem as v‡rias emo•›es expressas pelos atores em suas palavras, gestos e

emo•›es, estes espectadores sentem tambŽm prazer nisso. Esta (final) emo•‹o sentida

 pelos espectadores Ž aqui explicada como as v‡rias rasa.

A analogia entre comensais e espectadores procura apresentar o fluxo, a

continuidade entre agentes e materiais envolvidos em um mesmo processo. O nexo

entre a comida preparada com v‡rias misturas e o espectador capaz de saborear essa

refei•‹o n‹o Ž baseado em uma dicotomia entre a forma fechada do drama e a

 passividade do audit—rio. ƒ para os atos, Ž para a participa•‹o total dos agentes na

atividade representacional que os conceitos se direcionam.

Logo  Rasa ent‹o entende-se como um circuito de est’mulos, rea•›es e a•›es

dentro de uma situa•‹o performativa. Ao mesmo tempo que sua produ•‹o Žsegmentada, sua composi•‹o mesma Ž pluralizada. ƒ necess‡ria a interpenetra•‹o de

mœltiplos atos e agentes para que o rasa se efetive. Logo, n‹o se pode simplificar rasa

como a emo•‹o estŽtica.  Natyasastra  trabalha n‹o com conceitos como resumos de

10  V. MARTINEZ, J.L. Semiosis in Hindustani Music.  InternationalSemiotic Institute, 1997, CHAUDHURY, P.J. The Theory of Rasa.  Journal of

 Aesthetics and Art Criticism, 24: 145-149,1965, e THAMPI, G.B. Rasa as AestheticExperience. Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24:75-80, 1965.

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uma experincia intelectual e sim com conceitos operat—rios, que interligam

atividades representacionais a processos interativos.

A posterior anal’tica das fontes, est’mulos e atos f’sicos para se produzir rasa 

constitui uma das impressionantes contribui•›es para a teoria teatral. Este imenso

repert—rio de distin•›es apresenta-se um mapeamento e investiga•‹o do corpo e da

 psicologia humanos articulados a partir de acumulada observa•‹o tradicional. Tanto

que esse imenso cat‡logo refere-se constantemente a tipos e estilos interpretativos11.

Para n—s, muitas vezes acostumados ˆ generalidade da teoria dos gneros

liter‡rios, o contato com essa enumera•‹o de tradi•›es performativas e procedimentos

e habilidades corporais conexas, essa selva selvagem de nomes, esse contato Ž

 perturbador. Mas, se bem compreendido, tal contato esclarece o mŽtodo de

organiza•‹o do Natyasastra.

 Natyasastra  n‹o privilegia nossas conhecidas estratŽgias aprior’sticas, de

estabelecer previamente distin•›es, hierarquias e defini•›es para depois aplicar tais

esquemas aos fatos. Diferentemente, Natyasastra reœne e integra feitos da tradi•‹o, de

uma tradi•‹o multissecular, composta de dramaturgias e estilos interpretativos

diferenciados. Cada uma dessas dramaturgias e estilos interpretativos Ž descrita a

 partir dos recursos, procedimentos, habilidades e efeitos recepcionais que, em

situa•‹o de performance, a especificam. ƒ a observa•‹o das op•›es, das escolhas

 performativas que determina a classifica•‹o. ƒ o conhecimento da amplitude e

materialidade da performance que fundamenta os atos cognitivos de estabelecimento

de distin•›es e tipos. A diferen•a est‡ no ponto de partida.  Natyasastra pratica uma

teoria baseada na observa•‹o e na experincia da materialidade da performance. N‹o

Ž um pensamento contra a performance ou que substitui a performance por um

suplemento ideativo.

Por isso, a atividade mesma do  Natyasastra, sua produ•‹o dessa rede decat‡logos e sobreposi•›es revela-se intimamente relacionada com o conhecimento

daquilo que investiga. O tratado  Natyasastra  Ž ele mesmo uma imagem da

multidimensionalidade da performance, em sua constante busca de interconex›es e

nexos variados. A escrita do  Natyasastra Ž a performance de um saber performativo.

11  Conf. BROWN,J.R. Shakespeare, the Natyasastra, and DiscoveringRasa for Performance.  NTQ,  21:.3-12, 2005. Neste artigo, seu autor relata aexperincia de valer-se dos conceitos do  Natyasastra para prepara•‹o de atores pararepresentar Shakespeare, usando o rasa como est’mulo para a coerncia interpretativa

 baseada na percep•‹o e recria•‹o de gestos e rea•›es cotidianos.

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O objeto de conhecimento determina a l—gica de sua investiga•‹o. Afinal, catalogar Ž

apresentar a coisa, Ž um modo de vincular o objeto apresentado ˆ sua apreens‹o em

um contexto de uma oralizada transmiss‹o de conhecimentos. O detalhamento

descritivo Ž a oferta da posse de algo que se define audiovisualmente.

 N‹o admira que na abertura do texto temos o estatuto figurativo da obra:

alguns s‡bios vm ao encontro de Bharata, um grande conhecedor e especialista em

natya, integra•‹o entre dan•a, drama e mœsica. Forma-se uma roda em torno de

Bharata e seguem-se perguntas sobre natya. O  Natyasastra  apresenta em versos as

 perguntas e respostas deste encontro, o jogo de roda entre o audit—rio e Bharata. A

sabedoria performada ( sastra) por Bharata a respeito da integra•‹o entre drama,

mœsica e dan•a Ž o que estrutura o Natyasastra. E essa sabedoria advinda n‹o da idŽia

da arte mas do contato com a tradi•‹o Ž passada pelo contato com os s‡bios.

A amplitude das atividades descritas por Bharata, desse modo, fundamenta-se

no vinculo entre conhecimento e tradi•‹o. As raz›es da performance encontram sua

medida no nexo cont’nuo e intenso com a situa•‹o efetiva da cena, em sua

composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o.

Uma an‡lise atenta de Natyasatra pode nos ajudar a estabelecer horizontes

mais eficazes para as rela•›es entre teoria e teatro.

Tanto que recentemente a apropria•‹o de conceitos do  Natyasastra  tem

 passado por um grande debate cr’tico dentro da teoria da performance. R.Schechner,

em reedi•‹o de seu cl‡ssico  Performance Theory, insere o artigo ÒRasaestheticsÓ

como œltimo cap’tulo, como se o contato com o Natysastra culminasse todo o projeto

te—rico-cr’tico do autor.

A apropria•‹o que Schechner faz do  Natyasastra  Ž seletiva12. Primeiro,

 Natyasastra Ž usado para exemplificar como um chamado Ocidente se distingue de

um imaginado Oriente em termos de rela•‹o mente-corpo e, disto, temos asimplica•›es para a performance. Assim, o pressuposto racionalismo ocidental reduziu

certa abordagem mais hol’stica das artes da cena, enquanto que o pressuposto

sensualismo oriental incrementou tal abordagem.

Partindo dessa dicotomia baseada em estere—tipos culturais, Schechner advoga

um contato mais estreito com o Oriente- Natyasastra  como forma de supera•‹o das

12  Sigo, nesse ponto, os lœcidos coment‡rios de MASON, D. Rasa,ÔRasaestheticsÕ and Dramatic Theory. Theatre Research International  ,31:69-83,2006.

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dicotomias do Ocidente-Arist—teles e, desse modo, disponibilizar os intŽrpretes para

uma ampla dimens‹o da performance.

Para tanto, Schechner prop›e uma sŽrie de exerc’cios Ð chamados

 Rasaboxes- para que tal supera•‹o se concretize e seja explorada pelos atores. Os

exerc’cios objetivam liberar o intŽrprete do dispositivo de vincular sua sensibilidade a

qualquer justificativa e motiva•‹o t’picas de um sistema de treinamento como o de

Stanislaviski: ao invŽs de se seguir uma Ôpsico-logiaÕ, o intŽrprete deve buscar as

 partes menos l—gicas da emo•‹o, a emo•‹o por ela mesma.

Concretamente, os exerc’cios s‹o assim produzidos: os v‡rios membros do

treinamento desenham ou marcam para si uma ‡rea retangular no ch‹o. Cada

ret‰ngulo Ž dividido em nove partes. A parte central fica vazia. Nas outras escreve-se

o nome de emo•›es, de Rasas. Ap—s, cada pessoa mostra como materializa cada um

dos rasas para as outras, atravŽs do ato de associar sentimentos e idŽias ao nome da

emo•‹o. Depois, todos se movem entre os ret‰ngulos dos outros e v‹o se apropriando

fisicamente das express›es dos demais membros do treinamento. Para completar toda

a ronda o exerc’cio leva horas13.

Tal espacializa•‹o da emo•‹o se manifesta pela express‹o do corpo todo Ð

gestos, vocaliza•›es, movimentos. Os ret‰ngulos s‹o ‡reas de improvisa•‹o das

indica•›es emocionais e ‡reas de troca, de contato entre os demais agentes envolvidos

nessa experincia. O movimento entre os ret‰ngulos favorece a dupla perspectiva de

conhecer e expressar atos atravŽs de sentimentos e de participar do grupo e, com isso,

re-situar tais emo•›es sob uma perspectiva supra-individual.

Da’, temos a segunda face dessa apropria•‹o: o direcionamento para uma

experincia comunal se constitui em uma clara recusa de outra dicotomia presente no

teatro ocidental: a dicotomia entre recep•‹o e produ•‹o, entre atores e platŽia. Essa

arte total, plena residiria na idŽia de comunh‹o, que perpassa a estrutura•‹o dassess›es de exerc’cios dos Rasaboxes.

Contudo, tais elementos potencialmente cr’ticos atribu’dos ao  Natyasastra 

est‹o completamente ausentes no texto sanscr’tico. O  Natyasastra  n‹o se dirige

exclusivamente para treinamento e forma•‹o de intŽrpretes, n‹o se funda na

sobrevaloriza•‹o da sensibilidade, nem muito menos vale-se de uma unifica•‹o

 pœblico-atores. O car‡ter enciclopŽdico do  Natyasastra  explicita a diversidade de

13  SCHECHNER, R. Rasaesthetics. Theater Drama Review, 45:27-50,2001.

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‰ngulos concomitantes pelos quais atos performativos s‹o produzidos e avaliados. A

met‡fora do banquete n‹o se reduz ao consumo sensorial. Antes, procura incluir

diferentes perspectivas de um mesmo e espec’fico processo.

Assim, n‹o h‡ a dicotomia emo•‹o-intelecto ou um corpo desmembrado ou

ainda o privilŽgio de um componente l—gico sobre outro f’sico porque o Natyasastra 

n‹o parte da dicotomia prŽ-dada, como Schechner. A amplitude do saber performativo

que o  Natyasastra  pratica n‹o se confunde com a amplia•‹o de uma l—gica dual e

exclusivista que Schechner tanto defende, quanto ataca. A nega•‹o do Ocidente em

 prol do Oriente operada pela Rasaesthetics Ž autista: se confina ao circuito restrito do

global mercado de exotismos.

A componente mercadol—gico de teorias interculturalistas nos mostram que

elas tambŽm legitimam certas pr‡ticas e valores, apesar de muitas vezes

 propagandearam algo bem maior que seus produtos14.

Isso fica bem claro na pretens‹o de supress‹o da individualidade, do

comunitarismo objetivado pelos  Rasaboxes. Na verdade, temos uma cr’tica ao

individualismo e n‹o ascens‹o a esferas alŽm da raz‹o. Ao se identificar

individualismo, racionalismo, dicotomia performer-platŽia como obst‡culos para uma

arte mais genu’na, profunda, total a op•‹o por inverter os referentes n‹o nos coloca

em um outro mundo nem, muito menos, torna justific‡vel a equa•‹o entre elementos

identificados e limita•›es ˆ liberdade criadora. Porque ali, na mesma letra, onde est‡

escrito aquilo que se nega,registra-se tambŽm aquilo que Ž reafirmado nesse mesma

nega•‹o: os Rasaboxes acabam por efetivar um espa•o teraputico o qual, para cada

indiv’duo, Ž uma oportunidade de regenera•‹o ps’quica15.

Assim, a disparidade entre a proposta de Schechner e o  Natyasastra  nos

mostra o qu‹o autoreferenciais podem ser as teorias. Trabalhando com um dom’nio

limitado de objetos e de conhecimentos, cada teoria corresponde, pois, a um conjuntolimitado de estratŽgias discursivas16. Logo, toda teoria explicita sua pr—pria

14  Cf. MASON, D. Rasa, ÔRasaestheticsÕ and Dramatic Theory. Theatre Research International, 31:12,2006.

15  M. Mininck,colaboradora de R. Shechner, afirma que ÒQuando as pessoas experimentaram os  Rasaboxes, comentam com frequncia os aspectosteraputicos dos exerc’cios. Realmente, eles s‹o teraputicos.Ó in SCHECHNER, R.Rasaesthetics. Theater Drama Review, 45:15,2001.

16  GEROW,E .Rasa and Katharsis: A Comparative Study, aided bySeveral FilmsÓ Journal of The American Oriental Society,122:264-277,2002.

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  ##

metalinguagem. A amplitude de  Natyasastra  relaciona-se com a amplitude da

tradi•‹o catalogada, com a diversidade de pr‡ticas que parecem ser unificadas por um

texto que durante sŽculos foi escrito e reescrito.

Sem um centro tem‡tico,  Natyasastra  se espraia na obsessiva compila•‹o e

estabelecimento de conex›es entre pr‡ticas e estilos que seriam can™nicos, tudo isso

em fun•‹o de tradi•›es milenares mœltiplas e dispersas. Tanto que o alvo cr’tico das

 postula•›es de  Natyasastra desapareceu: o tratado se dirige a performances que s—

existem como cita•‹o.

Ironicamente, R.B. Patankar, comentando a relev‰ncia de Rasa em nossos,

dias, afirma que a teoria presente em  Natyasastra  tem sido mal trabalhada por dois

tipos de cr’ticos: aqueles que n‹o levam em considera•‹o contextos espec’ficos do

 pensamento art’stico na êndia prŽ-brit‰nica e ignoram ou adaptam as proposi•›es

sanscr’ticas; e os pr—prios especialistas em s‰nscrito, que vem nos textos do passado

uma rel’quia e rejeitam toda e qualquer aplica•‹o da teoria do Rasa a obras e situa•›es

modernas17.

Tais pontos extremos apontados por Patankar imp›e que lidemos com

 pressupostos que ostensivamente tenham conscincia de sua situa•‹o interpretativa.

Pois as tentativas de se escapar do paroquialismo cultural encontram no estudo das

teorias e do teatro sanscr’tico um impulso renovador 18. Na verdade mais que conhecer

realmente  Natyasastra,  Natyasastra, por seu estranhamento e situa•‹o-limite, Ž que

faz com que n—s conhe•amos melhor a n—s mesmos.

.

17  PATANKAR, R.B Does Rasa Theory Have any Modern Relevance? Philosophy East and West , 30,293-303,1980.

18  TILIS, S. East, West and the World TheatreÓ  Asian Theatre Journal , 20:71-87,2003. V. BHARUCHA,R. A Collision of Cultures:Some WesternInterpretations of the Indian. Theater Asian Theatre Journal  1:1-20,1984.

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  #S

3- CATARSE, RASA, FLOR: CONTEXTUALIZANDO A PRODU‚ÌO

DE EMO‚ÍES A PARTIR DA COMPARA‚ÌO DE TRADI‚ÍES

PERFORMATIVO-MUSICAIS 

A perspectiva deste trabalho Ž a contribui•‹o dos estudos teatrais - no caso, de

 performances comparadas - para o esclarecimento do procedimento de produ•‹o de

afetividade em obras multidimensionais, ou seja, eventos interart’sticos que

demandam uma heterogeneidade de habilidades para sua elabora•‹o, realiza•‹o e

recep•‹o. Estamos, pois, falando de emo•›es suscitadas in situ, em um acontecimento

intersubjetivo orientado e definido pela explora•‹o de materiais e procedimentos

disponibilizados para uma audincia.

A limitada discuss‹o esbo•ada sobre os efeitos da tragŽdia em a  PoŽtica 

aristotŽlica amplia-se na compara•‹o com outros escritos sobre obras dram‡tico-

musicais, como o Natyasastra,de Bharata, e aos tratados de Zeami19.

ƒ importante observar que tais textos conjugam fatos de composi•‹o (formas

de encadeamento dos eventos representados) a efeitos de recep•‹o, demonstrando

como eventos performativos s‹o multidimensionais.

Por outro lado, Ž no detalhamento dos processos de composi•‹o, ausente em

 A poŽtica, que se verifica, nos tratados sanscr’tico e japons, a inteligibilidade dos

efeitos por meio de procedimentos dram‡tico-musicais bem especificados.

Por meio desse jogo de aproxima•›es e contrastes, podemos melhor

contextualizar a amplitude e a complexidade do ato de se propor eventos impactantes

efetivados por meio de uma marca•‹o sonora das respostas emocionais. ƒ o que

 pretendemos discutir neste trabalho.

Inicialmente apresento a conceptualiza•‹o aristotŽlica dos efeitos da tragŽdia,

na  PoŽtica  , conectando-as com o trecho do livro VIII de a  Pol’tica (1342a). Emseguida, as propostas de Bharata e Zeami.

 Arist—teles

A conhecida e sucinta passagem aristotŽlica sobre os efeitos emocionais da

tragŽdia vincula produ•‹o da afetividade com o arranjo das a•›es: ÒA tragŽdia Ž a

19 LEY 2000 tambŽm vale-se dos mesmo textos e autores que s‹o foco destacomunica•‹o, mas os concebe apenas com ÔdiscursosÕ, com pouca aplica•‹o ˆsatividades que descrevem.

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  #V

m’mese de uma a•‹o em que a virtude est‡ implicada, a•‹o que Ž completa, de certa

extens‹o, em linguagem ornamentada, com cada uma das espŽcies de ornamento

diversamente distribu’da entre as partes, m’mese realizada por personagens em cena, e

n‹o por meio de uma narra•‹o, e que, por meio da piedade e do temor, realiza a

catarse de tais emo•›es20Ó

Em  A pol’tica, Arist—teles havia afirmado que a mœsica n‹o s— como pr‡tica

educativa e sim como Ôcatarse, o que seria desenvolvido, aproximando a quest‹o da

catarse de seu horizonte audiofocal21. No conhecido trecho, ap—s discorrer sobre uma

interven•‹o na MousikŽ para a forma•‹o dos cidad‹os e da cidade, Arist—teles afirma

que,alŽm dessa uso dos objetos musicais h‡ outros: Òentendemos que a mœsica n‹o

deve ser apreendida apenas porque promove uma disposi•‹o benŽfica, mas sim

muitas; na verdade, o seu uso refere-se n‹o s— ˆ pr‡tica educativa como ˆ catarse;

quando tratarmos da PoŽtica explicaremos com mais clareza o que entendemos por

catarse que aqui empregamos de modo simplesÓ22.

20 PoŽtica 6 ,1449, b 27 ss. Cito tradu•‹o em GAZONI 2006: 51. Mais

recentemente, algumas vozes levantam veementemente em defesa do expurgo dessa passagem de referncias ˆ catarse, argumentando que a quest‹o da catarse n‹ocontribui em nada para a compreens‹o do projeto morfol—gico aristotŽlico, masrelacionado ˆ trama dos eventos que aos efeitos (SCOTT 2003,VELOSO 2007). Mas,

 para uma discuss‹o ampla da dramaturgia musical, tanto no contexto ateniense quantona tradi•‹o de realiza•›es audiovisuais, Ž preciso fazer notar que temas decomposi•‹o (arranjo das partes) n‹o se desvinculam de quest›es de recep•‹o (MOTA2008). Plat‹o, em A Repœblica, discute em sucess‹o o modo de apresenta•‹o e o ethos musical, ap—s fundar a cidade ideal como recusa de tradi•›es performativas. V.MOTA 2007. A exclus‹o n‹o elimina o problema. A marca•‹o emocional Ž um

 procedimento presente em obras dramatico- musicais, discutida e teorizada seja no

que se refere ˆ atua•‹o (Paradoxo do comediante,de Diderot), seja na dramaturgia( Pequeno —rganon, de Brecht). A quest‹o Ž pensar a produ•‹o de nexos e v’nculosrecepcionais em uma situa•‹o de representa•‹o, como se manipulam expectativas,referncias e materiais, sendo a marca•‹o emocional um dos procedimentosutilizados. ƒ em dire•‹o ˆ amplitude da cena que a marca•‹o emocional precisa serindexada. Se se iguala o efeito de obras multidimensionais ˆ marca•‹o emocional, sese inflaciona a afetividade dessas obras, omite-se a compreens‹o do contexto

 produtivo, do processo criativo dessas obras, nas quais a marca•‹o emocional Ž maisum entre os procedimentos e recursos.

21  Pol’tica, 1341 b 38.22 Arist. Pol. 1341b Ð 1342 a . Arist—teles elenca trs tipos de usos da mœsica:

uma para fins educativos; outro para fins lœdico-representacionais; e um œltimo paradescontra•‹o e esfor•o ap—s o tempo dedicado ao trabalho.Ó

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  #;

Com a nfase na defini•‹o da tragŽdia mais na composi•‹o que na recep•‹o,

as implica•›es da musicalidade na produ•‹o dos efeitos tornam-se mais rarefeitas23.

De qualquer forma se esbo•a uma possibilidade, um argumento a ser desenvolvido em

 projetos que levem em considera•‹o a rela•‹o entre produ•‹o de afetividade e

dramaturgia musical.

 Natyasastra24 

O tratado s‰nscrito divide-se em 36/37 cap’tulos, discorrendo sobre os

diversos aspectos que envolvem a elabora•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o de

umas obras que integram canto, dan•a, mœsica, palavra e atua•‹o. Essa dramaturgia

total Ž exposta em cap’tulos que acumulam descri•›es detalhadas e esbo•os de

discuss›es conceituais de atividades e conceitos diretamente relacionas ˆ

materialidade dos atos e efeitos dessa dramaturgia25.

Em virtude do car‡ter compilat—rio do tratado, escrito e reescrito durante

sŽculos, os cap’tulos tanto discorrem sobre um dos aspectos determinantes para

compreender obras dram‡tico-musicais quanto acumulam referncias aos demais

aspectos discutidos ou ainda a discutir. O perfil de  Natyasastra Ž o de enciclopŽdica

enumera•‹o de distin•›es e detalhes relacionados a uma tipologia proposta para cada

um dos t—picos. ƒ um verdadeiro esfor•o de organizar e avaliar dados de tradi•›es

heterogneas, os quais nos remetem para uma intensa e especializada produ•‹o

dram‡tico-musical. A recolha dessas informa•›es, com o subseqŸente detalhamento

23 Entre os elementos da tragŽdia, Arist—teles afirma que o mais importante Ž atrama dos fatos,Poet. 1450 a . ELSE 1957 brada contra a elimina•‹o da mœsica da

 poŽtica. SIFAKIS 2001:54-71, tenta reverter esse julgamento, apontando rastros demœsica na poŽtica a partir do conceito de imita•‹o. Mas recentemente DUPONT 2007fornece uma an‡lise mais detalhada das implica•›es dessa elimina•‹o metodol—gica

da dramaturgia musical.24 Para uma leitura mais detida do  Natyasastra, v. MOTA 2006. Para o

conceito de rasa, v. MARTINEZ 1997 e 2001. Neste œltimo texto, Martinez traduznatya sastra como ÔdramaturgiaÕ.

25 Veja-se ordem dos cap’tulos: 1-4 origens m’ticas do drama musical erela•›es entre o drama e rituais propiciat—rios;5-programa das performances.;6-Rasa;7-Bhava;8-13 corpo em performance;14-tipologia do repert—rio e mapeamentode estilos regionais;15-19- verbalidade: mŽtrica,vocalidade, linguagem; 20-22tipologia do repert—rio(no Ocidente, t—pico associado ˆ teoria dos gneros); 23-23Caracteriza•‹o: figurinos, movimentos e gestos das figuras do repert—rio;27-

 produ•‹o e recep•‹o;28-33 Instrumenta•‹o musical, tipologia das can•›es; 34-tipologia das personagens e distribui•‹o dos papŽis;35 excurso m’tico que finaliza otratado, retomando o in’cio.

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  #l

da fisicidade e das diversas implica•›es dos atos representacionais demonstra a

sofistica•‹o dessas tradi•›es n‹o reduzidas a um lugar, a um estilo de interpreta•‹o e

a um modelo compositivo.

O dois cap’tulos sobre a afetividade dessa dramaturgia musical inserem-se

nesse projeto de pensar e mapear distin•›es observadas nessas tradi•›es. Ou seja, Ž a

 partir das performances, do contato com um repert—rio de obras e com sua

materializa•‹o Ž que a quest‹o da afetividade,tanto quanto as da caracteriza•‹o ou da

dramaturgia, s‹o expressas.

 Nesses dois cap’tulos sobre a afetividade do espet‡culo dram‡tico musical

estudado em  Natyasastra  h‡ uma complementaridade entre o detatalhamento das

emo•›es em situa•‹o de performance, suscitadas pela atividade dos agentes cnicos, e

afetividade n‹o representacional, presente no cotidiano. Este passo Ž fundamental na

 proposta de Bharata. Pois as emo•›es produzidas em cena n‹o uniformes: elas s‹o

heterogneas, em fun•‹o de suas fontes e de suas combina•›es. A complexidade da

marca•‹o afetiva nas obras multidimensionais investigadas no Natyasastra manifesta-

se na mœtua implica•‹o entre o representacional e n‹o representacional. A discuss‹o e

esclarecimento da complexidade da marca•‹o emocional precedem uma seqŸncia de

cap’tulos relacionados ˆ fisicidade do ator. O amplo detalhamento dos tipos de gestos

e movimentos depende da compreens‹o prŽvia dos nexos recepcionais. O que o ator

faz РRasa Ð est‡ vinculado ao que o pœblico j‡ tem Ð bhava.

 No tratado, rasa Ž exposto por uma analogia com a culin‡ria, com algo fora do

mundo do palco. Assim como uma refei•‹o Ž materialmente heterognea, composta

 por v‡rios condimentos e produtos, gerando um sabor, do mesmo modo, um

espet‡culo providencia uma diversidade de afetos senso o sentimento final da obra o

que Bharata denomina Rasa. Mesmo podendo-se distinguir emo•›es, rea•›es,

est’mulos que acontecem durante um espet‡culo e seus correlatos no mundo fora daobra, em termos da realiza•‹o da performance tais efeitos e afetos conectam-se t‹o

intrinsicamente que n‹o h‡ mais como distingui-los. O que pode ser separado s‹o as

v‡rias modalidades desses conœbios as emo•›es provocadas e as emo•›es constru’das.

E todo caso a atividade do agente dram‡tico direciona-se para suscitar tais efeitos que

s‹o previamente distingu’veis e materialmente produzidos.

Assim, antes de se exercitar no dom’nio de suas habilidades performativas Ð

canto, movimento e posturas - o ator precisa conhecer o mundo, os modos como oshomens reagem aos acontecimentos, para depois selecionar e combinar estas

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  #m

referncias prŽvias (bhava) em formas e efeitos (rasa) que depois s‹o materializados

(abhinaya) fisicamente.

Desse modo, a amplitude do espet‡culo apontado em  Natyasastra  Ž

 percept’vel tanto em sua realidade interart’stica quanto em sua multireferencialidade.

 N‹o Ž ˆ-toa que nos conselhos para as pe•as sejam bem sucedidas, Bharata afirme:

Òos objetos a serem compreendidos s‹o tantos, a vida Ž t‹o curtaÓ, que cr’ticos, como

espectadores bem aplicados ao que observam, devem ser atentos, honestos e capazes

de argumentar e raciocinar ao mesmo tempo em que se alegrar quando a personagem

se alegra, ou se sentir u desgra•ado quando a personagem se sente desgra•ada. De

outro lado, o ator deve ter inteligncia, t™nus, beleza f’sica, timing , sentimentos e

emo•›es, idade apropriada para o papel, curiosidade, disposi•‹o para aprender,

lembrar e entender, para superar o pavor de estar no palco e poder se entusiasmar.Ó

 Note-se a complementaridade entre as competncias exigidas entre quem faz e

que avalia os eventos encenados.

 Zeami

O horizonte do projeto intelectual de Zeami difere intensamente dos dois

outros analisados. Inicialmente, temos a perspectiva de artista pertencente a uma

companhia teatral familiar, o qual se defronta com as tradi•›es art’sticas concorrentes

e com a sobrevivncia estŽtica e econ™mica.

Os 23 textos atribu’dos a Zeami abrangem 30 anos de produ•‹o monogr‡fica,

iniciada quando ele tinha 38 anos26.H‡ uma intensifica•‹o da elabora•‹o dessas obras

escritas a partir com o passar dos anos, com a retomada e amplia•‹o de quest›es

 previamente apresentadas. Tal marco temporal melhor se compreende quando lemos

no cap’tulo de abertura do primeiro tratado escrito por Zeami, o  Fžshikaden, que h‡,

 para cada idade, uma demanda de excelncia (flor), e que um ator, que desde os seteanos Ð idade de come•o da forma•‹o das habilidades exigidas para o desempenho do

 N™ Ð tenha se exercitado nessa arte, ao chegar ao limiar dos 40, deve tanto reexaminar

as experincias passadas quanto se preparar para enfrentar os efeitos da decadncia

f’sica e desenvolver as habilidades que projetem seu futuro.

 Nesse sentido, o escrever nesta idade e mais e mais partir desse ponto cr’tico

manifesta a simultaneidade entre a auto-reflex‹o e um dom’nio de conhecimentos que

26 GIROUX 1981:85-103.

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  #n

ser‹o transmitidos durante um tempo em que o artista encontra em consagra•‹o

 pœblica e excelncia na execu•‹o e conscincia dos atos.

Dentro desse horizonte, Zeami escreve para explicitar o dom’nio de uma

tradi•‹o interpretativa determinada. Essa fenomenologia do processo criativo para a

cena expressa-se heterogeneamente:ctemos tipologias e classifica•›es, conselhos,

exame da tradi•‹o oral, uso e discuss‹o de textos e doutrinas n‹o estŽticas, entre

outras fontes e meios de organiza•‹o de sua escrita.

A quest‹o da marca•‹o afetiva ou das emo•›es em situa•‹o de representa•‹o

n‹o Ž enfocada em um cap’tulo exclusivo em seus tratados. A afetividade n‹o Ž um

tema tratado em si mesmo, mas aparece sempre relacionada ˆ discuss‹o e

compreens‹o da atividade do  performer . As emo•›es do espet‡culo apenas existem

com um subtema relacionado com a materializa•‹o do espet‡culo por meio do ator.

Essa inusitada abordagem n‹o nega a existncia de emo•›es nem muito menos

 justifica uma reduzida postura intransitiva e autoexplicativa de eventos

multidimimesionais. A prevalncia do trabalho do ator sobre outros t—picos relativos ˆ

arte teatral manifesta um ancoramento dos julgamentos e reflex›es de Zeami: s— faz

sentido falar de algo performativo a partir do momento que se trabalhe com algo que

d coerncia ao processo que se investigue.

Este ancoramento, contudo, n‹o limita ou elimina a amplitude do evento.

Antes, Ž a partir da compreens‹o que tudo que se mostra precisa ser realizado de

algum modo, precisa ser organizado em sua efetiva•‹o, que a base performativa da

abordagem de Zeami n‹o se confunde com indiv’duo-ator ou sua difusa e redundante

idealiza•‹o.

Da’ a flor. Em sua ambivalncia, a imagem da flor Ž utilizada em diversos

contextos para traduzir distintos aspectos da forma•‹o do ator e da amplitude do

espet‡culo27. Como o ator Ž o espet‡culo, a diversidade de procedimentos ehabilidades que Ž apresentada por Zeami acarreta a compreens‹o dos par‰metros do

espet‡culo. A flor, hana, Ž inicialmente o aspecto da figura que se representa (o velho,

o louco) vista na sele•‹o de seus tra•os que a melhor definam28. Ou seja, a atua•‹o

articula-se com a configura•‹o. Essa configura•‹o Ž conhecida pelo ator e pelo

27 A ÔflorÕpode se referir: I- ˆ excelncia do  performer ; II- ˆ pr—pria performance, como algo que aparece e se mostra em sua organiza•‹o; III- ao efeitodessa organiza•‹o sobre uma recep•‹o.

28 Sigo de perto discuss‹o em SIEFFERT 1968:70-75.

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  #:

 pœblico. O ator precisa explorar o espa•o entre configura•‹o conhecida e sua

habilidade de valer-se de suas habilidades para concretizar o modelo quanto ampliar a

 percep•‹o deste, enriquecendo o repert—rio ao diversificar as expectativas de recep•‹o

do tipo. Cada um dos papŽis possui sua configura•‹o, expectativas e dificuldades para

a sua realiza•‹o e amplia•‹o do interesse. Assim como a flor, aquilo que se espera do

 papel, h‡ a flor no modo como este papel Ž realizado e outra flor no modo como ele Ž

recebido.

 Na discuss‹o dos papŽis de possesso e dem™nio isso fica bem claro. Se o ator

se entrega a estes papŽis, que demandam uma complexidade de movimentos para sua

execu•‹o para que se produza um impacto na audincia, e vale-se predominante de

uma intensidade que apaga a percep•‹o da configura•‹o , vai fazer com que haja

 perda de interesse por parte da platŽia. A dificuldade reside em reunir, no caso do

dem™nio, por exemplo, impulsos antag™nicos do horror e da atra•‹o, ou, na imagem

de Zeami, que afirma: provocar o interesse do dem™nio Ž como Òo eclodir de uma flor

sobre um recifeÓ. Tanto que se o ator apenas apresentar corretamente o dem™nio, far‡

um trabalho sem apelo algum.

 Nesse ponto se entende que flor conecta-se a flor, e o uso de uma imagem em

suas v‡rias aplica•›es aponta para o dom’nio das aparncias, daquilo que se mostra

como o campo de discuss‹o e compreens‹o do ator e das emo•›es do teatro N™. A

afetividade do espet‡culo acopla-se ˆ identifica•‹o do que Ž exibido em cena, do

modo como o ator aplica sua forma•‹o e suas habilidades para, em situa•‹o de

 performance, explorar as tens›es inerentes ˆs escolhas da materializa•‹o do papel. O

 papel n‹o Ž a pessoa do intŽrprete, assim como a atua•‹o n‹o Ž a proje•‹o de uma

intensidade pontual dos atos. Cada figura do repert—rio, nos contextos das pe•as, e na

tradi•‹o dos modelos, apresenta uma hist—ria de apropria•›es e transforma•‹o das

referncias a partir das performances realizadas. A audincia afei•oa-se tanto ˆqualidade da configura•‹o apresentada quanto ˆ qualidade do  performer   em

reorientar, dentro dos par‰metros da figura, as possibilidades do papel. Da’ temos

n’veis de aprecia•‹o, prazeres multiplicados, flores, n‹o somente aqueles relacionados

o papel, mas com o evento teatral: a demonstra•‹o de habilidades in situ a partir dos

limites e possibilidades da tradi•‹o e do repert—rio.

Ora, este tipo de afetividade relacionada a uma inteligibilidade de uma atua•‹o

em configura•‹o melhor se evidencia quando observamos que o teatro N™ Ž umespet‡culo dram‡tico-musical no qual dan•a e canto determinam os atos dos

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  SL

intŽrpretes29, e, consequentemente, a participa•‹o da audincia. O estudo dos papŽis

vincula-se ao desenvolvimento de habilidades corporais e musicais. Logo, podemos

 perceber uma paleta de emo•›es (desinteressante, interessante, ins—lito, maravilhoso)

vinculada ̂ qualidade da interpreta•‹o.

Caso extremo Ž o do œltimo grau: o efeito mais impactante no espectador, a

emo•‹o alŽm da emo•‹o, que dar‡ renome ˆ sua companhia, reside em uma ausncia

de forma, no desaparecimento da configura•‹o, da marca30. Mais precisamente o

efeito mais intenso que a dramaturgia musical pode desenvolver na audincia est‡ em

uma aparncia desprovida de sua tipagem, quando j‡ se realizou o correto e j‡ se

identificou a maestria do intŽrprete e, ent‹o, o foco j‡ n‹o est‡ aquilo que antes era

reconhec’vel como o material transformado pelo artista ou o trabalho do artista em

transformar tal material. Este novo sem passado, ÔpuraÕ apari•‹o, Ž a n‹o

interpreta•‹o, Ž a superemo•‹o. A negatividade Ž o absoluto provimento de algo cuja

materialidade se aprende no momento ampliado e redefinido dessa performance que

ultrapassa as suas determina•›es produtivas.

 Nesse sentido, a fenomenologia que Zeami realiza de uma dramaturgia

musical, a partir do efetivo processo criativo para a cena, exibe distin•›es que, em um

momento parecem abstratas, mas que, na verdade, explicitam a especificidade dessa

atividade de propor imagin‡rios audiovisuais para uma audincia.

Ainda, segundo MILNER 1996:83, Òpodemos conceber a flor (nos escritos de

Zeami) como sendo um ideal art’stico relacionado com a performance teatral.

Surpreendentemente, Arist—teles tinha pouco a dizer sobre a performance, e nada de

aproveit‡vel sobre os atores. Como um homem de teatro em todos os sentidos, Zeami

se preocupa com o que est‡ em curso, com o que os atores dizem e cantam, como se

movem e dan•am. Em outras palavras, a flor Ž o ideal de um te—rico e teatr—logo, preocupado acima de tudo com a performanceÓ

Zeami explora quest›es da atua•‹o a partir das implica•›es da musicalidade

da performance que organiza o espet‡culo. Assim, Òquanto a saber se nossa arte Ž, em

 primeiro lugar, etiqueta ou mœsica, ela Ž antes mœsica. (250)31.Ó Mais

29SIEFFERT 1968:165-166.30SIEFFERT 1968:132 e 170.31  Em parntesis nœmero das p‡ginas das cita•›es de Zeami presentes em

GIROUX 1991.

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  S"

explicitamente,Òpode-se considerar que os dois elementos, canto e dan•a constituem

seu estilo fundamental (158)Ó

A interse•‹o entre mœsica e atua•‹o promove a ÔflorÕ: Òassim, a mœsica bela e

melodiosa vem da realiza•‹o suprema. O encantamento (a flor da mœsica) n‹o existe

 por si. Ap—s ter estudado cuidadosamente todas as formas e ter ascendido ao grau do

 bem estar, este encantamento transparecer‡ naturalmente na melodia (208)Ó.

Explorando suas habilidades em situa•‹o de performance, o intŽrprete

manipula as expectativas da audincia e, disto, atinge a flor, o efeito da representa•‹o:

ÒSe se sentir que o pœblico inteiro espera, com a respira•‹o suspensa, que o ator se

imobilize, ent‹o deve-se parar com do•ura. Mas, se parecer que a maior parte tem

apenas um simples interesse, ent‹o que ele encontre a tens‹o de esp’rito e se imobilize

 bruscamente. Caso se imobilize contra toda a expectativa do pœblico, nascer‡ o

interesse. Isso Ž enganar o esp’rito da platŽia. Eis porque Ž particularmente importante

guardar o segredo de suas inten•›es a fim de n‹o as revelar aos que o assistem

(179).Ó

Como podemos observar por meio da exposi•‹o e compara•‹o das propostas,

em obras dram‡tico-musicais, os efeitos na audincia s‹o produzidos pela

demonstra•‹o de maestria dos par‰metros musicais que organizam a atua•‹o. A

configura•‹o, a forma adotada Ž o ponto de inteligibilidade que orienta a resposta

emocional. A construtividade do espet‡culo manifesta a construtividade do efeito.

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  SS

4- GENEALOGIAS DA DAN‚A: TEORIA CORAL E A DISCUSSÌO

DE ESTUDOS SOBRE A DAN‚A NA GRƒCIA ANTIGA

O eterno retorno ˆs fontes produz assincronias e assimetrias hist—ricas que

acarretam novos modos de se pensar e fazer arte. O caso da dan•a na GrŽcia antiga Ž

sintom‡tico32. Desde o sŽculo XIX, a partir da filologia cl‡ssica, monumentos

figurados da antiguidade (‰nforas, lŽcitos, crateras,pinturas,etc) foram utilizados

como registros de movimentos dan•arinos. Assim, por exemplo, a an‡lise e

decomposi•‹o de tra•os de figuras em vasos gregos poderiam nos informar sobre

 procedimentos coreogr‡ficos. Um grupo de pessoas pintado em um vaso nos

habilitaria a reconstituir um conjunto de movimentos: cada figura apresentaria um

aspecto desse conjunto. ƒ o que se pode observar nas obras de Maurice Emmanuel

(EMMANUEL 1896), Louis Sechan (SECHAN 1930), G. Prudhomeau

(PRUDHOMEAU 1965)33.

Outra abordagem Ž a de se interrogar documentos escritos: h‡ diversos textos

que apresentam referncias ˆ dan•a na antiguidade, desde textos poŽticos, que tanto se

organizam a partir de situa•›es performativas como registram informa•›es visuais

sobre tais situa•›es, atŽ coment‡rios e discuss›es em tratados filos—ficos ou textos

liter‡rios, como o fizerem Fritz Weege (WEEGE 1926), Heiz Schreckenberg

(SCHRECKENBERG 1960) e Lillian B. Lawler (LAWLER 1967 e 1974).

AlŽm dessa dicotomia entre texto e imagem, temos a proposta de Dora

Stratou(STRATOU 1966) e Alkis Raftis (RAFTIS 1987, LAZOU, A. & RAFTIS),

que correlacionam dan•as tradicionais ainda vigentes na hŽlade com dan•as gregas na

antiguidade34.Esta œltima alternativa tem tornado cada vez mais evidente a aproxima•‹o

entre discuss‹o da dan•a na antiguidade e sua recep•‹o. Ou seja, a cada nova

32 V. NAEREBOUT 1997, BUCKLAND 2006, CARDEN-COYNE 2009.33 V. HECK 1999.34 Para o teatro Dora Stratou, que abriu as portas em Atenas em 1953 , v.http://www.grdance.org/en. Para as outra obras de A.Raftis,http://www.grdance.org/raftis/index.html. Para as dicotomias texto/imagem narecep•‹o da dan•a grega,v. NAEREBOUT 1995. V. ainda SHAY 2002 e COWAN1990.

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apropria•‹o do que teria sido a dan•a grega manifesta-se um ato singular, criativo,

transformador. A retomada do passado, mesmo motivada pela perspectiva mais

reprodutora poss’vel, acarreta no plano do presente modifica•›es, reinterpreta•›es. E

quanto mais a apropria•‹o de um material hist—rico se faz em um contexto

 performativo mais e mais essa modifica•›es se tornam patentes. Ao se transladar para

o corpo dos intŽrpretes e para a intera•‹o com a audincia, o esfor•o de reconstitui•‹o

se transforma em uma pr‡tica configuradora35. Este paradoxo hist—rico-expressivo

das artes performativas nos coloca diante da interpenetra•‹o entre arte e pesquisa, ou

do diferencial do trabalho do artista pesquisador que em seu processo criativo se vale

de materiais outros que os imediatamente dispon’veis.

 Nesse sentido, temos o estreitamento entre pesquisa acadmica e art’stica

como exemplo recente na figura de Marie-HŽlne Delavaud-Roux. Em conjunto com

sua atividade de 'Ma”tre de conferences ˆ la facultŽ Victor-Segalen, Brest', por meio

da qual ela publicou diversos livros sobre dan•a na antiguidade (DELAVAUD-

ROUX,M.-H. 1996,2000,2000  a ), Marie-HŽlne Delavaud-Roux se dedica tanto a

coreografar, quanto a dan•ar performances instru’das a partir de estudos da dan•a na

antiguidade36. Denomino Ôperformances instru’dasÕa pr‡tica de se atualizar na

situa•‹o de apresenta•‹o tanto uma expressividade que implica mutuamente uma

enciclopŽdia de conhecimentos de intelectuais sobre determinado t—pico, quanto um

repert—rio de tŽcnicas e saberes corporais. Isso s— Ž poss’vel,pelo menos, em dois

casos: ou em um processo coletivo, no qual profissionais de diversas ‡reas reœnem

suas v‡rias especialidades em fun•‹o de uma meta comum, ou como no caso de

Marie-HŽlne Delavaud-Roux que tem forma•‹o em dan•a e em filologia. De

qualquer forma, note-se o desdobramento em diversos campos de conhecimento e

habilidades. O estudo da dan•a mais produtivo passa pela intera•‹o entre diversas

disciplinas e tŽcnicas, formando um intercampo de diversas artes e saberes.ƒ o que se pode observar em duas recentes publica•›es em torno da dan•a

grega.

1- Em 2006, no Archive of performances of Greek and Roman Drama, na

Universidade de Oxford, teve lugar um simp—sio internacional, ÔGreek drama and

35 KARAYANNI 2004, ZAFIRI 2007, SCHERECKEMBERG 1960.36 Veja no link blogs.univ-brest.fr/ledenominateurcommun/parlons-danse-antique-avec-marie-helene-delavaud-roux/, demonstra•›es de dan•a grega por M-H.Delavaud-Roux.

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  S;

Modern DanceÕ, que enfocou a rela•‹o entre performers e core—grafos modernos e

contempor‰neos com a recep•‹o de temas da cultura cl‡ssica37. O car‡ter

interdisciplinar e interart’stico do evento era motivado pelo questionamento da

sinuosa presen•a da ideia de coro e de sua contrapartida menos compreendida: a

dan•a.

Esse apagamento do coro na transmiss‹o e recep•‹o da cultura cl‡ssica

 promoveu tanto a uma redu•‹o de seu impacto, quanto solu•›es que muitas vezes

dialogam mais com seus pr—prios contextos criativos. Em suma, a busca de se

atualizar uma pr‡tica considerada modelar apena prolonga o intervalo entre Žpocas

diversas, hiato imposs’vel de ser transpostos Ð o da dist‰ncia hist—rica. Dessa forma,

tornou-imperativo a presen•a e discuss‹o do coro(e da’ da dan•a) a partir de

montagens realizadas ap—s os anos 80 do sŽculo passado.

As comunica•›es ao simp—sio foram publicada em forma de livro: The

 Ancient Dancer in the Modern World: Responses to Greek and Roman Dance

( MACINTOSH 2010). Nele, observa-se a diversidade de abordagens e perspectiva em

torno de um objeto flu’do, que se rematerializa das mais diversas formas: ora Ž o

fil—logo interrogando textos e imagens para capturar algum detalhe esclarecedor que

 possibilite fundamentar melhor o entendimento do passado, ora temos historiadores

da dan•a e performers rompendo com os limites das fontes para nos conduzir para as

 pr‡ticas e suas l—gicas dispersivas. Em todo caso, projeta-se para o leitor uma

enciclopŽdica acumula•‹o de resultados ainda em progresso, uma imagem n‹o

fechada daquilo que se procurou investigar. Pois, se Ž recente uma virada em dire•‹o

de atos performativos nas cincias da vida, a dan•a se converte em campo estratŽgico

 para essa demanda38.

ƒ o que se pode notar em esfor•os como o do simp—sio ÔGreek drama and

Modern DanceÓ. H‡ tanta coisa para se discutir, tanto sobre o que se falar, que o t’tulodo simp—sio n‹o abarca o que de fato foi debatido. Pois, para se discorrer sobre a

dan•a, h‡ tanta dificuldade, tantos caminhos indiretos que o pr—prio evento, que se

toma um enorme espa•o para se atualizar velhos protocolos de interpreta•‹o. A dan•a

Ž discutida como texto, como palavra, como ideia, como rito, como arte, entre tantas

coisas. Isso se deve ao fato que historicamente a dan•a sempre ocupou esse lugar

nenhum, essa dimens‹o de outorga, subsidi‡ria e marginal. Tivemos ÔŽpocasÕ em

37 www.apgrd.ox.ac.uk.38 BIAL 2007,CARLSON 2003.

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  Sl

torno da literatura, da pintura, da mœsica. Mas a dan•a, mesmo que elogiada ou

distinta, permaneceu nisso, como algo que em si mesma j‡ n‹o Ž: sempre depende de

uma outra inst‰ncia, superior ou inferior. Dentro de uma escala de valores e atributos,

rea•›es para valorize-la, ora tendiam para real•ar seu formalismo e autonomia, ora

 para index‡-la a qualquer outra pr‡tica ou discurso.

 Na verdade, diante de uma longa tradi•‹o de apagamento e controle, o

discorrer sobre a dan•a vai se deparar com o fragmentarismo de sua recep•‹o. Sempre

em peda•os, em alus›es, em empregos derivativos, a dan•a aparece destinada a uma

sobreposi•‹o de referents: para se reconstruir Ž preciso correlacionar informa•›es

d’spares de diversos espa•os-tempo. Essa epistemologia do retalho, da indefini•‹o,

do perfume, frequentemente se exibe como auto-elogio, mas logo, logo sossobra na

nostalgia de uma ordem, de um fundamento.

ƒ extremamente perturbador folhear as p‡ginas de The Ancient Dancer in the

 Modern World: Responses to Greek and Roman Dance e perceber que, por mais que

seja premente estudar e compreender a dan•a, o empenho investigativo ali expresso

ainda n‹o enfrentou seu espelho: os obst‡culos mesmos presentes em tradi•›es

intelectuais que, por suas pr—prias estratŽgias adotadas, entravam o acesso ao objeto.

ƒ como querer ca•ar coelho com uma enxada: o alvo se afasta, e o equipamento n‹o

serve. Fala-se de dan•a, mas n‹o de movimento.

Pesa sobre esta convergncia metodol—gica uma longa tradi•‹o de exclus‹o

sobre corpo e coro na recep•‹o da cultura cl‡ssica. ƒ extremamente dif’cil colocar no

centro de discuss›es algo que foi sempre tratado nas margens da palavra falada. Os

casos emblem‡ticos de Isadora Duncam e Martha Graham que partiram de referncias

da cultura grega antiga para realizar suas dan•as fundadoras ainda s‹o tratadas como

"classical influences upon modern dance.39"

2- Em meio ao incremento de estudos sobre a dan•a grega, um livro parece

apontar em outra dire•‹o. Trata-se de The dance of muses, de A. David (DAVID

2006)40. Come•o n‹o pelo livro, mais pelos videos que A.P. David disponibiliza em

seu site. A proposta de A.P. David Ž n‹o o de uma reconstru•‹o original da dan•a

grega, e sim de questionar o modo como lemos a cultura helnica apenas como tema e

39 Para uma outra perspectiva, v. NAEREBOUT 1998.40 Analiso mais detalhadamente a quest‹o mŽtrica da proposta de A.P.David emMOTA 2010.

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  Sm

ideia. Seu ponto de partida Ž o dos metros. Grande parte dos textos gregos cl‡ssicos

se organizava em torno de padr›es r’tmicos baseados na distribui•‹o de dura•›es das

s’labas e o jogo dessas dura•›es com acentos de intensidade. Assim, Homero e as

tragŽdias e as comŽdias eram elaboradas em fun•‹o da distribui•‹o de tempos e

acentos.

A.P. David articula esses padr›es mŽtricos, chamados de 'pŽs', a movimentos

f’sicos, a passos. No caso de Homero, o metro recorrente presente no texto (d‡tilo) se

correlaciona a uma coreografia. Veja-se o video ÔHomer greek danceÕ41 . Nele temos

uma performance de 2001 que demonstra a proposta de A.P. David. Em colabora•‹o

com a core—grafa Miriam Rother, assistimos a um jogo cnico entre a leitura de

trechos de A OdissŽia, de Homero ( Cat‡logo das naus, dan•a na corte de Alcinoo) e

as movimenta•›es de um grupo de estudantes. O grupo entra apresentando o ritmo

 b‡sico e depois circunda o recitador de poemas (A.P.David). Enquanto a leitura do

texto prossegue, o grupo de m‹os dadas e em c’rculo performa os passos do padr‹o

mŽtrico.

A composi•‹o da performance parece simples. Dentro da sala, contra o ch‹o

de madeira, a movimenta•‹o recorrente dos passos dos membros do grupo ecoa um

som firme contra a est‡tica posi•‹o central do recitador. PorŽm, uma an‡lise mais

detida explicita alguns procedimentos que enriquecem a percep•‹o do que se mostra

no video. Em primeiro lugar, as oposi•›es entre o coro e o recitador se d‹o dentro do

continuum da performance: durante o tempo da apresenta•‹o e naquele espa•o

definido as diferen•as expressivas entre entre eles ser‹o colocadas em sobreposi•‹o,

 provocando tanto entrechoques quando junturas. Aparentemente, a oposi•‹o entre a

estaticidade do recitador e a din‰mica do coro parece absoluta. Mas, por meio da

sobreposi•‹o, nota-se que o ritmo recorrente dos passos marca um ritmo que se

aproxima da fala proferida em padr‹o mŽtrico. Assim, o movimento dos pŽs sevincula ao movimento que a fala aduz, provocando novas assincronias e sincronias.

Pois o ritmo em estacatto dos pŽs n‹o se ajusta perfeitamente ao legato da voz. NO

entanto, mesmo assim, essa conjuga•‹o de pontos em uma linha do tempo d‡

 profundidade ao evento: a repercuss‹o das batidas nos pŽs vai formando um ru’do

 branco que unifica a performance, descentrando o primazia da voz como guia da cena

ou fonte de informa•‹o privilegiada a respeito do que est‡ acontecendo.

41www.web.mac.com/homerist/Dance_of_the_Muses/Homer_Dance_Video.html.

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Assim, com o prosseguir dos atos, novos efeitos e fun•›es s‹o agregadas. A

vincula•‹o do som ao movimento por meio de recorrentes batidas dos pŽs e dos

tra•ados proporciona um contexto de participa•‹o tanto para os membros do grupo

quanto para a audincia encerrada na sala. O jogo entre interrup•‹o e retomada do

movimento presente em cada cŽlula r’tmica da cena vai sendo expandido, ampliando a

imagem daquilo que se recebe a cada momento. A dan•a circular ao fim, nesse

esfor•o constru•‹o de um pulso e nfase nas recorrncias, acaba por atrair para si para

sua pr—pria configura•‹o as atividades dos intŽrpretes e audincia. Por meio da dan•a,

tudo vai sendo reunido e constraposto, para, enfim, integrar-se em conjuntura

ampliada. O grupo coral produz ent‹o pelo itera•‹o um minimalismo explorat—rio em

que um mesmo ritmo Ž redefinido a cada instante, rompendo com sua inteireza e

autofechamento para estar presente nas mais diversas formas de referncia ( passos,

 palavra, sons, visualidade).

Em outra dire•‹o, o video exibe as implica•›es da metodologia de A.P.David:

em vez de s— se dizer o texto, o ritmo que havia nas palavras ultrapassa a p‡gina

impressa e vem habitar o mundo da vida como dan•a. Esse movimento que implode o

textualismo e se revigora em movimento, a partir de algo tido como circunscrito ao

seu raio de a•‹o, Ž a maior contribui•‹o de A.P.David. N‹o se trata de ilustrar as

 palavras por meio da dan•a. A expl’cita pol’tica de interpreta•‹o presente na proposta

de A.P.David pode assim ser formulada: se Homero, que Ž o modelo de literatura do

Ocidente, foi elaborado a partir de ritmos presentes no mundo da vida, ent‹o dan•ar

Homero Ž atualizar que h‡ todo um conjunto de modos de produ•‹o de referentes e

 participa•‹o que n‹o se encontram delimitados por protocolos de interpreta•‹o

textualistas. Dan•a n‹o Ž texto, n‹o Ž linguagem, n‹o Ž imagem. Em sua dimens‹o

integrativa, a dan•a se apresenta como uma pr‡tica de articula•‹o de diversos modos

de express‹o e referncia. Assim, no menos Ôdan•avelÕ modo de express‹o Ð a ŽpicahomŽrica - podemos encontrar a dan•a mesma. No lugar da oposi•‹o dan•a /n‹o-

dan•a, o lugar da dan•a Ž o de uma presen•a absoluta, que Ž a do corpo e suas

medidas e express‹o. Apagar a dan•a em prol da fala, do texto escrito, foi

contraditoriamente tentar excluir a corporeidade como fundamento e impulso dos atos

expressivos. A contradi•‹o se resolve facilmente quando se pensa a dan•a como

dan•a e n‹o a partir da n‹o-dan•a. Foi o que A.P.David fez: inseriu a dan•a onde ela

 parecia n‹o existir, para que se revelasse como dan•a. Na composi•‹o da performance, o que Ž dan•a, sua orienta•‹o integrativa, transparece. E a c—pula se

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efetiva por meio de um movimento de cont’nuo e coletivo de, em situa•‹o de

 performance, dispor para audincia a  simultaneidade do heterogneo: ao mesmo

tempo o movimento corporal, os sons e as palavras se reajustam no jogo entre si,

 promovendo aproxima•›es e afastamentos percept’veis dentro de escalas diversas de

fen™menos psicof’sicos.

Ali, diante de todos n—s, os membros do coro dan•a e fazem mais que dan•ar:

tudo em volta e tudo o que fazem Ž transformado por seus passos. H‡ alguŽm falando.

Mas quando se dan•a na sala, quem fala passa a ser alguŽm que fala dan•ando, que

dan•a com as palavras, as palavras agora em movimento. A fala Ž o outro da dan•a, Ž

uma outra dan•a. A dan•a abarca em sua amplitude todos os atos. Por isso, sempre

foi ocultada, por sempre estar em todos e em tudo. Ainda: o coro dan•a. Mas tambŽm

emite sons, agrega outras atividades. O dan•arinos performam em situa•‹o

multitarefa. Logo, a partir disso, se quando alguŽm fala, na verdade dan•a, e quando

alguŽm dan•a tambŽm faz outra coisa, temos que o car‡ter absoluto da dan•a e do

movimento se percebe n‹o como um discurso abstrato de auto-elogio e sim na

concretude de atividades interligadas. O ritmo mesmo, que atravessa toda a

apresenta•‹o, Ž consequncia, Ž produto justamente dessa contextura de atos

correlativos. O espec’fico na dan•a Ž ser o entre-lugar das mais diversas atividades.

Sua heterogeneidade se manifesta em fun•‹o de seu horizonte de integra•‹o.

O coro no video disponibilizado por A.P.David, em sua arcaica exibi•‹o de

uma dan•a circular, foi elaborado a partir de estudos de mŽtrica e teoria coral gregas,

valendo-se de uma dan•a tradicional ainda performada na GrŽcia: o sirt—s (syrtos).

Temos novamente o caso de uma performance instru’da, na conjuga•‹o entre uma

erudi•‹o acadmica e repert—rio de habilidades corporais. No caso, temos o de uma

equipe interdisciplinar que trabalha com alunos em dois n’veis: o da mŽtrica textual e

da coreografia de uma dan•a tradicional.A provocativa proposta de A.P.David reside no fato de avan•ar por sobre os

limites da reconstru•‹o acadmica da dan•a na Antiguidade e propor uma correla•‹o

entre a mŽtrica de um texto escrito h‡ mais de dois mil e quinhentos anos e os passos

de uma dan•a atual. Estes limites da reconstru•‹o acadmica se tornam poss’veis

quando adentramos no contexto de um processo criativo. A criatividade aqui Ž tanto

inven•‹o das formas, quanto de produ•‹o de conhecimento. Na verdade, A.P.David

acaba por enfatizar fatos b‡sicos de eventos performativos: toda performance Ž unica,mesmo contando com prepara•‹o e elementos prŽvios. A criatividade na

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reperformance de dan•as da antiguidade n‹o pode ser vista como um desajuste em

rela•‹o a um poss’vel original, pois n‹o h‡ esse original. A reperformance de

materiais hist—ricos historiciza quem dela participa: para os integrantes do processo

criativo fica a aprendizagem de quem cada nova performance Ž um novo original 42;

 para os estudiosos e historiadores, a criatividade do processo criativo da

reperformance de dan•as da antiguidade exibe a necessidade de um pluralismo

metododol—gico que saiba lidar com as descontinuidades tanto das fontes, quanto das

express›es. Desse modo, a coerncia das performances instru’das reside na revis‹o

das estratŽgias interpretativas dos pesquisadores e/ou artistas.

Vamos por partes: os artistas podem achar que est‹o perigosamente fazendo

algo sem fundamenta•‹o, sem adequa•‹o ao que teria sido aquilo que est‹o

 procurando realizar. Este questionamento Ž bem incompleto. Primeiro, em um

 processo criativo temos a experincia de transforma•‹o dos intŽrpretes e de suas

fontes: nada vai permanecer como era43. Tal pressuposto choca-se com a vis‹o de que

o ato criativo Ž a reprodu•‹o de algo j‡ prŽ dado, da transposi•‹o sem altera•›es desse

 prŽ dado para os corpos e para a cena. O sentimento de que n‹o h‡ adequa•‹o entre

os atos de agora e o modelo de outra, esse intervalo e angœstia criativos, Ž algo

constitutivo do processo criativo, na presen•a mesma da tens‹o entre o impulso

configurador e a modifica•‹o de tudo que previamente se disp›e nos atos

transformativos. Na verdade, o fato de se trabalhar com materiais hist—ricos apenas

evidencia a atividade mesma do intŽprete. Em outras palavras, a reperformance de

dan•as hist—ricas Ž um subcaso caso da situa•‹o mesma de intŽrpretes em um

 processos criativo. No momento est‹o operando sobre um material hist—rico, noutro

 poderiam estar trabalhando sobre referncia da cotidianeidade. Mas em um e outro

caso eles se defrontam com o mesmo problema: uma metodologia do processo

criativo que leva em conta as dificuldades e obst‡culos inenrentes a atividades de umatransforma•‹o generalizada dos intŽrpretes e de seus materiais. No caso de se

reperformar dan•a grega antiga, por mais instru’dos e eruditos que sejam os

intŽrpretes, aquilo que eles v‹o apresentar em cena n‹o Ž mais dan•a grega antiga. E

ent‹o por que se propor a fazer algo que n‹o Ž o que pensam ser? Por que o esfor•o

de reperformar algo que j‡ n‹o Ž?

42 LORD 2000:100-102.43 V. PAREYSON 2005, PAREYSON 2003, MOTA 2004.

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  V"

Toda a problem‡tica reside na ideia de se aplicar ˆ express‹o "dan•a grega

antiga" uma identidade fechada, uma defini•‹o total de seus atributos, como se ela

fosse est‡vel e reconhec’vel em imagens e textos sobre sua pr—pria caracteriza•‹o.

Para tornar essa ideia mais suscet’vel ˆ sua argumenta•‹o, troque-se o referente: no

lugar da express‹o 'dan•a grega antiga' coloque-se 'dan•a grega tradicional'. Para n‹o

gregos, para os estudantes que se apresentam no v’deo temos uma mesma dificuldade:

ainda Ž aquilo que n‹o dominam, aquilo que v‹o ter de aprender, aquilo que vai se

apropriado e transformado no processo criativo. A dist‰ncia no tempo apenas amplia

a atualidade das dificuldades. E quanto mais pare•a dif’cil, imposs’vel de ser

realizada a meta, mais a compreens‹o da amplitude do processo criativo se faz

 presente. Pois a reperformance de dan•as hist—ricas surge causando um duplo frenesi:

a atualidade do mais remoto Ž um impulso dirigido ao tempo de hoje, seja na busca de

algo que parece n‹o haver aqui e agora, seja no ceticismo diante de empreendimentos

arqueol—gicos - "o que eu tenho a ver com esses gregos?44"

Aqueles jovens do v’deo devem ter enfrentado esse duplo frenesi, vivendo a

tens‹o entre o abandono de si e o medo de ser perder gratuitamente. Em todo caso, a

reperformance de dan•as hist—ricas se apresenta primeiro como uma utopia, uma meta

que n‹o ser‡ cumprida, mas desde j‡ acarreta dr‡sticas e radicais rea•›es dos

intŽrpretes quando de seu engajamento a tal projeto: o risco permeia todos os atos,

vindo tanto da comunidade art’stica, quanto da comunidade acadmica. Pois ambos os

lados ainda se debru•am nos males do corporativismo, em premissas que se baseiam

em manter uma ideal unidade de seus campos. O risco est‡ nas fronteiras, em n‹o

 poder nunca satisfazer premissas corporativas. Mas o risco Ž o tra•ado da dan•a, que

atravessa e justap›e aquilo que parece exclusivo e separado. Assim, a meta de

reperformance de dan•as do passado transforma-se em uma situa•‹o de atualizar a

heterogeneidade da dan•a, sua l—gica plural interat’stica e multidisciplinar. O risco Žestar fazendo coisas que simultaneamente articulam ordens diversas.

Tal risco coloca uma outra pergunta ao intŽrprete: o que eu dan•o na minha

dan•a? As aporias de perspectivas redutoras, seja no abandono de si, seja na nega•‹o

do outro, n‹o conseguem responder a quest‹o. No caso, a dan•a grega antiga nem Ž

algo para o eu possa me evadir desse mundo, nem Ž algo que eu possa refutar como

sem efeitos sobre meu presente. O que eu dan•o em minha dan•a nem Ž algo que j‡

44 ƒ o que a personagem Rusty James questiona em Rumble Fish (O selvagem damotocicleta), de F. F. Coppola. V. as implica•›es dessa quest‹o em MOTA 1996.

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  V#

foi, nem Ž algo que n‹o pode completamente n‹o ser. ƒ como media•‹o hist—rica e

atualidade do heterogneo da dan•a que a reperformance de dan•as do passado se

efetiva positivamente para o intŽrprete. Se tenho que dan•ar algo, que eu dance  isso,

que manifeste minhas op•›es art’sticas e referenciais. O encontro com as dan•as do

 passado n‹o v‹o me transladar para uma outra era; antes, vai me fazer melhor

compreender onde estou e quem eu sou. Vai me mostrar que assim como este passado

Ž atualizado por meio de constru•›es bem determinadas, aquilo que julgo ser meu

 presente  tambŽm est‡ dentro de um processo de reconstru•‹o. Eu estou dentro dos

xtases do tempo por meio da dan•a, me arremessando para a apropria•‹o

transformadora dos referentes45. Nessa artesania, torno-me cada vez mais um melhor

artista pesquisador, conciente do procedimentos de redefini•‹o de meus atos criativos.

Assim, aquilo que aparententemente n‹o tem nada a ver comigo, aquilo que Ž

completamente alheio ao meu mundo, acarreta o questionamento do que Ž esse 'nada a

ver' ou desse 'meu mundo'. A meta de se reperformar dan•as do passado, de se dan•ar

o passado Ž a de se romper com um pretenso isolamento do intŽrprete, de seu apego ˆ

enfadonha tagalelice sobre si mesmo. A dan•a do passado n‹o Ž o que j‡ foi, o que j‡

 passou, o que se esgotou. N‹o Ž a dan•a da GrŽcia antiga o que importa, e sim levar o

intŽrprete ˆ vivncia de alteridades adormecidades pelo reiterado recurso ao seu

autismo.

De fato o individualismo estŽtico, ou a distin•‹o estŽtica aparece como

contraponto ˆ utopia das reperformances de dan•as do passado. Segundo Gadamer, a

disti•‹o estŽtica Ž a proje•‹o ideal de um mundo arte como algo em si mesmo, fora do

tempo e do espa•o, proje•‹o essa de uma conscincia que tambŽm se pensa como algo

em si mesma, aut‡rquica46. Ao negar a utopia da dan•a do passado, ao precaver de

dan•ar o que n‹o se Ž, o intŽrprete procura reafirmar essa distin•‹o estŽtica, vendo na

dan•a algo justific‡vel somente como puro movimento, pautando a si pr—prio comofonte e meta dos atos expressivos.

De qualquer forma, ao abrir-se ao que n‹o Ž e ao que n‹o pertence ao seu

tempo, o intŽrprete que enfrente a utopia de dan•ar as dan•as do passado vai perceber

que essa negatividavidade na identidade e na hist—ria s‹o aparentes. Mesmo sendo de

outra cultura e Žpoca, dan•as antigas se efetivam em contextos performativos. N‹o

s‹o coisas sobre as quais a gente fala e elas passam a existir. O processo criativo

45 HEIDEGGER 1997.46 GADAMER 1999:135

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como media•‹o hist—rica e estŽtica proporciona a inser•‹o do intŽrprete em um

conjunto de atividades que se tornam o horizonte da identidade e da criatividade.

Disso, o medo de estar fazendo a coisa certa ao se reperformar uma dan•a do

 passado ou o receio de que tal ato venha a ser impeditivo para uma cria•‹o original se

exibem como varia•›es de modos de conceber o processo criativo e o lugar do

intŽrprete neste processo. As demandas por autenticidade e originalidade posicionam-

se como situa•›es opostas e excludentes, como procedimentos de exclus‹o da

heterogeneidade que justamente processos criativos da dan•a apontam. ƒ uma bizarra

situa•‹o trabalhar com pressupostos que v‹o diretamente contra o pr—prio contexto

multidimensioanal no qual se expressam os dan•arinos.

Como se v ent‹o, n‹o Ž para a dan•a grega que a quest‹o se remete. Ao

atribuir para a dan•a grega valoriza•›es extremas como origem de toda arte ou

exotismo artificioso, o foco do endere•amento se move Ž para os pressupostos dos

intŽrprete, para os conceitos que tm daquilo que fazem.

Voltando ao v’deo, A.P.David poderia simplesmente tentar a partir do texto ou

das imagens referentes ˆs dan•as gregas na antiguidade produzir um efeito de

realidade no qual houvesse a sugest‹o de que, quanto mais se demonstrasse o dom’nio

das fontes de pesquisa, mais o contexto original seria conhecido e transformado em

cena. O caminho de A.P.David foi de ir alŽm do texto escrito, de ver nas marcas

r’tmicas presentes no texto (mŽtrica, recorrncia de conteœdo, referncia a atos

 performativos) estabelecer a rela•‹o do registro escrito com algo fora do mundo da

linguagem. Esse alŽm do texto mas com o texto proporcionou uma descri•‹o formal

da Žpica que em seus par‰metro performativo-sonoros se aproximava de um registro

coreogr‡fico. Em outras palavras, ao explicitar a organiza•‹o do texto como sele•‹o

de padr›es de dura•‹o, intensidade e altura, A.P.David obteve escalas dos evento

registrados parcialmente no texto, os quais se completariam em eventos performativosglobais. Assim, o texto de Homero Ž uma tablatura, uma nota•‹o que, em sua

 parcialidade, n‹o objetivava substituir aquilo que registra, e sim indicar alguns de

seus procedimentos.

Observando isso, A.P.David partiu para o tipo de evento que os par‰metros

 psicoacœsticos registravam. Logo entendeu que este evento em sua amplitude n‹o era

o de uma simples elocu•‹o verbal. Nem muito menos era apenas mœsica. A

sonoridade era a pista para o salto do verbal para o n‹o verbal. Como se v no v’deo,a dan•a n‹o se separa do som. Os par‰metros psicoacœsticos n‹o se circunscrevem a

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eventos exclusivamente sonoros. O que se torna aud’vel Ž mais que a fonte sonora. O

 passo seguinte, o de atualizar este evento que tem palavra mas n‹o Ž ato verbal, que

tem som, mas n‹o Ž ato aural, residiria em manisfetar esses par‰metros

tridimensionalmente por intŽrpretes.

Fundamental para A.P.David foi o fato de perceber que a tablatura presente no

texto escrito em seu algoritmo se identificava com a descri•‹o da dan•a grega

tradicional sirt—s. Abaixo temos a f—rmula da frase coreogr‡fica encontrada no texto

de Homero47.

Traduzindo, temos seis grupos de d‡tilos, que s‹o pŽs mŽtricos compostos por

um tempo inteiro e dois meio tempos, na propor•‹o ent‹o de 1:1. Essa isocronia

 produz varia•›es temporais, j‡ que h‡ convers›es e reconvers›es das dura•›es: um

tempo inteiro pode ser substitu’do por dois meio tempos, e vice-versa. O œltimo pŽ

mŽtrico Ž abreviado (catalŽtico), marcando o fim da frase. Ent‹o, essa mesma frase se

repete indefinidamente com a mesma sucess‹o de seis conjuntos de pŽs mŽtricos, o

que forma uma repeti•‹o interna, espelhada. Hipoteticamente ter’amos o mesmo

movimento sendo repetido cinco vezes atŽ ser alterado, interrompido na œltima e sexta

 posi•‹o mŽtrica. Mas nem tudo Ž mesmice: no seio do mesmo, o outro: h‡ cesuras, ou

cortes, ou marca•›es de altera•›es. Ou seja, em certas posi•›es ou lugares mŽtricos,

h‡ altera•›es outras que a identificada na parte final na frase. Essas cesuras ou pontos

de mudan•a foram compreendidas inicialmente a partir de reitera•›es linguisticas: em

47 http://web.mac.com/homerist/Dance_of_the_Muses/Epic_Movement.html.

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  V;

algumas posi•›es ou lugares na frase, havia uma alta propor•‹o de quebras sint‡tico-

sem‰nticas. O mŽrito de A.P.David foi o de correlacionar esses fatos lingu’sticos a

feitos extralingu’sticos, a eventos fora do mundo verbal. O texto escrito registraria

uma din‰mica referencial que n‹o se traduziria em palavras somente.

Em descri•›es dos passos de dan•a do sirt—s, h‡ passos marcados para a

direita e esquerda, seguindo o caminho do c’rculo, e h‡ passos em que se cruzam os

 pŽs para tr‡s e para frente, marcando uma virada na movimenta•‹o48. Estes passos de

mudan•a da dan•a do sirt—s correspondem aos mesmos lugares mŽtricos marcados na

frase dat’lica como cesuras. A.P.David pode comprovar que foi o material lingu’stico

que se modificou para traduzir um referente n‹o verbal, a partir do momento que este

referente n‹o verbal pode ser identificado. Dessa forma, o que se conclui n‹o Ž que

Homero fosse dan•ado, mas sim que todo seu texto, toda a sua forma de express‹o

define-se em fun•‹o de um modelo coreogr‡fico. Dentro de uma cultura coral, na qual

a dan•a ocupa o horizonte dos atos cognivos, afetivos e volitivos, compor um poema

Ž se apropriar daquilo permeia todas atividades - o movimento coletivo.

Entre as possibilidades que se oferecem ap—s a contribui•‹o de A.P.David,

temos: assim como ele se valeu de dan•a outra que a imposs’vel dan•a original, n—s

 podemos a partir de temas cl‡ssicos buscar correlativos r’tmicos em nossa pr—pria

cultura para reinterpretar e redimensionar a recep•‹o dos motivos cl‡ssicos. O metro

recorrente do d‡tilo associa-se ˆ uma situa•‹o de improvisa•‹o: a continuidade

r’tmica favorece o estado de intensifica•‹o dos atos criativos. Um caso similar em

nossa cultura Ž o dos cocos49. Sendo "um gnero poŽtico-musical-coreogr‡fico"50, os

cocos integram canto, dan•a, mœsica instrumental e dramatiza•‹o, aproximando-se,

em sua dramaturgia audiovisual e interativa, de situa•›es presentes na apropria•‹o de

um modelo coral, como o foi a tragŽdia grega.Dessa forma, por meio dos cocos, encontramos uma media•‹o art’stica e

temporal que nos coloca em um processo criativo no qual nos defrontamos com

demandas e obst‡culos assemelhados aos de um modelo coral. O que se prop›e n‹o Ž

usar o coro como uma tragŽdia grega, e sim, ao compreender que a Žpica, a l’rica e o

48 http://www.greekfolkmusicanddance.com/bookdance.php.49 MOTA&NEPOMUCENO 2010.50 CAVALCANTI 1996:20.

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drama grego(tragŽdia e comŽdia) estavam diretamente relacionados com uma cultura

coral, pensar o processo criativo a partir da amplitude que essa cultura reivindica.

Outra possibilidade Ž a vem do estudo e da compreens‹o das matrizes

r’tmicas. Uma tragŽdia, a partir da cultura coral, organiza-se como um conjunto de

movimentos ritmizados51. A transcri•‹o desses ritmos em arquivos de ‡udio fornece

referncias audiofocais que podem ser reintepretadas coreograficamente52.

Ainda, sem a media•‹o de uma dan•a tradicional ou de reconstru•‹o de

ritmos, pode-se a partir do debate de fontes escritas sobre algum motivo m’tico

 produzir processos criativos que articulem novas imagens e sons, como os

apresentados durante a 50.a. mostra teatral Cometa Cenas, a partir de semin‡rio de

P—s-Gradua•‹o Produ•‹o e cria•‹o Art’stica no PPG-Arte, em 201053.

Enfim, se a dan•a tem buscado sua identidade, atribuindo muitas vezes ao

'momento grego' sua origem e/ou sua libera•‹o criativa, talvez esteja na hora de

 pensar melhor essa ascendncia afortunada, essa recorrente genealogia. Muta•›es na

dan•a e nos estudos cl‡ssicos tm impelido artistas e pesquisadores em outra dire•‹o

que o topos da origem como uma nostalgia de algo que se perdeu. O eixo do tempo se

desloca n‹o mais um ponto privilegiado no passado ou no futuro54. O foco no

 processo criativo, no artista criador e pesquisador faz com que cada vez mais se

desconfie de posturas essencialistas e idealizadoras.

APæNDICE: A RENOVADA PRESEN‚A DO CORO

1- A contribui•‹o dos Estudos Cl‡ssicos

Os v‡rios encontros entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos

 performativos historicamente tm promovido c’clicas renova•›es

51 MOTA 2009.52 MOTA 2011.53  Para a programa•‹o, v. www.unb.br/noticias/downloads/cometa _ cenas.pdf. A

 partir desse semin‡rio, o Barisah, com dire•‹o de Giselle Rodrigues, apresentou Danaides.54 BUCKLAND 2006.

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  Vm

art’sticas. Nesses encontros destaca-se a ÒidŽia do teatro gregoÓ, t‹o

movente quanto diversas foram suas materializa•›es, proporcionando

revolu•›es estŽticas tais como a îpera Florentina ou o Drama musical

Wagneriano, entre outros exemplos.

Mas a partir de 1970, com o solidifica•‹o de Programas de P—s-

gradua•‹o em Artes Cnicas na Europa e nos Estados Unidos, seguindo o

impacto do conceito e experincia da Performance em suas mais diversas

modalidades, novas abordagens sobre o teatro grego come•aram a se

desenvolver, fazendo com que a historiografia do teatro grego se

modificasse drasticamente. Novos objetos foram propostos, ampliando-se

nosso conhecimento sobre o contexto das realiza•›es dram‡tico-musicais

da Antiguidade.

Essa revolu•‹o epistemol—gica ainda est‡ em curso. Vemos que

houve uma invers‹o: na medida em que a transmiss‹o e interpreta•‹o dos

textos greco-latinos nos proveram uma imagem dos Festivais Teatrais

helnicos, procurando uma l—gica abrangente em restos parciais de uma

cultura dispersa e fragment‡ria, artistas se apropriaram dessa reconstru•‹o

ideal como ponto de partida para realiza•›es as mais intensas e

diversificadas.

De outro lado, com a mudan•a do modo de se fazer teatro desde

1960, helenistas e historiadores do teatro come•aram a rever como as

tragŽdias gregas eram elaboradas, realizadas e recebidas. Assim como

inovadores da linguagem tiveram de, no transcurso do sŽculo XX,

enfrentar uma abstrata oposi•‹o entre texto e espet‡culo para se focar em

seus processos criativos, tambŽm os estudiosos se viram compelidos a

aproximar os textos restantes da cultura teatral na Antiguidade de

contextos performativos.

 Nesse novo encontro entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos Teatrais,

temos produ•›es como  LÕAtrides, do ThŽ‰tre du Soleil, entre 1990-1992,

que incorpora v‡rios dos conceitos presentes na renova•‹o historiogr‡fica

da tragŽdia grega, enfatizando seus aspectos culturalistas e uma estŽtica

coral no seu sentido mais amplo, desde o processo criativo coletivista atŽ

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  Vn

a din‰mica coreogr‡fica das contracena•›es e da montagem das partes do

espet‡culo, bem como na integra•‹o entre mœsica, atua•‹o e visualidade55.

Uma an‡lise mais atenta na mais recente bibliografia acadmica

sobre tragŽdia grega ratifica os dividendos desse intercampo entreconhecimento da tradi•‹o helen’stica e modelos corais de realiza•‹o

teatral.

De in’cio, destaca-se obra The Athenian Institution of Khoregia.

The Chorus,The City, and The Stage, escrita por P. Wilson (WILSON

2000). Esta pesquisa de f™lego apresenta um aspecto pouco abordado

quando se fala de tragŽdia grega (e mesmo das Artes Cnicas): a

 produ•‹o. P.Wilson reinsere as obras dos Festivais Helnicos em uma

cultura competitiva na qual n‹o somente autores, atores e pœblico se

entregavam a intensas trocas emocionais: para que houvesse o show, era

 preciso uma organiza•‹o que se ocupava de todos as etapas de prŽ-

 produ•‹o e realiza•‹o dos eventos. Era a institui•‹o da Coregia,  ou

 permiss‹o para que um grupo de cidad‹os atenienses cada ano fosse

respons‡vel por todos os aspectos econ™micos de preparar e manter as

 pessoas envolvidas em compor e performar as palavras, a melodias e as

dan•as. Tal institui•‹o n‹o somente possibilitava a existncia dos festivais

como tambŽm regulamentava a participa•‹o dessa elite no espa•o pœblico

da cidade, multiplicando v’nculos entre artistas, comunidade e

democracia. Enquanto Atenas possu’a uma vitalidade pol’tico-econ™mica,

a Coregia esteve presente. A vit—ria do grupo que performava nas

competi•›es era a vit—ria tambŽm do Corego, do produtor. A arena em

que se convertia o Teatro de Dioniso era tambŽm o lugar de luta entre os

 produtores. O espet‡culo mobilizava tens›es pol’ticas. As figuras da

mitologia interpretadas em cena acenavam para a demanda por prest’gio

na cidade. Tudo convergia para o lugar das dan•as e cantos no teatro, para

‡rea da orquestra. Para influir era preciso afluir para a cena. A

composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o de obras audiovisuais

integrava interesses e valores os mais diversos e conflituosos. Como os

55  Site oficial do ThŽ‰tre du Soleil, www.theatre-du-soleil.fr . Blog de A.Mnouchkine: www.mnouchkine.blogs.liberation.fr/le_fil_da. V. WILLIAMS 1998.

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  V:

festivais estavam inseridos dentro do calend‡rio de eventos civis, a tens‹o

 pol’tico-estŽtica se enfatizava, fornecendo um horizonte de expectativas

 para a cidade: todo ano Ž preciso outra vez defrontar-se com o outro para

continuar a existir. Vencer, sobressair, pelo menos atŽ o ano que vem.

Khoregia.

Desse modo,o teatro grego se definia a partir de uma rela•‹o com

vocabul‡rio da atividade coral, atŽ mesmo onde n‹o se suspeita haver 56.

Tome-se, por exemplo, os nomes das partes da tragŽdia, como

encontramos na PoŽtica, de Arist—teles: ÒPr—logo, epis—dio,xodo, coral Ð

dividido este em p‡rodo e est‡simo57.Ó O termo Ôepis—dioÕregistra aquilo

que fica entre (duas) odes corais, epei(s) Ð ode. Ou seja, as partes faladas

que caracterizam os Ôepis—diosÕ se encontram nas margens do centro que

s‹o as partes corais. O espet‡culo tr‡gico se organiza na altern‰ncia entre

 partes faladas e partes cantadas. Mas h‡ um privilŽgio das partes corais:

 pois o nome para aquilo que n‹o Ž coral Ð Òepis—dioÓ Ð Ž baseado no que Ž

coral. Quem tem a marca, quem distingue Ž o coro58.

Continuando: as partes corais propriamente ditas s‹o duas:

Òp‡rodoÓ, que marca a entrada do coro, e Òest‡simosÓ, que s‹o as

 performances corais isoladas. A entrada do coro Ž uma aguardada se•‹o

de toda a tragŽdia, tanto que Ž nomeado. E ainda mais: grande parte das

tragŽdias restantes tem por t’tulo o coro: Os persas,  As suplicantes,

 Eumnides, CoŽforas, das seis restantes de ƒsquilo;  As Traqu’nias, das

sete de S—focles;  Her‡clidas, Suplicantes, As Troianas, As Fen’cias, As

 Bacantes, das 16 restantes de Eur’pides. A situa•‹o se amplia levando em

conta os t’tulos das pe•as restantes de Arist—fanes, que articulava tambŽm

uma dramaturgia musical a partir do coro: Os Acarnenses, Os cavaleiros,

 As aves, As Tesmoforiantes, As r‹s, As vespas, As nuvens, AssemblŽia de

mulheres, das 11 restantes. Como se v o pœblico ia ao teatro atra’do pela

diversidade performativa atualizada em cena, cujo ’ndice estava no

desempenho do grupo de cidad‹os mascarados que cantava e dan•ava.

56  Para o vocabul‡rio tŽcnico sobre dan•a e atividade coral, consultar NAEREBOUT 1997.57   PoŽtica, XII,65. Trad. Eudoro de Sousa.58  MOTA 2009.

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Logo, o critŽrio para discernir as partes do espet‡culo da tragŽdia n‹o

reside em evento de baixa textura e densidade performativa como uma ou

duas pessoas trocando falas entre si e sim na complexa intera•‹o de

membros de um grupo de agentes que se apresenta valendo-se de diversas

habilidades expressivas.

A din‰mica coral orientava a organiza•‹o do espet‡culo e sua

recep•‹o. Recentes estudos da dramaturgia cl‡ssica tm refutado a

 pressuposta linha desenvolvimento presente no texto da  PoŽtica  de

Arist—teles, que delinearia a o progresso hist—rico do espet‡culo tr‡gico de

um momento mais primitivo dan•ado para a plenitude da fala59. Antes, os

dramaturgos mesmos eram identificados como chorodid‡skalos,

treinadores dos coros, core—grafos. A ‡rea principal de atua•‹o e foco da

cena era a orchestra, espa•o do coro. Ao invŽs do desaparecimento do

 progressivo do coro durante o percurso que vai de ƒsquilo a Eur’pides,

 podemos ver um compartilhamento das habilidades e atividades do coro

 por parte dos agentes n‹o corais: a performance dos atores se define pelos

movimentos corais e os pr—prios atores agem como coro:cantam e dan•am

em v‡rios momentos. Aquela vis‹o est‡tica da dramaturgia cl‡ssica Ž

superada quando se analisa os textos restantes como roteiros baseados em

 procedimentos corais de composi•‹o de falas, movimentos e ritmos.

Mesmo os agentes n‹o corais dan•avam60.

Tal centralidade do coro no espet‡culo mais representativo da

Antiguidade Cl‡ssica possui seus desdobramentos estŽticos e culturais. Se

antes da palavra e alŽm dela h‡ o corpo em movimento, a desconstru•‹o

de nosso logocentrismo acarreta novas posturas e pressupostos. Nesse

sentido a renova•‹o bibliogr‡fica nos Estudos Cl‡ssicos, e sua

convergncia para a Cultura performativo-coral, aproxima-se das tensas e

intensas lutas dos Estudos Teatrais no sŽculo XX em busca de sua

especificidade, a partir da ruptura com tradi•›es metaf’sicas que

 privilegiavam uma concep•‹o do texto como princ’pio e fim dos

 processos criativos. Em seu mapeamento dessa transforma•‹o em curso,

59  V. WILES 1997 E WILES 2000.60  LEY 2007

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Lehmann sinaliza que a emancipa•‹o e destaque que a dan•a atinge

resulta no fato de que ela n‹o mais Òformula sentido, mas articula

energia;n‹o representa ilustra•‹o, mas a•‹o. Tudo nela Ž gesto.(...)

compartilhamento de impulsos com os espectadores nas situa•›es de

comunica•‹o do teatroÓ61.

2-Problematizando a atividade coral

A convergncia entre propostas estŽticas mais atuais e antigas

formas de espet‡culo em torno de uma estŽtica coral, antes de curiosidade

museol—gica ou superficial sincronismo, motiva-nos a pensar sobre os

modos como produzimos e validamos as artes da cena.O passado sempre

o Ž em raz‹o de nosso presente62. Acima de tudo, o que se busca da

imagem coral como fundamento para um processo criativo Ž certa nfase

em algo que aparentemente n‹o Ž muito focalizado na forma•‹o de atores

e na constitui•‹o do repert—rio, como, por exemplo, um trabalho de grupo

a partir n‹o apenas da Žtica coletiva, e sim da integra•‹o de habilidades

diversas, como canto, mœsica e dan•a. Essa dimens‹o interart’stica do

trabalho criativo revela-se na montagem de obras que enfrentam as

implica•›es de se mover entre fronteiras, nos limites das pr‡ticas e

tradi•›es estŽticas que, mesmo refutados por realiza•›es as mais

diversificadas, permanecem como restri•›es ou pontos de partida inscritos

na estrutura curricular dos cursos superiores de Artes Cnicas.

Ao se aprofundar essa dimens‹o interart’stica, percebemos que n‹o

se trata apenas de conjugar pessoas com forma•›es ou habilidades

diferentes. A obra multidimensional Ž um desafio estŽtico-cognitivo, ao

 propor para a audincia a tens‹o entre referncias produzidas a partir de

contextos tŽcnicos diversos e muitas vezes em colis‹o. Com isso temos

um entrechoque entre visualidade e sonoridade. A assincronia entre as

 bandas visuais e sonoras manifesta a heterogeneidade dos materiais e

referncias efetivados em cena. O dom’nio das assincronia, das

61  LEHMANN 2007:339.62  GADAMER 1999.

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sobreposi•›es, das tens›es entre materiais heterogneos avulta em uma

Žpoca p—s-harm™nica, na qual a meta j‡ n‹o mais Ž produzir equil’brios

redutores entre d’spares elementos. A idŽia do coro avulta ent‹o, como

media•‹o para uma poss’vel l—gica de um universo plural. Pelo coro essa

l—gica que n‹o prescinde da dispers‹o e do assimŽtrico se manifesta n‹o

mais como meta e sim efetivada na a•‹o de seus integrantes. O coro seria

 justamente essa l—gica em execu•‹o, performada, manifesta durante a

 performance, in situ. Da’ o potencial atrator da atividade coral: Ž ao

mesmo tempo um modelo, um esquema, e uma atualiza•‹o que suplanta

sua idŽia prŽvia. O coro Ž a fogueira de todos os a priori. Entre a forma e

a performance, o coro medeia e supera a tens‹o entre idŽia e a•‹o.

Essa media•‹o acontece em um espa•o que Ž o evento mesmo do

coro e sua organizada explora•‹o de limites e tangncias. A atividade

coral Ž uma espacializada demonstra•‹o de como tais limites e

 perspectivas s‹o enfrentados. N‹o h‡ como trabalhar com a idŽia de coro

sem se referir a uma experincia do espa•o. A coreografia mesma Ž a

explicita•‹o de como a atividade coral se inscreve no espa•o, de como o

espa•o abre-se e passa a existir atravŽs da interven•‹o do coro.

Disso, a associa•‹o do coro ao movimento e ˆ mœsica adquire uma

melhor compreens‹o. Ao se agregar caracter’sticas ou ao se identificar

tra•os da idŽia de coro muitas vezes h‡ uma simples constata•‹o do que j‡

Ž, do que j‡ existe em um arranjo de heterogneos elementos.

Mas se aprofundamos nossa observa•‹o para procurar entender

melhor os nexos entre aquilo que elencamos como elementos integrantes

da atividade coral, passamos a perceber que Ž justamente nessa efetiva•‹o

de nexos, de co-presen•a de diversos e mœltiplos elementos que reside a

atividade coral. Pensar o coro Ž realizar essa constru•‹o heterodoxa que

suplanta atŽ a motiva•‹o de sua efetiva•‹o. A pr‡tica coral bem

compreendida Ž como uma œtil medicina contra nossas abstra•›es

discursivas que rondam discuss›es sobre processos criativos em Artes

Cnicas. Pois a amplitude da cena coral, com suas necess‡rias e

decorrentes atividades de se enfrentar com a integra•‹o de elementos

 plurais sem o recurso de uma redu•‹o de heterogeneidade material,

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coloca-se absurdamente como utopia e fundamento de um fazer mais

comprometido com a conscincia de suas possibilidades.

Assim, a atividade coral Ž ao mesmo tempo irrealiz‡vel quanto

motivadora das mais extremas realiza•›es. A idŽia do coro comparececomo metalinguagem das artes da cena, como sua caixa-preta: muito se

sabe sobre ela, sempre nos referimos ao coro consciente ou inconsciente

durantes nossos processos criativos, mas ainda assim o coro n‹o se esgota,

n‹o se completa em nenhuma de nossas concretiza•›es dessa idŽia. Talvez

essa inexauribilidade do coro fulgure como apelo irresist’vel para a

cont’nua renova•‹o das artes da cena. O coro, pois, cifra esses quadrantes

de um territ—rio em perpŽtua transforma•‹o, pronto para ser apropriado e

modificado por processos criativos e que se manifesta em tens›es entre

todo e parte, indiv’duo e grupo, som e imagem, presen•a e ausncia,

movimento e pausa, canto e fala, entre outros. N—s que procuramos

habitar esses territ—rios nos movemos em oposi•›es, contrapostos ao

ritmo oscilat—rio e dispersivo da din‰mica do espa•o que nos arregimenta.

3-Proje•›es

Entre adapta•›es e vers›es das obras dram‡tico-gregas, a

atualiza•‹o do coro sempre Ž um grande problema. O conhecido exemplo

de Poderosa Afrodite, de Woody Allen, Ž uma sedutora simplifica•‹o do

 processo: um jogral que materializa debates sobre a conscincia dos

 personagens. Uma coisa que Ž preciso ter em mente Ž que a encena•‹o do

repert—rio da tragŽdia grega n‹o cessou na Antiguidade. Estes textos tm

sido continuamente representados. A tragŽdia grega n‹o se esgotou em

Atenas. Dramas antigos em performances contempor‰neas Ž um campo de

experincias em expans‹o63. O entrechoque entre a defini•‹o de

espet‡culo presente nesses textos, sua materialidade performativa, e

nossos pressupostos recepcionais e estŽticas e estilos cnicos possibilita

um jogo de apropria•›es e transforma•›es que se explicita mais nas

escolhas que um processo criativo espec’fico vai fazer em fun•‹o das

informa•›es que possui dos contextos expressivos da antiguidade e dos

63  V. www.didaskalia.net/journal., www.apgrd.ox.ac.uk/links.

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objetivos e dos limites desse mesmo processo. S‹o as condi•›es de

realiza•‹o atuais que vai determinaram a imagem dessa apropria•‹o do

drama antigo.

 Nesse caso o grupo que vai empreender uma vers‹o ou adapta•‹ode uma tragŽdia grega ou uma utiliza•‹o de procedimentos e tŽcnicas

desse repert—rio, como o coro, necessariamente vai expor em seu trabalho

os pressupostos de sua empreitada: informa•›es e que tipo de conceito do

espet‡culo ateniense foi utilizado. Ao mesmo tempo, esses pressupostos

v‹o ser redefinidos pela proposta do grupo e pelas habilidades de seus

integrantes.

Com isso Ž preciso ter em mente que a ÔidŽia do coroÕ Ž

concretizada das mais variadas formas, frente ao processo atual de se

transformar referncias em atos. Uma conscincia das motiva•›es que nos

motivam a porque nos valer da idŽia de Ôcoro gregoÕ relacionada com uma

atualiza•‹o bibliogr‡fica das pesquisas sobre as modalidades corais na

tragŽdia faculta-nos um di‡logo mais eficiente entre passado e presente.

Em todo caso, h‡ uma reflexibilidade nesse impulso de Ôretorno ˆs

origensÕ: a busca por solu•›es contempor‰neas para atividade coral

explicita muita mais o teatro que n—s queremos fazer que o teatro j‡

realizado h‡ sŽculos.

Talvez nessa reflexibilidade, nesse conhecimento n‹o da coisa,

mas do sujeito operante, Ž que o desafio de atualizar o coro se torna

fulcral: queremos muitas vezes dominar o intervalo, a descontinuidade

temporal por mitologemas que vem em uma Žpoca de ouro do passado

alguma op•‹o para o que n‹o conseguimos identificar em nossa Žpoca.

AlŽm das habilidades em contato, do car‡ter interart’stico dessa atividade,

revigora o fasc’nio pelo corpo social que o coro repercutiria, por aquela

estranha manifesta•‹o de uma forma animada em cena que Ž tanto

indiv’duo como coletividade, que transita entre a pessoalidade e a n‹o

 pessoalidade. Em Žpocas atuais quando o fetiche do indiv’duo vagueia na

ditadura do assujeitado consumidor, o social esvazia-se na falncia de

 pol’ticas pœblicas paliativas, o hiperrealismo midi‡tico satura a tela com a

explora•‹o das misŽrias privadas, a poderosa idŽia de um tr‰nsito

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intersubjetivo potencialmente cr’tico e refor•ador dos la•os comunais

aparece como imperativo estŽtico.

O artista pesquisador cada vez mais se cumula de conscincia de

conscincias. Seu saber fazer para melhor realizar o catapulta para umaarena belicosa entre projetos e justificativas. Quem sabe a dimens‹o

 plurivocal e interart’stica da atividade coral n‹o o insira mais nos

contextos de sua pr‡tica questionadora e representacional. Subjetividade Ž

 sub jectus, movimento para baixo, para o fundamento. A pergunta pela

subjetividade Ž a convers‹o do olhar para o que determina aquilo que est‡

sendo feito. Subjetividade n‹o Ž pessoa, mas o que determina os atos. N‹o

se para de pensar no mundo quando se apela para o sujeito. A

interroga•‹o sobre o sujeito Ž a explicita•‹o das raz›es de estar no mundo.

Coro Ð a dan•a do aqui e agora, o mundo girando em volta, mostrando-se,

exibindo seus variados aspectos, chamando todos para o festival de todas

as misŽrias a superar.

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SEGUNDA PARTE

ÒA cena Ž um espa•o vazio mais ou menos iluminado de arbitr‡rias

dimens›esÓ

 Adolphe Appia

1-Preliminares

Em virtude de nossos h‡bitos acadmicos, os quais ou dissociam arte e teoria -

ou associam arte a uma teoria prŽvia - muita vezes Ž esquecido que historicamente

ÔteoriaÕ e experincia teatral n‹o s‹o referncias que se anulam64. Tanto o vazio

historiogr‡fico quanto a dependncia marginal ilustram bem as dif’ceis rela•›es entre

arte e pensamento em nossa tradi•‹o Ocidental, o que nos incita a suspeitar que algo

de irredut’vel ˆ discursividade permeia o fazer art’stico.

 No caso da arte dram‡tica isso se torna mais patente. Paira ainda sobre ela a

sombra do ambivalente Ôveto plat™nico Plat‹oÕ que, ocupando-se do impacto

emocional das artes de performance de seu tempo, procurou tomar, da cr’tica ˆ

teatralidade, a valora•‹o da atividade filos—fica.

Seguindo-lhe, temos a tentativa aristotŽlica de formular uma defini•‹o de

literatura recorrendo ˆ tragŽdia como material modelar, o que legou-nos n‹o s— a

 PoŽtica como tambŽm a persistente pr‡tica de se legitimar intelectualmente um fazer

que articula a integra•‹o de outras capacidades e atos para sua realiza•‹o65.

Desde a AntigŸidade, pois, a teatralidade provoca e se constitui em um

horizonte para o pensamento. Ainda que, com o passar do tempo, a situa•‹o seinverta, e a representa•‹o dram‡tica se torne tema e aplica•‹o para teorias n‹o

comprometidas com o contexto produtivo da cena.

De fato, a defasagem entre a apreens‹o intelectualizada do drama e sua

experincia encontrou na segunda metade do sŽculo XIX seu ponto cr’tico. O

64Como vimos no in’cio da primeira parte, deste livro, na discuss‹o sobreTheoria.

65 Para uma recente descontru•‹o do aristotelismo aplicado ˆs Artes Cnicas,ver DUPONT 2007.

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 programa naturalista, ao defender a moderniza•‹o das artes, utilizou-se da cena como

aparato para investigar as mazelas sociais com o m‡ximo poss’vel de

verossimilhan•a.

Tal urgncia tem‡tica, porŽm, n‹o levou em conta a contextura expressiva

concreta que possibilitasse tamanho empreendimento. Foi preciso, pois, reduzir as

dimens›es da teatralidade para viabilizar a expans‹o do tem‡tico66. O recurso da cena

naturalista foi incrementar a atividade verbal do ator, que representava as idŽias de

uma voz autoral avessa a qualquer diferencia•‹o entre as contingncias f’sico-

expressivas de um palco ou de uma tribuna. Como bem afirmou Gerd Borheim Òo

 palco deve ser um substituto exato da realidade. No teatro o espectador deve esquecer

o teatro67Ó. ƒ o que chamamos de Òpressuposto de transparncia da cena68Ó.

Com isso, a realidade de palco bruscamente se reduziu ˆ palavra da

 personagem69. A palavra tornou-se ao mesmo tempo o meio primeiro de acesso ao

que acontece em cena bem como œnico ve’culo de intera•‹o entre as personagens.

Sendo a cena um reflexo do mundo extracena providenciado pelo autor, a personagem

Ž a unidade de seu car‡ter e de sua a•‹o. Ao falar, torna intelig’vel para o pœblico os

 problemas deste mundo. Essa sobrecarga na palavra transformou os atores em

verdadeiras cabe•as falantes, desprovendo-os de corporeidade e campo maior de a•‹o.

E o mundo representado restringiu-se ˆ veicular e refor•ar as causalidades que a voz

autoral propunha.

A recusa do programa naturalista ao fim do sŽculo XIX vai impulsionar o

agudo criticismo do sŽculo posterior. Temos, pois, para melhor compreender o sŽculo

XX, a interdependncia entre a refuta•‹o de toda qualquer injun•‹o program‡tico-

intelectual ˆ obra dram‡tica e a busca incessante das motiva•›es da pr—pria linguagem

teatral. Trata-se da forma•‹o de um contexto reativo no qual a defini•‹o do que se

quer passa pela oposi•‹o ao que se nega. A reteatraliza•‹o da experincia dram‡ticase faz ˆs expensas do cad‡ver de seu anti-modelo. Desse modo, n‹o ser‹o

surpreendentes as sobreposi•›es, repeti•›es e os radicalismos que sobrevierem bem

como uma altissonante desconfian•a de uma abordagem racionalizada da cena por

66 Neste sentido, as proposi•›es de Meyehold procurar reverter esta redu•‹oda teatralidade.

67 BORHEIM 1969:13.68 Adapto aqui a discuss‹o de DIXON 1998 e sua cr’tica ao Ôpolimento das

imagensÕ na era da comunica•‹o digital.69 MOTA 1998.

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muitos praticantes das Artes Cnicas. Da recusa da idŽia vai-se para a abstra•‹o de

um fazer puro, sagrado.

Este contexto reativo determina uma tradi•‹o nova que se forma sob a Žgide

da ruptura e que pouco a pouco vai sendo hegem™nica. Mais propriamente, a crise da

cultura contemplativa ocidental, marcada pelo arrefecimento da exposi•‹o do desejo

em situa•›es concretas, Ž agora refutada pelo culto dessa crise e por alternativas a ser

experimentadas. Ent‹o temos a sobrevivncia de formas cr’ticas antigas e a

indefini•‹o e abertura pontual para novas express›es.

Da busca de alternativas delineadas temos a turbulncia criadora e destrutiva

que sacudiu o sŽculo XX. A iconoclastia desfraldada n‹o lan•ava ao ch‹o somente

valores: colocava em cheque nossas estratŽgias de inteligibilidade. A negatividade

rep›e as raz›es de uma insatisfa•‹o anterior ao que se recusa. Pouco a pouco todos os

setores da cultura ‡vidos em modificar suas posturas interpretativas e seus focos de

referncia v‹o se valer do drama.

Da’ pode-se dizer que o sŽculo XX foi a Idade de Ouro da teatralidade. Para

ele convergiram condi•›es tŽcnicas e ousadas propostas e realiza•›es estŽticas que

efetivaram seculares sonhos de representa•‹o. O extensivo e cultivado senso de

ruptura com a tradi•‹o que a modernidade teatral empreendeu determinou a

explora•‹o de diversas possibilidades expressivas bem como a altera•‹o de regras e

modelos de execu•‹o e recep•‹o.

Tal expans‹o da teatralidade tem proporcionado aquilo que podemos

denominar  paradigma dram‡tico. Ou seja, frente ˆ inumer‡vel sucess‹o de

diferencia•›es que o teatro moderno p™s em circula•‹o atravŽs de seus experimentos

e esc‰ndalos e decorrente e intermitente debate nos diversos meios de apropria•‹o e

divulga•‹o do conhecimento, as chamadas Cincias Sociais foram procurar modelos

heur’sticos para reorientar suas t‡ticas e pr‡ticas interpretativistas. O emblem‡ticotopos  Òo mundo como teatroÓ (teatro mundi) parece aqui ter encontrado sua

aplica•‹o70. A pressuposta evidncia imediata do drama e suas implica•›es

emergiram como horizonte explicativo privilegiado, um novo bom senso

observacional. Contradi•‹o das contradi•›es talvez, pois Ž quando o teatro se torna

mais diversificado e muitas vezes abstrato que ele Ž naturalizado

epistemol—gicamente pelas Cincias Sociais.

70 CURTIUS POSTLEWAIT,T. e DAVIES 2003,

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Mais que o elogio desse vitorioso paradigma, procuraremos apresentar

momentos te—ricos fundamentais para a compreens‹o da hora e da vez da teatralidade.

Escolhemos autores que souberam transformar a insatisfa•‹o com a heran•a

intelectualista naturalista em uma busca de fundamentos mais seguros para a atividade

representacional cnica. Tal busca aproximou processos criativos para a cena e

explicita•‹o compreensiva das rela•›es entre composi•‹o e performance. O contexto

reativo contra o qual se situam n‹o permanece como alvo cr’tico e foco da

representa•‹o. Ou seja, a rea•‹o n‹o Ž a representa•‹o, como em certos modelos

 perform‡ticos negativos posteriores.

Por isso vamos nos deter em pensadores-realizadores do pr—prio campo

estŽtico-reflexivo das artes para a cena, com o objetivo de tornar compreens’veis

quais as quest›es que eles discutiram a partir dos problemas enfrentados em suas

 pr‡ticas. Os autores escolhidos (A. Appia, C. Stanislavski V.Meyerhold, E. Piscator,

B. Brecht) desenvolveram em suas ‡reas de interesse tentativas de sistematizar

quest›es fundamentais da representa•‹o para a cena. Possuem uma vis‹o integradora,

ao apresentar suas conclus›es a partir das reflex›es do que observavam:

 procedimentos fundamentais tanto f’sicos como expressivos para obten•‹o de um

espet‡culo. Ao internalizarem uma atividade reflexiva no processo criativo, eles se

colocam como te—ricos da representa•‹o. Posionam-se em um campo de experincias

e conceptualiza•›es das possibilidades de realiza•‹o dram‡tica. As etapas prŽ-

representacionais e representacionais se interpenetram. Os conceitos aprimorados

durante as reflex›es sobre o que observam e experimentam s‹o conceitos

operacionais.

Assim, o momento hist—rico da teoria teatral do sŽculo XX ao mesmo tempo

em que faz irromper uma prolifera•‹o de formas como recusa ao fechamento da

representa•‹o ocasionado pela esquematiza•‹o da cena naturalista, tambŽmmovimenta a busca da autonomia do processo art’stico cnico, efetivando a teoriza•‹o

de sua pr‡tica.

 No entanto, frente ˆ diversidade de manifesta•›es cnicas (dan•a, teatro,

 performances), vamos nos acercar mais do teatro. Creio que muitas das situa•›es

encontradas nesta atividade particular acarretam o entendimento mais amplo da

 problem‡tica da cena em seu contexto expressivo/operacional.

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E ainda, mesmo n‹o citando realiza•›es, obras concretas, quero frisar que as

reflex›es e as teorias aqui comentadas est‹o intimamente relacionadas com pr‡ticas e

 pesquisas de express‹o.

Enfim, escolhi me centrar em um autor em cada t—pico fundamental abordado

 para, ao acompanhar mais detidamente sua argumenta•‹o, explicitar o horizonte de

quest›es e a conceptualiza•‹o que emergem na abordagem explorat—ria da teoria e

 pr‡tica cnicas. A comum busca da autonomia do campo expressivo das artes de

espet‡culo que os autores modernos enfocados aqui assinalam fornece os

 pressupostos das opera•›es de sua especificidade. A autonomia Ž uma bandeira em

 prol da singularidade.

Tais preocupa•›es metodol—gicas limitam o escopo deste trabalho, bem como

definem seus pressupostos. A realiza•‹o para a cena mobiliza a constitui•‹o estŽtica

 para a efetiva•‹o de sua compreens‹o. Pois um fazer para a cena reivindica suportes

materiais e operacionais concretos. H‡ um hiato entre a idŽia e sua realiza•‹o. A

resistncia da realiza•‹o ˆ composi•‹o determina a performance, corrigindo o

 processo global. Procuramos, em nossa an‡lise, deixar claro essa produtiva intera•‹o

entre teoria e representa•‹o.

Seguindo tais preocupa•›es metodol—gicas, os autores lidos n‹o se

transformam em dados para uma sistematiza•‹o te—rica a posteriori. Ao contr‡rio, a

leitura encaminha-se para explicitar o horizonte te—rico visado e o campo te—rico-

 pr‡tico em constru•‹o que os autores escolhidos efetivam.

2- A. Appia: A encena•‹o como renova•‹o da pr‡tica teatral

O vision‡rio Adophe Appia (1862-1928) bem caracteriza a emergncia da

figura do encenador como fator basilar para a teoria e pr‡tica do teatro do sŽculo XX.Com a crise do espa•o de representa•‹o baseado no chamado palco italiano,

que preconizava uma rela•‹o frontal, unidirecional, est‡tica e apassivadora entre

 palco e platŽia em um lugar fechado, todo o processo de se conceber e fazer

espet‡culos entra em crise. O espa•o de representa•‹o necessita ser reestruturado,

levando em conta a constitui•‹o do espet‡culo e sua realiza•‹o. Um espet‡culo n‹o

tem de se amoldar a um espa•o fixo. A pluralidade de formas de representa•‹o Ž

correlativa ̂ diversidade de espa•os de exibi•‹o.

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  lV

A contradi•‹o entre a din‰mica representacional da cena e a press‹o por

normalidade da forma de apresenta•‹o abre a possibilidade de n‹o restringir o

representado aos ditames extracompositivos, mas de se determinar a representa•‹o

 por fatores de composi•‹o e performance. N‹o Ž o espet‡culo que tem de encontrar

um espa•o no teatro, mas Ž o teatro que tem de estar contido no espet‡culo.

Para resolver esta contradi•‹o (ou mesmo torn‡-la represent‡vel), Ž preciso

uma media•‹o entre a fisicidade do espet‡culo e a constitui•‹o de uma situa•‹o

integrada de observ‰ncia, que possibilite a realidade da fic•‹o como algo fact’vel de

ser assenhorado pela recep•‹o. O encenador Ž o agente desta media•‹o. Uma outra

criatividade, diferente da criatividade do autor, co-opera na realiza•‹o do espet‡culo.

E, com ele, todo o mundo extramental da fun•‹o autoral Ž positivado.

De forma que, na emergncia do encenador, a rela•‹o autor/texto/ pœblico Ž

desconstru’da, havendo a descentraliza•‹o das prerrogativas criativas e expressivas

que repousavam exclusivamente nas m‹os do autor e de seu texto. A representa•‹o

deixa de ser extens‹o das idŽias de um centro e monop—lio de sentido e o texto perde

sua fun•‹o exclusivista de fixa•‹o de um mundo homogneo e fechado.

A. Appia ficou sendo mais conhecido pelas aplica•›es tŽcnicas de sua obra,

relacionadas com a ilumina•‹o (luz m—vel, focos precisos e vari‡veis) e a

tridimensionalidade da cena (espa•o de atua•‹o em rela•›es concretas entre o corpo

do ator e os objetos de cena ), padr›es m’nimos de encena•‹o hoje largamente

adotados. Mas seus escritos revelam um horizonte de quest›es que se tornaram

fundamentais para pensar a realiza•‹o teatral.

Ele partiu de uma situa•‹o bem determinada para, a partir disso, construir suas

 program‡ticas reflex›es. Repensando as limita•›es da revolu•‹o estŽtica produzida

 pela obra de Richard Wagner (1813-1883), Appia soube caracterizar o contexto de

ruptura que estava se formando, fundamentando teoricamente o que o futuro iriareivindicar para ser efetivdo como inova•‹o.

A proposta de Wagner, que ia alŽm da —pera, preconizava uma concep•‹o

integrada de efeitos para a constru•‹o do drama musical. Ele via nas complexidades

inerentes ˆ realiza•‹o multim’dia da tragŽdia grega (canto, dan•a, palavra) o impulso

de reeduca•‹o estŽtica do povo alem‹o. A obra de arte do futuro deveria ser uma obra

de arte total, sendo a dramaturgia uma conscincia dos meios para se atingir essa

integra•‹o. Wagner polemiza contra o sucesso das —peras de G.Meyerbeer(1791-1864) e dos libretos de E. Scribe(1791-1861), mais preocupados em manter a platŽia

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atenta atravŽs de isolados e pontuais truques musicais e narrativos, que n‹o

aprofundam a tens‹o dram‡tica e a estrutura•‹o da obra. Wagner quer expandir o

efeito do drama e suas potencialidades representacionais atravŽs da extens‹o dos

 par‰metros composicionais.

O convencionalismo dram‡tico da —pera do tempo de Wagner ent‹o Ž atacado

como forma de se diversificar as possibilidades da express‹o musical. A mœsica, antes

dependente de um enredo esquem‡tico, previs’vel e limitado, agora se oferece como

condutora do espet‡culo. A estrutura musical e seus efeitos afetivos poderiam romper

com o ilusionismo da cena convencionalizada. A•›es musicais tornadas vis’veis Ð eis

um emblema para a dramaturgia musical de Wagner.

Mas a’ onde a mœsica se torna vis’vel, em sua exterioriza•‹o, Ž que reside a

contradi•‹o de Wagner. As solu•›es pict—ricas extremamente suntuosas sonegam ao

espectador uma participa•‹o maior nessas a•›es musicais. O extremo realismo da

encena•‹o traduzia o car‡ter espetacular da encena•‹o, sem efetivar o espa•o para

uma dramatiza•‹o maior. A intensidade da mœsica era vazada em uma cena inerte e

reprodutiva. Como um quadro com legenda, a exuber‰ncia visual torna-se uma

explica•‹o e um direcionamento do que se pretende representar.

Um novo espa•o cnico Ž preciso, pois. Para as obras performativas n‹o basta

mudar os temas, as imagens ou a estrutura•‹o. N‹o basta mudar o texto sem alterar

aparato cnico. A obra nova de Wagner necessita de um novo espa•o. O alargamento

das dimens›es imaginativas proporcionados pela dramaturgia musical de Wagner

reivindica uma correlata extens‹o representacional.

Foi o que Appia viu. A emergncia do encenador est‡ diretamente relacionada

com a mudan•a de nossas concep•›es de obra de arte, sempre associadas com a

literatura, com a escrita. O efetivo modo de ser da encena•‹o ilumina o alŽm-texto, a

 presen•a irrefut‡vel de um contexto de produ•‹o de sentido. A faticidade do que n‹o Žs— linguagem e estados mentais torna-se determinante. A dramaturgia defronta-se com

esse intervalo entre obra e realiza•‹o. A materialidade e suas irremedi‡veis

contingncias saltam aos olhos n‹o s— como dificuldades e apndices ˆ idŽia art’stica.

Tal descontinuidade entre texto e representa•‹o, motiva Appia a pensar as

implica•›es estŽticas de se levar em conta as especificidades de uma express‹o

cnica. O pressuposto de uma imediata transparncia da fisicidade da cena Ž refutado.

Exigncias f’sicas n‹o podem ser refutadas, mas devem ser integradas ˆrepresenta•‹o. Dispositivos tŽcnicos s‹o marcas de uma revis‹o de programas

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idealistas. A inadequa•‹o entre a fluidez musical e informa•›es visuais estritas aponta

 para o desgaste da maneira como a fic•‹o audiovisual era concebida e realizada. O

 provimento de um drama absoluto - nas palavras de P.Szondi, por meio do qual o

 percurso narrativo de um agente Ž preenchido totalmente e o espet‡culo Ž o mundo

ordenado no qual ele qual habita - n‹o mais pode perseverar 71. A rigorosa distribui•‹o

de rela•›es entre personagens e referncias espa•o-temporais, proporcionando a

ilus‹o cnica da continuidade entre mundo e vida, chega ao seu limite. Wagner havia

tinha composto o drama musical, mas n‹o o espa•o tŽcnico e representacional deste

drama.

Chega ao limite tambŽm a narratividade do drama. Na dramatiza•‹o n‹o se

est‡ contando uma hist—ria. Procedimentos n‹o narrativos s‹o utilizados. A arte

dram‡tica n‹o se confina ˆ continuidade causal de acontecimentos pertencentes a uma

trama que transcende ˆ representa•‹o. O que acontece em cena pertence ˆ outra

ordem que a confirma•‹o e encadeamento final’sticos da narrativa. A unidade da

realiza•‹o dram‡tica reside na sustenta•‹o de sua recep•‹o e efetividade.

Podemos acompanhar melhor a argumenta•‹o de Appia seguindo seu livro  La

musique et la mise en scne72 , de 1898. O livro divide-se em trs partes interligadas

como tarefas e reflex›es que devem ser executadas para a renova•‹o das artes de

cena. Respectivamente Appia critica a concep•‹o realista do teatro de seu tempo

(sŽculo XIX), rev a encena•‹o de Wagner e prop›e uma teoria da encena•‹o.

A orienta•‹o musical da dramaturgia, uma dramaturgia poŽtico-musical, como

Wagner tentou realizar, produz a reconsidera•‹o do espectador e do espet‡culo de um

drama falado - ve’culo predominante de idŽias e comportamentos no sŽculo XIX - ao

mesmo tempo que, pela partitura musical, rompe com a centralidade do texto e dos

atos verbais.

A marca•‹o partiturizada dos contextos emocionais da personagem altera ofoco da representa•‹o. Ao invŽs de se sobrecarregar a atua•‹o com as informa•›es

que comp›em e caracterizam o mundo do palco, uma poŽtica musical para a cena

interpreta e mantŽm a din‰mica que individualiza os motivos prŽ-actanciais, o debate

interno da personagem antes do agir, bem como as respostas emocionais frente aos

acontecimentos. A representa•‹o n‹o reproduz uma const‰ncia referencial, mas

 produz a interpreta•‹o de sua forma atravŽs da marca•‹o emocional e cognitiva da

71 SZONDI 2001: 29-37.72APPIA 1981.

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audincia. Do projeto de reproduzir com verossimilhan•a o mundo da vida partimos

 para a explora•‹o de uma ambincia extracotidiana onde a constru•‹o do espectador Ž

desenvolvida. A satisfa•‹o do olhar sustentada pelos coment‡rios do ator Ž bloqueada.

O uso da mœsica como operador dram‡tico determinante refuta os h‡bitos do

chamado teatro liter‡rio o qual, desde o Classicismo francs (sec. XVIII) atŽ os

rescaldos do Realismo-Naturalismo, propunha que o mundo representado viesse a ser

um aperfei•oamento do mundo vivido.

Rompendo com a subordina•‹o da cena a um tipo de texto que organizava os

modos de percep•‹o do mundo, o drama musical exige a coordena•‹o de esfor•os da

 platŽia para uma experincia singular a ser representada. O foco passa a ser a fic•‹o

 partilhada.

Em uma obra dram‡tico- musical essa partilha s— ocorre atravŽs da

continuidade da cena em suas varia•›es temporais e afetivas. Todos os heterogneos

elementos do espet‡culo (canto, dan•a, fala, luz, mœsica, pintura) precisam se

submeter ˆ dura•‹o singularizada de seus efeitos. A mœtua implica•‹o dos elementos

no espet‡culo postula novas atribui•›es e fun•›es para o material utilizado levando

em conta as particularidades f’sicas desses materiais. Para durar, o espet‡culo precisa

da integra•‹o de seus v‡rios n’veis representacionais. O momento de cena Ž a

articula•‹o dessa pluralidade convergente.

Para ficar mais claro, Appia toma o uso dos cen‡rios pintados como

contraexemplo ao que almeja. Este problema pl‡stico faculta o desenvolvimento de

uma nova arte. Por meio destes objetos bidimensionais enfatizava-se uma ilus‹o

abstrata de realidade, pressupondo no que se mostra uma generalizada vis‹o-suporte

como subs’dio ao que se representa. N‹o levando em conta a pr—pria realidade de

cena e sua configura•‹o para o espectador, ficava-se convencionado que ali existiria

algo sem que efetivametne houvesse. Limitava-se o que devia ser visto ao que Žmostrado, o que diminui o real representado. O controle do campo perceptivo da

 platŽia est‡ estipulado neste acordo t‡cito. As grandezas s‹o constantes e absolutas: o

grande e o pequeno s— podem ocorrer alternadamente. A simula•‹o de terceira

dimens‹o nas est‡ticas pinturas de cen‡rios Ž facilmente destru’da pela realidade

material dos corpos, pelo movimento da luz e do corpo humano.

Para fazer valer essa —ptica redutora foi preciso arrefecer o pr—prio alcance do

espet‡culo. A continuidade da ilus‹o de um espa•o nivelador exigiu a representa•‹ode um mundo ficcional compat’vel. Tudo que Ž posto em cena leva a marca dessa

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conforma•‹o. A solu•‹o visual dos cen‡rios pintados Ž decorrente de uma proposta

dram‡tica que reduz a realidade visual do espet‡culo ˆ sua imediata apresenta•‹o. Da’

os arroubos emocionais e as trucagens de enredo.

Contudo, quando se coloca algo em cena Ž preciso sustentar sua vis‹o. Para

tornar cr’vel aquele painel, verdadeiro discurso da imagem, Ž preciso que os outros

elementos de cena comunguem da mesma orienta•‹o. Appia bem explicitou que uma

descri•‹o da atividade cenogr‡fica proporciona a compreens‹o de um produto que n‹o

Ž gratuito, mas que se determina pela orienta•‹o estŽtica que o instaura. A

fenomenologia da cena nos faz reconhecer que a atividade estŽtica da recep•‹o

 preconiza uma hierarquia e a coopera•‹o dos diversos elementos integrantes do

espet‡culo. A complexidade do visto Ž um fazer tornado poss’vel.

Dessa maneira, melhor que o cen‡rio pintado Ž a atividade da luz. Luz e

superf’cie pintada se anulam ao invŽs de se refor•arem mutuamente. O dramaturgo

musical pinta com a luz. A flexibilidade e a extens‹o imaginativa do espet‡culo

reverberam na plasticidade da ilumina•‹o. Em cena objetos f’sicos reais e presentes

desnudam o ilusionismo convencional dos cen‡rios pintados. Objetos n‹o podem ser

fict’cios porque a luz n‹o tem existncia fict’cia. O corpo vivo e r’tmico do ator

contradiz a massa im—vel e distante que se equilibra atr‡s dele. Os contextos

emocionais e suas seqŸncias e as propor•›es de sua visualiza•‹o entrechocam-se

com uma bidimensionalidade isolada. A um corpo vivo, a uma mœsica dramatizada,

corresponde um espa•o temporalizado. A luz, com sua capacidade de revelar nuances

multivariadas, proporciona o reconhecimento de profundidades, modifica•›es e

fus›es que a representa•‹o sugere. A luz Ž matŽria e intŽrprete do espet‡culo.

A flexibilidade da luz e as cores a ela associadas possibilitam a pluralidade

coerente do novo princ’pio cnico que Appia teoriza. A intensifica•‹o dram‡tica Ž

 proporcional ˆ uma economia visual. Distribuem-se as fun•›es entre os elementos quecontracenam entre si. Os atores contracenam com a luz a qual, por sua vez, contracena

com a mœsica. A desubstancializa•‹o das formas libera a dramaturgia musical para as

 particularidades do espa•o cnico. A visualidade deixa de ser uma evidncia para se

 postar como problematiza•‹o de qualquer roteiro representacional. A controlada luz

no palco unifica e realiza as inten•›es expressivas

Dali em diante, o espa•o cnico Ž o espa•o de experimenta•‹o e de concretude

estŽtica do artista cnico. N‹o Ž anterior ao que realiza, mas Ž indissoci‡vel ˆrepresenta•‹o. Paradoxalmente, a fic•‹o cnica n‹o Ž uma ilus‹o, uma atividade

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mental imposta e sim a proposi•‹o de materiais bem escolhidos e correlacionados. O

espa•o cnico corrige as oposi•›es entre fic•‹o e realidade e refuta uma estŽtica

filos—fica em prol de uma estŽtica operat—ria e explorat—ria. A teatralidade emerge

como situa•‹o extrema ficcional que, no prec‡rio modo de sua existncia Ð

visualidade Ð mobiliza uma complexa atualidade material e afetiva. A unidade do

teatro n‹o est‡ mais assinalada nas inten•›es e idŽias do texto de um autor. Em torno

do espa•o cnico a visibilidade do que se objetiva n‹o ser‡ apenas um meio, mas sua

 pr—pria possibilidade.

Em  LÕOuvre dÕArt Vivant 73, de 1921, considerado seu testamento estŽtico,

Appia, agora mais livre do ideal wagneriano, consolida sua teoria do teatro. O contato

e a colabora•‹o com os experimentos da Euritimia de Emile Jaques Dalcroze fizeram

com que Appia coordenasse a centralidade do espa•o cnico com o corpo humano. O

ritmo do espa•o Ž interpretado pelo corpo e este modifica seus movimentos e suas

formas. Pois, como o corpo humano torna formas pintadas irrelevantes, Ž a sua

 performance que cria o espet‡culo. O ator e seu treinamento e desenvolvimento

f’sico-expressivo s‹o agora o foco da reforma da encena•‹o de Appia. A mœsica cede

sua imagem para a defesa de um espa•o r’tmico a ser individualizado pelo intŽrprete.

Para chegar ao ator, Appia pergunta-se se tempo e espa•o possuem algum

denominador comum: uma forma no espa•o pode se manifestar em sucessivas

dura•›es de tempo e essas sucessivas dura•›es de tempo podem ser expressas em

termos de espa•o. Vendo que, no espa•o, unidades de tempo s‹o expressas por

sucess‹o de formas em movimento e que, no tempo, espa•o Ž expresso por sucess‹o

de palavras e sons, Appia promove o corpo vivo do ator, sujeito ˆs suas

determina•›es f’sicas reais, a intŽrprete do tempo em forma de espa•o. Diferente de

formas inanimadas, o corpo reage e real•a um paradoxo fundamental da cena: se a

mœsica prescreve os movimentos do corpo, o corpo transforma o espa•o em tempo. Avisualidade do espa•o cnico demanda que o corpo torne fact’vel a experincia de

uma temporalidade. H‡ a cena somente quando o corpo materializa essa intera•‹o. O

corpo do ator contracena com dura•›es e extens›es. Existe um momento prŽ-

representacional que atravessa a constru•‹o do espet‡culo e sobredetermina o

horizonte de tudo que vai ser encenado: a fisicidade do corpo.

73 APPIA 1997.

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O espa•o cnico Ž o espa•o r’tmico no qual o corpo vivo do ator confronta-o,

 provoca, transformando constri•›es em possibilidades criativas. Segundo Appia

ent‹o, em raz‹o de o corpo ser o ponto de partida e sustenta•‹o da realiza•‹o

dram‡tica, como o corpo expressa espa•o e, para proporcionar espa•o, precisa de

tempo, sua atividade Ž express‹o de espa•o durante o tempo e tempo no espa•o. O

corpo Ž o autor dram‡tico, pois ÒN—s somos a pe•a e a cenaÓ, de acordo com Appia.

A produ•‹o de tempo e espa•o pelo corpo Ž que torna realiz‡vel o evento cnico.

Desse modo entramos no palco moderno. A voz de Appia n‹o s— ecoou nos

trabalhos e teorias dos encenadores como Gordon Craig (1872-1966), Max Reinhardt

(1873-1943), Erviw Piscator (1893-1966) como tambŽm em outras dire•›es que o

teatro foi promovendo (teoria e treinamento do ator). A abertura de perspectivas

 promovida pela abordagem de Appia, ao formular sua teoria sem se valer somente de

estŽticas filos—ficas ou program‡ticas, reconsiderando a faticidade da linguagem de

cena, impulsionou a chamada autonomia da teatralidade, autonomia esta baseada no

conhecimento de suas especificidades. A materialidade da cena n‹o Ž uma ilustra•‹o

da express‹o dram‡tica, mas um pressuposto de sua realiza•‹o. A partir da

modernidade, Ž preciso corrigir as idŽias ppor meio do concreto contexto da express‹o

em cena. O processo criativo agora Ž um complexo estŽtico-f’sico.

3- C. Stanisl‡vski: a cincia do ator e a estŽtica do espet‡culo

Òƒ a extrema sensibilidade que faz os atores med’ocres: Ž a sensibilidade

med’ocre que faz a multid‹o dos maus atores; e Ž a falta absoluta de sensibilidade

que prepara os atores sublimesÓ

 D. Diderot

Foi em rela•‹o a uma teoria da atua•‹o que o sŽculo XX teatral mais se

empenhou. Com a busca de sua pr—pria linguagem e conseqŸente explicita•‹o de seus

suportes e processos expressivos fundamentais, as abordagens cnicas foram buscar

na teoria da atua•‹o a concretiza•‹o de novas experincias agora poss’veis. A

libera•‹o do campo representacional do teatro, adquirido em fun•‹o de seu paradigmade ruptura, efetivou o deslocamento do ator da posi•‹o de instrumento veiculador de

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um discurso autoral para se constituir ele mesmo como centro da atividade criativa

desempenhada em situa•‹o de representa•‹o.

Fundamental para apreendermos os caminhos e descaminhos da teoria da

atua•‹o Ž a obra de Constantin Stanilaviski (1863-1938). Procurando esclarecer os

determinantes b‡sicos da interpreta•‹o para a cena e, a partir disso, proporcionar um

sistema de trabalho, Stanislavski compreensivamente forneceu uma s’ntese de

complexas de referncias que est‹o presentes na constitui•‹o da atua•‹o. Mais que

uma absoluta e regr‡tica canoniza•‹o de um estilo interpretativo, temos em

Stanislavski uma gram‡tica da interpreta•‹o que, ao pacientemente analisar e

demonstrar procedimentos intr’nsecos ˆ atua•‹o, faculta-nos padr›es para a descri•‹o

da atividade focada assim como par‰metros para sua avalia•‹o.

O contexto reativo de Stanislavski nos oferece uma primeira aproxima•‹o ˆ

sua obra. A redefini•‹o da presen•a do ator em cena Ž uma necess‡ria extens‹o

reativa ˆ estereotipa•‹o das interpreta•›es que se tornou marcante com o realismo

convencional e comercial das grandes companhias teatrais de meados para fins do

sŽculo XIX. Apropriando-se de um conjunto de clichs de atua•‹o para causar

impacto imediato sobre a platŽia, o ator centrava sua atividade nestes artif’cios. N‹o

havia singularidade de espet‡culo, pois o clich eliminava a preocupa•‹o com a

efetiva•‹o de uma fic•‹o. O espet‡culo se reduzia ao histrionismo do ator. Os

momentos isolados de sua apari•‹o funcionavam como a performance do espet‡culo.

O convencionalismo de seus artif’cios impossibilitava a versatilidade de sua

 performance e, disto, de seu entendimento do processo de atua•‹o.

Esta Ž uma abordagem incorreta ou inautntica de abordar o trabalho do ator.

Stanislavski denomina os atores que se valem desses expedientes de atores de

 personalidade74, que confiam inteiramente na inspira•‹o, produzindo uma

 sobreatau•‹o, ou performance exagerada, amadora e ingnua. Substituem ossentimentos relacionados com a representa•‹o por emo•›es pontuais genŽricas.

Da’ o apego ˆ exterioridade da interpreta•‹o. O espa•o de representa•‹o

coincide com o cardiograma do ator. O tempo de sua atua•‹o Ž o mesmo tempo de sua

74 Como neste t—pico vamos nos concentrar mais nas obras de Stanislavki, usoas seguintes siglas:  PA( A prepara•‹o do ator , Rio de Janeiro, Civiliza•‹o Brasileira,1984; CP(  A cria•‹o do papel , idem, idem, 1999) e CG(  A cria•‹o da personagem,Idem Idem, 1987). No caso aqui citamos PA 50-51.

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excessiva conforma•‹o emocional. Quando surge e atua, marca sua presen•a pela

sonora visualidade de sua personalidade.

Contrariamente ao fechamento da representa•‹o ˆ subjetividade ditatorial do

intŽrprete, Stanislavski faz-nos perceber a descontinuidade entre atua•‹o e

representa•‹o. A diferen•a entre o ator e o papel Ž o ponto de partida para a

integratividade dos n’veis da representa•‹o. O saber do ator ser‡ a sua reden•‹o.

Conhecendo e experimentando as implica•›es dessa descontinuidade, o ator se

exercitar‡ na compreens‹o de sua atividade.

Ent‹o entra toda a sorte de confus›es quando se come•a a ler Stanislavski. Ao

defender uma vis‹o mais integral da atua•‹o, ele introduz a dimens‹o interior da

 personagem, o subconsciente, o conteœdo espiritual, todas essas express›es

ambivalentes e plurissignificativas. Mais que uma quest‹o de vocabul‡rio ou de

tentativa de filiar Stanislavski a uma ou outra corrente de pensamento, tal recurso 'ao

interior' procura situar a descontinuidade entre ator e papel atravŽs da n‹o

transparncia da representa•‹o. Ou seja, a tentativa de ampliar as dimens›es da

especifica atividade de interpretar para a cena exige uma compreens‹o aplicada a si

mesmo da impossibilidade de coincidir ator e papel. Essa impossibilidade ao invŽs de

eliminar a representa•‹o solicita por parte do intŽrprete a reorienta•‹o de sua

atividade para um horizonte que inclua nos seus atos uma transforma•‹o dessa

impossibilidade na possibilidade mesma da atua•‹o.

Ao mesmo tempo, essa mescla de modos de descri•‹o dualistas aponta a

integratividade na qual as parcialidades s‹o expostas em seu improdutivo insulamento

e encaminhadas para a interdependncia de materiais f’sicos e emocionais, ÔinternosÕ

e ÔexternosÕ na completa realiza•‹o da atua•‹o.

Parece mais dif’cil agora. ƒ preciso mudar o ponto de partida. O ficcional a ser

representado n‹o Ž um dado, mas uma provoca•‹o. O ator n‹o tem o personagemantes de estud‡-lo e torn‡-lo vis’vel. A revers‹o do ponto de vista a partir da mudan•a

do ponto de partida devolve para o ator a operacionalidade dos limites da atividade

 para a qual ele se destina. O espec’fico ato de representar intervŽm na modifica•‹o do

 posicionamento do ator diante de sua tarefa. O que Stanislavski faz, ou o que chama

seu sistema, Ž explicitar as atividades inerentes ao ato de representar, esclarecendo

seu horizonte estŽtico-operativo. Desse modo, a arte tem sua cincia.

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Por isso para Stanislavski Óo essencial da arte n‹o est‡ nas suas formas

exteriores, mas no seu conteœdo espiritualÓ75 . Essa afirmativa poderia patentear o que

chamamos de paradoxo de performance, pois reagindo contra a exterioriza•‹o, a

realidade como nos chega a representa•‹o, acaba por anular a pr—pria realidade da

representa•‹o. O que redundaria no refor•o do que era criticado no tipo de atua•‹o

 personalista. A dicotomia exterior - interior, contrapartida cnica do dualismo

 psicof’sico (oposi•‹o mente-corpo) desmaterializaria o espa•o de representa•‹o

tornando desnecess‡ria a fisicidade e o preparo para a cena.

Contudo, o paradoxo Ž aparente. O recurso ao interior Ž a compreens‹o da

dupla perten•a do ator, sua dupla natureza. "Uma Ž a perspectiva do papel, outra Ž a

do atorÓ76, onde o aprofundamento da perspetiva do ator Ž complementar ao

conhecimento da diferen•a de perspectivas dentro de sua atua•‹o. O que vai ser

representado precisa ser elaborado a partir dessa dupla perten•a ativada antes e

durante a performance. Aquilo que n‹o Ž fundamentado por desdobrada subjetividade

torna-se n‹o justificado e artificiosamente mobilizado como apoio onde carece

trabalho de base. A cena ent‹o toda Ž exterioriz‡vel em fun•‹o de seus expl’citos

fundamentos estudados e testados durante o processo de explora•‹o do papel por

 parte do ator. O interior Ž a intimidade cada vez mais intensificada com o papel.

Desdobra-se o ator em observador e agente, sujeito e objeto de sua atividade de

representa•‹o, corrigindo-se, modificando-se para interpretar.

O duplo Ž a chave de acesso para um processo mais completo. Esse interior

como correlato irredut’vel ˆ reprodu•‹o/espelhamento do exterior Ž ampliado de

forma a caracterizar o conjunto de procedimentos implicados no ato de representar. A

abordagem mais correta e efetiva desse interior nos far‡ mais pr—ximos de uma

compreens‹o mais eficaz da interpreta•‹o para a cena. Por isso Stanislavski

recomenda Ônunca se permita representar exteriomente algo que voc n‹o tenhaexperimentado intimamenteÓ77. O papel n‹o Ž uma evidncia normalizada pelo meu

imediato agir. A fic•‹o a ser representada, ao mesmo tempo que Ž singular, exige do

ator a singulariza•‹o de sua interpreta•‹o. A dupla perten•a do ator Ž o diagrama que

configura a compreens‹o e interpreta•‹o da fic•‹o a ser encenada. Preconizando o

interior em uma cis‹o mais global da atua•‹o, quer-se apontar para a dupla perten•a

75 PA 6576 CG 19877 PA 56-57

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do ator, para a diferen•a ontol—gica entre a figura e o intŽrprete,diferen•a esta que

repercute na necessidade de procedimentos mais fundamentados para a atua•‹o.

Estrategicamente, o elogio do interior Ž o elogio da diferen•a entre fic•‹o e realidade

e a reivindica•‹o do trabalho do ator diretamente conectado com o conhecimento dos

meios pelos quais ele se expressa. ƒ o que chamamos de Ôhorizonte estŽtico

operativoÕ da abordagem de Stanislavski. Tal horizonte operativo esclarece o

idealismo estŽtico que muitas vezes Ž demasiadamente mais comentado e reproduzido

que o contexto de sua utiliza•‹o.

Se a representa•‹o n‹o Ž uma evidncia em sua isolada exterioridade para ator,

Ž a compreens‹o do modo de ser dessa interioridade que possibilita o acesso ao

conhecimento da atua•‹o. A explicita•‹o dos par‰metros da atividade

representacional torna-se a forma•‹o mesma do ator. Desmistifica-se a aura de

 pseudo-espontaneidade e irracionalidade que cerca o fazer art’stico. Stanislavski

demonstra que a forma•‹o do ator alinha-se ao aprimoramento de sua sensibilidade e

conhecimento do que faz. Uma racionalidade estŽtica orientada para a composi•‹o e

 performance, um c—gito representacional Ž experimentado e integrado aos

movimentos do ator. De forma que Òtodo invento da imagina•‹o do ator deve ser

minuciosamente elaborado e solidamente erguido sobre uma base de fatosÓ78.

 Na medida em que vai justificando todo ato que realiza ao compreender

melhor a situa•‹o de representa•‹o com a qual se relaciona, o ator vai contracenando

n‹o s— com a figura que ele encena mas consigo mesmo79. A reflexibilidade da

atua•‹o Ž adquirida atravŽs da continuidade do embate com seu correlato assimŽtrico,

o papel. A dupla perten•a do ator agora ganha foros de complementaridade. A

fundamenta•‹o do papel Ž uma constitui•‹o da experincia do ator. O papel n‹o Ž um

tipo, um simulacro de realidade e sim uma abertura para a compreens‹o da

ficcionalidade a ser representada.o papel n‹o Ž a concretiza•‹o ou reprodu•‹o de umindiv’duo e sim a contextualiza•‹o de uma atividade interpretativa. Eis o diferencial

das artes para a cena: por necessidade da performance, da realiza•‹o, estas artes se

convertem em uma educa•‹o integral dos sentidos, das capacidades volitivas e

cognitivas ao exporem a integratividade de sua composi•‹o. Na performance da arte

78 PA 9679 Mais explicitamente PA 197 ÓO ator deve usar sua arte e sua tŽcnica para

descobrir, por mŽtodos naturais, os elementos que precisa desenvolver para o seu papel. Deste modo a alma da pessoa que ele interpreta ser‡ uma combina•‹o doselementos vivos do seu pr—prio serÓ. Mais adiante veremos o que Ž essa ÔalmaÕ.

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da cena exibe-se mais cabalmente sua composi•‹o. A performance Ž a estrutura•‹o da

composi•‹o. A complexidade da atua•‹o est‡ diretamente indexada ao diferencial da

linguagem para cena.  In loco, o ator Ž o suporte da representa•‹o e a realiza•‹o

mesma dessa representa•‹o. Ele tem de possibilitar a representa•‹o, tem de tornar

fact’veis as condi•›es para que a representa•‹o seja compreendida. A interpreta•‹o

 para a cena efetiva a compreens‹o do espet‡culo.

Dessa maneira, quando Stanislavski afirma queÓ o objetivo fundamental da

nossa psicotŽcnica Ž colocar-nos em um estado criado no qual o nosso subconsciente

funcione naturalmenteÓ80  de modo algum est‡ prescrevendo uma terapia ou uma

 psicologiza•‹o do ator nem muito menos a canoniza•‹o de um estilo interpretativo. O

vocabul‡rio n‹o Ž o texto. Psicologia e Naturalismo. ƒ preciso saber o referente. A

 preocupa•‹o de Stanislavski Ž tornar compreens’vel a atua•‹o revelando sua

integratividade estŽtica. A totalidade das capacidades e dos meios do ator se

movimenta na ’ntima rela•‹o entre composi•‹o e performance. Pois acima de tudo,

estamos lidando com fic•›es. A reflexibilidade do ator caracteriza o levar em conta a

subjetividade em sua reestrutura•‹o provocada pela descontinuidade entre o papel e

sua realiza•‹o. Decorrente disso, o ÔnaturalÕ , a natureza criadora, a segunda natureza

do ator, Ž a compreens‹o da situa•‹o do intŽrprete agora operacionalizada. A

composi•‹o antecede e excede ˆ performance. O que se torna natural Ž compreens‹o

da composi•‹o de performances.

 N‹o Ž ˆ toa que os exerc’cios e treinamentos empregados por Stanislavski

objetivam procuram investigar e internalizar esta composi•‹o de performances. Esta

internaliza•‹o da compreens‹o do processo criativo para a cena , escandaloso

ÓinternoÓ, reverte a m’stica ilusionista do ator, transformando atos expressivos

imediatistas em precisas formas de longa dura•‹o. Contraditoriamente para alguns, o

vocabul‡rio que Stanislavski utiliza ao se referir a julgamentos dos atos decorrentesdessa internaliza•‹o reveste-se de uma moldura classicizante: Òquanto mais delicado Ž

o sentimento, mais exige precis‹o, clareza e qualidade pl‡stica para se exprimir

fisicamenteÓ; Òevitem a falsidade, evitem tudo o que for contr‡rio ˆ natureza, ˆ l—gica

e ao bom sensoÓ. A moldura classicizante, tomada de emprŽstimo do vocabul‡rio das

artes pl‡sticas, caracteriza o momento, o efeito da internaliza•‹o. Este vocabul‡rio

n‹o Ž ’ndice abstrato e genŽrico de valor, mas indica•‹o do concreto esfor•o tornado

80 PA 295

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 palp‡vel e vis’vel da mudan•a de ponto de vista do ator em rela•‹o ˆ sua atividade.

Mais ciente da estrutura•‹o de sua performance, seus atos ganhos f™lego de quem

abriu seus horizontes aplicando-os ˆ especificidade do que realiza. O natural e o

l—gico Ž a exposi•‹o da compreens‹o de sua performance. Esses termos maisÓ

racionaisÓ n‹o s‹o um ideal estŽtico, mas demarcam a inteligibilidade da

representa•‹o. E s‹o vis’veis, exteriores. Note-se como, aparentemente em

contradi•‹o Stanislaviski vale-se tanto de termos e express›es 'romantizados' quanto

classicizantes.

Aqui entramos na ultrapassagem dessas categorias substantivas e nos

concentramos nos verbos. O que realmente temos Ž uma dificuldade imensa de falar a

respeito das representa•›es dram‡ticas. Por isso essas categoriza•›es que dividem o

mundo em dois Ð externo/interno, sujeito/objeto racional/criativo. Stanislavski se

utiliza desse vocabul‡rio conhecido para outros fins. E manipula para seu pr—prio

 pensar vocabul‡rios ditos cient’ficos, objetivos e idealistas. Para alŽm do ecletismo,

temos a constata•‹o n‹o s— de uma falta de linguagem para o trabalho criativo cnico

como tambŽm a persistncia nessa linguagem polarizante ‡vida de estratŽgias

contemplativas, generalizadoras do fazer estŽtico. A arte para a cena denuncia a

miopia interpretativa de se tentar hipertrofiar a fic•‹o teatral cena seja por trat‡-la

como c—pia da realidade, seja por consagr‡-la como lugar m’stico transcendente.

Incrivelmente o natural e o interno em Stanislavski n‹o retomam um mimetismo

restrito nem a m’stica egol‡trica. S‹o atos. Internaliza•‹o e naturaliza•‹o descrevem o

tempo e o modo pelos quais o ator torna o desempenho consciente de suas

especificidades.

 Na medida em que internaliza e naturaliza seus atos, o ator Ódesenvolve uma

espŽcie de controle, como se fosse um observador. Esse processo de auto Ðobserva•‹o

e remo•‹o da tens‹o desnecess‡ria deve ser desenvolvido ao ponto de se transformanum h‡bito subconsciente, autom‡ticoÓ inserindo dentro de si um Òcontrolador dos

mœsculos que deve tornar-se parte da nossa conforma•‹o f’sica, uma segunda

naturezaÓ81  . A internaliza•‹o, pois, de uma escuta sens’vel ˆ composi•‹o de

 performances reflexivamente atinge o ator. Ele n‹o absorve o que entende apenas por

contemplar. Ele Ž colocado em situa•‹o de compreender a realiza•‹o de

representa•›es. Assim como a fic•‹o para a cena Ž uma integra•‹o de processos

81 PA 124-125

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espec’ficos que a efetivam, do mesmo modo o ator vai totalizando sua presen•a e sua

 perten•a ao espet‡culo. Seus atos fisicizam esta compreens‹o do que realiza. O corpo

Ž o que movimenta essa compreens‹o. O ator corporifica seu saber, e sua performance

Ž a exibi•‹o de um corpo vivo, espet‡culo integral de sua aprendizagem. O corpo,

como o ator em rela•‹o ao papel, precisa explorar essa situa•‹o de representa•‹o.

Dessa maneira, a fisicidade n‹o Ž um absoluto. Sua abism‡tica plasticidade

 precisa levar em conta a explora•‹o orientada de suas possibilidades. N‹o se trata de

uma abstra•‹o estetizante, o equ’voco estŽtico de n‹o se conhecer o corpo. Mas o

conhecer o corpo incrementa-se em virtude da perspectiva de cena, e a motiva•‹o

estŽtica se aprimora na discuss‹o de seus limites possibilitadores. De forma que Ž para

os par‰metros de composi•‹o e performance que uma estŽtica operativa converge,

suplantando um idealismo estŽtico ou uma fisicidade espontane’sta.

Stanislavski, valendo-se de vocabul‡rios de tradi•›es cindidas, bem procurar

integrar essa dicotomia psicof’sica em contexto mais produtivo para a atua•‹o. Assim

como ele propugnou a predomin‰ncia da compreens‹o da composi•‹o na

internaliza•‹o, tambŽm agora na fisicidade do papel ele atualiza a mesma

determina•‹o basilar: ÒOs mœsculos devem estar plena e diretamente subordinados

aos sentimentos82Ó A composi•‹o dos par‰metros de performance, que a composi•‹o

faz resultar, n‹o fica restrita a uma idŽia da cena. Ela estabelece par‰metros para o

corpo. A constru•‹o do espet‡culo que o ator em situa•‹o de representa•‹o deve

compreender e internalizar delimita a performance. A an‡lise e entendimento da

composi•‹o Ž uma an‡lise e entendimento da performance. O corpo n‹o Ž a

concretiza•‹o de uma representa•‹o, ilustra•‹o de uma idŽia. A performance Ž a

interpreta•‹o de uma interpreta•‹o, configurada para ser representada. De forma que o

ator Ž duplamente diferenciado em rela•‹o ao papel seja pela internaliza•‹o da

composi•‹o, seja pela performance corporal. No entanto essa diferen•a Ž o que ele vairepresentar em palco. Para tanto, precisa compreend-la para execut‡-la. O pr—prio

corpo do ator ent‹o n‹o Ž uma evidncia para ele mesmo.

Assim sendo, Òrepresentando, nenhum gesto deve ser feito apenas em fun•‹o

do pr—prio gesto. Seus movimentos devem ter sempre um prop—sito e estar sempre

relacionados com o conteœdo de seu papel. A a•‹o significativa e produtiva exclui

82 CP 125

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automaticamente a afeta•‹o, as posesÓ83. Em situa•‹o de representa•‹o o corpo torna

vis’vel o espet‡culo e sua composi•‹o. Os atos s‹o atos representacionais que

apontam para o contexto de sua produ•‹o. A cena mobiliza o corpo para a

interpreta•‹o do que se representa. A a•‹o significativa, ao mesmo tempo em que

adquire outras fun•›es que aquelas coordenadas ˆ fisicidade, tambŽm concentra-se no

 papel. Amplia-se a concretude do espet‡culo ao mesmo tempo em que se corrige a

autoevidencia•‹o do corpo. O corpo ampliado e posicionado corrige e situa o sujeito

ator em sua atividade em cena. O que se perde em generalidade de posturas se ganha

na especificidade dos movimentos. A representa•‹o realiza a visibilidade dessa

excedncia das a•›es significativas. O que se v em cena atravŽs da atua•‹o Ž essa

excedncia conduzida e possibilitada pelo ator. O que Ž exclu’do Ž o que n‹o

 proporciona a integra•‹o dessa excedncia compreensivamente no espet‡culo.

Tal economia expressiva84 do movimento n‹o Ž uma assepsia movida por um

conceito de beleza sublime. Trata-se da funcionalidade representacional do ato

adquirido no entendimento da performance atravŽs da internaliza•‹o dos par‰metros

da composi•‹o. O movimento n‹o Ž autoreferente. Stanislavski esclarece bem isso ao

comentar a descontra•‹o dos mœsculos para a o treinamento do ator. A tens‹o f’sica

que impede o movimento corporal, ou a atua•‹o entulhada de mœltiplos de gestos

supŽrfluos, ambas advŽm do desconhecimento das circunst‰ncias da representa•‹o.

Temos trs momentos: Òtens‹o supŽrflua, que vem, inevitavelmente, a cada nova pose

adotada com a excita•‹o de execut‡-las em pœblico; relaxamento autom‡tico dessa

tens‹o supŽrflua, sob a a•‹o do controlador; e justifica•‹o da pose, quando por si

mesma ela n‹o convence o ator.85Ó

 Note-se como a exclus‹o do supŽrfluo se relaciona com a integra•‹o da

 performance ˆ composi•‹o. O isolacionismo do ato n‹o conectado ˆ compreens‹o da

representa•‹o faz com que o ator se vincule a movimentos n‹o justificados, tensos porque sobrecarregados de atos n‹o definidos em virtude de sua ausncia de

 par‰metros composicionais. Da’ os apoios convencionais e os clichs da interpreta•‹o

do ator histri™nico. Preso ao tempo de sua apari•‹o tal ator esfor•a-se por garantir

esse momento atravŽs da direta negocia•‹o com seu pœblico, reduzindo a

83 CG 6884 Conf. CG 206 Óƒ preciso ser econ™mico e fazer uma estimativa justa dos

nossos poderes f’sicos e dos meios que dispomos para traduzir em termos de carne eosso a personagem que interpretamos.Ó

85 PA 124

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representa•‹o aos artif’cios de extens‹o de seu espa•o central e nivelado de atua•‹o.

Ele configura-se como um invariante cnico que s— pode atualizar a esquematiza•‹o

de sua recep•‹o. A representa•‹o e o ator aqui brutalmente coincidem.

Os par‰metros composicionais devolvem ˆ recep•‹o um senso de espet‡culo,

de dura•‹o, de ritmo representacional que ultrapassa e integra os momentos diversos

de cena. ƒ isso que Ž internalizado pelo ator no treinamento proposto por Stanislavski.

O ator experimenta e pesquisa sua situa•‹o de intŽrprete, tornando sua fisicidade a

exibi•‹o de um saber atento e sens’vel a um senso de espet‡culo.

Dessa forma o ator pode guiar seus atos Ón‹o por uma infinidade de detalhes,

mas por aquelas unidades importantes que assinalam a trilha criadora certaÓ86. A

dupla perten•a do ator, proporcionando-lhe uma dupla perspectiva em sua atividade,

reivindica a busca de uma continuidade de atos em meio ˆ diversidade de referncias,

de modo a integrar atividades diferentes temporalmente na constitui•‹o do espet‡culo.

A performance do ator interpreta a estrutura•‹o do espet‡culo. Ao internalizar os

 par‰metros da composi•‹o para melhor interpret‡-los cenicamente o ator transforma

seus atos em atos representacionais: a•›es que configuram o ritmo da realiza•‹o do

espet‡culo. A arquitet™nica do espet‡culo Ð distribui•‹o das partes e suas inter-

rela•›es de acordo com um programa de receptividade prŽvio Ð Ž efetivada e

 possibilitada pelo trabalho do ator com as dimens›es estŽticas de sua atua•‹o.

De forma que o processo criador Ž uma aprendizagem e execu•‹o de

 par‰metros estŽticos relacionados com a realidade composicional de um espet‡culo.

Fisicidade e internaliza•‹o s‹o os atos complementares dessa aprendizagem. Doam-

nos um tipo de saber mensur‡vel pela reelabora•‹o que o ator faz do que procura

atualizar em cena. De forma que a descontinuidade que h‡ entre fic•‹o e realidade,

entre ator e papel Ž a presen•a de uma atividade interpretativa que vai aos poucos

esclarecendo e exibindo as marcas da aprendizagem do espec’fico fazer concreto queŽ representar. Entre a representa•‹o e o ator existe a sempre renovada rela•‹o entre

 performance e composi•‹o. Eis a vida f’sica do papel87, suja alma Ž a sensibilidade

esteticamente diversificada.

Ao procurar proporcionar bases mais esclarecedoras para a atividade do ator (

o que n‹o significa normas absolutas, dogm‡ticas), algumas solu•›es parecem

 polmicas. Uma delas se relaciona ˆ centralidade das emo•›es do ator na

86 PA 14087 CP 163

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representa•‹o e a perpetua•‹o da chamada quarta parede, ou exclus‹o da audincia.

Um dos principais baluartes da modernidade teatral foi denunciar e procurar abolir

essa violenta separa•‹o entre cena e platŽia. Influenciada pelas irreverentes

 performances vanguardistas, grande parte dos espet‡culos modernos procurou colocar

a situa•‹o mesma de audincia em quest‹o. Da’ a decorrente desconfian•a para com

Stanislavski.

A recep•‹o da obra de Stanislavski nos EUA (com A prepara•‹o do ator  em

1936) concentrou-se mais na internaliza•‹o, prolongando o dualismo psicof’sico e a

separa•‹o ator/platŽia. Da’ esta recep•‹o refugiar-se mais no  Actors studio  (Nova

York) , fornecendo um tipo de interpreta•‹o cinematogr‡fica basilar: a tela do cinema,

ampliando as dimens›es da figura humana, torna vis’vel e intelig’vel essa

internaliza•‹o88. A tela seria Ž vis‹o da perspectiva interna da personagem,

 perspectiva esta aumentada , dessa forma naturalizada com um 'espelho da alma'.(Mas

alma de quem?...)

Ora, o que est‡ em jogo Ž o seguinte: como uma abordagem do trabalho do

ator n‹o leva em conta o espet‡culo? Essa pergunta s— pode partir de quem necessita

inserir a audincia em uma modalidade representacional, como o teatro, que nem

toma como pressuposta a presen•a integrante do espectador, pois Ž para alŽm de

indiscut’vel a sua presen•a. O pœblico no espet‡culo n‹o Ž um adendo discursivo. N‹o

se pode tornar compreens’vel a possibilidade do espet‡culo sem a constitui•‹o de uma

recep•‹o. A composi•‹o da arquitet™nica do espet‡culo e o tempo-ritmo (ritmo de

representa•‹o) 89 de sua efetiva•‹o fundamentam-se na proposi•‹o de uma audincia

que d‡ forma e acabamento ˆ representa•‹o. Mas esta audincia o que Ž?

Desde o in’cio de suas pesquisas, Stanislavski, procurando superar o

 pragmatismo das  sobreatua•›es  dos atores de personalidade, confrontou-se com a

quest‹o da platŽia. A revers‹o do interior para o exterior estabelecia uma mudan•a de perspetiva em rela•‹o ao esclarecimento das rela•›es entre ator e platŽia. De uma

maneira provocativa isso significa que o foco de preocupa•‹o est‡ antes com a

representa•‹o do que com a platŽia.: Òprocurem aprender a olhar e ver as coisas no

 palcoÓ90, Stanislavski assevera . Em uma hierarquia de suas atividades, que explicita

88 Agrade•o neste t—pico as gentis e esclarecedoras conversas com meu colegaJo‹o Ant™nio de Lima Esteves.

89 CG 210-241.90 PA 202

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tambŽm seu funcionamento, o ator n‹o est‡ diretamente relacionado com seu pœblico,

como ele mesmo n‹o est‡ diretamente relacionado com seu papel. O ator determina-se

 pela compreens‹o de sua situa•‹o interpretativa. A cena configura o horizonte desta

compreens‹o. Mais precisamente Óa dificuldade Ž que estamos simultaneamente em

rela•‹o com o nosso comparsa e com o espectador. Com o primeiro, nosso contato Ž

direto e consciente ; com o segundo Ž indireto e inconsciente. E o not‡vel Ž que, com

ambos a nossa rela•‹o Ž rec’procaÓ91. Que l—gica de distingu’veis

sobredetermina•›es!

Ora, o ator executa atos diferentes e simult‰neos que exp›em a diferen•a

conjunta de referncias as quais sua performance atualiza para fazer poss’vel o

acontecer da representa•‹o. Conectar estes atos como referncia que orienta seu

entendimento Ž desde j‡ possibilitar a audincia, a experincia de recep•‹o. Na cena

mesma Ž que a platŽia passa a existir como observador em busca de saber sentir o que

Ž representado. Assim, uma coisa Ž o pœblico, outra Ž a audincia.

O esfor•o por parte do ator de aprender a configurar esteticamente suas

emo•›es e seus atos, sua performance durante a prepara•‹o de seu papel, isso a partir

do esclarecimento de par‰metros de composi•‹o finitos, em nenhuma momento Ž um

atividade solipsista, fechada sobre a sua Órealidade internaÓ. A continuidade da

representa•‹o se faz na continuidade da observa•‹o que atualiza a estrutura

arquitet™nica do espet‡culo. O empenho em tornar represent‡vel seu papel Ž a

internaliza•‹o de uma perspectiva de audincia. N‹o h‡ uma platŽia como evidncia

 prŽ-dada, que n‹o Ž modificada pelo espet‡culo. A lembran•a da platŽia Ž j‡ a men•‹o

de seu esquecimento. O desdobramento do ator compreensivamente trabalhado Ž uma

teoria e uma pr‡tica da recep•‹o.

E para terminar um œltimo t—pico: a quest‹o do subtexto. Um t—pico central da

cr’tica modernista teatral Ž a recusa centralidade do texto na representa•‹o, ou mesmoa recusa completa do texto. A pr‡tica do teatro liter‡rio, alvo dessa recusa, era

subordinar os atos de representa•‹o a um texto. Mas o texto n‹o Ž o problema, e isso Ž

o que foi pouco debatidoa quest‹o Ž o que Ž texto para teatro e como trabalhar com

textos em constru•‹o de espet‡culos.

Da mesma forma que o ator n‹o Ž a personagem, o texto n‹o Ž uma estrutura

aut™noma. Participa da representa•‹o n‹o s— como material, mas como explicita•‹o

91 PA 220

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dos par‰metros compositivos para a performance. Ser‡ analisado pelo ator com a

mesma voracidade, da mesma maneira que o corpo e a representa•‹o. O que vai ser

 posto em cena n‹o Ž o texto e sim a interpreta•‹o do texto.

Para diferenciar o texto do autor e o texto do ator e o espa•o de mœtua

implica•‹o de ambos que a performance realiza, Stanislavski utiliza o procedimento

de buscar o subtexto do texto. O subtexto ÒŽ uma teia de incont‡veis, variados

 padr›es interiores dentro de uma pe•a e de um papel. ƒ o subtexto que nos faz dizer

as palavras que dizemos em uma pe•a. (...) A palavra falada n‹o vale por si mesmo.

Quando faladas, as palavras vm do autor , o subtexto do ator. Cabe ao ator compor

mœsica dos seus sentimentos para o texto do seu papel e apreender como cantar em

 palavras esses sentimentos.Ó92. O subtexto est‡ no texto, mas o desempenho dele Ž

feito pelo ator. O texto Ž analisado e reestruturado pela compreens‹o dos padr›es

representacionais nele implicados, assim como a composi•‹o Ž estudada em seus

 par‰metros para a performance. O subtexto Ž o contexto expressivo do texto, as

orienta•›es estŽtico-operat—rias do espet‡culo, marcas da arquitet™nica da

representa•‹o. O subtexto integra o ato de fala em uma exibi•‹o dos suportes

expressivos do espet‡culo. Os v‡rios n’veis do texto atualizam a produtiva

complexidade de perspectivas do espet‡culo. As palavras escritas s‹o modificadas

 pela interpreta•‹o do ator que transforma em espet‡culo estes padr›es, par‰metros do

contexto compreendido. N‹o se trata de ler entrelinhas, mas de fazer com o texto o

que realizaou com as emo•›es e com o corpo: justificar cada ato como um

conhecimento conquistado e ativado na express‹o.

Assim a oposi•‹o entre texto e espet‡culo Ž superada desde que o processo

criativo para realizar uma representa•‹o seja n‹o uma recusa perempt—ria disto ou

daquilo e sim um esfor•o para contextualizar os procedimentos de composi•‹o e

 performance para a cena.O que sobredetermina tudo Ž a realiza•‹o do espet‡culo. Stanislavski viu isso

muito bem. A forma•‹o do ator tem pressupostos em uma estŽtica relacionada com

espec’ficos e intelig’veis momentos de um processo criativo. A representa•‹o Ž

limitada pela explora•‹o de suas possibilidades.

4- V. Meyerhold: A materialidade do evento cnico

92 CG 137-139

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93 Fala da personagem Trepliov (A Gaivota, Tchecov), interpretado por Meyerhold namontagem do Teatro de Arte de Moscou, em 1898, dirigida por C. Stanislavski, queinterpretou a personagem Trigorin .

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94  Muitos desses estere—tipos est‹o relacionados com as dificuldades de acesso adocumentos da antiga Uni‹o SoviŽtica. Ap—s a queda do muro de Berlim, novos

documentos favorecem uma compreens‹o mais ampla da situa•‹o cultural soviŽtica.Sobre a mitifica•‹o de sua morte, consulte-se SENELIC,L.The Making of a Martyr:The Legend of MeyerholdÕs Last Public Appearance. Theatre Research International28, 157-168, 2003. Sobre reaplica•›es da biomec‰nica, NORMINGTON,K.Meyerhold and the New Millennium. NTQ,21,118-126, 2005.95  Como o faz muitas vezes RIPELINO,A.M. O truque e a alma.S‹o Paulo:Perspectiva, 1996.96  Companhia teatral liderada pelo duque germ‰nico Georg II Saxe de Meiningen(1826-1914) que excursionou pela Europa entre 1874 e 1890 Ð em 1885 e 1890

 passou pela Rœssia -, destacando-se por um tratamento pomposo do passado hist—rico.Para tanto, desenvolveu a presen•a e o movimento de multid›es no palco, como em

cenas de batalha e coroa•‹o, aprimorou os detalhes de objetos de cena, cen‡rios efigurinos, alŽm de trabalhar com plataformas e efeitos sonoros, o que coloca o Duquede Meiningen como um modelo da figura moderna no encenador, alŽm decontempor‰neo da idŽia wagneriana de arte total. Para mais informa•›es, consultar osseguintes textos: KOLLER, A.M. KOLLER,A.M. The Theater Duke. Georg II ofSaxe-Meiningen and the German Stage. Stanford University Press,1984.;WILLEMS,V. A.  Henry Irving and The Meininger. The University of Wisconsin,1970; e GRUBE, M. The Story of the Meininger. University of Florida, 1963. Paradesdobramentos do mŽtodo e do teatro de Meiningen, ver a tese de doutorado de K.T.HANSON, Georg II, The Duke of Saxe-Meiningen:Re-examination,apresentada naBrigham Young University em 1983.97 Em carta para sua esposa Olga. M.Munt,em 22/06/1898, Meyerhold informa que ÒO mercador de Veneza ser‡ realizado ˆ la Meiningen, com a aten•‹o que se deve ˆ

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exatid‹o hist—rica e etnogr‡fica. A antiga Veneza emergir‡ como algo vivo diante do pœblico. De um lado, o velho quarteir‹o judeu, escuro e sujo; do outro, a pra•a diantedo pal‡cio de P—rcia, lindo, poŽtico, com uma vista para o mar que encanta os olhos.Escurid‹o aqui, claridade l‡; aqui, tristeza e opress‹o; l‡, brilho e alegria. O cen‡riosozinho expressa a idŽia por tr‡s da pe•a.! (TAKEDA, C.L. O cotidiano de umalenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003, p. 64-65) Ó.

 Noutra carta para sua esposa, em 8/7/1898, Meyerhold comenta entusiasticamente oscen‡rios da pe•a Tsar Fi—dor:  ÒN‹o se poderia ir alŽm em termos de beleza,originalidade e verdade. ƒ poss’vel olhar os cen‡rios durantes horas a fio e n‹o scansar. E mais, gosta-se deles como algo real. O cen‡rio para a segunda cena doPrimeiro Ato, um c™modo no pal‡cio do tsarÕ, Ž especialmente bom. Faz a gente sesentir em casa. ƒ bom devido ˆ sensa•‹o confort‡vel que transmite e ao estilo.Ó(TAKEDA, C.L. O cotidiano de uma lenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹oPaulo:Perspectiva, 2003, p. 69). Vemos aqui um Meyerhold bem longe deMeyerhold...98  Segundo vemos em ROUBINE,J-J. A linguagem da encena•‹o teatral . Rio deJaneiro: Zahar, 1998:121 ÒEssa foi a Žpoca dos grandes quadros, sem os quais

nenhuma —pera, de Meyerbeer a Verdi, seria considerada completa. (exemplo disso: otriunfo de A’da, 1971). Foi tambŽm a Žpoca dos grandes balŽs com enredo, nos quaisas cenas feŽricas alternavam-se coma s cenas de corte (exemplos: A belaadormecida,1889; O lago dos cisnes; ambos de Tchaikovski).ÓNote-se comoespet‡culos dram‡tico-musicais encabe•am essa dramaturgia de ostenta•‹o.Posteriormente, tanto em Stanislavski, quanto em Meyerhold - e Brecht, comoveremos Ð obras multidimensionais tornarem-se o material para uma amplia•‹o dosestudos teatrais.99Tchecov, aconselhando seu irm‹o sobre como escrever uma obra de arte, defende:Ò1- ausncia de palavr—rio prolongado de natureza pol’tico-s—cio-econ™mica; 2-objetividade total; veracidade nas descri•›es das personagens e dos objetos; 3-

 brevidade extrema; 4-ousadia e originalidade Ð fuja dos chav›es; 5-sinceridade.ÓANGELIDES,S. A.P.Tchecov. Cartas para uma PoŽtica. S‹o Paulo:Edusp,1995,p.52.

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100

 Diante disso, n‹o Ž de surpreender uma aproxima•‹o entre Tchecov e Meyerhold.Meyerhold solicita ajuda de Tchecov na prepara•‹o de papŽis. Em 1899, Tchecovresponde a uma dessas solicita•›es: Òƒ uma irrita•‹o cr™nica {a do personagem queMeyerhold est‡ ensaiando}, de modo algum patŽtica, sem explos›es, nem convuls›es.(...) N‹o se demore sobre isso, mas mostre como se fosse uma das caracter’sticast’picas del, n‹o exagere, caso contr‡rio o que emergir‡ ser‡ um jovem irrita•‹o emvez de um jovem solit‡rio. Konstantin Serguiievitch {Stanislaviski}insistir‡ sobreesse nervorsimo excessivo, mas n‹o ceda; n‹o sacrifique a beleza, a for•a da voz e da

 palavra por causa de um efeito moment‰neo. N‹o os sacrifique , pois, na realidade, airrita•‹o n‹o passa de uma futilidade, um detalhe (TAKEDA, C.L . O cotidiano deuma lenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003,110)Ó.

O papel era Johanes, da pe•a Os solit‡rios, de G.Hauptmann (1862-1946),considerado o introdutor do Naturalismo na Alemanha. Sobre a recep•‹o do teatro del’ngua alem‹ nesta Žpoca, veja-se. ROSENFELD,A. Teatro Moderno. S‹oPaulo:Perspectiva, 1977,p.93-108.

101  Em carta para Nemir—vitch-D‰nthenko,em 17/01/1899, Meyerholddesabafa: ÒEsperei assumir uma parte ativa na discuss‹o sobre Hedda Gabler  queestava agendada para hoje. S— que n‹o houve nenhuma discuss‹o. Discutir osignificado geral de uma pe•a, discutir sobre a natureza das personagens, entrar noesp’rito de uma pe•a de climas por meio de um debate desafiador Ð isso n‹o faz partedos princ’pio do nosso diretor geral {Stanislavski}. O que ele prefere, como foiverificado, Ž ler a pe•a do princ’pio ao fim, parando conforme vai descrendo o

cen‡rio, explicando posi•›es, movimentos e marcando as pausas. Em uma palavra, para o drama social, para o drama psicol—gico, o diretor usa o mesmo mŽtodo dedire•‹o que ele trabalhou anos atr‡s e que o tem guiado, quer seja uma pe•a deatmosfera e idŽias, quer seja algo espetacular. Tenho que provar que isso est‡ errado?(...) Queremos tambŽm  pensar  enquanto atuamos. Queremos saber  por que estamosatuando, o que estamos atuando ((TAKEDA, C.L. O cotidiano de uma lenda. Cartasdo Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003:98).Ó102 Meyerhold envia para Stanislavski o projeto da nova companhia teatral, filial doTeatro de Arte, em 1904, enfatizando o enfoque no treinamento de atores maisexperientes, com vistas a formar um novo ator, mais criativo e menos reprodutivo, oqual se pode ler no primeiro volume da edi•‹o/tradu•‹o francesa das obras Meyerhold(PICON-VALLIN,B. (Ed.) ƒcrits sur le ThŽ‰tre. La CitŽ-LÕAgedÕHomme,1973,p.70-73). Da’ v‡rias imagens religiosas no projeto, preconizando o

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individualismo ascŽtico criador - imagens comuns no simbolismo, e, depois em projetos como o de J.Grotowski.103 Nos par‡grafos seguintes atenho-me a uma leitura atenta deste texto.

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5-Erwin Piscator e o fim da ilus‹o da ilus‹o teatral

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Ò John Heartfield, contra-regra encarregado de preparar um tel‹o para ' O

mutilado', atrasado como sempre, aparece ˆ porta de entrada da sala quando a pe•a j‡

estava na metade do primeiro ato,com o tel‹o enrolado e metido debaixo do bra•o.

HEARTFIELD

Erwin, pare! Estou aqui!

At™nitos, todos voltam-se para aquele homenzinho, de rosto fortemente

avermelhado que acabara de entrar. N‹o sendo poss’vel continuar o trabalho, Piscator

levanta-se e abandona por um instante o seu papel de mutilado e grita:

PISCATOR

Por onde voc andou? Esperamos quase meia hora (murmœrio de

assentimento do pœblico) e come•amos sem o seu trabalho.

HEARTFIELD

Voc n‹o mandou o carro!A culpa Ž sua! (crescente hilaridade no pœblico)

PISCATOR

(Interrompendo - o): Fique quieto, Johnny, precisamos continuar o

espet‡culo.

HEARTFIELD

(Extremamente excitado) Nada disso, antes vamos erguer o tel‹o!

Como HEARTFIELD n‹o cede, PISCATOR volta-se para o pœblico,

 perguntando-lhe o que deveria ser feito: continuar o espet‡culo ou pendurar o tel‹o. A

grande maioria decide pela œltima alternativa. Cai o pano, monta-se o tel‹o e, para

contentamento geral, espet‡culo recome•a104.Ó

O trecho acima Ž adapta•‹o de um epis—dio que, segundo E. Piscator (1893-

1966), jocosamente, foi a funda•‹o do Teatror Žpico. Concluindo o relato, Piscatorafirma: "Considero John Heartfield o fundador do teatro Žpico.105"

Em nossa adapta•‹o, convertemos a nota de rodapŽ, que apresenta o epis—dio,

em um roteiro teatral, com o objetivo de tornar mais compreens’veis os

 procedimentos relativos a este Teatro ƒpico.

Seguindo o roteiro, notamos que a interrup•‹o de uma representa•‹o

 proporciona o contexto para diversas a•›es do ator, do pœblico e do agente invasor. ƒ

104 PISCATOR 1968:53.105 Idem, idem.

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a partir da amplia•‹o dessa interrup•‹o que temos estes diversos atos estritamente

vinculados entre si.

A extens‹o da dura•‹o do que se interrompe vai formando um novo momento

dentro do espet‡culo, providenciando novos nexos, outro padr‹o de intera•‹o entre

cena e platŽia, revisando o padr‹o anterior. Ë frontalidade da cena - manifesta na

unidirecionalidade entre o mundo dos atores e o mundo do pœblico - contrap›e-se a

correla•‹o entre o cnico e o n‹o cnico, simultaneamente.

Dessa maneira, a intrus‹o de Heartfield possibilita n‹o somente a ruptura com

a 'ilus‹o' do que se representa. A unidade da representa•‹o e seu padr‹o de intera•‹o

s‹o colocados em xeque.

Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente, esta intrus‹o Ž integrada a uma

continuidade que redefine tanto a unidade da representa•‹o quanto seu padr‹o de

intera•‹o. Ë diferencia•‹o de eventos representados corresponde uma diversifica•‹o

das respostas da audincia.

Os chamados Ôpreju’zosÕ causados pela interrup•‹o da representa•‹o - a

dispers‹o recepcional e a falha na continuidade actancial - s‹o incorporados pelo

curso subsequente das novas participa•›es do pœblico no espet‡culo. Ou seja, a

ruptura com o espet‡culo, a descontinuidade, produz uma nova continuidade.

Ora este espet‡culo dentro do espet‡culo amplia os nexos recepcionais ao

mesmo tempo em que amplia o mundo representado e a pr—pria representa•‹o. O

 pœblico quer tudo, o tel‹o e o espet‡culo.

E Ž para esta amplia•‹o da cena que ruma a proposta de Piscator.

Se a descontinuidade pode produzir tanto novos atos recepcionais quanto

actanciais, ampliando a cena, isso s— se torna poss’vel em virtude de haver o

descentramento do centro de orienta•‹o do espet‡culo quanto a um ponto unificadordo que Ž mostrado.

Ora, a expans‹o e diversifica•‹o dos nexos agem diretamente sobre uma

 proposta de homogeneidade. Se se considera imprescind’vel coordenar atos e eventos

heterogneos em seqŸncia e simultaneidade, ent‹o volta-se a totalidade desses

 procedimentos contra o totalitarismo da cena fechada sobre sua forma de

apresenta•‹o.

Assim, a proposi•‹o de uma cena expandida reage diretamente contra procedimentos redutores da cena.

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Contudo, a diferen•a de Piscator n‹o est‡ na substitui•‹o de formas. Para ele,

"o critŽrio n‹o est‡ no formal, est‡ no problem‡tico106"

Como ent‹o compreender esta diferen•a que tem um par‰metro

composiocional, mas que ao mesmo tempo n‹o se limita ˆ composi•‹o?

Justamente, quando se inserem quest›es composicionais que controlam op•›es

formais em quest›es outras n‹o puramente estŽticas Ž que come•amos a nos

aproximar da amplitude que Piscator advoga. H‡, pois, uma estreita conex‹o entre

 procedimentos de composi•‹o e realiza•‹o e a defini•‹o de espet‡culo.

O impulso para esta conex‹o reivindica um contexto reativo, um claro

 posicionamento contra o conluio entre esteticismo e subjetivismo que permeava a

cultura teatral alem‹ dos primeiro decnios do sŽculo XX. Conquistas tŽcnicas do

teatro, como luz elŽtrica e palco girat—rio s‹o incorporadas, por Max Reinhardt, por

exemplo, no fortalecimento do lirismo dram‡tico, em uma naturaliza•‹o do mundo

representado como registro e clausura da Ôalma individualÕ107.

Dessa forma, o dispositivo cnico magnetiza o observador, isolando-o, ao

figurar a•›es, pensamentos e emo•›es que n‹o ultrapassam a inst‰ncia do pr—prio

sujeito que as performa. O incremento tŽcnico da cena, ou este uso da tŽcnica,

consagra a apresenta•‹o de referncias desprovidas de situa•›es que n‹o se reduzem a

a•›es/rea•›es individuais.

Mas h‡ outras maneiras de se efetivar as aplica•›es do dispositivo cnico. As

modifica•›es tŽcnicas ao invŽs de naturalizarem uma cena subjetiva podem capacitar

um deslocamento  do "indiv’duo com seu destino particular pessoal" para uma

amplitude hist—rico-social. "A criatura no palco tem para n—s o significado de uma

fun•‹o social. No ponto central n‹o est‡ sua rela•‹o consigo pr—prio, nem sua rela•‹o

com Deus, mas sim a sua rela•‹o com a sociedade.108"

Mas que hist—rico-social Ž este? A mera ado•‹o de uma perspectiva pol’ticacapacita este teatro multidimensional que Piscator objetiva?

De volta ao epis—dio. As confus›es entre Piscator, Heartfield e o pœblico

durante a pe•a 'O mutilado', de K.A. Wittfogel aconteceram dentro das limita•›es do

106 Idem, 43.107 Idem, 37-38. "Essa arte dram‡tica Ž l’rica, quer dizer n‹o Ž dram‡tica. S‹o

obras l’ricas dramatizadas. Na misŽria da guerra, que foi, na realidade, uma guerra dam‡quina contra o homem, procurou-se , pela nega•‹o, pesquisar a alma do homem."

108 Idem, 156.

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Teatro Prolet‡rio. Sindicatos e centrais trabalhistas apoiavam um palco de

 propaganda, determinado em promover "apelos para se intervir no fato atual e fazer

 pol’tica109"

Este teatro popular, performado em salas e locais de assemblŽia, distinguia-se

tanto dos teatros comerciais quanto dos teatros socialistas de seu tempo:" n‹o se

tratava de um teatro que pretendia proporcionar arte aos prolet‡rios, e sim uma

 propaganda consciente.110"

Um outro espa•o, um outro nexo entre a cena e o audit—rio: estes dois

 par‰metros de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o teatrais projetam-se contra a

defini•‹o de arte existente e ratificam uma diversa defini•‹o de espet‡culo. Dos

espa•os fechados, suntuosos e consagrados, para as salas e ambientes acanhados com

cheiro de" cerveja velha e urina", com cen‡rios de "tel›es simples, pintados ˆs

 pressas" explicita-se uma verdadeira simplifica•‹o dos meios e das posturas, que

 proporciona o foco naquilo mesmo que deveria ser a atividade de representa•‹o

dram‡tica: a intera•‹o entre cena/audincia.

Em condi•›es m’nimas, em dificuldades flagrantes, temos o teatro m’nimo: "o

teatro n‹o devia mais agir apenas sentimentalmente no espectador, n‹o devia

especular apenas a sua disposi•‹o emocional; pelo contr‡rio, voltava-se para a raz‹o

do espectador. N‹o devia t‹o somente comunicar eleva•‹o, entusiasmo,

arrebatamento, mas tambŽm esclarecimento, saber, reconhecimento111"

A pedagogia do espectador Ž impulsionada pela diferencia•‹o dos materiais

que lhe s‹o apresentados. Simultaneamente, a economia dos meios de express‹o

efetivava tanto o rigor da aplica•‹o desses meios quanto o controle e a compreens‹o

de seus efeitos. Aquilo que se mostra n‹o Ž mais algo apenas para se contemplar. A

contiguidade entre objetos, a•›es e situa•›es em cena com as  fora de cena acarreta

uma intera•‹o palco/platŽia que concretiza este deslocamento da esferasubjetiva/ilusionista do teatro para uma arena interindividual dos eventos

representados e conseqŸente excita•‹o cognitivo-afetiva do pœblico.

Alterando-se o que se mostra a partir dos nexos recepcionais, fundamenta-se

um conjunto de metas e procedimentos que podem ser explorados e se tornar

operacionaliz‡veis, e que n‹o mais se circunscrevem ao lugar e ao pœblico onde foram

109 Idem, 51.110 Idem, ibdem.111 Idem, 53.

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utilizados e testados. Como a intera•‹o palco/platŽia relaciona-se com os meios

empregados na realiza•‹o do espet‡culo e com o deslocamento da cena individual

 para a cena s—cio-hist—rica, vemos que a mœtua implica•‹o desses elementos Ž o que

ratifica a amplitude do que se representa e n‹o apenas um somat—rio ou escolha

aleat—ria dos meios empregados. A coopera•‹o entre meios tŽcnicos, referncias

transubjetivas e nexos recepcionais mais cognitivos providencia um programa de

atividades representacionais que transcendem o ponto origem de seu encontro e

manipula•‹o. Eis os procedimentos e par‰metros do processo criativo de Piscator

rumo a uma cena expandida e ampla.

 No espet‡culo  Bandeiras  (1924) estamos longe das assemblŽias, de seus

odores e dos atores n‹o profissionais. De acordo com Piscator, "pela primeira vez

tinha eu em m‹os um teatro moderno, o teatro mais moderno de Berlim, com todas

suas possiblidades, e eu estava resolvido a aproveit‡-las em fun•‹o do sentido da

 pe•a, a qual, no tema, correspondia a minha atitude pol’cia fundamental112"

O texto de  Bandeiras,  de Paquet, era escrito em forma intermedi‡ria entre

conto e drama onde "um frio sentimento do autor o pro’be de participar intimamente

da sorte de suas personagens e do curso da a•‹o.113" Assim, a impessoalidade no

tratamento do material narrativo libera o escritor a trabalhar mais as cenas,

descentrando a voz autoral como guia e condutor da atividade interpretativa do leitor.

Concentrando-se mais no que mostra que no que julga ou diz  sobre o que mostra, o

narrador aplica-se melhor ao planejamento e concatena•‹o das cenas e do desafio de

sua inteligibilidade, ao invŽs de unific‡-las em prol de uma mensagem prŽvia autoral.

Essa situa•‹o do escritor Ž hom—loga ao do diretor. Piscator com este material

narrativo tinha a oportunidade de efetivar no palco o seu romance-drama, o seu teatro

Žpico. E no que consistia sua atividade de diretor? "amplia•‹o da a•‹o e doesclarecimento dos seus segundo planos; uma continua•‹o da pe•a para alŽm da

moldura da coisa apenas dram‡tica.114"

Ou seja, frente ˆ elimina•‹o de uma perspectiva central que unifica toda a

representa•‹o no pr—prio mundo apresentado, no mundo da mensagem autoral e sua

interpreta•‹o restrita do que se mostra, Piscator diversifica as referncias produzidas

112 Idem, 67-68.113 Idem,69.114 Idem,ibidem.

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em cena valendo-se de meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os

atores contracenavam com tel›es que exibiam ora fotografias, ora textos.

Dessa maneira, o espectador simultaneamente interagia com as figuras em

cena e com os meios. A visibilidade dos meios n‹o se limitava ˆ duplica•‹o

redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espa•o e ao mesmo tempo o

espet‡culo se desdobrava em n’veis de referncia pertencentes a m’dias e

 performances diversas que expandiam o presente de cena. A presen•a dos meios

tŽcnicos fornecia uma abertura imaginativa da representa•‹o , contrariando o

 pressuposto do apagamento das marcas de fic•‹o presentes no uso ilusionista dos

novos recursos cnicos. A exibi•‹o tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,

frente ˆs personagens e ˆ platŽia, proporcionava um recrudescimento da pluralidade

representada e da pluralidade de atos receptivos. A heterogeneidade dos n’veis

referenciais co-presentes em cena faculta o mœtuo aprofundamento dos horizontes da

representa•‹o e da audincia.

Assim, retome-se o epis—dio da pe•a O mutilado: a interrup•‹o da

representa•‹o, a descontuinuidade provocada pela presen•a dos meios Ž produtora de

uma nova continuidade que atravessa o espet‡culo - a continuidade da metareferncia.

O espet‡culo demonstra-se como espet‡culo para assegurar o vinculo entre os

materiais que disponibiliza e os extensos contextos que busca apresentar para a

audincia.

Esse uso da metareferncia, incorporando-a ˆ atividade representacional,

favorece a construtividade da cena, a orienta•‹o da sele•‹o, combina•‹o e distribui•‹o

dos meios em fun•‹o dos atos de entendimentos da recep•‹o. A inteligibilidade da

cena conjuga-se ̂ inteligibilidade da audincia.

Em sua forma de representa•‹o, o espet‡culo  Bandeiras  era dividido em

"numerosas cenas individuais, algo de revista.115"

Seguindo o descentramento de uma perspectiva autoral privilegiada, que

unificava o mundo representado e o unificava empaticamente ˆ recep•‹o, vimos que

Piscator optara por procedimentos que verticalizavam a intera•‹o cena/platŽia atravŽs

de mœltiplos e heterogneos n’veis de referncia e de meios. N‹o subjugadao ˆ

115 Idem, 73.

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apropria•‹o e reprodu•‹o de uma individualidade restrita ao particularismo de sua

 presen•a e contexto, a forma de revista forneceria um modelo de realiza•‹o que

 poderia efetivar a libera•‹o do processo criativo para a cena de uma unifica•‹o

 personativa- actancial.

Assim, a forma revista com seus nœmeros diversos compostos de m’dias e

 performance diversas culminaria a defini•‹o plural do espet‡culo de Piscator contra a

homogeneidade reprodutiva do ilusionismo individualista anterior.

 Note-se que a abertura ˆs possibilidades de representa•‹o operada pelo

 processo criativo de Piscator, ao radicalizar a heterogeneidade da cena como forma de

se abarcar contextos de a•‹o mais amplos, acaba por justapor performances diversas,

subvertendo e refutando uma pretensa unidade midi‡tica do espet‡culo. Assim,

"mœsica, can•‹o, acrobacia, desenho instant‰neo, esporte, proje•‹o de cinema,

estat’sticas, cena de ator alocu•‹o" - tudo vem ˆ cena. A diversidade midi‡tica

corresponde ̂ diversidade dos contextos de a•‹o representados.

Ora essa diversidade midi‡tica da defini•‹o do espet‡culo de Piscator em

muito ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e se converte em um ponto de partida

 para a dramaturgia ulterior. A circunscri•‹o da dramaturgia ˆ escritura das falas e ˆ

distribui•‹o das a•›es e das partes da pe•a em fun•‹o de um enredo havia reduzido as

 possibilidades expressivas do espet‡culo. Sempre tudo convergia para um centro

subjetivo, para um hipersujeito arquimodelo de todos atos,pensamentos os

desempenhos em cena e na platŽia.

Com a diversidade multimidi‡tica do espet‡culo de Piscator, a dramaturgia se

confronta com novas tarefas - a ilus‹o da ilus‹o do centro subjetivo Ž refutada desde o

 processo criativo. Ao isolacionismo do autor, fechado em seu gabinetismo idealt’pico,

temos agora a inser•‹o de seu trabalho em outros trabalhos, um processo criativo

coletivo e colaboracionista. "os diversos trabalhos de autor, diretor, art’stico, mœsico,cen—grafo e ator se entrosavam incessantemente116."

Desse modo, conjugam-se processo criativo, mundo representado e atos

recepcionais na heterogeneidade de referencias e interreferncias que produzem.

A forma revista, dispondo eventos midi‡ticos diversos em sucess‹o, apresenta-

se como exibi•‹o dessa heterogeneidade que abarca tanto a composi•‹o quanto a

realiza•‹o e a recep•‹o do espet‡culo. Ao mesmo tempo a forma revista n‹o Ž uma

116 Idem, 80.

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resultante simples de atitudes ou procedimentos. Tal forma aberta delimita o

horizonte problem‡tico de sua realiza•‹o: os limites de sua inteligibilidade a partir do

 posicionamento dos materiais exibidos. Toda forma que recusa uma continuidade

imediata, atua sobre a continuidade mesma. A expectativa de acabamento do material

exposto exige estratŽgias complexas de exibi•‹o mesmo deste acabamento. Com a

abertura da forma, temos a prerrogativa dos suportes recepcionais.

O xito do espet‡culo Apesar de tudo (1925) manifesta o ’mpeto de solu•‹o de

 problemas impostos pela forma revista. Em destaque temos o uso de filmes em cena.

A sincroniza•‹o de m’dias diversas era o problema a ser enfrentado. Nas palavras de

Piscator "pela primeira vez a fita de cinema se ligaria organicamente aos fatos

desenrolados no palco.117" Pois a forma de revista n‹o diz respeito apenas ao

seqŸenciamento de partes diferentes, mas sim ˆ estrutura•‹o mesma de cada parte.

Os filmes estavam distribu’dos por toda a pe•a. Eram imagens de arquivos,

"filmagens que apresentavam brutalmente todo o horror da guerra: ataques com lan•a-

chamas, multid›es de seres esfarrapados, cidades incendiadas; ainda n‹o se

estabelecera a moda dos filmes de guerra.118"

Juntos com os filmes, eram apresentados ao pœblico discursos, recortes de

 jornal, conclama•›es, folhetos, fotografias. Tudo bem disposto com os atores em um

 palco girat—rio, efetivando "uma unidade da constru•‹o cnica, um desenrolar

ininterrupto da pe•a, compar‡vel a uma œnica corrente de ‡gua119"

Assim, essa unidade advinda da montagem e da sucess‹o de eventos

midi‡ticos diversos era o espet‡culo mesmo de sua possbilidade de realiza•‹o e

compreens‹o. Piscator tinha uma dupla ansiedade: "primeiro, de que modo resultaria

a mœtua a•‹o condicionadora dos elementos empregados no palco; segundo, se

realmente se chegaria a realizar-se algo do que forma projetado120"A dupla perplexidade frente ˆ composi•‹o e realiza•‹o do espet‡culo foi

resolvida pelo papel ativo da recep•‹o em dar acabamento ˆs cenas. Durante a

 performance da pe•a, Piscator afirma que "a massa incumbiu-se da dire•‹o art’stica.

(...) O teatro, para eles, transforma-se em realidade. Em pouco tempo cessou de haver

117 Idem, 80.118 Idem,81119 idem, 82.120 Idem, 83.

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  "LS

um palco e uma platŽia, para come•ar a existir uma s— grande sala de assemblŽia, um

œnico grande campo de luta.(...) foi essa unidade que, naquela noite, provou

definitivamente a for•a de incitamento do teatro pol’tico.121"

 Note-se que ao se expor os meios e materiais em cena, incrementou-se a

intera•‹o palco-platŽia. A comum-unidade dessa intera•‹o difere de uma proje•‹o

emotiva do pœblico ˆ mensagem do individualismo estŽtico e o ilusionismo de sua

representa•‹o. A motiva•‹o afetiva foi impulsiona pelo esfor•o cognitivo. A

contracena•‹o das m’dias entre si facultou a magnitude da apreens‹o recepcional. A

audincia podia conjugar fatos diversos no diferencial tanto midi‡tico quanto

referencial e disto compreender e reunir a totalidade do que era exibido. A tens‹o do

espet‡culo estava na disparidade dos meios e dos contextos e no modo como esta

disparidade Ž enfrentada em prol de nexos recepcionais. A contracena•‹o entre m’dias

concretizava a contracena•‹o entre palco e platŽia. A 'resolu•‹o' da disparidade, pois,

n‹o Ž a sua anula•‹o, o mero cancelamento do heterodoxo, mas o provimento de atos

vinculantes, de nexos.

Assim, o espet‡culo atua em fun•‹o de sua intera•‹o ao invŽs de ser um

ve’culo para idŽias autorais. A realidade multimidi‡tica da cena Ž o que possibilita a

interpreta•‹o de contextos de a•‹o extremos. Atos representacionais e atos da

audincia colaboram. O projeto composicional culmina no acabamento recepcional.

 Nas palavras de Piscator: "no palco tudo Ž calcul‡vel, tudo se entrosa organicamente.

Para mim, igualmente, o ator que eu vejo no efeito total do meu trabalho deve,

sobretudo, exercer uma fun•‹o, tal qual a luz, a cor, a mœsica o cen‡rio, o texto.122"

Mais importante: o documento exposto, difundido estava em mesmo n’vel

com o documento examinado, fraturado, reordenado. A montagem colocava em

mesmo plano o documento e o figurativo, de modo a possibilitar a interven•‹o

recepcional no que era representado e n‹o simplesmente a par‡frase de um original,de uma fonte autoral da informa•‹o. Nesse entrelugar, nessa regi‹o lim’trofe onde os

limites do objetivo e do subjetivo projetam ‡reas impessoais e desconhecidas Ž que a

 pe•a Ž executada. A imponderabilidade dos extremos absolutos converte esse

entrelugar em um choque contra toda e qualquer ortodoxia.

121 Idem, 83-84.122 Idem, 98.

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A obra total que o processo criativo de Piscator realizava exigia um teatro

total. O sucesso de pœblico determinou a abertura do Teatro e Estœdio Piscator, nos

quais espet‡culos e pesquisas sobre a arte teatral seriam efetivados. Com

W.Gropius(1883-1969), o teatro total pode ser constru’do.

Piscator justificava essa m‡quina teatral nova, "um aparelhamento dotado dos

meios mais modernos de ilumina•‹o, de remo•‹o e rota•‹o no sentido vertical e

horizontal, com um sem nœmero de cabines cinematogr‡ficas, instala•›es de alto-

falantes" como algo que possibilitasse tecnicamente Òa execu•‹o do novo principio

dramatol—gico.123"

Esta m‡quina teatral refutava a c‰mara —tica que por meio do pano e cova da

orquestra mantinha o espectador separado do palco. Ao invŽs de œnico centro de

aten•‹o, multiplicavam-se os palcos em cena (um central e dois laterais) e

engrenagens que envolviam e cercavam o pœblico distribu’do em torno desses palcos.

Assim, de todas as dire•›es as performances se abatiam sobre o pœblico. A audincia

 pertence espacialmente ao palco, e v-se confrontada e tomada pelas performances,

meios mec‰nicos e proje•›es luminosas.

Assim, Ž na atividade exercida sobre a recep•‹o que este teatro total encontra

sua efetividade.

Posteriormente, a cena expandida e multimidi‡tica de Piscator se defrontaria

com a representa•‹o de figuras isoladas, com a representa•‹o do her—i, como em  As

aventuras do bravo soldado Schwejk . Seria um recuo, como disseram de  Alexander

 Nieviski, de S. Eisenstein ? Ora na amplitude do espet‡culo de Piscator a descontru•‹o

da figura individual n‹o se torna a revalida•‹o de centro subjetivo. Antes, h‡ o refor•o

das magnitudes teatrais quando da desconstru•‹o dessa figura. O isolacionismo do

her—i e o recurso ˆ m‡quina da faixa corrente, na qual desfilam as partes todas de umesc‡rnio, complementa-se na globalidade do que foi mostrado.

Assim, as reflex›es e os procedimentos do teatro pol’tico de Piscator

ultrapassam as motiva•›es ideol—gicas e conjuntura hist—rico-pol’tica de sua

ocorrncia. Mas a’, temos uma nova hist—ria.

123 Idem. 146.

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  "L;

6- B. Brecht A dramaturgia como teoria da a•‹o

A materialidade cnica proposta por Appia efetivou a coerncia de m’dias

diversas para um efeito sobre o espectador. O espet‡culo como met‡fora ficou

disponibilizado tecnicamente, determinou subsequentes encena•›es, sendo depois

catapultado para o cinema.

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Mas Bertold Brecht (1898-1956) retoma criticamente esta heran•a da obra de

arte total. Para ele, a renova•‹o tecnol—gica das Artes Cnicas Ž apenas meia verdade.

De nada adianta modificar as formas de express‹o sem alterar o que Ž representado.

 N‹o h‡ representa•‹o sem uma realidade prŽvia, que se coloca para o artista como

obst‡culo e impulso. A realiza•‹o dram‡tica exibe essa dupla natureza do feito

art’stico. O teatro Ž um caso-limite de nossas fic•›es, pois, em sua performance, fica

demonstrado in loco  a co-pertinncia entre representa•‹o e mundo. Refutando uma

completa autonomia da representa•‹o, a pr‡tica compositiva e a argumenta•‹o

antilusionista de Brecht se constituir‹o n‹o s— em uma recusa e oposi•‹o ao que se

fazia em sua Žpoca. A materialidade dos meios reivindica um materialismo das

referncias.

Podemos mapear a elabora•‹o do teatro dialŽtico de Brecht distinguindo dois

momentos complementares: no primeiro momento, atŽ meados dos anos trinta, h‡

uma forte ret—rica bŽlica contra os h‡bitos estŽticos dito burgueses e suas implica•›es

art’sticas e pol’ticas. Em um segundo momento, que se desenvolve a partir de fins dos

anos trinta, h‡ o arrefecimento do artif’cio da denœncia em prol de uma coerncia

reflexiva que melhor contextualize tanto formal quanto conceptualmente uma

dramaturgia mais integral. Do didatismo estrito do primeiro momento, temos a

 posterior correla•‹o de procedimentos compositivos cuja interdependncia nos exp›e

uma teoria de alcance hist—rico maior. O que culmina em ÒO Pequeno organon para o

teatro(1948)Ó.

Como o t’tulo assinala e parodia, abordagens intelectualistas, como aquelas

calcadas em A poŽtica de Arist—teles, ao n‹o levarem em conta a produtividade entre

representa•‹o e representado, devem ser ultrapassadas por poŽticas que alicercem

suas investiga•›es na concretude hist—rica das fic•›es.

Vamos acompanhar o primeiro momento de Brecht. Podemos ver um programa de a•›es objetivando uma reforma. Da’ o contexto reativo bem marcado no

qual Brecht posiciona-se contra a baixa qualidade estŽtica das produ•›es teatrais e

—per’sticas, contra o misticismo abstrato dos vanguardistas e contra ˆ nfase no

espet‡culo, na representa•‹o pela representa•‹o, que os grandes mestres encenadores

que sucederam Appia praticaram. O ponto cr’tico situa-se no modo como eram

concebidas as rela•›es entre fic•‹o e realidade.

Para Brecht, a reforma se baseia no acatamento da diferen•a entre fic•‹o erealidade. A pr‡tica comum era de apagar as marcas de fic•‹o do espet‡culo.

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  "Lm

Pretende-se manter a platŽia atenta atravŽs de suas respostas emocionais, promovendo

a identifica•‹o como acesso ao que se representa. Desrealizando o mundo de cena,

tornando-o mais receptivo e palat‡vel, cria-se uma ilus‹o cont’nua de o que est‡

diante dos olhos tem seu tempo e seu espa•o em uma distinta esfera da experincia

humana.

Brecht denomina teatro culin‡rio tal proposta cnico-mercadol—gica que

fornece produtos de entretenimento que reduzem o campo de a•‹o do espectador a

uma frui•‹o gustativa. Prolonga-se a concep•‹o de fic•‹o como fantasia e prazer do

sujeito, o qual n‹o se v submetido a nenhum obst‡culo para seu gozo.

Para tanto, Brecht vai pouco a pouco problematizar esta estŽtica contemplativa

 baseada na identifica•‹o. Ele bem percebeu que as op•›es desenvolvidas em cena tm

seus pressupostos composicionais. Representar Ž articular inteligibilidade e

operatividade. H‡, pois, a interpenetra•‹o de procedimentos art’sticos, pressupostos

representacionais e formas de recep•‹o. Uma obra de arte n‹o Ž a extens‹o imediata

de uma idŽia. Mas seu tipo de racionalidade construtiva nos exp›e seu horizonte de

 pensamento.

A primeira tarefa da teoria e da pr‡tica de Brecht Ž refutar o ilusionismo

representacional e o conseqŸente apassivamento do audit—rio. Pois os espectadores

identificam-se com o que est‹o vendo em virtude do excedente emocional que

assimilam de uma trama preparada para ser o encaminhamento dos atos da platŽia.

Um circuito unidirecional do palco para o audit—rio ilude porque elide o car‡ter

ficcional de sua exibi•‹o. A fic•‹o n‹o quer se mostrar como fic•‹o. Sonega ao

espectador a educa•‹o de seus sentidos ao se demonstrar como natural, evidente e

atemporal. Por isso restringe seu estoque de mercadorias ˆ depura•‹o de

Ônecessidades humana eternasÕ n‹o muito contextualiz‡veis.

Em contrapartida, para Brecht Ž preciso remover tudo o que Ž m‡gico, deixarclaro o que est‡ sendo mostrado como algo que se mostra. Eis o efeito D, ou

distanciamento.

Alargando as possibilidades criativas da arte para o palco, a dramaturgia de

Brecht ganha um impulso de configura•‹o com o conceito operat—rio de

distanciamento. A negatividade deste conceito, que se encontra nas experincias

vanguardistas de estranhamento, no decorrer do trajeto da obra de Brecht vai ao

 poucos encontrar sua positividade. Mais que o inverso da espontaneidade daidentifica•‹o, o efeito D n‹o Ž pontual, mas estrutural. Temos um distanciamento

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estrutural que rejeita concep•›es de processos art’sticos baseados em empatia e obras

vinculadas ˆs exigncias meramente embelezadoras. Pois o que ainda pouco se notou

Ž o fato que para Brecht Ž preciso retirar as discuss›es sobre arte das polmicas

estetizantes e ver a obra de arte como obra de conhecimento. O distanciamento Ž a

experincia de compreens‹o de uma obra de arte, experincia essa proporcionada pelo

entendimento da representa•‹o e seus suportes de interpreta•‹o dramatizados.

A renova•‹o tecnol—gica das artes de cena havia deixado bem mais percept’vel

a produ•‹o de efeitos concretos que uma representa•‹o pode desenvolver. O

desempenho de uma fic•‹o encontrava-se agora exposto em virtude da materialidade

dos procedimentos empregados. Antes de tudo, a cena era a exibi•‹o de seu processo

de realiza•‹o. Um racionalismo da produ•‹o poderia oferecer as bases para as raz›es

do fazer art’stico. O fazer estŽtico n‹o era mais um dom ou privilŽgio encarcerado em

mentes escolhidas e sobrenaturais.

Contudo, a otimiza•‹o dos meios tem seus limites: uma tradi•‹o de pr‡ticas

que possibilitam sua utiliza•‹o. Pois desenhava-se ( como todos hoje bem sabemos) o

cons—rcio entre novas tecnologias e a continuidade dos h‡bitos ilusionistas. Presente e

 passado conjugam-se. A dimens‹o hist—rica dos feitos estŽticos evidencia-se aqui com

toda sua for•a.

Em raz‹o disso o efeito D torna-se estratŽgico para oferecer uma solu•‹o para

a contradi•‹o entre divertir e apreender que a sintomatologia dos produtos tecno-

ilusionistas efetivam.

O famoso e sempre citado quadro de oposi•›es124 (de 1931) procura esclarecer

a oposi•‹o entre o novo-velho modo de se fazer ilus‹o e a moderna maneira de se

integrar fic•‹o em uma representa•‹o.

 Forma dram‡tica de teatro

A cena ÒpersonificaÓ um

 Forma Žpica de teatro

 Narra-o

124 A necessidade de uma nova forma de apresenta•‹o do drama musical deseu tempo determinou este diagrama contrastrante. S‹o notas para o drama musicalŽpico Mahagonny. Note-se como o quadro se articula em trs grupos b‡sicos dequest›es: forma da obra, recep•‹o da obra e aplicabilidade da obra a contextos n‹oestŽticos, explicitando o amplo escopo da discuss‹o sobre as rela•›es entre drama econhecimento a partir de um paradigma que integra diversas intera•›es queultrapassam dualismos.

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  "L:

acontecimento

Envolve o espectador na a•‹o

e

Consome-lhe a atividade;

Proporciona-lhe sentimentos;

Leva-o a viver uma

experincia;

o espectador Ž transferido para

dentro da a•‹o;

Ž trabalho com sugest›es;

os sentimentos permanecem

os mesmos;

 parte-se do principio que o

homem Ž conhecido;

o homem Ž imut‡vel;

tens‹o no desenlace da a•‹o;

uma cena em fun•‹o da outra;

os acontecimentos decorrem

linearmente;

natura non facit saltus 

(tudo na natureza Ž gradativo)

o mundo, como Ž;o homem Ž obrigado;

suas inclina•›es;

o pensamento determina o ser.

Faz dele testemunha, mas

desperta-lhe a atividade;

for•a-o a tomar decis›es;

 proporciona-lhe vis‹o do

mundo;

Ž colocado diante da a•‹o;

Ž trabalho com argumentos;

s‹o impelidos para uma

conscientiza•‹o;

o homem Ž objeto de an‡lise;

o homem Ž suscept’vel de ser;

modificado e de modificar;

tens‹o no decurso da a•‹o;

cada cena em fun•‹o de si

mesma;

decorrem em curva;

 facit saltus

(nem tudo Ž gradativo);

o mundo, como ser‡ ;

o homem deve;

seus motivos;

o ser social determina o

 pensamento

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  ""L

O que se pode notar desse quadro Ž que o teatro Žpico, e seu distanciamento

estrutural, Ž composto por uma sŽrie de procedimentos ao invŽs de se fundamentar em

uma centralidade projetiva. N‹o h‡ um conceito que unifique a experincia de

recep•‹o ou a pr‡tica compositiva. A varia•‹o de procedimentos desnuda o palco,

desmistifica a ilus‹o encenada ao marcar a delimitada e circunscrita forma que d‡

suporte para uma determinada representa•‹o. Os suportes dram‡ticos expostos

clarificam a singularidade da obra.

Em conseqŸncia disso, h‡ uma correla•‹o enriquecedora entre palco e platŽia

atravŽs do qual o espet‡culo Ž a unidade entre cena e pœblico em uma realidade de

observa•‹o e afetividade. Espet‡culo Ž toda a interatividade entre cena e audincia. O

espet‡culo n‹o Ž mais que a representa•‹o dessa situa•‹o interprtativa entre cena e

 platŽia. N‹o est‡ acima ou alŽm de quem o possa assistir. Ele Ž finito e vis’vel em

seus nexos.

Dessa forma, desloca-se a perspectiva de cena da psicologia das personagens

 para a contextualiza•‹o do que se representa. H‡ uma unidade entre personagem e

acontecimento, acontecimento que n‹o Ž primordialmente mental. Com isso n‹o

temos um t™nus  emocional dominante, um plexo de puls›es b‡sico e invari‡vel.

Flutua•›es emocionais relacionadas a atos espec’ficos alternam-se com debate sobre

os pr—prios eventos que possibilitaram tais emo•›es e reflex›es. Tal clarifica•‹o das

emo•›es articula-se com a exigncia da produ•‹o de uma audincia mais

compreensiva.

Finalmente, o aperfei•oamento da representa•‹o, em virtude de seu

desnudamento para a platŽia, acarreta a exibi•‹o de situa•›es do mundo da vida

integradas ˆs suas possibilidades e alternativas. Assim como a representa•‹o n‹o Ž a

c—pia de uma realidade imposta e comunicada, da mesma forma o mundorepresentado n‹o se reduz a fatos imut‡veis. A inteligibilidade da representa•‹o,

adquirida atravŽs de marca•›es propositadamente vis’veis, conecta acontecimentos e

transforma•›es. A descontinuidade do que se encena promove a continuidade de se

 pensar a respeito do que se v. O mundo representado aproxima-se das formas de

compreens‹o cotidianas, corrigindo estratŽgias ilusionistas que apelam diretamente ˆ

emocionalidade do espectador. O que aproxima palco e platŽia n‹o Ž a intensidade de

uma experincia afetiva isolada pontual, mas a constru•‹o de uma postura frente aoque se defronta.

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 No fundo vemos que, por detr‡s das proposi•›es do teatro Žpico de Brecht,

est‡ uma desconfian•a do car‡ter gratuito e isolado da intensifica•‹o emocional.

Brecht bem demonstra que esta afetividade absoluta tem sua racionalidade espec’fica,

Ž tambŽm constitu’da. Ao contr‡rio de uma oposi•‹o entre sentir e pensar, Brecht

revela o alcance cognitivo de um  pathos extremo, como a experincia do fascismo

 bem exemplificou. Toda emocionalidade Ž calcul‡vel.

ƒ, pois, em rela•‹o aos pressupostos e implica•›es da centralidade emocional

do espet‡culo que Brecht se dirige. A forma do espet‡culo, a experincia de recep•‹o

 produzida e o mundo representado interagem e enunciam os pressupostos de

realiza•‹o do espet‡culo. A op•‹o representacional centrada na emocionalidade Ž uma

estratŽgia de arrefecer a compreens‹o de seu alcance cognitivo limitado. Muita

m‡gica, muita emo•‹o n‹o significa sensibilidade mais desenvolvida, como Dideror

mostrara em seu Paradoxo do Comediante..

Por isso a novidade da teoria de Brecht se compreende melhor em rela•‹o ˆ

sua defesa de uma dramaturgia n‹o aristotŽlica. O recurso a Arist—teles, pelo menos o

Arist—teles assimilado pelas estŽticas normativas, sempre se fez para legitimar a

separa•‹o entre os conteœdos emocionais e a sua express‹o. Ora pendendo para um ou

outro lado, a utiliza•‹o mesmo que indireta da PoŽtica de Arist—teles, seja na teoria da

m’mesis, seja na teoria da catarse, privilegiou ou a organiza•‹o estŽtica dos materiais

ou a experincia direta da platŽia. A recusa da heran•a aristotŽlica por parte de Brecht

 procura, a partir da pr—pria experincia teatral global, acompanhar a efetividade

realizacional da fic•‹o dram‡tica.

Ou seja, o ponto de partida n‹o reside pura e simplesmente em um aspecto

isolado da representa•‹o para a cena, mas prolonga-se na investiga•‹o da

heterogeneidade de diferencia•›es que possibilitam a experincia dram‡tica, dentro

da qual uma continuidade de compreens‹o Ž constitu’da atravŽs da descontinuidade darepresenta•‹o. O efeito D Ž a manuten•‹o de um espa•o de inteligibilidade das formas

dentro das formas mesmas.

 N‹o Ž tanto uma revolu•‹o formal que Brecht preconiza. Contra um

formalismo autocontido da express‹o, no qual o mundo Ž orientado a quase coincidir

com a materialidade da linguagem, com os meios de express‹o, temos uma pr‡tica

representacional, que, ao exigir um alcance cognitivo mais desenvolvido, retira a

EstŽtica de sua perifŽrica discuss‹o genŽrica sem referncia a obras concretas em sua

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especificidade construtiva. Ora o fazer teatro, provocativamente, se converte no

fornecimento de mais um objeto entre os objetos que o mundo possui.

Mas entre os grandes resultados da estŽtica de Brecht est‡ a Òreabilita•‹oÓ do

texto. A textualidade para o espet‡culo renova-se ao transformar-se n‹o mais em um

recurso discursivo, mas em roteiro de representa•‹o. Sem o texto, a teoria e pr‡tica de

Brecht n‹o poderiam ser completadas.

Esta Ž uma quest‹o sempre mal compreendida, fruto da heran•a e rea•‹o

descontextualizada ao legado aristotŽlico. A separa•‹o entre texto e espet‡culo, que

 pode ser depreendida da  PoŽtica  de Arist—teles, vai no fluxo das oposi•›es entre

sentir e pensar j‡ comentadas acima. Foi um tipo de concep•‹o de texto ( a do teatro

liter‡rio) e n‹o o texto em si que desencadeou a recusa moderna do texto125. Mas

sempre Ž poss’vel um texto. Mesmo n‹o sendo escrita, a representa•‹o tem uma

virtualidade textual, que n‹o se confunde com simples coment‡rio. Um espet‡culo de

m’mica Ž atualizado em sua textualidade. Texto e espet‡culo n‹o s‹o opostos e

excludentes. O que o ator faz em cena sempre Ž textualiz‡vel, Ž pass’vel de referncia,

mesmo que ele n‹o diga nada.

ƒ que se confunde texto com verbaliza•‹o. Muito pode ser escrito sem ser

dito. A escritura n‹o Ž a inteira performance, nem Ž o registro fechado do que deve ser

 proferido. Quando mais aprimorada uma escritura para a cena isso n‹o significa maior

tagarelice do ator. Mas escritura para cena Ž uma performance de performances, Ž

uma composi•‹o de performances, Ž j‡ uma performance e uma metaperformance,

 pois roteiriza a representa•‹o, dando-lhe uma finita existncia como material a ser

trabalhado e retrabalhado. Trata-se da interpreta•‹o de um espec’fico processo de

representa•‹o: n‹o Ž um modelo para ser reproduzido, mas a individua•‹o de

orienta•›es e referncias para atos interpretativos. A presen•a do texto Ž a premncia

de um acontecimento intelig’vel afetivamente situado. O texto vai tornar vis’vel umaracionalidade encontrada a partir de uma pr‡tica representacional determinada. Afinal

de contas, a cena Ž por acaso a ant’tese da raz‹o?

ƒ ineg‡vel que h‡ uma distin•‹o entre o efeito D e sua execu•‹o. Muito se

criticou o car‡ter frio, cerebral e impessoal das realiza•›es de Brecht (ou de seus

ep’gonos...). A artificialidade obrigat—ria da manuten•‹o das diferen•as entre fic•‹o e

125 MOTA 1998.

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realidade, atravŽs da exposi•‹o constante e repetitiva dos suportes ficcionais da

representa•‹o, adquiriu solu•›es insatisfat—rias126.

Contudo, os pressupostos do efeito D, os quais n‹o preconizam a

descontinuidade absoluta entre fic•‹o e realidade, mesmo n‹o tendo uma solu•‹o

visual eficiente n‹o se anulam. A teoriza•‹o da representa•‹o Ž um work in progress.

A ado•‹o de uma forma de exibi•‹o Ž a interpreta•‹o e n‹o a totalidade dessa

teoriza•‹o. Quando se refuta uma performance n‹o necessariamente se julga a

totalidade da sua composi•‹o. Uma proposta em um processo criativo pode ser

aproveitada ou refutada em outros processos criativos. ƒ preciso uma cr’tica

integrativa que d conta do projeto de realiza•‹o que Ž esbo•ado ou desenvolvido em

 performances.

Ultrapassando o contexto reativo que o motivava, ap—s a maturidade art’stica

em obras como M‹e coragem e Vida de Galileu, temos a segundo momento te—rico de

Brecht, no texto ÒO pequeno organon de teatro Ò(1948).

A ÒreviravoltaÓ conceptual de Brecht aqui delineada se d‡ no abrandamento de

uma ret—rica belicosa contra o teatro culin‡rio. Trata-se de entender este tipo de

teatro, ver suas limita•›es para, a seguir, proporcionar solu•›es para o encanto da

emocionalidade. Ao invŽs de opor divers‹o e espet‡culo, Brecht defende que a fun•‹o

mais nobre do teatro Ž a divers‹o.

Como toda afetividade tem seu horizonte cognitivo, o que est‡ em jogo n‹o Ž a

divers‹o, mas o predom’nio de um modo de produ•‹o representacional. H‡ uma

diversidade de prazeres, e engana-se quem se acomoda pensando que o prazer dado

 pela representa•‹o dependa quase que exclusivamente do grau de semelhan•a entre a

imagem e seu objeto, a chamada identifica•‹o. O que diverte e mantŽm um prazer

 poss’vel de ser representado e tornar-se espet‡culo Ž um processo marcado de

diferencia•‹o por meio do qual a referncia Ž cada vez mais situada e individualizada para enfim ser relacionada aos diversos momentos da representa•‹o. O audit—rio

 participa vivamente distinguindo a inser•‹o das referncias nos momentos

126 Tal frieza vinha principalmente de recursos de interpreta•‹o do ator taiscomo recorrer ˆ terceira pessoa para refor•ar o ato que ele Ž um mostrador derealidades no palco, fazer uso de express›es no passado, para marcar a diferen•a entrea fic•‹o como relato e seu acabamento e a situa•‹o atual de audincia, e o coment‡riodas indica•›es de encena•‹o e sobre os acontecimentos visualizados, para registrar afun•‹o do ator como observador.

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construtivos do espet‡culo. O que v e sente e ouve Ž seu, lhe pertence como algo que

tomou para si como co-intŽrprete, co-realizador da cena.

Transformando referncias sucessivas em paradigmas de orienta•‹o, em

virtude de seu diferencial de realiza•‹o, o audit—rio ganha ao compreender situa•›es

d’spares que proporcionam uma convergncia significativa. Pelo mundo representado,

mundo intenso e sujeito ao tempo de sua possibilidade, a audincia apodera-se da

compreens‹o do espet‡culo e n‹o das figuras sem contexto da realiza•‹o.

Da’ Ž gerado um prazer outro, uma divers‹o mais complexa e integral,

 presente na frui•‹o da Žtica particular de sua Žpoca. Vamos pensando com Brecht: se

Ž preciso divertir, que se divirta tambŽm pelo saber, um saber que pertence a quem

compreende o espet‡culo como fic•‹o, fic•‹o t‹o singular como o mundo

representado em cena. A particularidade hist—rica representada, ao tornar singulares

as circunst‰ncias em que agem atores com seus personagens, n‹o s— d‡ a perspectiva

hist—rica dos acontecimentos representados como determina a aplicabilidade da

representa•‹o. A historicidade n‹o Ž tema nem cen‡rio mas a exigncia de uma

refinamento dos procedimentos estŽticos frente a exigncias de conhecimento que

impedem qualquer v™o m‡gico f‡cil. O diferencial cognitivo que desenvolve uma

 platŽia mais livre das representa•›es, posto que as compreende como objetos feitos e

finitos, ratifica que  sem conhecimento nada se pode representar . O prazer n‹o Ž uma

catarse, mas ato de uma compreens‹o. Voc s— chora ou clama porque entendeu. A

singularidade compreendida Ž prazeirosa como um jogo que se entende para ser

 jogado melhor.

 Note-se como os antigos temas de Brecht s‹o revisados. O que Brecht

entendeu Ž que Ž preciso um tratamento mais te—rico de seus problemas de

conjuntura. Continuando, a uma teoria do espet‡culo que ultrapassa oposi•‹o entre

fic•‹o e realidade, corresponde uma poŽtica do espectador. Sendo a pe•a umacontecimento restrito, do qual resulta um sentido espec’fico, o audit—rio ser‡

defrontado com a natureza dos nexos que permite tal especifica•‹o. A pe•a

apresentada com lucidez ser‡ recebida com igual lucidez. H‡ uma correla•‹o entre a

 produtividade de sentido da representa•‹o e a constru•‹o da platŽia. O mundo

representado figura a poŽtica do espectador, sendo a interface entre a representa•‹o e

a audincia. O conv’vio humano e a objetividade reinterpretada esteticamente em

cena dramatizam a compreens‹o dos acontecimentos dramatizados. A singularidadedos eventos encenados possibilita a fic•‹o e sua construtividade. O dramaturgo, ao

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invŽs de substituir Òum mundo contradit—rio, imperfeito e mortal por um mundo

harmonioso- um mundo que o espectador mal conhece por outro qual se pode sonhar

somenteÓ Ð utiliza-se do mundo plaus’vel representado para fazer a poŽtica do

espectador.

ƒ o que o conceito de Gestus  procura evidenciar. Para Brecht Ž preciso

atualizar em palco comportamentos significativos e relevantes que os homens adotam

diante uns dos outros. Cada acontecimento comporta um Gestus b‡sico. A fisicidade

em cena aponta para atos como fatos extramentais que mostram posicionamentos e

conceitos frente ˆ realidade que se representa. A fisicidade do Gestus  (toda a

corporeidade do ator relacionada com a representa•‹o singular dos acontecimentos -

caracter’sticas, atitudes, a•›es, palavras) rompe com a imita•‹o psicol—gica que

sobrecarregou o teatro liter‡rio, motivando-o a postular a unidade de a•‹o e de car‡ter

das personagens. Da’ os tipos e as tramas. Ao invŽs de uma m’mesis psicol—gica, o

 princ’pio do Gestus efetiva n‹o s— a visualiza•‹o do que Ž permitido dentro de um

contexto hist—rico como possibilita a a•‹o que transforma esses contextos. A a•‹o Ž

uma concep•‹o e n‹o um impulso frente ao senso de cat‡strofe. Homens de carne e

ossos investem seu agir nos processos pelos quais se vive. A marca•‹o do Gestus s—

distingue e espec’fica a fic•‹o encenada.

Dessa forma o que Brecht objetiva em sua teoria hist—rica da dramaturgia Ž

revelar o horizonte compreensivo dos atos humanos na representa•‹o. Sendo a pr—pria

representa•‹o n‹o uma m’stica transcendental, nem um aparato meramente tŽcnico,

ela mesma Ž um desses atos finitos e mundanos impregnados de referncias. A cena

n‹o Ž um n‹o lugar . A extrema referencialidade dos atos humanos Ž interpretada pela

composi•‹o e performance cnicas. N‹o Ž o mundo que se reduz para ser contido em

uma figura, mas Ž a figura que se individualiza ao integrar uma estrutura

interpretativa desse mundo. Ao se valer das capacidades cotidianas de compreens‹o(observa•‹o, fisicidade, mem—ria, debate) a cena faculta ao espectador uma

experincia que torna mais inserida a representa•‹o e o contexto de sua realiza•‹o. O

espet‡culo Ž um acontecimento interpretativo que se revigora na referencialidade dos

atos que o especificam.

A provocativa afirma•‹o de Brecht que nossas representa•›es s‹o secund‡rias

em rela•‹o ao que est‡ sendo representado cifra as implica•›es de sua reorienta•‹o

em dire•‹o ˆ experincia da audincia e a referencialidade. A escritura para a cenadefronta-se com as exigncias da inteligibilidade do espet‡culo como ato fact’vel.

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TERCEIRA PARTE

1-Arte e Subjetiva•‹o

Quem procura ensinar, precisa conhecer os pressupostos de quem aprende.

Ap—s anos participando de bancas entrevistadoras que avaliavam candidatos ao curso

de Artes Cnicas, entrevi-me com as respostas variadas, muitas vezes confusas e

extravagantes, mas que guardavam, apesar de tudo, uma incr’vel coerncia. As

respostas denunciavam o modo contempor‰neo de se conceber o que Ž fic•‹o,

 partindo que estamos de que a atividade dram‡tica Ž um processo imaginativo. E este

modo atual de trabalhar com a fic•‹o constitui-se em torno do estatuto

representacional da arte ou dos procedimentos de como legitimar o discurso se faz

sobre ela, retomando uma longa tradi•‹o que, pelo menos, na GrŽcia encontrou um

momento de sua problematiza•‹o.

Colocada a quest‹o desta maneira, parece insano ou fantasioso que se

relacione uma resposta de um candidato a uma vaga no curso de Arte Cnicas da

Universidade de Bras’lia com a codifica•‹o filos—fica do fato art’stico. O que

ganhar’amos com a exposi•‹o e visualiza•‹o desta longa hist—ria?

Mas a’ onde a interroga•‹o e o espanto se erguem, nota-se o diferencial

contempor‰neo desta Hist—ria de longa dura•‹o. A recusa de vincula•‹o, a nega•‹o de

todo tra•o vinculante com uma mem—ria de si mesma j‡ nos diz um pouco dos modosde receber a arte dram‡tica na atualidade. Esta ruptura com a tradi•‹o, veremos, toma

da mesma tradi•‹o renegada os horizontes para sua justificativa. Dialogam os tempos

na unidade de sua proposi•‹o.

Ent‹o, o que unifica a recep•‹o do fato estŽtico hoje? Qual pressuposto torna

homogneo o contato com as fic•›es? Qual Ž a idŽia de arte de nossa Žpoca? Ali

mesmo onde se nega a Hist—ria, se reafirma o sujeito. Eis a resposta. Contra o peso da

tradi•‹o, temos a egolatria autoreferenciadora. Vivemos os œltimos rescaldos da

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subjetiva•‹o da arte, na qual se n‹o se distinguem as fronteiras entre fic•‹o e a

realidade.

Esta subjetiva•‹o engloba os fen™menos imaginativos que ganham da

 participa•‹o individual o suporte para seu acontecer. Porque a subjetiva•‹o procura

dar uma intimidade com aquilo que se pratica. A fun•‹o da subjetiva•‹o Ž real•ar a

experincia daquilo com o que se trabalha. A evidncia subjetiva Ž a confiss‹o de uma

eficincia, de uma realiza•‹o, de um conseguir se utilizar daquilo que tomou para si.

A dimens‹o minha Ž a ilumina•‹o de um encontro no qual as dificuldades e os limites

foram ultrapassados e superados.

Da’ o elogio desmesurado da arte. Subjetividade evidente e adjetiva•‹o

hiperb—lica s‹o complementares, pois quanto melhor o sujeito, maior a arte. A

eficincia do indiv’duo redobra-se na perfei•‹o do objeto.

AlŽm desde circuito sujeito-objeto, novos contextos s‹o abarcados. A arte

agora n‹o Ž um elogio, e sim um valor para a sociedade. Ela Ž o meio privilegiado de

se comunicar com mais e melhores possibilidades de tudo o que se quer dizer. Como

express‹o das express›es, a arte, finalmente, Ž o pr—prio homem.!!!

Esta cadeia de racioc’nios, que vai do sujeito atŽ nossa ra•a, precisa, contudo,

ser melhor compreendida. A sobrecarga que a arte ganha, seu infinito nœmero de

determina•›es n‹o se constituem como entendimento do que ela Ž em si mesma. A

cadeia de racioc’nios n‹o Ž progressiva - somente fortalece a mesma base. Quando

mais a inclus‹o da arte se exacerba, mais o sucesso da experincia Ž fortalecido.

Contudo, temos um ilusionismo da seqŸncia por meio da qual as maneiras como

legitimamos a arte est‹o diametralmente opostos ao modo como conhecemos a

mesma arte.

Eis o grande paradoxo: o desmesurado apre•o e elogio da arte n‹o nos d‡

nenhuma intimidade com ela. O ponto de partida afluindo do sujeito que n‹o semodifica com o que conhece e mais se torna homogneo enquanto aplica a arte ˆs

maiores esferas da cultura( atŽ que ela tome o lugar da religi‹o) este ponto de partida

elide muito porque ilude o suficiente. Trata-se de uma fic•‹o filos—fica que, tomando

da conceptualiza•‹o do fato art’stico seu procedimento b‡sico, legitima somente o que

 pode ser referenciado imediatamente. Confunde-se o observador com o fen™meno

observado. Exemplo: alguŽm realiza arte, ent‹o o que determina a arte Ž essa

subjetividade. A subjetiva•‹o da arte Ž uma miopia interpretativa.

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Contraditoriamente, a subjetiva•‹o da arte Ž uma intelectualiza•‹o da arte. As

cadeias de racioc’nio, formas de inclus‹o e legitima•‹o da arte, revigoram-se em

generalidade e redu•‹o. Quando mais a arte se justifica em tantos contextos, menos

ela Ž em sua especificidade. Pois, como se pode facilmente depreender, a

intelectualiza•‹o da arte n‹o exige que se tenha uma experincia mais ’ntima com ela.

A abstra•‹o toma o lugar da aprendizagem. O sujeito permanece inc—lume frente ao

que se devota tanto. Ser = pensar.

Tal assepsia do mundo das concep•›es, que substitui uma interatividade mais

forte com o que se defronta pelo refor•o de uma eterna repeti•‹o do sujeito consigo,

faz vigorar a vit—ria da idŽias da arte sobre a pr—pria arte. Entre mim e a arte se

interp›e este intermedium cognoscente transformado em ‡rbrito estŽtico.

Chegamos onde quer’amos chegar. A subjetiva•‹o da arte Ž autof‡gica.

Elimina v’nculos concretos substituindo-os por transparentes v’nculos abstratos. Esta

aura redencionista, sublime, verdadeiro dep—sito de nossas mais belas aspira•›es, na

verdade Ž a entroniza•‹o de uma raz‹o cativa de impor um mesmo modo de

existncia a tudo que Ž ou existe. ƒ hora de desconstruirmos este fundamento sem

fundamento que Ž a subjetividade tornada centro, vetor e matŽria da arte. Est‡ na hora

de denunciarmos que a rela•‹o entre evento art’stico e subjetividade Ž mais complexa

do que se pensa ou se sup›e. Trata-se de concretizar este sujeito ‡vido em se esconder

 por entre as formas e simulacros da realidade. Trata-se de operar um descentramento

 para reorientarmos o sujeito. Neste momento deixo a vez , a hora e o lugar para o

drama, para outro palco que melhor represente o que quero dizer. ƒ preciso, mais do

que nunca, desmistificar esta inst‰ncia subjetiva.

 Nenhuma arte como a dram‡tica sofreu tanto as conseqŸncias da subjetiva•‹o

estŽtica. Historicamente, porŽm, venceu e convenceu a vers‹o bastarda que associa oteatro ao que podemos chamar de dionismo cat‡rtico127. Este mistŽrio gozoso parte do

 pressuposto que o objetivo de toda representa•‹o Ž a irrup•‹o de uma reciprocidade e

identifica•‹o imediata e sem limites entre palco e platŽia. O irracionalismo prazeroso

 justifica todo e qualquer efeito dram‡tico. A representa•‹o tem que se anular,

cancelar-se para fazer notar a ecumnica partilha da paix‹o. O espet‡culo mesmo Ž

uma maquinaria que objetiva atingir este amplexo emocional que, suspendendo toda a

127 V. MOTA 1998.

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cotidianeidade, nos arremessa para alŽm de n—s mesmos. A catarse desse dionismo Ž a

 purga•‹o de nosso mundo ordin‡rio. O melhor n‹o estar aqui. A cena Ž um meio para

algo que ela mesma n‹o Ž e que nem est‡ aqui.

Para melhor funcionar, a maquinaria prorrompe como perform‡tica condi•‹o

humana. O œnico espet‡culo Ž o do sujeito consigo mesmo. Esta Ž œnica maneira

 poss’vel para que o que ele pense do mundo se torne o que o mundo Ž. Se n‹o h‡ mais

ninguŽm, se s— existe uma œnica mente , se todas as mentes s‹o essa verdade, tudo Ž

como eu penso e quero. E, logo, a realidade concorda com que eu pense dela. Pois o

subjetivismo defende a elimina•‹o das diferen•as entre fic•‹o e realidade para

suprimir toda e qualquer diferen•a. O privilŽgio perfom‡tico da representa•‹o, onde

n‹o h‡ mais palco ou platŽia, onde tudo Ž ao mesmo tempo todas as coisas agora,

satisfaz a ilus—ria continuidade do sujeito por cima de todos os contextos.

 Neste sentido, o mistŽrio gozoso impresso na identifica•‹o total da

representa•‹o e da recep•‹o, marca fundamental do dionismo cat‡rtico de nossos dias,

choca-se com a realidade mesma do que se pode denominar de experincia ficcional

dram‡tica ocidental.

Esta experincia empenhou-se em promover uma continuidade espa•o-

temporal por meio de atos personativos e descont’nuos para uma recep•‹o co-presente

e antecipada. Desta maneira, sempre foi antiilusionista, pois necessitando promover a

orienta•‹o da platŽia para o espet‡culo, reivindicava a diferen•a entre pressupostos do

 pœblico e os da obra mesma. A imagina•‹o dram‡tica marca esta operatividade

observacional diferente na qual o porto de partida irrevers’vel reside na assimetria

fatal entre dois horizontes m’nimos que s‹o enfeixados dentro de um acontecimento

maior que Ž o espet‡culo. Adiando os nexos imediatos, problematizando as rela•›es,

recusando a atomiza•‹o do ver por sua coincidncia com o visto, esta dramaticidade

ficcional repercute na proposi•‹o de v‡rios n’veis de realidade da representa•‹o. Oque se representa Ž mais do que se apresenta, mas est‡ intimamente relacionado com

seu contexto de produ•‹o. N‹o Ž um resumo de enredo nem um coment‡rio tem‡tico

que vai dar conta desta tecnologia de representa•‹o. A assimetria entre mundo da

recep•‹o (W.Iser) e mundo da obra se constitui em pressuposto fundamental da arte

dram‡tica e de uma teoria dram‡tica do conhecimento. A m’mesis dram‡tica Ž a

confirma•‹o dos limites da subjetividade que mais se aliena de si por seu

comprometimento com estratŽgias de sentido que n‹o figuram o demonstrar dacompleta e total inser•‹o do sujeito nos acontecimentos.

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Refazendo os nexos. Ao invŽs do consenso intelectual dos espectadores em

torno de um espet‡culo visto como par‡frase de uma idŽia, genericamente

autoevidente a partir da atomiza•‹o e pulveriza•‹o de todos os contextos-cenas,

reivindicamos uma estŽtica concreta que toma da homologia espet‡culo/ espectador

um horizonte de integra•‹o de n’veis que leva em conta essa diferen•a imposs’vel de

ser transposta em semelhan•a e esquema. Desconfiamos do acordo apressado das

subjetividades que, por pensarem as mesma coisas do mesmo modo sempre aqui  ,

difundem a calmaria da prevalncia da esquematiza•‹o intelectual da arte, esta ,

ent‹o, discutida e debatida em proposi•›es meramente discursivas.

Ou seja: sempre h‡ mais que o sujeito, este infelizmente sempre visto como

um pano de fundo constante e un’voco. Pois a poŽtica do espet‡culo Ž uma poŽtica do

espectador. Este a mais, esse excesso n‹o Ž a morte do sujeito, o achatamento da

recep•‹o. Ao contr‡rio, este descentramento proposto, ao passarmos da unidirecional

aplica•‹o de hip—teses generalistas do subjetivismo na arte para o contexto real da

experincia imaginativa, oferece-nos a percep•‹o dos processos especificadores

atravŽs dos quais um imagin‡rio se efetiva.

Isto sempre Ž o mais dif’cil. Faz parte de nossa cultura a normaliza•‹o dos

 processos representacionais, o controle da m’mesis por sua referncia seja a um

sistema de idŽias, seja a um referente naturalista pura e simplesmente. Nunca

esquecer: referncia Ž referendo, Ž legitima•‹o. A intelectualiza•‹o, lembrando, quer

conservar a homogeneidade do sujeito.

Em raz‹o disso, deslocamos nossas considera•›es para a obra como

espet‡culo, como compreens‹o da construtividade da recep•‹o. H‡ uma

complementaridade sempre agente e subagente entre os procedimentos de composi•‹o

e orienta•‹o da recep•‹o. Chegamos no que chamamos de Ômatrizes dram‡ticasÕ.

O fato teatral como caso-limite da arte vem ser fundamental para nos guiarrumo a este contato mais ’ntimo com a representa•‹o. Matrizes dram‡ticas s‹o

 procedimentos de orienta•‹o que determinam a inteligibilidade dos eventos em sua

express‹o. Estamos situados na raz‹o construtiva , no fazer da obra, e n‹o em um

elenco isolado de formas e expedientes. A constru•‹o de um conjunto de referncias

ultrapassa aqui o mero ato de denomina•‹o. ƒ para o suporte imaginativo do evento

que dirigimos nossa aten•‹o. O elenco das matrizes n‹o oferece o dom’nio do que se

figura diante de n—s. A compreens‹o da obra como um conjunto de processosespec’ficos que colocam em quest‹o sua recep•‹o n‹o nos Ž um manual de auto-ajuda

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 para executores de imagens. Em todo caso, o caminho est‡ aberto. Uma via de acesso

se delineia. A suspens‹o aqui Ž confiss‹o de um adiamento.

 Antes de um olhar cr’tico, um olhar hist—rico n‹o seria preciso um olhar

estŽtico? N‹o Ž uma denœncia categorial (psicanalista, materialista, etc.) que vai nos

livrar do sempre presente obst‡culo da ilus‹o referencial do sujeito. Pois Ž preciso

 pensar a obra, pensar o que Ž este modo de ser em obra. Sempre h‡ o espet‡culo,

mas h‡ a obra?

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2- AS RAZÍES DO JOGO SEGUNDO H.G. GADAMER

Mas, ironicamente, Ž para o logos, para o mesmo e outro logos  que a

modernidade remete seu modo de ser. A hipercr’tica moderna, refutando a experincia

racional, ao igualar/reduzir a tradi•‹o metaf’sica Ocidental aos pressupostos

iluministas, converte este debate sobre o logos  num tribunal da Hist—ria. Esta

convoca•‹o planet‡ria toma como tema de seu pensamento os limites das estratŽgias

de inteligibilidade que motivaram o projeto Iluminista. A hipercr’tica, porŽm, ainda

toma do logos sua referncia e referendo. A denœncia do logofonocentrismo quer ser a

catarse do mito da Raz‹o mas converte-se na autofagia do pensar que desdenha o

 pensamento.

A refuta•‹o da raz‹o, comum aos movimentos vanguardistas da arte e aos

niilismos e descontrucionismos crepusculares da filosofia ou antifilosofia, entretanto

nada ter a ver com o logos. Ou parece ter. O tribunal da Hist—ria transforma a

acusa•‹o em veredicto sem interrogar sobre o que condena. A hipercr’tica generaliza

a experincia racional Iluminista como experincia de todo o logos. Paralelamente ao

irracionalismo vanguardista e ˆ subjetiva•‹o do pensamento na hipercr’tica

contempor‰neo, a hermenutica procurou melhor esclarecer esta economia racional na

arquitetura do logos, ao demonstrar a estrutura pressupositiva como fundamento da

racionalidade. Mais que uma negatividade, temos aqui o suporte finito do pensar, as

condi•›es antecipat—rias de um projeto racional. O hipercriticismo procura por seu

veto, eliminar o que h‡, o que existe.

Estrategicamente conjugam-se o antiintelectualismo na arte com a

subjetiva•‹o do pensar no niilismo filosofante. O niilismo filosofante converte-se em

filosofia dessa estŽtica irracional e esta estŽtica Ž a matŽria para subjetiva•‹o do pensamento. A filosofia Ž uma estŽtica e a arte uma contrafilosofia onde o programa

 predomina sobre a produ•‹o. O fortalecimento da negatividade Ž que torna essa

aproxima•‹o entre estŽtica e pensamento desej‡vel e realiz‡vel. O sucesso da

estetiza•‹o da filosofia Ž a prerrogativa da subjetiva•‹o da realidade, da autonomia da

representa•‹o vista agora como simulacro. A redu•‹o de tudo que Ž ou existe ao

simulacro Ž uma opera•‹o interpretativa fundamental para a coerncia da hipercr’tica.

Tudo passa a n‹o ser. O simulacro Ž a maximiza•‹o da negatividade que h‡ muitodeixou j‡ de exercer sua atividade contra a refuta•‹o de algo. A negatividade Ž o

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 pr—prio movimento formador e constituir do que se quer erigir. O contramodelo Ž

vit—ria sobre o ant’poda. As ra’zes do simulacro se fundam no exerc’cio da

negatividade. Contra a raz‹o, pensa-se. Mas n‹o mais contra ou sobre o  Logos. A

continuidade do contra  doa a contigŸidade do negador com a coisa negada.

Antifilosofia.

O ensa’smo contempor‰neo n‹o s— assume o simulacro como se assume como

simulacro. Esta reflexibilidade Ž importante. N‹o se trata apenas de inscri•‹o do

sujeito no pensar, mas de apagamento de diferen•as. Pensar hoje Ž coordenar a pr‡tica

do simulacro com sua exposi•‹o. Pensar Ž pensar o movimento do pensamento em

sua valida•‹o redutora e niilista, pois o œnico tema a ser pensado Ž esta uniformiza•‹o

que dissolve os contornos e os limites. O simulacro Ž isso: simula a indistin•‹o entre

representa•‹o e realidade.

Desta maneira n‹o Ž logos. A pergunta pelo logos  passa pelo interrogar-se

sobre a fic•‹o. O pensar o logos  explicita o princ’pio de realidade impresso nos

fen™menos de sentido no mundo.

As inquietantes investiga•›es de H.G.Gadamer tomam desta pergunta sobre o

logos  seu horizonte de realiza•‹o. Ao refletir sobre a concretude da experincia

ficcional a partir de sua homologia com a estrutura do jogo, Gadamer nos faz ver os

limites da abstra•‹o da conscincia estŽtica quando confrontada com fen™menos de

sentido n‹o reduzidos ˆ inst‰ncia subjetiva em seu aporte ideativo. Raz‹o Ž sempre

raz‹o de algo. A conscincia estŽtica, prescrevendo a autarquia da obra de arte por sua

conforma•‹o ˆ conceptualiza•‹o, quer correlacionar o incremento de sua

intelectualiza•‹o ao preconizar a subjetividade.

A subjetiva•‹o da estŽtica desenha um modus operandi  que revela

determinados pressupostos em rela•‹o ˆ processos de referencia•‹o. O que chamamos

de subjetiva•‹o da arte n‹o Ž nem pode ser resumido ˆ egolatria. N‹o estamos falandode postura. A postura Ž a imposi•‹o de um pressuposto. O que est‡ em jogo Ž a

singularidade de um modo de apreender que n‹o se resume a um centro de orienta•‹o

œnico. ƒ a capacidade de dinamizar a raz‹o para algo que n‹o se resuma a

representa•‹o como redu•‹o ideativa. A subjetiva•‹o da arte n‹o quer conhecer o

sujeito envolvido com o que se representa. A excedncia do sujeito n‹o Ž condi•‹o de

entendimento de uma obra. Se conseguirmos fundamentar a realidade de um

fen™meno de sentido que n‹o se resume ˆ proje•‹o ideativa de uma subjetividade,abriremos acesso a uma inteligibilidade poss’vel e palp‡vel que n‹o a do simulcaro -

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um tipo de pensar que pensa mais que o pr—prio pensamento, ao acompanhar o

contexto produtivo de um fazer e as modifica•›es deste mesmo pensar durante este

acompanhamento. Abre-se o acesso a esta dimens‹o do logos  que a GrŽcia nos

facultou. Uma Hist—ria da Raz‹o passa pela historicidade mesma da inteligibilidade,

vendo os problemas aos quais se v submetida, o enfrentamento com suas limita•›es

e dificuldades que a possibilitaram. A sofism‡tica conjun•‹o carnal entre vanguarda

art’stica e antifilosofia transforma a vit—ria do simulacro em uma nova ortodoxia.

Mas, em nosso caso, pois, a cr’tica da conscincia estŽtica Ž reafirma•‹o da natureza

heter™noma do logos.

O pensamento de H. G. Gadamer vai encontrar na reflex‹o filos—fica sobre a

obra de arte os limites mesmos da aplica•‹o dos pressupostos que preconizam a

subjetiva•‹o estŽtica. A apreens‹o intelectualista que parte da subjetividade como prŽ-

condi•‹o e horizonte para a efetividade do fato art’stico ganha aqui sua cr’tica.

Gadamer procede a uma cr’tica desta conscincia estŽtica, conscincia esta envolvida

em descrever a unidade da obra de arte a partir da proje•‹o das idŽias da unidade de

um sujeito ideal. A recusa da proje•‹o ideativa estabelece um cap’tulo da Hist—ria da

racionalidade Ocidental. Na experincia da arte encontramos essa impossibilidade da

redu•‹o da realidade da obra a conceitos. A reflex‹o sobre a estŽtica n‹o pode

 permanecer aut™noma, desconectada da experincia com o que procura pensar. A

abordagem teorŽtica preconiza a inst‰ncia ideal e abstrata de um sujeito universal que

 permanece inc—lume na idŽia que motivaria a representa•‹o. O sucesso e a recusa

dessa conscincia estŽtica podem ser pensados a partir mesmo do modo como se

organiza sua redu•‹o.

Seu ponto de partida resulta nesta afirma•‹o: a representa•‹o Ž igual ˆ idŽiaque eu tenha dela. A representa•‹o se confina a um intermedium  que confirma a

motiva•‹o conceptual prec’pua. A representa•‹o n‹o fala de si. Seu suporte

expressivo, sua din‰mica referencial se v dependente de um discurso-base. A

eficincia da representa•‹o Ž o cumprimento de um programa de autosupress‹o de

todo e qualquer obst‡culo figurativo que bloqueia a comunica•‹o e a atualiza•‹o da

motiva•‹o conceptual. A representa•‹o Ž o pr—prio movimento de unifica•‹o.

Entre tantos efeitos desta organicidade do processo representacionaldestacamos a prevalncia da superordena•‹o do movimento de unifica•‹o sobre os

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suportes expressivos. A materialidade da express‹o se constitui como resistncia ˆ

raz‹o cativa de sua eficincia ideacional. A obra, sendo um saber que se imp›e a

 partir deste fazer, n‹o pode ignorar as condi•›es de sua realiza•‹o. ƒ preciso buscar a

unidade da obra de arte a partir de sua experincia de efetiva•‹o. A obra permanece

como algo finito, que toma de suas condi•›es de realiza•‹o a matŽria e conteœdo de

sua representa•‹o. Procede a uma atividade sempre vinculante que configura seu

modo de ser integrando suas possibilidades de efetiva•‹o.

A prerrogativa abstratizante, generalista, ao n‹o levar em conta a configura•‹o

da obra em prol da unidade prŽvia idealizada, insere um referendo valorizante na

representa•‹o, de modo a ser justific‡vel somente o conjunto das apercep•›es que

toma deste referendo sua norma e guia. Pois o tornar preponderante este movimento

de unifica•‹o acarreta a hierarquiza•‹o da recep•‹o a esta referncia das referncias.

Desde si a realidade da representa•‹o come•a a ser vista a partir do que a

representa•‹o n‹o seja. De si mesma a representa•‹o s— existe, Ž como reflexo da

idŽia que lhe concede existncia. O interrogar-se da realidade da representa•‹o Ž o

interrogar-se acerca do princ’pio de suficincia que possibilite a obra. Pensar a obra Ž

 pensar a unidade de sua representa•‹o a partir do que lhe d‡ coerncia como unidade.

Esse modo de pensar faz com que a obra s— exista como proje•‹o-confirma•‹o de seu

 princ’pio intelectual fundamental. A representa•‹o n‹o Ž: ela se fundamenta em algo

diverso dela mesma. O esvaziamento da representa•‹o Ž proporcional ao seu

 preenchimento ideativo. A representa•‹o Ž (torna-se) a representa•‹o da unidade de

sua coerncia intelectual.

Gadamer denomina este sistema de pensamento de subjetivismo da estŽtica

(GADAMER 1998:33). A postura intelectual que reduz a existncia da obra a um fato

mental de alguŽm Ž o que aqui est‡ visado. Subjetivismo, como vemos, n‹o Ž a

emocionalidade derramada. Mais do que isso, temos a preponder‰ncia da inst‰nciareflexiva, reflexa como acordo sobre a estrutura•‹o de uma representa•‹o. A

subjetiva•‹o da estŽtica s— pode ser entendida em toda a intensidade de sua influncia

e campo de aplica•‹o se compreendermos a pr‡tica racional que a instaura.

Subjetivismo e racionalidade n‹o s‹o ant’podas,e sim interfaces da mesma atividade

de abstra•‹o.

Gadamer, ao fazer uma cr’tica da conscincia estŽtica, bem caracteriza a

abstra•‹o ideativa que determina tal conscincia. O descentramento operado pelaexperincia da arte faz com que sejam revistas nossas concep•›es de sujeito e de

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racionalidade. Este descentramento, contempor‰neo de uma concreta operatividade

hist—rica, orienta-se contrariamente ˆ generalidade abstrata do organicismo. A

 proposi•‹o do questionamento sobre a arte alinha sobre si diversas quest›es outras. A

experincia estŽtica continua como lugar-tenente de uma experincia com o logos,

desenvolvida entre os gregos e que hoje possui a favor de si tanto as artes-cincias-

filosofias em seu paradigma de ruptura e descontinuidade como a banalidade eg—ico-

virtual dos produtos da indœstria cultural, erigidos a modelos niilistas-antropol—gicos.

A cr’tica da subjetiva•‹o estŽtica abre o espa•o para di‡logo com a tradi•‹o frente ˆ

falncia das estratŽgias intelectualistas pautadas em seu reducionismo e generalidade,

 promovendo a reorienta•‹o do logos  como atividade urgente e necess‡ria.

AntigŸidade e contemporaneidade se aproximam deste urgente compromisso: pensar

o evento que Ž a compreens‹o.

Contrariamente a isto, a conscincia estŽtica alicer•ada no simulacro de um

sujeito abstrato, partilhada na uniformiza•‹o da representa•‹o pela coerncia de uma

inst‰ncia ideativa, desdenha dos contextos de express‹o e da historicidade. A

conscincia estŽtica infletida e refletida na subjetividade da arte defende o que

Gadamer denomina de diferencia•‹o estŽtica. Sendo apenas uma idŽia, Òa obra perde

seu lugar e o mundo a que pertence por se tornar parte integrante da conscincia

estŽtica. Por outro lado, a isso corresponde o fato de que tambŽm o artista perde seu

lugar no mundo.Ó(GADAMER 1998: 155).

Vejamos mais de perto. ƒ preciso entender que a especula•‹o em torno da

obra, tomando-a previamente como reflexo de uma idŽia, difunde a idŽia que se tem

da obra. Substituiu-se o pensar a partir da experincia da obra por representar o que

seja a pr—pria representa•‹o. Esta duplicidade Ž valorativa posto que aponta para a

representa•‹o da representa•‹o o grau de valida•‹o da segunda representa•‹o. O que

se intenta Ž a corre•‹o da representa•‹o por meio de uma representa•‹o depurada.Esta diferencia•‹o que encaminha referendar o que Ž a obra por aquilo que eu penso

que ela seja acarreta eliminar o que a representa•‹o possa ser independentemente de

minha vontade de representa•‹o. A diferencia•‹o estŽtica, ao presumir ser o mundo

 pararepresentacional  o alvo para o qual se dirigem a representa•‹o e nossa pr—pria

rela•‹o compreensiva do que seja a representa•‹o, determina-se como fundamento

causal do que se representa nesta pararepresenta•‹o.

Aqui se encontra o primordial. A defesa da  pararepresenta•‹o Ž a defesa dedeterminadas estratŽgias de inteligibilidade que se consumariam na imagem que se

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tem do que quer que seja o pensamento. O modo como concebemos a representa•‹o, a

idŽia que temos dela e o sucesso desta especula•‹o, colaboram para que a

conceptualiza•‹o do fato mimŽtico-art’stico se torne a tarefa do pr—prio pensamento.

O logos  aqui se v investido de uma atribui•‹o que associa a dificuldade de sua

execu•‹o ao poder de sua atua•‹o. O hercœleo esfor•o de substituir o que Ž e existe

 por uma  pararepresenta•‹o  redutora e abstratizante dignifica o poder discricion‡rio

do logos. AtŽ isso e mais ele realiza, o logos.

PorŽm, contra este logro do logos, Gadamer vai demonstrar que h‡ uma

defasagem essencial entre as apercep•›es desvinculantes - e por isso abstratas - dessas

estratŽgias de inteligibilidade e as obras. A partir dessa defasagem, pode-se

demonstrar que pensar Ž tambŽm outra coisa, outro modo de se relacionar com os

eventos. O evento-logos que se abre ap—s a cr’tica da conscincia estŽtica presente na

subjetiva•‹o na arte preconiza a experincia da arte como meio de acesso privilegiado

ˆ diversa prerrogativa de nossas capacidades racionais. O que est‡ em jogo n‹o Ž um

niilismo tido como irracional. O homem sempre tem raz‹o, como dizia Eudoro de

Sousa. O que est‡ em jogo Ž est‡ auto-imagem do sujeito no sucesso da redu•‹o

generalista. O que estamos jogando Ž a ca•a ao logos, seguindo, por que n‹o, o olhar

te—rico de Her‡clito.

Como uma provoca•‹o que de si mesma ganha seu nexo e verdade, Gadamer

 procura pensar a arte, a m’mesis, por uma homologia com o Jogo. Ironicamente fala

 por outra coisa a coisa mesma que quer falar. O recurso ˆ homologia nos fazer

notabilizar a met‡fora como forma de conhecimento. Mas que uma conota•‹o, a

met‡fora traz em seu ato transpositivo a descontinuidade como fundamento de seu

complexo existencialismo. A homologia, transferindo para a met‡fora o modo deapreens‹o do que se quer compreender, consagra que se estabele•a a

complementaridade entre identidade e diferen•a do que se procura estudar. Jogo e arte

 podem ser investigados desde que estejam em rela•‹o de reciprocidade, de mœtua

ilumina•‹o. S— sabemos o que Ž a arte sabendo o que o jogo Ž. ƒ preciso jogar o jogo

da arte e pensar a arte do jogo.

PorŽm, equivoca-se quem queira ver na homologia a apressada analogia. A

convergncia significadora da homologia segue o funcionamento da met‡fora que, aorelevar a co-pertinncia, aponta para a media•‹o, para o nexo que aproxima os

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diferidos. Os diferidos n‹o deixam de existir. Jogo e arte n‹o s— est‹o em compara•‹o

como apontam para o terceiro termo ÒausenteÓ. A homologia entre jogo e o modo de

ser da obra de arte vai nos representar a experincia de ficcionalidade que fundamenta

a ambos.

Sen‹o, vejamos.

Abrupta e estranhamente Gadamer afirma que "o sujeito genu’no do jogo n‹o

Ž a subjetividade daquilo que joga, mas o pr—prio jogoÓ(GADAMER 1998:178). Ou

seja, Ž preciso reconhecer "o primado do jogo em face da conscincia do

 jogadorÓ(GADAMER idem). Refutando o ilusionismo referencial do sujeito como

totalidade do ato de jogar, Gadamer opera um rico descentramento que questiona o

estatuto observacional desse fen™meno de sentido t‹o corriqueiro que Ž o jogo.

Imediatamente, quem joga, por jogar, determina o sentido do jogo. Mas se o jogo

fosse igual ao jogador, n‹o existiriam nem jogo nem jogador, pois n‹o havendo

diferen•a entre um e outro, nem um nem outro poderiam existir. A subjetividade n‹o

 permanece inc—lume frente ao que participa. O sujeito agora Ž um jogador, adquire

um contexto e n‹o mais prolonga-se em uma abstra•‹o coincidindo consigo mesmo

sempre em qualquer lugar. A participa•‹o do sujeito no jogo produz uma mudan•a em

seu  status. O sujeito jogador co-pertence e se vincula com o que ativamente joga.

Jogar Ž vincular, Ž fazer com que a anterioridade do que previamente existia passe a

existir na simultaneidade da co-pertinncia. Se o jogo s— existe sendo jogado e o

 jogador s— existe jogando ent‹o o jogo Ž mais que o sujeito que joga o jogo. O jogo

n‹o prescinde do jogador, mas sim do sujeito. O alvo agora se detŽm no que faz o

 jogo um jogo, tautologia contempor‰nea do ato de jogar. Se ao jogador compete jogar

o jogo, o jogo ser‡ o movimento de se representar como jogo, de ser um jogo que se

 joga. Nenhuma outra justificativa vem em nosso socorro sen‹o a dessa realidade de

 jogar o jogo como fundamento da realidade do jogo. Pode estar chovendo, pode osujeito estar gripado ou em crise, pode estourar uma guerra, mas o jogo s— existe em

sua ativa•‹o.

O descentramento exige a tautologia. O jogador adensa sua participa•‹o no

 jogo ao jogar. A orienta•‹o passa do jogador para as cont’nuas dificuldades do jogar

que s‹o o saber do jogo. A familiaridade com o jogo torna-se a meta do jogo. O jogo

se representa como jogo. Ele almeja ser jogado. O sujeito n‹o visa a idŽia do jogo. O

 jogo precisa ser efetivado como ato, como fazer.

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Prosseguindo, temos um desdobramento util’ssimo de ser verificado. O

descentramento da atividade do jogador para o jogo faz com que colaborem

intimamente a constitui•‹o do jogo como jogo e o saber do jogador como jogador ao

 participar desta constitui•‹o. H‡ um claro v’nculo entre a intensifica•‹o do jogo ao se

representar como jogo e a inser•‹o do jogador nesse jogar. O descentramento n‹o Ž

elimina•‹o da subjetividade, e sim inser•‹o dele nesta diferen•a que o jogo Ž. O

 jogador s— conhece o jogo quando se torna jogador, quando n‹o Ž uma subjetividade

abstrata. A idŽia que ele tem do jogo e o que o jogo Ž s— existir‹o no ato mesmo de

 jogar.

Com isso, entendemos o sentido da ir™nica reflex‹o gadameriana, familiar ˆ

vis‹o te—rica heracl’tica. Se o sujeito do jogo Ž o pr—prio jogo, o jogador n‹o Ž o

sujeito do jogar. Ele n‹o detŽm a completude do que acontece ao representar o jogo

 pela idŽia que ele tenha do que o jogo seja. Ele n‹o pode representar o jogo por aquilo

que ele pensa que o jogo Ž. H‡ uma dist‰ncia imposs’vel de ser ultrapassada. A

totalidade do jogo n‹o pode ser encontrada naquilo que dele EU pense. Este Ž o EU

que Gadamer critica e refuta pela exemplaridade do jogo. Frente a fen™menos que

necessitam a modifica•‹o de pressupostos, de colabora•‹o na representa•‹o, uma

inteligibilidade que se abstrai do contexto do ato realizacional n‹o ser‡ competente

 para compreender o que ali se efetiva. O jogo como sujeito n‹o Ž um animismo

extempor‰neo. Frente ao que n‹o se tem acesso sen‹o por modifica•‹o, experimenta-

se uma alteridade concreta, n‹o circunscrita ˆ verborragia niilista, redundante e

ensimesmada.

Dessa maneira, adensando o saber do que o jogo Ž, o jogador se adentra em

um saber que n‹o Ž simplesmente um saber sobre si mesmo ao passo que ,

confrontando com o que n‹o Ž ele mesmo, v-se solicitado a compreender o que dele

difere e que depende deste diferir. O sujeito Ž uma posi•‹o de diferen•a e n‹o umaelimina•‹o de distin•›es.

O que o jogador tem acesso ao jogar Ž a n’veis de diferencia•›es

complementares. Com o jogar, o jogador posiciona-se em situa•›es que exigem a

ruptura com a homogeneidade dos fen™menos prescrita pela totalidade de sua

 presun•‹o. Estes n’veis diferenciados v‹o constituindo a orienta•‹o do jogador. O

 jogador se orienta pela heterogeneidade de n’veis, heterogeneidade contempor‰nea da

diversifica•‹o ˆ qual o jogador Ž submetido. Pois sendo o verdadeiro sujeito do jogo o

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mesmo jogo, "todo jogar Ž um ser jogado"(GADAMER 1998:181). O jogar faz com o

que o jogador participe do jogo e tenha seus atos agora sobredeterminados pelo jogo.

A transmuta•‹o do sujeito em jogador sendo acompanhada do incremento do

saber do jogo por parte do jogador frente ˆ natureza autorepresentativa do jogo vai

 possibilitar um segundo descentramento mais radical e conseqŸente que o primeiro. ƒ

o que podemos constatar quando percebemos que "todo representar... Ž um

representar para alguŽm"( GADAMER 1998:184).

Esta abertura para a recep•‹o, esta pendncia imanente nos doa um paradoxo.

Se o jogo Ž o cont’nuo movimento de autorepresenta•‹o, como pode ser que o

espectador consume a representa•‹o?(GADAMER 1998:185). N‹o recair’amos

novamente no esvaziamento da representa•‹o por sua finalidade em algo que n‹o Ž a

 pr—pria representa•‹o, atitude fatal para a ficcionalidade sempre provida pelos

conceptualizadores da imagem?

Ao mesmo tempo, reatando os fios que nos ligam com o jogador, podemos

entender esta fun•‹o de recep•‹o como inerente ao jogo. A constru•‹o de orienta•›es

 para o jogo n‹o prescinde do jogador. A transforma•‹o do sujeito, atravŽs do jogo, em

 jogador apela para a din‰mica personativa de base do jogador. Somente por meio de

um desdobramento personativo Ž que o jogo existe, a partir do momento que o sujeito

Ž um jogador. Em um primeiro momento, frente ˆ autorepresenta•‹o do jogo como

tal, parece que prescindimos do jogador, que perante a prerrogativa do jogo frente ao

 jogador ter’amos a morte do sujeito. Mas a’ onde se desconfia deste momento negador

Ž a’ mesmo onde temos uma transforma•‹o do pr—prio jogo. O espectador aqui se

concretiza como segundo descentramento do sujeito e primeiro desdobramento do

 jogo. O espectador Ž o outro do jogo. Mas entre jogo e recep•‹o h‡ o duplamente

descentrado jogador. O jogo mesmo se descentra como o sujeito mesmo fizera ao se

transformar em jogador. O fim do jogo culmina na representa•‹o de sua pr—pria poŽtica. Mais que um tripŽ jogo, jogador e espectador, este conjunto de fun•›es

trabalha com a finitude da fic•‹o em promover uma diferencia•‹o tomando de si

mesma as condi•›es de sua possibilidade. A fun•‹o-recep•‹o ratifica a

autorepresenta•‹o do jogo, o jogo como sujeito do jogar, pois o espectador Ž o

desdobramento do jogador, Ž o jogo do jogador consigo, o jogo que faz que o jogador

 jogue com a fun•‹o de jogador.

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Somente assim entendemos que "no fundo aqui se anula a diferen•a entre

 jogador e espectador"(GADAMER 1998:186). Vemos que o jogo manifesta-se na

 base de uma m’mesis dram‡tica que o fundamenta.

 Neste momento, ap—s o relevo desses trs momentos (fun•‹o personativa,

autorepresenta•‹o do jogo e fun•‹o recep•‹o) o jogo se consuma como m’mesis

transformando-se em configura•‹o. O jogo Ž o englobante que reœne esses n’veis de

orienta•‹o correlatos da finitiza•‹o de sua express‹o. Cada movimento do jogo em

individua•‹o acarreta uma mudan•a no papel do sujeito-jogador. A ficcionaliza•‹o do

 jogo em busca de sua representa•‹o e especificidade passa pela disponibiliza•‹o da

heteromorfose personativa do jogador. A fic•‹o Ž a operacionaliza•‹o dessa tripartide

 performance.

Como m’mesis, vemos agora que "aquilo que era antes n‹o Ž

mais"(GADAMER 1998: 188). Atinge-se a correla•‹o conjunta entre referencia•‹o e

movimento do jogo mesmo. O movimento do jogo, atualizando altera•›es da

orienta•‹o do jogador para o pr—prio movimento do jogo, constitui-se no pr—prio

referente do jogo. A sua realidade Ž a realidade de sua representa•‹o. O que existe

agora Ž o jogo, irrevers’vel momento do pr—prio jogar. "Na representa•‹o do jogo

resulta o que Ž"(GADAMER 1998:190). Esta realidade da representa•‹o passava

desapercebida para a turba an™nima em volta de Her‡clito, enquanto ele jogava dados

de ossinhos com as crian•as (HEIDEGGER 1998:26).

Podemos compreender o logos  do jogo e, disso, o logos  como jogo.

Compreender o jogar Ž apreender as raz›es de uma raz‹o manifestando-se em um

interc‰mbio rec’proco que toma do fazer a realidade de seu expressar. Este fazer se

mantŽm e se prop›e diretamente relacionado com a transforma•‹o da subjetividade.

Porque h‡ a promo•‹o de um saber, um saber que n‹o se confina ˆ familiaridade do

sujeito ao que se defronta com ele. Um saber que convoca outras capacidades alŽm daredu•‹o do que Ž ou existe a uma idŽia. O jogador ter‡ que aprender o jogo, vai ter de

 jogar,vai ter de figurar, realizar a m’mesis.

Indubitavelmente, no fazer, havendo o fazer-se do sujeito, n‹o h‡ mais o uso

da inteligibilidade como esquematiza•‹o prŽvia das a•›es e elimina•‹o da

experincia. N‹o se pode jogar o jogo sem pensar o jogo, o jogo como configura•‹o

que possui sua poŽtica. A realidade do jogo Ž a de sua representa•‹o como jogo.

Desta maneira, a obra de arte, a m’mesis Òtem seu genu’no ser n‹o separ‡velde sua representa•‹o e que na representa•‹o surge a unidade e mesmidade de uma

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configura•‹oÓ(GADAMER 1998: 203). ƒ para a representa•‹o vista agora como

disponibilidade ficcionalizante que o logos se dirige. No acontecer da arte, medita-se

a media•‹o de uma realidade que toma forma e se demonstra como tal na medida em

que h‡ a correlativa modifica•‹o da subjetividade para o mundo da obra. O que se

representa Ž a concretiza•‹o do horizonte delimitativo e a possibilidade da experincia

de acesso ˆ esta realidade. O logos  aqui Ž uma escuta que asculta este fazer. Para

compreender a fic•‹o, inserindo-se como part’cipe da formatividade da obra, o sujeito

necessita pensar esta escuta, apreender esta vontade figuradora que parte de uma

diferen•a imposs’vel de ser ultrapassada, o intervalo entre o mundo da obra e sua

antecedncia frente ao mundo da recep•‹o.

Melhor se entende, pois, o sentido da cr’tica da conscincia estŽtica

operacionalizada por Gadamer na homologia entre arte e jogo se avistamos a poŽtica

da fic•‹o implicada em sua descri•‹o do jogo. A dimens‹o aut‡rquica e privativa da

conscincia estŽtica, buscando uniformizar a representa•‹o pela rela•‹o do

representado ˆ sua esquem‡tica enforma•‹o conceptualizante, oblitera esta poŽtica. ƒ

somente ultrapassando os modos de referncia desta conscincia que se pode ascultar

a fic•‹o, a obra de arte. A diferencia•‹o estŽtica toma a representa•‹o como um prŽ-

dado, n‹o se interrogando sobre a faticidade do estar-a’   como representa•‹o, do

mesmo modo que a platŽia de Her‡clito n‹o tomava conscincia de nem se

relacionava com a pluralidade de n’veis-fun•›es-atos que engendram um imagin‡rio.

A homologia jogo-arte nos faculta a heterogeneidade envolvida na complexa

experincia temporal da fic•‹o. A dura•‹o do imagin‡rio constitui-se na exibi•‹o

deste acontecer plural(GADAMER 1998:209). O que se representa Ž mais do que se

apresenta. H‡ a indissolœvel diferencia•‹o e co-pertinncia entre representado e

representa•‹o. O que se apresenta monitora sua inteligibilidade. O fato Ž fator de

tornar-se. N‹o h‡ a antecedncia da idŽia no processo de representa•‹o. O feitomedeia seu fazer. Esta dupla perten•a, faces da mesma realiza•‹o, n‹o pode ser

avistada atravŽs de estratŽgias que tomam a obra como pretexto para seus coment‡rios

e que n‹o cumprem atŽ seu termo a teleologia ficcional da obra. A m’mesis reivindica

seu logos.

Esta fus‹o da idŽia com o ato pontua cada ato como antecipa•‹o do sentido de

seu acontecer. Declara ser o jogo, antes que a consuma•‹o de uma signific‰ncia

abstrata de uma situa•‹o, uma situa•‹o-roteiro, uma cena que efetiva o horizonte de possibilidades de sua realiza•‹o. Seu fundamento n‹o Ž a tematiza•‹o de um prŽvio

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no qual o que se realiza Ž a proje•‹o integral, un’voca e unilateral de seu pressuposto

caracterizador. Como situa•‹o-roteiro, oferece-se uma limita•‹o que especifica o

horizonte de sua disponibilidade e este disponibilizar Ž sua teleologia. Veja-se esta

natureza insubstancial do jogo mas nem por isso menos palp‡vel e ÒrealÓ. Sendo uma

orienta•‹o de realiza•‹o o jogo efetiva-se como estrutura apelativa que ganha sua

referencia•‹o na correlatividade da participa•‹o. O jogo mesmo Ž o englobar da

representa•‹o com esta correlatividade. Esta abertura orientadora marca

 profundamente quem dela participa. A participa•‹o existe porque h‡ orienta•‹o para o

 participar. O jogo radicaliza esta finita inst‰ncia de sentido inscrita na estrutura

 pressupositiva de nossa compreens‹o. A universalidade da compreens‹o toma forma

no jogo como um compreender que representa a pr—pria compreens‹o. O jogo existe e

Ž em virtude da conex‹o entre estrutura da compreens‹o e estrutura da fic•‹o que ele

se individualiza128. O jogo atualiza o modo de ser de sua compreens‹o como

experincia metaficional.

Desta forma, aquilo que era uma rela•‹o entre jogo e jogador come•a a fazer

mais e melhor sentido. Ultrapassando um binarismo metaf’sico, impresso no velho

 problema de sujeito-objeto, suporte da diferencia•‹o estŽtica, a ficcionalidade que se

vislumbra na homologia jogo-arte exige um terceiro termo como forma de se evitar

que se continue rondando o tema sob o viŽs da subjetividade, ou de uma contra-

subjetividade. A extensividade multinivelada do jogo, fundindo necessariamente sua

antecipa•‹o orientadora e sua presentifica•‹o, questiona a constru•‹o de referentes e

reivindica a correlatividade como fun•‹o integrante de sua realiza•‹o. A fic•‹o, como

se pode notar em uma poŽtica do jogo, toma do seu figurar, do seu fazer-se fic•‹o os

suportes de orienta•‹o de seu acontecer. O evento-fic•‹o Ž a concretiza•‹o de seus

suportes orientacionais. ƒ isso que possibilita a fic•‹o. Sendo uma confirma•‹o da

finitude humana, o ato imaginativo acopla seu significar ao seu configurar. Participarde uma fic•‹o Ž participar de sua configura•‹o, de sua orienta•‹o expressiva. Toda

fic•‹o Ž, pois, uma poŽtica e uma paidŽia. Ela orienta roteirizando sua formatividade.

A raz‹o criativa de uma obra Ž a pr—pria obra. O fazer-se da obra Ž a doa•‹o de um

logos, seu pr—prio logos. A obra Ž uma media•‹o de seu pr—prio acontecimento,

Sendo a teleologia da obra fazer-se fic•‹o, Òtransformar-se em configura•‹oÓ,

entende-se porque o jogo Ž representa•‹o, o que acarreta o primeiro descentramento

128 MOTA 1992.

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do sujeito. Ser representa•‹o e n‹o confinar-se a autarquia da conscincia

individualizada emergem como condi•›es mesmas desta media•‹o operada pela

m’mesis. Para haver media•‹o Ž preciso que haja diferen•a. A media•‹o que o evento

fic•‹o possibilita n‹o Ž transparente comunica•‹o de algo que existia antes. A

media•‹o reœne os d’spares, exibe seus nexos. Sendo representa•‹o, redefine-se o

estatuto do conjunto de referncias, o sentido do evento, reseultando que se tangencie

o que se apresenta. Trata-se de evitar a atomiza•‹o do acontecido, sonegando sua

modaliza•‹o singularizadora. O jogo como representa•‹o obriga-nos a pensar a

estreita rela•‹o entre o sentido de um acontecer e o acontecimento de sentido ali

configurado. Disto, temos a sensibilidade para perceber a pluralidade de n’veis pelas

quais se constitui esta realidade-realiza•‹o do evento.

Tal ultrapassagem compreensiva do dado como reflexo de uma generaliza•‹o

apressada releva a formatividade do que se representa. Sabendo que o que se

representa medeia sua contingncia expressiva, compreende-se o que orienta o jogo.

Partimos do questionamento da univocidade do real e da unilateralidade de sua

apresenta•‹o. Desde j‡ o car‡ter de representa•‹o difunde o modo de recep•‹o. O

descentramento nos p›e diante de e defronte ˆ recusa da diferencia•‹o estŽtica. O

descentramento Ž apan‡gio da domin‰ncia de orienta•‹o para a configura•‹o, para o

relevo dos suportes expressivos. Aqui, ao n‹o se reduzir a representa•‹o ˆ proje•‹o de

uma inst‰ncia ideativa, coloca-se em jogo o modo de referncia da media•‹o ficcional

da arte. O descentramento n‹o Ž uma elimina•‹o da subjetividade do processo de

representa•‹o mas refor•o do horizonte ficcional como pressuposto para a realiza•‹o

da recep•‹o. N‹o Ž contra o sujeito que a reflex‹o gadameriana se erige: mas contra a

conceptualiza•‹o do fato art’stico por sua referncia a um regime de inteligibilidade

que n‹o leva em conta as exigncias de sua singularidade ficcicional. A singularidade

ficcionalizante do jogo, propondo-se e realizando-se como representa•‹o, exige quedela participe um logos conectado com esta transforma•‹o em configura•‹o. Eis um

limite-limitante da obra de arte: o que ela Ž s— se compreende quando se experimenta

seu diferencial configurador. A possibilidade ficcicional Ž a efetividade realizacional

do jogo-obra.

A aten•‹o, ent‹o, para a orienta•‹o expressiva da obra, acarretando o

descentramendo do sujeito e da reorienta•‹o do modo como entender o jogo,

desemboca na inser•‹o do sujeito na estrutura de configura•‹o do que se representa.O sujeito Ž obra do jogo ao cumprir seu papel de jogador quanto mais se inscreve na

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  "Sl

estrutura da obra. Deste modo, pode-se pensar que a obra j‡ antecipou o horizonte do

 jogador ao fornecer o horizonte de sua poŽtica. A poŽtica do espet‡culo, enfim, torna-

se a poŽtica do espectador. Sendo o jogo a realiza•‹o de seu diferencial expressivo,

suas possibilidade concretas de orienta•‹o, ent‹o o jogo tem seu logos, sua teoria, seu

modo de ver, sua poŽtica, sua raz‹o criativa, sua recep•‹o. O jogo Ž ao mesmo tempo

representa•‹o e espet‡culo, Ž obra e recep•‹o. A cria•‹o antecipa a imagem de sua

recep•‹o ao representar-se. Toda representa•‹o, sendo exterioriza•‹o que demarca por

seus suportes expresssivos seu processo referencial, desde j‡ Ž recep•‹o. N‹o

confundir este fato com a uma ditadura de efeitos. Mas pensar esta d’ade espet‡culo-

representa•‹o como extens‹o da materialidade vinculante do ato ficcional, da

modela•‹o mimŽtica que, ao se expressar, atualiza sua condi•‹o de

 produ•‹o/recep•‹o. Ver a obra se torna pensar a representa•‹o na singularidade

ficcional que a possibilita. O que de si mesmo se excede como fator de rastro concede

a forma do sentido.

ƒ que a conscincia estŽtica, em sua abstra•‹o, n‹o pensa a obra em sua

teleologia representacional. Da’ faz repercutir uma m’mesis derivativa que v no

espectador a inst‰ncia a posteriori, apassivada, mero res’duo do processo. Essa

conscincia sem nenhuma conscincia estŽtica, mantendo a recep•‹o fora da fic•‹o,

somente sabe aproximar a representa•‹o do pœblico trabalhando com pressupostos de

identifica•‹o entre palco e platŽia, eliminando o diferencial expressivo da obra.

Por isso a din‰mica personativa da obra precisa ser integrada ˆ m’mesis, uma

teoria da fic•‹o que d o contexto expressivo da experincia do sujeito com a obra.

Desde j‡ a singularidade do evento ficcional, visto como representa•‹o e

descentramento do sujeito, reivindica uma m’mesis dram‡tica que leve em conta a

transforma•‹o em configura•‹o do jogo levada ao seu extremo. Cremos que Ž na arte

dram‡tica que encontramos uma poŽtica como situa•‹o-limite a qual, frente aos problemas e solu•›es que nos coloca, consegue melhor nos auxiliar nessa provocativa

cr’tica de Gadamer ˆ conscincia estŽtica, cr’tica que parte da 'recupera•‹o' da

experincia do logos. A arte dram‡tica se converte agora em poŽtica da fic•‹o. E o

teatro em uma experincia metaficcional.

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  "Sm

3- O DRAMA COMO METAESTƒTICA

A homologia entre jogo e arte utilizada por Gadamer para apresentar a

defasagem entre as estratŽgias de inteligibilidade pautadas na diferencia•‹o estŽtica e

a experincia efetiva da fic•‹o nos encaminham para o dispositivo cnico. A

 promo•‹o de atividade de orienta•‹o de sentido como representa•‹o vinculada ˆ

diferencia•‹o da recep•‹o que o jogo difunde, encontra seu pleno existir e proceder na

arte dram‡tica. Esta comparece, pois, como metaestŽtica.

O dispositivo cnico atualiza o movimento de autorepresenta•‹o do jogo,

movimento que desenha a integratividade do receptor ao jogo mesmo. Assim como o

 jogo, a fic•‹o dram‡tica se concretiza como modaliza•‹o da referncia, incidindo na

modifica•‹o de quem participa dela. A dificuldade de ver o processo de

autorepresenta•‹o da arte est‡ diretamente relacionada com os h‡bitos pelos quais

 pensamos a fic•‹o. Ao invŽs de pensar a fic•‹o como fic•‹o, como ela age sobre

nossos pressupostos de organiza•‹o do real, seguimos na maioria das vezes a

diferencia•‹o estŽtica e n‹o nos propomos a compreender a correla•‹o entre

especificidade imagŽtica e participa•‹o colaborativa que a obra de arte pressup›e e

realiza.

A autorepresenta•‹o, antes de ser uma autarquia, toma de sua diferen•a em

rela•‹o a uma conscincia prŽ-dada, o tempo de sua efetiva•‹o. Pois esta

descontinuidade entre obra e recep•‹o Ž que torna poss’vel haver a obra como

integra•‹o da receptividade ˆ representa•‹o. A obra Ž assim, desde j‡, diagrama da

 participa•‹o em um imagin‡rio que se prop›e ˆ compreens‹o. A autorepresenta•‹o

demonstra a co-pertinncia entre a constitui•‹o da obra e a constitui•‹o de quem dela

 participa. Sendo que a obra medeia este co-pertinncia, a autorepresenta•‹o Ž a

 presen•a destes processos de intersubjetividade. ÒO n‹o idntico Ž a condi•‹o para o

efeito que se realiza no leitor como a constitui•‹o do sentido do textoÓ( ISER

1996:87)

Podemos ver a m’mesis dram‡tica como espet‡culo que integra um espectador

ao mundo de referncia da obra, constituindo o ‰mbito do ver pela colabora•‹o com o

sentido que se efetiva. Voltado para atos personativos que concretizam este

espet‡culo, esta m’mesis representa sua fic•‹o pela media•‹o do espa•o-tempo da platŽia. N‹o Ž em v‹o que se chama Òilus‹o cnicaÓ o meio de acontecer do

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espet‡culo. O que n‹o Ž ou existe sustenta-se no prec‡rio fio de sua exibi•‹o. Dessa

maneira, para algo passar a existir, Ž preciso que se torne condi•‹o mesma de seu

 pr—prio acontecer. Tudo o que se v guarda este duplo direcionamento de efetivar a

realiza•‹o do espet‡culo e de se tornar distingu’vel para uma recep•‹o. O ilus—rio da

ilus‹o cnica n‹o Ž o cancelamento do mundo de referncias prŽvias da platŽia, o que

direcionaria o espet‡culo para uma morte improdutiva, esvaziamento. O ilus—rio est‡

na estrutura apelativa do espet‡culo que representa orientando sua recep•‹o. Esta

estrutura apelativa processa uma presen•a, uma continuidade estruturada por atos

descont’nuos.

A arte dram‡tica Ž o acontecer de uma presen•a que dimensiona a dura•‹o de

seu acontecer. Como nada Ž dado de uma vez s—, h‡ o constante reprojetar

(GADAMER 1998:482) que distende esta presen•a. Efetivando-se na (re)orienta•‹o

das expectativas, essa presen•a se esfor•a por individualizar as possibilidades de sua

configura•‹o. Da’ temos a cena como forma deste esfor•o. Para possibilitar Ž preciso

configurar. A presen•a, para durar, medeia a configura•‹o de sua referncia,

 predelineando a recep•‹o que dela se tenha.

A cena Ž o representar da presen•a. A cena mesma Ž a presen•a de sua

formatividade. Quem v a cena defronta-se com o que o espet‡culo Ž e com o que o

espet‡culo faz para ser espet‡culo. A cena remete para a escolha de sua forma e de

sua recep•‹o. Como operador estŽtico, a cena singulariza a fic•‹o que se representa.

 Note-se que a cena expondo-se como perspectivada concretiza•‹o de seu

modo de ser n‹o apenas evidencia integrar um espet‡culo como tambŽm a

compreens‹o do que se representa. ƒ para a produtividade da compreens‹o que se

orienta esta exibi•‹o(GADAMER 1998: 444). O espa•o aberto, o comparecer diante

dos outros, a oferta de imagens n‹o pode ser apreendida sen‹o no propiciar uma

situa•‹o. A cena Ž o situar da presen•a frente ao indiferenciado do que n‹o Ž aquiloem que agora se tornou. A cena, pois, proporciona o encontro com a sua

singularidade. Em todo caso s— se participa interagindo com o diferencial ficcional

que esta presen•a faz tornar representa•‹o.

A cena, pois, Ž este ÒentremeioÓ(GADAMER 1998:442), entreato que j‡ desde

si Ž seu campo de expectativas: a expectativa de ser compreendida como sendo aquilo

que Ž.

ƒ para a autorepresenta•‹o do espet‡culo que a cena aponta como ato possibilitador de referncia e orienta•‹o. Buscando gerar a continuidade da presen•a,

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oferece a tens‹o que lhe Ž intr’nseca, tens‹o entre a extens‹o da presen•a e a sua

 pr—pria extens‹o. A cena, ao situar o espet‡culo, efetiva sua pr—pria presen•a. Este

 paradoxo advŽm da realiza•‹o da cena, em fun•‹o de sua alteridade como processo

colaborativo. Singularizando a presen•a, a constru•‹o da presen•a do espet‡culo

esbarra na pr—pria situa•‹o de ser cena. Somente quando se cumprem este dois

direcionamentos ( ser cena e ser presen•a) Ž que o espet‡culo pode passar a existir

 pois s— Ž espet‡culo como presen•a. A m’mesis dram‡tica resolve esta quest‹o

assumindo o problema, fazendo que a cena mesma seja a representa•‹o dessa tens‹o.

A cena Ž esta situa•‹o que exibe sua formatividade para perdurarar. A cena Ž situa•‹o

finita e Ž somente por situa•›es finitas, descont’nuas Ž que temos a presen•a e o

espet‡culo. A necessidade de uma prefigura•‹o que determina a autorepresenta•‹o do

espet‡culo exige que a cena ela mesma seja um compreender como situa•‹o, como

orienta•‹o de sua singularidade. Toda cena Ž a efetiva•‹o de sua descontinuidade, de

sua configura•‹o. Pois toda cena Ž interpreta•‹o da configura•‹o do espet‡culo, Ž a

 presen•a do espet‡culo mesmo. As cenas fazem o espet‡culo, mas o espet‡culo n‹o Ž

a soma das cenas nem as cenas s‹o reflexos parciais da idŽia-espet‡culo. A din‰mica

gerativa do espet‡culo, impressa na busca de sua autorepresenta•‹o, exige a cena

como ato descont’nuo, multiperspectivador e configurado. ÒTodo compreender acaba

sendo compreender-seÓ(GADAMER 1998: 394).

Desse modo, observa-se a complexidade do processo de autorepresenta•‹o da

fic•‹o dram‡tica que necessita de cenas, v‡rios n’veis de realidade para se concretizar,

invalidando seu acesso por meio da conscincia estŽtica a qual toma como

fundamento de sua intelec•‹o o aspecto ideativo do fen™meno que quer definir. A

dimens‹o de integratividade perpassa essa complexidade. A redu•‹o ideativa n‹o

adentra esta integratividade. A m’mesis dram‡tica aponta o reconhecimento de outro

modo de individuar um sentido, partindo da insofism‡vel alteridade da obra(GADAMER 1998:224) sua autorepresenta•‹o. A m’mesis dram‡tica radicaliza a

realidade finita humana que s— podemos conhecer a partir do di‡logo com aquilo que

n‹o sabe o que Ž. No relevo de sua singularidade como referncia e orienta•‹o, a cena

confirma o car‡ter metaestŽtico da fic•‹o. A fic•‹o, como vimos no jogo, quanto mais

se representa mais exige de sua recep•‹o, mais exige que a recep•‹o compreenda a

obra.

Os atos personativos que irrompem em cena confirmam o reconhecimento doconhecimento da ficcionalidade produzida. Da mesma maneira que no jogo a

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atividade de autorepresenta•‹o repercute em uma din‰mica participativa, no drama

atos personativos atualizam o processo de recep•‹o e orienta•‹o da referncia

ficcional. Os atos personativos em palco realizam n‹o s— a veicula•‹o da cena como

sua construtividade. As personagens tm a dualidade de figuras da representa•‹o e

interpreta•‹o dos acontecimentos representados. A’ que entendemos bem essa

exigncia de atos de recep•‹o, esse orientar-se da cena para um audit—rio em

 potencial. A fun•‹o para do jogo e da arte determina o acabamento da configura•‹o.

Sendo a teleologia da fic•‹o instaurar sua raz‹o criativa, sua orienta•‹o em prol da

formatividade que lhe Ž inerente, a predisposi•‹o para a recep•‹o Ž a determina•‹o

das referncias em sua modaliza•‹o, Ž a doa•‹o das condi•›es de inteligibilidade da

 pr—pria recep•‹o. A dualidade obra/recep•‹o Ž incorporada dentro do pr—prio fazer. A

 poŽtica de uma obra Ž a compreens‹o de como suas condi•›es de produ•‹o e recep•‹o

aparecem inevitavelmente interligadas. Na m’mesis dram‡tica representam-se n‹o s—

cenas que constr—em o espet‡culo. As cenas individualizam o diferencial expressivo

do espet‡culo. E os atos personativos interpretam a orienta•‹o desse diferencial.

Traduzem o movimento de autorepresenta•‹o na situa•‹o de recep•‹o.

 Novamente vemos como a fic•‹o, nosso modo de operar com processos de

referncia e orienta•‹o dessas referncias, estando intimamente impressa em nossa

condi•‹o humana finita, impede a aplica•‹o de pressupostos da diferencia•‹o estŽtica

na experincia ficcional. O que h‡ e o que existe Ž impossibilidade do imediato. A

autorepresenta•‹o do jogo, como vemos na finitiza•‹o do espet‡culo por meio da

cena, atualiza uma presen•a que toma de suas condi•›es de express‹o a dura•‹o de

seu evento. A cena n‹o Ž algo imediata e frontalmente situado para seu espectador.

Posteriormente, assim como para ativamente participar do jogo o jogador precisa

conhecer o que o jogo Ž, os atos personativos em cena medeiam para a platŽia o

imagin‡rio que vai ser representado. Perpassa e transpassa a configura•‹o o tempo doaudit—rio, o interagir com a din‰mica personativa presente na estrutura mesma do

espet‡culo.

PorŽm, esse predelineamento da recep•‹o de modo algum reproduz a

monocausalidade diretiva da fun•‹o autoral sobre a passividade do audit—rio. Toda

m’mesis Ž um problema a resolver. Seu acabamento passa pela sua referencia•‹o. A

 prefigura•‹o da receptividade Ž o que possibilita a intera•‹o entre pœblico e

espet‡culo ao propor um horizonte, uma configura•‹o que ser‡ a representa•‹omesma desta reciprocidade. Um evento dram‡tico n‹o se confina no representado. A

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m’mesis dram‡tica Ž o espet‡culo do encontro entre uma fic•‹o que se demonstra

como fic•‹o e que exige ser compreendida como fic•‹o que ela mesma Ž.

 No drama temos um duplo distanciamento da recep•‹o. Contraditoriamente, a

frontalidade n‹o Ž apagamento do diferencial expressivo, mas sua visibiliza•‹o. Em

cena, atos personativos exp›em os suportes expressivos que formam a compreens‹o

do que acontece. O drama contextualiza essa exposi•‹o. O drama mesmo Ž a

representa•‹o desta contextura. O espet‡culo se dirige para um pœblico, mas um

 pœblico que vai se tornando pœblico deste  espet‡culo e n‹o de outro - primeiro

distanciamento. O pœblico Ž prefigurado nos atos personativos - segundo

distanciamento. A m’mesis dram‡tica, pois, radicaliza a autorepresenta•‹o do jogo ao

trabalhar com este duplo distanciamento da recep•‹o que nada mais Ž que a

necessidade de uma exposi•‹o efetiva de uma fic•‹o. A presen•a em um presente

atual que a m’mesis dram‡tica realiza choca-se ao mesmo tempo com a singularidade

de sua espec’fica produtividade. Por isso s‹o imprescind’veis mais suportes que

atingem a orienta•‹o do audit—rio. O trabalho com atos personativos, onde cada

 personagem Ž uma dualidade palco/cena, reduplica a tens‹o entre obra/recep•‹o. Cada

ato personativo Ž uma cena, Ž o drama mesmo dessa tens‹o entre conhecimento e

compreens‹o da singularidade configurativa da obra. Assim como o espet‡culo Ž a

exposi•‹o do drama de sua legibilidade, de seu logos, da mesma forma o personificar

Ž atualizar essa compreens‹o de sua realidade. Toda personagem Ž uma media•‹o

imaginativa, relacionando a cena com sua orienta•‹o para alguŽm. Mas este alguŽm

 precisa interagir com essa fun•‹o para ser integrado ao espet‡culo. Melhor: este

alguŽm precisa se concretizar para ser alguŽm. Contraditoriamente, e nem tanto, Ž a

fic•‹o quem concretiza nossas referncias.

Chegamos a uma fenomenologia da experincia dram‡tica que nos doa o

verdadeiro modo de ser de sua representa•‹o que Ž sua dimens‹o metaestŽtica. O quemantŽm e faz durar a presen•a e a cena Ž constru•‹o dos suportes expressivos da

recep•‹o. A m’mesis dram‡tica Ž presen•a de um compreender que se configura.

Configurando-se, prefigura sua compreens‹o. Confirma o car‡ter antecipat—rio de

nossa vivncia cognitiva. Dramatizar Ž representar o horizonte de inteligibilidade dos

acontecimentos. Todo acontecer, para ser compreendido, precisa ser dramatizado. Na

m’mesis dram‡tica encenam-se as possibilidades de conhecer, pois quem conhece

reconhece-se fadado a compreender a configura•‹o do que se defronta consigo. S—

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existe sujeito como participante dessa situa•‹o dram‡tica. A compreens‹o possibilita-

se na situa•‹o dram‡tica que a efetiva.

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4- LUIGI PAREYSON E A ANçLISE DA EXPERIæNCIA ESTƒTICA:

DO PENSAR O PENSAMENTO PARA O PENSAR O FAZER.

A demanda por contextos tem atingindo o fazer art’stico de tal modo que o

 processo criativo se efetiva como fonte para compreens‹o deste fazer.

A partir dessa opera•‹o intelectual, podemos observar a passagem de uma

metaf’sica da arte para uma an‡lise da experincia estŽtica129. Esta passagem se

constitui no emblema do projeto filos—fico do pensador italiano Luigi Pareyson, que

 busca redefinir o campo de estudos da estŽtica em fun•‹o da incorpora•‹o de novos

objetos e problemas enfatizados pela produ•‹o art’stica moderna130.

Essa passagem da metaf’sica para a materialidade reflexiva da arte procura

ultrapassar a abstra•‹o da conscincia estŽtica, a qual H-G. Gadamer caracterizou

como nfase absoluta nos aspectos mentais da arte, isolando o feito de sua contextura

 processual131.

Em raz‹o de uma outra postura e de diferentes modos de investiga•‹o, pois, a

estŽtica n‹o se encerra mais dentro de sistemas filos—ficos e a racionalidade da arte

 pode ser enfrentada a partir da especificidade de suas ocorrncias, proporcionando o

que W. Iser chama de Ôressurgimento da estŽticaÕ. Neste ressurgimento, o estŽtico

deixa se determinar por estar Òsempre associado a alguma coisa que o Ôsi mesmoÕ,

seja essa outra coisa o sujeito, o belo, o sublime, a verdade ou a obra de arteÓ para se

efetivar como Ôopera•‹o modeladoraÕ, um apelo que incita Ò ˆ a•‹o, na qual os

sentidos corporais tendem a obter vantagem sobre os mentaisÓ132.

De forma que a proposta de Luigi Pareyson se fundamenta no encontro da

emergncia da produ•‹o moderna de arte com o questionamento da abstra•‹o da

129  L. Pareyson.  EstŽtica. Teoria da formatividade. Vozes, 1993, p.11.Doravante ES.

130 Para tanto, ao invŽs de citar os tradicionais nomes da metaf’sica estŽtica,Pareyson fundamenta sua proposta nas Ò observa•›es de Poe, Flaubert, Valery,Stravinski e muitos outros semelhantes eram um est’mulo para estudar o car‡tercompositivo e construtivo, calculado e improvisador, ao mesmo tempo, da atividadeart’stica.Ó ES,10.

131 GADAMER 1998:147-173.132 W. Iser Ò O ressurgimento da estŽticaÓ in  ƒtica e estŽtica, Zahar, 2001:35-

49.

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conscincia estŽtica da tradi•‹o metaf’sica. A impossibilidade de essa produ•‹o ser

interpretada pelas categorias estŽticas metaf’sicas engendrou a teoria da formatividade

de Pareyson.

Em primeiro lugar, decorrente dessa impossibilidade, o que est‡ em xeque Ž a

quest‹o do a apriori. Diante da concretude irredut’vel do fazer art’stico, torna-se

invi‡vel Òtraduzir artificiosamente uma estŽtica de um sistema filos—fico pressuposto,

independentemente da experincia estŽtica, como se o fil—sofo pudesse enquadra os

fen™menos da arte no leito de Procusto de uma filosofia pronta de antem‹oÓ133.

Ou seja, a mudan•a de foco do intŽrprete acarreta mudan•a nas estratŽgias

interpretativas. Ao invŽs de aplicar a arte um arsenal de quest›es e defini•›es

 previamente estipuladas, inverte-se e subverte-se este esquema cognitivo para a

nfase na atualidade e imediaticidade de um contexto particular. Os produtos estŽticos

se apresentam como oportunidade de corre•‹o de uma c™moda situa•‹o interpretativa

genŽrica e absoluta e sua pretensa atribui•‹o totalizante de sentido a feitos art’sticos.

Assim, o enfrentamento de obras art’sticas acarreta a explicita•‹o dos limites e

da configura•‹o da atividade interpretativa. Ao interpretar, o intŽrprete Ž revelado.

Essa reflexibilidade do ato interpretativo Ž exibida neste enfrentamento em raz‹o da

operacionalidade mesma do fazer art’stico. Tanto quem interpreta uma obra, tanto

quem realiza ou executa, todos exercem atividades que se concretizam em

Òopera•›es, isto Ž, em movimentos destinados a culminar em obras134.Ó

Assim, quem investiga uma obra, um fazer, posiciona-se em movimento

complementar ao que investiga. Logo, sem as defesas de esquemas a priori, o

intŽrprete se v confrontado em sua interpreta•‹o com atribui•›es daquilo mesmo que

investiga. E quanto mais ele se detŽm nessa inst‰ncia reflexiva de sua investiga•‹o,

mais a atividade de interpreta•‹o transforma-se em um mœtuo esclarecimento de

quem pensa algo que foi feito e de algo feito que se completa a partir de sua recep•‹o.Ao fim, a compreens‹o da obra Ž uma provoca•‹o para a a•‹o.

ƒ neste ponto que a passagem da metaf’sica para a experincia estŽtica Ž

melhor entendida. O que est‡ sendo visado aqui Ž o nexo, o v’nculo entre intŽrprete e

obra. A racionalidade da obra se encontra diretamente relacionada com a

racionalidade do intŽrprete. N‹o se pode atribuir a uma inst‰ncia aquŽm ou alŽm

desse circuito intŽrprete-obra o que se desenvolve durante e atravŽs a atividade de

133 ES,18.134 ES,20.

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interpreta•‹o. ƒ a orienta•‹o interativa da atividade de interpreta•‹o que situa e

contextualiza tanto o fazer o intŽrprete quanto a compress‹o da realiza•‹o da obra.

Cabe ao intŽrprete interrogar e acompanhar o fazer da obra para empreender a

realiza•‹o de sua compreens‹o mesma deste fazer.

Tal relevo dado ao fazer, direciona a compreens‹o estŽtica para atos, para o

que Pareyson chama de formatividade - um fazer, atos de realizar que apontam para

esse realizar. A forma aqui Ž a concretude da opera•‹o art’stica135. E as obras

art’sticas s‹o produ•›es que colocam a meta do fazer como cumprimento em toda a

sua extens‹o e excelncia, como uma hipŽrbole de atos: Ò a opera•‹o art’stica Ž um

 processo de inven•‹o e produ•‹o, exercido n‹o para realizar obras especulativas ou

 pr‡ticas ou sejam l‡ quais forem, mas s— por si mesmo: formar por formar, formar

 perseguindo somente a forma por si mesma: a arte Ž pura formatividade.136 Ó

Ora, da absoluta determina•‹o por algo fora do processo criativo, como se

 pode depreender da defini•‹o mentalista e aprior’stica presente na metaf’sica da arte,

 passamos para uma absoluta tautologia deste processo, na qual fazer e a forma s‹o o

meio e o resultado mesmo.

Ser‡ que absoluto responde a absoluto? Nesta tautologia, podemos divisar

tanto uma resposta ˆ tradi•‹o alienante da metaf’sica estŽtica quanto um redobrado

reconhecimento da inst‰ncia produtiva da arte. Para tanto, Pareyson, na medida em

que aprimora sua argumenta•‹o, vai deixando mais claro o que Ž esta Ôpura

formatividade.Õ Durante este aprimoramento, o processo criativo em suas diversas

etapas e fun•›es Ž analisado e se converte no horizonte da experincia estŽtica,

mostrando a diferen•a de Pareyson quanto aos absolutos da metaf’sica art’stica. Se

nesta metaf’sica, as obras s‹o pretextos e exemplos de uma especula•‹o prŽvia e,

ent‹o, est‹o desvinculadas de seu processo produtivo, na estŽtica da formatividade, ao

contr‡rio, s‹o justamente as etapas do processo produtivo que vm em primeiro plano.Dentro da concretude do processo criativo ou formatividade da obra, temos o

 princ’pio da indissolubilidade entre inten•‹o formativa e sua matŽria, ou matŽria

formada. Tal princ’pio posiciona o ponto de partida do artista e da compreens‹o de

seu trabalho a partir de uma a•‹o exercida sobre a matŽria f’sica a qual por sua vez,

 por resistncia determinar‡ uma rea•‹o por parte do artista. Assim, Òa opera•‹o

art’stica n‹o pode ser pura formatividade a n‹o ser que seja forma•‹o de matŽria

135 ES,26.136 ES,26.

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  "Vl

f’sica, de tal sorte que se pode afirmar que a exterioriza•‹o f’sica Ž um aspecto

necess‡rio e constitutivo, e n‹o apenas algo de inessencial e de acrŽscimo (...) Pois a

obra n‹o pode existir a n‹o ser como objeto f’sico e material.137Ó

 Note-se como a argumenta•‹o de Pareyson constr—i-se a partir da revis‹o da

metaf’sica da arte. A concretiza•‹o, que antes era um epifen™meno, uma aparncia,

uma fantasmagoria, a partir da proposta plat™nica Ð concep•‹o esta retomada por toda

a tradi•‹o filos—fica posterior que ou sobrevaloriza ou rebaixa a imediaticidade da arte

 Ð agora se apresenta como condi•‹o de existncia para os atos do realizador.

Implicado nisso est‡ o fato que a atividade do artista Ž executada em algo prŽ-

existente. Este movimento para o mundo retira o entendimento do que est‡

acontecendo durante o processo criativo da mente do realizador para o circuito de

mœtuas interferncias entre a matŽria e os atos de interven•‹o na matŽria. O

desempenho do artista se especifica em fun•‹o de seu encontro com a matŽria: Òa

escolha de uma matŽria e o ato de se definir uma inten•‹o formativa ocorrem ao

mesmo tempo: a inten•‹o formativa se define como ado•‹o da matŽria, e a escolha da

matŽria se efetiva como nascimento da inten•‹o formativa.(...) A matŽria Ž escolhida

e assumida em vista da obra a executar.138Ó

Dessa maneira, uma explicita•‹o mais compreensiva dos atos envolvidos na

experincia estŽtica procura acompanhar o encadeamento de decis›es e atividades que

v‹o inserindo o desempenho do artista em um contexto de execu•‹o fact’vel e

intelig’vel. N‹o h‡ o privilŽgio de uma inst‰ncia prŽvia que protege o sujeito dos atos

dos efeitos mesmos daquilo que opera. As a•›es sobre algo diverso de si mesmo

difundem a•›es sobre o pr—prio sujeito. Nesse conjunto de movimentos, atos e contra-

atos, h‡ espa•os, possibilidades para que se teste e manifeste a flexibilidade da

matŽria em conjun•‹o com a plasticidade do agente.

A presen•a da matŽria, pois, Ž a materializa•‹o dos atos de realiza•‹o.Descentrando o agente por ampliar o escopo das atividades e elementos de um

 processo criativo, a prerrogativa da matŽria esclarece a participa•‹o do sujeito no

 processo criativo, redefinindo sua atua•‹o e ressaltando os procedimentos que mais

evidenciam sua atividade. O descentramento funciona n‹o como uma nega•‹o do

sujeito, mas sim como o seu redimensionamento para a atividade na qual ele se

engaja.

137 ES,44.138 ES,47.

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Em virtude disso, temos o seguinte paradoxo: Ò a obra de arte se faz por si

mesma e, no entanto, Ž o artista quem a faz.139Ó Desfazendo o paradoxo, vemos que

s‹o reunidos em uma mesma senten•a duas a•›es que parecem pertencer a l—gicas

diversas e excludentes. Na primeira, aquilo que normalmente consideramos em

termos de resultado de a•‹o vem enfaticamente apresentada como sujeito e sujeito

independente e aut™nomo. Na segunda, temos uma situa•‹o mais pr—xima da

realidade comum, onde se identifica o sujeito de uma a•‹o com quem executa, com

quem Ž o suporte de uma atividade.

Por meio desse paradoxo, Pareyson provoca o pensamento para uma

racionalidade da experincia estŽtica que seja capaz de identificar ordens e l—gicas

somente excludentes quanto n‹o relacionadas com a a•‹o. Sob o primado dos atos, da

conjuntura de atividades de um processo criativo, a linearidade e const‰ncia de quem

age e de quem sofre a a•‹o Ž refutada em prol de uma diversa e din‰mica atribui•‹o

de protocolos de atividade. A reflexibilidade da obra e a agentividade de seu executor

complementam-se formando perspectivas diferentes de um e mesmo processo.

Ratificando esta conclus‹o antecipada, retornemos ao descentramento do

sujeito em fun•‹o da prevalncia da matŽria. Confrontado ˆ a•‹o e ˆ modifica•‹o de

seu isolacionismo por algo que lhe Ž alheio e exterior, o agente desempenha sobre a

matŽria e por ela Ž determinado. Como restri•‹o e ao mesmo tempo possibilidade da

a•‹o, a atividade sobre a matŽria adotada ocasiona tentativas, aproxima•›es, que

demonstram a aderncia do sujeito ao que realiza. Assim, Ò a opera•‹o art’stica Ž um

 procedimento em que se faz e atua sem saber de antem‹o de modo preciso o que se

deve fazer e como fazer, mas se vai descobrindo e inventando aos poucos no decorrer

mesmo da opera•‹o, e s— depois que esta terminou Ž que se v claramente que aquilo

que se fez era precisamente o que se tinha a fazer e que o modo empregado em faz-lo

era o œnico em que se poderia faze-lo. N‹o h‡ outro modo de encontrar a forma, istoŽ, saber o que se deve fazer e como fazer, sen‹o efetu‡-la, produzi-la, realiz‡-la. N‹o

que o artista tenha imaginado completamente sua obra e depois a executou e realizou,

mas, sim, ele a esbo•a justamente enquanto a vai fazendo. (...) A descoberta ocorre

apenas durante e mediante a execu•‹o.140Ó

 Novamente, observamos a contraposi•‹o entre uma estŽtica metaf’sica e outra

que leva em considera•‹o a concretude da experincia estŽtica. Em uma estŽtica

139 ES,78.140 ES,69.

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metaf’sica tudo se centra na mente do sujeito. Da’ o primado da composi•‹o sobre a

execu•‹o, de uma hierarquia que preserva a identidade do agente. Contra esta

imunidade do pensamento, temos a a•‹o. Em situa•‹o de efetivo desempenho, s‹o

exigidos do sujeito que se coloca em um contexto de produ•‹o atos que reivindicam a

integralidade de suas habilidades. O sujeito deve enfrentar o risco dessa abertura e

 premncia ˆ a•‹o.

Diante desse risco, o que antes era conhecido e seguro Ž revisado e

reorientado. O momento de agora, a necessidade atual modela os dados de um

 passado que Ž substitu’do por uma nova mem—ria, por um outro passado presente no

conjunto de decis›es e opera•›es desta realiza•‹o, decis›es e opera•›es estas que v‹o

se tornando ao mesmo tempo a pr—pria obra.

A transforma•‹o do sujeito da a•‹o em sujeito operante modifica o estatuto de

sua subjetividade. Se Ž ele quem tem de fazer algo, ele o faz n‹o apenas por si

mesmo, mas inserido dentro de um contexto de execu•‹o. E essa perten•a a uma

 busca, a uma corre•‹o de seu pensamento e de seus atos, essa ocasi‹o de a•›es

exercidas contra si e sobre algo que n‹o Ž ele mesmo, determinam a revers‹o da

autosuficincia do sujeito.

 Nesta revers‹o, atos de composi•‹o se efetivam por atos de execu•‹o. A

operatividade da experincia estŽtica se esclarece na reorienta•‹o do c—gito abstrato

da metaf’sica da arte para a materialidade dos atos, atŽ mesmo dos atos de pensar.

Assim, temos um Ò fazer tal que, ao fazer, ao mesmo tempo inventa modo de fazer.

Trata-se de fazer, sem que o modo de fazer esteja de antem‹o determinado e

imposto.141Ó

A simultaneidade entre o fazer e a inven•‹o do modo de fazer posiciona o

desempenho do sujeito operante na singularidade daquilo que realiza. Na realiza•‹o

da obra, aplicando-se as habilidades nas tentativas e esfor•os diante daquilo que lhe Žalheio e que ao mesmo tempo determina e circunscreve suas a•›es, o sujeito vai aos

 poucos se aproximando do Ó œnico modo em que o que se deve fazer pode ser feito e

o modo como se deve fazer 142Ó.

Ao invŽs da generalidade do pensamento, que esquematiza o mundo, o sujeito

se perfaz em a•›es que se especificam e especificam a sua atua•‹o. Cada vez mais

inserido em um contexto de elabora•‹o e execu•‹o, o agente transforma tentativas em

141 ES,59.142 ES,60.

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solu•›es, as quais s‹o seletivas e prescrevem restri•›es e possibilidades de escolhas e

atos.

A singularidade do que Ž feito, em seu acabamento, ao mesmo tempo em que

 proporcionou uma orienta•‹o da atividade do sujeito operante, resulta em obra.

Assim, Òa obra de arte, Ž claro, n‹o depende de nada que lhe seja exterior: n‹o

depende mais do seu autor, pois dele se separou para viver por si mesma; nem

depende de um fim ulterior, pois agora realizou tudo aquilo que devia realizar. (...) A

existncia da obra de arte Ž sua completude , e sua completude o cumprimento ou a

realiza•‹o de sua forma•‹o. (...) a obra Ž como deve ser, e tem tudo aquilo que deve

ter.143Ó

A proposta de Pareyson, ao transferir o conhecimento da arte para a

experincia estŽtica, reage contra uma concep•‹o mentalista que privilegia o acesso

meramente discursivo e prŽ-categorial de atividades que n‹o se definem a n‹o por sua

operatividade.

Para tanto, dentro do contexto reativo desse processo, ao se enfatizar o

desempenho formador, Pareyson parece chegar a uma outra metaf’sica a qual,

redimensionando o papel do sujeito, recai em um animismo da obra, concebida como

um indiv’duo, com a•›es pessoais. Da’ o paradoxo da obra como sujeito e objeto de

um outro sujeito.

Mas se observamos que Pareyson atribui a estŽtica uma dupla natureza, tanto

especulativa, te—rica quanto experiencial 144, vemos que sob o ponto de vista da

descri•‹o de sua experincia, a realiza•‹o da obra ativa procedimentos tais que podem

ser traduzidos e explicitados de uma maneira que transferem atributos concretos do

sujeito operante para a obra realizada. Isso somente se faz, porque evidencia a

realiza•‹o mesma como algo que engloba e determina atos, especifica atos e a

subjetividade, e, principalmente, retira a obra de sua mera posi•‹o de resultado. Entrea matŽria provocadora e resistente e a matŽria resultante de modifica•›es n‹o se

143 ES, 93-94.144  Os problemas da estŽtica,Martins Fontes, 1984, p. 15-27. Doravante PE.

 Neste mesmo livro, Pareyson afirma que Ò A estŽtica, longe de prescrever leis aoartista u critŽrios ao cr’tico, estuda a estrutura da experincia estŽtica e aqui seencontra com o problema da poŽtica e da cr’tica. Torna-se objeto da sua reflex‹o oesfor•o do artista para dirigir, segundo leis ou normas, sua pr—pria atividade e o docr’tico para delinear-se um mŽtodo consciente de leitura e de julgamento.ÓPE,22. Usoexperiencial  e n‹o experimental em raz‹o dessa dimens‹o da experincia concreta dofazer art’stico.

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 prolonga uma subjetividade sem contexto, mas uma contextura de atos, a realiza•‹o.

A amplitude do processo criativo dota a amplitude da obra compreendida como

sujeito da a•‹o, para que se enfatize a realiza•‹o mesma e n‹o a inalterabilidade do

sujeito operante durante sua atividade realizacional. Assim, Òa obra de arte Ž, antes de

tudo, um objeto sens’vel, f’sico e material, e que fazer arte quer dizer, antes de

qualquer coisa, produzir um objeto que exista como coisa entre coisas, exteriorizado

numa realidade sonora e visiva.145Ó

A obra como sujeito, pois, longe de um animismo, refor•a a dimens‹o

operante que atravessa todo o processo criativo e que se encontra no fato de ela ser

matŽria tanto em sua forma•‹o quanto em seu resultado. A•‹o e matŽria s‹o

indissoci‡veis, como modos complementares de se reagir a uma abstrata concep•‹o

da arte que deseduca o artista para o enfrentamento das situa•›es reais e concretas que

envolvem seu fazer.

Pareyson denomina Ôproblema da extrinseca•‹o f’sica da arteÕ essa dificuldade

hist—rica em enfrentar a materialidade da arte e do fazer 146. Segundo Pareyson, Ò a

antiga distin•‹o entre artes liberais e artes servis relegava para estas œltimas, que tm

necessidade do corpo para a execu•‹o manual em que elas consistem, a pintura e a

escultura, de modo que uma nobilita•‹o destas artes n‹o foi poss’vel sen‹o com uma

atenua•‹o de seu aspecto executivo e manual e uma reivindica•‹o do seu car‡ter Ô

mentalÕ, interior, espiritual. Esse processo de Ôespiritualiza•‹oÕ , iniciado no

renascimento, culminou no romantismo, que em cada arte acentuou o aspecto interior

e espiritual da pura cria•‹o.147Ó

Desse modo, reivindicando o car‡ter corp—reo e f’sico da obra de arte, a

extrinseca•‹o f’sica acaba por ser um pressuposto para a compreens‹o da amplitude

do processo criativo. ÒO ato art’stico Ž todo extrinseca•‹o, e o corpo da obra de arte Ž

toda a realidade dela.148ÓAssim, a nfase na obra, na obra atŽ como sujeito, Ž nfase no fazer, mesmo

contra o pensamento. Da’ o paradoxo. A materialidade da obra Ž a materialidade de

sua realiza•‹o, de seu contexto criativo. Logo, a obra n‹o Ž pura e simplesmente o

resultado do sujeito, porque n‹o Ž uma a•‹o unidirecional do sujeito que efetiva a

145 PE,55.146 PE,115.147 PE,115.148 PE,116.

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obra. A a•‹o de formar, de fazer Ž explicitada mais pela obra que pelo sujeito. Pois Ž

na obra que vemos a realiza•‹o, a atividade exercida, as habilidades efetivadas. Como

Pareyson afirma, Ò Ž preciso dar-se conta de que a obra inclui em si o processo da sua

forma•‹o no pr—prio ato que o conclui, e o que o processo art’stico consiste

 precisamente no acabar, no levar a termo. (...) A obra no seu acabamento n‹o Ž,

 portanto, separ‡vel do processo da sua forma•‹o, porque Ž, antes, este mesmo

 processo visto no seu acabamento.149Ó

Da’ o paradoxo que imediatamente se imp›e quando Pareyson diz que Ò a obra

se faz por si, n‹o obstante a fa•a o artista150Ó Ž desfeito sem que se perca sua ruptura

l—gica, mas se obtenha seu contexto de aplica•‹o.

 N‹o mais vista nem como um objeto inerte, passivo para a•›es do sujeito, nem

como mero resultado dessas a•›es, a obra Ž compreendida como contextura de atos de

sua forma•‹o, registro de atividades que a possibilitaram. Em busca do realiz‡-la, o

artista determinou seus atos frente ˆ concretude da situa•‹o de desempenho, correlata

ˆ concretude da matŽria.

Dessa maneira, a modela•‹o da obra acarreta a modela•‹o do pr—prio sujeito,

acarretando a irrevers’vel diretriz que ele deve fazer o que faz de acordo com o que

est‡ fazendo. Assim, Ò na arte n‹o h‡ outra lei sen‹o a regra individual. Isto quer dizer

que a obra Ž lei daquela mesma atividade de que Ž produto; que ela governa e rege

aquelas mesmas opera•›es da quais resultar‡; em suma, que a œnica lei da arte Ž o

critŽrio do xito.151Ó A obra acabada, a obra conclusa Ž o acabamento da intera•‹o

entre matŽria e sujeito. Nessa intera•‹o, escolhas e decis›es foram feitas. A obra nos

torna contempor‰neos desses atos seletivos. Essa Ž a•‹o da obra, representar-se na sua

teleologia, em seu xito, fazer-nos executar uma participa•‹o no finito conjunto de

sua realiza•‹o. A obra Ž o operar de sua realiza•‹o.

E para os que n‹o foram autores primeiros, e mesmo para o autor, abre-se a possibilidade de um desempenho, de uma atividade que a obra efetiva.

Enfim, a partir do momento que pensar a a•‹o Ž acompanhar o fazer, Pareyson

motiva a considera•‹o da obra como performance, integrando o processo criativo nos

estudos estŽticos.

149 PE, 147.150 PE,143.151 PE, 139.

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5- RAZÌO, FIC‚ÌO E HISTîRIA: A PROPOSTA INTEGRATIVA DE

R. KOSELLECK CONFRONTADA COM O PROJETO METACRêTICO DE

HAYDEN WHITE

ÒTodo conceito n‹o Ž apenas efetivo enquanto fen™meno lingŸ’stico; ele Ž

tambŽm imediatamente indicativo de algo que se situa para alŽm da l’ngua (...). Isso

 porque considero teoricamente err™nea toda postura que reduz a hist—ria a um

fen™meno de linguagem, como se a l’ngua viesse a se constituir na œltima inst‰ncia da

experincia hist—rica. Se assumirmos semelhante postura, ter’amos que admitir que o

trabalho do historiador se localiza no puro campo da hermenuticaÓ

R. Koselleck

As rela•›es entre fic•‹o e hist—ria nem sempre foram t‹o amig‡veis como hoje

se v em algumas teorias. Desde a condena•‹o plat™nica em  A repœblica, toda

supervaloriza•‹o do ficcional cifra um ato compensat—rio. O hodierno apelo ˆ fic•‹o

como instrumental te—rico tem favorecido abordagens mais variadas e muitas vezes

irreconcili‡veis. O recurso ao ficcional tem se constitu’do como revis‹o das categorias

hist—ricas.

Objetivamos, partir do contraste entre o projeto metacr’tico de Hayden White

e a proposta integrativa de R. Koselleck, proporcionar um horizonte compressivo

atravŽs do qual as complexas correla•›es entre conceito, fic•‹o e metodologia da

 pr‡tica historiog‡fica sejam debatidas, de forma a articular distin•›es mais produtivase operacionais.

Mais que uma op•‹o te—rica, os presuspostos envolvidos nesta

instrumentaliza•‹o do ficcional explicitam mudan•as na hist—ria da Hist—ria, na

Hist—ria das IdŽias152 com a emergncia de uma pr‡tica reflexiva que sustenta, para o

espanto de muitos e mistŽrio gozoso de outros, a identidade entre realidade e discurso.

152  Seguimos esta designa•‹o e a discuss‹o sobre a crise intelectual anglo-americana conf.LACERDA e KIRSHENER 1997: 5-22. 

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Primeiros, vamos fazer uma apresenta•‹o cr’tica do projeto te—rico de Hayden

White para, em seguida, a partir do contraste deste projeto com a proposta de

Koselleck, oferecer uma vis‹o mais global dos impasses sessentistas da Hist—ria das

idŽias, impasses esses que, como veremos, prolongam-se atŽ nossos dias.

1- MAPEANDO O PROJETO METACRêTICO DE HAIDEN WHITE

A prolongada crise do historicismo, agu•ada pelo debate sobre a cientificidade

da hist—ria, catapultou a proposta de Hayden White. J‡ no ensaio de 1966 ( ÒThe

Burden of HistoryÓ) White demonstrou a precariedade do Òplano mŽdio supostamente

neutro entre arte e cinciaÓ(WHITE 1994:41) no qual o historiador do sŽculo XIX se

enclausurava como guardi‹o de um passado idealt’pico para sonegar discuss›es sobre

sua pr‡tica.

Essa posi•‹o de assentimento produz o Òfardo da hist—riaÓ, um acomodamento

imobilizante, no qual, presos ˆ autoridade e ao factualismo, somos impedidos de

 perceber que Òo que constitui os pr—prios fatos Ž o problema que o historiador como o

artista (WHITE 1994:60)Ó tem de enfrentar para ordenar o campo de referncias que

disp›e em interpreta•‹o discursiva. A hostilidade ent‹o contra esse monismo n‹o Ž

simples rea•‹o, mas sim uma resposta.

A limita•‹o da objetividade e da generaliza•‹o na natureza da investiga•‹o

hist—rica e no  status epistemol—gico das explica•›es hist—ricas (WHITE 1994:42)153 

realinha as inten•›es de singularidade da Hist—ria para problemas de linguagem.

Pois, para se defrontar com a crise do historicismo, n‹o basta advogar a

 predomin‰ncia da representa•‹o anal’tica sobre a narrativista. Essa falsa oposi•‹o,

que na verdade Ž mais de intensidade que de forma, aparece em virtude de s— se

considerar Ódois n’veis convencionalmente distinguidos... o dos fatos(dados ouinforma•‹o) e o da interpreta•‹o (explica•‹o ou hist—ria contada acerca dos

fatos)(WHITE 1994:124)Ó. Assumindo a n‹o homogeneidade de seu campo, mas

laborando na complexidade de estrutura de seu discurso, o historiador participar‡

153  ƒ o que se pode notar nas discuss›es promovidas em filosofia e epistemologia da hist—riarealizadas por Louis Mink, Willian Dray e Arthur Danto em meados da dŽcada de sessenta, e que White retoma.

Posteriormente, em 1973, o decano dos estudos hist—ricos liter‡rios R. Wellek vai assumir as limita•›es doconhecimento hist—rico duvidando de a historiografia liter‡ria poder constituir uma disciplina acadmica. Conf.ensaio de S. Schimidt ÒSobre a escrita de Hist—ria da literaturaÓ in OLINTO 1996:101-132.

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 positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da hist—ria(WHITE 1994: 53)

 pela ado•‹o da construtividade de seu discurso.

ƒ em  Meta-hist—ria. A imagina•‹o hist—rica no sŽculo XIX   (1973) que este

deslocamento fundamental ser‡ apresentado e aplicado. No livro h‡ o exerc’cio de, a

 partir de uma teoria tropol—gica do discurso, explicar o processo de argumenta•‹o de

autores basilares para a constru•‹o e desconstru•‹o da atividade historiogr‡fica. Estes

autores em sua escrita n‹o s— seriam compendiadores de dados ou te—ricos. Ao

mesmo tempo em que suas interpreta•›es constitu’am o acesso ao passado, o modo

como se estruturavam denunciava estratŽgias de organiza•‹o de seus pensamentos por

meio determinada ret—rica. A Òconscincia hist—ricaÓ do historiador, que cria sua ‡rea

de atua•‹o com maior autonomia frente ao seu contexto imediato, exige uma

atividade de conceptualiza•‹o que reivindica o incremento de sua express‹o. O

aprimoramento e abertura de campos de investiga•‹o se refletem na individualiza•‹o

do discurso hist—rico. As tens›es e as distin•›es para esta individualiza•‹o melhor se

notam se controlarmos as referncias a este percurso em sua singulariza•‹o ret—rica.

O contexto primeiro Ž o texto. A constitui•‹o do trabalho hist—rico deve partir do

entendimento da constru•‹o discursiva, pois este trabalho nada mais Ž que Òuma

estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosaÓ( WHITE 1995:11).

A nfase na lingŸisticidade da pr‡tica historiogr‡fica por parte de White segue

o linguistic turn 154que comanda as rea•›es nesse sŽculo ˆs aporias de uma abordagem

mentalista, que privilegiava a constitui•‹o da conscincia dos fen™menos por sobre os

fen™menos mesmos. A complexa passagem e ruptura entre mentalismo e linguagem

exige a fenomenologia dos atos envolvidos na produ•‹o de sentido, ao invŽs de um

dualismo sujeito-objetivo no qual a objetividade do conhecimento se perfaz na

atividade descritiva de uma subjetividade educada e hegem™nica (GADAMER 1998,

 primeira parte). N‹o havendo mais essa estrita correspondncia entre sujeito e objeto, pois o

objeto n‹o Ž dado nem o sujeito cognoscente um universal, abre-se o caminho para o

significado do significado, a metalinguagem que se constitui no campo de referncias

do intŽrprete. Tal reorienta•‹o que o linguistic turn efetiva faz com que a legitima•‹o

do saber n‹o se reduza ˆ quantifica•‹o emp’rica dos resultados, posto que h‡ a

transferncia valorativa para o empreendimento intelectual e cr’tico do que se realiza.

154  Conf. Martin Jay ÒShould intellectual History take a linguistic turn? Reflection on thehabermas-Gadamer debateÓin La CAPRA and KAPLAN, S. 1995:87-110)

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Ao invŽs de se avaliar o sucesso de uma pr‡tica interpretativa pela quantidade de

dados recolhidos e classificados, interroga-se a gnese heur’stica, as escolhas e as

 possibilidades efetivadas na elabora•‹o intelectual da express‹o.

Desta maneira, fazendo uma hist—ria da hist—ria como forma de fundamentar

sua nova atitude diante da pr‡tica historiogr‡fica, White vai demonstrar que tanto os

autores mais emp’ricos como os mais metaf’sicos n‹o eram meramente

conteud’sticos: a compreens‹o do que fizeram passa pelo entendimento do modo

como realizaram seus discursos. E em suas obras mesmo h‡ o realce da dimens‹o

construtiva do que empreenderam por uma reflex‹o sobre a linguagem (WHITE

1995:13). Assim, tanto a preocupa•‹o documental quanto a cr’tica apelam para a

centralidade do suporte expressivo. A linguagem n‹o Ž um meio transparente para a

veicula•‹o de preposi•›es e dados ( WHITE 1987:1-57). ƒ preciso a formatividade do

discurso como ato contempor‰neo da reflex‹o empreendida em uma investiga•‹o.

Por isso, e em virtude dessa prerrogativa da linguagem, compreende-se a

defesa da prosa da hist—ria preconizada por White. Se Óo pensamento permanece

cativo do modo lingŸ’stico no qual procura apreender o contorno dos objetos que

 povoam seu campo de percep•‹oÓ (WHITE 1995:14), n‹o h‡ nem a op•‹o de se

aferir algo sem a remiss‹o ao verbo. Logo, a materialidade do discurso est‡ em sua

modaliza•‹o. A pris‹o da linguagem Ž a intensifica•‹o da condi•‹o pressupositiva da

 palavra como conhecimento. Os objetos acontecem somente pelo contexto que os

significa em um discurso, assim como as proposi•›es autorais apenas existem em

fun•‹o da trama interpretativa de uma obra.

Ora, a radicaliza•‹o do construtivismo lingŸ’stico coloca em quest‹o alguns

fundamentos da pr‡tica historiogr‡fica, marcadamente fundamentada por referncias a

fontes documentais. Respondendo ao Òtorpor te—ricoÓ de seus contempor‰neos, esse

construtivismo refuta a evidncia emp’rica como ponto de partida (e muitas vezes dechegada) da investiga•‹o hist—rica. O intervalo e a descontinuidade entre

representa•‹o e realidade Ž reposta. ORA, TEMOS A DESCONTINUIDADE

ENTRE REPRESENTA‚ÌO E A REALIDADE, MAS A CONTINUIDADE

ENTRE REPRESENTA‚ÌO E LINGUAGEM.155 

155  Esta rela•‹o n‹o proporcional entre os termos Ž significativa. O modelo anal—gico entre

fic•‹o e hist—ria, utilizado para transformar a pr‡tica historiogr‡fica, como n‹o pode propor uma superposi•‹ototal dos termos comparantes, Ž administrado Ž fun•‹o de seus limites. ƒ quando o campo conceptual dointŽrprete Ž submetido ˆ um projeto que n‹o se informa de sua historicidade. V. KOSELLECK 1982.

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Para coordenar atos de significa•‹o agora reunificadas, White retoma uma

figura•‹o fenomenol—gica cara ˆ lingŸ’stica de inspira•‹o chomiskiana: a dualidade

dos horizontes aparente e profundo( WHITE 1995:11,13). O realismo da

representa•‹o est‡ em sua estrutura•‹o. A emergncia de dados e conceitos n‹o esgota

o discurso hist—rico. A disposi•‹o e organiza•‹o dos conteœdos Ž o sobredito no dito

do historiador. O enunciado n‹o esgota a enuncia•‹o. A pluralidade de n’veis do

discurso hist—rico visto como representa•‹o refuta sua redu•‹o a uma evidncia posto

que o dado proposto ou confirmador n‹o Ž o resumo de um pensamento. ƒ para a

evidncia lingŸ’stica, suporte das concretiza•›es de sentido do discurso, que Ž preciso

voltar os olhos.

Contudo, a evidncia lingŸ’stica n‹o Ž neutra. Ela formaliza intui•›es poŽticas

que a sobredeterminam (WHITE 1995: 14). Assim, Òos elementos

inconfundivelmente poŽticos do trabalho hist—rico encontram-se na estrutura

 profunda da imagina•‹o hist—rica (WHITE 1995:13).Óƒ para uma imagina•‹o

hist—rica como fundamento da pr‡tica representacional no ocidente que ruma a

teoriza•‹o de White, em qualquer Žpoca. O a priori  hist—rico Ž a  poiesis. A

metahist—ria Ž a revela•‹o da poŽtica da hist—ria. O trabalho do historiador distende-se

ao se divisar o labor da fic•‹o.

Partindo da impossibilidade de separar teoria e pr‡tica da hist—ria (WHITE

1995:14, White interrroga-se sobre a gnese e inteligibilidade da representa•‹o

historiogr‡fica, constatando que os temas e problemas da epocalidade oitocentista

 podem ser generalizados como situa•›es paradigm‡ticas, dada a impossibilidade de

separar a explica•‹o de algo sem sua representa•‹o(WHITE 1995:18).

Desse modo, antes de tudo, o historiador Ž ainda um escritor. A escrita Ž o

registro de um esfor•o de individua•‹o entre as exigncias dos limites/possibilidades

da m’mesis  na tradi•‹o ocidental. O recurso ˆ m’mesis, mesmo ap—s a ir™nicadesvaloriza•‹o feita pelo Iluminismo ou o fide’smo cient’fico do positivismo,

continua como apelo e pressuposto. A quest‹o da representa•‹o, agora indexada ao

suporte lingŸ’stico para sua efetiva•‹o (e n‹o mais na conscincia, na mente)

circunscreve a apreens‹o das formas da escrita hist—rica.

Em virtude disso, WHITE em sua poŽtica da hist—ria em  Metahist—ria  busca

formular uma teoria geral da estrutura da obra hist—rica (WHITE 1995:18). Ao invŽs

de distin•›es tem‡ticas ou periodiza•›es de categorias culturais genŽricas ( WHITE1995:434), simplesmente rotulando a obra de um determinado historiador como

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'rom‰ntica' ou 'idealista' ou 'liberal' ou 'conservadora', Ž preciso "revelar a din‰mica

dos processo de pensamento que o levaram a redigir suas hist—rias de uma certa

maneira"( WHITE 1995:434). Concebendo-se a atividade historiogr‡fica dessa

maneira altamente convencionalizada (no sentido de sua mensagem ser codificada

com sinaliza•›es e marcas que concretizam sua express‹o) pode-se formaliz‡-la. A

teoria geral da estrutura da obra hist—rica Ž esta formaliza•‹o que procura dar conta

dos tipos poss’veis, das possibilidades do campo historiogr‡fico. Situa-se tanto como

impedimento a um realismo ontol—gico absoluto do discurso hist—rico, apontado na

cr’tica epistemol—gica que a filosofia anal’tica empreendeu, como tambŽm resposta a

esta cr’tica, pois o realismo lingŸ’stico agora evidenciado no discurso hist—rico,

coloca a hist—ria como cr’tica das representa•›es, como meta-hist—ria.

A fim de combinar o recuo da hist—ria diante de sua pretens‹o de

cientificidade, mas sem perder os par‰metros de uma legitima•‹o disciplinar, com o

recrudescimento do car‡ter aproximadamente mais ficcional de seu discurso, WHITE

vai buscar na formaliza•‹o ret—rica o fundamento de sua teoria da hist—rica. Aqui

entra o tropol—gico, como classifica•‹o das express›es em modelos de estratŽgias

utilizadas, pois a inteligibilidade que neutraliza a oposi•‹o entre fic•‹o e Hist—ria

desenvolvida por White Ž a da integratividade de ambas em uma tipologia. O

refinamento da teoria Ž uma tropologia. A esquematiza•‹o Ž a explicita•‹o dos

 processos co-ocorrentes de constru•‹o do discurso hist—rico. Tornam-se mutuamente

dependentes as atividades de dimensionar a fic•‹o dentro da hist—ria e sua

formaliza•‹o.156 

Para acomodar tantas exigncias temos duas classifica•›es na teoria de White.

Uma dos tipos de explica•‹o e outra dos tropos de base para esta explica•‹o.

Deve-se ver esta dupla classifica•‹o (WHITE 1995:17-56 e WHITE 1994:65-

95) ent‹o como o esfor•o de compreens‹o da din‰mica representacional do discursohist—rico que, em sua racionalidade e figurativiza•‹o constituintes, que exige uma

 pluralidade de n’veis para sua estrutura•‹o.

 Na primeira, o "estilo historiogr‡fico representa uma combina•‹o particular

de modos de elabora•‹o de enredo, argumenta•‹o e implica•‹o ideol—gica (WHITE

1995:43)". A forma tripartida ultrapassa o dualismo conceito/imagem, realinhando

motiva•›es ficcionais, l—gico-argumentativas e pol’tico-efeituais.

156  Tarefas mutuamente implicadas e exclusivas explicitam a dificuldade de coordenar objetivos

novos com procedimentos negados de outrem. A modernidade encontra aqui sua problem‡tica.

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A divis‹o tripartida n‹o Ž apenas uma reuni‹o das faculdades humanas,

confirmada pelo kantismo de White (WHITE 1994:37). A divis‹o aponta para uma

hierarquia. A visualiza•‹o das partes se faz em fun•‹o do fator prefigurador poŽtico.

H‡ uma afinidade eletiva entre os tipos de explica•‹o a partir da domin‰ncia do

gnero discursivo, da forma narrativa. A gram‡tica Ž orientada pela poŽtica.

2- OS LIMITES DO TROPOLîGICO157 

Contudo essa prevalncia do gnero discursivo Ž ainda antecedida pela

 precedncia do tropol—gico. Antes das explica•›es que s‹o as express›es moldadas

em suas conceptuais e formais, temos "as estruturas profundas da imagina•‹o

hist—rica num dado per’odo de sua evolu•‹o" (WHITE 1995:45). Os tropos mobilizam

o pensamento para o controle do campo de referncias e atos de significa•‹o prŽvios

ao historiador. Se "a met‡fora Ž essencialmente representacioal, a meton’mia Ž

reducionista, a sinŽdoque Ž integrativa e a ironia e negacional (1995:49)Ó, o

historiador, ao expressar sua interpreta•‹o, vale-se delas como constru•‹o da

teleologia de seu discurso. Pois a figuras orientam a intencionalidade da express‹o

 para os protocolos lingŸ’sticos unificados "que podem ser chamado de linguagens da

identidade (met‡fora), da extrinsecalidade (meton’mia) e da intrinsecalidade (

sinŽdoque)Ó (WHITE 1995:50).

White prefere se definir como um gram‡tico defrontando com uma nova

l’ngua. PorŽm, ele realiza o inverso de uma sistematiza•‹o. Seu procedimento de

formaliza•‹o vai de classifica•‹o em classifica•‹o distinguindo componentes de

componentes atŽ chegar a uma n‹o divisibilidade prim‡ria onde processos simples de

sinaliza•‹o bem caracteriz‡vel s‹o encontrados e que confirmam a idŽia geratriz

 procurada nesse percurso formalizado.Ao colocar em discuss‹o o realismo historiogr‡fico, delineado por sua rela•‹o

ir™nica para com a fic•‹o ou com discursos que se valiam da fic•‹o, White tornou

compreens’vel a complementaridade da recusa da  poiesis  e estrutura•‹o do estilo

historiogr‡fico. Se "toda filosofia da hist—ria contŽm dentro de si os elementos de uma

hist—ria propriamente dita ( WHITE 1995:434)" e vice-versa, o comum unifica e

157

  La Capra ,em seu ensaio ÒRhetoric and HistoryÓ (La CAPRA 1985:15-43) procurouapresentar os v‡rios usos e objetivos dessa retomada da ret—rica como linguagem comum e l—gica de investiga•‹ocient’fica presente na emergncia (surto???) do paradigma liter‡rio na Hist—ria e nas Cincias Humanas.

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torna-se o fator primordial por sua abrangncia. Pode-se atŽ ver o texto hist—rico

como um artefato liter‡rio pois a evidncia da construtividade generalizada das

formas efetiva esta nova gram‡tica.

Mas da constata•‹o das prerrogativas do material ficto dentro dos discursos atŽ

sua expans‹o como horizonte explicativo das representa•›es h‡ um salto que

obscurece muitas quest›es de nossa d’ade hist—ria/fic•‹o.

O posicionamento axiologicamente neutro e puramente formalista defendido e

 praticado por H.White em  Metahist—ria, (WHITE 1995: 441) torna amb’gua sua

rela•‹o com a cientificidade da Hist—ria . Ironicamente, em um projeto ir™nico, a

 perspectiva aberta para alŽm da unilateralidade argumentativa Ž interrompida pelo af‹

classificat—rio. Assim como o dilema do realismo historiogr‡fico era como legitimar

um conhecimento, pois o estudioso estava nele inclu’do "de um modo que o estudioso

do processo natural n‹o estava"(WHITE 1995:59), o posicionamento axiologicamente

neutro de uma classifica•‹o empreendido por White , retoma o mesmo modelo das

cincias f’sico-qu’micas, prolongando o  status  desconfort‡vel que antes criticou.

Apesar de reivindicar padr›es de interpreta•‹o n‹o mais na oposi•‹o entre fic•‹o e

realidade para erigir seu campo de conhecimento, White ainda se vale do ideal de

cincia de um tipo de racionalismo cl‡ssico formulado na querela entre Cincias do

Esp’rito versus Cincias da Natureza.

A inclus‹o do  ficto  como dupla classe fundante da atividade historiogr‡fica

funciona n‹o s— como explicita•‹o de sua premente import‰ncia como tambŽm revela

o intuito de refor•o explicativo da cientificidade das conclus›es que White chegou

 pela revaloriza•‹o do poŽtico. Ë unilateralidade do realismo historiogr‡fico

constru’do em cima da figuratividade das representa•›es, temos a unilateralidade da

constru•‹o te—rica de White representada pela formaliza•‹o tropol—gica da

linguagem/imagem como ato-conceito.Pois a amplitude do alcance da proposta de White se d‡ pela redu•‹o do

espa•o da fic•‹o ˆ sua emergncia lingŸisticamemte formalizada. A generaliza•‹o da

evidncia lingŸ’stico-tropol—gica substituiu o preceitu‡rio cl‡ssico do c—gito postural

da neutralidade cient’fica que decretou a legitimidade de seu conhecimento pela

exclus‹o do incaracter’stico, do ficcional. Mas conservando o ide‡rio de objetividade

 pela normaliza•‹o da componente imaginativa em um esquema prŽ referenciado. A

tropologia, ao mesmo tempo que insere a primordialidade do figurado frente aoconceptual, conceptualiza o figurado, determinando-o dentro de uma esfera genŽrica

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de atua•‹o. A reinser•‹o do ficcional dentro do discurso hist—rico, e dentro da

Hist—ria, se d‡ pela proposta de uma idealiza•‹o do imaginativo - retirado de seu

contexto de produ•‹o - atravŽs de uma esquematiza•‹o prŽvia de sua possibilidades

traduzidas em uma grade conceptual-ret—rica. Esta grade se torna a condi•‹o de

existncia e espa•o de a•‹o do ficcional. H‡ o pragmatismo da reinser•‹o do ficcional

 pois ele funciona como alargamento das possibilidades referenciais e da pr‡tica

observacional que rendem uma escrita pass’vel de distinguir atos de sentido

representativas de contexto-suportes de sentido, de estruturas de eventos. A

construtividade lingŸ’stica dos fen™menos possibilita a explicita•‹o da

homogeneidade formal que constitui a signific‰ncia dos referentes. Enfim, realidade e

discurso ficam em pŽ de igualdade.

De acordo com este modelo de investiga•‹o, o historiador, c™nscio da basilar

atividade figurada na representa•‹o do que quer explicar, ataca diretamente as

constitui•›es discursivas e a interpreta•‹o da realidade que elas formulam. H‡ uma

metamorfose em sua pr‡tica anal’tica, pois agora exp›e processos de representa•‹o

n‹o mais substantivados em uma moldura explicativa final. Temos a ruptura com a

correla•‹o estreita entre texto e contexto, entre o nome e as coisas, tornando mais

complexas e menos imediatas estes momentos maiores da ficcionaliza•‹o da

realidade.

3- TEXTO E CONTEXTO158 

O texto j‡ n‹o Ž mais um res’duo que reconstr—i um evento. O texto mesmo Ž

um acontecimento de sentido no qual se alinham diversos momentos e tens›es

envolvidos no ato de sua realiza•‹o figural. O contexto n‹o Ž o exterior do texto. ƒ o

metatexto que explicita e explora essa transforma•‹o do sentido em orienta•‹o

discursiva. Tudo agora Ž texto, mas com distin•›es frente ˆ sua elabora•‹o eefetiva•‹o discursiva.

As redefini•›es de texto e contexto ficam mais claras no ensaio ÒMethod and

ideology in intellectual History: the case of Henry Adams Ò(1982). 159 Este ensaio foi

 publicado em  Modern European Intellectual History, colet‰nea de ensaios que, ao

mesmo tempo que demonstrava a d’vida dos Ò novos historiadores das idŽiasÓ norte

158  Neste t—pico seguimos ÔRethinking intellectual history and reading textsÕ in LA CAPRA 1995:

47-85. 159  Republicado em ÒThe content of the formÓ(WHITE 1987). Seguimos esta edi•‹o em nossascita•›es.

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americanos para com as revis›es e desconstru•›es que ocorriam na Europa,

examinava as contribui•›es e perspectivas nesse intercampo que agora se forma no

cons—rcio de v‡rias disciplinas - movimento inverso ˆ subservincia das cincias

humanas ˆs da naturezas no positivismo) tais como teoria da literatura, antropologia,

hist—ria, sociologia, filosofia, abrangidas incomodamente sob o vŽu de Estudos

culturais.

Para White, a amplitude semiol—gica de uma concep•‹o de texto obriga o

historiador a tratar o texto menos que um efeito de causas mais b‡sicas ou como

reflexo de uma estrutura mais fundamental para v-lo como uma complexa media•‹o

entre v‡rios c—digos por meio dos quais a realidade se torna fact’vel e pass’vel de ter

significado (WHITE 1987:202).

 Neste ponto compreende-se o contexto intelectual ao qual White reagiu. A

 persistncia de regras de cientificidade empiristas nas cincias humanas - presente no

debate entre o historiador social e o das idŽias - nas quais os textos s‹o dados para a

reconstru•‹o de mentalidades passadas160, obstruiu a problematiza•‹o sobre a

referncia e sua representa•‹o, quest›es pr—prias da natureza lingŸ’stica da

textualiza•‹o de significados.

Sem se ater a esta singularidade, o empirismo n‹o percebe distin•›es que

modificam incrivelmente qualquer an‡lise. Acostumado a grandes volumes de dados e

informa•›es, o empirismo utiliza o texto como documento para confirmar uma teoria,

uma perspectiva adotada de antem‹o.

Por isso transforma o texto em conteœdo, em dados marcados e reconhecidos

fora de seu contexto de produ•‹o, contexto este que segue uma tradi•‹o de escrita,

uma hist—ria de interpreta•›es. O texto reduz-se a um conteœdo como evidncia que

reflete sua apreens‹o explicativa.

A desvantagem dessa apreens‹o, ao reduzir todos os textos a reflexos de algoque eles n‹o elaboram, est‡ em igualar todos os textos. A elimina•‹o da diferen•a

figural do texto, marca de sua singularidade, corresponde ˆ objetiva•‹o como

conhecimento.

Com isso n‹o leva em conta que n‹o h‡ conteœdo informe, conteœdo ou dado

ou informa•‹o sem contexto intelectual. No caso do empirismo temos n‹o uma

ausncia de teoria, mas um monologismo explicativo que cifra a heterogeneidade de

160  Conf. ensaio ÒHist—ria liter‡ria e hist—ria das mentalidadesÓ de F. Mayer em OLINTO 1996

(211-221).

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dados em uma œnica moldura explicativa, preconizando que o investigador tem de

 possuir um œnico mŽtodo para lidar com a caoticidade e dispers‹o do material que

estuda. O saber aqui Ž a averigua•‹o que confirma a precedncia de uma prŽ - cincia,

de uma œnica hip—tese.

Os v‡rios c—digos enfeixados por um texto, pela tessitura do texto,

demonstram a necessidade de um pluralismo metodol—gico quando se trata de lidar

com fatos que s‹o feitos de linguagem.

Da mesma forma o contexto161. Se se dissolve a causalidade monorientadora

do texto, dissolve-se tambŽm a dicotomia texto e contexto. O olhar se volta agora

 para a situa•‹o do intŽrprete com o texto, para a constitui•‹o do horizonte de

 perguntas e procedimentos de an‡lise do intŽrprete. H‡ um contexto integrador que Ž

a situa•‹o de interpreta•‹o que reœne o texto e o intŽrprete. 162 Ao invŽs da dicotomia

texto/contexto temos v‡rios textos com espec’ficos c—digos e respectivas escritas

como pr‡ticas de representa•›es que medeiam interpreta•›es, constru•›es de

significados de significados.

Do White do Metahist—ria ao œltimo White, de Figural Realism. Studies in the

 M’mesis Effect (1998) vislumbra-se o incremento das implica•›es da nega•‹o da

rela•‹o texto/ contexto. Podemos visualizar o percurso intelectual de White como

varia•›es em torno desse tema que lhe Ž caro.

Inicialmente coloca-se a defesa da tese narrativista, da economia figurativa do

discurso hist—rico contra o predom’nio de um modo anal’tico historiogr‡fico.

 Metahist—ria,  empreedendo a hist—ria da historiografia, demonstra que este modo

anal’tico, produzindo uma ret—rica antiret—rica, permanece dentro da continuidade do

campo abarcado pela posieis, facultando-nos uma imagina•‹o hist—rica que apela para

o ficcional mesmo que para recus‡-lo.

4- RETOMANDO O PERCURSO

PorŽm, ainda White integra uma descri•‹o dos procedimentos intelectuais com

os figurativos. O texto de White em  Metahist—ria coordena os coment‡rios sobre os

conceitos empregados pelos autores e as estratŽgias discursivas. A revolu•‹o

copernicana no campo historiogr‡fico, que se avista na ficconaliza•‹o da hist—ria, Ž

detida no ’mpeto de se ultrapassar. White cita menos autores para justificar suas

161  V. GADAMER 1997:449.162  V. GADAMER 1987

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interpreta•›es, dando maior espa•o para seu pr—prio texto, favorecendo uma maior

intimidade com a caracteriza•‹o dos procedimentos expressivos que analisa bem

como a abertura de espa•os de teoriza•‹o e experimenta•‹o. N‹o padroniza as

chamadas das subsec•›es, intitulando-as com menor grau de par‡frase em rela•‹o ao

que vai ser tratado, como se fossem met‡foras do que vai ser dito. Elimina por

completo as chamadas notas de rodapŽ, obrigando o leitor, na medida em que

 prossegue com a leitura, a estabelecer o subtexto, os problemas e os conceitos

familiares a White. O texto de White intervŽm em uma tradi•‹o j‡ comentada e citada

como autoridade, utilizando de pressupostos em parte referidos e citados. White desse

modo atualiza a discursividade da escrita historiogr‡fica, que Ž dependente da

fluncia, de expor, em texto, idŽias, de realizar uma interpreta•‹o medeada pela

linguagem.

H‡ todo um esfor•o, desde  Metahist—ria  de substitui•‹o de linguagens. Os

conceitos emergentes das Cincias da Linguagem s‹o adotados como termos-chaves e

 posicionados quase que de uma maneira autoexplicativa dentro das frases, como

termos fortes do discurso. Eles n‹o s— classificam o que se analisa, como fazem

referncia aos processos de representa•‹o que s‹o utilizados nos autores estudados. A

transposi•‹o destes termos Ž refor•ada pela redund‰ncia de seu uso. A alta freqŸncia

dos termos ret—ricos, repetidos e diferenciados, agora n‹o referidos a obras liter‡rias,

mas a autores , cria estabilidade de referncia, posto que funcionam como

interconceitos163.

O sucesso da explica•‹o Ž correlativo da imagem de coes‹o fornecida pelo

campo interconceptual. Os termos ret—ricos s‹o agora imbu’dos n‹o s— de uma fun•‹o

explicativas e descritivas, mas de uma filosofia das formas. Eles s‹o pontos de

convergncia do sentido e da orienta•‹o das formas. Essa plasticidade e

multireferencialidade corrobora a constru•‹o discursiva de White de tratar de v‡riostemas a cada momento, alterando o centro de orienta•‹o na leitura para focalizar ou

trazer para o texto- base tudo o que consignar para sua interpreta•‹o, eliminando,

consequentemente a diretriz œnica, matiz redutora que orienta a objetividade do

discurso em fun•‹o de suas prescri•›es.

163  Designa•‹o que G.Bachelard usou em sua fenomenologia da din‰mica da inteligibilidade.Assim como uma tŽcnica Ž um teorema reificado, uma teoria Ž a coes‹o de a•›es. A defini•‹o dos atos de

racionaliza•‹o dentro de uma teoria fica mais bem designada por interconceitos. Koselleck retomaessa diferencia•‹o fenomenol—gica de n’veis de conceptualilidade em Future past .

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Essa flutua•‹o de foco Ž vigiada pelo constante criticismo que atua co-

 presentemente no discurso anal’tico. Assim como apresenta, situa, classifica, discute,

aproxima, White tambŽm avalia. Presentificando os processos representacionais

utilizados pelos autores dos Oitocentos, White participa da querela fic•‹o/hist—ria

suplementando-a com as discuss›es contempor‰neas. Os atos ainda sem conceitos que

encontra e os conceitos ainda sem objeto com os quais se depara s‹o revestidos pela

tropologia. O criticismo aqui Ž a marca da atualidade expandida e refor•ada com veto

e valor.

ƒ o que se pode perceber pela macroestrutura•‹o de  Metahist—ria. As partes

centrais (entre o pref‡cio e o pr—logos como manifestos te—ricos e a conclus‹o

retrospectiva) ao mesmo tempo em que demarcam as temas e as Žpocas que v‹o ser

enfrentados, caracterizam-nas, principalmente nos subt—picos, a partir da

nomenclatura dos gneros liter‡rios e dos tropos. Assim a historiografia ocidental,

 procurando responder aos limites organicistas do racionalismo iluminista, buscou sua

autoconscincia nas formas narrativas de sua express‹o, mas valendo-se de tropos

 para moldar seu discurso. Esse trajeto Ž contado atravŽs da operacionalidade hist—rica

da representa•‹o, advista como universal meio e modo de construir significados. O

figurativo Ž o incremento do intelectual. Por isso acompanhar a tablatura tropol—gica Ž

dissecar o refinamento intelig’vel dos autores.

Essa conceptualiza•‹o da hist—ria por meio da ret—rica ser‡ radicalizada por

White. A centralidade do ficcional em sua fun•‹o metaexplicativa - que reœne as

tarefas de material ordenante de um discurso e reflex‹o cr’tica sobre a representa•‹o -

gradativamente predomina como alvo das abordagens de White. Ele menos estuda

casos situados ou publica livros totalmente tem‡ticos que se adentra no campo da

discuss‹o de teorias sobre as representa•›es. Gradativamente White Ž mais um

epistem—logo e depois, predominantemente, um cr’tico liter‡rio.A discuss‹o de teorias parte, em um primeiro momento, como se pode ver em

Tr—picos do discurso, para o esquadrinhamento de propostas que est‹o em

alinhamento ou em colis‹o com este paradigma estŽtico que come•a a se desenhar nas

Humanidades frente ao seu movimento de busca de identidade pr—pria sem mais

refugiar-se em padr›es de cientificidade das cincias da natureza (GADAMER 1998).

ƒ o que se depreende da leitura do pref‡cio de Tr—picos, no qual ele vai retomando e

debatendo idŽias de Piaget e E. Thopmson. Note-se qu‹o estrategicamente est‹ocolocados estes dois autores. O cientista Piaget Ž utilizado para abalizar essa

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 prerrogativa da fic•‹o no homem, enquanto que o outro, de uma linha mais social que

intelectual, apesar das inova•›es, perpetua o estreito materialismo causal que exige de

toda hist—ria uma justificativa fora de seu discurso.

5- TRANSFORMA‚ÌO DO TROPOLîGICO EM METADISCUSSÌO

TEîRICA164 

Prosseguindo, White vai ocupar-se mais detidamente dos temas que tratou

com maior evidncia no pref‡cio e no ep’logo de  Metahist—ria. Se neste livro a

epocalidade tratada impedia uma verticaliza•‹o, agora pode distend-la. Da’ o car‡ter

de manifesto que o artigo ÓThe historical text as Literary ArtifactÓ ( Tr—picos do

discurso). O que n‹o pode ser realizado em  Metahist—ria aqui Ž anunciado. A

economia figurativa do discurso hist—rico Ž radicalizada para a ficcionaliza•‹o da

hist—ria. Da ambigŸidade de exigncias cient’fico-metodol—gicas temos instaura•‹o

do regime declarativo-ensa’stico no qual o alvo da escrita Ž a defesa e a exposi•‹o de

sua pr—pria enuncia•‹o. Aqui entramos na realidade proposicional de um racioc’nio

autocentrado naquilo que afirma, invalidando todo e qualquer ajuizamento cr’tico que

n‹o leva em conta as regras e as prescri•›es que ele mesmo efetivou. N‹o h‡

constraste ou refuta•‹o, mas sim o modo de satura•‹o expansiva do que se acatou pela

insaciabilidade anal—gica de sua generaliza•‹o. Os ensaios se encaminham para

 promover a evidncia do que apresentam pela justaposi•‹o de conceitos e pelas

 possibilidades e suas distin•›es, oferecendo a coopera•‹o de um rigor expositivo e

veracidade das express›es. O sistema afirmativo-constatativo abre a relatividade deste

 projeto que apela para uma evidncia universalizante.

Assim, a defesa da narratividade na hist—ria transforma-se na defesa da

 pr—pria narratividade, a busca da fic•‹o na hist—ria se converte na contempla•‹o da

 pr—pria fic•‹o. White165 refina os conceitos antes utilizados a partir de contribui•›esdiversas da teoria da literatura e da semi—tica com crescente contribui•‹o da escola

francesa p—s-estruturalista, conceitos estes que v‹os sendo desfilados em seus

fich‡rios-ensaios.

164  LaCAPRA soube bem acompanhar as diferen•as no percurso de White, comprovando o dŽbito

da tropol—gica com o monocausalidade de um programa positivo, onde um n’vel do discurso (o tropol—gico) Ždeterminativo em œltima inst‰ncia. Este estruturalismo genŽtico cede a gora a este novo causalismo que revigora

na d’ade interpreta•‹o/c—digo. V. La CAPRA 1985:34.165  Fic•‹o e narrativa cooperam nessa t—pica. Como se v nos ensaios ÒAs fic•›es da

representa•‹o factualÓ (1976), e nos textos iniciais de The content of the form ( 1987).

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Mesmo nos ensaios mais situados de Os tr—picos do discurso  ( pp 153-252)

este novo estilo se afirma. Basta contrastar com  Metahist—ria. Aqui existe uma

disciplina recorrente. N‹o mais aquela t‡tica de traduzir em termos ret—ricos e

liter‡rios o que poderia ser expresso em outros conceitos. Mas uma disciplina de

naturalizar o estranho, de introduzir constantemente n‹o s— os termos, como tambŽm

os temas mais atuais quando se depara com o Iluminismo, Vico, legitimando, assim, a

 perspectiva adotada por este novo paradigma . Abandonando a monocausalidade

explicativa positivista e marxista, White reitera a prevalncia da estrutura•‹o

lingŸ’stica como determinante do contexto intelectual que aborda.

Feito um emblema dos novos tempos, Tr—picos do discurso  finaliza

resenhando Foucault e reagindo com hesita•‹o aos te—ricos da literatura mais radicais.

O ensaio ÒO momento absurdista na teoria liter‡ria contempor‰neaÓ (WHITE 1994

285-306) procura dimensionar o niilismo e a iconoclastia de grande parte cr’tica

liter‡ria contempor‰nea, maior parte dela vindo do rescaldo estruturalista e agora

empreendendo um v™o onde Òtudo Ž admitido. Essa cincia de regras n‹o tem regras

(WHITE 1994:285)Ó. White ironicamente caracteriza o eclos‹o da cr’tica absurdista ,

descrevendo seus radicalismos como redu•›es onde Òa literatura Ž reduzida ˆ escrita,

a escrita ˆ linguagem e a linguagem, num paroxismo final de frustra•‹o, ao

 palavreado oco sobre o silncio(WHITE 1994:2860)Ó. Ao contr‡rio de outros

lingŸ’sticos tŽcnicos, a cr’tica absurdista Òtrata a linguagem si como um problema e se

demora indefinidamente na superf’cie do texto... da textualidade em si (WHITE

1994:287)Ó.

Movimentando-se no ar rarefeito da fetichiza•‹o do texto, o orfismo da critica

absurdista choca-se com o que White denomina cr’tica normal, que considera a

literatura valiosa e n‹o misteriosa(WHITE 1994:295). Opondo-se ao projeto

civilizacional da cr’tica normal, a cr’tica absurdista objetiva Òa desespiritualiza•‹o dosartefatos culturais da sociedade modernaÓ... desmitologizando a moderna sociedade

industrial (WHITE 1994: 293).

Desfamiliarizando a cr’tica normal e hipostasiando a teoria do discurso, ao

absurdismo s— restam as mans›es do solipsismo da egolatria, em virtude da Ó

dissocia•‹o do cr’tico de todo empreendimento coletivo, a eleva•‹o da cr’tica ˆ

condi•‹o de supercincia que Ž ao mesmo tempo puramente objetiva e propensa a

reivindicar a significa•‹o universalÓ(WHITE 1994:302).

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Entretanto, a deifica•‹o do sem sentido formula quest›es que Òcolocam os

cr’ticos normais na obriga•‹o de fornecer as respostas com as quais eles pr—prios n‹o

conseguem atinarÓ(WHITE 1994:306). Os cr’ticos absurdistas Òn‹o s‹o

incompreens’veis, e tampouco sua obra Ž insignificanteÓ(WHITE 1994:306).

Pode-se transpor a situa•‹o impactante dos cr’ticos absurdistas para o campo

historiogr‡fico, com White fazendo o papel destes œltimos. Embora frente ˆ diferen•a

espec’fica de campo intelectual n‹o tenhamos uma analogia total, Ž f‡cil perceber

como quando White diagnostica as atividades do absurdismo ele revela parte de suas

 pr—prias pr‡ticas. A diferen•a Ž que os absurdismos, vendo que tudo Ž representa•‹o,

transformaram seu pr—prio criticismo em representa•‹o, fundindo literatura-objeto e

discurso anal’tico, gerando esse h’brido entre ensaio e fic•‹o que comanda as obras da

tradi•‹o p—s-estruturalista francesa. A utopia do sem limite pariu a aporia da

discursividade eg—ica. Este superficialismo subjetivo, porŽm, Ž compensado por

White frente ao sintom‡tico contexto reativo que os apreende. White, como bom

defensor da literatura,  sabe ver a boa fic•‹o do absurdismo. As possibilidades

te—ricas dos absurdistas s‹o obnubiladas pelos problemas culturais que revelam

(WHITE 1994:306). Assim White veta o c—gito por sua n‹o cientificidade, mas v

com altivez as implica•›es das posturas.

6- Proje•›es: limites e interroga•›es do projeto metacr’tico 166 

 N‹o menos impactante foi White no campo historiogr‡fico. Ele abriu feridas

que exigem menos remendo que aten•‹o. Ap—s sua volumŽtrica irrup•‹o ficam para

ele e para n—s algumas quest›es:

a- como conciliar teoria cr’tica da representa•‹o, erudi•‹o, cr’tica das fontes e

metodologia, evitando que a pr‡tica historiogr‡fica seja uma extens‹o da teoria

liter‡ria? b- como conciliar padr›es de conceptualiza•‹o e novos paradigmas de

racionalidade e constru•‹o conceptual?

c- como conciliar as dimens›es representacionais e a singularidade hist—rica

dos discurso, evitando anacronismos e a obsess‹o pela atualidade te—rica?

d- como conciliar a tradi•‹o estudada com o hipercriticismo de teorias

contempor‰neas?

166  Seguimos , para formular estas perguntas, Koselleck e Gadamer , conf. Bibliografia.

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e- como conciliar as pretens›es de uma teoria geral da representa•‹o com as

limita•›es hist—ricas de todas as teorias?

Esse "reino-meta" que White adentrou perpetua ou contempla algumas dessas

quest›es.

Continuando seu percurso intelectual, White permanece nesse c—gito

fronteiri•o por ele avistado, publicando colet‰neas com artigos que ficham reflex›es

sobre a rela•‹o entre narrativa e representa•‹o, autores que compartilham de seu

campo intelectual (como se v em  The Content of the Form  (1987), mapeando o

campo intelectual contempor‰neo, com a diminui•‹o casos mais situados, a n‹o ser

aqueles que se relacionam o tema da ficcionaliza•‹o da hist—ria. H‡ o esperado

abandono da tropologia ( e de Vico) em prol das multidesviantes problematiza•›es

sobre a representa•‹o da realidade, ou melhor, sobre a realidade da representa•‹o.

White instala-se no espa•o de representa•‹o e discuss‹o que ajudou a formar, sendo

seu vigilante, traduzindo subjetividades em cincia discursiva.

Mas em seu ultimo livro,  Figural Realism, reascende o torpor absurdista no

 p—s-ceticismo egol‡trico que Ž o relativismo, com White defendendo que a diferen•a

entre sentido literal e figural Ž uma distin•‹o convencional. A elimina•‹o das

distin•›es forneceria um pressuposto eficiente para os novos tempos?

As dif’ceis rela•›es entre hist—ria e fic•‹o, medeadas por uma teoria da fic•‹o,

e n‹o por obras ficcionais, prolongam discuss›es-meta sobre a representa•‹o.

Enquanto perdura o modelo anal—gico, onde um termo Ž comparado ao outro n‹o

marcado ou em oposi•‹o, o sucesso do modelo mascara a redu•‹o efetivada. O

 probalismo discursivo do mentalismo lingŸ’stico p—s-tropol—gico resolve os dŽficits 

de aplica•‹o te—rica pela assepsia criticizante, encaminhando-se a ensa’stica para um

exerc’cio autoreferente, para uma hermenutica hermŽtica.

As hesita•›es, os incrementos e as ambigŸidades de White, no entanto,registram alternativas para os impasses de uma racionalidade atenta ˆ singularidade

expressiva dos textos da tradi•‹o.

7- O œltimo e expandido HaydenWhite: retomando criticamente a

hip—tese narrativista

O hipercriticsmo da hip—tese narrativista prolonga-se para alŽm dos debates

sobre a natureza ficcional da Hist—ria. Tal hip—tese engendrou intricado conjunto de

quest›es em conformidade com a explicita•‹o de parte dos mecanismos referenciaisdo discurso hist—rico. Isto propiciou um topos  privilegiado que foi convertido em

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evidncia e logo em prŽ-requisito. O esfor•o das reflex›es aqui delineadas Ž uma

tentativa de se pensar a Hist—ria sem o recurso deste prŽ-requisito como pressuposto.

Para tanto valho-me da explana•‹o da proposta integrativa de R. Koselleck

que, em sua fenomenologia da atividade historiogr‡fica, possibilitou acesso a

interroga•›es nas quais o empreendimento te—rico n‹o Ž cativo de seu contexto

reativo, mote e limita•‹o da hip—tese narrativista, como veremos.

 No recente  Figural Realism  Hayden White procura sintetizar a hip—tese

narrativista e, ao mesmo tempo, responder aos seus cr’ticos. Desse modo, fornece-nos

os procedimentos padr›es pelos quais a hip—tese narrativista ganha sua coerncia e

estabilidade. As novas preocupa•›es, alvos cr’ticos e teorias s‹o assimiladas e

naturalizadas em um contexto intelectual j‡ bem definido. A expans‹o do argumento

narrativista Ž confirmada pelo que se comenta. A amplitude, pois, Ž a ratifica•‹o dos

 pressupostos narrativistas.

O pressuposto fundamental da hip—tese narrativista Ž que a Hist—ria Ž discurso,

Òas special kind of language use Ò(p.7)167. Sendo assim, o discurso hist—rico Ž Òspecial

case of discourse in generalÓ(24). O que se descobre no discurso em geral ser‡

aplicado corretamente ao discurso particular. A materialidade lingŸ’stico-expressiva

como fato determinante da produ•‹o de sentido nos discursos teorizada por fil—sofos

da linguagem (Quine,Searle,Goodmam e Roorty (5), enfatizada pela emergncia da

teoria liter‡ria contempor‰nea(Barthes,Jakobson,Todorov) e sempre presente nos

cl‡ssicos da historiografia (como Hayden White demonstrou em  Metahist—ria) Ž

eficiente tambŽm no discurso hist—rico. Mais explicitamente, o conteœdo do discurso

 pode ser extra’do de sua forma lingŸ’stica(5).

Esta forma lingŸ’stica Ž esclarecida pela narrativa. A economia narrativa do

discurso hist—rico Ž ampliada. A fun•‹o da narratividade na produ•‹o do texto

hist—rico se d‡ em todas as fases da escritura historiogr‡fica. Os modos de escolha,ordena•‹o temporal dos acontecimentos bem como a pr—pria argumenta•‹o s‹o

orientados e previamente selecionados em fun•‹o das estratŽgias de figura•‹o

utilizadas(9).

Assim sendo, temos v‡rias implica•›es da hip—tese narrativista:

a- elimina•‹o da distin•‹o entre fato e interpreta•‹o, ou seja, entre objetos e

metalinguagem(29)

167  Como vou me deter em Figural Realism nesta se•‹o, indico apenas a p‡gina.

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 b- elimina•‹o da distin•‹o entre discurso(sentido) figural e literal(Pref‡cio p

vii).

Mais propriamente, estas distin•›es s‹o convencionais. Respondendo a seus

cr’ticos, White procura demonstrar que as obje•›es que lhe s‹o feitas - relativismo

lingŸ’stico, ausncia da faticidade e veredic•‹o da realidade, limita•‹o cr’tica da

teoria ao espa•o subjetivo generalizador e abstrato do intŽrprete(13-16) - n‹o levam

em conta a redefini•‹o da atividade cognoscente que a radicaliza•‹o da determina•‹o

figural lingŸ’stica faculta. Ao invŽs da sistem‡tica de contraconceitos, nos quais

 pressup›es uma totalidade que Ž reafirmada por partes que lhe s‹o contrapostas,

White advoga uma teorŽtica unificadora que atomiza os diferidos e os diversos por

sua referncia a um movimento significador basilar. Essa  pansignifica•‹o  Ž

formalmente explicada pela tropologia, ou teoria formal das representa•›es.

Resolvendo quest›es por uma mudan•a de enfoque que as elimina, Hayden

White acaba por setorizar o campo da hip—tese narrativista. A evidncia material da

linguagem no discurso da Hist—ria aparece aqui como um tru’smo n‹o desenvolvido.

As analogias entre discurso hist—rico e liter‡rio se avolumam. Contudo, a diferen•a

 permanece. Fic•‹o n‹o Ž somente narrativa, assim como Hist—ria n‹o Ž somente

linguagem.

 Neste momento, chamo para este di‡logo R. Koselleck. Sua teoria da hist—ria

 pode nos ajudar a entender o papel da linguagem na Hist—ria.

8- A proposta integrativa de Koselleck. Primeira aproxima•‹o

ÒH‡ processos que escapam a toda compensa•‹o e interpreta•‹o lingŸ’stica.

Este Ž o ‰mbito da Hist—rica (...) Quando a Hist—rica apreende as condi•›es de uma

 poss’vel Hist—ria, remete-se a processos de longo prazo que n‹o est‹o contidos em

texto algum, mas que provocam textosÓR. Koselleck

Koselleck, assim como White, est‡ empenhado em problematizar o estatuto da

Hist—ria. Tendo um imenso arquivo a seu dispor, uma tradi•‹o te—rica e cr’tica

secular, para Koselleck o modo de intervir e interrogar este estatuto foi efetivado a

 partir dessa mesma tradi•‹o. Ao invŽs de erigir a teoria como resposta a determinado

 problema de seu campo intelectual e restringir com isso o horizonte da reflex‹o ˆatualidade dos eventos pontuais ( que coordenados ent‹o v‹o se tornando fatos

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confirmados da teoria proposta), Koselleck integra as situa•›es em constantes, em

 padr›es de acontecimentos que conjugam a singularidade do evento com correlativa

multiplanaridade temporal. Ou seja, os fatos demonstram-se integrados em

 pressupostos de a•‹o estruturais, como veremos mais adiante.

A teoriza•‹o Ž uma clarifica•‹o preliminar que procura pensar a pr‡tica

historiogr‡fica no contexto de sua produ•‹o. Para tanto, as atividades desta pr‡tica s‹o

desnaturalizadas e caracterizadas. Diferentemente de Hayden White, as distin•›es

aqui s‹o fundamentais. Na fenomenologia da atividade historiogr‡fica a

heterogeneidade da experincia de tempo se apresenta conectada ˆ diversidade

cognitiva dos processos que a apreendem. A mœtua implica•‹o entre experincia

hist—rica e conhecimento de tal experincia constitui a coerncia e a coes‹o do

impulso te—rico de Koselleck

Fiel a este ditame, h‡ a factual distin•‹o entre evento e estrutura. Eventos

 podem ser narrados e estruturas, descritas. H‡ condi•›es estruturais que tornam

 poss’veis os eventos assim como estruturas somente s‹o compreens’veis atravŽs dos

eventos com os quais as estruturas s‹o articuladas (109168) Mas, frente ˆ diversidade

de extens›es temporais pr—prias, estas atividades existem e exigem diferentes

metodologias (105). Mais precisamente, Òn‹o h‡ completa inter-rela•‹o entre n’veis

de diferentes extens›es temporaisÓ(105). O tempo do evento e o tempo da estrutura

n‹o se fundem. Tal assimetria Ž que os coordena. O hiato Ž ’ndice de uma

 produtividade mais fundamental.

A hip—tese narrativista supervaloriza uma componente da pr‡tica

historiogr‡fica, transferindo significados e fun•›es sem se interrogar sobre a diferen•a

que as funda. ƒ preciso estar atento ˆs condi•›es de possibilidade da Hist—ria. A

compreens‹o das extens›es temporais das circunst‰ncias hist—ricas esclarece a a•‹o

interpretativa. Basear a pr‡tica historiogr‡fica na narratividade e em seu campoconceitual implicado Ž limitar a racionalidade empregada nesta pr‡tica ˆ interroga•‹o

do n’vel representacional dos eventos. O poder de explica•‹o da teoria fica reduzido a

uma metalinguagem que sucumbe ao espa•o de experincia do intŽrprete .

A distin•‹o entre evento e estrutura melhor evidencia o processo conceptual

que determina a Hist—ria. A pr‡tica historiografia Ž uma constru•‹o racional bem

situada. Fatos ocorridos e julgamentos atuais (152) convergem para uma tens‹o entre

168  Nesta e nas pr—ximas duas se•›es me refiro a KOSSELECK1985(Future Past). Da’ cito apenas a p‡gina do livro em parntesis.

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teoria da hist—ria e fontes. Mas estes n’veis n‹o se confundem. Hist—ria nunca Ž

idntica ˆs fontes que providenciam evidncia para Hist—ria (153). Contudo, o passo

alŽm das fontes, a total primazia te—rica, Ž limitado pela cr’tica das fontes. ÒFontes

 protegem-nos de erro, mas nunca nos contam o que Ž preciso dizerÓ(155), mas sim o

que n‹o dizer. ÒAs fontes tem o poder de veto.Ó(155). A transcendncia ˆ exegese

imanente n‹o pode ser decidida em termos de fontes. Trata-se de uma decis‹o te—rica.

A primazia da teoria que individualiza estruturas de longa dura•‹o nos eventos Ž

conectado ˆ presen•a de uma met—dica acur‡cia, marca da faticidade de uma

determina•‹o extralingŸ’stica. Revela a descontinuidade entre o tempo do discurso e o

tempo dos acontecimentos estruturados e suas possibilidades heur’sticas A

conceptualiza•‹o, pois, conecta a racionalidade a uma aplicabilidade contrapontual. O

conceito hist—rico Ž a express‹o dessa racionalidade aplicada, n‹o autocontida.

O que promove um esclarecimento mais preciso da intera•‹o entre

acontecimentos hist—ricos e sua constitui•‹o lingŸ’stica (201) dentro de um paradoxo

aparente. ÒNa ausncia de atividade lingŸ’stica, os eventos hist—ricos n‹o s‹o

 poss’veisÓ... assim como Ònem eventos ou experincias s‹o esgotados por sua

articula•‹o lingŸ’sticaÓ(230). Hist—ria nem Ž a soma de todas suas denomina•›es nem

Ž assimilada pelos conceitos que a compreendem (162). N‹o se identifica com seu

registro lingŸ’stico, mas ao mesmo tempo n‹o Ž independente de sua articula•‹o

lingŸ’stica(164). Linguagem e Hist—ria s‹o interdependentes, mas n‹o nunca

coincidem(233)

Tais defasagens situam a pr‡tica historiogr‡fica em sua efetividade e n‹o

apenas em sua materialidade expressiva. Providenciam limites e possibilidades. A

conceptualidade por si n‹o recobre o que representa. Definindo-se a economia

representacional do discurso historiogr‡fico, reelaboram-se as suas t‡ticas

interpretativas. A singularidade do interpretado modifica as estratŽgias doinvestigador. A performance lingŸ’stica interpreta a experincia medeando a

explicita•‹o dos ’ndices temporais dessa experincia. A pr‡tica historiogr‡fica

conceptualiza a temporalidade das experincias. A lingŸisticidade da hist—ria Ž a

medea•‹o conceptual das estruturas temporais que tornam poss’veis os eventos. A

atividade historiogr‡fica, pois, precisa ser interrogada acerca de sua determina•‹o

conceptual e de sua sem‰ntica temporal.

9- Segunda aproxima•‹o: Conceitos e Hist—ria

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A reflex‹o sobre as rela•›es entre os mŽtodos da Begriffsgeschichte e Hist—ria

Social em muito contribui para o esclarecimento do uso de conceitos em Hist—ria.

Examinando as diferen•as entre as duas disciplinas, Koselleck demonstrou o equ’voco

de fun•›es a elas s‹o atribu’das. A Begriffsgeschichte encontraria na linguagem seu

œnico estatuto de  praxis. J‡ a Hist—ria Social somente se utiliza do texto como

 pretexto confirmador de forma•›es sociais de longa dura•‹o (74).Os usos do texto

(linguagem) revelam as estratŽgias diversas de contextos intelectuais ou pressupostos

de inteligibilidade.

Koselleck, interrogando mais esta aparente oposi•‹o, explicita uma

 problem‡tica mais complexa. A tens‹o entre ÔsociedadeÕ e ÔconceitoÕ n‹o pode ser

considerada sem um tratamento te—rico mais rent‡vel. A regionaliza•‹o das

disciplinas n‹o elimina a presen•a da conceptualidade. O enfoque Ž diverso, mas

sempre se recorre a uma conceptualiza•‹o.

Quando Koselleck pontua a diferen•a entre conceito e palavra o incremento

da Begriffsgeschichte para alŽm de sua disciplina Ž melhor entendido. Ò Cada

conceito Ž associado a uma palavra mas nem toda palavra Ž um conceito social ou

 pol’tico(83)Ó A n‹o conversibilidade de palavra e conceito torna percept’vel n‹o s—

os heterogneos usos da linguagem mas a coexistncia de modos de referncia

diferentes em um sincronia assim como diversos empreendimentos de inteligibilidade.

ÒA palavra pode permanecer a mesma, no entanto o conteœdo por ela designado

altera-se substancialmenteÓ (KOSLLECK1992:138). O conceito Ž proposi•‹o de uma

argumenta•‹o sendo elaborada.

Ë distin•‹o entre conceito e palavra Koselleck acopla Ò o car‡ter œnico e

 particular que configura o momento concreto em que um conceito Ž formulado e

articulado(KOSLLECK 1992:140)Ó O conhecimento do repert—rio de referncias

tratadas reflexivamente pelos conceitos precisa reivindicar a aplicabilidade da teoria.O aprofundamento das estruturas profundas das continuidades exigem a singularidade

do evento focalizado(KOSLLECK1992:141). ÒTodo conceito s— pode enquanto tal

ser pensado e falado/expresso uma œnica vezÓ (KOSLLECK1992:138) aponta para a

 primazia te—rica na pratica historiogr‡fica que investiga as possibilidades da historia

dentro de uma racionalidade cativa de experincias compreensivamente integradas ˆ

sua problematiza•‹o conceitual, que leva em conta uma delimita•‹o da atividade

categorial das condi•›es dessas possibilidades.

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Diante disso, Koselleck amplia a metodologia da Begriffsgeschichte como

emblem‡tico posicionamento do campo historiogr‡fico. Ò Nada pode ocorrer que n‹o

seja apreendido conceptualmenteÓ (85). Experincias passadas na linguagem-fonte e

metalinguagem cr’tica do analista convergem para a primazia da

Begriffsgeschichte(90).A investiga•‹o do conceito n‹o se reduz a uma tarefa

 puramente lingŸ’stica. Para alŽm da ingnua circularidade palavra-coisa (85), o

conceito Ò Ž ’ndice de seu conteœdo extratextual, indicador de estruturas sociais e

situa•›es de conflito pol’tico.Ó(82) A clarifica•‹o do uso conceptual no passado Ò n‹o

apenas nos ensina a singularidade de significados mas tambŽm contŽm possibilidades

estruturaisÓ(90) As dura•›es, mudan•as e futuridades contidas em eventos s‹o

interpeladas em seus tra•os lingŸ’sticos(77) demarcando as fronteiras entre n’veis de

realidade significados, propostos ou debatidos. A integratividade dos tempos dos

eventos aponta para o tratamento te—rico das distin•›es. A conceptualidade da

Hist—ria funda-se aqui no estudo aplicado das referncias e de suas simplifica•›es. A

 produtividade das distin•›es temporais dos eventos exige uma reflex‹o que saiba dar

o horizonte cognitivo de cada distin•‹o uma amplitude e seja capaz de revelar as

condi•›es de realiza•‹o do evento. A persistncia da experincia do passado e sua

viabilidade te—rica se acoplam no esfor•o conceitual.

A amplia•‹o da Begriffsgeschichte promove o contexto reativo de Koselleck

no qual ele argumenta contra os limites de uma hermeneutiza•‹o completa da

Hist—ria, ou melhor contra a manipula•‹o da Hist—ria como subcaso da

hermenutica(KOSLLECK1997:69). Interrogando-se acerca do  status lingŸ’stico das

categorias empregadas na Hist—ria, Koselleck conclui que tais categorias apontam a

modos de existncia que, Ò mesmo mediados lingŸ’sticamente, n‹o se diluem

objetivamente na media•‹o lingŸ’stica, mas possuem tambŽm seu valor pr—prio e

aut™nomo( KOSLLECK1997: 87)Ó. A distin•‹o entre palavra e conceito proporcionada pela Begriffsgeschichte , retomando a distin•‹o entre evento e

estrutura, procura contextualizar o que faz um historiador. Ele n‹o Ž um formalizador

de representa•›es. Sua racionalidade n‹o se reduz ao confinamento de sua

metalinguagem. N‹o basta que a origem da teoria hist—rica seja demonstr‡vel

lingŸ’sticamente ou que esta teoria possa ser concebida como uma resposta lingŸ’stica

a uma pergunta previamente dada (KOSLLECK 1997:88 ). ƒ preciso se dar conta da

excedncia estrutural inscrita nos eventos (KOSLLECK1997:88) como forma de

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ultrapassar o ilusionismo metodol—gico da separa•‹o entre atividade cognoscente do

intŽrprete e a provoca•‹o resistente da realidade-foco.

A refuta•‹o da aposta que Ò a l’ngua visse a se constituir na ultima inst‰ncia da

experincia hist—ricaÓ (KOSLLECK1992:136) e o relevo de elementos prŽ-

lingŸ’sticos ou n‹o lingŸ’sticos na verdade respondem a um conceito de linguagem

mais relacionado com atividade do historiador. A resposta contra essa generaliza•‹o

do paradigma lingŸistico hermenutico Ž uma refuta•‹o de evidncias n‹o

questionadas que obliteram acesso a problemas mais prementes ˆ realidade da pr‡tica

historiogr‡fica. O apelo ˆ Begriffsgeschichte procura iluminar as implica•›es da

interven•‹o racional na interpreta•‹o de eventos de modo a proporcionar uma teoria

compreensiva da hist—ria em suas possibilidades, a Hist—rica (KOSLLECK1992: 68).

O nexo entre evento e sua representa•‹o implica na teoriza•‹o do entendimento deste

nexo. A historicidade dos eventos duplica-se na historicidade da compreens‹o. A

aplicabilidade dos conceitos Ž a possibilidade de uma Raz‹o hist—rica.

10 - Terceira Aproxima•‹o: A sem‰ntica temporal

O conceito hist—rico de tempo, delineado na compreens‹o da n‹o localidade

insular dos eventos, exige do intŽrprete a temporaliza•‹o de sua atividade. A

Òhistoriza•‹oÓ dos eventos Ž suplementada pela aplica•‹o de duas categorias: espa•o

de experincia e horizonte de expectativa (169266-288). A rentabilidade heur’stica

dessas categorias revela-se na medida em que configuram diversos n’veis de

referncia e temporalidades presentes em uma sincronia. Facultam-nos a visibilidade

dos eventos conectados ˆ efetividade da condi•‹o humana, de modo a indexar o

conhecimento hist—rico ˆ estrutura•‹o dos acontecimentos, pois Òas condi•›es de uma

hist—ria real s‹o ao mesmo tempo as condi•›es de sua cogni•‹oÓ(270).

Espa•o de experincia e horizonte de expectativas est‹o indissociavelmente

relacionados, Òn‹o h‡ expectativa sem experincia, nem experincia semexpectativaÓ(270). Contudo, Óexperincia e expectativa pertencem a diferentes

ordens... passado e futuro nunca coincidemÓ(272). Mais especificamente Òa presen•a

do passado Ž distinta da presen•a do futuro(273). Experincia e expectativas remetem

a efetividades que as possibilitam e limitam. Marca disso Ž a irreversibilidade da

experincia e a revisionabilidade das expectativas. Expectativas podem ser

experimentadas(274) mas sua indetermina•‹o n‹o se recolhe nesse proceder. Os

169  Novamente Future past.

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’ndices temporais de experincias e expectativas remetem para acontecimentos

espec’ficos.

A din‰mica de coexistncia de pluralidade de tempos(282), assinalando eixos

de referncia sobrepostos e distingu’veis, demonstra a insuficincia de uma

racionalidade monorientada. Os tempos e acontecimentos distintos para os quais as

categorias apontam indicam a insuficincia de sua determina•‹o quando apreendida

 por categorias exclusivistas e unilaterais (275).ÓA prŽvia existncia de um espa•o de

experincia n‹o Ž suficiente para a determina•‹o do horizonte de expectativa(275)Ó A

hist—ria articula-se em contextos e situa•›es que demandam existencialismos que n‹o

est‹o em um mesmo n’vel de realiza•‹o. A faticidade espec’fica dos acontecimentos

que a copla experincia/ expectativa assinala habilita o historiador a poder trabalhar

com um realismo produtivo em seu trabalho, um realismo comprometido com

diversos n’veis de referncia e sentido que uma coesa heterogeneidade oferece.

Este influxo temporal nas categorias hist—ricas mobiliza a compreens‹o da

dist‰ncia hist—rica entre o intŽrprete e o passado. Ao invŽs de uma homogeneiza•‹o

dos eventos por meio de uma metalinguagem aplainadora das diferen•as, transferindo

os fatos para feitos formais ( Hayden White), a compreens‹o da presen•a do futuro na

 presen•a do passado exige o refinamento racional para distin•›es sutis e tra•os de

referncias espec’ficas.

A sem‰ntica temporal n‹o Ž fato lingŸ’stico. ƒ feito te—rico. A articula•‹o da

hist—rica experincia de tempo efetiva os seguintes fatores de uma Hist—rica(94):

1-  a irreversibilidade dos eventos

2-  a repetibilidade dos eventos

3-  a contemporaneidade do n‹o contempor‰neo ou estrutura

 progn—stica do tempo hist—rico.O influxo de futuridade que a categoria de expectativa possibilita desloca o

modo como a referncia em hist—ria Ž constru’da. Trabalhando normalmente com um

discurso constatativo, apenso ˆ localidade dos eventos, o historiador desnorteou-se

com a atemporalidade da hip—tese narrativista. Problematizando a referncia mas n‹o

a orienta•‹o temporal da referncia, Hayden White solucionou as quest›es de

realidade e verdade eliminado-as em prol da lingŸisticidade da Hist—ria. A

autoreferencialidade do discurso historiogr‡fico Ž a resposta para as exigncias prŽ ou p—s lingŸ’sticas. Esse novo gabinetismo prescinde de arquivos de contraste ou

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 propostas te—ricas adversas. Quando defronta-se com diferidos, confronta-os com as

exigncias de sua clivagem te—rica. Isso ficar‡ mais claro quando vamos ver Hayden

White ˆ luz da reflex‹o sobre a modernidade e Historia proposta por Koselleck. A

hip—tese narrativista Ž mais um capitulo da modernidade e sua espec’fica sem‰ntica

temporal.

11- A sem‰ntica temporal aplicada : historiografia da modernidade

Permeando a Teoria das hist—rias poss’veis (Hist—rica), temos um motivo

 basilar frequentemente revisitado. Trata-se da interroga•‹o acerca do conceito de

Hist—ria e, por conseqŸncia o conceito de Modernidade. A forma como Koselleck

escreve - interligando ao seu foco de observa•‹o conceitos e situa•›es

exemplificadoras e correlatas Ð resulta que, quando h‡ retorno ao circuito conceito de

 Hist—ria Ð Modernidade, repense-se e se diversifique tanto os conceitos que cada

texto seu procura debater quanto essa presen•a extensa do circuito.

Dessa maneira a extens‹o e presen•a do circuito conceito de Hist—ria Ð

Modernidade se transforma no contexto intelectual de sua Hist—rica. A compreens‹o

da situa•‹o interpretativa da pr‡tica historiogr‡fica, revelada nas discuss›es

metodol—gicas Ž mais bem esclarecida na historicidade conceptual que preside a

forma•‹o de nosso conceito de Hist—ria. O embate epistemol—gico Ž esclarecido por

meio da teoriza•‹o sobre as fontes do discurso-base. A sincronia do investigador n‹o

Ž alvo e meta do esfor•o interpretativo. A contextualiza•‹o metodol—gica Ž

acompanhada por uma contextualiza•‹o da tradi•‹o do discurso-base.

A Hist—rica de Koselleck vale-se do processo de transforma•‹o que a pr‡tica

historiogr‡fica vem desenvolvendo desde o sec XVIII (200). Antes, o que havia era

Òhist—riasÓ. O passado era um suplemento para a experincia hist—rica da comunidade

viva (140), n‹o excedendo a trs gera•›es tal espa•o de experincia(142). Sob oinfluxo do Iluminismo h‡ uma abertura e amplia•‹o metodol—gicas, alterando a

rela•‹o com o passado. Ao invŽs de ser somente preservado oralmente ou por textos,

o passado podia ser reconstru’do atravŽs de um processo intelectual de critica de

fontes(142), visando uma sistmica totalizante e universalista.

Dessa forma tornou-se poss’vel reconhecer Òa qualidade temporal que

distingue o Ontem de Hoje e que o Hoje necessita ser observado como

fundamentalmente distinto do amanh‹ (142)Ó. A repeti•‹o paradigm‡tica e exemplar

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dos eventos nas Òhist—riasÓ Ž descartada. O todo œnico da Hist—ria assimila essa

divis‹o temporal.

Frente a esta ruptura com a continuidade, o tempo de agora, o novo tempo

(Neuzeit/neu Zeit) Ò pressup›e uma conscincia da diferen•a entre experincia

tradicional e a irrup•‹o de expectativas(277)Ó A modernidade trabalha neste hiato

cada vez maior entre experincia e expectativa, incrementando um renovado e

extenso horizonte de expectativas futuras(203). Abreviando o espa•o de experincia,

subtraindo dele sua const‰ncia e continuidade, projetando-o como continuamente

novo, a modernidade suprimeÓ a possibilidade de o presente ser experimentado como

 presenteÓ(18)

A cont’nua mudan•a culmina na determina•‹o de progresso. Ò O progresso

combina experincias e expectativasÓ(278) nesta assimetria geradora de um novo

futuro. N‹o h‡ mais contemporaneidade, mas acelera•‹o, otimiza•‹o progressiva

(283-284). O tempo topicaliza-se na ruptura da continuidade (281) tendo como efeito

compensat—rio esta f—rmula: experincia em plano secund‡rio, expectativa em

destaque (288). Eis a referncia da estrutura temporal da modernidade, que poderia

ainda se consumar em uma prognose racional pragm‡tica(280, 14)

Tal descri•‹o coincide com alguns tra•os da hip—tese narrativista. Hayden

White transforma o topos  ruptura na continuidade  em mecanismo referencial dos

 processos que defende e postula como integrantes da renova•‹o dos estudos

historiogr‡ficos e do pensamento ocidental. Para ele, em nosso sŽculo ocorreu uma

revolu•‹o nas pr‡ticas de representa•‹o por meio da qual a no•‹o de evento hist—rico

foi modificada (WHITE 1999:72). Assim como a atividade liter‡ria contempor‰nea

dissolveu a trindade de evento, personagem e enredo do romance realista do sŽculo

XIX e sua pretens‹o de representar a realidade realisticamente a realidade, (17065-66)

deve a Hist—ria renunciar ao seu estatuto referencial f‡tico. Contra o fetichismo doseventos (82), a recusa do tabu representacional que separa e op›e fato e fic•‹o e

fic•‹o (66).

Esta renœncia concentra-se na seguinte aposta: Ò The denial or the reality of

the event undetermines the very notion of fact informing traditional realism(67)Ó.A

nega•‹o dos pressupostos realistas, por sua natureza convencional e arbitr‡ria,

 possibilita o acesso a sentidos outros que n‹o poderiam ser revelados.

170  Aqui e no restante da se•‹o refiro-me a Figural Realism 

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Eis a an™mala natureza dos eventos modernistas Òthat undermine not only the

status of facts in relation to events but also the status of the event in general (70)Ó. O

foco muda do evento para seu sentido.

Tal desrealiza•‹o dos eventos (76),contudo, ainda opera por categorias

negativas que se acumulam indefinidamente e materializam-se na transposi•‹o de

imagens para o discurso anal’tico. O sentido Ž definido como Òspectral, seeming to

consist solely in the spatial dispersion of the phenomen (76)Ó Ou mais indeterminado

ainda como Òinstable, fluid phantamasmagoric(79)Ó.

Por meio de nega•›es progressivas, Hayden White constr—i um espa•o de

referncia somente acess’vel pelo acatamento desta ret—rica e seus procedimentos. A

realidade desta desrealiza•‹o efetiva-se em objetos conceptuais-estŽticos, construtos

que procuram relevar sua independncia ˆ qualquer condi•‹o objetiva prŽ-existente. O

questionamento dos modos de referncia se torna a matŽria desse entre-lugar.

Quando Hayden White analisa e critica alguns trabalhos do New Historicism

evidencia a defini•‹o modernista da hip—tese narrativista.

 Nos trabalhos do New Historicsm ter’amos (55-57):

a-  fal‡cia genŽtica, ou Òa cren•a que os textos liter‡rios podem ser

iluminados pelo estudo de suas rela•›es com seu contexto hist—ricoÓ;

 b-  fal‡cia referencial, ou distin•‹o entre texto e contexto;

c-  fal‡cia culturalista, ou a cren•a que o contexto hist—rico Ž o

sistema cultural;

d-  E, finalmente, fal‡cia textualista, a cren•a que a cultura Ž texto.

Para Hayden White, o New Historicism Ž duplamente redutor por reduzir o

social ao  status  de uma fun•‹o do cultural e o cultural ao  status  de texto.(56).

Combina o que Ósome historias regard as formalist falacies (culturalist and

textualism) in the study of history with what some formalist literary theorists regardas historicist falacies (geneticism and referentiality) in the study of literature (56)Ó.

Tal poŽtica cultural retoma o entrechoque entre estratŽgias contextualistas e

formalistas na explana•‹o hist—rica, debate ocorrido que aconteceu ap—s a redefini•‹o

das rela•›es entre texto e contexto nos anos sessenta. Para os p—s-estruturalistas, n‹o

h‡ nada alŽm de texto. O apelo ao contexto retoma um ideal de verdade emp’rica

ainda presente na disciplina (43). A recusa da d’ade texto-contexto Ž a denœncia da

continuidade deste ideal. Incita ˆ libera•‹o da atividade te—rica da referncia a este programa do idealismo hist—rico. O programa hist—rico de agora Ž caracterizar as

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ocorrncias de sentido e suas rela•›es com os c—digos dominantes (63), expurgando

Ómyths of such Ôgrand narrativesÕ as fate, providence, Geist, progress, the dialetic, and

even the myth of the final realization of realism itself (100)Ó A transforma•‹o dentro

do sistema ultrapassa a tens‹o entre estratŽgias contextualistas e formalistas.

Escrevendo um cap’tulo da modernidade, Hayden White busca legitimar em

sua proposta narrativista a redu•‹o do espa•o de experincia em prol do horizonte de

expectativas. O fantasmag—rico contra todo e qualquer res’duo realista acredita que

mudando os nomes, os problemas ser‹o resolvidos. O conceito aqui se torna o campo

de experincias de desindexar a linguagem de uma operatividade hist—rica. N‹o Ž em

v‹o que a contraparte estŽtica do p—s- estruturalismo denomina-se realidade virtual.

A autonomia da representa•‹o, este castelo de Axel ainda visado, acess’vel

somente em sua metalinguagem, proporciona a articula•‹o de conceitos

independentes de processo argumentativo aplicado a um evento. A justaposi•‹o

conceptual Ž uma racionalidade sem cogitatum, pensamento que repensa o

 pensamento.

12- Koselleck plaus’vel: a operacionalidade da sem‰ntica hist—rica

Em vez de parafrasear Koselleck, procurarei demonstrar a operacionalidade de

sua proposta integrativa. Denominei INTEGRATIVA assim, pois, para ser fiel ˆ

tradi•‹o hermenutica com a qual dialoga. Koselleck retoma a hermenutica filos—fica

de H.G. Gadamer(1997:68-94), principalmente a recupera•‹o da reflex‹o moral e da

aplica•‹o de Arist—teles (GADAMER 1998:459-481). Gadamer exp›e sua

Hermenutica filos—fica a partir da demonstra•‹o dos limites do idealismo alem‹o

(GADAMER 1998:273-288). Gadamer realiza ent‹o tambŽm o seu embate com o

Modernismo. Koselleck procura expandir o escopo das reflex›es de Gadamer ao propor que a Hist—rica se utilizaria de uma racionalidade que levaria mais em conta a

nossa faticidade, n‹o uma faticidade filos—fica, discursiva, mas factual (1997:91-93).

Pois no projeto cr’tico de Gadamer estaria inscrita uma alternativa ˆ racionalidade

ocidental por meio da alteridade imanente que a linguagem revela (1997:104). Mas

seria somente a linguagem que possibilitaria essa reorienta•‹o do sujeito e de suas

estratŽgias de entendimento?

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Para tanto, creio retirar da reflex‹o de Koselleck algumas proposi•›es

operacionais v‡lidas para o in’cio desta problematiza•‹o entre Raz‹o e Hist—ria, a

 partir da pr‡tica historiogr‡fica:

0- Hist—ria Ž a conceptualiza•‹o de uma experincia;

1- referncia n‹o Ž linguagem Ð Ž ’ndice temporal;

2- a focaliza•‹o discursiva tematiza ordens temporais diversas;

3-  h‡ v‡rios n’veis de contextualiza•‹o implicados em uma atividade

conceptual;

4-  a argumenta•‹o individualiza-se em fun•‹o de seu processo de

finitiza•‹o;

5-  n‹o h‡ o conceito, mas procedimentos de conceptualiza•‹o;

Contudo, mesmo ap—s cr’tica da Hermenutica pela Hist—rica, ainda ressoam

as palavras de Gadamer: Ò A faticidade do  factum constatado pelo historiador nunca

 poderia competir em import‰ncia com a faticidade que cada um de n—s Ð no momento

em que se constata ou se toma conta de tal  factum Ð conhece como sua e que todos

n—s juntos reconhecemos como nossaÓ (1997:104). Com esse reconhecimento de n—s

mesmo, previne que se equipare historiografia com matem‡tica (1997:106 ). O

esclarecimento da situa•‹o interpretativa do historiador, pois, Ž finita, assim como as

tarefas. N‹o se esconderia aqui nesta resposta de Gadamer a Koselleck uma produtiva

refuta•‹o do esfor•o de igualar raz‹o e Hist—ria, lembrete sempre œtil frente a este

sŽculo p—s-Hegel.

Se as limita•›es da hip—tese narrativista, que radicalizou as analogias entre

discurso liter‡rio e hist—rico, conduzem para o ilusionismo do autofechamento e

autonomia da teoria, a proposta integrativa n‹o seria cativa do ilusionismo do poder

explicativo do conceito? Afinal, h‡ limites para a Hist—rica? Nesse debate, a amplia•‹o do conceito de texto fez sua refigura•‹o hist—rica,

n‹o mais como objeto pretextual de uma abordagem prŽ-dada. A historicidade do

texto transforma referncia em orienta•‹o, exigindo explana•›es te—ricas que

ultrapassem o aspecto frasal do texto. A operacionalidade dessa mudan•a incrementa

as estratŽgias interpretativas. O texto n‹o Ž mais lago a ser pulverizado e atomizado

em cita•›es. Ele Ž uma argumenta•‹o que pede uma contrargumenta•‹o. A abertura

metodol—gica da pr‡tica historiogr‡fica Ž contempor‰nea desta redefini•‹o de texto,mas n‹o se confunde com ela.

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6- Hist—ria cultural e teatralidade: Roger Chartier e a textualidade de

obras performativas

Roger Chartier referiu-se a obras e autores teatrais em algumas ocasi›es171. O

encontro do historiador cultural com registros dramatœrgicos explicita as rela•›es

entre texto e performance, fundamentais para a reinterpreta•‹o contempor‰nea tanto

das pr‡ticas investigativas historiogr‡ficas quanto de atividades representacionais das

artes de espet‡culo.

Ou seja, h‡ uma interse•‹o entre quest›es presentes na hist—ria das pr‡ticas de

leitura e a constitui•‹o de um horizonte te—rico de eventos cnicos172. Por meio de

uma detida considera•‹o do modo como Chartier analisa obras teatrais tais

convergncias e intersec•›es aqui ser‹o debatidas e estudadas.

O Ôcaso George DandinÕŽ paradigm‡tico. Chartier debru•ou-se sobre a obra de

Molire interrogando suas edi•›es impressas para reconstruir as rela•›es entre Òa

composi•‹o social do pœblico, as categorias estŽticas e as percep•›es que moldam as

diferentes apropria•›es da pe•a, e as diversas modalidades cnicas e perform‡ticas do

texto (CHARTIER, 2002:52)Ó

Para efetivar este pluralismo metodol—gico, Ž preciso ultrapassar o monadismo

lingŸ’stico Ð abordagem que v o texto como um objeto lingŸ’stico auto-suficiente,

capaz de gerar seu pr—prio significado a partir da materialidade verbal. Assim,

Òcontrariando a cr’tica tradicional, insens’vel aos modos de impress‹o e representa•‹o

dos textos, que acredita que o significado de uma obra de arte liter‡ria pode ser

inteiramente designado atravŽs de protocolos lingŸ’sticos, a dupla participa•‹o de

Georges Dandin nas festividades da Corte e nas pr‡ticas teatrais urbanas nos mostraque o sentido de uma obra depende sempre da maneira como ela Ž apresentada aos

seus leitores, expectadores ou ouvintes (CHARTIER, 2002:51)Ó

171  Atualmente R. Chartier orienta o semin‡rio Òƒcrire, publier, reprŽsenter etlire le thŽ‰tre aux XVIe et XVIIe sicles. ƒtudes de cas (Angleterre, Espagne, France) Èna LÕEcole Des Autes Etudes, Sorbone. V. http://crh.ehess.fr/document.php?id=314.Entre dramaturgos analisados, temos Shakespeare, Lope de Vega, Molire e Goldoni.

172Met‡foras epistemol—gicas a partir da teatralidade podem servistas em express›es como Òa idŽia que a publica•‹o de obras implicasempre uma pluralidade de atores sociais, de lugares e dispositivos, detŽcnicas e gestosÓ CHARTIER 2002:10.

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Disto, temos que a heterogeneidade do processo de transmiss‹o e recep•‹o e

recep•‹o n‹o Ž apenas um contexto de interpreta•‹o da obra, como se inscreve no

texto mesmo, redefinindo sua textualidade, vista agora em suas diversas opera•›es,

em sua produ•‹o coletiva, evidenciando Òa negocia•‹o entre o teatro e o mundo social

(CHARTIER,2002:51)Ó

Georges Dandin foi apresenta inicialmente em Versailles, em 1668, dentro de

um programa de evento festivo multifacetado por meio do qual a Corte celebrava a

gl—ria do maior monarca do mundo. A comŽdia se organizava na altern‰ncia entre

 partes faladas e partes musicais (cantadas/dan•adas). Como dois espet‡culos dentro de

um s—, t’nhamos modalidades performativas com diferentes tramas, que se

comentavam Ð o mitol—gico-pastoral e o c™mico cotidiano do campons mal casado.

Georges Dandin, o campons humilhado Ž o contraponto ao mundo dos amantes no

mito. Os dois mundos s‹o justapostos e separados por suas modalidades de

apresenta•‹o. Na sucess‹o do espet‡culo temos o princ’pio da exclus‹o sendo

encenado: a farsa relacionada ˆs classes populares e a pastoral, ˆ corte. Mas, no

 procedimento mesmo da justaposi•‹o, temos ambivalncias Ð a possibilidade dos

universos estanques trocarem suas referncias, as fronteiras entre as formas

 promoverem contatos entre pretensas molduras fixas de representa•‹o e distin•›es

estŽticas e sociais.

Dessa forma a comicidade de Georges Dandin n‹o se manifesta apenas nos

 jogos de cena, que Òmultiplicam os qŸiproqu—s, equ’vocos, e invers›es de situa•‹oÓ e

sim no contraste estrutural, na organiza•‹o que postula formas de espet‡culo para

distintas ordens sociais, e que, no decurso das performances, demonstra a que tais

distin•›es s‹o construtos, artificiais, formas de auto-representa•‹o e celebra•‹o Ð a

mœsica, as dan•as e o espa•o ideal do mito para as Ôclasses superioresÕ e a falta de

mœsica, as confus›es e o cotidiano para as Ôclasses inferioresÕ. A teatralidade doevento exp›e a construtividade das marcas. A convencionalidade das atribui•›es Ð a

comicidade do motivo do marido tra’do para o mundo pastoril e a sublimidade dos

sentimentos para o mundo da corte Ð subverte a estabilidade do contrato social. Para

Chartier, Ò a fic•‹o do teatro n‹o visa a reproduzir uma situa•‹o do ÔrealÕ, mas

 pretende extrair,atravŽs da ilus‹o que ela postula e desmente ao mesmo tempo, os

 pr—prios procedimentos pelos quais,contraditoriamente, o social Ž constru’do

(CHARTIER, 2003:119).Ó

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Ou seja, a dicotomia da forma de organiza•‹o do espet‡culo, procurando

demarcar distin•›es e valores entre as classes sociais, promove a exposi•‹o n‹o de

uma sociedade r’gida, baseada em uma classifica•‹o que se justifique alŽm do seu

impulso configurador. A sucess‹o dos eventos performados implode posi•›es

absolutas e torna simult‰neos os heterogneos, vinculando-os. O espet‡culo n‹o se

restringe ˆs falhas do campons: amplia-se em todas as dire•›es, exibindo aquilo que

se mostra - o arranjo do mundo como espet‡culo de sua manipula•‹o, Òdesmonta, em

uma situa•‹o de imagina•‹o, os efeitos da convic•‹o ilus—ria na mobilidade das

condi•›es (CHARTIER, 2003:139)Ó

A figura mesma de Georges Dandin nos ajuda compreender tal l—gica

representacional do avesso. A personagem-t’tulo casa com a filha de um nobre. Ele

 procura ser igual aos membros da Corte. Esse homem simpl—rio articula

inverossimilhan•as tremendas em sua fantasia: seus atos s‹o imposs’veis dentro do

sistema social da Žpoca. No teatro apresenta-se uma transgress‹o da ordem vigente,

rid’cula tanto para a Corte quanto para os campesinos. Georges Dandin reœne os

 paradoxos que uma transgress‹o realiza. Por isso, a pe•a articula-se como momento

em que os fatos encenados provocam um riso n‹o pontual. Os acontecimentos

explicitam um absurdo frente ao horizonte de expectativas quanto ao modo como as

identidades sociais eram definidas.

Assim sendo, vemos como a leitura de uma pe•a teatral se problematiza. A

din‰mica representacional do teatro, com sua materialidade espec’fica, dialoga tanto

com a tradi•‹o das artes da cena quanto com as formas de organiza•‹o da

comunidade. Em todo o caso, eventos performativos explicitam ser car‡ter de coisas

constru’das, sua metateatralidade. Obras teatrais s‹o an‡lises in situ de procedimentos

de organiza•‹o e valida•‹o de realidades.

Georges Dandin  foi representada posteriormente agora em temporada emParis, no Teatro do Palais Royale. Em sua nova montagem, n‹o houve mœsicas ou

dan•as. Assim, n‹o mais nos jardins de Versalhes, optou-se por modificar um excesso

 por outro: o excesso das distin•›es da primeira montagem rebaixava a fantasia da

 personagem-t’tulo ao mesmo tempo em que dignificava a excepcionalidade do

monarca e suas regras. J‡ na cidade, a artificialidade redundante dos muros estŽticos

 poderia ser a nova comicidade, o novo rid’culo, deslocando o rebaixamento do

absurdo campesino para o absurdo da corte. Em outro contexto, uma nova forma deorganiza•‹o do espet‡culo. A din‰mica da performance atravessa os lugares sociais.

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Ainda, publica-se o texto da pe•a e como objeto de leitura, multiplicam-se as

apropria•›es da obra, em virtude das edi•›es piratas. Considerando as formas

impressas da pe•a tambŽm como um tipo de performance (CHARTIER, 2002:53)Ó,

Chartier acompanha como omiss›es, substitui•›es, confus›es e acrŽscimos n‹o s‹o

somente erros de tipologia e sim apropria•›es dos textos, deliberadas interven•›es e

modifica•›es da obra, reperformances. A interferncia da oralidade nas diferentes

edi•›es materializa um novo texto, inserindo e alterando posturas previamente

registradas.

Da sociedade como espet‡culo ˆ socializa•‹o das representa•›es Ð seguindo a

an‡lise de Chartier podemos observar as mœltiplas formas por meio das quais os atos

interpretativos s‹o realizados. Textos deixam de ser entidades aut™nomas e se

apresentam como espa•os de emergncia de conflituosas disputas e trocas. A

teatralidade explicita a configura•‹o destes embates.

 Neste sentido, a explicita•‹o da materialidade dos textos e da corporeidade

dos leitores encaminhou Chartier para o complexo lugar dos textos teatrais. A

amplitude da cultura escrita Ž apreens’vel dentro de uma moldura teatral. Se Ò as

obras, os discursos, s— existem quando se tornam realidades f’sicas, inscritas sobre as

 p‡ginas de um livro, transmitidas por uma voz que l ou narra, declamadas num placo

de teatro (CHARTIER, 1994: 8)Ó, ent‹o o estudo de textos teatrais proporciona o

exerc’cio de habilidades que n‹o se reproduzem h‡bitos interpretativos baseados na

abstra•‹o da leitura e dos textos173.

BIBLIOGRAFIA

CHARTIER, R . Do palco ˆ p‡gina. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002.

CHARTIER,R. Formas e sentidos. S‹o Paulo, Mercado das letras, 2003

CHARTIER, R.  A ordem dos livros. Bras’lia, Editora UnB, 1994.

173 Para cr’ticas de interpreta•›es de R. Chartier veja-se o artigo de A. MartinsVianna ÒÕShakespeareÕ entre atos editoriais: A prop—sito de uma cr’tica a RogerChartierÓ Hist—ria, Imagens, Narrativas, 3, 2006, acessado emwww.historiaimagem.com.br/edicao3setembro2006/shakespeare.pdf.

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Outras publica•›es que R.Chartier trabalha diretamente com textos teatrais:

CHARTIER, R e STALLYBRASS,P. ÒReading and Authorship: The

Circulation of Shakespeare 1590-1619Ó In A Concise Companion to Shakespeare and

the Text.Blackwell Publishing, 2007.

CHARTIER, R . Ò  Jack Cade, the Skin of a Dead Lamb, and the Hatred for

WritingÓ, Shakespeare Studies, Volume XXXIV, 2006, p. 77-89.

CHARTIER,R., MOWERY,J.F., WOLFE,H., E STALLYBRASS,P.

ÒHamletÕs Tables and the Technologies of Writing in Renaissance England Ò

Shakespeare Quarterly, Vol. 55, Number 4, 2004, pp. 379-419

CHARTIER,R. ÒTexte et tissu. Les dessins dÕAnzoletto et la voix de la

navetteÓ, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 154, Septembre 2004, p. 10-23.

CHARTIER, R. Ò ÔCoppied only by the earsÕ : le texte de thŽ‰tre entre la scne

et la page au XVIIe sicleÓ, Du spectateur au lecteur. Imprimer la scne aux XVIe et

 XVIIe sicles, Larry F. Norman, Philippe Desan, Richard Strier (eds.), Fasano, Schena

Editore, et Paris, Presses de l'UniversitŽ de Paris-Sorbonne, 2002, p. 31-53.

CHARTIER, R. Ò Editer Shakespeare (1623-2004)Ó , Ecdotica, 1, 2004, p. 7-

23.

CHARTIER, R. De la scne ˆ la page È, Le Parnasse du thŽ‰tre. Les recueils

dÕÏuvres compltes de thŽ‰tre au  XVIII e sicle, Georges Forestier, Edric Caldicott et

Claude Bourqui (dir.), Paris, Presses de lÕUniversitŽ Paris-Sorbonne, 1987, p. 7-41.

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7- TRADI‚ÌO E RAZÌO : MODERNIDADE E MITO EM RUMBLE

FISH 

 N‹o Ž novidade ou redund‰ncia, mas urgncia estreitar os v’nculos entre arte

cinematogr‡fica e dramaturgia. Tal aproxima•‹o ultrapassa as meras referncias

tem‡ticas que se confinam em elencar similitudes sem o questionamento a respeito da

natureza mais fundamental dessa proximidade. Ora, como processos de constru•‹o da

realidade, pertencem a contextos culturais distanciados no tempo (AntigŸidade e

Modernidade). Assim sendo, poder-se-ia afirmar que a maneira mais adequada para

configur‡-los num mesmo plano seria neutralizar a diferen•a epocal e fazer falar um

 pelo outro.

Contudo, a reflex‹o pautada pelos ditames da adequa•‹o s— se sustenta na

 provis—ria inst‰ncia predicativa que apresenta o que discute por meio de estratŽgias de

entendimento normalizadoras. Ou seja, discute-se com o objetivo de tornar

indiscutida a estrutura e o significado do fen™meno visado (imagina•›es para a cena

diferenciadas). Teatro e cinema comparecem como momentos-luminares da tradi•‹o

ocidental quanto ˆ apreens‹o e interpreta•‹o dos eventos. Mais que ilusionismos

estŽticos reprodutores de ordens hist—ricas localizadas, ambos s‹o atualiza•›es do

dram‡tico - experincia humana de compreens‹o dos acontecimentos.

Estranho que se pense assim, que se medite medeando passado e presente sem

as sempre v‡lidas compara•›es. A arte cnica e a atividade f’lmica possuem narra•‹o,

atua•›es personativas, representa•›es englobantes que envolvem jogos

intersemi—ticos ( cor, som, movimento, gesto, palavra), estabelecem participa•›esentre o que se mostra e quem v. Pertencem, resumidamente, ˆs contingncias da

visualidade. E encontram-se na din‰mica das recep•›es: a passagem dos grandes

 pœblicos para as pequenas platŽias no transcurso temporal do teatro e (o inverso no

cinema) - como se uma arte desse a senha para a outra.

Continuando as similitudes, passar’amos das informa•›es pulverizadores para

significados mais integradores. Ambos os modos de representa•‹o da realidade

surgem em contextos de excessos de utiliza•‹o da visualidade como meios deresolu•‹o dos conflitos cognitivos, afetivos e volitivos. No momento grego, a

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antropomorfiza•‹o dos deuses, intensificada pela reforma homŽrica - e denunciada

 por Xen—fanes -, atribu’a aos deuses, aos terr’veis-desconhecidos-ausentes, formas

humanas t‹o evidentes, imputando-lhes desejos, crimes e v’cios - o que acarretava a

indistin•‹o entre divinos e mortais. O apagamento da diferen•a Ž contempor‰neo do

arrefecimento do sagrado, instaurando uma crise religiosa sem precedentes que Ž a

crise das rela•›es com a verdade, motivo depois utilizado no debate entre fic•‹o e

realidade.

O teatro ateniense desenvolve-se nesse drama da cultura. Cultura Ž unidade de

culto (Eudoro de Sousa); reverenciamos aquilo em que acreditamos. Quando essa

cren•a situa-se no limite de sua possibilidade, necessita a reelabora•‹o interpretativa

desse limite.

E eis o teatro. Encena-se, dentro das festividades dionis’acas, o her—i

homŽrico, corrigindo, pela curva do destino, o ’mpeto de sua desvitaliza•‹o. Vive o

 personagem a arquiviagem de seu deus. O her—i Ž imolado no sacrif’cio aos ausentes.

Temos, ent‹o, uma dupla disposi•‹o dos eventos. Na sua estrutura aparente,

desfila o per’odo her—ico grego; em sua estrutura profunda, acena-se para a dimens‹o

m’tica que subliminarmente emoldura o que se encena.

Desse modo, o que se apresenta Ž mais do que uma mera presen•a mimŽtica

que se reduz ˆ atualidade do visto. Registra-se uma totaliza•‹o que supera o

isolacionismo das partes dramatizadas.

Duplo de um ser desdobrado, encontramos, na configura•‹o mesma do

espet‡culo dram‡tico, essa pluralidade de n’veis recuperada por meio da Ôilus‹o

cnicaÕ. Nessa, pœblico e palco passam a existir conjuntamente em um jogo de

dist‰ncias e proximidades, dentro do qual cada momento atual do teatro investe-se da

construtividade do tempo. AquŽm e alŽm das marcas de referencia•‹o estereotipadas,

distende-se o ritmo de representa•‹o, no encontro e no mœtuo envio de realidades pertencentes a contextos diversos de a•‹o, mas reunidas em diversa teleologia que se

utiliza do descont’nuo como linguagem compat’vel com o modo atravŽs do qual nos

inserimos em outra factualidade. Tanto ficcionais como corporizados se encontram os

que vem e os que s‹o vistos. Desdobra-se a pe•a agora contempor‰nea de seu

 processo enformador. Ver e imaginar n‹o s‹o incompat’veis, mas atividades

interdependentes que experimentam a problematiza•‹o dos modos e dos meios da

efetividade do afetivo, da doa•‹o de um logos para o pathos.

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Tempo, espa•o, linguagem, pessoa nutrem-se dessa descontinuidade

 pluralizante assumida estruturalmente na arte cnica. N‹o se trata de identificar

ambigŸidades nas falas dos personagens, de notar como suas a•›es pertencem a

diferentes ordens simb—licas, de verificar a arquitetura multifacetada dos personagens

elaborados na contracena•‹o e partipantes de nexos interindividuais que

 proporcionam um estatuto metaf—rico a seu ser.

 N‹o se trata de perceber esses elementos isoladamente e sim de passar do

 plano do conteœdo para o plano da express‹o e ver que tais tŽcnicas de elabora•‹o do

evento cnico s‹o processos que demonstram a singularidade do Ôdram‡ticoÕ.

O dram‡tico n‹o se guia pelos ditames da organicidade da obra de arte que o

condenariam a assumir total dependncia do estŽtico a uma dimens‹o extra-art’stica

ocupada na m’mesis de uma unidade. Tal codifica•‹o filos—fica do fato art’stico

instrumentaliza o estŽtico, fazendo com que ele responda ˆ cartilha dos fil—sofos do

œnico-uno-unificante, expurgando, por meio de esquemas abstratos de equil’brio e

normatividade, o contradit—rio do seio do mundo.

Ao contr‡rio, a atividade cnica chama para si o contradit—rio e o conflitivo.

Contrariando as generaliza•›es formalistas de Arist—teles, que viam na tragŽdia certa

m‡quina de efeitos emocionais refor•ada pelas causalidades determinantes do enredo,

o que se constata Ž o vertiginoso aprofundamento do contradit—rio como forma de se

atingir a integratividade e diferencia•‹o de n’veis da realidade. O dram‡tico Ž a dupla

fenomenologia da compreens‹o, pois interpreta os acontecimentos concretizando-os

no horizonte existencial e imaginativo de sua efetiva•‹o.

Em Rumble Fish, de Francis-Ford Coppola, os suportes cnicos se fazem

 presentes, condicionando o entendimento do filme. Entrecruzam-se dois planosnarrativos b‡sicos. Dois irm‹os e suas duas vidas aproximam-se e afastam-se ao

mesmo tempo. O irm‹o mais novo, Rusty James, procura concretizar o ideal

comportamento de seu irm‹o mais velho, cognominado de Ôo garoto da motocicletaÕ.

O que temos Ž a representa•‹o do hero’smo nos tempos modernos.

Rusty James herda o gerenciamento do conflito que o her—i possibilita.

Contudo, Rusty James expulsa a ambivalncia onde quer que ela possa estar,

nivelando os acontecimentos ao satur‡-los com o modelo œnico de resposta, que Ž oreflexo reiterado de seu individualismo. Em todos instantes de seu percurso actancial,

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no desafio de gangues, na fam’lia, na escola e no amor, permanece ele inc—lume,

imune aos contextos diferenciados, agindo do mesmo modo e reagindo da mesma

maneira, impondo o saciar de sua presen•a.

Rusty James encarna o pleno, o tudo ao mesmo tempo agora, ultrapassando as

singularidades, configurando-as na obedincia de um vitalismo cego. Rusty James

n‹o sofre - n‹o h‡ perdas ou ganhos para ele. Feito imortal, entidade ol’mpica, cultiva

o ilimitado, em uma raz‹o cativa de sua egolatria. Seu saber Ž o da esperteza, um

reduzido logos de Ulysses, que se compraz na manuten•‹o de uma transcendncia

vazia que se perpetua para alŽm das diferen•as.

Esse her—i de uma presen•a atual, pontual, sem mem—ria, confronta-se com a

serenidade do irm‹o mais velho, antigo l’der de gangues, que viu todo esse

gerenciamento de conflitos n‹o render mais sentido para sua existncia. O garoto da

motocicleta vai embora para Calif—rnia e volta, din‰mica de entradas e sa’das cnicas

que proliferam a abrangncia de sua figura. Negando o hero’smo apol’neo do eterno

retorno do mesmo, m’mesis extempor‰nea da supress‹o dos limites, ele intervŽm nos

diversos momentos da gesta de Rusty James, insuflando-a de reflex‹o e percep•‹o

sobre o obtuso de sua perspectiva.

Com ele, pensar e sentir n‹o se encontram separados. O garoto da motocicleta

 pergunta e difunde saber. Os contextos s‹o assimilados dentro do horizonte

compreensivo que os emoldura. As especificidades dos momentos se integram na

l—gica subjacente que os constr—i. Para alŽm das categorias de exibi•‹o e

atemporalidade, a vida n‹o Ž barganha com o imenso e tedioso movimento de

unifica•‹o das situa•›es existenciais.

 Na grande cidade onde os irm‹os vivem, o plural real•a o un’voco. Dia e noite

se sucedem na ciclomitia da nŽvoa que habita todos os espa•os e todos instantes,

desvanecendo e dessubtancializando os contornos e as formas do mundo. Viver aqui Žsobreviver em meio ao que j‡ se orienta entre carca•as de coisas. ƒ preciso o rigoroso

vigor aplainador das diferen•as para permanecer na grande cidade. Os nexos

interindividuais, seja no amor seja na lealdade, expressam-se em estratŽgias

comportamentais que asseguram seu enquadramento em um circuito padr‹o de

referncias. Indiv’duo e grupo, mesmo e outro, todo e parte se associam em unidade

org‰nica que se apresenta como representa•‹o globalizadora do parcial, circunscri•‹o

do diverso ao monol—gico.

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Rusty James Ž o habitante e her—i dessa cidade. Seu irm‹o, o que negou tal

envolt—rio rumando para a utopia que ela aponta (Calif—rnia, a imagem do prazer sem

limites, a imensa prostituta maquiada e doente), volta. Ir e vir, estar e n‹o estar,

 pertencer e n‹o pertencer objetivam a complexa r’tmica de dispers‹o, cujo emblema Ž

de integrar e diversificar.

Ambos contracenam um conflito de saberes que ultrapassa a diferen•a de

opini›es.

Em determinado momento da narrativa, os irm‹os discutem sobre uma mulher

denominada Cassandra, hom—loga da personagem da pe•a Agamenon, de ƒsquilo.

Rusty James, o que s— conhece o que se reconhece imerso em sua l—gica unificante,

desconhece a tradi•‹o. Interroga-se, real•ando sua inst‰ncia descontextualizadora: ÒE

o que os gregos tm a ver com isso ?Ó

Cassandra era a profetisa que previu a pr—pria morte e que, em sua agonia,

recuperava a morte do rei Agamenon. Longe da exposi•‹o contempor‰nea da morte,

 preocupada no quantitativo e no informativo da mortantade e do mort’fero, mostra-se

e se demonstra a finitude como poss’vel expressivo, como palco outro que dramatiza

a estrutura da sensibilidade relacionada a uma estrutura da imagina•‹o, para que se

registre o acontecimento do limite como limiar compreensivo. A morte n‹o Ž regi‹o

œltima e intranspon’vel, que s— se doaria em feitos irracionaliz‡veis, dep—sito

sedimentado de emo•›es. Ao invŽs de res’duo transcendental do nada, a morte

comparece em sua plasticidade originante, como desafio aos meios de constru•‹o de

significados. Por isso, nutre de agonias, esperas, dœvidas, incertezas,

desconhecimentos - momentos cnicos que, em sua entreabertura mediadora de

contr‡rios, possibilitam, em si mesmos, as formas e os conteœdos de sua ratifica•‹o.

O que os gregos tm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos anos

entre a pergunta de Rusty James, modelar her—i da subjetividade moderna, e a figura

de Cassandra, acontecer da morte na tragŽdia grega, recupera-se uma pergunta que

rep›e um saber transhist—rico. Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte

comum da experincia humana, diante de signos que retomam uma ausncia que nada

mais Ž que desvincula•‹o com os pressupostos cristalizados e com o imediato, sempre

a hesita•‹o ante a ambivalncia do desconhecido irrompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frinchas e as brechas de indetermina•‹o (Husserl)

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dos fen™menos como tempos pr—prios da compreens‹o e ruma-se para dinamizar o

c—gito em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme do

claro-escuro da conscincia.

O que os gregos tm a ver com isso ? H‡ dois mil e quinhentos anos o teatro

ateninense produzia uma arte-conhecimento que prop›e o descont’nuo, o

contradit—rio como modo de concretiza•‹o dessa conscincia. Naquele tempo tambŽm

surgiu a pergunta Ó E o que Dioniso tem a ver com isso ? Ó, diante da incompreens‹o

do fundo m’tico agente e subagente na arte dram‡tica. Veja-se a transhistoricidade da

quest‹o, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de todas as Žpocas. Em

determinado momento, h‡ uma crise de ordens na cultura. J‡ n‹o se percebe mais o

horizonte de tudo o que Ž ou existe. Agora h‡ somente a urgncia de se interrogar pelo

nexo das coisas, pelos v’nculos que situam os encontros entre as diferen•as.

Tradi•‹o x raz‹o - eis a problem‡tica que encampa tal interrogar (Gadamer).

Dentro de um espa•o- tempo, ascendemos ˆ pluralidade de n’veis estruturantes dos

acontecimentos, sendo que esses n’veis s‹o percebidos como n‹o pertecentes ao

mesmo fen™meno. S‹o t‹o divergentes as ordens de sentido que n‹o mais convergem

 para o intervalo nodal que os consagra. Consequentemente, engendra-se uma

Ôtradi•‹oÕ, um pretŽrito como imagem de algo que perdeu seu vigor e seu valor, e uma

ÔmodernidadeÕ que hospeda o que pode ser racionaliz‡vel e pertencente ˆ urgncia

fulcral do necess‡rio e do caracter’stico. Relega-se ao museu de formas passadas tudo

o que refor•a a atualidade coesa e coerente do que faz sentido em sua clareza e

harmonia estabelecidas.

A temporalidade aqui Ž constitu’da e cifrada em atitudes de exclus‹o e

interdi•‹o que patenteiam um processo de referencia•‹o ocupado em manter

constantes de sentido. Algo n‹o possui mais significa•‹o, pois n‹o obedece mais ao

esquema can™nico de representa•‹o. Repercute-se certa Raz‹o, certa estratŽgiainterpretativa que uniformiza as percep•›es agora como reprodutoras do modelo-base

e n‹o como aproxima•›es ao diferencial da diferen•a dos eventos. Pensar aqui Ž

conduzir a compreens‹o para entronizar o j‡ sabido, o j‡ sentido, o j‡ desejado.

Rusty James Ž o teatro vivo que elimina o dram‡tico. O contradit—rio n‹o

 pertence ˆ sua esfera de a•‹o. Quando n‹o sabe de algo, seu n‹o saber Ž apenas

conclus‹o de que esse algo n‹o faz parte e nunca far‡ daquilo que ele de antem‹o

conhece. Quando n‹o percebe, seu n‹o perceber Ž a reposi•‹o do mesmo esquemacognitivo que expulsa tudo e todos que escapam desse esquema. Por isso pergunta,

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desdenhando da pr—pria pergunta. Por isso Òo que os gregos tm a ver com isso?Ó N‹o

Ž interroga•‹o, mas afirma•‹o que capitula diante do que n‹o Ž previamente

determinado por suas respostas j‡ automatizadas. No questionar j‡ n‹o h‡ mais

quest‹o, mas a pergunta j‡ diz de si o que procura como resolu•‹o da dœvida, que Ž

d’vida com o necess‡rio meio de sobrevivncia na grande cidade - o espetaculoso

crepœsculo da raz‹o frente ˆ elimina•‹o de suas virtualidades.

Rusty James poder‡ se ferir na briga de gangues, mas n‹o vai morrer; poder‡

 perder a namorada, mas n‹o sofrer‡; ser‡ expulso da escola e ainda continuar‡ senhor

de sua pessoa. Negar‡ o que est‡ pr—ximo de si e sair‡ inc—lume da vida - como

entrou, saiu.

 No entanto, o garoto da motocicleta vai morrer, vai morrer, pois se arriscou

muito mais. Viver Ž muito perigoso quando se atinge os limites da experincia

humana (Guimar‹es Rosa). Ele, que foi e voltou, que saiu da grande-pequena cidade,

realiza a transviagem, que Ž visagem da transcendncia maior. O mais importante

sempre est‡ perto de n—s. Transcender Ž tornar imanente, mais consciente e part’cipe

daquilo o que no jogo entre proximidade e dist‰ncia acusa a essncia variacional dos

seres e dos acontecimentos. Ser her—i Ž ultrapassar a arena de vitoriosos e perdedores

e repor o conflito, a descontinuidade impressa e inerente a tudo que Ž ou existe. AlŽm

e aquŽm se complementam na intensifica•‹o de suas disponibilidades.

O garoto da motocicleta, em um filme em preto e branco ( cores antigas para

eternos problemas, novos e velhos tempos se reunindo), vai morrer, pois todo her—i

morre. Morre para libertar os animais de suas jaulas, para fazer voar os p‡ssaros, para

retornar ao mar os peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, s‹o os peixes que

lutariam infinitamente, eternamente, atŽ contra si mesmos, como azuis e vermelhos,

contraditoriamente, s‹o as cores que vm do carro da pol’cia, logo para ele, dalt™nico,

que n‹o percebe as cores, mas compreende os conflitos.

A Hist—ria n‹o se escreve com os her—is, mas com o dram‡tico. A aversiva 

vers‹o brasileira do t’tulo do filme evoca um tragic™mico filtro rom‰ntico e

hiperrealista. O filme intitula-se originalmente Rumble Fish, referncia ˆ singular

espŽcie de peixes briguentos, mas foi batizado aqui como O selvagem da

motocicleta. O tom apelativo da nova embalagem comercial traduz o que hoje se

entende por dram‡tico e por art’stico. Revela-se nessa vers‹o traidora um problemacultural b‡sico.

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 No embate hist—rico entre Tradi•‹o e Raz‹o, instrumentalizou-se o

contradit—rio em prol do un’voco, racionalizou-se a Tradi•‹o a ponto de esquematiz‡-

la em conceitos tornados Ôcl‡ssicosÕ.

Complementar a esse direcionamento do passado por um olhar medusante, o

dram‡tico, que alimenta o conflito-base da cultura, foi negativado. Por isso o

acrŽscimo do ep’teto ÒselvagemÓ ao garoto da motocicleta. Tal emblema Ž verdadeira

legenda que reduz o fen™meno ao seu valor abstratamente atribu’do e n‹o ˆ sua

realidade efetiva. O selvagem evoca e provoca a esfera irracionalizavel a qual

 pertenceria o dram‡tico. L‡, nessa regi‹o que deve ser obstru’da e esquecida, as

ambivalncias e as contradi•›es, o ca—tico e o amorfo, as potncias misteriosas e o

sagrado habitam. Somente l‡, nessa regi‹o-licen•a-parntesis pode existir. Negativar

o drama, situando-o na derrocada das estratŽgias cognitivas do mundo, Ž eliminar

todo saber que se defronte com a compreens‹o de seus limites. ƒ subordinar todo

 pensamento, toda a•‹o, todo desejo ˆ m’mesis distributiva de uma normalidade

 perene, exclusiva e absoluta.

Contra essa modernidade de todas as eras, existe a premente recusa de n‹o

aceitar a perda da dimens‹o plural dos acontecimentos de sentido Ð aquilo que muitas

vezes o teatro encena e para a qual o cinema, em certos momentos, aponta.

Toda obra de arte fala de si mesma. Em cada filme, em cada pe•a, exibe-se

uma realidade como linguagem das escolhas assumidas, de poss’veis concretizados. A

arte cinematogr‡fica e a arte teatral se aproximam como vigilantes perpetua•›es do

dram‡tico, da capacidade da compreens‹o em efetivar a construtividade dos conflitos,

ao invŽs do gerenciamento metaf’sico e conclusivo destes.

 Num palco, numa tela o que se apresenta Ž mais do que se representa. V-se

uma fatal combina•‹o de presen•as e ausncias sobredeterminadoras do imagin‡rio,

que se faz no momento de sua recep•‹o. Ver aqui Ž dinamizar a compreens‹o naassimila•‹o dos diversos, em uma l—gica outra que mantŽm a pluralidade do que se

concretiza. Ver aqui Ž contextualizar o processo de referencia•‹o na construtividade

de sua inst‰ncia formativa. Ver Ž configurar, Ž transcender o visto, para patentear o

horizonte construtivo do que se apreende. Eis a experincia do dram‡tico: concretizar

no intervalo entre o real e o imagin‡rio, medear o infinito no finito, materializar o

tempo da origem na experincia origin‡ria da estrutura da compreens‹o conectada ˆ

estrutura da criatividade.A cena e a tela, meus amigos, ainda podem vencer a arena.

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8- APROXIMA‚ÍES A UMA DRAMATURGIA FêLMICA A PARTIR

DO CASO EISENSTEIN

Em 1951, no ensaioÓ Teatro e cinemaÓ, AndrŽ Bazin, refutando a pureza da

linguagem cinematogr‡fica (cinema puro) e o Òpreconceito contra o teatro filmadoÓ 

174, prop›e que se reconsidere Ò a hist—ria do cinema, n‹o mais em fun•‹o dos t’tulos e

sim das estruturas dram‡ticas do roteiro e da mise-en-scneÓ175.(OC 123) O sucesso

das adapta•›es de obras teatrais para a tela realizadas por Laurence Olivier ( Hamlet ),

Orson Welles ( Macbeth-Reinado de sangue) e Willian Wyler ( PŽrfida ), entre outros,

expunha n‹o s— a fragilidade do apagamento e oculta•‹o do suporte teatral operado

 pela narrativa cinematogr‡fica cl‡ssica. Exibia, passava para a tela, a teatralidade do

drama, de forma a evidenciar que Ò o tema da adapta•‹o n‹o Ž o da pe•a, Ž a pr—pria

 pe•a em sua especificidade cnicaÓ (OC 156).

Ora, se a tela do filme exibe o dispositivo cnico, um outro n’vel de

representa•‹o alinha-se ˆ proje•‹o de imagens. Impresso na visualidade do que se

observa est‡ uma diversa referncia que o seguir da narrativa. A adapta•‹o nos coloca

diante da exibi•‹o de concretas e intelig’veis marcas n‹o narrativas,as quais se

 justap›em ˆ seqŸncia do que Ž mostrado. ƒ passada para a tela a teatralidade, uma

ainda n‹o definida, mas reconhecida moldura representacional, que acopla, ˆ

visualidade dos eventos, um horizonte de observ‰ncia que interfere na identifica•‹o e

compreens‹o do que se v. Se a adapta•‹o deixa isso expl’cito, real•a o que j‡ havia e

que n‹o era focado com nfase.

Essa interferncia da teatralidade chama a aten•‹o para os suportes dram‡ticosda linguagem f’lmica, para aquilo que n‹o deve ser exposto: a heterogeneidade do

174 Essa pureza recalcitrante cria as ambivalentes defini•›es de extra-cinematogr‡fico, atravŽs das quais o monop—lio tŽcnico de produ•‹o de filmes excluiuma dimens‹o composicional mais integral. O argumento da pureza da linguagemcinematrogr‡fica, ao fim, aplica-se a quest›es n‹o estŽticas. Em raz‹o disso, aaproxima•‹o de obras cinematrogr‡ficas a outras estŽticas e processos criativosquestiona este purismo e sua exclusividade narrativa.

175  Para maior agilidade da leitura, uso as notas de rodapŽ como referncia bibliogr‡fica e siglas seguidas do nœmero da p‡gina. Refiro-me aqui ao livro Ocinema (S‹o Paulo, Brasiliense, 1991) pela sigla OC.

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cinem‡tico e sua dependncia a uma situa•‹o Òextracinematogr‡ficaÓ. As conven•›es

f’lmicas s‹o desnudadas pela exorbit‰ncia da teatralidade. O drama Ž a caixa-preta do

filme.

 No mesmo ensaio, ao procurar reorientar mais reflexivamente as dif’ceis

rela•›es entre teatro e cinema para uma conex‹o mais produtiva e reflexiva, Bazin

formula trs tempos-situa•›es dessa problem‡tica hist—ria :

 Momento 1-  resumido na rubrica o Ò teatro acode o cinemaÓ, postula que a

tradi•‹o multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectualmente os roteiristas.

Provocativamente, Óquanto mais o cinema se propor por ser fiel ao texto, e ˆs suas

exigncias teatrais, mais necessariamente aprofunda sua linguagemÓ(OC 157);

 Momento 2- sob a rubrica Ž ÒO cinema salvar‡ o teatroÓ, Bazin argumenta

que, por meio da explora•‹o da teatralidade operada pelo cinema em escalas

massivas, renova-se a concep•‹o de mise-en-scne teatral. O teatro v-se confrontado

com suas origens populares, repensando o div—rcio entre palco e pœblico;

3- a rubrica Òdo teatro filmado ao teatro cinematogr‡ficoÓ finalmente aparece

como uma s’ntese onde a cinem‡tica correlacionada a uma teatralidade proporciona a

emergncia de uma performance desse tempo, uma mise-en-scne  contempor‰nea.

Mais que m’dias diferentes, Bazin aponta para uma forma de espet‡culo integral que

rompa com a oposi•‹o entre teatro e cinema. Modernidade e tradi•‹o se conjugam

nessa mise-en-scne  contempor‰nea na qual o dispositivo f’lmico Ž modelado por

suportes teatrais.

Mas o que Ž esse teatro cinematogr‡fico? A componente cnica desse teatro

cinematogr‡fico restringe-se ao que Bazin chama de Ò virtualidades...estruturas

cnicasÓ(OC 150). O espet‡culo, porŽm, Ž da competncia da componente f’lmica. O

foco de an‡lise de Bazin Ž o que se pode chamar Ôfilme de arteÕ. O cinema como arte

Ž divisado na incorpora•‹o de tradi•›es representacionais hist—ricas como pintura eteatro. ƒ PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A

INCORPORA‚ÌO DA TRADI‚ÌO TEATRAL ƒ REIVINDICADA. O TEATRO

CINEMATOGRçFICO DE BAZIN ƒ UM CINEMA CUJO ROTEIRO ƒ

DIGNIFICADO COM Ò VIRTUALIDADES CæNICASÓ.

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Correlativamente, o teatro Ž visto pelas lentes de Bazin como teatro

liter‡rio176, no qual h‡ a primazia do texto sobre o espet‡culo. O idealismo estŽtico

desta postura, contr‡ria mesmo ˆ renova•‹o contempor‰nea da linguagem para a cena,

deixa em aberto a concretiza•‹o do teatro cinematogr‡fico, no qual a componente

cnica Ž uma evidncia n‹o discutida.

Mesmo assim, as rela•›es entre texto, teatro e cinema comparecem como

elementos para uma futura coordena•‹o mais esclarecedora.

O caso Eisenstein177 

Coube a um homem de teatro e posteriormente cineasta e te—rico do cinema

interrogar mais detidamente estes elementos. As dif’ceis rela•›es entre cinema e

teatro ocuparam n‹o s— a arte como tambŽm a biografia de S.Eisenstein. Antes de se

notabilizar como cineasta, n‹o s— foi aluno de um dos renovadores das artes de cena

(V. Meyerhold), como tambŽm dirigiu e encenou pe•as experimentais. Um detido

exame de sua passagem da cena para a tela e, quando da emergncia do filme sonoro,

um ÒretornoÓ ao drama, pode nos auxiliar na supera•‹o do idealismo estŽtico que

elogia a componente teatral da atividade cinematogr‡fica mas, contudo, n‹o

efetivamente determina o contexto de produ•‹o dessa componente.

O teatro para Eisenstein surge no contexto de renova•‹o da linguagem para a

cena teatral que a tradi•‹o antinaturalista (e antimimŽtica) moderna empreendeu. O

debate entre Constantin Stanislavski e seu aluno Vesevolod Meyerhold situa na

Rœssia esta tradi•‹o de ruptura. Eles divergiam, principalmente, quanto ˆ prepara•‹o

176 Concep•‹o monumentalizante do teatro que, a partir de leituras da PoŽtica,de Arist—teles, defende a subordina•‹o do espet‡culo ao texto, como ilustra•‹o dotexto. A partir das obras de Corneille e Racine atŽ o Naturalismo,tal concep•‹odeterminou um estilo de interpretar e construir obras, formando um pœblico atento ˆ

convencionalidade de uma representa•‹o teatral grandiloqŸente e verborr‡gica. Viroualvo critico b‡sico do contexto reativo das vanguardas teatrais. Para uma apresenta•‹ocr’tica de seus procedimentos consulte-se meu livro Imagina•‹o Dram‡tica ( Bras’lia,Texto&imagem,1998:160-188).

177 O caso Eisenstein foi sugerido por uma releitura da disserta•‹o de mestradode Maria Maia (UnB 1998) ÒA escritura f’lmica dramaturgia do enredo e dramaturgiada formaÓ. Segundo ela, retomando como modelo as mudan•as de foco nos ensaios deEisenstein, o filme nasce do conflito entre os elementos constitutivos plano/montageme argumento ou enredo. Uma linguagem espec’fica interagindo com umanarratividade espec’fica marcam a textualidade f’lmica. Em minhas considera•›es,

 porŽm, ressalto um fator Òextracinematogr‡ficoÓ mais efetivo, pouco comentado eanterior ˆ narratividade: a dramatiza•‹o, concentrando-me em problemas decomposi•‹o ao invŽs da analogia l’ngua/filme.

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de atores. Stanislavski, reagindo contra a falta de profissionalismo e (cons)cincia dos

atores de seu tempo, procurou desenvolver um conjunto de princ’pios para a atua•‹o,

atravŽs do qual os pensamentos e as emo•›es do intŽrprete adquiriam uma coerncia

fiel ˆ individualidade de uma personagem criado por um autor. Centrado na an‡lise do

texto e no isolamento da personagem frente ao pœblico - rea•‹o contra ˆs concess›es

do teatro comercial das companhias- , este conjunto de princ’pios parecia, em um

 primeiro momento178, dar menor aten•‹o ˆ exterioriza•‹o da a•›es. A prepara•‹o

intelectual do ator e a internaliza•‹o de uma imagem textual eram mais focalizados .

Meyerhold179, diferentemente, orienta-se para pensar e produzir a•›es f’sicas.

Ele parte das a•›es f’sicas para estruturar a representa•‹o. Esta invers‹o Ž uma

verdadeira subvers‹o n‹o s— na prepara•‹o de atores como na constru•‹o do

espet‡culo. Coloca-se em evidncia o contexto realizacional da performance cnica.

Ao invŽs de o espet‡culo ser um ve’culo para comunicar idŽias do autor, a exposi•‹o

Ž um acontecimento f’sico sujeito ˆ materialidade de sua efetiva•‹o. A audincia Ž um

fato f’sico concreto inerente a essa exposi•‹o. A observ‰ncia de um espet‡culo Ž a

intera•‹o com os movimentos no espa•o realizados por corpos expressivos.

Dessa maneira, Ž preciso reduzir a dist‰ncia entre palco e platŽia, dinamizar

formas de espa•o cnico (espa•os simult‰neos e focos mœltiplos) e explorar a

tridimensionalidade do corpo humano em situa•‹o de representa•‹o (MEB 26).

Meyerhold integrou todas essas atividades em um estilo interpretativo

chamado ÔBiomec‰nicaÕ. A prepara•‹o f’sica do ator, atravŽs do conhecimento do

corpo e da explora•‹o de suas possibilidades expressivas, determinou a perda de uma

absoluta autoimagem  do ator como horizonte de coes‹o da atua•‹o (MEB 96). Ao

invŽs de internalizar essa imagem, ele deve aprender tornar fact’veis movimentos

expressivos. Agora ele se confronta com a continuidade material de um audit—rio.

Dessa maneira, todas suas exterioriza•›es devem pressupor essa contingnciareceptiva. O corpo inteiro (MEB 103) em sua muscular presen•a Ž observado. Por

178 V. primeira parte deste livro. Com a divulga•‹o de documentos, sabemosque a quest‹o dos atos f’sicos em Stanislavski fora ampliada. No entanto, a quest‹odecisiva ainda reside no ponto de partida e na nfase de orienta•‹o de um processocriativo.

179  Sigo aqui em profus‹o o livro de Alma La e Mel Gordona  Meyerhold, Eisenstein and Biomechanics (Londres, Mcfarland Company, 1998) n‹o s— pelariqueza de informa•›es,como tambŽm pelos textos sobre a biomec‰nica traduzidos dooriginal russo, texto de disc’pulos de Meyerhold e textos pouco conhecidos da obra deEisenstein. Dou-lhe a sigla MEB.

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isso, Ž preciso que o movimento seja expressivo, com uma precis‹o capaz de predizer

e gerar audincia, atra•›es180.

Aqui est‡ o ponto-origem das produ•›es f’lmicas e te—ricas de Eisenstein: uma

dramaturgia que singulariza a experincia de observ‰ncia produzida por

 procedimentos que exploram essa experincia. A representa•‹o n‹o Ž a atualiza•‹o de

uma idŽia sem o contexto material de sua realiza•‹o. Na pr—pria representa•‹o este

contexto Ž explorado. O que Ž mostrado n‹o Ž a reprodu•‹o de uma realidade, mas a

exibi•‹o de uma anal’tica tempo-espacial, que torna fact’vel a compreens‹o do que se

observa.

Ao basear a representa•‹o em aspectos f’sicizados e materiais a Biomec‰nica

forneceu para Eisenstein o embasamento de um mŽtodo espec’fico de produzir

imagens que agem sobre o espectador. A organiza•‹o do movimento - explorada no

rendimento de seu efeito - exibida em cena fornece os par‰metros pelos quais o

observador coopera em sua observ‰ncia do o espet‡culo.

Dessa forma, o que antes pareceria um contra-senso, em um teatro onde s— se

comunicam idŽias, um teatro de cabe•as falantes, agora fundamenta o espet‡culo: Ž

 precisamente o movimento expressivo181, constru’do sobre um fundamento org‰nico

correto que Ž capaz de orientar a recep•‹o. O espectador Ž atra’do pela forma do

movimento executado diante dele. H‡ uma complexa m’mesis na qual os movimentos

expressivos exibidos atravŽs do apelo muscular dos movimentos do ator s‹o

reelaborados pela audincia (MEB 187).

Com o cinema, o forte contexto antimimŽtico vanguardista da Biomec‰nica e

o controle da representa•‹o visual poderiam melhor ser efetivados. Cinema Ž antes de

tudo para Eisenstein uma fic•‹o explorat—ria que, por meio da integra•‹o das

contingncias espa•o-temporais, possibilita o estudo e a figura•‹o de imagens que o

teatro limitava.A contraposi•‹o entre o teatral e o cinematogr‡fico se torna mais vis’vel a

 partir do momento em que a realidade representada n‹o se afasta da faticidade

180 Atra•›es no sentido de efeito sobre a platŽia atravŽs do movimento f’sicode espet‡culos tais como circo, boxe, music hall , acrobacia, teatro chins, paradasmilitares foi o que Meyerhold pensou e Eisenstein aplicou ao cinema em seu famosoartigo ÒMontagem de atra•›esÓ de 1924.

181 Movimento expressivo Ž um conceito-s’ntese da Biomec‰nica. Adecomposi•‹o dos movimentos e sua conex‹o entre eles como forma de agir sobre oespectador amplifica em termos corporais o que Eisenstein pensa sobre a montagem.

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material da realidade n‹o representada. Este Ž o esp’rito de seu ensaio ÒDo teatro ao

cinemaÓ182, uma varia•‹o do  Mito ao logos. O t’tulo reivindica um trajeto que

assinala certa ultrapassagem , uma medida valora•‹o evolutiva, uma defasagem entre

in’cio e fim de percurso183.

 No teatro, Òa impossibilidade da  mise-en-scne  se desenrolar pela platŽia,

fundido palco e platŽia em um padr‹o em desenvolvimentoÓ(FF 23), sua geometria

convencional de justapor movimento sem contiguidade redundaram em uma

hipertrofia da representa•‹o. H‡ uma impossibilidade f’sica do teatro em coordenar os

movimentos disjuntivos que se mostrem em uma unidade que supere seu localismo.

As tentativas pl‡sticas (elimina•‹o de painŽis pintados, utiliza•‹o de objetos cnicos,

movimentos corporais, mœsica, superposi•‹o de imagens projetadas e atores) de

superar essa limita•‹o da materialidade (limita•‹o fragrante pela imagem

cinematogr‡fica) devolvem tal impossibilidade representacional.184  A linearidade

seqŸencial do que se exp›e em cena n‹o tem o aprofundamento de detalhe e estrutura

que o plano e suas transi•›es f’lmicos facultam.

Ent‹o Ž preciso ao invŽs de uma mise-en- scne, uma mise-en-cadre, isto Ž,

Òcomposi•‹o pict—rica de cadres (planos) mutuamente dependentes na seqŸncia da

montagem (FF 23)Ó.

O convencionalismo do teatro dominante, avesso aos requisitos tŽcnicos da

materialidade cnica, elabora uma realidade artificiosa que Ž refutada pela montagem

f’lmica. A montagem possibilita o registro e exposi•‹o de escalas apropriadas para o

que Ž enfatizado, tornando a descri•‹o n‹o proporcional de um movimento um evento

organicamente efetivo. Dessa maneira ao Ò desbastar peda•os da realidade com o

machado da lente(FF 44)Ó, o cinema opera uma interven•‹o que explicita seu modus

operandi: demonstra e mostra a refigura•‹o dos materiais que exibe.

As imagens em movimentos do cinema, como uma Biomec‰nica f’lmica, providenciam uma composi•‹o (esquema gr‡fico) que orienta a recep•‹o

182  De A forma do filme ( Rio de Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF183 Basta ver que em 1939 sobre esta Žpoca Eisenstein afirmaÓ eu estava

crescendo, saindo do teatro para o cinemaÓ(FF 168).Em 1928 mesmo ele proclamaque Òestou convencido que o cinema Ž o n’vel de hoje do teatro. De que o teatro emsua forma mais antiga morreu e continua a existir apenas por inŽrciaÓ(FF 33)

184  N‹o esquecer que este texto de 1929 avalia o fracasso de sua produ•‹o M‡scaras de g‡s na tentativa de se representar o cotidiano de uma f‡brica , mesmocom todos os aparatos modernos de encena•‹o e prepara•‹o de atores.

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(emo•›es/raz›es do espectador). Quanto mais houver um rigoroso sistema de rela•›es

na composi•‹o maior ser‡ o impacto sobre a recep•‹o.

ƒ no ensaio ÒDramaturgia da forma do filmeÓ(1929) que o posicionamento de

Eisenstein quanto ˆ supera•‹o do teatral encontra-se fundamentada. Ele j‡ havia

realizado duas grandes obras cinematogr‡ficas {O encoura•ado Potemkin  (1925) e

Outubro(1928)}, que serviram como experimentos confirmadores das posturas que

defendia. O t’tulo mesmo postula n‹o uma dramaturgia relacionada com uma situa•‹o

de observ‰ncia teatral e sua concretiza•‹o tempo-espacial, mas a incidncia de

aten•‹o sobre obten•‹o de um espet‡culo visual-musical. A concretude material

dentro do plano em suas disposi•›es e reapropria•›es pela montagem geram

orienta•›es associativas atravŽs das quais se pode esperar encontrar Óuma dramaturgia

da forma visual do filme t‹o regulada e precisa quando a existente dramaturgia do

argumento do filme.Ó(FF 59) A sintaxe visual prevalece sobre a sem‰ntica . A

dramaturgia aqui Ž o planejamento do modo eficiente de combinar diferentes

extens›es de planos e as tens›es decorrentes como forma de impactar a audincia,

fazendo-a identificar os conflitos dos materiais expostos como atualiza•›es

avaliativas dos conflitos que s‹o conceptualizados no referente dos materiais.

O processo mec‰nico e tŽcnico da montagem185  se transforma em princ’pio

construtivo. Planos independentes e atŽ opostos colidem e, quando previamente

arranjados e planejados, destinam seu confronto para a garantia da homogeneidade do

representado. Por isso, para maior eficincia do processo de montagem, Ž preciso uma

metodologia da forma desprovida de referncia ao conteœdo ou enredo. Mas a

ÒdramaturgiaÓ da forma do filme continua a pagar dividendos para fatores teatrais...

Eisenstein foi perceber, depois, que somente o design do filme n‹o era

suficiente para uma experincia cinematogr‡fica completa. A teoria do cinema

intelectual, que transforma conceito abstrato em forma vis’vel na tela revelava haveruma descontinuidade entre idŽia e visualidade. A substitui•‹o exaustiva do conteœdo

(FF 121) exibia seu sucesso em uma eficincia redutora. A visualidade n‹o Ž uma

evidncia, mas o registro de uma situa•‹o observacional. As imagens fazem ver quem

185 Essa centralidade da montagem, explicitando sua motiva•‹o reativa ˆ pr‡ticas representacionais mimŽticas, abunda no exerc’cio especulativo de diferenciarmodalidades de montagem, como se v no artigo de 1929 ÓMŽtodos de montagemÓ(FF 77-84), no qual temos a defini•‹o de montagens mŽtrica, r’tmica, tonal, atonal eintelectual. Tudo agora Ž montagem, mas em diferentes n’veis qualitativos de suautiliza•‹o.

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as observa. Surge ent‹o a quest‹o de se Òretratar uma atitude em rela•‹o ˆ coisa

retratadaÓ (FF 137).

Tal ÓviragemÓ tornou-se mais palp‡vel inicialmente quando de suas atividades

did‡ticas no Instituto Estatal de Cinematografia (1932). Em um curso nesse mesmo

ano, Eisenstein afirma que Óconstruir a cinematografia a partir da idŽia de

cinematografia e de princ’pios abstratos Ž b‡rbaro e estœpido. Apenas atravŽs da

compara•‹o cr’tica com as formas primitivas b‡sicas do espet‡culo Ž poss’vel

dominar criticamente a metodologia espec’fica do cinemaÓ(FF 88). Ainda pensando

em termos de uma diferen•a tŽcnica (Ôformas primitivasÕ) - hesita•‹o que posiciona a

 perspectiva e a valora•‹o do cineasta - Eisenstein reinsere o estudo do teatro como

algo insepar‡vel do estudo do cinema.

Esta reinser•‹o do ÔteatroÕ alinha-se com a escritura cinematogr‡fica. O

elemento n‹o f’lmico Ž requisitado para a expans‹o do f’lmico. A luta pela alta

qualidade da cultura do filme passa pela quest‹o liter‡ria da escritura cinematogr‡fica

ao se incorporar e superar a tradi•‹o de textualidade art’stica existente. O cinema

transparece como uma m‡quina transformadora de tradi•›es art’sticas, como a

tragŽdia grega o fora 2500 anos atr‡s186.

Em 1935 no ensaio ÒA forma do filme: novos problemasÓ , diretamente

relacionado com ÒA dramaturgia da forma do filmeÓ, Eisenstein rev seu percurso

cinebiomec‰nico. A impossibilidade do cinema puramente conceptual e da pureza da

linguagem cinematogr‡fica fica patente na mudan•a estrutural da ÒrecenteÓ produ•‹o

soviŽtica de filmes, na qual se nota Òo uso de uma dramaturgia mais tradicional, com

 personagens-her—is se distinguindoÓ(FF 118). Ao invŽs das imagens coletivas de

experincias das massas, a individua•‹o da figura concretiza o detalhamento

integrante que a montagem busca atingir.

Eisenstein v nessa mudan•a um desvio e uma corre•‹o de percurso no qual aforma n‹o Ž negada, e sim real•ada com o aprofundamento e amplia•‹o das

formula•›es tem‡ticas e ideol—gicas que as Òquest›es de conteœdoÓ trazem ao cinema

(FF 118). Agora o org‰nico e o patŽtico interligados podem fornecer a possibilidade

da Òtotal apreens‹o de todo o mundo interior do homem, da reprodu•‹o total do

mundo exterior(FF 163).Ó

186 HERINGTON 1985.

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A mudan•a se intensifica ainda mais com o advento do cinema sonoro.

Eisenstein, que havia sido pioneiro no cinema mudo, hesitou diante da novidade. Seu

 primeiro filme sonoro,  Alexandre Nievski, Ž de 1938. Sua dœvida residia em como

coordenar som e imagem produtivamente187. Perguntava-se se nessa modalidade de

composi•‹o: Òo que voc v quanto est‡ ouvindo n‹o merece aten•‹o?Ó(FF 107) -

 preocupa•‹o inerente a quem tinha mŽtodos estritamente formais, quando toda

explica•‹o tem uma justificativa tŽcnica.

A sincroniza•‹o e igualdade r’tmica entre som e movimento representados se

oferecem n‹o s— como problema compositivo-tŽcnico, como tambŽm aproxima•‹o da

atividade cognitiva da obra. Com a complexidade de n’veis da realiza•‹o f’lmica -

agora n‹o Ž s— ver, e sim avaliar vendo e ouvindo avalia•›es - mobiliza-se a

inteligibilidade dessa complexa estratifica•‹o. O inter-relacionamento  criativo das

 bandas sonoras e visuais Ž a proposi•‹o de sua pr—pria compreens‹o. Se Òn‹o Ž

suficiente apenas ver - algo tem de acontecer com a representa•‹o, algo mais tem de

ser feito com ela, antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura

geomŽtrica188(SF 18).Ó - coloca-se em quest‹o a imagem total da obra e sua

receptibilidade. ƒ preciso que" o filme se revele como constru•‹o diante do

espectador (SF 21).Ó

ƒ o que acontece n‹o por uma justaposi•‹o mec‰nica de n’veis, mas quando

tudo Ž plenamente desenvolvido e resolvido em um Óavan•o simult‰neo de uma sŽrie

mœltiplas de linhas, cada qual mantendo um curso de composi•‹o independente e cada

qual contribuindo para o curso de composi•‹o da seqŸncia (SF 52)Ó. Esse

movimento em dire•‹o a uma totalidade integrada tra•a a trajet—ria de movimentos

futuros, gerando a atratividade do espectador, o qual Óexperimenta o processo

din‰mico do surgimento e reuni‹o da imagem (SF 27).Ó

187 Em 1926 Eisenstein, em um manifesto conjunto com V.I Pudovkin eG.V.Alexandrov a respeito do futuro do cinema sonoro, argumentava que a utiliza•‹odo som Ž uma faca de dois gumes pois poderia, ao invŽs de melhoria narepresenta•‹o, causar inŽrcia composicional e recepcional. Advoga a n‹osincroniza•‹o do som e das imagens. Claro se v nessa recusa o n‹o emparelhamentodo cinem‡tico com o dram‡tico em fun•‹o da palavra e suas articula•›es em cena.Pudovkin ( Argumento e realiza•‹o, Lisboa, Editora Arcadia 1961- sigla AR) temiaque o filme sonoro fosse uma variedade fotogr‡fica de pe•as teatrais e bradava quenunca deveria Ómostrar o homem e reproduzir ao mesmo tempo sua fala exatamentesincronizada com o mover de seus l‡biosÓ(AR 196).

188 Conf. O sentido do filme (Rio de Janeiro, Zahar , 1990) Sigla SF.

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Ao invŽs de ser oferecido ao espectador o que Eisenstein chama de Ódistor•‹o

de nossa ŽpocaÓ, - possibilidades de justaposi•‹o 189e n‹o an‡lise do material

 justaposto, Ž imprescind’vel Òa necessidade da exposi•‹o coerente e org‰nica do tema,

do material, da trama, da a•‹o, do movimento interno da seqŸncia cinematogr‡fica e

de sua a•‹o dram‡tica como um todo(SF 13).Ó

Contudo, a corre•‹o de percurso Ž transformada em nova recusa. J‡ em 1939

esta s’ntese e totaliza•‹o do cinema Ž contraposta ˆs limita•›es das artes como a

 pintura, escultura, literatura, mœsica e, claro, teatro. Sobre esta œltima, como n‹o

 poderia deixar de ser, Eisenstein Ž mais incisivo. Ap—s se congratular com a riqueza

da representa•‹o audiovisual que o cinema proporciona, agora mais eficaz atravŽs da

narrativa, ele afirma que essa riqueza n‹o Ž para o teatro:Ó este Ž um n’vel acima de

suas possibilidades. E quando quer superar os limites dessas possibilidades, n‹o

menos do que a literatura, tem de pagar o pre•o de suas qualidades naturais e

realistas.... Que entulho de anti-realismo o teatro inevitavelmente despeja no

momento em que se estabelece metas ÔsintŽticasÕ(SF 164)Ó. O teatro, para ampliar sua

representa•‹o, desmaterializa-se, explicitando nesse movimento seu pr—prio suporte

f’sico negado. O anti-realismo, pensado como expans‹o da linguagem de cena,

converte-se na redu•‹o de sua atividade representacional.

Esta certeira cr’tica de Eisenstein ˆ parte do vanguardismo teatral que ele

 pr—prio recusou, porŽm, Ž manobrada para notabiliza•‹o da linguagem

cinematogr‡fica. Somente com o cinema Òpela primeira vez alcan•amos uma arte

genuinamente sintŽtica190- uma arte de s’ntese org‰nica em sua pr—pria essncia, n‹o

um concerto de artes coexistentes, cont’guas, ÔligadasÕ, mas na realidade

independentes .(...)De forma que o mŽtodo do cinema, quando totalmente

compreendido nos capacita a revelar uma compreens‹o do mŽtodo da arte em geral

189  Nesse sentido tambŽm o fracasso, fracasso formal, de D.W.Griffth em Intolerance Ž analisado por Eisenstein, em virtude de o cineata americano ter justaposto materiais sem integra•‹o dram‡tica j‡ no intraplano, n‹o levando em contao conteœdo dos fragmentos, a natureza real dos fragmentos (FF 203). Ironicamente, asrealiza•›es de Griffth haviam desconectado o cinema do teatro, produzindo umatens‹o e vigor dram‡ticos f’lmicos, ao movimentar a c‰mera , antes fixa, sugerindo avis‹o do espectador em uma platŽia, e ao utilizar mais integralmente a montagem

 paralela, interrompendo o registro ininterrupto da cena antes do come•o de outracena.

190 Note-se que a s’ntese das artes enfatiza o projeto concorrencial do cinemade Eisenstein com o drama, posto que a pr‡tica da tragŽdia grega se tornou idealestŽtico para o Ocidente.

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  #L;

(SF 169)Ó. O cinema se converte em uma poŽtica da representa•‹o. Seu realizar Ž a

visibilidade do modo como se constituem procedimentos integrados de

ficcionaliza•‹o da realidade. O cinema exibe a formatividade do mundo. A libera•‹o

do teatral, ˆs expensas da narrativa191, transforma as capacidades tŽcnicas e

representacionais do cinema em uma arte total.

Uma dramaturgia f’lmica poss’vel

O percurso rico e hesitante de Eisenstein diante da tradi•‹o dram‡tica nos

situa diante dos problemas compositivos da atividade audiovisual cinem‡tica. O

dom’nio e explora•‹o da proje•‹o de imagens apelam para a correla•‹o dessa

atividade de manipular o que mostrado em um espet‡culo com problemas de

dramatiza•‹o. O diferencial compreensivo e formativo da totalidade da imagem da

obra cinematogr‡fica se faz ˆs expensas de procedimentos de determina•‹o do modo

como o visto Ž integrado a uma apropria•‹o recepcional. A descontinuidade dos

materiais expostos submete-se ˆ continuidade de um projeto interacional executado. A

 presen•a irremov’vel de uma audincia pagante e determinada a avaliar e entender o

que v direciona a representa•‹o a singularizar sua forma na medida em que promove

a situa•‹o interpretativa do espectador. A dura•‹o do vis’vel se d‡ proporcionalmente

ˆ orienta•‹o da audincia. A representa•‹o cinematogr‡fica se v limitada a

considerar entre seus problemas composicionais o horizonte integrante e completador

da exposi•‹o audiovisual192 

O conflito entre o dispositivo f’lmico e a integratividade dram‡tica tem sua

Hist—ria193. Para Jean Mitry, porŽm, mais detidamente que Bazin, antes da

191 Nessa mudan•a, recrudesce a oblitera•‹o do teatro. A dramaturgia integraldo filme,prpugnada por Eisenstein vai buscar suas comprova•›es em romancistas(Dickens, T—stoi), pintores(El greco) e atŽ em poetas ( Pukhin), mas nenhum autorteatral Ž utilizado como modelo. A ruptura com o teatro liter‡rio duplica-se na rupturacom a cena teatral. Pelo menos na defesa da linguagem cinematogr‡fica.

192  Francesco Casetti em  Inside the Gaze  (Indiana University Press,1998-original Ž de 1988)procura investigar o modo como o filme designa seu espectadorestruturando sua presen•a(p 15).Mas o ‰mbito de sua criteriosa pesquisa est‡ naenuncia•‹o f’lmica e a possibilidade de formalizar essa estrutura•‹o da audincia, en‹o na efetividade composicional da realiza•‹o f’lmica. O dram‡tico ainda Ž umaanalogia.

193 Marc Ferro em CinŽma et histoire (Paris, Editions Deno‘l/Gothier, 1977), propondo uma leitura hist—rica do filme e uma leitura cinematogr‡fica da Hist—ria,

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dissocia•‹o194, o filme instituiu-se como espet‡culo, Óimitando a cena, tentando se

tornar espet‡culo (APC 277)".

O ideal da concentra•‹o dram‡tica, fornecendo os padr›es de disposi•‹o do

que se v tanto das figuras representada quanto do modo de exibi•‹o , parecia normas

a serem seguidas, sendo o filme o registro do espet‡culo(APC 278).

Ap—s as realiza•›es de Griffth, como foi visto, a flexibilidade da representa•‹o

f’lmica chocou-se com a rigidez da concentra•‹o dram‡tica e suas conven•›es tempo-

espaciais.

De acordo com Mitry foi Thomas Ince quem mais sistematicamente resolveu

essa libera•‹o da concentra•‹o dram‡tica ao dissociar teatro e dramaticidade,

 buscando no drama n‹o mais sua estrutura teatral e observacional transposta para a

tela, e sim uma estrutura dram‡tica cinem‡tica (APC 296).Ince rejeita a adequa•‹o do

 palco ˆ tela mas generaliza a din‰mica representacional dram‡tica como coerncia da

inteligibilidade emocional do espectador. A concentra•‹o dram‡tica Ž o paradigma

 para o controle do que Ž mostrado na tela.

Tal transcendncia operacional da teatralidade frente ao teatro se d‡ ao se

considerar a construtividade do drama como um conjunto de procedimentos de

singulariza•‹o tanto do que representam como da orienta•‹o desta representa•‹o para

uma audincia.

A positiva artificialidade do drama, no sentido de artif’cio, atravŽs da qual a

sucess‹o e simultaneidade do que Ž mostrado se faz em fun•‹o de escolhidos eventos

dispostos em uma prŽ-ordenada conclus‹o, como no caso da tragŽdia, faz com que

tudo contribua conjuntamente para a revela•‹o tanto do modo de express‹o quanto do

que Ž representado (APC 298). Dramatizar deve ser uma inst‰ncia antepredicativa da

constru•‹o f’lmica onde se pensa e se resolve a estrutura•‹o de eventos intelig’veis e

recept’veis.Ouvir e ver n‹o se reduzem a uma tŽcnica audiovisual. Ouvir e ver imagens e

sons Ž compreender sua finita articula•‹o em uma estrutura que torne poss’vel suas

distin•›es relacionadas ˆ modalidades diversas e mutuamente implicadas de

chama as imagens do filme de imagem-objeto cujas significa•›es n‹o s‹o s—cinematogr‡ficas. Em meu caso, mais modesto, opto por uma outra historicidade, a deuma imagina•‹o dram‡tica de longa dura•‹o concretizada nos modos como oespet‡culo Ž composto e realizado. Conf. meu livro Imagina•‹o dram‡tica op. cit.

194 Sigo aqui as coloca•›es de Mitry em The Aesthetics and Psychology of theCinema, Indiana University Press, 1997.(O original Ž de 1963) Sigla Ž APC.

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compreender um espet‡culo em sua totalidade. De forma que a dessincroniza•‹o da

 palavra e da imagem Ž transformada em ponto de partida para a dramatiza•‹o que

 procura significar imagens com palavra e palavras com imagens a partir da defini•‹o

do tempo, sucess‹o e dura•‹o e interesse de sua exposi•‹o. Assim, Òa imagem do

filme atua no cinema exatamente a mesma fun•‹o das palavras no teatro. Um filme

 pode ser considerado como uma pe•a, seu ÔconteœdoÕ pode ser baseado na

concentra•‹o de diferentes tempos e espa•os. De outro lado, o papel da imagem no

filme Ž similar ao do papel das palavras na pe•a (APC 320)Ó.

A passagem do teatro para o dram‡tico, advista como instituidora da

linguagem cinematogr‡fica, Ž a solu•‹o proposta por Mitry para se tornar intelig’vel o

filme tambŽm para o realizador. O filme como pe•a Ž mais que uma analogia. Exp›e

determinadas atividades relacionadas com ˆ composi•‹o do espet‡culo e sua

inteligibilidade. Uma dramaturgia f’lmica toma do dram‡tico o princ’pio estŽtico para

explorar o tempo cinematogr‡fico para abertura de possibilidades representacionais

'roteiriz‡veis'. O dram‡tico se apresenta como modo transformar referncias em

orienta•›es de um espet‡culo, estabelecendo par‰metros de compreens‹o do que se

representa ao levar em conta os efeitos da extens‹o e dura•‹o do que se exibe.

Dessa maneira, a visualidade Ž reestruturada como campo de emergncia de

uma situa•‹o interpretativa bem especificada. O ver Ž integrado a um saber que se

confronta com a marca•‹o dos eventos representados. A focaliza•‹o dram‡tica,

emoldurando a tela, vai constituindo uma experincia de interpretar essa marca•‹o.

Seguindo Pudovkin195, o c‡lculo e o conteœdo de cada plano e a ordena•‹o da

sucess‹o e ritmo das seqŸncias a partir do estudo preliminar e detalhado do

argumento com objetivo de mostrar que deve ser visto parece caracterizar Ž o que nos

d‡ a totalidade f’lmica.

Segmenta•‹o e busca de totaliza•‹o parecem ser dois procedimentosinterligados na composi•‹o f’lmica. A aplica•‹o de uma dramaturgia ao roteiro de

representa•‹o do que deve ser apresentado em espet‡culo cinematogr‡fico efetiva a

integra•‹o de par‰metros compreensivos que evitam a confus‹o entre especificidade e

reducionismo. A disseca•‹o do argumento n‹o estrutura a recep•‹o do que se v, pois

195  Op cit. Na verdade, a concep•‹o de roteiro de Pudovkin Ž extens‹o damontagem. Segundo ele, Òo argumento divide-se em seqŸncias, estas em cenas, e ascenas em tomadas separadas (planos) que compreendem os peda•os isolados queligados firmemente formar‹o o filmeÓ(AR 106)

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  #Ln

o contexto de recep•‹o n‹o se alcan•a por uma t‡tica de controle e monitoramento da

representa•‹o apenas.

Se o dram‡tico se revela na estrutura do filme quando o filme demonstra esta

estrutura em sua exibi•‹o, o processo de dramatiza•‹o Ž a compreens‹o do filme em

sua estrutura. E sendo esta estrutura revelada pela dramatiza•‹o, Ž dram‡tica a

estrutura do filme. De modo que o espec’fico filme se faz em virtude de sua

dramatiza•‹o. A dramaturgia f’lmica, hesitante em Eisenstein, elogiada por Bazin e

reinserida por Mitry, Ž uma chave de acesso ˆ compreens‹o do espet‡culo

cinematogr‡fico e sua textualidade196.

196 Explorando as tens›es entre cinema e teatro, temos, mais recentemente, a publica•‹o de AUMONT 2008.

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9- CINEMA E TEATRALIDADE: O BEBæ (SANTO) DE MåCON , DE

PETER GREENAWAY 197 

Preliminares

Cinema e teatro, atividades espetaculares, co-participam de um hist—rico

di‡logo que redefine conceitos e pr‡ticas de ambos198. Para alŽm das analogias

apressadas e pontuais, uma reflex‹o a partir da dramaturgia f’lmica de O beb de

 M‰con (1993), de Peter Greenaway, efetiva o esclarecimento do jogo de apropria•›es

e transforma•›es existente em eventos interart’sticos e multidimensionais.

Inicialmente, Ž bom se ter em mente que as rela•›es entre teatro e cinema nem

sempre foram assim amistosas. H‡ paradigmas antiteatrais em alguns momentos do

 percurso do cinema. Eisenstein (1898-1948), por exemplo, ao longo de sua carreira,

vale-se de referncias ao teatro, concebendo-o como modelo estŽtico e dispositivo

tŽcnico que precisa ser ultrapassado199. Desse modo, a amplia•‹o das possibilidades

do cinema passaria pela ultrapassagem de sua moldura cnica.

Entretanto, o chamado Òprimeiro cinemaÓ (1894-1908) apresenta-se marcado

 por fortes la•os a eventos performativos: a exibi•‹o de imagens em movimento para

uma audincia em espa•os de exibi•‹o pr—prios de eventos circenses, de magia,

 pantomimas e aberra•›es Ñ atra•›es que tanto maravilhavam o espectador. O teatro

de variedades, o vaudeville, e sua localiza•‹o da audincia e do lugar de exibi•‹o

197 Parte das an‡lises e discuss›es aqui registradas foi desenvolvida durantecursos que ministro na Universidade de Bras’lia desde 1995, nos quais a interfaceentre teatro e cinema e os coment‡rios de obras cinematogr‡ficas n‹o se limitam a

 pretextos paradid‡ticos ou ilustra•‹o de teorias e conceitos. Antes, enfatiza-se arela•‹o entre dramaturgia e audiovisualidade, a partir da experincia de frui•‹o ean‡lise de filmes.

198  Ver partes dessa hist—ria em AndrŽ Bazin, O cinema  (S‹o Paulo:Brasiliense, 1991).

199 Ver Marcus Mota, ÒDramaturgia f’lmicaÓ (Belo Horizonte: Anais da IV Reuni‹o Cient’ficada Abrace, 2007) e Damiana Cerqueira Rodrigues, O cinema teatral de Eisenstein: dŽcada de 20 (disserta•‹o de mestrado, Universidade de Bras’lia, 2007).

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cedo foram modelo para o registro cinem‡tico de  performances, com a c‰mera em

 posi•‹o frontal a um proscnio e autonomia dos planos200.

E, ainda, estŽticas teatrais revolucion‡rias, de Meyehold a Piscator, valeram-se

de proje•›es de imagens em movimento em suas encena•›es201.

Assim, esse fŽrtil intercampo de realiza•›es estimula mœtuos esclarecimentos

e redefini•›es do que venha a ser ÒcinemaÓ ou ÒteatroÓ. Diante da estreita conjuga•‹o

entre tecnologia e espet‡culo, nem teatro Ž mais aquela forma de express‹o baseada

em di‡logos ilustrados por cen‡rios inertes, nem muito menos cinema Ž uma hist—ria

ilustrada por imagens. Nos dois casos, por meio de uma aproxima•‹o mais

enriquecedora e explorat—ria, cinema e teatro seduzem o espectador pela explicita•‹o

da heterogeneidade de efeitos e recursos que organizam a elabora•‹o e recep•‹o de

obras audiovisuais.

O filme

M‰con, uma cidade ao norte de Lyon, a 380 km de Paris, concruz de

caminhos, foi palco de guerras sangrentas entre cat—licos e protestantes no sŽculo 16.

De sede da antiga diocese, M‰con integrou o Sacro ImpŽrio Romano, perfilando uma

longa hist—ria relacionada com religi‹o e poder.

A pol’tica de M‰con Ž reinterpretada pela dramaturgia f’lmica de Peter

Greenaway, por meio n‹o s— da interpenetra•‹o de institui•›es e grupos sociais v‡rios

(igreja, corte, intelectuais, povo, artistas), como tambŽm da conjuga•‹o de artes

(mœsica, —pera, pintura, fotografia, literatura, teatro, cinema). A amplitude do

universo representado materializa-se na diversidade interart’stica. Tal determina•‹o

de reunir d’spares e tornar simult‰neos os diferentes multiplica os nexos, as

referncias, as associa•›es produzidas202.

200  Ver Laurent Mannoni,  A grande arte da luz e da sombra (S‹o Paulo:Unesp/Senac, 2003) e Fl‡via Cesarino da Costa, O primeiro cinema (Rio de Janeiro:Azougue, 2005).

201 Ver Erwin Piscator, Teatro pol’tico (Rio de Janeiro: Civiliza•‹o Brasileira, 1968). Para ascontempor‰neas experincias entre cinema e teatro, ver Hans-Thies Lehmann, Teatro p—s-dram‡tico (S‹o Paulo: Cosac Naify, 2007).

202 Maria Esther Maciel, ÒPeter GreenawayÕs encyclopaedismÓ, em Theory, culture & society (UK: Nottingham Trent University, vol. 23, 2006), p. 53: ÒTo call Peter GreenawayÕs cinemaencyclopaedic is to recognize it as this web of knowledge fields, languages, metaphors, allegories,

literary references, organized according to some rigorous principles of order Ñ even if provisional andarbitrary Ñ to deal with a disorderly, ultimately absurd world. Art History, Literature, Music, Theatre,Dance, Cookery, Architecture, Cartography, Mythology, Electronics, Zoology, Botany, Landscape,

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Como horizonte dessa heterogeneidade, temos a moldura teatral dos eventos

expostos. Se tudo Ž mostrado, se tudo vem ˆ superf’cie do mundo, do sexo ˆ morte,

tudo ganha um  status  de coisa exibida e percebida em sua exorbit‰ncia cnica: o

excesso das coisas dispostas para se ver e ouvir acopla-se ao excesso de sua

observa•‹o, pois atravessa a sucess‹o dos acontecimentos a marcada presen•a de uma

 platŽia in loco. Em alguns momentos chegamos ao extremo de n‹o saber se assistimos

ou n‹o a uma pe•a diante do acœmulo do emolduramento teatral dos eventos203.

O imenso galp‹o que se abre em novos tablados abrange e n‹o completa as

tens›es entre fŽ e cincia, que logo descambam para manobras de interesses

 particulares204. NinguŽm escapa dessa nivela•‹o dos valores. A cidade faminta,

rodeada pela praga, converte-se no teatro de sua autofagia, na necessidade de

fomentar mitos e de literalmente os devorar.

O teatro no cinema comparece n‹o s— na clara identifica•‹o do dispositivo

tŽcnico-cnico205. Para o muito exibir, o filme explora uma teatralidade generalizada.

Aquilo que se mostra n‹o se confina ˆ apari•‹o dos elementos. A moldura teatral Ž a

Gardening, Psychoanalysis, History, Calligraphy, Engineering, Aeronautics, Geometry, Anatomy,Astronomy, Philosophy, among other fields of knowledge, compose this cinema that, more and more,moves away from the limits of the screen to expand itself into several other artistic spacesÓ. Para outras

tentativas de defini•‹o da obra de Peter Greenaway, ver Rosa Cohen,  Motiva•›es pict—ricas emultimediais na obra de Peter Greenaway  (S‹o Paulo: Ferrari, 2008); Wilton Garcia,  Introdu•‹o aocinema intertextual de Peter Greenaway  (S‹o Paulo: Annablume, 2000); Jo‹o Carlos Gon•alves,ÒBanquete dos signos: o estranhamento da recep•‹o em Peter GreenawayÓ, em  Revista nexos  (S‹oPaulo, 2001, p. 41-56); Maria Esther Maciel (org.), O cinema enciclopŽdico de Peter Greenaway (S‹oPaulo: Unimarco, 2004); ClŽlia Mello, O cinema em cena: uma aproxima•‹o hipertextual ˆ encena•‹ode Peter Greenaway (Edi•‹o de autor, 2001, hiperm’dia em CD-ROM); Gilberto Alexandre Sobrinho,ÒEspa•o e sentido em O beb santo de M‰conÓ, em Cadernos da p—s-gradua•‹o Ð Instituto de

 Artes/Unicamp (Campinas, v. 4, n. 1, 2000, p. 175-180).203  Giovana Dantas, ÒTr‰nsito de imagens no cinema de Peter Greenaway: cinema, teatro,

artes visuaisÓ, em  Leituras contempor‰neas (Salvador: Faculdades Jorge Amado, v. 1, n. 2, 2003), p.94: ÒO beb santo de M‰con (1993) Ž uma pel’cula que tambŽm leva o cinema a dialogar com o teatro.

O filme trata de uma encena•‹o, com platŽia, em que toda a ilus‹o Ž desmistificada no final, quando ac‰mera recua e vai inserindo os espectadores da pe•a no enquadramento. Enquanto isso, os atoresagradecem os aplausos, ao tempo em que retiram seus adere•os e a maquiagem. Apesar de utilizar umacomposi•‹o de plano extremamente simŽtrica e ordenada, com uma perspectiva acentuada que enfatizaa ilus‹o espacial das pinturas renascentistas, ele desmonta essa mesma ilus‹o, ao se deter na naturezateatral do filmeÓ.

204  Ivana Bentes, ÒGreenaway e a estiliza•‹o do caosÓ, em Ivana Bentes (org.),  Ecos docinema (Rio de Janeiro: UFRJ, 2007), p. 175: ÒA tela vira um palco medieval e um tableaux vivant , ahist—ria do beb santo Ž encenada dentro de uma catedral e a platŽia participa ativamente do espet‡culono papel do coro que narra e comenta a hist—ria ao mesmo tempo. O filme tem a estrutura de uma —peraou farsa cheia de simbolismosÓ.

205 Comparar abordagem de Greenaway com a de Orson Welles, em Citizen

 Kane (1941), a de Fassbinder, em Querelle (1982), e a de Lars von Trier, em Dogville (2003).

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continuidade do filme, interferindo na percep•‹o do espa•o das a•›es e dos

comportamentos. Essa interferncia intensifica a sensa•‹o de que tudo ali Ž

constru’do, Ž um arranjo para sua recep•‹o. Da’ os fatos mais cruentos, na

exorbit‰ncia de sua oferta, do estupro ao despeda•amento ritual, organizarem-se como

eventos teatralizados, e manifestando a sua configura•‹o em cena206.

Com as mudan•as de plano e dos palcos, na coreografia da c‰mera, que vai do

centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do mundo representado em

um filme, como uma pe•a filmada, como um texto ilustrado por imagens. A trama

narrativa contrap›e-se ˆ trama multimidi‡tica, como espet‡culos dentro do espet‡culo.

A hist—ria sucumbe ao mito, ao encenar o acontecer da cren•a, do como acreditar em

algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.

Em M‰con Ž preciso acreditar. Seus habitantes precisam crer. E n—s, que tudo

vemos, tambŽm. O terr’vel e o sublime grotescamente se encontram, e a mentira

assumida como verdade depois se completa no desmascaramento vingativo.

Quando tanto o omitir, a mentira, quanto o revelar s‹o modos rec’procos e

falhados, a existncia da comunidade se articula nessa pletora do vazio, na

superabund‰ncia do limite. N‹o h‡ nada a esconder. Toda a m‡quina de Greenaway

fabrica e ergue uma cidade que nos devolve seus escombros, seu cotidiano de

sobreviver ˆ m’ngua, nessa fome de mais vida, nessa misŽria da manipula•‹o, dos

embustes, do auto-engano, do gozo dos simulacros.

Os habitantes da cidade evidenciam-se como figuras, como tipos. N‹o h‡

 justificativas de comportamentos, e, por meio de suas falas, outras vozes podemos

ouvir. Eles n‹o s‹o personagens definidos a partir de um programa de a•‹o e

verossimilhan•a. Eles s‹o objetos mostrados dentro dessa satura•‹o antiperspectivista.

 N‹o h‡ como haver identifica•‹o emocional com eles, pois as figuras em cena s‹o

 partes dessa cidade, como o movimento da c‰mera e as coisas que se mostram. Ofilme Ž uma experincia audiovisual que n‹o se confina nas categorias aristotŽlicas ou

neo-aristotŽlicas de unificar a representa•‹o por meio de uma narrativa207.

206 Sobre o conceito de ÒmoldurasÓ, ver Erving Goffman,  Frame analysis: an essay on theorganization of experience (2» ed., Boston: Northeastern University, 1986; 1» ed. em 1974).

207 Roberto Tietzmann, ÒLeituras mœltiplas de filmes plurais: interpretando o cinema de PeterGreenawayÓ, em Sess›es do imagin‡rio  (Porto Alegre: Famecos/PUCRS, vol. 1, n. 17, 2007), p. 14:ÒPara Greenaway os realizadores teriam se acomodado ao basearem seus filmes em arquitramas

textuais vindos de outros suportes, ao invŽs de experimentarem jogos experimentais de imagem econteœdo que permanecem Ñ segundo ele Ñ amplamente inexplorados no cinema. Portanto o diretorafirma que Ôprovavelmente n‹o vimos nenhum cinema ainda, vimos um pr—logo de 100 anosÕ, sendo

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Por um cinema n‹o exclusivamente narrativo208 

Peter Greenaway em suas obras esfor•a-se pela explora•‹o de hibridismos de

modo a enfatizar, como tantos outros fizeram, que arte cinematogr‡fica n‹o se resume

a contar hist—rias. Acima de tudo, o filme mostra o filme, demonstra-se como evento

organizado e percept’vel. Ao recusar a exclusividade diegŽtica, Greenaway

 problematiza a hist—ria do cinema e nossos modos de conceber e definir eventos

multidimensionais. O que est‡ em jogo s‹o nossas estratŽgias para compreender obras

cuja especificidade se expressa na amplitude de seus meios e efeitos.

Da’ a import‰ncia da teatralidade: na cultura ocidental a situa•‹o de

 performance, o ato de dispor para uma audincia materiais e habilidades in loco,

encontra-se insepar‡vel de sua inteligibilidade209. Tanto que pode ser ensinada,

comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das representa•›es implicada em uma

situa•‹o performativa tem como correlato nocional uma abertura ao simult‰neo, ao

mœltiplo, ao heterogneo210. Contra a ilus‹o do uno, œnico, unificante, tal tecnologia

oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decis›es em um processo

criativo atualizam o drama da express‹o, a encena•‹o de suas possibilidades, o roteiro

de suas escolhas e exclus›es.

Por meio de uma generalizada situa•‹o de observ‰ncia, de uma moldura

cnica, O beb de M‰con  (des)monta nossos h‡bitos de assistir a obras

que o que ter’amos visto agora Ž apenas Ôtexto ilustradoÕÓ. Para uma cr’tica do aristotelismo comomodelo dramatœrgico e pressuposto interpretativo de obras multidimensionais ver Florence Dupont,

 Aristote ou Le Vampire du thŽ‰tre occidental  (Paris: Flammarion/Aubier, 2007).

208 Um esbo•o de defesa de um cinema n‹o exclusivamente narrativo pode serencontrado em M‡rcio Carneiro dos Santos, ÒO paradigma n‹o-narrativo: do cinemade atra•›es ˆ realidade virtualÓ (S‹o Lu’s: Intercom, X Congresso de Cincias da

Comunica•‹o na Regi‹o Nordeste, 2008). Seguindo Tom Gunning, vemos que orepert—rio para a esta defesa n‹o se reduz ao early cinema. As implica•›es de umÒcinema heterogneoÓ n‹o se restringem ao efeito sobre o espectador (atra•‹o).Temos quest›es de dramaturgia, ideologia e operacionaliza•‹o tŽcnica, entre outras.J‡ AndrŽ Parente, em  Narrativa e modernidade: os cinemas n‹o-narrativos do p—s-

 guerra  (Campinas: Papirus, 2000), ressalta outro repert—rio (p—s-guerra) e diversoarcabou•o conceptual (Deleuze).

209 ƒ preciso que algumas posturas e equa•›es sejam revistas, como, por exemplo, cinema =narra•‹o, teatro = emo•‹o, personagem = pessoa. Ver Marcus Mota, A dramaturgia musical de ƒsquilo (Bras’lia: UnB, 2008).

210  Da’, seguindo Deleuze, a tentativa de se definir o cinema de Peter Greenaway comoÒcinema barrocoÓ. Ver Susana Dobal,  Peter Greenaway and the baroque: writing puzzles with images (tese de doutorado, The City University of New York, 2003).

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cinematogr‡ficas; por est’mulos diversos e contra a narrativa, para que se veja que h‡

diversos modos de se contar uma hist—ria, como aquela com peda•os, os nacos de

carnes de um anjo, nosso desejo por um cŽu.

Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mesmo,

e se destr—i, ruminando espa•os mœltiplos, alŽm da pe•a sobre a pe•a, expande a

contingncia de sua espetacularidade, oferecendo figuras fantasmag—ricas, entre luz e

sombras, que apenas subsistem no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir

intensamente ˆquilo que as fascina, sem conseguir ir alŽm daquilo que em frente delas

cresce de valor pelo sopro do desejo.

 Mise-en-scne, mise-en-cadre, mise-en-abyme. M‰con Ž a cidade-caverna em

que se celebra o esteticismo cruel, œnica inst‰ncia em que se engendram os sons e as

imagens da tribo, as quais s‹o a comida e moeda, o que se quer e o que existe. Pois

estamos e n‹o estamos em um teatro. O beb Ž e n‹o Ž divino. Tudo n‹o passa de

encena•›es, no sentido de que tudo Ž exibido, inclusive sua construtividade: do teatro

ˆ teatralidade211. O recurso a molduras cnicas manifesta a materialidade do impulso

metaficcional que rege as obras de Peter Greenaway, que s‹o ao mesmo tempo obras

e teorias sobre atividades representacionais212.

Enfim, implodindo a pretensa unidade representacional do cinema e a

normativa ortodoxia da Ôespecificidade da obra cinematogr‡ficaÕ, a diversidade

material e estŽtica do cinema de Greenaway ratifica a busca por paradigmas

 pluralizados na compreens‹o e realiza•‹o de eventos multidimensionais.

211  Ver Marcus Mota, ÒO teatro como metaestŽtica: subjetividade e jogo segundo H-G.GadamerÓ, em ReVISta (Bras’lia, 2005, p. 86-94).

212 Ver Wolfgang Iser, ÒWhat is literary anthropology? The difference between explanatoryand exploratory fictionsÓ, em Michael P. Clark (ed.), The revenge of the aesthetic: the place ofliterature in theory today (Berkeley/Los Angeles: University of California, 2000, p. 157-179).

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10- AS IMPLICA‚ÍES PERFORMATIVAS DA ESCRITA FUGAL:

UMA LEITURA DE A ARTE DA FUGA DE J.S. BACH

As chamadas formas musicais exibem mais que uma convencionalidade na

escolha de seus tra•os caracter’sticos. AlŽm de justificativa puramente musical, h‡

uma tradi•‹o de procedimentos relacionados com a rela•‹o entre obra e sua

inteligibilidade que, sob os par‰metros englobantes de uma estŽtica dram‡tica, ou do

teatro como meta-estŽtica, melhor se explicita.

Para tanto, a partir do exame de uma tradi•‹o de obras art’sticas que encontra

no limite de determinadas formas a sua possibilidade de experimenta•‹o e constru•‹o

de referncias, procuramos contribuir para o debate te—rico acerca de abordagens n‹o

formalistas de uma obra de arte.

Por abordagens n‹o formalistas denominamos pr‡ticas de abordagem e

reflex‹o sobre objetos culturais levando em conta a efetividade da situa•‹o de

compreens‹o que reœne a obra com seu intŽrprete (GADAMER 1987). A diferen•a

entre o mundo da obra e o mundo da recep•‹o n‹o Ž anulada, e sim indexada ˆ

totalidade da compreens‹o realizada.

Trata-se da recusa da dicotomia texto/contexto e de suas restri•›es. A

dicotomia texto/contexto sugere que o texto somente se explique pelo seu contexto,

conduzindo a pretensa insuficincia explicativa da obra para a atividade explicativa e

tradutora do intŽrprete. O desn’vel e a diferen•a entre o mundo da obra e o da

recep•‹o Ž reordenado em fun•‹o de um ponto de vista privilegiado, que se articula

 pelo coment‡rio do analista.Assim, o texto Ž o reposit—rio de dados que s‹o decifrados e ganham

inteligibilidade a partir de sua autonomiza•‹o. O contexto, por conseguinte, Ž esse

esfor•o de inteligibilidade que determina as raz›es da obra. O sentido da obra est‡

nessa moldura explicativa que n‹o Ž posta em questionamento. Trabalha-se com

evidncias indiscutidas, pois o contexto tudo explica. A evidncia de que uma obra se

utiliza de dados extratextuais em sua representa•‹o consigna a atividade do intŽrprete

a tomar estes dados sobre a forma da representa•‹o como fatores para explicar a obraque analisa. A explica•‹o pela evidncia do contexto Ž o privilŽgio do extratextual

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sobre o textual. O contexto extratextual, explicando a obra, descontextualiza-a,

substituindo as raz›es da obra pelas raz›es do analista.

O refinamento da rela•‹o texto/ contexto, ao fim, Ž a uniformiza•‹o do

contexto intelectual de todas as obras, meta da abordagem formalista. Aqui o contexto

explicativo Ž a metalinguagem do intŽrprete, ato de se renomear os dados encontrados

 por meio uma estreita taxonomia.

Abordagens formalistas s‹o aquelas que descrevem, por meio de uma

nomenclatura prŽvia, a estrutura•‹o de um objeto-alvo. O rigor da nomenclatura Ž

complementar ˆ redu•‹o do observado ˆ metalinguagem do analista. Ao fim,

coincidem objeto de observa•‹o e metalinguagem. O objeto-alvo s— ganha foros de

existncia a partir de tra•os relevados e apontados pela linguagem do analista. A

realidade do objeto est‡ circunscrita ˆ linguagem que o descreve.

O sucesso das estratŽgias formalistas se d‡ na confirma•‹o de suas

observa•›es a partir de dados que a obra analisada oferece, ou seja: a obra Ž

transformada em um conjunto de informa•›es que ratificam a metalinguagem do

intŽrprete. Quando mais uma obra se reduz ao espa•o de um gnero ou de uma forma

 protot’picos - como se fosse o resultado da aplica•‹o de uma lei de sua estrutura•‹o -

mais e melhor tais estratŽgias se refor•am. Dada a obviedade de ser imposs’vel dar

nome a tudo que tem sentido em uma obra de arte, resta ˆ formaliza•‹o selecionar

significa•›es mais importantes e reduzir a aten•‹o para fen™menos mais evidenciados

em virtude de sua recorrncia.

Desse modo, pode-se notar que a descri•‹o formalista, funcionando como uma

metalinguagem, explicita a organiza•‹o material de uma obra, esclarecendo como as

 partes se disp›em em sŽries e estas sŽries na estrutura geral. O ‰mbito do formalismo

Ž o das m’nimas unidades resultantes de seccionamento descontextualizador.

Substitui-se o contexto de produ•‹o pelo contexto taxon™mico de reestrutura•‹o. Otexto, sem seu contexto de produ•‹o, Ž pulverizado em dados que s‹o utilizados para

exemplos da classifica•‹o.

A descri•‹o estritamente formalista, pois, reordena um material que estava

disposto segundo sua singularidade em certa apresenta•‹o de sŽries relevantes por sua

recorrncia. Para tanto, privilegia-se a normaliza•‹o das atividades em um conjunto:

h‡ a preferncia por enumerar e classificar procedimentos comuns que possuem uma

alta taxa de ocorrncia.

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A descri•‹o formalista Ž uma ferramenta de trabalho e n‹o pode coincidir com

o alvo de uma reflex‹o. N‹o se pode confundir posse de ferramentas com seu uso

(LIMA 1981). Quanto mais o estudo se restringe ˆ descri•‹o, mais nomenclatura

temos, e menos teoria, ou individua•‹o de uma interpreta•‹o. Quem apenas descreve

a partir de uma nomenclatura j‡ sistematizada somente aplica uma mnemotŽcnica.

Os termos da pesquisa

Apesar de esfor•os hercœleos de reflex›es de H.G.Gadamer, L.Pareyson,

L.Treitler , entre outros, pesa ainda a anacr™nica tentativa de cientificiza•‹o dos

estudos art’sticos. A descri•‹o estritamente formalista Ž resultante dessa apropria•‹o

indiscutida de uma t‡tica comum aos estudos qu’mico-f’sico-matem‡ticos do sŽculo

 passado (GADAMER 1998). Mas a obra art’stica n‹o Ž exclusivamente um inerte

objeto de observa•‹o e conhecimento. Ela n‹o se confina ao seu imanentismo. A

estrutura•‹o estŽtica de uma obra leva em conta n‹o s— uma causalidade formal. Ela

coloca o problema da interpreta•‹o, a quest‹o do modo como sua compreens‹o se

 possibilita, a interatividade fundamental entre obra e intŽrprete. Em nossa proposta,

sem abrir m‹o dos dados formais, mudamos o enfoque, e procuramos explicitar quais

 perguntas a estrutura•‹o estŽtica nos faculta.

Em virtude disso, Ž preciso que se veja uma obra de arte como conjunto de

 procedimentos singulares dentro de um espa•o de exibi•‹o de suas escolhas estŽtico-

materiais, as quais orientam sua interpreta•‹o, sua recep•‹o.

Dentro de nossa pesquisa, escolhemos uma tradi•‹o que leva a forma ao seu

limite - o Barroco - oferecendo tens›es que ultrapassam o imanentismo ou uma

dimens‹o internalista autocontida . A dimens‹o receptiva Ž refor•ada pelo cont’nuo

entrechoque entre apelo e reorienta•‹o de expectativas.O recurso ˆ dimens‹o receptiva da obra Ž melhor visualizado no recurso ˆ 

cena como mediador estŽtico. O que Ž isso? Esta senten•a-conceito dialoga com a

tradi•‹o estŽtica que objetivou ultrapassar os limites de uma descri•‹o puramente

formal e internalista do texto da obra de arte, posicionando-se contra Óuma defini•‹o

 puramente sem‰ntica de texto(CHARTIER 1994:13,27)Ó. Para tanto, a atividade da

recep•‹o Ž determinante para essa ruptura com o autofechamento do texto.

Ampliando mais a determina•‹o receptiva, sugerimos um modelo integrado do eventoestŽtico a partir de uma matriz dram‡tica, a media•‹o dram‡tica.

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Para este senten•a-conceito converge n‹o s— uma mudan•a nos estudos

liter‡rios, de onde recep•‹o foi mais elaborada teoricamente. A dramatiza•‹o da

estŽtica n‹o Ž meramente a importa•‹o de um vocabul‡rio das artes de cena para

oxigenar os excessos de h‡bitos descritivos formalistas. Antes, a dramatiza•‹o da

estŽtica torna-se uma inst‰ncia quase que obrigat—ria quando se trabalha com

objetivos de conciliar e integrar v‡rias atividades e exigncias na observa•‹o:

1- conhecimento da linguagem da arte que se investiga e sua formaliza•‹o;

2- procedimentos textuais reiterados que demonstram a coerncia e coes‹o de

atos e efeitos interligados;

3- historicidade da estŽtica;

4- integridade da obra de arte;

5- compreens‹o de processos composicionais;

6- incremento da percep•‹o estŽtica do pesquisador;

Observando como a estŽtica barroca reivindica a integra•‹o dessas atividades -

o que chamamos de orienta•‹o de cena, fundamento da estŽtica teatral - a

compreens‹o da escritura da fuga se tornou necess‡ria e fundamental. A estŽtica

dram‡tica encontra na escritura fugal n‹o s— uma transposi•‹o de atividades cnicas

 para a mœsica como tambŽm a visualiza•‹o de procedimentos estŽticos utilizados para

essa concretiza•‹o. Quando a mœsica se dramatiza, ela n‹o se torna um drama, n‹o

deixa de ser mœsica: vai pesquisar em sua linguagem procedimentos para tornar

 poss’veis efeitos dram‡ticos. Os suportes dram‡ticos utilizados pela mœsica s‹o

inscritos e redefinidos nas formas escolhidas e adotadas. A alta dialogiza•‹o da fuga Ž

amostra disto. Ou seja, a dramatiza•‹o da mœsica se torna uma reflex‹o sobre o

drama. A mœsica n‹o s— incorpora elementos dram‡ticos em sua pr‡tica comotambŽm a escrita registra esse esfor•o e, disso, as solu•›es estŽticas para essa

incorpora•‹o. Aqui a escritura da fuga nos Ž important’ssima pois, no operar das

formas, as solu•›es encontradas n‹o s‹o somente musicais, pois a estŽtica n‹o Ž um

conceito e sim um fazer (Pareyson). A escritura fugal Ž uma reflex‹o sobre a cena,

sobre a orienta•‹o dram‡tica da estŽtica.

Em virtude disso, nos detemos na fuga como maneira de tornar mais

explicitados os procedimentos que possibilitam uma estŽtica dram‡tica, matriz parauma abordagem n‹o formalista e sim interpretativista de obras de arte.

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A composi•‹o contrapont’stica denominada fuga, em sua pr‡tica altamente

explorada por Bach, principalmente em  A arte da fuga, possibilita-nos o acesso a

 processos de textualiza•‹o que, se melhor explicitados, produzir‹o grandes

dividendos para a compreens‹o a respeito da cena e suas matrizes.

Para tanto, Ž preciso superar algumas restri•›es. Tradicionalmente duas

componentes tm demarcado o campo de estudos da mœsica (TREITLER 1990: 299):

uma perspectiva formal, preocupada com a descri•‹o e estabelecimento do c—digo de

sua linguagem, cuja nomenclatura cerrada e universalizante procura eliminar as

ambigŸidades e as flutua•›es interpretativas; e uma perspectiva hist—rico-estil’stica,

 baseada na periodiza•‹o estŽtica das Artes Visuais, que busca preencher o contexto

das formas. Ou seja, em suma temos uma forma autofechada cercada pelo anedot‡rio

sobre os compositores e refor•ada pela classifica•‹o estil’stica.

Dessa maneira, prevalece aquilo que se denomina situa•‹o sincr™nica da

mœsica (TREITLER 1990:300), na qual o texto musical se confunde com sua

descri•‹o formal, e o contexto da express‹o se confina a um elenco de caracter’sticas

comuns de uma Žpoca art’stica (MOTA 1997:162-166), resultando na descri•‹o de

uma coisa, de um objeto aut™nomo e n‹o de um evento (TREITLER 1990: 303,306).

 Nicolaus Harnoncourt, em seus estudos sobre o barroco, reagiu

veementemente contra essa elimina•‹o da historicidade da mœsica atravŽs de sua

redu•‹o formal. Ele popularizou o estudo da chamada 'mœsica hist—rica' para a

forma•‹o musical contempor‰nea. Vamos nos concentrar um pouco mais em suas

afirma•›es.

Refutando a atemporalidade das grandes obras (HARNONCOURT

1990:20213), refletida na uniformiza•‹o dos estilos musicais (1990:20) e na forma•‹o

musical demasiadamente tŽcnica - a qual Òn‹o produz mœsicos, mas acrobatas

insignificantes(31)Ó - Harnoncourt advoga a compreens‹o da mœsica hist—rica, amœsica do passado a partir de suas pr—prias leis e regras. Pois ÒŽ certo que tocamos a

mœsica de cinco sŽculos, mas na maioria das vezes em uma œnica l’ngua, em um s—

estilo interpretativo. Mas, se come•‡ssemos a reconhecer as diferen•as essenciais de

estilo e abandon‡ssemos o infeliz conceito de mœsica como linguagem universalÓ

(122), ser’amos obrigados a compreender exigncias particulares e objetivos

composicionais espec’ficos.

213 Seguem-se cita•›es da mesma obra e autor.

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 Nesta escuta das diferen•as, a mœsica barroca ocupa uma posi•‹o estratŽgica.

Desde cerca de 1600 atŽ ˆs œltimas dŽcadas do sŽculo XVIII nota-se que Òa mœsica Ž

uma linguagem de sons, que nela se trava um di‡logo, uma discuss‹o dram‡ticaÓ(29).

Aplicando princ’pios ret—ricos ao contraponto, adota-se a ÒidŽia de se fazer da pr—pria

 palavra, do di‡logo , o fundamento da mœsica. Tal mœsica deveria tornar-se

dram‡tica, pois um di‡logo j‡ Ž em si dram‡tico. Seu conteœdo Ž argumento,

 persuas‹o, problematiza•‹o, nega•‹o, conflito(164)Ó.

O imperativo dram‡tico objetiva uma apropria•‹o criativa do material

extramusical, encontrando procedimentos estŽticos que expressem proje•›es

representacionais. Assim, procura-se com o maior cuidado Òuma express‹o musical

 para cada emo•‹o humana, para cada palavra, e para cada f—rmula de linguagemÓ

(168)

O modelo lingŸ’stico ret—rico de base para o Barroco evidencia-se na

 possibilidade de orientar a linguagem para alŽm de uma estŽril classifica•‹o de

signos: ÒA mœsica barroca quer sempre dizer alguma coisa, ou pelo menos representar

e suscitar um sentimento geral, um afeto(151).Ó

Este querer dizer, esta eloqŸncia do barroco aponta para algumas

unidades(25):

1- a unidade mœsica-linguagem em torno do texto.  A mœsica Ž organizada

retoricamente segundo padr›es de textualidade. Sua escrita mesma n‹o Ž

autosuficiente, mas fornece pontos de orienta•‹o para o intŽrprete. O texto Ž o

controle da performance, veiculando marcas para a sua interpreta•‹o. O texto musical

assume este car‡ter englobante n‹o s— de registro de sons como tambŽm de

explicita•‹o dos atos envolvidos na representa•‹o e interpreta•‹o de um evento. O

texto Ž o contexto de sua performance(63);

2- a unidade ouvinte-artista, decorrente dessa concep•‹o expandida de texto, por meio da qual os sons se organizam na puls‹o de representar, de proporcionar um

efeito, de promover a imagem acœstica do que se quer referir.

A dramatiza•‹o da mœsica no Barroco proporciona o incremento de suas

exigncias e fun•›es. A necessidade do extramusical, de um contexto e objetivo n‹o

somente sonoros, exige o esfor•o composicional que capacita a linguagem musical

 para tamanhas tarefas. A dilata•‹o dos horizontes corresponde ao desenvolvimento do

detalhe. A mœsica como discurso sonoro agora se vale das microdin‰micas da pronœncia, aplic‡vel ˆs s’labas e palavras isoladas (60). A mœsica eloqŸente do

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 barroco reivindica tambŽm uma Òinterpreta•‹o eloqŸente, articula•‹o de palavras em

 pequenos grupos de notas, nuan•as que se aplicam ˆs notas isoladas, concebidas como

meio de articula•‹o(119).Ó

Ao invŽs de grandes linhas mel—dicas (30) ou belas colunas sonoras bem

alinhadas(56) - passagem da ret—rica para a pintura que o Classicismo operou(30) -

ouvimos o acontecer de diversas coisas ao mesmo tempo(56), superposi•‹o de

hierarquias, mœltiplos n’veis (58).

Essa alta diferencia•‹o, contudo, n‹o Ž ca—tica pois Òna mœsica barroca tudo Ž

ordenado hierarquicamente(50)Ó. A representa•‹o Ž altamente configurada, exigindo

suportes representacionais para a realiza•‹o das inten•›es expressivas. O barroco

ratifica a descontinuidade entre realidade e representa•‹o, operando uma m’mesis que

toma das representa•›es j‡ existentes o material para novas representa•›es. A forte

diferencia•‹o Ž proporcional ˆ intensa formatividade. A forma Ž uma media•‹o que

registra n‹o uma c—pia de um ideal, uma transposi•‹o do que existe, mas sim a

reestrutura•‹o do prŽ-existente em rigorosos suportes de orienta•‹o.

Aqui se compreende como o Barroco n‹o Ž formal, autocontido, apesar de se

valer de suportes altamente recorrentes. Todo novo acontecer de sentido Ž situado no

contexto de sua determina•‹o estŽtica. A obra barroca torna-se a produ•‹o de um

conjunto de procedimentos que proporcionam a compreens‹o de algo que se quer

enunciar atravŽs dos suportes de sua enuncia•‹o. A dificuldade est‡ nisso: a

inseparabilidade entre mensagem e contexto de express‹o e as decorrentes confus›es

entre a literalidade do que se afirma e a efetividade do modo como se diz. Para um

formalista o barroco ter‡ assimetrias, irregularidades, flutua•›es. Para um conteudista

o barroco ser‡ hermŽtico, extracotidiano, excntrico. Em todos os momentos, a

unilateralidade com que se trata o Barroco exp›e a incompreens‹o de rela•›es de

texto e contexto, da historicidade da estŽtica.Assim, o descontextualismo formal sincr™nico, produzindo um eterno presente

das formas, Ž in‡bil para o entendimento das implica•›es dessas formas ou

formatividade ( PAREYSON 1984 e 1993). A atividade estŽtica realiza conjuntos

cuja referncia se situa no modo como s‹o configurados e dispostos os elementos

utilizados em uma express‹o. O que est‡ escrito Ž a representa•‹o do modo como

esses elementos se organizam e s‹o recebidos. A escrita estŽtica, pois, n‹o Ž a

reprodu•‹o do conteœdo dos elementos, e sim a individua•‹o das rela•›es entre esseselementos.

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Esse impulso configurador que estabelece uma ordem, organiza•‹o de uma

estrutura, Ž sinalizado e praticado pela fuga. Como veremos, o modo de estrutura•‹o

da fuga est‡ diretamente relacionado com os procedimentos que a possibilitam. As

distin•›es encontradas apontam para seu contexto de produ•‹o.

Leitura de A arte da Fuga

Agora vamos fazer um exerc’cio te—rico-anal’tico que objetiva, pela

ultrapassagem compreensiva da carateriza•‹o puramente formal, promover tanto a

explicita•‹o dos processos de representa•‹o que a fuga atualiza quanto a carateriza•‹o

de suas implica•›es dram‡ticas. A dramaticidade do barroco , esperamos, ser‡

concretizada por uma obra em a•‹o.

Escolhemos  A arte da fuga  por ser um livro, ter um projeto composicional

 bem delineado. Bach assim o quis. Ele escreveu e disp™s as fugas em um livro. A

emergncia do Barroco far‡ desenvolver a chamada met‡fora do livro, t—pica utilizada

 para demonstrar a centralidade da linguagem na organiza•‹o das rela•›es do homem

consigo mesmo e com o cosmo. O livro sempre visou instaurar uma ordem

(CHARTIER 1994:8). Validando experincias de mundo atestadas e exploradas em

suas p‡ginas, o livro declara um saber estruturado pelo autor. N‹o Ž em v‹o que  A

arte da fuga Ž um livro no qual o autor se faz presente, representado, como veremos.

Segue-se a leitura desse livro, a tentativa de compreender seus mecanismos de

reprodu•‹o e agrupamento, a materialidade da linguagem utilizada e configurada

(DUBOIS 1996:62), o que evidencia a poŽtica dram‡tica da mœsica p—s-renascentista

empreendida por Bach. O livro  A arte da fuga Ž um meta-livro, um livro sobre uma

forma altamente especificada: mais que um livro sobre a ret—rica musical, Ž uma obra

sobre a cena musicalizada. Mesmo sem um texto verbal, A arte da fuga tem seu texto:o contexto de sua efetiva•‹o, a partir de suportes dram‡ticos. ƒ o que perseguimos.

 A arte da fuga Ž um conjunto de fugas sobre a escritura fugal. ƒ Òuma cole•‹o

de varia•›es contrapont’sticas, todas baseadas na mesma idŽia e todas no mesmo

tomÓ(GEIRINGER 1985: 330). Bach disp™s assim a obra com o objetivo de explorar

as possibilidades da escritura fugal. Um mesmo tema Ž variado r’tmica e

melodicamente atravŽs de diferentes graus de complexidade. A varia•‹o tem‡tica ou

mot’vica perseguida atŽ sua satura•‹o Ð procedimento que fundamenta uma fugaindividual - Ž agora estendida a um conjunto de fugas. O ciclo de  A arte da fuga 

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tematiza assim uma grande fuga que se comp›e ela mesma de fugas individuais

agrupadas em se•›es. Assim como funciona uma fuga individual, tambŽm o ciclo se

estrutura. O car‡ter fugal do ciclo amplifica a realidade c’clica de uma fuga. Se a fuga

apresenta e desenvolve um motivo, o ciclo se estrutura em grupos de fugas que

apresentam e desenvolvem um motivo. Assim como uma fuga se comp›e de se•›es

relacionadas com a varia•‹o mot’vica, o ciclo de fugas tambŽm se comp›e de

conjunto de fugas como se•›es que pontuam as varia•›es tem‡ticas. O ciclo de fugas,

desenvolvendo possibilidades de dramatiza•‹o de uma fuga, explicita os

 procedimentos de escritura de uma fuga particular. As possibilidades de uma fuga

individual s‹o tematizadas pelo ciclo das fugas. As quatro se•›es do ciclo, e suas

divis›es internas, esclarecem os procedimentos utilizados pela fuga em sua

autorepresenta•‹o e dramatiza•‹o .

 A arte da fuga,  pois, Ž uma poŽtica da escritura fugal,( como se v desde o

t’tulo-  A arte de). Ao invŽs de um conjunto de regras para a composi•‹o,  A arte da

 fuga, explorando os recursos de uma forma altamente praticada, converte-se em

ilumina•‹o de procedimentos que fundamentam a textualidade da mœsica. E quais s‹o

estes procedimentos de textualidade?

1  Inicialmente, vemos que a fuga, para fazer variar o motivo, divide-se em

se•›es, assim como em se•›es divide-se o ciclo tem‡tico de A arte da fuga. Trata-se

de uma forma multisetorial, descont’nua, na qual a tens‹o entre todo/parte Ž assumida

 previamente. O projeto de  A arte da fuga prev se•›es onde agrupamentos de fugas

individuais ter‹o uma determinada fun•‹o em rela•‹o ao ciclo. O ciclo n‹o Ž o

somat—rio de fugas, mas a totalidade dividida, a totalidade configurada por se•›es.

A divisibilidade do todo em se•›es, advista em uma fuga individual e

intensificada no ciclo, cria uma aparente tens‹o entre unidade do motivo a ser variado

em uma fuga e a descontinuidade das partes da fuga. Se a fuga tematiza um motivo primeiro expondo-o e desenvolvendo-o Ž porque a unidade do todo n‹o Ž exterior ˆ

rela•‹o que se performa nas partes entre as partes. A varia•‹o tem‡tica que a fuga

efetiva, reivindica de antem‹o um tratamento descont’nuo do material a ser disposto.

A continuidade da fuga se alcan•a pela exibi•‹o dos cortes, das inst‰ncias. A varia•‹o

demarcada por se•›es Ž fator intr’nseco ao perfazer-se da fuga.

Tal demarca•‹o por se•›es amplia-se pelas lentes de  A arte da fuga. O que Ž

determinante para a fuga Ž tematizado pelo ciclo. A grande fuga que Ž A arte da fuga  pressup›e esta divisibilidade como maneira de ratificar a varia•‹o do tema proposto.

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  ##V

Ratificando o descont’nuo, supera-se a estreita oposi•‹o entre tema e varia•‹o.

Se a escritura fugal elabora a varia•‹o tem‡tica, ela n‹o o faz como refor•o do tema,

como confirma•‹o do tema. Sen‹o, a fuga seria igual ao tema que ela prop›e. Essa

n‹o coincidncia entre tema e fuga faz com que as implica•›es dessas divis›es sejam

 buscadas.

Pois, se o que varia Ž o tema e a fuga Ž a varia•‹o tem‡tica levada ˆ sua

satura•‹o e tudo o que a fuga efetua j‡ Ž varia•‹o tem‡tica, ent‹o o tema Ž uma

varia•‹o. Na exposi•‹o mesma do tema temos j‡ varia•‹o do tema. O tema Ž proposto

e variado. Assim, a se•‹o expositiva de uma fuga j‡ n‹o Ž simplesmente uma unidade

 baseada no tema, n‹o havendo tema sem varia•‹o.

Por isso compreendemos as partes que comp›em a exposi•‹o de uma fuga. A

 pr—pria exposi•‹o Ž divis’vel. Em A arte da fuga isso Ž tornado bem claro no grupo de

fugas que comp›e a se•‹o-exposi•‹o. Assim como em uma fuga individual a

exposi•‹o Ž demarcada pelo aparecimento do sujeito em todas as vozes, da mesma

forma quatro fugas simples comp›em a se•‹o- exposi•‹o de A arte da fuga.

Retornando: a textualidade da fuga advŽm da produtividade em torno de

 procedimentos descont’nuos que configuram a sua referncia. SŽries de exposi•›es e

desenvolvimentos constituem-se em macrose•›es que demarcam a atividade da

varia•‹o mot’vica. No interior mesmo dessas macrose•›es encontramos mais

divisibilidade ainda. A exposi•‹o de uma fuga Ž a aplica•‹o da varia•‹o mot’vica

sobre um tema escolhido.

Em virtude disso, vamos ver mais de perto como se faz a varia•‹o mot’vica j‡

na exposi•‹o. O material da fuga Ž apresentado e introduzido pelo sujeito. Essa

entrada isolada, cercada pelo silncio das outras vozes, converte-se em orienta•‹o

 para os posteriores procedimentos contrapont’sticos da exposi•‹o. Note-se que a

entrada do sujeito Ž altamente marcada. Promove a execu•‹o de um material r’tmico-mel—dico gerador. Seu exposto isolacionismo Ž contrastado com a apari•‹o das vozes

subsequentes.

Esse sujeito Ž respondido, ou melhor, duplicado pela imita•‹o feita por outra

voz. Desta maneira, justap›em-se materiais aproximadamente semelhantes. A

semelhan•a se produz atravŽs da aproxima•‹o e contraste. A percep•‹o do mesmo se

faz em fun•‹o do novo. A dialŽtica sujeito-resposta da exposi•‹o n‹o Ž o refor•o de

uma unidade tem‡tica, mas a produ•‹o de um contexto de varia•›es.

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  ##;

 Novamente A arte da fuga. A parte expositiva comp›e-se de quatro fugas que

retomam um mesmo motivo e o variam. Os procedimentos de varia•‹o, ao mesmo

tempo eque se ligam ao material tem‡tico, exercem sobre ele um esfor•o de

diferencia•‹o. Se a primeira fuga apresenta o tema, as demais modificam ritmica e

melodicamente este tema, de forma a se estabelecer uma cont’nua rela•‹o entre o

motivo que Ž variado e o refor•o do motivo pela varia•‹o.

Essa atividade na exposi•‹o da varia•‹o determina que, ao mesmo tempo em

que se retome a orienta•‹o do motivo, sejam tambŽm pontuados componentes desse

mesmo motivo. O prosseguir da fuga ser‡ a desconstru•‹o da pretensa

homogeneidade do tema e sua reconstru•‹o e apropria•‹o subseqŸentes. A exposi•‹o

do tema na dialŽtica sujeito/resposta mostra como o motivo tambŽm Ž divis’vel,

demonstra sua composi•‹o em unidades que ser‹o posteriormente trabalhadas. A fuga

n‹o Ž o monotematismo de um sujeito, mas a produ•‹o de um campo de expectativas

continuamente revisitado e descontinuamente constitu’do. O reenvio cont’nuo ao tema

Ž feito para que se evidencie a varia•‹o mot’vica. N‹o se pode produzir varia•‹o

tem‡tica sem um suporte tem‡tico. Eis um pouco da l—gica fugal.

Se a entrada do sujeito Ž extremamente marcada e demarcada, gerando o

horizonte de recep•‹o da exposi•‹o, o mesmo se pode dizer do que se segue. As

imita•›es e justaposi•›es do sujeito nas vozes, procedimentos que caracterizam a

exposi•‹o, retomam essas marcas, expandindo-as. Demonstra-se, pois, que n‹o pode

haver uma reatualiza•‹o ipse literis de uma forma anterior. Produz-se um padr‹o de

reconhecimento por contextos extensos (K.Pike). O espa•o de entradas, sa’das,

simultaneidades, relacionados com o car‡ter antecipativo e program‡tico do sujeito,

ratifica o princ’pio de simetria como conseqŸncia da atividade de varia•‹o mot’vica.

 Na exposi•‹o, as reinser•›es do sujeito, seja nas respostas, seja nas imita•›es,

configuram o efeito de uma semelhan•a continuada, a  simetria que aponta para avaria•‹o.

Dessa forma, confirma-se que a simetria Ž produzida, Ž induzida por artif’cios

e t‡ticas descont’nuas. O espa•o mœltiplo da representa•‹o fugal Ž que possibilita uma

 perspectiva, uma imagem de semelhan•a. A varia•‹o mot’vica, agindo sobre um

material escolhido previamente para ser potencialmente configurado, transformado

tematicamente, produz a simetria das formas. ƒ preciso ter em mente esta

 prerrogativa. A semelhan•a entre as partes se funda em sua diferen•a. A diferen•aorientada para a produ•‹o de uma continuidade Ž que produz a simetria. A simetria Ž

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  ##l

a resultante de toda essa atividade descont’nua. Temos, pois, uma tendncia ˆ

 simetria  realizada por procedimentos de varia•‹o mot’vica e n‹o uma simetria

absoluta, genŽrica.

A rela•‹o todo/parte, inscrita na evidncia multisetorial da fuga, necessita da

tendncia ˆ simetria n‹o para confirmar o idntico, e sim para ratificar a

heterogeneidade das divis›es. A rela•‹o com o idntico presente na varia•‹o mot’vica

fornece um reconhecimento do diferente modo de tratamento do motivo pela

referncia ˆ disposi•‹o do motivo. ƒ preciso compreender essa distin•‹o. A varia•‹o

sobre o motivo, a reatualiza•‹o do motivo incide sobre o contexto diverso atravŽs do

qual o motivo Ž reapresentado. No contraste entre as situa•›es de apresenta•‹o e

reapresenta•‹o, n‹o Ž o mesmo tema que se depreende como material fugal, mas sim

os novos contextos de elabora•‹o do material. A se•‹o- exposi•‹o n‹o serve apenas e

t‹o somente para alertar a recep•‹o sobre qual Ž o tema da fuga. Demonstra o modo

como vai ser efetuada a varia•‹o mot’vica. O tema da exposi•‹o Ž a varia•‹o tem‡tica

 por semelhan•as mel—dicas que demarcam contextos de distanciamentos sobrepostos.

Exibe-se a configura•‹o da varia•‹o. Foi o que Bach levou ao extremo em A arte da

 fuga. Um mesmo tema Ž variado n‹o em uma fuga individual, mas em um ciclo, no

qual , na verdade, s‹o tematizadas as pr—prias possibilidades da varia•‹o tem‡tica. A

retomada programada do tema nas diferentes texturas exibe n‹o o tema, mas o que se

 faz com ele. A arte da fuga Ž o espet‡culo dos procedimentos de sua possibilita•‹o.

Entramos, ainda na exposi•‹o, na natureza perform‡tica da fuga. O conceito

de performance Ž fundamental para que se ultrapasse uma descri•‹o formalizada da

mœsica. As implica•›es das formas procuram explicitar o porqu das marcas formais

de uma estrutura. O que se exibe nessa exposi•‹o? Por que essa exibi•‹o se faz na

reapresenta•‹o do tema nas variadas vozes?

Sendo a exposi•‹o uma exibi•‹o reiterada do tema, tendo sua extens‹o eordena•‹o demarcadas por meio de controle e previs‹o das entradas e as sa’das,

 promove-se, por esta formatividade exibitiva, o suporte para sua recep•‹o. A imita•‹o

da resposta e a reinser•‹o do sujeito nas vozes demarcam os come•os da mesma

situa•‹o de varia•‹o mot’vica proposta na exposi•‹o. A performance Ž um programa

de experincias que concatenam a exibi•‹o de algo para alguŽm. Para durar e

constituir-se, a performance precisa atualizar constantemente orienta•›es para sua

recep•‹o. Uma se•‹o que se configura atravŽs da prŽvia e finita exibi•‹o de ummotivo proposto e reatualizado orienta a recep•‹o para sua performance. Ela n‹o

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  ##m

exibe algo, ela se autoexibe. A exposi•‹o de uma fuga intervŽm como proposi•‹o do

modo como ser‹o articulados e definidos a distribui•‹o de seus elementos. E enuncia

a ÔleiÕ de seu movimento. A fuga Ž uma modaliza•‹o de sua performance, que orienta

a recep•‹o para o modo de sua produ•‹o. Insere, em seu texto, seu metatexto. As

 partes da escritura fugal coordenam o esfor•o compositivo de expor a inteligibilidade

de sua estrutura•‹o ao mesmo tempo em que realizam sua representa•‹o. Desde o

in’cio o tema Ž ’ndex, ele refere-se ao que se vincula, os modos de sua produ•‹o. A

varia•‹o mot’vica aponta para a estrutura•‹o da fuga. A alta reitera•‹o de

 procedimentos da fuga, logo em sua abertura e exposi•‹o, demonstra como a

atratividade de sua performance se articula com a proposi•‹o para audincia do

conhecimento do modo de constru•‹o da obra.

Paradoxalmente, ent‹o, uma fuga que come•a com a exibi•‹o de seu projeto

de realiza•‹o, prolonga-se com a recusa de representar, frente a este momento

metatextual reiterado. Ao invŽs de seguir e prosseguir na realiza•‹o do

desenvolvimento de um tema, a escritura fugal demora-se na dialŽtica sujeito-

resposta. H‡, pois, a frustra•‹o ou reorienta•‹o da imediata expectativa de

representa•‹o, quando a fuga se demora em focalizar os nexos receptivos atravŽs da

exibi•‹o de sua construtuvidade. A assincronia entre performance fugal e recep•‹o

 patenteia essa ret—rica. N‹o se exibe algo, mas o modo da realiza•‹o. A fuga n‹o

exp›e o tema e imediatamente o desenvolve.

A extrema formatividade da se•‹o-exposi•‹o, ausente na se•‹o-

desenvolvimento, encontra aqui suas raz›es. Momento fundamental da fuga, a

exposi•‹o valida-se n‹o apenas como did‡tica do reconhecimento do tema, na qual se

facultaria, ˆ recep•‹o, o horizonte de inteligibilidade da obra. Temos tambŽm fun•›es

de excedncia  ao se conduzir o tema. Explora-se o efeito do retardo interacional,

como se v na dialŽtica sujeito/resposta. Aqui, contrariamente aos termos, n‹o h‡di‡logo. As vozes n‹o dialogam diretamente. Ao se remeterem a um tema que ser‡

retomado para ser variado, as vozes precisam cumprir o programa de sua exibi•‹o

 para que a exposi•‹o seja delimitada. Elas precisam repropor a tendncia ˆ simetria

como forma de configurar a se•‹o. A marcada exibi•‹o da organiza•‹o de sua

atividade evita que apressadamente se fa•a analogia com uma conversa. As vozes n‹o

se reportam para o tema, mas realizam a varia•‹o tem‡tica. Isso patenteia o fato que,

ao invŽs da fala, estamos lidando com sons. E ainda mais: demonstra que a

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  ##n

dramatiza•‹o, mesmo an‡loga a atos comunicativos cotidianos, n‹o se confunde com

eles.

Tal analogia baseia na rela•‹o entre arte e discurso. Segundo o pressuposto da

distin•‹o estŽtica que caracteriza essa rela•‹o214, a arte Ž um discurso que comenta

um referente. Para compreender a arte, ent‹o seria preciso apoiar-se no referente deste

discurso. Essa substancialidade da arte a caracterizaria estruturalmente. A arte como

discurso redundaria na representa•‹o de uma proposi•‹o tem‡tica. A partir disso, a

identifica•‹o do tema e de suas varia•‹o no decorrer do discurso da arte acabariam

 por ser a atividade mais digna de se realizar. A obra de arte, ao fim, seria constitu’da

de partes que retomam e referendam sua homogeneidade tem‡tica. A coes‹o de uma

obra, sua estrutura formal, o esfor•o de representar sua coerncia, a confirma•‹o da

referncia tem‡tica. Assim, uma obra acabaria por possuir come•o, meio e fim, planos

do discurso que apresentam, desenvolvem e concluem um tema, com total privilŽgio

do todo sobre as partes.

Contudo, essa discursividade da arte, impresso no pressuposto da

diferencia•‹o estŽtica, n‹o Ž suficiente para caracterizar a fuga. A imagem linear de

come•o, meio e fim de uma ret—rica org‰nica n‹o Ž a forma da fuga. A escritura fugal

n‹o parte da homogeneidade do tema como condi•‹o e pressuposto de sua

representa•‹o nem pontua essa homogeneidade com pausas. O aspecto multisetorial

de sua escrita exibe a produ•‹o do contexto da fuga. N‹o h‡ um exclusivo modo de

estabelecer nexos e referncia, mas sim a preocupa•‹o de coordenar a retomada do

tema ao suporte para se visualizar os procedimentos de sua modifica•‹o. Temos a

elabora•‹o de uma contextura perform‡tica e n‹o de uma ret—rica discursiva, restrita e

adstrita ˆ literalidade formal do texto.

A escritura fugal exp›e a legibilidade dos modos os quais o compositor se vale

 para proporcionar as referncias de sua atividade perform‡tica. O texto fugalapresenta n‹o um tema em sua transforma•‹o, e sim os recursos carateriz‡veis de uma

 pr‡tica representacional. A varia•‹o tem‡tica Ž o suporte da orienta•‹o da recep•‹o

 para estes procedimentos. A fuga se vale da cont’nua referncia ao motivo, mas do

motivo reinserido em uma configura•‹o que lhe Ž anterior e determinante. S‹o

 produzidos distanciamentos em rela•‹o ao motivo atravŽs de sua recursividade. A

dialŽtica sujeito/resposta das vozes na exposi•‹o vai demarcando este distanciamento,

214 GADAMER 1997.

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  ##:

esse espa•o que passa a existir entre a confirma•‹o do tema e seu uso em fun•‹o das

 prerrogativas fugais. A varia•‹o mot’vica n‹o Ž a homogeneidade do tema, mas a

integridade da configura•‹o da fuga que orienta a recep•‹o. A cont’nua referncia ao

motivo na exposi•‹o n‹o Ž a redund‰ncia tem‡tica, e sim a eficincia estrutural da

 performance da fuga.

Por isso a dialŽtica sujeito-resposta demarca um conjunto previs’vel de

entradas e sa’das e n‹o um di‡logo democr‡tico progressivo. A n‹o progressividade

deste dialogismo refere-se ˆ exibi•‹o que domina a exposi•‹o. Porque aqui n‹o se

comunicam palavras ou um tema: exibe-se a situa•‹o interpretativa da obra, seu

horizonte metatextual.

A formatividade das vozes na exposi•‹o preenche o campo de expectativas da

recep•‹o, possibilitando o horizonte de sua orienta•‹o. A tendncia ˆ simetria Ž

 produzida e o revezamento esperado na reatualiza•‹o do sujeito Ž efetuado. Com essa

mimŽtica, a recep•‹o Ž conduzida a seguir o que se prop›e e se exibe em sua

exposi•‹o. H‡ a transferncia da identidade do tema para a formatividade da obra. A

simetria que as entradas exibem refor•a os procedimentos contextuais da varia•‹o

mot’vica. O revezamento das vozes na moldura da exibi•‹o situa a recep•‹o dos

 procedimentos da varia•‹o mot’vica.

As vozes s‹o os ve’culos e operadores da fuga. Mudam de fun•‹o nas se•›es

da fuga. Na exposi•‹o, introduzem e interpretam a varia•‹o mot’vica em sua

 performance. Seu delineamento e programa demarcados s‹o os meios pelos quais a

escrita fugal se vale para se (auto)representar. No desenvolvimento, focalizam

aspectos do tema e n‹o mais sua inteireza.

2  Vimos, ent‹o, que em conjunto com a exposi•‹o do tema, a fuga prop›e-se,

autorepresenta-se. A se•‹o-desenvolvimento abandona a indexa•‹o mot’vica comoagente privilegiado para a autoexposi•‹o da fuga, para a exibi•‹o de contextos de

estrutura•‹o musical para o audit—rio. A interrup•‹o da referncia ˆ integridade do

tema do tema Ž proporcional ˆ performance da musicalidade do compositor. Aumenta

a taxa de indetermina•‹o e, consequentemente, de reconhecimento do que se mostra.

Tal fato, que j‡ estava presente na exposi•‹o,agora Ž assumido completamente. Se na

exposi•‹o t’nhamos a varia•‹o mot’vica indexada ˆ nfase tem‡tica, neste momento

temos a varia•‹o sem o motivo integral, temos a integral varia•‹o. Pois, sendo o temada fuga a varia•‹o, temos a possibilidade de fazer a varia•‹o com ou sem uma

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  #SL

domin‰ncia tem‡tica. N‹o que o tema desapare•a, mas altera-se a hierarquia por meio

da qual a varia•‹o se referenda. A quest‹o aqui n‹o Ž de vocabul‡rio, mas de sintaxe.

A se•‹o-desenvolvimento registra essa mudan•a na nfase da varia•‹o. N‹o Ž

um corte com a estrutura geral da fuga, mas o enfoque de um movimento que se

realiza antes. A fuga trabalha com a irreversibilidade temporal , perseguindo sempre

uma presen•a. N‹o possui passado, mas uma atualidade constru’da. Fazer durar uma

 presen•a para alŽm de seus contornos - eis a perspectiva temporal da fuga. Para que

isso se realize, o espa•o de representa•‹o precisa ser estruturado em v‡rios n’veis

sobrepostos, o que exige uma diferencia•‹o contextualizada. A se•‹o-

desenvolvimento vai contextualizar, na atualidade cont’nua de sua exibi•‹o, a

varia•‹o sobre o tema praticada na se•‹o-exposi•‹o. Contra o fantasma da

literalidade, a disposi•‹o variacional do desenvolvimento atua como inteligibilidade

de procedimentos j‡ expostos anteriormente e agora focalizados.

Para tanto, vejamos  A arte da fuga.  As fugas que comp›em sua se•‹o-

desenvolvimento valem-se de procedimentos que esclarecem a se•‹o-

desenvolvimento de uma fuga particular.

Ap—s o grupo de quatro fugas que realizam a exposi•‹o, temos um segundo

grupo de fugas em  stretto, composto por trs fugas. Um distanciamento maior em

rela•‹o ao tema Ž efetuado, e este distanciamento ser‡ o tema das varia•›es

desenvolvidas, o tema mesmo do ciclo subseqŸente. A ambincia com maior simetria

estrutural proporcionada pela referncia ao tema nas fugas-exposi•‹o Ž perturbada

 pelas fugas stretto de trs maneiras (GEIRINGER 1991:332): 1, modifica-se a textura,

a dialŽtica sujeito Ð reposta, trabalhando-se na invers‹o do sujeito na resposta,

contrariamente ˆ imita•‹o do material do sujeito nas vozes, como se fez nas fugas-

exposi•‹o; 2, apresenta•‹o pelas vozes do material do sujeito Òem uma sucess‹o t‹o

compacta que um novo enunciado principia antes de o prŽvio estarconclu’doÓ(GEIRINGER 1991:332). 3- Dimini•‹o e aumento do motivo.

A mudan•a do eixo de orienta•‹o da recep•‹o para a performance variacional

Ž realizada em um espet‡culo de desfigura•‹o da identidade dos padr›es pelos quais o

tema Ž atualizado. A imita•‹o do tema n‹o Ž o regular provimento de mesmos

contextos enunciativos, pois a reposta altera a disposi•‹o do material do sujeito.

Sujeito e reposta n‹o coincidem totalmente em padr‹o de referncia, em seu

movimento de apresenta•‹o. A invers‹o do sujeito na resposta Ž a inclus‹o de umaassimetria dentro da previsibilidade por semelhan•a anterior.

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  #S"

O  streeto, sobrepondo entradas, modifica o espa•o de representa•‹o da fuga,

retirando a condu•‹o do reconhecimento do tema por sua comp—sita homogeneidade

 para a perda das marcas que o diferenciam e o delimitam. A focaliza•‹o redistributiva

do  stretto  atinge a integridade do tema como motivo condutor da fuga. Veja- se a

 passagem de um modo de tratamento do material   para um modo de exibi•‹o de

 procedimentos estruturais.

A diminui•‹o e o aumento incidem sobre a modela•‹o do material, alterando

as prerrogativas de seu tratamento uniforme, descrevendo sua maleabilidade e

flexibilidade. Exibem a interven•‹o sobre o material fugal.

Estes atos dissimŽtricos determinam a preponder‰ncia de sua disposi•‹o sobre

seu conteœdo. As altera•›es ainda tomam por base o tema. S‹o altera•›es de material

fugal, como se o tema comentasse a si mesmo. A dissolu•‹o da fixidez do material Ž

acompanhada pela produ•‹o da estrutura•‹o da obra. Incrementa-se o fato que a fuga

vai enfatizando cada vez mais as rela•›es com o material que o pr—prio material. A

imediata abstra•‹o proporcionada Ž a concretiza•‹o da performance da composi•‹o

em sua autorepresenta•‹o, como de uma composi•‹o em performance215. ƒ a

revela•‹o para o audit—rio dos contextos e suportes expressivos da obra.

A fuga, na medida em que se desmaterializa, converte-se em metatexto, em

atualiza•‹o de procedimentos composicionais. A desestrutura•‹o tem‡tica Ž o

espet‡culo da diferencia•‹o dos atos expressivos. Por entre as brechas da integridade

do material tem‡tico irrompem os modos de produ•‹o de contextos e padr›es pelos

quais as formas se individualizam, demonstrando que a emergncia do que se exibe Ž

uma ordena•‹o constitutiva e integrada ̂ sua representa•‹o.

Mas n‹o h‡ a elimina•‹o do motivo nessa diversifica•‹o de motivos. A

varia•‹o tem‡tica Ž produzida por outros meios. H‡ a varia•‹o do sujeito por ele

mesmo. O desdobramento da identidade tem‡tica Ž a expans‹o de suas potencialidades. N‹o coincidindo consigo, mas constantemente refigurado, o tema

estabelece o otimiza•‹o dos n’veis de organiza•‹o interligados.  As rela•›es s‹o

maximizadas, enquanto que o material Ž minimizado, como vimos.

Aqui entramos na tens‹o que fundamenta a fuga e a qual o desenvolvimento

refor•a. Essa tens‹o Ž estrutural, ou seja, inscrita no modo como um fuga se efetiva.

Essa tens‹o sem resolu•‹o se d‡ no entrechoque entre metatexto e tema. A partir do

215 LORD 2003.

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  #S#

desenvolvimento, temos a sobreposi•‹o do cont’nuo abandono da integridade

tem‡tica e o incremento da performance variacional. ƒ como se houvesse o conflito

entre os modos de orienta•‹o da obra e a unidade compositiva estivesse em risco.

Assim, a recep•‹o Ž submetida a um contato inicial com o mundo da obra atravŽs do

delineamento de um padr‹o altamente configurado. Ap—s, Ž conduzida para a

variedade de procedimentos que fogem deste padr‹o. O centro de orienta•‹o muda de

domin‰ncia. O suporte inicial da recep•‹o perde o grau decisivo para seu

reconhecimento da representa•‹o enquanto Ž deformado. Na se•‹o-exposi•‹o temos o

estabelecimento do contato entre representa•‹o e audincia. Na se•‹o-

desenvolvimento temos a cont’nua reorienta•‹o desse contato a partir da redefini•‹o

da mem—ria do que se exibe.

Dos peda•os do material utilizado como centro de orienta•‹o da fuga, a se•‹o-

desenvolvimento ofertar‡ n‹o uma reconstitui•‹o, e sim novos padr›es de referncia,

novas recursividades.

A desorienta•‹o pela recusa de representar na demora da dialŽtica sujeito-

resposta acopla-se ˆ desorienta•‹o na perform‡tica exposi•‹o de procedimentos

variacionais. Vemos como a escritura fugal registra, desse modo, a impossibilidade da

semelhan•a total, da fus‹o entre representa•‹o e representado. A repeti•‹o do tema Ž a

ultrapassagem da literalidade e n‹o a aplica•‹o de um modelo composicional r’gido.

4 O grupo de fugas  stretto de  A arte da fuga,  fazendo a transi•‹o para a

se•‹o-desenvolvimento, anunciou muitos atos exemplares dessa mudan•a de

orienta•‹o na fuga. A representa•‹o agora, ao invŽs de tematizar um sujeito, encena

as possibilidades de varia•‹o. Seguem-se dentro da se•‹o-desenvolvimento de  A Arte

da Fuga , dois grupos, confirmando a constitui•‹o multisetorial da fuga. O primeiro

deles reœne quatro fugas, duas duplas e duas tr’plices. O segundo grupo nos ofereceduas fugas duplas.

O  streto, justapondo entradas, prefigurava combina•›es e intercruzamentos

funcionais sob um tema œnico, que desfigurado, partido, somando, dividido promovia

a possibilidade de se formar um novo tema. Desse modo, ratifica o car‡ter projetivo

da formas na fuga, pois o tratamento fugal da se•‹o exposi•‹o deixava patente a

varia•‹o na se•‹o desenvolvimento.

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  #SS

Essa fratura no seio do mesmo abre a possibilidade de, a partir da parte

refigurada, ir produzindo novas partes, movimento no qual uma totalidade maior que

os elementos, mas desenvolvida a partir deles, Ž almejada.

A se•‹o-desenvolvimento assume essa complexa rela•‹o todo- parte, na qual

realiza-se a antecipa•‹o de uma totalidade em elabora•‹o. O monotematismo atŽ aqui

resistente Ž modificado em prol de um pluritematismo especial. A horizontalidade

mel—dica acolhe a desigualdade da textura. AlŽm dos temas novos adicionados, o

motivo atŽ aqui utilizado Ž submetido a redefini•›es r’tmicas (aumento, invers‹o),

estabelecendo distanciamentos reconhec’veis e fixos em rela•‹o aos novos temas. As

fugas duplas Ž que pontuam essa mudan•a de padr‹o de exibi•‹o. Os novos temas

colocam-se em dist‰ncia fixa abaixo ou acima do tema principal. Ao mesmo tempo

em que temos uma refigura•‹o do tema, os novos procedimentos interligam-se,

submetendo-se ˆ pluralidade de n’veis que caracterizam a fuga. O novo fator Ž

orientado pela constitui•‹o da escrita fugal. O novo refor•a a hierarquia observ‡vel da

obra. A audincia n‹o se perde na imediata aparncia de perda de orienta•‹o: ela

observa o refor•o da integra•‹o de sŽries. A atualidade da fuga Ž a da presen•a de

uma representa•‹o por suportes expressivos. A varia•‹o intensifica a necessidade da

estrutura•‹o. A audincia substitui a expectativa via tema pela familiaridade com os

 procedimentos metatextuais.

O pluritematismo da se•‹o desenvolvimento de  A arte da fuga,  elevando a

tens‹o fugal Ð altera•‹o do centro de orienta•‹o da obra - efetiva o car‡ter epis—dico

da representa•‹o. Denominamos Ôepis—dicoÕ para refor•ar o car‡ter de acontecimento 

impresso na diferencia•‹o da fuga. Suspendendo uma l—gica atomizadora que s— v

elementos onde temos situa•›es e contextos de express‹o, o car‡ter epis—dico da

representa•‹o induz a recep•‹o a entrar em contato com organiza•›es sonoras bem

demarcadas com as quais agora se trabalha. N‹o se trata de situar o material tem‡tico,mas de individuar algo alŽm do

material sonoro de um tema. Temos unidades organizadas maiores que uma

modifica•‹o do tema dentro de uma fuga. O pluritematismo amplia o espa•o fugal

 para uma varia•‹o de contextos expressivos em estrutura•‹o. A varia•‹o encontra

aqui seu alvo: a configura•‹o de suportes que contextualizam o horizonte de uma

recep•‹o. Um epis—dio Ž a integra•‹o dessas t‡ticas representacionais que

concretizam orienta•›es para sua recep•‹o. A dramaticidade da fuga reside em seucar‡ter epis—dico por meio do qual as vozes se assentam. O epis—dio e a possibilidade

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  #SV

de uma nova fuga dentro da fuga de agora s‹o o efeito alcan•ado. Quando o

 pluritematismo age, temos um novo in’cio. Assim como uma fuga Ž gerada pela

exposi•‹o de um tema, um novo tema e mais outro, por conseguinte, justap›em n‹o

mais material fugal, e sim fugas, ou possibilidades de fugas. Uma varia•‹o de fugas

dentro de uma fuga amplia o espa•o representacional de uma fuga individual,

rompendo com a indexa•‹o da referncia ˆ decomposi•‹o de um material tem‡tico ou

a uma unidade tem‡tica.

Dessa forma, uma maior intera•‹o da audincia com a performance Ž

efetivada pois o audit—rio agora relaciona-se com a visualiza•‹o de totalidades. H‡ a

confirma•‹o do movimento representacioal da fuga em dire•‹o ˆ autorepresenta•‹o

organizativa atravŽs dessa expans‹o de seu contexto de produ•‹o. O trabalhar com

temas e n‹o com um material fugal œnico diversifica a varia•‹o tem‡tica empregada

na escritura fugal. O distanciamento em rela•‹o ao tema de base, a diminui•‹o de seu

reconhecimento por confirma•‹o Ž levado cada vez mais ao limite, de modo que

 processo de orienta•‹o fundamenta-se nesse afastamento. A orienta•‹o movimenta-se

n‹o no reconhecimento da fuga pela unidade de seu tema œnico, mas no

reconhecimento atravŽs do afastamento em rela•‹o a este tema.

Com as fugas duplas e depois as tr’plices, chegamos ao fim do vŽrtice oposto e

simŽtrico da estrutura•‹o da fuga. Da varia•‹o do tema ˆ tematiza•‹o da varia•‹o

ganhamos uma familiaridade com estrutura•‹o em partes que v‹o se totalizando, na

amplia•‹o dos contextos e exibi•‹o de procedimentos. Na medida em que vamos

ouvindo A arte da fuga vamos observando a constru•‹o de uma fuga das fugas, uma

meta-fuga. O ouvinte Ž contempor‰neo da constru•‹o desse extenso contexto.

Daqui em diante essas duas metades v‹o se reunir. Parte e todo v‹o se

encontrar e medear a integratividade de tema e varia•‹o. Os dois pr—ximos grupos de

 A arte da fuga realizam essa exposi•‹o do que foi desenvolvido, tematizando agora a pr—pria varia•‹o mot’vica.

5 ƒ o que se pode observar no conjunto das fugas duplas. Temos dois grupos

de fugas na qual cada uma do par se relaciona com a outra atravŽs de sua reexposi•‹o

 por invers‹o. A fuga rectus (A) Ž acompanhada da fuga inversus (B) em todos os seus

momentos. (A) s— adquire existncia por sua par—dia (B). O inverso aqui Ž o

coment‡rio do modelo, e o modelo somente atinge sua plenitude quando relacionado

com seu coment‡rio. A insuficincia da fuga individual Ž aqui caracterizada. Naverdade, temos uma fuga desdobrada em sua apresenta•‹o e em sua reestrutura•‹o. A

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  #S;

releitura da rectus pela inversus retoma as implica•›es representacionais da varia•‹o

mot’vica, ao propor que se veja a rela•‹o entre identidade e diferen•a n‹o na imediata

compara•‹o de elementos, e sim na produ•‹o de conjuntos que possibilitem o

contexto dessa compara•‹o. A representa•‹o Ž dependente do contexto de sua

 produ•‹o. A rela•‹o (A) Ð(B) n‹o Ž de modelo-c—pia. As fugas guardam sua

individualidade por remiss‹o ao modo como interagem. Uma Ž espectadora da outra.

As fugas duplas espelhadas anunciam o c—gito de sua interpreta•‹o. Apontam para o

que as reœne e distingue.

6 E , finalmente, A arte da fuga termina com a assinatura do autor. Na œltima e

incompleta fuga, Ž introduzido, na terceira se•‹o, um material sonoro com as letras de

BACH. Da par—dia ˆ ironia, pois, ironicamente a fuga termina incompleta com a

entrada do autor. A arte da fuga, encaminhando-se pela amplia•‹o das implica•›es da

varia•‹o mot’vica, direcionar-se-ia para uma totalidade das totalidades. A suspens‹o

do fim, marcando o retorno do tema, Ž um fechamento c’clico para uma obra c’clica,

onde o fim n‹o coincide com o come•o. A autorepresenta•‹o da obra fulgura agora no

tema BACH. A personifica•‹o do autor ratifica a vontade de abrangncia da obra

interrompida quando tudo parecia incluir.

Conclus›es

A escritura fugal permitiu delinear fatores b‡sicos que determinam a cena:

1- correla•‹o entre procedimentos estŽticos e orienta•‹o da recep•‹o. A

recep•‹o Ž antecipada e inscrita na obra como resultante da individua•‹o da obra

mesma efetuada na disposi•‹o dos materiais utilizados. Como esses atos s‹o finitos e

expostos, a formatividade da obra engedra sua compreens‹o.2- a dramatiza•‹o n‹o Ž pontual . Ela precisa de uma diferencia•‹o que se vale

da media•‹o entre um pretenso todo e partes. Efetiva-se a partir de suportes de

express‹o que v‹o sendo explorados e executados durante a representa•‹o.

3-  pluralidade de n’veis da representa•‹o. Dada a natureza descont’nua da

dramatiza•‹o, em virtude da constru•‹o do audit—rio, a obra necessita se

autorepresentar na medida em que Ž executada. A n‹o literalidade das formas

demonstra que a obra exibe-se nos procedimentos que se vale para se representar.

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  #Sl

Assim, suas referncias proporcionem a compreens‹o do modo como se estrutura:

algo a ser recebido por alguŽm.

4- marca•‹o da obra. O reconhecimento da representa•‹o Ž realizado na

varia•‹o de estratŽgias de identifica•‹o dos contextos expressivos da obra,

 proporcionando constantes reestrutura•›es do representado.

5- O incremento da pluralidade de n’veis preconiza a atividade multisetorial

da representa•‹o, havendo dependncia e mœtua implica•‹o da partes cada vez mais

definidas e individualizadas.

A escritura fugal, enfim, exibe para a audincia as habilidades do compositor

em organizar sons em fun•‹o de estratŽgias melhor compreens’veis por uma meta-

estŽtica, uma dramaturgia musical.

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  #Sm

11- NOTAS SOBRE O DRAMA MUSICAL DE CLAUDIO

MONTEVERDI

O drama musical desenvolvido por Claudio Monteverdi (1567-1643)

 prolonga-se atŽ n—s como um conjunto de experimentos e solu•›es estŽticas em um

 per’odo onde palavra e mœsica se integram em drama. A motiva•‹o dram‡tica d‡ a

hierarquia para a utiliza•‹o de materiais musicas e poŽticos.

Dessa maneira, a instrumenta•‹o, a tessitura vocal, os andamentos, a

roteiriza•‹o dos eventos e a ordem das partes recitadas e cantadas se faz em torno de

 procurada unifica•‹o cnica. As formas poŽtico-musicais procuram evidenciar a

 presen•a de um audit—rio em potencial. Para representar o drama, Monteverdi

necessita ultrapassar o autofechamento do material utilizado, dotando-o de uma

orienta•‹o representacioal. Como n‹o h‡ transparncia das formas, Monteverdi

 precisa medear os efeitos representacionais atravŽs da constru•‹o de um contexto

expressivo que produza tais efeitos. Em suas —peras temos n‹o s— a musicaliza•‹o de

temas mitol—gicos, liter‡rios ou hist—ricos, como tambŽm uma discuss‹o de

 possibilidades expressivas. A unifica•‹o extramusical de um fazer musical j‡ se

constitui em inser•‹o de uma conscincia das formas pela complementaridade entre

material e procedimentos composicionais.

Por isso, estudar a obra oper’stica de Claudio Monteverdi n‹o se reduz a uma

atividade museol—gica curiosa e pedante. A aproxima•‹o com a chamada mœsica

hist—rica evidencia a fragmenta•‹o e o formalismo de nossos h‡bitos investigativos os

quais, presos ˆ literalidade da escrita musical, n‹o problematizam os procedimentos

de composi•‹o efetivados. O feito musical em Monteverdi n‹o se confinado somenteˆ decodifica•‹o de realidades noŽticas (puramemente intelig’veis). O drama musical Ž

uma a•‹o integradora.

Trabalhando com esta produtiva dist‰ncia hist—rica, o pesquisador se inicia

tanto em distinguir fontes (dados das obras, autor, gnero, materiais utilizados,

coment‡rios cr’ticos) como em formular uma vis‹o mais integrada e cr’tico-reflexiva

de uma pr‡tica autoral.

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  #Sn

O pr—prio Monteverdi em textos escritos (cartas e pref‡cios) procurou pensar o

que realizou. As suas cartas s‹o coment‡rios que acompanham parte do processo

criativo de suas obras, explicitando a problem‡tica de se realizar algo que ainda n‹o

existia em sua amplitude. O drama musical situa-se como confluncia do fim da

antiga mœsica e destina•‹o da mœsica futura. Recusando a estreiteza dogm‡tica dos

c‰nones da camerata, que propunham a subordina•‹o da mœsica ˆ palavra como

imita•‹o ideal do drama grego e reutilizando o material polif™nico anterior como

forma de traduzir realidades e verossimilhan•as para personagens, Monteverdi

apresenta-se como dramaturgo musical, como um autor cujas obras s‹o elas mesmas

reflex›es sobre problemas concretos de express‹o.

O estudo de uma fun•‹o autoral como forma de se esclarecer a rela•‹o entre

obra, procedimentos e projeto realizacional atualiza a din‰mica entre passado e

 presente inscrita em uma atividade de pesquisa nas Humanidades. Sem a

operatividade hist—rica da tradi•‹o, sem a utiliza•‹o de conceitos operat—rios, sem o

recurso ˆ interpreta•‹o de obras, Ž extremamente improdutivo perceber o impacto de

uma interven•‹o autoral espec’fica assim como a intensidade desse impacto. O autor

n‹o Ž uma abstra•‹o, mas uma contextura de proposi•›es e quest›es espec’ficas. A

experincia monteverdiana de resolver as quest›es de continuidade e verossimilhan•a

de um drama musical continua hoje como um ponto de partida para quest›es

relacionadas a formas musicais e suas possibilidades representacionais. Os atos

 pioneiros e inaugurais de Monteverdi n‹o s‹o apenas cronol—gicos, mas registram a

forma•‹o de uma tradi•‹o que se vale de solu•›es e indecis›es frente ao drama

musical. Ao coordenar a forma musical a uma m’mesis, Monteverdi n‹o restringiu a

mœsica, mas suscitou uma experimenta•‹o que, consciente da diferen•a de  status 

entre palavra e som, soube impulsionar o material sonoro para explora•‹o de suas

orienta•›es e usos. A aprendizagem aqui Ž um saber transformado em obra. Arealiza•‹o Ž uma teoria de sua pr‡tica

Monteverdi, pois, Ž produtor de um saber, de um conhecimento que pode ser

identificado, esclarecido, interpretado, discutido e apropriado. Um fato historiogr‡fico

transforma-se em feito hist—rico- expressivo.

A dramaturgia musical de Monteverdi dimensiona uma compreens‹o mais

ampla da chamada 'Seconda pratica'. A 'Seconda paratica' Ž comumente definida

como preponder‰ncia da palavra sobre a mœsica, invertendo-se grande parte da l—gicacomposicional de sua Žpoca. Contudo, mais que uma invers‹o, para Monteverdi a

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  #S:

'Seconda pratica' Ž a explora•‹o de potencialidades representacionais inscritas na

integra•‹o entre palavra e mœsica em uma situa•‹o de representa•‹o. O drama, pois, Ž

o terceiro termo entre palavra e mœsica.

De modo que temos o seguinte rol de quest›es:

1-quest›es estŽticas: qual a rela•‹o entre a utiliza•‹o do material em uma obra

e a produ•‹o de sentido dessa mesma obra? Como tal produ•‹o de sentido Ž

refor•ada? Como tal refor•o desenvolve padr›es de observa•‹o? Como se relacionam

a variedade de materiais utilizados com cada momento de sua realiza•‹o? Frente ˆ

escrita mais aberta da partitura (baixo cifrado, marca•›es de instrumenta•‹o n‹o

escritas) como selecionar poss’veis interpreta•›es?

2-quest›es historiogr‡ficas (passagem do Renascimento ao Barroco) Qual era

a proposta da Camerata Florentina e sua cr’tica ˆ tradi•‹o madrigalesca? Qual era o

horizonte musical de seu tempo, a nova mœsica? Como eram as rela•›es entre palavra

e mœsica? Como se estruturava seu idioma musical - texturas, coerncia tonal?

3-quest›es te—rico-metodol—gicas. Como citar obras estŽticas? Como traduzir

dados estŽticos em reflex‹o sobre seu fazer? Como integrar dados musicais e dados

composionais a dados extramusicais? Como relacionar dados estŽticos e bibliografia

de apoio?como trabalhar com tradi•›es e gneros? Como usar conceitos em reflex›es

sobre obras estŽticas?

4- quest›es dramatœrgicas. Como se constr—i uma audincia? Como se efetiva

uma atividade imaginante atravŽs em um drama musical? Como se desenvolve um

ritmo representacional pela sucess‹o de partes cantadas e recitadas? Como se constr—i

a cena? Como se organizam aberturas e conclus‹o de atos e obras? Como se realiza a

m’mesis dram‡tica, rela•‹o entre eventos encenados e produ•‹o de um imagin‡rio a

ser compreendido pela recep•‹o? Como se d‡ a produ•‹o de contextos de cena atravŽs

da descontinuidade musical?

A partir disso, a situa•‹o de se deter em torno de uma Ôdramaturgia musicalÕ Ž

um desafio a nossos h‡bitos intelectuais. Na express‹o mesma texto e mœsica

comparecem como apontando para um fazer que vai alŽm dos termos envolvidos.

O que mais provocativo surge disso Ž que este encontro problem‡tico acontece

em uma moldura liminar, regi‹o de limites lim’trofes. N‹o se trata s— da

descontinuidade entre dois termos, mas a impossibilidade de s’ntese, da co-presen•ado heterodoxo.

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  #VL

De fato o impulso de integra•‹o do diferidos Ž contrabalan•ado pelo impulso

de sua viabilidade. ƒ ao dar-se conta da diferen•a de materiais e da precariedade de

sua convivncia que o processo criativo de uma dramaturgia musical come•a assumir

sua individualidade, sua longa hist—ria de experimenta•‹o, pesquisa e realiza•‹o. Em

sua liminaridade, os limites da palavra e da mœsica v‹o ser manipulados e exibidos

como meios de fazer perdurar suportes expressivos extensos a partir do uso intenso

desses limites. De modo que a dramaturgia musical Ž um caso-limite de fic•›es

elaboradas e compreendidas como tal e, ao mesmo tempo, o modo como tais fic•›es

s‹o poss’veis. A sua efetiva•‹o Ž a busca dessa possibilidade, Ž o argumento de sua

realiza•‹o.

O enfrentamento da tarefa de realizar uma fic•‹o audiovisual para a cena

envolve problemas expressivos que demandam determinados atos como forma de

coordenar a dificuldade ao esfor•o. A representa•‹o que sucede a este enfrentamento

nos esclarece e muito a respeito de tais problemas e atos correlativos.

Ainda mais que a cena, a situa•‹o de performance comparece n‹o como meio

transparente216. O Ôfator performanceÕ, se bem enfrentado e explorado, Ž modificador

de toda e qualquer esfor•o de representa•‹o. Se a forma de apresenta•‹o do

espet‡culo Ž um primeiro ’ndice de como os problemas compositivos foram

enfrentados, sua realiza•‹o d‡ o acabamento de sua inteligibilidade. Ao se expor

como fic•‹o, esta fic•‹o exibida para os olhos e para os ouvidos Ž atravessada por

uma cont’nua linha de avalia•‹o e remodela•‹o, que se converte no horizonte

interpretativo do espet‡culo.

Ocupando um espa•o e proporcionando o tempo de seu entendimento e

aplica•›es posteriores, a fic•‹o encenada corrige qualquer estrito mentalismo,

fornecendo escalas que integram o que Ž mostrado com os procedimentos mesmos de

sua exibi•‹o. Uma fic•‹o que se exp›e, exibe seus suportes expressivos, demonstra-secomo fic•‹o. Ultrapassados s‹o os obst‡culos do discurso, da atitude contemplativa,

216  Na pop-p—s modernidade argumentos antimimŽticos e formalistas tem procurado ampliar o car‡ter de artif’cio da fic•‹o como media•‹o de todos os nexosinterindividuais. A generaliza•‹o da representa•‹o como media•‹o epistem—logicafundamental acarreta a idealiza•‹o mesma da fic•‹o. A plasticidade da representa•‹o,expandida pelos produtos de entretenimento massivos - especialmente o cinema- n‹ocorrobora a elimina•‹o de sua elabora•‹o. Tal inst‰ncia produtiva Ž negligenciada naapressada conceptualiza•‹o da representa•‹o sem levar em conta um processo criativoque a elabore.Muitas vezes o processo criativo torna-se quase somente a aplica•‹o deuma conceptualiza•‹o. Veja-se DIXON 1998.

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  #V"

dos programas estŽticos, estabelecendo-se o processo criativo na arena onde se

defrontam e se confrontam um esfor•o de representar e uma insistncia de

compreender.217  A mœtua implica•‹o entre composi•‹o e performance proporciona

um campo de experincias e aprendizagens onde o processo criativo Ž modificado

constantemente218. A integridade dos materiais e das concep•›es autorais prŽvias Ž

solapada na abertura de novas pressuposi•›es, de uma diferenciada referncia e

orienta•‹o desses materiais e de suas linguagens e formas de tratamento. A fic•‹o

audiovisual converte-se em uma metaestŽtica.

Monteverdi em suas cartas, alŽm de se lamentar as dificuldades econ™micas,

registra as implica•›es do fator performance. Muitas vezes criticando libretos e obras

e avaliando cantores e instrumentistas, Monteverdi aborda quest›es que n‹o se

reduzem ao puramente musical ou ao puramente textual, nem ainda se resumem ˆ

corre•‹o da atua•‹o. Para aquilo que n‹o tem nome, mas que pode ser percebido e

interfere drasticamente na organiza•‹o e na realiza•‹o de uma obra, temos uma

marcante aten•‹o nas cartas. Esta inominada presen•a n‹o Ž texto, nem mœsica:

vamos procurar melhor caracteriz‡-la.

 Nestas quest›es o autor das cartas que vamos analisar teve como premente

exerc’cio por 23 anos de anos ser o diretor de espet‡culos da casa real de Mantua,

"sendo respons‡vel n‹o somente por organizar os concertos di‡rios e recrea•›es

musicais, mas tambŽm de providenciar mœsica para importantes eventos da corte"219 .

Em uma carta de dezembro de 1604, para o Duque de Mantua, seu patr‹o,

Monteverdi apresenta um esbo•o, para o carnaval de 1605, de um ballet, dan•a

cantada acompanhada por pequena orquestra. Nas indica•›es temos como se estrutura

este ballet, sendo descritas as seqŸncias de entradas e os grupos dan•antes e qual a

mœsica relativa para cada seqŸncia. A divis‹o do todo do ballet em subse•›es ocupa

um espa•o representacional, disposi•‹o de partes inteligivelvemente associadas aoque se est‡ procurando tornar imagin‡vel.

O ballet gira em torno da imagem pastoril de Endimi‹o220. A encomenda Ž

"compor duas entradas, uma para estrelas que seguem ap—s a lua, e outra para os

217 A argumenta•‹o aqui apresentada ser‡ ampliada na conclus‹o deste livro.218  Valho-me aqui da hip—tese Parry-Lord, sobre a composi•‹o em

 performance. V. LORD219 Conf. KELLY 2000 e STEVENS 1980.220  Sobre o mito v. Apol™nio de Rodes 4.57. Karl KerŽnyi (KERENYI

1993:155-156) narra assim :"Dizia-se que quando Selene(a lua) desapareceu por tr‡s

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  #V#

 pastores que vem ap—s Endimi‹o, e duas dan•as, uma para os estrelas somente, outra

 para estrelas e pastores juntos"221. Na falta de instru•›es precisas, como normalmente

as encomendas era solicitidas, Monteverdi prop›e correlacionar a forma de

apresenta•‹o do ballet com a representa•‹o do mito. Para tanto ele decomp›e o

movimento dos astros de forma a tornar reconhec’vies o efeito de sua presen•a no

tratamento de sua exibi•‹o. Uma varia•‹o instrumental Ž correlativa a uma

 performance de dan•a-canto. Eis o plano somente para as estrelas:

Todos os instrumentos/dan•am e cantam todas as estrelas

Cordas/ primeiro par de estrelas

Todos os instrumentos/dan•am e cantam todas as estrelas

Cordas/ segundo par de estrelas222 

A forma de apresenta•‹o distribui em subse•›es bem marcadas os materiais,

refigurando o que se quer mostrar ao atualizar um movimento das estrelas, estas

vis’veis e aud’veis proporcionalmente a sua individualiza•‹o. As referncias de

totalidade e parte s‹o interpretadas musica e pela dan•a em momentos definidos e co-

extensivos. O seqŸenciamento do que Ž mostrado, ao mesmo em tempo que registra o

modo como as referncias se organizam, projeta uma sobrepresen•a, um grau de

futuridade para o que se exibe. O interrelaciomento da recursividade do movimento

global e da individualidade do movimento espec’fico parece estabelecer uma proje•‹o

de continuidade dentro da sucess‹o descont’nua. De modo a procurar recobrir a

dispers‹o da audincia, em virtude da mœtua implica•‹o das retomadas de referncia

orientadoras que servem de contexto para distin•›es subsequentes.

da crista da montanha de Latmo, na çsia menor, estava visitando seu amante

Endimi‹o, que dormia numa caverna naquela regi‹o. Endimi‹o (...) recebeu o dom dosono perpŽtuo, de modo que ela sempre pudesse encontr‡-lo e beij‡-lo". Cam›es emode ˆ lua dramatiza o pastor : "J‡ veio Endimi‹o por estes montes,/O cŽu , suspenso,olhando,/E teu nome , com olhos feitos fontes,/Em v‹o chamando,/ Mercs ˆ tua

 beldade,/ que ache em ti u‹ hora piedade."221 Para as cartas veja-se ed. de STEVENS 1980. Cito aqui a carta 3.222  No texto da carta 3 temos: primeiro de tudo uma curta e animada parte

instrumental (air)can•‹o tocada por todos os instrumentos e igualmente dan•ada portodas as estrelas; ent‹o imediatamente as cinco Ôviole de braccioÕ fazem uma parteinstrumental diferente da primeira (os outros instrumentos param) e somente duasestrelas dan•am pois (as outras n‹o participam) e ao fim desta se•‹o duo, tendo a

 primeira parte instrumetal sido repetida com todos os instrumentos e estrelas, este padr‹o Ž continuado atŽ que todas as ditas estelas tenham dan•ado duas a duas".

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  #VS

Este plano audiovisual, que substitui as amorfas idŽias e os materiais da

encomenda, Ž qualificado como arranjo dissipativo, novo, deleitoso, prazeiroso.

Grande parte das cartas s‹o respostas a solicita•›es de colocar, em mœsica,

versos. "Recebi uma carta de vossa excelncia com certas palavras para dispor em

mœsica"223, Ž o Monteverdi escreve em Agosto de 1609 para seu habitual destinat‡rio,

Alessandro Strigio, libretista de Orfeu. Orfeu mesmo Ž subintitulado "F‡bula em

mœsica". Mas no que Ž dito devemos ver o que Ž referido. A transforma•‹o do verso

em mœsica Ž indicada. Mas essa transforma•‹o n‹o Ž unidirecional. Nem Ž o verso

que deixa de ser verso para ser mœsica, nem Ž a mœsica Ž o œnico agente

transformador, posto que age em fun•‹o do que o verso assinala. Pode a mesma

senten•a dizer mais que seu enunciado?

As palavras que v‹o ser musicalizadas est‹o em versos de um libreto. Em seu

 processo criativo Monteverdi submete o libreto, as indica•›es formais (gnero, partes

da obra, instrumenta•‹o, distribui•‹o de papŽis e vozes) e informa•›es

circunstanciais ( ocasi‹o da apresenta•‹o, dedicat—rias) a uma aprecia•‹o de seu

 potencial representacional. Supress›es, acrŽscimos, extens›es s‹o feitas e negociadas

a partir de um material prŽvio.

Quando faltam estas indica•›es e informa•›es, temos algumas cartas.

 Novamente para Alessandro Strigio, em dezembro de 1616, Monteverdi suplica:

"diga-me os nomes daqueles que v‹o fazer o papel das partes escritas, para que ent‹o

eu possa fornecer a musica apropriada para eles. Por favor me d a honra de saber

isso: quem vai fazer o papel de TŽtis, quem o de Proteu, quem o da Sirene"224. A

textualidade do libreto necessita do conhecimento da vocalidade dos intŽrpretes. O

nœmero, extens‹o, tessitura e cor das vozes do elenco Ð tudo ser‡ avaliado de acordo

com as referncias textuais e da’ a musica ser‡ composta. N‹o Ž em v‹o que umquarto dos temas das cartas relaciona-se a coment‡rios e julgamentos de performances

vocais.

Em outra carta, ao Pr’ncipe Vincenzo Gonzaga, a respeito de can•‹o de uma

f‡bula em mœsica, Monteverdi pede que "fa•a o favor de conceder conhecer quantas

vozes e como isso ser‡ performado, e se alguma sinfonia instrumental vai ser ouvida

223 Carta 7. As cartas 21,26,29 retomam esta express‹o colocar poesia, f‡bula,em mœsica.

224 Carta 23.

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  #VV

antes da can•‹o, e de que tipo vai ser ela"... e se "a can•‹o que come•a{com o verso}

ÔO esplendor com o qual eles brilhamÕ vai ser cantada ou dan•ada - e sobre que

instrumentos vai ser representada, e tambŽm por quantas vozes vai ser cantada - para

que eu possa escrever mœsica apropriada para ela tambŽm"225.

De forma que a composi•‹o come•a com a considera•‹o dos materiais, com a

explora•‹o das possibilidades desses materiais a partir de limites identificados.

Quando o material proporcionado n‹o corresponde ao que Monteverdi chama de

estilo teatral de mœsica226, temos uma cr’tica integrativa que procura oferecer

solu•›es e op•›es. Come•amos aqui a entender a concep•‹o de uma dramaturgia

musical.

Por exemplo. Em carta a Alessandro Strigio , em Dezembro de 1616, ap—s

receber a analisar uma f‡bula mar’tima proposta para ser musicada para a cena,

Monteverdi exp›e alguns problemas representacionais que encontrou. Em jogo de

 palavras, afirma que a mœsica em geral objetiva ser rainha do ar (can•‹o/ar), e n‹o da

‡gua. Ela reivindica sua audibilidade. As personagens prescritas no texto, requerendo

alturas graves para as vozes das grandes criaturas marinhas (Trit›es) n‹o se conjugam

com o uso de c’taras no baixo cont’nuo. A interpreta•‹o musical da figura n‹o

apreende seu diferencial representacional.

Em complemento a isso os interlocutores dos trit›es s‹o ventos cupidos e

zŽfiros e sereias. Frente a este mundo mitol—gico, Monteverdi se interroga: "Como,

querido senhor, eu posso imitar a fala dos ventos se eles n‹o falam? E como eu posso,

 por quais meio, mover as paix›es? Ariadne comoveu-nos porque ela era uma mulher,

e similarmente Orfeu porque ele era um homem, n‹o um vento. Mœsica pode sugerir,

sem palavras, os ru’dos dos ventos e o balido de uma ovelha, e o relincho dos cavalos

e assim por diante. Mas n‹o pode imitar a fala dos ventos porque tal coisa n‹o

existe"227.M’mesis e afetos - dois par‰metros fundamentais para a dramaturgia musical

de Monteverdi. A fic•‹o dramatizada leva em conta uma interroga•‹o a respeito de

sua modalidade, da distin•‹o de realidades e referncia na representa•‹o. O exercer

um logos, a fala teatral, no drama, ganha um estatuto diverso de o estar presente em

225 Carta 30.226 Carta 53 "Eu n‹o devo passar um dia sem compor algo nesse estilo teatral

de can•‹o". Carta 96 "algo de natureza teatral". Carta 6 " mœsica para o teatro". Carta8 critica alguŽm que n‹o "comp™s mœsica teatral".

227 Carta 21.

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  #V;

cena. O agente dram‡tico, mais que porta-voz de uma fala autoral, est‡ comprometido

com a ficcionalidade, a partir da qual ele passa a existir. A divis‹o e distribui•›es de

 papŽis e as figuras corresponde ˆ an‡lise da pr—pria representa•‹o, dos focos

dram‡ticos que exibem situa•›es memor‡veis, impactantes e exemplares. Ë n‹o

homogeneidade das figuras corresponde ˆ diversidade de sua focaliza•‹o dessas

situa•›es. Homens e criaturas m’ticas distinguem-se distinguindo referncias e modos

de orienta•›es. A diversidade de n’veis de referncia da fic•‹o faz com que o que est‡

representado n‹o se confine em sua autoapresenta•‹o. O mundo ficcional Ž solicitado

a se transformar em espet‡culo de sua situa•‹o de representa•‹o. O que se mostra

demonstra a complexidade de seu realismo: fic•‹o com distin•›es para um olhar que

interpreta e procura a inteligibilidade dessas distin•›es. M’mesis aqui Ž apropria•‹o

de um nexo entre a forma de apresenta•‹o e sua compreens‹o. N‹o se imita a coisa,

mas se reprop›e o v’nculo entre representa•‹o e audincia.

A respeito da representa•‹o de outra f‡bula, Monteverdi discute a respeito de

trs can•›es de sereias : "se as trs tiverem de ser cantadas separadamente eu temo

que a obra vai se tornar muito longa para os ouvintes, e com pouco contraste.(...) Por

essa raz‹o, e por abrangente variedade, eu devo considerar os primeiros dois

madrigais cantados alternadamente, um por uma voz, outro pelas duas juntas, e o

terceiro por todas as trs vozes "228.

 N‹o sendo o espet‡culo audiovisual uma inst‰ncia autoreferencial, e sim

 postado frontalmente a uma avalia•‹o e entendimento, decis›es sobre o material e sua

forma de apresenta•‹o s‹o tomadas levando em considera•‹o sua situa•‹o de

representa•‹o. A extens‹o e diferen•a do que Ž mostrado n‹o se restringe ˆ natureza

estritamente musical do material. O que vai ser disposto Ž correlativo ao modo como

vai ser recebido. A contextualiza•‹o de sua receptividade Ž d‡ o acabamento ˆ forma

de apresenta•‹o. A dura•‹o, extens‹o, diferencia•‹o do que se mostra respondem aocontexto de espet‡culo atravŽs do qual o material Ž organizado como algo a ser

ouvido, visto, compreendido e apreciado. A separa•‹o das partes e o modo como elas

se interrelacionam sucessivamente ou em conjunto, marcando uma unidade de

apresenta•‹o - que Ž o que vai ser acompanhado pela audincia Ð situa a an‡lise de

sua configura•‹o. A sucess‹o do que se mostra torna observ‡vel a orienta•‹o de sua

realiza•‹o. Ou seja, a forma anal’tica de apresenta•‹o Ž um expediente de

228 Carta 24.

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contextualizar a recep•‹o do espet‡culo. A preponder‰ncia do espet‡culo sobre o

material a ser apresentado proporciona decis›es seletivas e continuadas.

Logo, pela li•‹o de Monteverdi, vemos que em obras dram‡tico-musicais, a

situa•‹o de performance torna-se um horizonte de esclarecimento da representa•‹o. A

amplitude de eventos fisicamente apresentados aponta para orienta•›es de integra•‹o

que ultrapassam a enumera•‹o dos materiais utilizados.

Desse modo, o Ôtrazer ˆ cenaÕ n‹o se resume a uma decorrncia, a uma

contingncia secund‡ria. A materialidade da performance constitui-se em contexto

atravŽs do qual rela•›es entre recursos e m’dias diversas adquirem uma compreens‹o

aplicada ˆ sua realiza•‹o. Na sucess‹o da performance, os intervalos e as diferen•as

entre ver e ouvir, entre sentido e a•‹o, cena e recep•‹o s‹o expostos e explorados. Um

ambiente para exibi•‹o e explora•‹o desses intervalos e diferen•as Ž desenvolvido por

atos performativos.

Em obras dram‡tico-musicais, este ambiente multimidi‡tico interfere em e

modela sons e palavras, exigindo abordagens que procurem descrever, analisar e

conceituar a estrutura•‹o e os efeitos desse ambiente. O fator performance, ent‹o, ao

mesmo tempo que melhor se compreende na amplitude de seus nexos e rela•›es exige

tambŽm estratŽgias amplas e complexas para sua racionaliza•‹o.

Em todo caso, o tal Ôterceiro fatorÕ coloca em evidncia a realidade multitarefa

tanto de quem executa tanto de quem investiga obras dram‡tico-musicais.

Assim, a proposi•‹o da performance como objeto de estudo para as rela•›es

entre mœsica e palavra em obras dram‡tico-musicais efetiva uma provoca•‹o ao

 pensamento, um desafio para o intŽrprete, pois coloca em teste e exame pr‡ticas e

modelos interativos e integracionais.

Ou seja, a contextualiza•‹o que o fator performance possibilita Ž tanto de ados eventos estudados quanto do pr—prio investigador.

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12- DO îPERA STUDIO DE C. STANISLAVSKI AOS MUSICAIS DE

BRECHT: NOTAS POR UMA NOVA HISTORIOGRAFIA DO TEATRO.

O desafio de integrar diversas disciplinas e tradi•›es art’sticas Ž um elemento

constituinte de professores e estudantes de Artes Cnicas que se depararam

cotidianamente com projetos interar’sticos e multidisciplianres valendo-se de

 pressupostos unificantes e estratŽgias de exclus‹o. Cria-se assim uma artificial

realidade na qual a sala de aula encontra-se divorciada da realidade pulsante que a

heterogeneidade dos eventos cnicos provoca.

Sob a press‹o de curr’culos cada vez mais autocentrados, que privilegiam

compatimentaliza•›es e falta de conex‹o entre profissionais diversos, o normal parece

 perpetuar e reproduzir uma cena un’voca cujo contraponto Ž o individualismo

estŽtico. Com o incremento de processos dramatœrgicos colaborativos e a

 popularidade de obras dram‡tico-musicais o descompasso entre a sala de aula e a

historicidade do teatro recrusdesce. Mas ser‡ que sempre foi assim mesmo? Antes de

se tornar disciplina, antes de se estabilizar em discurso, ser‡ que o ÔteatroÕ (ou os

estudos teatrais) explorou algum dia sua dimens‹o transacional e dissoluta? Vejamos

algus exemplos.

Em Minha Vida na Arte, Stanislavski dedica um cap’tulo de suas mem—rias ao

chamado îpera Studio (STANISLAVISVI 2008). A partir de um convite do Teatro

de îpera de Moscou(Teatro Bolshoi) para o Teatro de Arte de Mostou (TAM)

efetivou-se uma parceria em forma de workshops nos quais cantores e jovens artistas

 poderiam encontrar um espa•o para ter mais conscincia da interpreta•‹o para a cena.

Em 1918 essa rela•‹o se institucionaliza, com a abertura do îpera Estudio, seguindo

o modelo de outros empreendimentos teatrais de Stanisl‡vski e Nemirovich-

Danchenko, que, tomando o TAM como modelo de incubadora de projetos art’sticos-organizacionais, multiplicavam oficinas-montagem em fun•‹o de novos objetos de

estudo e interesses. Em 1924 îpera Estudio Ž renomeado como Stanislavski îpera

Estœdio, ao se desligar do companhia estatal do Teatro de Bolshoi, acabando por se

fundir com a companhia musical de Nemirovich-Danchenko em 1941, formando o

Teatro Musical Stanislavski-Nemirovich-Danchenko, que funciona atŽ hoje

(www.stanmus.com). Note-se que tais estœdios eram atividades paralelas ao Tam,

demonstrando a amplitude e pluralidade de pr‡ticas e pesquisas, bem como a busca

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  #Vn

 por metodologias de ensaio e cria•‹o que efetivassem contextos para explora•‹o de

 possibilidades expressivas (SCARDALORA 2006).

Seguindo as mem—rias de Stanislavski, o objetivo do îpera Studio era

 promover uma melhora significativa nas atua•›es e na cultura dos cantores l’ricos.

Este foram recebidos como h—spedes no TAM. Nos primeiros dias foram promovidos

eventos mais ou menos improvisados com cada um dois grupos reunidos demonstrava

e partilhava suas habilidades. Depois dessa festiva aproxima•‹o, Stanislavski

come•ou a orientar e preparar pequenas cenas do repert—rio oper’stico. No ano

seguinte (1919) houve uma mudan•a: Stanislavki selecionou alguns participantes

desse workshop e para eles desenvolveu um programa completo de aulas n‹o mais

destinadas ˆs exigincias de repert—rio e sim relacionadas ao dom’nio das a•›es

f’sicas e da conscincia r’tmica do intŽrprete. Ou seja, os cantores profissionais

deram lugar ao estudantes. A partir de improvisos de um pianista acompanhador,

estes se exercitavam por horas aprendendo a andar, a explorar a plasticidade de seus

corpos, e a expor verbalmente o que apreendiam. Ainda uma sŽrie de exerc’cios sobre

a materialidade da palavra eram propostos.

Uma mais detalhada dessa li•›es se encontra em uma publica•‹o de um ex-

aluno do îpera Studio, Pavel Rumyantsev(STANISLAVSKI&RUMYANTSEV

1975). O livro apresenta as instru•›es de Stanislavksi para os exerc’cos e acompanha

os ensaios da montagem de 7 —peras , entre 1921 e 1932.

Com a publica•‹o de uma nova edi•‹o em nove volumes das obras completas

de Stanislasvi, entre 1988 e 1999, entre textos de troca de correspodncia,entrevistas

com assistentes e alunos, anota•›es de trabalho e textos pedag—gicos, ampliou-se o

contexto das rela•›es entre Stanislavski e a —pera. Esse di‡logo interart’stico agora

esclarece melhor a direcionamento de Stanisl‡vski para as a•›es f’sicas. Segundo

material traduzido e comentado por Marie-Christine Autant-Mathieu(AUTANT-MATHIEU 2007), temos transcria•›es de entrevistas/di‡logos de Stanislavski com

estudantes da primeira fase do îpera Studio(1918-1922) atŽ ensaios de montagens de

—pera em 1938, textos reunidos sobre o t’tulo de Ôformer une acteur chanteurÕ. Ainda,

s‹o recolhidos exercicios para se trabalhar o ritmo, aplicados no Studio L’rico-

Dram‡tico, entre 1934-1938, que demonstram a base comum entre experincias e

metodologias na forma•‹o de atores e cantores.

Este material demonstra a continuidade das liga•›es de Stanislavki com obrasdramatico-musicais, postulando o ideal de formar artistas diversificados e com

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mœltiplas habilidades. A chave para essa abordagem ampliada da arte da atua•‹o

encontra-se na aplica•‹o de par‰metros psicoacœsticos(MOTA 2009,BROWN 2010

em todos os momentos do processo criativo. A contrapartida dramatœrgica e

cenogr‡fica para este artista viria com as pesquisas de V.Meyerhorld.

Meyerhold n‹o s— desenvolve um treinamento de atores que demanda uma

efetiva musicalidade como tambŽm organiza seu espet‡culo segundo par‰metros

 psicoacœsticos (PICON-VALLIN 2008, PICON-VALLIN 2010). Com forma•‹o

musical, Meyerhold dirige operas durante sua vida, desde Trist‹o e Isolda, de

Wagner, em 1909, atŽ conduzir os trabalhos no Teatro Musical Stanislavski-

 Nemirovich-Danchenko, por convite de Stanislavski, em 1938.

Essa fus‹o entre a musicalidade do ator e a musicalidade do espet‡culo

intensifica novas possibilidades dramatœgicas, recepcionais e atuacionais. Meyerhold

rompe com o limitado uso do som como efeitos de ambientes e mœsicas de fundo.

Diante da impossibilidade de se esconder o som, de tornar o som invis’vel em uma

situa•‹o audiovisual como o teatro, Meyehold enfatiza a manipula•‹o das

 propriedades do som e dos materiais sonoros em cena. O enfrentamento do problema

da —pera lhe d‡ o horizonte para um novo teatro musical no qual a domestica•‹o das

rela•›es entre as partes musicais e n‹o musicais Ž superada e o agente cnico

materizaliza-se como ritmo. A composi•‹o ritmica do espet‡culo integra o ator e sons

 produzidos e ouvidos em cena. O ator contracena com informa•‹o sonora, e pode, a

 partir da configura•‹o que se apresenta para ele, sincronizar ou desincronizar seus

movimentos, gestos e fala. Os usos criativos dessa flexibilidade do material sonoro

estendem-se desde a encena•‹o e remontagem de dramas musicais atŽ obras sem

mœsica, na qual o desenho r’tmico Ž pensado e articulado em fun•‹o n‹o de um som

que ressoe na sala de espet‡culos e sim da explora•‹o das propriedades e

 possibilidades do som em sim.Desse modo, n‹o h‡ um teoria da dramaturgia musical em Meyerhold, e sim a

 proposi•‹o de um espa•o de intera•‹o entre a materialidade do som e seus efeitos,

revisando o conceito de obra dram‡tica como a unidade de representa•‹o em torno de

uma tema ou narrativa No lugar disso temos a organiza•‹o das a•›es f’sicas dos

atores e da resposta da audincia a partir da aplica•‹o de tŽcnicas de contraponto e de

formas musicais cl‡ssicas. A base ret—rica desses recursos mobiliza n‹o um recuo a

uma estŽtica da harmonia e forma org‰nica. Antes, Meyerhold ao colocar em cenaesse ret—rica agora atualizada no jogo do ator e na sequencia das coisas que s‹o

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  #;L

encenadas explicita a Òmœsica abstrataÓde cada espet‡culo, exibe a metalinaguagem

de cada obra, aproxima a audicncia de uma experincia de contato com os processos

criativos. A cena Ž a generalizada exposi•‹o n‹o mais de temas e conteœdos, mas de

seus procedimentos. Ao resituar a musicalidade do espet‡culo em plano estratŽgico

no processo criativo, Meyehorld ratifica a heterogeneidade da cena, demonstrando sua

l—gica multitarefa, interart’stica e multidisciplinar. De sua censura a uma sonoplastia

realista, quando da montagem de A gaivota para a abordagem r’tmica dos eventos

cnicas temos um percurso que comprova o fato que Ò as revolu•›es cnicas do in’cio

do sŽculo (XX) n‹o est‹o ligadas somente ˆs revolu•›es cenogr‡ficas, elas est‹o em

rela•‹o direta com a reflex‹o direta sobre a mœsica no teatro (PICON-VALLIN

2008:19).Ó

A carreira de B.Brecht interage com uma dramaturgia musical desde seu

in’cio. No Brasil, h‡ um descompasso entre a recep•‹o dos textos teatrais e sua

musicalidade. Os textos apresentam algumas indica•›es musicais,quanto ao lugar e

modalidade da can•‹o de cena. Mas a predomin‰ncia da letra impressa sobre

amplitude do espet‡culo brechtiniano intensifica leituras conteud’sticas das obras,

reduzindo o conceito de estranhamento a um choque intelectual na audincia. Por

outro lado, as experincias com a descontru•‹o da —pera, a partir de parceria com o

compositor K.Weil em 1927, ap—s ter trabalhado como assistente de dire•‹o de K.

Reinhardt, entre 1924 e 1925, diretor e encenador de —peras, musicais e pe•as de

teatro. O conceito do teatro Žpico se desenvolve a partir do debate entre a montagem

ilusionista rica de recursos de Reinhardt e novas possibilidades aprendidas com

Piscator e parcerias com compositores como K. Weill(Mahagonny, îpera dos

VintŽns) e H. Eisler (Decis‹o, A M‹e), entre outros.

Discorrendo sobre seu mŽtodo de trabalho, j‡ em uma fase mais

madura(1940), Brecht relata que, ap—s elaborar a dramaturgia global de seespet‡culo(texto e can•›es), apresentava ao orquestrador as instru•›es sobre como o

material musical deveria ser produzido, chegando a assobiar as melodias que seriam

arranjadas(BRECHT 2002:134). Brecht era um cancionista, formado na escola do

Cabaret. A dissocia•‹o entre elementos, base do teatro Žpico, como uma resposta ao

conceito de s’ntese das, depreendido de Wagner, encontra na apropria•‹o art’stica da

can•‹o popular, cr’tica e ir™nica, o seu fundamento.

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13- Dire•‹o cnica de obras dram‡tico-musicais: O trabalho

de Matthew Lata no Florida State Opera

A encena•‹o de obras dram‡tico-musicais apresenta-se como um

campo interart’stico e multidisciplinar que demanda de seus intŽrpretes

um constante enfrentamento de redutoras sedu•›es: o elogio do mœltiplo

muitas vezes decai em profus‹o de estere—tipos; ou, diante de tanto,

muitas vezes basta reproduzir o suficiente229.

Em outras palavras, Ž no processo criativo de se montar umespet‡culo dram‡tico-musical que a pluralidade material e cognitiva vai

ser testada. Uma detida an‡lise de um caso concreto pode nos auxiliar em

clarificar intervalos entre expectativas e efetivas atualiza•›es.

229 Retomo neste artigo pesquisas desenvolvidas no LADI, parte

delas expostas em meus seguintes textos:  A dramaturgia musical de

 ƒsquilo. Investiga•›es sobre Composi•‹o, Realiza•‹o e Recep•‹o de

 Fic•›es Audiovisuais. Bras’lia: Universidade de Bras’lia, 2009;

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montagem de uma —pera com figuras b’blicas. Resumo in: Proceedings of

 Ninth International Congress of the Brazilian Studies Association. New

Orleans: Brasa, 2008,p.37. V. www.marcusmota.com.br   para acessar os

artigos..

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Entre agosto de 2007 e mar•o de 2008 acompanhei o trabalho do

 professor Mathew Latta, no Florida State Opera (FSO), na Florida

University State, assistindo e anotando suas aulas de fundamentos cnicos para cantores (Opera Workshop) e, posteriormente, acompanhando a

montagem e apresenta•‹o de Falstaff, de Verdi230.

Ao realizar esta etnografia, procurei registrar contextos e

 processos como forma de propor n‹o um modelo estŽtico ou operat—rio.

Antes, objetivei subsidiar poss’veis a•›es em projeto similar desenvolvido

na Universidade de Bras’lia. Ou seja, em um primeiro momento,

 procuramos fazer um levantamento de quest›es e solu•›es presentes na

 prepara•‹o e realiza•‹o de obras dram‡tico-musicais. Em seguida, e em

conjunto a esta etapa, partimos para comparar os resultados obtidos com o

que realizamos em assemelhado projeto na Universidade de Bras’lia.

 Note-se que o desdobramento de observa•‹o e auto-aplica•‹o Ž

sucessivamente exercido: no texto que se segue, as duas atividades n‹o

est‹o separadas.

CONTEXTOS

O Florida State Opera Ž um programa de forma•‹o de cantores,

diretores e preparadores vocais do College of Music da Florida University

State, Tallahassee231 O programa da Florida State Opera existe h‡ quase

50 anos, com a apresenta•‹o de mais de 150 produ•›es cujo eixo do

tempo vai do barroco aos dias atuais. Alem de formar profissionais, as

—peras apresentadas dinamizam a vida cultural e intelectual da cidade e

vizinhan•a. As obras s‹o apresentadas semestralmente no prestigiado

Ruby Diamond Auditorium, com capacidade para 1500 pessoas sentadas.

230 Agrade•o ao prof. Stanley Gonstarski pelo convite e suporte durante minha estadiana Florida State University, a qual retornei em 2008 e 2009, para ministrar asdisciplinas Drama Techniques e Advanced Drama Techniques.231  Para um primeiro contato com o programa, http://music.fsu.edu/opera.htm.As informa•›es aqui arroladas foram tomadas de prospectos de apresenta•‹o do

 programa e entrevista com a secret‡ria executiva do mesmo: Miss Dollar. Believe ornot...

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O montante do suporte financeiro do Florida State Opera advŽm

de fontes diversas: dinheiro do Estado (25%), venda de ingressos, doa•›es

e fundos de apoio ˆs artes. Dessa maneira, a continuidade do projeto esta

diretamente relacionada ˆ manuten•‹o de uma produ•‹o de qualidade e ˆ

 busca de recursos.

O calend‡rio de apresenta•›es Ž estabelecido previamente, de

forma a se organizarem as audi•›es para os papŽis e as aulas-ensaios. Para

o ano letivo de 2006/2007, foram programadas as apresenta•›es de

 Falstaff, de Verdi (dias 3,59,10 de novembro de 2006) e  Don Giovanni,

de Mozart (dias 19,30,31 de Marco e 1o. de Abril de 2007).

A import‰ncia de mœsica oper’stica no College of Music da

Florida State Opera se faz presente na diversidade de op•›es que

estudantes e pesquisadores encontram ˆ sua disposi•‹o: desde a gradua•‹o

em performance musical, com nfase em performance vocal, atŽ

doutorado em performance vocal, com nfase em performance oper’stica.

A especializa•‹o de atividades e da cultura oper’stica reivindica que haja

dois diferentes focos de Master of Music: um em prepara•‹o vocal

(coaching ) e outro em dire•‹o.

Desde j‡, ao observar um programa consolidado, como muitos em

outras universidades estadunidenses, fica clara a diversa orienta•‹o

estŽtico-educativa quanto ao nosso caso: o programa ao mesmo tempo em

que educacional est‡ diretamente relacionado com uma demanda semi-

 profissional. As a•›es formativas de cantores, preparadores vocais e

diretores de cena s‹o desenvolvidas dentro de uma ambincia voltada para

exigncias que n‹o se voltam exclusivamente para o ensino-

aprendizagem. Os estudantes s‹o inseridos gradativamente na

considera•‹o de um mercado. As montagens s‹o fundamentadas em

escolhas tanto estŽticas quanto econ™micas. A existncia de um

or•amento, de um calend‡rio de apresenta•›es e de um financiamento

 privado para o programa determina um diferente pressuposto para os

membros envolvidos nas atividades oper’sticas: ˆ amplitude

multisensorial e interdisciplinar do trabalho art’stico aplicam-se press›es

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outras relacionadas com um empreendimento semi-profissional. Ë

generaliza•‹o exposi•‹o de habilidades mœltiplas corresponde a

explicita•‹o de co-presentes causalidades. A aprendizagem da amplitude

da cena oper’stica Ž enfrentada em sua diversidade estŽtica e material.

Do contexto das a•›es ao orientador das atividades: O professor

M. Lata Ž respons‡vel pela dire•‹o de cena do programa de opera. O

repert—rio do professor Lata abrange mais de cem obras, distribu’das entre

obras do Barroco ao contempor‰neo. Estudou com Jean-Pierre Ponnelle,

Frank Corsaro e Lofti Mansouri, ganhando experincia com a Orchestre

de Paris e outros teatros norte-americanos. AlŽm dos ensaios para Fastaff, 

e depois, Dom Giovanni, ele ministra disciplinas para os trs n’veis de

 performance oper’stica.

Dentro dessas informa•›es, podemos observar trs coisas: o

 programa em quest‹o reafirma sua orienta•‹o voltada para o mercado ao

contratar um profissional orientar a forma•‹o cnica dos cantores. Em

seguida, a fundamental import‰ncia de um profissional de cena

especializado na forma•‹o de cantores e na orienta•‹o de montagem de

obras oper’sticas, evidenciando o car‡ter interart’stico dessas montagens,

o que atualiza o modus operandi de empreendimentos profissionais. E a

intensa carga hor‡ria que alguŽm na posi•‹o do Professor Lata deve

cumprir pois alŽm de preparar e ministrar estas aulas, ele define e discute

com outros profissionais todos os aspectos da produ•‹o e design visual

dos espet‡culos.

EM SALA DE AULA

Inicialmente, temos dois tipos de disciplinas: diariamente, com

dura•‹o de 50 minutos, h‡ classes de cada n’vel (introdut—rio,

intermedi‡rio e avan•ado) com mŽdia de 08 a 12 alunos. Nas tardes de

sexta feira h‡ um encontro geral, um grande audit—rio, com todas as

classes.

 Nas aulas introdut—rias s‹o discutidos e experienciados alguns

conceitos b‡sicos de performance, como a diferen•a entre concentra•‹o e

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aten•‹o, foco, presen•a, por meio de exerc’cios b‡sicos de relaxamento.

Em um primeiro momento, trata-se de adapta•‹o da prepara•‹o

stanislaviskiana para a cena, em sua vers‹o estadunidense. Neste pa’s,

Stanislavski foi adaptado como o mŽtodo, uma tentativa de sistematizar

aspectos b‡sicos da prepara•‹o do ator, com nfase na caracteriza•‹o232.

Ao ser questionado sobre aporte stanislaviskiano, professor Lata informa

que h‡ sempre o cuidado de n‹o se transpor a situa•‹o do teatro para a

opera. Certos elementos da constru•‹o emocional da personagem podem

acabar trazendo estresse para os cantores, em virtude da tradi•‹o receptiva

da obra de Stanislavski nos Estados Unidos que enfatiza certos estados de

concentra•‹o e tens‹o emocional extremos. Isso pode prejudicar a

 produ•‹o vocal e a performance, na medida em que n‹o h‡ um prŽvio

relaxamento e aquecimento vocal no desempenho de papŽis que

reivindicam habilidades musicais mais pronunciadas.

 Nisso podemos observar como a adapta•‹o de exerc’cios de

 prepara•‹o do ator em artes cnicas para cantores de —pera encontra o

limite de sua possibilita•‹o, revelando, ao mesmo tempo, a ‡rea lim’trofe,

as fronteiras entre as duas atividades, e as diferen•as. Parte do trabalho do

cantor est‡ encenar papŽis, na constru•‹o de figuras em cena, na ocupa•‹o

e explora•‹o do espa•o de representa•‹o, da contracena•‹o. De outro

lado, temos as diversas tradi•›es e estilos vocais e composicionais, com

suas exigncias espec’ficas. Os cantores s‹o submetidos a est’mulos e

demandas mœltiplas ˆs quais eles respondem sucessivamente em

diferentes momentos. As aulas de canto e as aulas de interpreta•‹o vocal

 para a cena acentuam aspectos diversos da mesma atividade: o cantor em

situa•‹o de performance.

Ap—s os exerc’cios preparat—rios, a aula organiza-se em forma de

combina•‹o de uma audi•‹o did‡tica: cada aluno apresenta uma ‡ria, uma

232  Para as rela•›es entre Stanislaviski e —pera, v.

STANISLAVSKI, Constantin e RUMYANTSEV,Pavel. Stanislavski on

Opera.  Nova York: Theatre Arts Books, 1975.

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cena, a qual por sua vez Ž comentada por todos, alunos e professor. O

desdobramento entre apresenta•‹o e avalia•‹o Ž exercitado.

A eficincia dos coment‡rios est‡ relacionada com a qualidade do

curr’culo: quem se prop›e a estudar —pera, alŽm de teoria musical erecitais e pr‡tica de conjunto,deve habilitar-se em muitas disciplinas de

l’nguas(italiano,alem‹o e francs) e em literatura vocal (repert—rio). Neste

œltimo quesito h‡ uma tendncia de o aluno possuir uma intensidade e

diversidade de experincias para forma•‹o de seu repert—rio, n‹o

 privilegiando o sŽculo XIX,antes conhecendo as pontas da cadeia -

Renascimento,Barroco e SŽculo XX. Em virtude dessa forma•‹o, o

expediente uma participa•‹o coletiva Ž produtivamente enfrentado. Ao

invŽs de coment‡rio baseado no velho anedot‡rio sobre a vida pessoal dos

mœsicos, de um endeusamento adjetivo do compositor, de um mœtuo

louvor na aprecia•‹o das performances ou de reprodu•‹o de interpreta•‹o

registradas em dvds, os estudantes manifestam percep•›es da qualidade

do ato dram‡tico-musical em um contexto de apresenta•‹o de suas

habilidades, das interpenetra•›es entre texto musical e cena . Esta

correla•‹o entre performance e conscincia da performance integra

habilidades cognitivas muitas vezes consideradas separadas.

As audi•›es did‡ticas assim se organizam: primeiro o aluno canta,

apresenta o material que ele havia sido previamente designado a

 performar. H‡ um calend‡rio de apresenta•›es. Ap—s sua apresenta•‹o,

ele Ž aplaudido com maior ou menor intensidade pela audincia de alunos.

Ou seja, a sala de aula Ž uma platŽia.

Esta aproxima•‹o entre sala de aula e sala de apresenta•›es Ž

fundamental. As performances efetivam-se dentro de um contexto

concreto de realiza•‹o e recep•‹o, n‹o s‹o atos descart‡veis. O aluno o

tempo inteiro Ž avaliado. Aquilo que ele faz, desde a prepara•‹o, Ž

orientado para uma contextura observacional.Com as aulas sendo de 50

minutos, cada encontro Ž uma oportunidade para que um trabalho

realizado fora da sala seja apresentado e orientado durante a aula. O

 professor n‹o substitui o trabalho do aluno. Os 50 minutos produzem

repercuss›es extra-classe. H‡ todo um trabalho anterior ˆs aulas. Da’ o

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tempo e a qualidade das aulas presenciais s‹o ampliados. N‹o h‡

delega•‹o: cada um deve fazer aquilo que lhe est‡ assinalado. Tudo

acontece na frente de todos. O estudante vem com sua mœsica preparada

 previamente, exibindo suas habilidades em l’nguas, compreens‹o de texto,

visualiza•‹o da cena, habilidades vocais e musicais.Ao mesmo tempo,

mesmo n‹o sendo sua vez de apresentar, ele deve habilitar-se a fazer

coment‡rio pertinentes frente ao que vem observando. Afinal de contas ,

estamos trabalhando com performance, uma generalizada e ampla

situa•‹o de presen•a. Todos devem passar pelo mesmo processo nos trs

n’veis de forma•‹o. Por meio da convivncia com o audit—rio, com a

explicita avalia•‹o n‹o h‡ desculpas, n‹o h‡ a sobrecarga no professor:

cada um Ž agente de sua a•‹o e de seu julgamento. Pois um dia voc est‡

vendo seu colega a performar; noutro, ser‡ a sua vez.

Ap—s as palmas, o professor Lata vira-se para a audincia e solicita

coment‡rios. Tal abertura ˆ participa•‹o da audincia n‹o se converte em

frivolidade. Pois quem comenta faz parte da classe, tambŽm est‡ em

avalia•‹o pelo que diz. Tanto cantando quanto falando todos s‹o avaliados

e respons‡veis pelos seus atos. Assim, o estudante v-se diante de uma

diversidade de atos: preparar-se para a performance, apresentar seu

material, ser avaliado, responder ˆ avalia•‹o e avaliar os colegas. Para

tanto, ele vale-se de habilidades musicais, vocais, corporais, teatrais e

verbais. Com isso, efetiva-se um horizonte cognitivo de seus atos

mœltiplos. O foco no fazer, em um programa semi-profissional como este,

Ž fundamentar no saber fazer, em um conhecimento advindo do

desdobramento do agente em diversas e integradas situa•›es que exigem

tanto desempenhos quanto conscincia dos atos.

Depois, dos coment‡rios discentes, professor Lata come•a uma

sŽrie de perguntas, e a partir dessas perguntas, sugest›es para que certos

elementos da performance sejam mais eficientemente enfrentados. As

 perguntas iniciais dirigem-se ˆ compreens‹o do contexto da cena e da

constru•‹o da personagem. Ao lidar com fic•›es e palavras, algumas

delas muitas vezes de outras culturas, o cantor defronta-se com universos

que ele ignora. Uma abordagem que reduza o papel a uma genŽrica

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 padronizada imagem limita o desenvolvimento das habilidades do

intŽrprete. Da’ frequentemente o territ—rio da tŽcnica musical parecer o

œnico solo habit‡vel, seguro para artistas dram‡tico-musicais. ƒ para este

elemento n‹o musical da performance da —pera que as perguntas do

 professor Lata se dirigem: " O que est‡ acontecendo aqui?Ó ÒQuem ele Ž?

"

A partir dessas perguntas, temos outras, relacionadas com a

constru•‹o do espa•o de cena: " Com quem ele esta falando?Ó ÒPara

quem ele est‡ cantando ou olhando?" A estas perguntas, seguem-se

alguns coment‡rios relacionados ao texto, como ele foi pronunciado

durante o canto e algumas sugest›es para que se enfatize na performance

vocal as frases textuais-musicais, os sons. Assim, a conscincia da

articula•‹o Ž produzida pela compreens‹o do texto. Logo, o interprete Ž

 posicionado diante de um objeto que possui mœltiplas e simult‰neas

referncias. Quando o aluno canta, performa sua ‡ria, ele Ž avaliado pelo

entendimento das referncias lingŸ’sticas, pela compreens‹o da

 personagem e do contexto da cena, por sua tŽcnica vocal e pela rela•‹o

que ele estabelece entre o material lingŸ’stico-sonoro que o texto lhe d‡ e

o uso que ele como intŽrprete faz desse material, a partir de uma

interpreta•‹o que singularize certos aspectos de sua performance- as suas

escolhas diante do que a cena e o texto oferecem.

Depois disso, temos uma segunda performance do mesmo

estudante. Diferentemente da primeira, realizada sem interrup•›es, a

reperformance Ž o material para as interferncias minuciosas por parte do

 professor Lata. Tanto que na maioria das vezes as coisas as interrup•›es

come•am antes da primeira palavra ser cantada. O piano d‡ as primeiras

notas e o professor Lata entra em cena e comenta os impulsos iniciais do

estudante. O impulso inicial Ž o material que vai determinar a rela•‹o

entre o cantor e seu audit—rio, ao mesmo tempo em que ser‡ alvo de

reapropria•›es durante toda a performance. O estudo dos come•os, das

 primeiras a•›es Ž fundamental. ƒ preciso haver uma entrada clara, mesmo

quando a cena exige uma marca•‹o emocional complexa. Assim, o corpo

do cantor Ž escaneado nesses coment‡rios. A mesma frase de abertura Ž

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v‡rias vezes discutida, apresentada atŽ que o intŽrprete tenha material

suficiente para trabalhar em casa.

Dessa maneira, cada aluno possui uma dupla oportunidade de ser

apreciado - na dura•‹o de sua performance e no detalhamento de suareperformance. Visto no todo e no detalhe, ele pode ter elementos para

sua autoavalia•‹o. Assim, evita-se a pulveriza•‹o das informa•›es: as

sugest›es da orienta•‹o n‹o s‹o pontuais, moment‰neas. Uma grande

meta das sugest›es e avalia•›es da performance Ž lidar tanto com a

limita•‹o do material analisado, com os limites e possibilidades do

intŽrprete, quanto com a apropria•‹o dessas an‡lises, de forma que elas

mesmas efetivamente sejam um ganho para a performance. Em uma

senten•a: como fazer que a intensidade da avalia•‹o n‹o seja dissipada em

est’mulos verbais imediatos.

Digno de nota nas observa•›es do professor Lata Ž o fato de que as

sugest›es procuram aproximar o papel e as habilidades e materiais que o

discente disp›e ou pode efetivar. N‹o se trata de induzir o cantor a

materializar uma performance modelo, a atua•‹o ideal para aquele papel.

Entendendo o que est‡ escrito e explorando o que pode ser materializado,

o discente aprende as especificidades de interpreta•‹o de uma escrita

dram‡tico-musical, em sua tens‹o entre modalidade de efetiva•‹o e

negocia•‹o com as referncias registradas.

E h‡ a performance mesma da orienta•‹o. Em classes em que

ocorre uma generalizada situa•‹o de observ‰ncia, o pr—prio facilitador

exp›e-se como  performer . Dentre as qualidade que o professor Lata

manifesta no objetivo de prover a avalia•‹o de performances dram‡tico-

musicais temos:

1- efetiva•‹o de um espa•o saud‡vel de aprendizagem atravŽs de

uma condu•‹o serena e objetiva. Ele nunca ergue a voz, nunca se exalta,

nunca ostenta excessos, mesmo diante de tantas fontes sonoras e um

excitante e multivocal ambiente. Regulando a textura e altura das vozes na

classe, o low profile do professor Lata responde a uma ilus‹o que excessos

e excentricidades significam garantia de excelncia. Os estere—tipos

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relacionados a mundo oper’stico s‹o ultrapassados, corrigidos na

aprendizagem de uma escuta atenta ˆ explicita•‹o dos atos.

2- h‡bil combina•‹o de conhecimentos e referenciais da cena, da

vocalidade, do texto musical. Ou seja, trata-se de uma abordagemcentrada na performance e em suas implica•›es cnicas, musicais e

cognitivas. O mesmo problema detectado pode ser investigado por esses

conhecimentos integrados. Nas reperformances o que Ž apresentado pode

ser redefinido em fun•‹o de um e outro aspecto dram‡tico-musical.

3- o papel do detalhe. O professor Lata busca o detalhe no sentido

de que o intŽrprete tenha a conscincia de suas escolhas, da relev‰ncia

daquilo que Ž explicitado na rela•‹o do cantor com seu papel, com o texto

musical e com sua voz.

A ENCENA‚ÌO DE FALSTAFF, DE VERDI

AlŽm das aulas, professor Lata Ž respons‡vel pela dire•‹o cnica

de espet‡culos semestrais. O acompanhamento dos ensaios e das

apresenta•›es corrobora e distende o car‡ter profissionalizante da

forma•‹o de artistas cantores no Florida State Opera .

Diante disso, a apresenta•‹o de uma obra dram‡tico-musical n‹o

apenas materializa as op•›es estŽticas, o processo criativo que efetiva o

espet‡culo, como tambŽm toda a cultura envolvida em sua produ•‹o e

recep•‹o. A montagem de  Falstaff nos d‡ uma oportunidade para entrar

em contato com as op•›es e solu•›es locais e, a partir disso, refletir sobre

 possibilidades quanto ao mesmo t—pico no Brasil.

Inicialmente, Ž bom tem mente que a realiza•‹o de  Falstaff   foi

marcada por sua orienta•‹o intensiva: primeiro tivemos as audi•›es.

Depois das audi•›es, duas semanas de prepara•‹o vocal ou passagem das

 partes. Os ensaios come•aram em 30 de setembro e as apresenta•›es

foram nos dias 3,5, 9 e 10 de novembro de 2006. Praticamente 45 dias.

Uma loucura.

Para que isso fosse poss’vel, primeiro h‡ uma tradi•‹o por tr‡s

desses empreendimentos universit‡rios. Esta Ž 57a. temporada da Florida

State Opera. Como resultado, h‡ uma estrutura, uma organiza•‹o. Todos

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os cantores selecionados receberam a programa•‹o prŽvia dos ensaios,

com datas, hor‡rios e cenas que seriam trabalhadas em cada encontro. Os

ensaios foram realizados todos os dias, menos nas quartas-feiras, com

dura•‹o de trs a quatro horas - das 7 da noite atŽ ˆs 10,11, com pequeno

intervalo. Lembrar que havia dois elencos. Nos fins de semana, ensaio era

das 11 da manh‹ atŽ 6 da tarde nos s‡bados e das 3 ˆs 10 da noite nos

domingos. Seguindo este apertado cronograma, cada cena seria passada

somente duas vezes apenas por cada elenco

Os ensaios eram organizados da seguinte forma: inicialmente o

Professor de prepara•‹o vocal e regente da orquestra que iria acompanhar

as apresenta•›es, Douglas Fisher, passava as vozes e corrigia aspectos

vocais e lingu’sticos e a sincroniza•‹o canto-acompanhamento. N‹o se

tratava de ensinar o que deveria ser cantado. Ap—s as audi•›es e ensaio

das partes faladas, agora n‹o era momento de ser novi•o. H‡ um claro

comprometimento do estudante em uma produ•‹o semi-profissional como

essa. Na porta da sala da sede do Florida University Opera, alŽm de c—pia

do cronograma dos ensaios, voc encontra uma incisiva carta do professor

Fisher lembrando e cobrando este comprometimento. Ou seja, fora o

tempo dedicado aos ensaios, como o estudante possui programa•‹o em

suas m‹os, ele deve estudar em casa suas partes. AlŽm disso, h‡ dois

 pianistas bolsistas integrados no projeto, com hor‡rios para estudo dos

 papŽis.

Ap—s este aquecimento que retoma o que vai se cantado, come•a o

trabalho do professor Lata e trs assistentes Ð estudantes do mestrado em

dire•‹o cnica. Uma delas Ž assistente de dire•‹o, anotando todos os

coment‡rios, idŽias sobre interpreta•‹o, sugest›es, marca•›es que o

 professor Lata compartilha com ela ou atravŽs da observa•‹o que a

assistente mesma faz da condu•‹o dos atores. Ao seu lado, outra assistente

se concentra na parte mais tŽcnica do espet‡culo, no espa•o da cena e nos

objetos. E, ao lado desta, sua assistente, detalhando mais as coisas que s‹o

necess‡rias, o que deve ser providenciado, comprado, refeito. Os cadernos

de anota•‹o s‹o blocos amplos com a c—pia da partitura. Tudo Ž

sincronizado com a dramaturgia musical do espet‡culo.

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Como se pode observar, h‡ um controle da representa•‹o tanto em

rela•‹o ˆs suas condi•›es materiais quanto ˆs suas op•›es interpretativas.

Se o estudante esquecer algo de sua cena, quiser rever uma marca•‹o ou

tiver de faltar ao ensaio (coisa rara e impens‡vel!), ele vai falar Ž com a

assistente, ver as anota•›es. Conforme professor Lata me disse, Ž

responsabilidade do cantor e n‹o do diretor rever ou repetir marcas. Tal

equipe Ž fundamental n‹o s— para manter a coerncia dos ensaios como

tambŽm a qualidade das apresenta•›es. Nos ensaios j‡ no teatro essa

equipe ajuda a estabelecer a continuidade, gradativamente toma a frente

do espet‡culo. Ao fim, essa equipe dirige o espet‡culo ap—s as primeiras

apresenta•›es. N‹o h‡ desperd’cio: as pessoas envolvidas na produ•‹o e

realiza•‹o do espet‡culo est‹o ali em uma aprendizagem concreta de todas

as etapas de encena•‹o de um espet‡culo. A sala de ensaios Ž uma grande

sala de aula. O espet‡culo se transforma em objeto de estudo e

conhecimento para diversos n’veis de ensino e aprendizagem.

Durante os ensaios, as cenas inicialmente s‹o esclarecidas pelo

 professor Lata. Em virtude de sua larga experincia profissional, grande

 parte de sua atividade Ž dispor os cantores no espa•o da cena e prover as

a•›es que eles executam durante sua presen•a no palco. O professor Lata

trabalha com o dinamismo da atua•‹o. N‹o Ž s— apenas cantar. Quem est‡

em cena sempre precisa estar fazendo alguma coisa, materializando o

contexto das a•›es, transformando-se eles mesmo na realidade da cena.

Tal orienta•‹o para a verossimilhan•a n‹o impede que estes corpos

tambŽm se redistribuam, colocando em movimento o espa•o. H‡ um

cont’nuo arranjo dos deslocamentos em cena, proporcionando uma

redefini•‹o temporal para os eventos e para as atua•›es. A agilidade

conquistada nessa movimenta•‹o faz com que a percep•‹o do espet‡culo,

sua frui•‹o mesma n‹o seja interrompida pelas dificuldades mesmas de

uma obra multidimensional como a —pera. Ao integrar mœsica, canto e

a•‹o atravŽs de deslocamentos de grupos e de indiv’duos em cena o

 professor Lata acelera o tempo da cena, sobrepondo-o ao tempo do

 pensamento sobre o que est‡ sendo realizado. Dessa maneira os

acontecimentos se imp›em sobre a percep•‹o, n‹o dando tempo nem para

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os atores nem para a platŽia desconectarem-se, afastarem-se do que est‡

sendo representado.

Esse dinamismo atuacional Ž importante para controle do grupo,

ainda mais frente a um cronograma apertado. A exigncia de tantosdeslocamentos faz com que haja um foco na cena e na contracena. Assim,

o estudante tem de se concentrar em sua presen•a e na interface com o

espa•o alheio. Ele n‹o possui alternativas. Conversando informalmente

com Lata, ele registrou bem, no come•o dos ensaios, que a constru•‹o das

 personagens era algo a ser trabalhado mais. A prioridade naquele

momento Ž colocar no palco cantores que saibam onde est‹o e o que est‹o

fazendo. Tal dinamismo atuacional, quando compreendido e executado

eficientemente, dota o intŽrprete de uma confian•a maior em rela•‹o ˆ sua

atividade em cena. Para os menos inexperientes, trata-se de um caminho

r‡pido para estar no palco. Para os mais experientes, uma disciplina

corporal. H‡ os inconvenientes de n‹o haver uma discuss‹o intelectual

sobre o papel e muitas vezes o intŽrprete ficar atr‡s das marcas. Seja como

for, pelo menos uma coisa o estudante entra em contato: que sua

 performance tem de ser espacializada, que ele Ž uma figura dentro de um

arranjo espacial, e que ele contribui para esse arranjo, desde que o

compreenda. A verbaliza•‹o dos workshops d‡ lugar uma rotina de

experimenta•‹o dos lugares da cena.

Da marca•‹o para a caracteriza•‹o: segundo a programa•‹o dos

ensaios, depois das cenas (1), temos trabalho com os atos da pe•a(2), com

a pe•a inteira(2), com a pe•a inteira e figurinos (3), dois ensaios gerais

tŽcnicos no teatro(4) e a pe•a inteira com orquestra (4). Como vemos o

cronograma de atividades Ž progressivo, mas cada etapa insere o estudante

em um desafio intenso de uma concreta situa•‹o performativa.

Ainda nos ensaios com as cenas, cada cena era marcada e

esclarecida primeiro verbalmente, junto com os deslocamentos, depois

com a mœsica. Digno de nota Ž a presen•a do pianista acompanhador e do

 professor Fischer, que regeu a orquestra nas apresenta•›es. A presen•a do

 preparador vocal e regente nos ensaios possibilitou a condu•‹o dos

cantores em situa•‹o de apresenta•‹o. Os intŽrpretes eram duplamente

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marcados Ð pelo espa•o e cenografia e pela orquestra-piano-maestro. A

constru•‹o das cenas era interrompida seja pela falta de qualidade ou

incompreens‹o tanto de um ou de outro aspecto. A sincroniza•‹o dos

movimentos, das linhas mel—dicas e das linhas mel—dicas com a orquestra

era buscada. Em uma encena•‹o universit‡ria este cons—rcio entre o

regente e o diretor de cena Ž poss’vel. Ambos s‹o professores da

institui•‹o promotora do evento. H‡ uma clara divis‹o de papŽis. Mesmo

que haja discord‰ncia com o conceito da montagem, os dois precisam

observar o trabalho do colega. Ainda mais que o professor Lata moderniza

obras do repert—rio, tornando contempor‰neas referncias n‹o s— no

cen‡rio como tambŽm nas falas233.

Uma obra como Falstaff  exige um aplicado controle dos tempos e

das atua•›es. H‡ poucas ‡rias. A intera•‹o entre personagens durante as

artimanhas e sua realiza•‹o solicita grandes dificuldades de sincroniza•‹o

entre cena e orquestra. A obra, em trs atos, vale-se de situa•›es t’picas da

commedia dellÕarte, com perspectivas limitadas dos personagens frente ao

que est‡ acontecendo, planos simult‰neos, e recursos dram‡ticos como

esconderijos e revela•›es. As cenas mais complicadas s‹o as segundas

 partes dos atos. Cada ato se divide em duas grandes seqŸncias. Na

segunda seqŸncia de cada ato temos cenas de grupos cada vez mais

complexas, com melodias diferentes e simult‰neas. S‹o estiliza•›es da

tŽcnica dos fins de ato da —pera bufa. Grande parte do humor reside nessa

explora•‹o do excesso dos grupos. Outra parte est‡ no conteœdo de

algumas frases e no jogo de esconde-esconde dos personagens.

Um diferencial da produ•‹o de  Falstaff foi a presen•a de um

 profissional com larga experincia, Jake Gardener, vindo de Nov York.

Com isso fica mais do que clara a defini•‹o da proposta educacional aqui

desenvolvida. Primeiro, essa separa•‹o entre —pera profissional e n‹o

 profissional na verdade Ž um resqu’cio da guerra fria, e n‹o se aplica aqui.

O que na verdade existe s‹o produ•›es diferentes relacionadas ao

contexto de sua realiza•‹o e ao dinheiro envolvido. Pois n‹o h‡ esse

233  Como bem se pode observar em sua montagem de O Mikado, de Gilbert eSullivan, mar•o de 2008.

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neg—cio de amadorismo e falta de dinheiro. Voc precisa, para realizar um

espet‡culo como esse, de dinheiro. O financiamento da produ•‹o caminha

 junto com a existncia mesma de um projeto dessa magnitude. N‹o se

trata de mercantilismo. Voc paga pelo curso universit‡rio que voc est‡

fazendo. Voc participa de uma produ•‹o que tem financiamento, que n‹o

Ž pœblico. A qualidade das produ•›es e a continuidade do projeto se

relacionam com os recursos que a viabilizam. Assim, o estudante-cantor

entra em um ambiente de aprendizagem rodeado por necessidades

financeiras, por um or•amento. Este diferencial Ž bem ausente em nossa

tradi•‹o universit‡ria de montagem de obras dram‡tico-musicais,

retalhada em parcos apoios institucionais e esparso benepl‡cito privado

(ˆs vezes o bolso dos membros envolvidos no projeto). Uma aten•‹o

nesse t—pico Ž esclarecedora.

A quest‹o do dinheiro fica bem clara quando o momento das

apresenta•›es vai chegando. Nos ensaios com o figurino, nas passagens

tŽcnicas mostra-se que h‡ um investimento pesado no que est‡ sendo

feito. Dessa forma, o comprometimento do estudante com a produ•‹o se

torna mais patente: ele pode observar que h‡ todo um conjunto de

recursos humanos e monet‡rios envolvidos no espet‡culo. E o espet‡culo

vai mostrar isso. No palco est‹o presentes n‹o s— os atores, os recursos

humanos, como tambŽm os recursos monet‡rios que efetivaram grande

 parte das situa•›es ali performadas.

 No dia das apresenta•›es isso fica muito exposto. Primeiro os

ingressos s‹o pagos. ƒ, isso mesmo: voc paga para ver o trabalho dos

estudantes. Mas isso n‹o Ž algo t‹o extraordin‡rio. A maioria dos recitais

finais n‹o Ž de entrada franca. Trabalhos de fim de curso e obras

 produ•›es como esta, desenvolvidas ap—s longo processo criativo que

conta com a participa•‹o ativa do professores e da dire•‹o institucional,

s‹o apresentados ao grande pœblico como produtos tanto estŽticos, quanto

comerciais. O ingresso n‹o Ž abusivo e quem paga sabe que est‡

consumindo uma realiza•‹o de uma universidade.

Segundo, voc recebe junto com o ingresso uma lista de seis

 p‡ginas com o nome das pessoas da comunidade que d‹o dinheiro para

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que a produ•‹o musical universit‡ria tenha continuidade. A lista se exibe

uma classifica•‹o de contribuintes em v‡rias categorias: Gold Circle,

Benefactors, Lifetime Members, Corporate Sponsors, Business

Sponsors,Patrons, Associates, Sponsors. A classifica•‹o procura reunir

grupos de pessoas e suas diversas formas de participa•‹o monet‡ria ou de

 prest’gio. Assim, todo mundo pode ter seu nome na lista, desde que

especificada a sua forma de contribuir para as atividades musicais da

universidade. Esses recursos expostos no programa s‹o a auditoria pœblica

da produ•‹o do espet‡culo. AlŽm disso, toda a contabilidade da —pera Ž

fiscalizada pelas burocracias da universidade, da cidade e do estado, e da

 burocracia federal (o imposto de renda dos doadores).

Estes membros da comunidade formam grande parte do pœblico

das apresenta•›es da —pera. Em sua maioria s‹o pessoas mais

experimentadas, entre 55 e 80 anos. H‡ o encontro dos jovens cantores

com a tradi•‹o, com pessoas que j‡ assistiram a muitos espet‡culos em

diversas partes do pa’s. Por certo lado, essa rela•‹o entre pœblico

financiador e artista parece estranha. Pois se canta para uma platŽia menos

diversificada, mais homognea socialmente, com o perigo de n‹o haver

renova•‹o de pœblico. Mas, para quem est‡ cantando e para os mœsicos da

orquestra Ž uma oportunidade de se colocar em risco, em situa•‹o

concreta de performance. Todos sabem que Ž uma produ•‹o com

estudantes. Mas isso n‹o significa que Ž uma produ•‹o com taxa de

toler‰ncia reduzida. O que existe Ž a diferen•a entre or•amentos e entre

experincia exibida. Cada apresenta•‹o Ž um julgamento n‹o s— dos

estudantes como da organiza•‹o.

Os elencos que se apresentaram tinham suas diferen•as

qualitativas. O primeiro elenco era o mais irregular. Nas cenas de grupo,

 principalmente as mulheres, elas ficavam atr‡s das marcas, como que

executando algo dissociado de sua compreens‹o. Trata-se de aprender a

diferen•a entre fazer o correto e fazer melhor. A marca n‹o Ž uma camisa

de for•a. ƒ uma informa•‹o. Resta ao intŽrprete flexibilizar a informa•‹o

agregando possibilidades. AlŽm disso, o uso do elenco menos sintonizado

 para a abertura acabou por produzir um teste de como a parte tŽcnica e o

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manuseio com os objetos podem ou n‹o funcionar bem. O segundo elenco

estava na platŽia, incentivando com muito excesso seus companheiros, e

aprendendo com os erros observados. Alguns problemas na hora da

mudan•a de cen‡rio e manipula•‹o de objetos de cena foram percebidos.

Esta quest‹o da manipula•‹o dos objetos de cena, de como pegar e

usar uma vassoura, uma cadeira, como, por qual raz‹o e para onde

movimentar um banco, Ž uma b‡sica quest‹o para os intŽrpretes. Em

algumas vezes, a qualidade de um movimento desses informa sobre a

 personagem que o que ela canta. N‹o somos n—s que movimentamos os

objetos. S‹o os objetos que nos materializam em cena.

O cen‡rio era uma casa de bonecas, com dois lados, que era girado

em cena, revelando espa•os diferentes, ou era aberto revelando o interior

fabuloso de uma casa. Simples e eficiente. Mas ainda tanto as roupas

quanto o cen‡rio cheiravam uma novidade de recŽm-feito, recŽm

comprado. Eram mais coisas bem feitas que roupas e objetos que as

 pessoas usam ou nas quais as pessoas vivem. Esse brilho reluzente das

coisas novas dava um aspecto meio artificial ao espet‡culo, no sentido que

era mais uma manifesta•‹o da qualidade do trabalho e do dinheiro gasto

que propriamente um mundo habit‡vel.

Com isso, em alguns momentos, a risada n‹o vinha. Em uma

comŽdia j‡ meio dif’cil de rir e mais f‡cil de sorrir, como  Falstaff , a

 provoca•‹o ao riso, as fontes da comicidade estavam nos gestos de cair,

correr, nos trejeitos do rosto, par—dias vocais com o cantor cantando como

mulher e vice-versa, e algumas piadas musicais, como Òdalle due alle tre.Ó

Outro problema presente n‹o s— na performance do primeiro

elenco Ž a chamada interpreta•‹o frontal. Mesmo com os deslocamentos

de grupo, o foco da cena e a maioria da produ•‹o vocal se desenvolviam

com os intŽrpretes meio alinhados e fixos no centro do palco. Esse ponto

centr’fugo situado em frente ao maestro Ž um grande problema. Ainda

mais com as complica•›es de sincroniza•‹o presentes em  Falstaff . Ora,

essa interpreta•‹o frontal como padr‹o engessa o espet‡culo. Os

intŽrpretes parecem que n‹o performam tendo um pœblico em sua frente,

limitando as contracena•›es. Com pouca diagonalidade e lateralidade, a

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interpreta•‹o frontal reduz a varia•‹o das a•›es e das trocas. Canta-se

 para o maestro. E isola-se, sobrecarrega-se o cantor que desempenha o

 personagem-t’tulo.

Agora, a orquestra de alunos Ž excelente, o dueto (terceiro ato)entre Nannetta e Fenton do primeiro elenco, foi maravilhoso, os atores

n‹o cantores integrados ao espet‡culo como Oste e Robin contribu’ram

muito para o cotidiano das cenas e v’nculos entre as personagens entre si e

com a platŽia, e o fim do terceiro ato realmente com sua bela cenografia e

figurino encanta, junto com o auge do tutti final, quando h‡ quebra da

Ôquarta paredeÕ e os cantores se dirigem a n—s, a platŽia.

Com uma organiza•‹o destas e profissionais de alto gabarito os

estudantes tm a possibilidade de desenvolver suas habilidades dentro de

um ambiente o mais favor‡vel poss’vel. H‡ uma boa sala de ensaios e um

 programa de atividades, um cronograma de eventos. E a comunidade

ganha com espet‡culos muito bem produzidos e academicamente

orientados. Departamentos e Institutos de Arte no Brasil podem valer-se

da produ•‹o de —peras universit‡rias como uma possibilidade para

estimulantes correla•›es entre pesquisa, produ•‹o de espet‡culos e

forma•‹o de intŽrpretes e platŽia234.

234 Entre 2005 e 2007 o LADI e o îpera estœdio produziram semestralmente umaobra dram‡tico-musical. Entre elas, Bodas de F’garo e O empres‡rio, de Mozart,Carmen de Bizet, e uma vers‹o de Cavalleria Rusticana, de Mascagni

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14- A realiza•‹o de —peras como campo interart’stico:

dramaturgia, performance e interpreta•‹o de fic•›es

audiovisuais.

 Nas œltimas duas dŽcadas, o incremento da convergncia

entre teatro e —pera por meio da reencena•‹o\ reinterpreta•‹o obras

dram‡tico-musicais tem provocado polmicas e quest›es que

reivindicam um tratamento te—rico-reflexivo mais detido, capaz de

ultrapassar a arena das contingncias da opini‹o e do gosto235.

 Neste trabalho, enfoco as implica•›es dessa convergncia tanto natradi•‹o oper’stica mesmo quanto no campo musical que acolhe

esta tradi•‹o. A teatralidade da —pera aponta para a relev‰ncia que

a performance ocupa no fazer musical. Desse modo, a discuss‹o

sobre a realiza•‹o de —pera transforma-se numa discuss‹o sobre

 pressupostos sobre as complexas rela•›es entre texto, cena e

mœsica.

A aproxima•‹o entre atua•‹o e canto, exigida por obrasdram‡tico-musicais, parece —bvia. Mas Ž durante a prepara•‹o de

—peras que esta obviedade transforma-se muitas vezes em

tormento. Na forma•‹o do intŽrprete-cantor, como na forma•‹o do

mœsico-intŽrprete, a centralidade do texto refor•ada pela autoridade

e,algumas vezes, autoritarismo da orienta•‹o e condu•‹o do

desempenho, acaba por considerar performance como um ato

derivativo, subsidi‡rio, secund‡rio236.

235 BOLSTEIN 1994 discerne, na renova•‹o da —pera, dois fatores:a renovada nfase na atua•‹o e namovimenta•‹o em cena e a reconceptualiza•‹o de obras do repert—rio efetivada por diretores teatrais como PeterSellars. LEVIN 1997, a partir de uma an‡lise de produ•›es e dire•›es de —pera, procura encontrar fundamentoste—ricos para julgar o valor de uma encena•‹o. Tal postura, segundo TREADWELL 1998 n‹o situa a quest‹o da

 performance como um ato interpretativo, mas reproduz em novos termos o mesmo eixo pseudocr’tico deoposi•‹o entre conservadorismo e inova•‹o. Nas palavras de TRADWELL 1999:601 Òa discuss‹o sobre a

 produ•‹o de —peras precisa ir mas alŽm do argumento sobre se Ž certo ou errado que certos objetos possam ou n‹oestar em cena em certos momentos, ou que determinados eventos possam ser atualizados em determinados

espa•osÓ236 KERMAN 1987:257 chega a comentar que Ò surpreendentemente ou n‹o, o fato Ž que os te—ricos tonais est‹oquase totalmente silenciosos acerca do assunto Ôperformance musical.Õ Ó

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Esta abstra•‹o das condi•›es,habilidades e amplitude da

 performance ocasiona uma espŽcie de fic•‹o metodol—gica da

Ômœsica sem mœsicosÕ(COOK 2001:242).

Um dos pressuposto desta abstra•‹o reside na mœsica comoum objeto aut™nomo, centrado em si mesmo, que gera seu pr—prio

significado e contexto, apreens’vel primordialmente atravŽs de

opera•›es mentais silenciosas237.

Seguindo tal reducionismo, o cantor-intŽrprete, mais que o

mœsico-intŽrprete, situa-se nos extremos entre o puramente musical

e a sua performance. Por isso muitas vezes preenche este entre-

lugar de extremos com excessos, com o desempenho estereotipadoe convencional, Ôoper’sticoÕ, marcado por proje•‹o da

individualidade do intŽrprete, estere—tipos de comportamento,

 poses e rompantes Ð como se o excesso pudesse preencher ou

completar o vazio de performance que irreversivelmente se mostra

em cena...238 

PorŽm, quando cantores s‹o tratados como atores, valendo-

se de procedimentos interpretativas das Artes Cnicas, a

 prepara•‹o e realiza•‹o de obras dram‡tico-musicais se torna n‹o

somente a encena•‹o de uma —pera239. A quest‹o ultrapassa a

analogia entre o cantor-intŽrprete e o ator. N‹o se trata de mera

aplica•‹o de uma pr‡tica art’stica em outra pr‡tica art’stica. Sen‹o,

o resultado seria ainda a continuidade do pressuposto da

autonomia, s— que agora invertido. O que ent‹o a teatraliza•‹o da

—pera acarreta de t‹o mais provocador que a suplementa•‹o de uma

atividade j‡ bem definida?

Bem definida? Edward Cone tentou em um influente

ensaio, sem levar em conta a fisicidade da realiza•‹o oper’stica,

tratar da especificidade da —pera nesses termos: Ò Como o mundo

237 Para uma an‡lise do conceito de autonomia musical v. WHITTALL 2001.238 Em MOTA 2003 o excesso sem conscincia da performance de ostenta•‹o individual se distingue do excessodo contexto mesmo do articulador de cena em uma obra dram‡tico-musical, articular este envolvido em atividadese habilidades diversas e co-operantes.239 SHEVETSOVA 2004:348 defende que tratar o cantor como um ator Ž um imperativo da arte dram‡tico-musical, de forma a os habilitar a Ò encontrar nuances de personifica•‹o, situa•‹o, a•‹o, e, acima de tudo inter-relacionamento entre todos os participantesÓ

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da opera difere de outros mundos dram‡ticos? Quem s‹o as pessoas

que habitam esse mundo e que tipo de vida eles levam l‡? (CONE

1989:125).Ó

Ap—s esta quest‹o, que se vale da naturaliza•‹o de seureferente, E. Cone apresenta uma distin•‹o prŽvia entre Ôcan•‹o

realistaÕ e Ôcan•‹o oper‡ticaÕ como modalidades de performance

em uma obra dram‡tico-musical. A distin•‹o tem por base a

 performance em uma pe•a de teatro n‹o musical. Em uma pe•a as

 pessoas falam, tal como em uma —pera as pessoas cantam. Este tipo

de atua•‹o normal, dentro de um contexto de cena, torna-se o

 padr‹o para a atua•‹o desviante, que se desliga das imediatas e

necess‡rias realidades que s‹o exibidas. Assim, na Ôcan•‹o realistaÕ

o que se mostra Ž a integra•‹o do intŽrprete ao seu contexto de

cena mais imediato, enquanto que na can•‹o oper‡tica, o intŽrprete

amplia seu tempo e seu espa•o e compartilha sua performance mais

com a platŽia.

 No mesmo ensaio, este dualismo de n’veis de referncia Ž

 posteriormente questionado pelo pr—prio E. Cone: ÒSer‡ que a

r’gida distin•‹o entre can•‹o realista e can•‹o oper‡tica se sustŽm?

(CONE 1989:126Ó Note-se a dificuldade de se sustentar a defini•‹o

de uma complexa atividade interart’stica em distin•›es prŽvias e

absolutas. A hesita•‹o de E. Cone aponta para outras vias de acesso

que vem no contradit—rio e no diverso a possibilidade de se pensar

o heterodoxo n‹o em termos abusivamente exclusivos, organicistas

e autoexcludentes.

Frente ˆ hesita•‹o de E. Cone, P.Kivy procura resolver esta

leve percep•‹o do mœltiplo(duplicidade de n’veis de referncia dos

atos performativos dos intŽrpretes-cantores) em uma coerente

explica•‹o. Ent‹o P. Kivy prop›e sua Fantasia filos—fica (KIVY

1991). Ao invŽs das distin•›es entre mundo da —pera e mundo da

vida, outro mundo qualquer, Kivy advoga a unidade de todos os

mundos, de todas as referncias atravŽs da criatividade dos atos

lingŸ’sticos. ÒSomos todos, em conversa•‹o, irm‹os e irm‹s em

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arte(KIVY 1991:71)Ó. As diferen•as e distin•›es s‹o solapadas em

 prol de base comum das intera•›es: sua orienta•‹o perceptiva

unificada apenas pela pelo medium - a mœsica ,na —pera; a palavra,

na vida.

Esta defini•‹o unificada pelo medium j‡ havia sido utilizada

 por P.Kivy como f—rmula para explicar o surgimento da

—pera(KIVY 1999). Questionando a produ•‹o dram‡tico- musical

de Monteverdi, P. Kivy argumentava que a tens‹o entre drama e

mœsica, entre coerncia musical foi quem gerou a —pera. Quando a

sem‰ntica da mœsica foi subordina ˆ sua sintaxe. O problema da

—pera, pois, torna-se um problema intelectual. Como um novo E.

Haslick, P. Kivy busca uma assepsia, uma esfera transcendental

sem os entraves de interferncias representacionais, sejam elas as

emo•›es, corpos e espa•os concretos de realiza•‹o(KIVY 1999:14-

15). Deslocando a —pera para esta esfera, ela se encontra livre das

necessidades de sua justifica•‹o no mundo, de intera•‹o com outras

referncias ou pr‡ticas de representa•‹o. ƒ pura mœsica.

Tanto que em sua Ô fantasiaÕ, P. Kivy afirma: Ò N—s todos

sabemos que cantores raramente s‹o bons atores ou atrizes; Ž um

fato estat’stico. (...) Porque —pera Ž em seu mais essencial

(essential ) aspecto uma arte para se ouvir (heard art ), e n‹o para se

ver. Muita atua•‹o em cena acabar por trazer confus‹o sobre sua

natureza essencialmente(essentially) musical.(KIVY 1991:75)240Ó

Tanto que para preencher e substituir o movimento dos corpo

existe a orquestra. A orquestra Ž, Ò em termos simples, gesto

expressivo e movimento corporal(KIVY 1991:75).Ó Para n‹o haver

redund‰ncia, os corpos devem ficar inertes para que os

instrumentos possam fazer as vezes de corpos (KIVY 1991:75).

Desse modo, pressupondo-se a homogeneidade do medium,

suspende-se a interferncia de outras dimens›es da produ•‹o

oper’stica em prol da emergncia do puramente musical em sua

240 ROSEN 1992, em uma cr’tica a KIVY 1991, mostra, entre outros problemas, o reducionismo de P.Kivy na

leitura das distin•›es e hesita•›es de CONE 1989 inviabiliza a compreens‹o Òdo complexa intera•‹o entresistemas de arte que constituem a arte da —pera.ÓKIVY 1992 responde ROSEN 1992, reafirmando seus pontos emdefender uma l—gica para o Òbizarro mundo da —pera (KIVY 1992:180).Ó

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completa realiza•‹o. Somente assim, a —pera como mœsica, como

 plenitude sonora pode acontecer.

Mas as outras referncias dificultam mesmo o acesso ˆ

inteireza musical? As habilidades e o esclarecimento da situa•‹o de performance s‹o obst‡culo para se efetivar a obra dram‡tico-

musical ? Por que a performance permanece como contra-exemplo,

como referncia negativa, como argumento a ser rebatido?

Uma das grandes contribui•›es que a teatraliza•‹o da —pera

tem trazido para o cantor-intŽrprete Ž a secular conquista das Artes

Cnicas de se deslocar o centro de orienta•‹o das teorias e das

 pr‡ticas para o treinamento do ator, para suas habilidades e suaconscincia interpretativa. AtŽ o sŽculo XIX, as companhias

teatrais se gravitavam em torno da figura do primeiro ator e de toda

uma hierarquia alimentada pelo histrionismo do l’der. A

emergncia do teatro moderno Ž contempor‰nea da

descentraliza•‹o das prerrogativas interpretativas. ƒ para a

intera•‹o entre obra e intŽrprete que o trabalho interpretativo se

direciona241. N‹o h‡ uma interpreta•‹o can™nica, œnica e final de

um papel, de uma obra, mas uma negocia•‹o entre as marcas que a

obra registra e o processo criativo que transforma estas marcas em

um espet‡culo, a partir dos membros envolvidos no processo.

 Na Universidade de Bras’lia, h‡ um projeto

interdepartamental Ð o projeto îpera Estœdio - que tem procurado

aplicar este pressupostos na encena•‹o de obras dram‡tico-

musicais. Dois espet‡culos foram realizados: As bodas de F’garo e

Carmen. O espa•o universit‡rio tem proporcionado a oportunidade

de se desenvolver uma rotina de atividades que dificilmente seriam

 poss’veis em outros ambientes. Primeiramente, temos os cantores

desde o in’cio do processo criativo. Eles n‹o chegam ao fim de

tudo apenas com suas partes j‡ memorizadas. Com isto, refor•a-se

uma conscincia de grupo, fundamental para se come•ar a entender

241 Para este paradigma interacionista-interpretativista v. GADAMER 1998.

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concretamente a amplitude multidimensional de obras dram‡tico-

musicais.

As atividades preliminares de discuss‹o e compreens‹o das

linhas de atua•‹o e do conceito estŽtico da obra s‹o propostas eorientadas na correla•‹o entre dados musicais e dados cnicos. Ao

invŽs de se marcar deslocamentos em cena, acentua-se no cantor-

intŽrprete o conhecimento de seu desempenho, de onde ele est‡,

com quem interage - seja com outros personagens, orquestra ou

 pœblico - como se reage ˆ sua linha de a•‹o, entre outros

esclarecimentos. Dessa forma, ele compreende a diversidade

material de referncias, m’dias e procedimentos aos quais sua

atua•‹o se vincula. Diante dessa multiplicidade de recursos, o

cantor poder‡ enriquecer sua interpreta•‹o, enfatizando a cada

momento aquilo que a cada momento precisa ser enfatizado.

Esta compreens‹o da amplitude de seu fazer em nenhum

momento se constitui em embara•o e nega•‹o da musicalidade da

obra. L. Treitler advertiu que h‡ o risco de se reduzir a obra

musical a seu contexto extra-musical ao n‹o se levar em conta o

espec’fico musical (TREITLER 2001:358). A advertncia de

Treitler n‹o Ž uma par‡frase de KIVY 1991. Como COOK 2000

 postulou, a mœsica modifica-se em seus contextos de uso e

 produ•‹o. E em situa•‹o intermidi‡tica que isso se torna

materialmente exposto. îperas s‹o justamente explora•›es dessa

 possibilidade de contextos e referncias desdobradas, pois

apresentam acontecimentos que m’dias em separado n‹o tem a

mesma intensidade e abrangncia de representar (MOTA 2005). ƒ

necess‡rio ent‹o uma dramaturgia e uma sobreatua•‹o que parta

dessa tens‹o entre os limites particulares de cada m’dia para se

 propor n‹o um medium  de todos os outros, mas uma situa•‹o-

 problema que se vale de materiais heterogneos e finitos que se

tornam um problema a realizar e a interpretar. Cada novo encontro

com o repert—rio oper’stico Ž uma renovada oportunidade para

explorar este campo interart’stico no qual a performance n‹o Ž

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242 EINSTEIN 1971:167. KERMAN 1990:83 ÒO modo fundamentalde apresenta•‹o no drama Ž a a•‹o, e no drama musical o meio dearticula•‹o da imagina•‹o Ž a mœsica. Inevitavelmente, orelacionamento ou a intera•‹o entre as duas, a•‹o e mœsica, Ž o

 problema central perene da dramaturgia oper’stica.Ó

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  #nl

16- AN AMERICAN IN PARIS : CINEMA, MòSICA E TEATRO

Os musicais parecem n‹o ter sobrevivido ˆ cultura pop dessacralizadora p—s

anos 70. N‹o que tenham morrido, pois registram a constru•‹o de nossa mem—ria

f’lmica, na dif’cil conjun•‹o entre evento cinematogr‡fico e espet‡culo teatral.

PorŽm, a glamouriza•‹o da realidade que desenvolviam, rŽplica midi‡tica da

aura da obra de arte, n‹o encontra mais lugar em nosso mundo243. As contempor‰neas

rela•›es entre fic•‹o e realidade mergulhadas no niilismo praticante de sujeitos

fragmentados, s‹o incapazes de produzir transcendncia, mesmo atŽ uma

transcendncia que dure o tempo de um beijo. O que se exibe, o que se mostra guarda

as marcas de sua explicita•‹o. O olhar cada vez mais se condena ao atento e

minuncioso desnudamento do visto. Do mundo comemorado como sublime ao mundo

revelado e despojado pela violncia, percebemos que as imagens mudaram tanto

quanto os sujeitos que as vem. Mas o nosso hipernaturalismo, no entanto, n‹o seria

um desejo de ir mais alŽm do vis’vel?

Vamos nos acompanhar de An American in Paris244  para abrir uma brecha em

um espa•o alŽm de nossa recusa e desconfian•a a respeito de tudo que Ž memor‡vel e

efetivo. Tentar entender um musical pode ser um ant’doto para a universaliza•‹o de

um fasc’nio unificante pela anomia.

A grande cr’tica que se pode fazer a um musical Ž o efeito de artificialidade e

afeta•‹o que nos sobrevm em virtude da quebra de continuidade na representa•‹o

quando das partes de canto/dan•a. O sacrif’cio das partes n‹o musicais (di‡logos,

contracena•‹o, contexto de cena, faticidade dos conflitos entre os agentes) em prol doÔmomento art’sticoÕ do drama (a can•‹o, os nœmeros dan•ados) resultaria na m‡

243 Note-se, por exemplo, como os filmes musicais recentes como  Dan•andono escuro(2000), De Lars Von Trier ,  Moulin Rouge (2001), de Baz Luhrman  eChicago, de Rob Marshall (2002) valem-se de tanto de humor, ironia, par—dia, cr’ticae negativismo quanto de atores cantores n‹o virtuoses para n‹o circunscrever omundo representado ˆs habilidades dos intŽrpretes e, consequente, estreitamento dov’nculos dramatizados.

244 Filme de 1951,dirigido por Vincente Minnelli e estrelado por Genne Kelly,Leslie Caron, Oscar Levant e Georges GuŽtary. T’tulo brasileiro: Sinfonia de Paris,Videoarte, 113 min.

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  #nm

estrutura•‹o do ritmo do fime. ƒ como se a fita fosse constru’da para o momento

especial que se destaca. Logo, todos os outros momentos n‹o possuem import‰ncia e

especificidade, a n‹oser figurarem como prepara•›es para as partes musicais. Desse

modo, um musical seria o amontoado de cenas de liga•‹o em volta de pontos de

ilumina•‹o centrais. Esta l—gica bin‡ria, mas una (pois trabalha com hierarquia e

antecipada valora•‹o), funciona como a simplifica•‹o de um processo dram‡tico.

Trata-se de administrar as puls›es para um cl’max. Para enfatizar eventos isolados,

negligencia-se a integra•‹o dram‡tica.

Desde j‡, vendo o todo emergente desta l—gica, facilmente identificamos as

diferen•as qualitativas que d‹o coes‹o ao que se representa. Esta economia expressiva

 baseada no par de opostos prepara•‹o/ cl’max constitui fator de restri•‹o dos atos

recepcionais, pois trabalha com a cria•‹o de um mesmo regime de expectativas que

s‹o sempre cumpridas. Sabendo a pequena novidade entre as partes ,a recep•‹o se

confina a confirmar o j‡ sabido, a espera o que conhece, a sentir o j‡ sentido.

Foi assim que a era dos musicais entrou em est‡gio terminal. Filmes que

apenas reeditavam a exposi•‹o de habilidades n‹o conseguiam integrar atos

recepcionais diversificados. A convencionalidade da distribui•‹o de suas partes

acopladas a fun•›es fixas de recep•‹o determinou o esgotamento de uma concep•‹o

culin‡ria do musical (Brecht). A redu•‹o das partes n‹o musicais ˆ prepara•‹o para o

espetaculoso  promoveu o fasc’nio pelo indiv’duo, a substitui•‹o do efeito pelo

artif’cio, a exacerbada subjetiva•‹o de uma obra que se define justamente por sua

multidimensioanalidade.

 Note-se: Ž um tipo de racionalidade compositiva que produz tal expurgo da

multidimensionadalidade, ao preferir a normaliza•‹o do representado como forma de

 proporcionar ao audit—rio o imediato encontro com um imagin‡rio comum e geral. A

redundante informa•‹o visual, o destaque das partes performativas, a fragilidadesituacional das partes n‹o musicais, a apressada disposi•‹o un’voca e central de um

agente dram‡tico, tudo, enfim, orienta o espectador a decodificar sem esfor•o o que

diante dele est‡.

Em  An American in Paris  as artes dialogam, fazendo um espet‡culo

intersemi—tico, interart’stico. O fato de um pintor (Jerry Mulligan), um pianista

(Adam Cook) e um cantor (Henri Baurel) participarem das cenas, integra a•›escotidianas das partes n‹o musicais ao extracotidiano das partes performativas.

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A abertura do filme, como num document‡rio, narra espirituosamente o

espa•o a ser visto, detendo-se na fonte que mais tarde ser‡ protagonista do ballet  

final245. A narra•‹o inicial continua na apresenta•‹o das personagens, selecionando a

diferencia•‹o de referncias que orienta a atividade recepcional. Tanto que a

c‰mera/narrador corrige alguns 'equ’vocos' de apresenta•‹o, t—picos metareferenciais

que demonstram os limites entre fic•‹o e contexto de cena como forma de dilatar e

experimentar a tens‹o entre este desdobramento ficcional e sua recep•‹o. As

 brincadeiras da c‰mera e as falas c™micas da narra•‹o exercitam a autopar—dia do

filme, refor•ando n‹o o encantamento, mas a construtividade do que se mostra. O riso

doa-nos o tempo de uma intera•‹o.

Desde o in’cio, ent‹o, o filme volta-se para a representa•‹o, para viabilizar

uma experincia de assistncia, para correlacionar a constru•‹o da cena com a

constru•‹o da recep•‹o do espet‡culo. O que Ž visto volta-se para quem observa. Mas,

 para isso, necessita criar os meios, as condi•›es para que haja esta reflexibilidade.

Tudo que se coloca em cena depende de sua possibilita•‹o. Ao invŽs de meramente

reduzir o ato de representa•‹o ˆ irrup•‹o do modelo prepara•‹o/cl’max, a realidade do

que se exibe Ž a ultrapassagem das dificuldades de sua atualiza•‹o. Como ver o que se

v torna-se a meta dos atos da audincia.

Desse modo, o conceito de contexto de cena Ž estendido. O que se coloca

diante de n—s n‹o Ž a redund‰ncia do tema. O contexto de cena n‹o se restrinje a

exigncias de um modelo composicional prŽvio ali aplicado. O contexto de cena

aponta para seu horizonte, para algo que vincule o momento de sua ocorrncia a

eventos translocais. ƒ preciso que a recep•‹o interaja com o ritmo de representa•‹o

que perpassa eventos representados e os insera no todo do espet‡culo. A abertura do

filme amplia-se no desnudamento da ficcionalidade mesma da representa•‹o.

Sen‹o, vejamos: logo ap—s apresentado nosso trio de artistas, Adam Cook eHenri Baurel v‹o conversar. Mas ninguŽm conversa como eles, ninguŽm conversa

assim cotidianamente. O mote desde di‡logo Ž pergunta 'como ela Ž?', abrindo e

fechando a contracena•‹o entre os artistas. Dois homens falando de uma mulher. Um

contexto de cena, mas, ao mesmo tempo, uma situa•‹o para se focalizar a pr—pria

245  An American in Paris pode assim ser dividido em 8 partes subseqŸentes:1-apresenta•‹o multiperspectivada dos agentes dram‡ticos; 2-par—dia da tipifica•‹o doideal feminino; 3- did‡tica comicidade do sentido das palavras; 4- debate antil’ricosobre afetos; 5-show musical no Clube; 6- devaneio de Adam Cook; 7-festa em Pretoe branco; 8- del’rio multisensorial do ballet  final.

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materialidade audiovisual. ƒ preciso mostrar este desdobramento metaficcional. E tal

desdobramento s— acontece e Ž mostrado a partir do momento que se ultrapasssa a

localidade do contexto de cena.

Dessa maneira, a normaliza•‹o do olhar Ž refutada. Pois o ilusionismo

referencial confude aquilo que v com aquilo que Ž realizado, mostrado, resumindo,

assim, o acontecido ao visto. Omite a interatividade que fudamenta a representa•‹o,

interatividade esta que n‹o existe s— na proposi•‹o de imagens para alguŽm, mas no

fato que a pr—pria representa•‹o prop›e imagens para alguŽm a partir de si mesma. Os

atos em cena duplicam atos extracena. O audit—rio, a fun•‹o recep•‹o, n‹o Ž um dado

exterior ˆ realiza•‹o. Esse olhar avaliador e discriminat—rio perpassa a cena, dando

acabamento ao que se representa. A cena mesma Ž este acompanhamento e co-

construtividade que se desloca em rela•‹o ao que se exibe. A cena Ž o espet‡culo de

sua interatividade.

Diante disso, Ž imprescind’vel perceber a heterogeneidade de n’veis que uma

cena faz irromper em sua performance. Duas pessoas conversando sobre uma mulher

s‹o dois espectadores de uma imagem que se concretiza no decorrer do di‡logo. Eles

est‹o vinculados n‹o somente entre si, mas ˆ figura para a qual remetem suas falas.

Durante a conversa a figura evocada mais e mais se especifica e especifica os

dialogantes. A dialogiza•‹o efetiva os nexos entre as figuras em cena e fora de cena.

A cena medeia a intera•‹o pluralizada em seus v‡rios nexos simult‰neos e extensivos.

A cena n‹o Ž a representa•‹o de algo: n‹o se cancela o meio para fazer irromper outra

ordem de realidade. A cena representa as condi•›es de sua inteligibilidade, de seus

suportes, a desdobrada e simult‰nea exibi•‹o dos homens, da mulher e da audincia

implicada nesta intera•‹o entre assimŽtricas presen•as.

 No caso deste di‡logo, as palavras, em sua brincadeira n‹o designativa, os

trocadilhos, suspendendo toda exclusividade final’stica referencial, conjugam dizercom mostrar. A fala em um espet‡culo adquire um estatuto performativo. Uma fala

que n‹o informa, uma fala que forma a tens‹o entre o que Ž e o que se deseja

atravessa a cena. O pianista pergunta: 'Como ela Ž?' A c‰mera focaliza um espelho. A

 partir deste, seis seqŸncias da mesma mulher em diversos aspectos s‹o projetadas.

Cada uma delas tem seu quadro, sua dan•a, seu cen‡rio vazado, como um devaneio.

Cada quadro comentado. Quadro e legenda correlacionam-se, n‹o se podendo saber se

Ž a palavra que comenta a seqŸncia ou se Ž a seqŸncia que ultrapassa a palavra. Nasucess‹o da mesma/outra mulher, as vozes dos dois amigos parecem ver o que dizem.

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Enquanto falam, n—s assistimos ao filme, s— os escutamos, tomada que est‡ a tela com

a sucess‹o da mulher ora ideal, excitante, t’mida, moderna aculturada, alegre.

Defrontamo-nos com duas perspectivas duplas: a presen•a eloqŸente de quem n‹o

vemos e a presen•a muda de quem dan•a, ambas as perspectivas interpretando-se

mutuamente sem se referir. O di‡logo das personagens amplia-se, prolifera. Outros

di‡logos s‹o vinculados: o di‡logo sem intera•‹o das personagens com a seqŸncia

das mulheres e o di‡logo da comprens‹o dos di‡logos em cena por parte da audincia.

H‡ uma descontinuidade fundamental entre a a•‹o da conversa e o devaneio. Na

conversa dialoga-se, mas o pr—prio bate-papo Ž comicamente a figura•‹o de uma

desconversa. Na seqŸncia de quadros, a dan•a da bailarina ironiza os tipos que s‹o

 propostos pelos amigos. Os amigos mesmo divergem quanto ao ajuste entre a mulher

que eles adjetivam e a mulher efetiva. Ou seja, nem eles conversam, nem a mulher

dan•a. A comicidade comparece aqui como fator de suspens‹o do nexo entre a cena e

sua explica•‹o causal, para que desta forma fique claro e intelig’vel: o que se mostra,

o que coloca em cena diante de n—s s‹o figura•›es que possuem sua raz‹o de ser no

modo mesmo como s‹o dispostas. O fazer Ž a raz‹o do que eu vejo e compreendo. Eu

vejo o que Ž feito adquirindo sentido nessa realiza•‹o.

Retomando: a totalidade da cena possui duas partes distingŸ’veis - di‡logo e

dan•a. O di‡logo aqui n‹o Ž prepara•‹o, aperitivo para a parte performativa. Ambas

s‹o partes, desempenhos configurados em fun•‹o de interatividade. S‹o duas

maneiras de mostrar a mesma e diversificada produ•‹o de nexos. Eis o 'segredo' da

continuidade deste musical: radicaliza-se a descontinuidade mesma de obras

dram‡tico-musicais atravŽs da homologia entre desempenhos diferenciados,

englobados pela duplica•‹o das rela•›es entre cena e platŽia. Perspectivas que

atualizam os nexos recepcionais constituem-se como orienta•‹o da cena, efetiva•‹o

de uma continuidade n‹o do enredo,e sim da intera•‹o representada. A continuidadese faz atravŽs de atos descont’nuos que constr—em o presente de cena como presen•a

efetiva do audit—rio. Isso s— pode ser visto se demonstramos:

1- a complexidade dos atos personativos;

2-a variedade de n’veis de referncia de uma cena;

3- o acabamento recepcional do espet‡culo;

4- a representa•‹o em sua totalidade como horizonte de integra•‹o de atos e

suportes representacionais.

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O musical tem um papel basilar em quest›es representacionais. Quando h‡ a

can•‹o, deixa-se de promover nexos para se fundir pœblico e espet‡culo? S— se

imagina quando a performance configura-se atrativamente como nas partes n‹o

musicais? Se for assim, temos a mera invers‹o de valora•‹o (antes as partes

 performativas eram as mais solicitadas. Depois de sua convencionalidade, vivemos o

dom’nio da prosa f’lmica) resolveria a quest‹o. Como podemos observar, n‹o se trata

de uma ÔessnciaÕ da diferen•a dessas partes, mas sim no modo como se realiza a

integra•‹o dram‡tica. A intera•‹o e configura•‹o das partes n‹o s‹o quest›es

meramente formais, decididas sem a considera•‹o de outros par‰metros que os

realizacionais. N‹o h‡ um circuito fechado entre composi•‹o e realiza•‹o.

A amplitude do espet‡culo dram‡tico-musical situa-se na amplitude de seu

 processo criativo. O mistŽrio da produ•‹o da continuidade aponta para uma poŽtica da

recep•‹o. Continuidade para quem? Para a tela, n‹o h‡ continuidade, mas atos

descont’nuos que convergem para orientar o tempo e a experincia de um audit—rio.

Para quem v, a continuidade Ž produzida pouco a pouco, Ž uma tendncia. O car‡ter

assimŽtrico, diversificante, heterogneo, descont’nuo do que Ž proposto para o

espectador Ž que vai constituindo algo que n‹o existia e passa agora a existir - a

continuidade. Quando a can•›es se tornam mais importantes que as outras partes,

quando os clichs abundam e a redund‰ncia impera, a quest‹o n‹o Ž tanto de

continuidade, mas de simplifica•‹o, de elimina•‹o do descont’nuo. Estruturas em

anticlimax desenvolvem e devolvem o ritmo de representa•‹o.

Contra uma ditatura de efeitos e recursos unificantes, o musical vale-se de um

logos  heterodoxo, no qual falas, can•›es e dan•as reivindicam que haja a

representa•‹o significativa de algo que se integre no limite de sua express‹o. Neste

limite, o diz’vel, o enunci‡vel n‹o Ž propriedade particular da fala. Movimentos,

luzes, sons, gestos, cores s‹o referncias que invalidam a normaliza•‹o do que semostra.

Dois homens conversam sobre uma mulher. O que ela Ž? Ao fim da cena, eles

 pr—prios est‹o no mesmo quadro que projetava as v‡rias faces de Eva. Quanto mais a

atividade representacional Ž desempenhada e configurada nesse desempenho, mais os

distintos n’veis se efetivam e contracenam. A dialogiza•‹o generalizada contextualiza

a metaforiza•‹o realizada. O musical faz interagir n’veis representacionais diversos e

concomitantes com performances variadas de modo promover a contextualiza•‹o doque mostra. O heterodoxo viabiliza a comprees‹o. A coreografia da palavra ou o

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corpo eloquente que dan•a exibemm a perten•a de cada diferen•a ˆ integratividade

que os especifica. Nessa cena, das falas aos quadrod, a pluralidade de perspectivas e

meios impulsiona nexos e v’nculos bem caracteriz‡veis.

Tudo com muito humor. A comicidade presente em  An American in Paris Ž

mais que um expediente de roteiro. Mais que piada, o humor aqui Ž sempre uma

interpreta•‹o de seu contexto de cena, sobrepondo fato e interpreta•‹o.

Ainda mais que a comicidade faculta-nos uma antil’rica, evitando a

indiferencia•‹o afetiva do espet‡culo. A comicidade distingue emo•›es representadas,

ao produzir o intervalo entre as respostas emocionais das personagens e o coment‡rio

mesmo destas respostas.

Com isso, o humor Ž perspectivador: intensifica a multiplanaridade de n’veis

do espet‡culo, a faticidade ficcional do que se exibe. A partir desse intervalo sempre

retomado por novas interven•›es c™micas ou paracoment‡rios, desenvolve-se uma

semiose ilimitada atravŽs da qual uma referncia atribui uma revis‹o de contexto para

outra, e assim indefinidamente. Dessa maneira, na medida em que h‡ a sucess‹o de

cenas e a sucess‹o da comicidade, nenhuma referncia Ž absoluta, mas remete-se ao

contexto de reapropria•‹o que a sobredetermina. A comicidade vai orientando a

recep•‹o para estruturas de longo alcance do espet‡culo. Logo, a comicidade revela a

ficcionalidade mesma do que se encena, a materialidade da representa•‹o.

Quando os trs artistas se encontram, fechando a primeira parte de

apresenta•‹o, eles contracenam em uma brincadeira musical satirizando a valsa. O

aspecto did‡tico Ž salientando, enfatizando a paidŽia referencial do humor. Como

depois ser‡ utilizado na cena com as crian•as - quando Jerry Mulligan ensina ingls

 para elas - humor e didatismo estabelecem a participa•‹o das personagens em um

evento dentro do evento onde interagem. Eles se excedem, v‹o alŽm de umreconhecimento, de um aperto de m‹os. Eles cantam uma valsa, falam da valsa na

can•‹o, dan•am o estere—tipo da valsa, performam e parodiam homens e mulheres

que valsam, valsam com os que est‹o em volta deles - o audit—rio sempre presente.

A valsa, pois, j‡ n‹o Ž a valsa, diante de tantas utiliza•›es e desfigura•›es. A

varia•‹o da aplicabilidade da valsa tudo envolve e todos participam. A cena Ž

constitu’da por varia•›es em torno da valsa. Assim como antes perguntaram o que Ž

uma mulher, agora interrogam, dan•ando, o que Ž uma valsa. S— se pode saberfazendo. A performance Ž uma compreens‹o efetivada na intera•‹o entre a meta de

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conhecer e os part’cipes. Mas a intera•‹o suplanta a meta, e o espet‡culo Ž a exibi•‹o

dessa supera•‹o. Espetacular Ž este novo saber, atual, impresso no decorrer da

contracena•‹o. Os agentes dram‡ticos performam a inteligibilidade de nexos que se

ampliam, diversificam e se contextualizam.

O saber advŽm do envolvimento, do v’nculo. Brincar com algo Ž promover o

deslocamento da coisa para situa•›es espec’ficas, Ž retirar a coisa de sua invari‰ncia

genŽrica. Esse manuseio atento ao que se joga retoma a vig’lia atenta da platŽia em

rela•‹o ˆ tela. Fazendo varia•›es sobre a valsa para os que est‹o em cena, dan•ando

uma valsa com essa platŽia, vincula-se o desempenho com o ato de participar, paidŽia

modelar para quem est‡ fora de cena. O que se mostra adquire sua volumŽtrica e

ampla dimens‹o atravŽs dos nexos exibidos e performados. O humor devolve-nos o

horizonte variacional da coisa. O espet‡culo, diversificando o que mostra, conecta a

audincia com o mundo representado. O que era previamente dado ou existente

transforma-se pelo que Ž atualmente exibido.

Qual Ž a matŽria disso que vemos ent‹o se a todo instante o musical exerce

uma ininterrupta atividade de descontinuidade, a comicidade diversifica qualquer

const‰ncia referencial, a representa•‹o revela-se em seus suportes participativos e os

contextos de cena n‹o se reduzem ao seu tema ou esquema narrativo ?

O n‹o factual  n‹o necessariamente Ž o  sem realidade. O espec’fico realismo

de An American in Paris exige que se considere isso, que se reconsidere as exigncias

de continuidade. O realismo de sua representa•‹o Ž o objetivo do que se exibe.

A partir da segunda metade do filme, nos reveses do caso entre Jerry Mulligan

e Lise Bouvier, Ž que podemos compreender melhor este realismo dram‡tico-musical.

Jerry, feliz com seu encontro de logo mais a noite com Lise, vai para o quarto

do ranzinza e ocupado pianista. AlguŽm feliz com ser amor procura expressar seussentimentos para alguŽm determinado a continuar a ensaiar seu concerto. Na mesma

cena, a assimetria entre os part’cipes. Perpectivas divergentes efetivam o acontecer da

cena. Jerry n‹o s— tem de mostrar sua felicidade como tambŽm fazer que Adam

 participe dela.

A cena, pois, Ž um debate, uma disputa de performances, um duelo entre a

insistncia de Jerry Mullygan e a resistncia de Adam Cook. E duela-se. Ou seja,

Adam participa, mesmo que resistindo, e sua nega•‹o vai perfazendo umassentimento. Sua recusa em interagir, seus atos antirepresentacionais s‹o integrados

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ao espet‡culo, s‹o o espet‡culo mesmo exibindo-se atŽ sem seus limites. As can•›es

ao piano e as dan•as ocupam o heterogneo espa•o desse debate. A cena Ž a figura•‹o

de uma intera•‹o ˆ avessas. Adam toca piano para o outro dan•ar, Ž ele quem faz as

rŽplicas sarc‡stivas para as falas apaixonadas e nem tanto de Jerry. A ambivalncia

est‡ tambŽm no que ama, divertindo-se com seus sentimentos, realizando-sos

caricaturalmente. O apaixonado feliz vira um bobo, par—dia mesmo da

emocionalidade dos musicais.

Para alŽm da simples oposi•‹o entre o alegre e o rabugento, modelos de

 participa•‹o ou n‹o em eventos, a afetividade do contexto de cena Ž desprovida de seu

magnetismo e afeta•‹o. A transforma•‹o dos sentimentos em espet‡culo passa pela

correla•‹o entre modalidades de intera•‹o e atos personativos.

Um apaixonado que brinca com suas emo•›es e um amigo que reluta, mas

acompanha o show do colega inserem a atratividade da performance em um contexto

n‹o reduzido a unificar-se em prol de uma patŽtica marca•‹o afetiva. O entrechoque

de perspectivas enfatiza uma reciprocidade que desloca do centro da representa•‹o a

manuten•‹o e celebra•‹o de um  pathos extremo. Do deslumbramento com o amor

 passamos para o deslumbramento com a fic•‹o realizada em cena, com o desempenho

de nexos.

Um perigo ronda o musical: o gradualismo, a cont’nua passagem de um

contexto de cena est‡vel para um menos naturalizado.

 An American in Paris estrutura-se como um pr—logo ao ballet   final,

 pantomima que recupera as tens›es entre a realiza•‹o ou n‹o do amor de Jerry

Mulligan (hom—logo do devaneio de Adam Cook com sua orquestra particular, como

 platŽia dele mesmo). Jerry, em seu del’rio crom‡tico passando pelo impressionismo

de Tolouse Lautrec, se v submetido ˆ busca de sua amada por entre tipos, amea•as,Žpocas, fic•›es dentro de fic•›es, frente ˆ fonte dos apaixonados da abertura do filme.

Os dezessete minutos do ballet   seriam um estranho cl’max do filme. Sua

extens‹o modifica todas as dura•›es e expectativas atŽ aqui produzidas.

Misto ent‹o de climax e anticlimax do espet‡culo, este ballet   fant‡stico Ž a

interpreta•‹o e radicaliza•‹o de tudo que o filme realizou, com as mesmas e mais

intensas estratŽgias c™micas e did‡ticas. A sobreposi•‹o de momentos, ritmos,

agentes, materiais Ž um problema a resolver para qualquer ideal de continuidade. Ofilme Ž rasgado nesse ballet , jorrando em profus‹o met‡foras dentro de met‡foras, um

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movimento de vertigem que em grande parte abate qualquer tentativa de se unificar o

que se mostra a cada momento tanto com a seqŸncia posterior quanto com a parte

anterior do filme. Somos arremessados completamente em outro mundo onde suas

dimens›es se alteram drasticamente a cada passo de Jerry Mulligan. O espet‡cuo

toma conta do sonhador, ultrapassando marca•›es e referncia atŽ aqui produzidas. O

americano est‡ em Paris, numa Paris ao mesmo tempo perigosa e atrativa, um jogo

onde irresistivelmente nos entregamos sem metas e programas.

Este filme dentro do filme, del’rio multisensorial a partir de um desenho,

vindo ap—s uma festa em preto e branco, coloca em quest‹o a articula•‹o entre as

 partes de uma obra dram‡tico-musical, a unidade mesma de um espet‡culo

audiovisual. A integra•‹o dram‡tica exige uma flexibilidade que n‹o se defina em

termos de convencionalidade dram‡tica. O ballet  final de An American in Paris apela

 para a comprens‹o dos limites e possibilidades de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o

de fi•›es audiovisuais. Uma obra dram‡tico-musical parece sempre estar rondando os

limites de express‹o e inteligibilidade.

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17- DRAMATURGIA, COLABORA‚ÌO E APRENDIZAGEM: UM

ENCONTRO COM HUGO RODAS

O que motiva as considera•›es que aqui se seguem encontra-se no fato de a

organiza•‹o desses dois semin‡rios sobre o teatro no Distrito Federal tenha partido da

iniciativa de professor e aluno do Departamento de Artes Cnicas da UnB. Mais que o

 ponto de origem, quero fazer notar o v’nculo entre a produ•‹o cnica brasiliense e a

academia. Como se sabe, o Departamento de Artes Cnicas foi constitu’do a partir da

incorpora•‹o de artistas da cidade e o espa•o acadmico convida e abriga as diversas

manifesta•›es teatrais da cidade para refletir sobre sua hist—ria e seus problemas.

Tal v’nculo, no entanto, n‹o se faz sem interferncias, sobreposi•›es e

confronta•›es. J‡ de longa data as rela•›es entre arte e academia s‹o problem‡ticas e,

em Bras’lia, uma espec’fica faceta dessas rela•›es ser‡ bem evidenciada: ao mesmo

tempo em que tempo h‡ uma produ•‹o cnica cada vez mais diversificada e em ritmo

de profissionaliza•‹o, temos uma solidifica•‹o do curso superior em Artes Cnicas,

com espa•o f’sico renovado, maior qualifica•‹o de seus docentes e abertura de p—s-

gradua•‹o na ‡rea. Um paradigma que une realiza•‹o com pesquisa se apresenta

como horizonte convergente de pr‡ticas e estŽticas teatrais. Eis, pois, o artista

 pesquisador.

Dentro dessa espec’fica faceta, onde as coisas se tornam mais claras e

mensur‡veis, estere—tipos e ressentimentos sem fundamento carecem de continuidade.

O tr‰nsito de professores-artistas nas manifesta•›es teatrais da cidade tem assegurado

uma circula•‹o e mœtua apropria•‹o de referncias as quais favorecem, mesmo que

muitas vezes imperceptivelmente, movimentos paralelos entre as variadas pr‡ticas

teatrais em Bras’lia. De fato, os campos de interse•‹o n‹o s‹o do tamanho das figuras

que se aproximam. Mas Ž fundamental perceber que antinomias estreitas outotalmente excludentes entre as diversas manifesta•›es teatrais na cidade s‹o casos de

dif’cil identifica•‹o. Na verdade, todo mundo em algum momento trabalha ou j‡

trabalhou com todo mundo e, com isso, mesmo que n‹o se conhe•a os pontos do

encadeamento, j‡ se est‡ dentro dele. ƒ uma estranha ordem de assimila•‹o,

fortalecimento e sobrevivncia do fazer teatral em Bras’lia, uma tradi•‹o que se

articula, se enriquece e se mantŽm atravŽs das transforma•›es em uma situa•‹o de

constante contato.

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Para expandir esse argumento ou mesmo refut‡-lo, pe•o permiss‹o de contar

uma hist—ria, ou refletir sobre o encontro que venho tendo com Hugo Rodas. Creio

que ninguŽm mais que ele para exemplificar esse perfil de transforma•‹o em contato. 

Sua presen•a em Bras’lia tem ajudado a definir trajet—rias de atua•‹o e produ•‹o do

 pr—prio teatro na cidade. Uma hist—ria do teatro em Bras’lia passa por Hugo Rodas

n‹o somente como homenagem ˆ sua pessoa como tambŽm por meio da compreens‹o

de sua ‡gil presen•a, capaz de exibir caracter’sticas e orienta•›es que se tornaram

comuns a outros artistas.

Parece que nele e a partir dele, motiva•›es plurais do fazer art’stico

encontraram um ponto de partida e uma pauta de realiza•›es. Contradi•›es, excessos,

extremos de um lado e racionalidade, percep•‹o e aprendizagem de outro, um rol de

intui•›es que demanda uma atenta observa•‹o Ð tudo signos de uma deliberada

 persegui•‹o por algo maior e melhor Ð comp›em uma imagem ampla e estimulante

que Hugo Rodas tem delineado n‹o s— para si. E Ž sobre essa imagem ampla e

estimulante que quero me deter como forma de contribuir para a discuss‹o sobre as

estŽticas teatrais em Bras’lia e tambŽm como uma homenagem.

Antes, um pouco de conhecimento sobre o parceiro menos ilustre desse

encontro - eu. Com a aposentadoria em massa de docentes universit‡rios em 1994,

tivemos na Universidade de Bras’lia umas poucas vagas de reposi•‹o em 1995,

atreladas ˆ abertura dos cursos noturnos. Foi nesse per’odo que entrei no

Departamento de Artes Cnicas, vindo das letras, uma estranha presen•a digna de

desconfian•a por quem j‡ h‡ algum tempo trabalhava na ‡rea. Logo percebi que meu

 papel era b‡sico para forma•‹o dos profissionais em Artes Cnicas: desenvolver a

intera•‹o com textos. Havia sempre uma dificuldade com a leitura das obras

dram‡ticas, dificuldade essa em grande parte por haver uma massiva metodologia

adaptada da leitura de obras liter‡rias. Com ferramentas da literatura, o acesso ˆcarpintaria teatral, ao processo criativo implicado nos textos, era bloqueado. Dentro

de um sŽculo (sŽculo XX) onde foram geradas posi•›es antag™nicas e confusas entre

texto e espet‡culo, o curso de ÔLiteratura dram‡ticaÕ poderia funcionar como

reprodu•‹o dos bloqueios de leitura ou reprodu•‹o de posturas unilaterais.

Como me iniciava dentro dessas quest›es, resolvi partir de algumas posturas

que se tornaram pressupostos importantes para que a reprodu•‹o de tais bloqueios n‹o

fosse efetivada. Inicialmente, fiz quest‹o de privilegiar a bibliografia prim‡ria emrela•‹o ˆ secund‡ria. TragŽdias gregas, Shakespeare, Brecht possuem uma tradi•‹o de

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leitura e interpreta•‹o que, muitas vezes, sobrep›e-se aos pr—prios textos. Os manuais

e as historiografias repetem incansavelmente determinadas avalia•›es que alcan•am

 status de verdade, substituindo a intera•‹o mesma com as obras. Desse modo, ler

torna-se ratificar o j‡ lido, ou o pior, as generaliza•›es de corredor e boteco. Ao

contr‡rio, o incentivo ao contato direto com a p‡gina e todas as dificuldades inerentes

a este contato foram determinantes tanto para minha maior aproxima•‹o com a

enormidade de obras do repert—rio da tradi•‹o teatral, quanto para o aprimoramento

da percep•‹o estŽtica dos alunos frente a estes textos. Ao invŽs de perpetuar

estere—tipos sobre obras e autores ou informa•›es cronol—gicas e biogr‡ficas, houve o

enfrentamento das dificuldades de leitura de textos sobrecarregados de interpreta•›es.

Pois, quanto mais um texto cronologicamente se afastava do momento presente do

leitor, mais um processo de idealiza•‹o das obras se estabelecia, mais e mais a leitura

dissolvia-se em abstra•›es e acumula•‹o de nomes e datas. Tudo que escapasse ˆ

atualidade do leitor era normalizado nas brumas de valores absolutos e inef‡veis.

Preso a um presentismo intermitente, este leitor sonegava qualquer altera•‹o da

invari‰ncia que atribu’a para as obras do passado. E o passado continuava passado e

inacess’vel dentro desta clausura do sujeito ensimesmado. Enfim, o ato de leitura era a

confirma•‹o do sujeito em sua esfera de atua•‹o. Assim agindo, o leitor n‹o se

corrigia, n‹o apreendia realidades alŽm da que j‡ possu’a.

Por isso, logo me pareceu uma estratŽgia b‡sica para as aulas de Ôliteratura

dram‡ticaÕ essa desconstru•‹o da pretensa homogeneidade do ato da leitura, essa

seguran•a do leitor acostumado a repetir esquemas e informa•›es. Pois, na verdade,

de posse desses esquemas, n‹o ele precisava ler. Era um leitor sem leitura, t‹o virtual

quanto seu conhecimento das obras ˆs quais ele se referia246.

Pensando sem refletir, s‹o tantos textos, tantos procedimentos nesses textos

que a melhor maneira de n‹o enfrentar a multiplicidade de tarefas impl’citas nessasobras Ž emoldur‡-las na eternidade, no vazio dos estere—tipos.

Houve muita resistncia em rela•‹o a isso. Quando as pessoas tiveram de ler e

analisar as obras, interagir com os textos, a coisa foi ficando dif’cil. A maior

reclama•‹o era a necessidade de contexto, de idŽias que gerassem e notabilizassem os

textos. Nesse momento, compreendi uma estranha tendncia no campo das Artes

Cnicas: a carncia por uma legitimidade pr—pria, a necessidade de uma legitimidade

246 Sobre a subjetividade do ato da leitura, ver segunda parte deste livro.

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 bastarda, vinda de outro lugar, de outra tradi•‹o de pensamento. De um lado vinham

 bravatas contra toda e qualquer forma de justificativa intelectual do que realizavam.

De outro, a compuls‹o por suprir a baixa estima intelectual com apressada

apropria•‹o de mŽtodos e concep•›es de outras disciplinas. O pr—prio curso

repercutira isso ao ser organizado em uma dicotomia entre matŽrias pr‡ticas e outras

te—ricas.

Ent‹o sempre era preciso enfiar algum ismo na hora de discorrer sobre os

textos, como forma de tornar palat‡vel o enfrentamento da p‡gina impressa.

O vocabul‡rio mesmo dos alunos (de fato, vocabul‡rio que possu’am, que

reproduziam...) era eivado de Ôser teatralÕ, ÔessnciaÕ, toda uma cultura

 pseudofilos—fica e informal que precisava sempre engrandecer o que era feito. E a

 paix‹o por essa cultura e pelo contexto e pelas idŽias era tanta que nem tinham tempo

de ler o texto do dia... E essncia Ž coisa de perfume!

Assim, era muitas vezes um aborrecimento para alguns detectar determinadas

marcas, distin•›es, padr›es que o texto apresentava. A divis‹o das partes da obra,

suas diferen•as e interrelacionamentos, afirmativas e contextos de cena, imagens que

retornavam, metareferncias, descontinuidade, continuidade, montagem, constru•‹o

de personagens por contracena•‹o, enfim, muitos procedimentos tomavam o tempo

dos encontros em sala e o tempo da minha vida fora da sala de aula.

Pois era brutal: logo que entrei tinha de lecionar nas manh‹s teatro grego e

moderno e, ˆ noite, SŽculo de ouro espanhol e Shakespeare. Primeira dificuldade: as

tradu•›es. AlŽm de velhas, elas repousavam sobre uma concep•‹o monumentalizante

desses textos. Quando mais antigo, mais cl‡ssico, e mais o vocabul‡rio utilizado era

artificial, parnasiano, impedindo que se vislumbrasse a din‰mica cnica desses textos.

Ora, se esses textos que tenho em m‹os s‹o os melhores, os modelos, os cl‡ssicos, e

eu n‹o entendendo nada, e n‹o servem para ser performados, mas apenas lidos, ent‹ose refor•a o fosso entre o meu presente e o passado, entre texto e cena, fato j‡

encontrado na subjetividade da leitura que reproduz estere—tipos. Realmente era

dif’cil querer mostrar a qualidade dos textos a partir dos textos mesmos, a partir de

tradu•›es que enfatizavam os estere—tipos contra os quais uma melhor intera•‹o da

leitura poderia superar.

Ao mesmo tempo, a pr‡tica de lidar com textos de v‡rias Žpocas e estabelecer

as conex›es entre esses textos foi de fundamental import‰ncia para ultrapassar aminha posi•‹o em sala de aula como um leitor privilegiado, a 'autoridade' sobre as

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obras. Pois a integra•‹o dos textos na tradi•‹o teatral, preconizando a incessante

apropria•‹o e transforma•‹o de procedimentos e realiza•›es, descentrou a pr‡tica de

leitura de uma dimens‹o meramente constatativa, descritiva, ao mesmo tempo em que

atacou os estere—tipos de interpreta•‹o relacionados com as produ•›es mais pr—ximas

do tempo do leitor.

Dentro de um eixo de tempo mais flu’do, o leitor atua tanto sobre sua Žpoca

quanto sobre o passado, ao reconhecer as limita•›es mesmas de sua atividade

cognitiva. E com isso o ato de leitura e o conhecimento adquirido com esse ato n‹o se

restringem ao manuseio de textos: Ž uma atividade interpretativa, uma habilidade

utilizada em outras situa•›es que a leitura.

Essa dimens‹o mais ampla da leitura defrontava-se com os h‡bitos discentes.

Ao ler, havia a premente necessidade de indexar outra coisa ao lido, seja informa•›es

genŽricas, seja idŽias profundas legitimadoras do escrito. A estratŽgia mais comum

era ler para explicar o texto a partir de temas. Todo texto seria a atualiza•‹o desses

temas fixos, uma repeti•‹o de conteœdos que transcendem tempo e lugar. E era assim

que se lia os textos: para encontrar os temas, os conteœdos e discutir esses temas e

conteœdos. O teatro era pr‡ isso, para apresentar e provocar a discuss‹o desses temas.

Ent‹o, discutir esses temas em aula era como fazer j‡ teatro. N‹o havia diferen•a.

Todo mundo quer discutir, todo mundo quer falar. Essa seria a fun•‹o do teatro:

apresentar idŽias profundas sobre as coisas, uma percep•‹o melhor e mais autntica

da realidade.

As pessoas passam a vida sem conhecer a verdade. Da’ vem alguŽm e diz pra

elas como as coisas s‹o. E tudo melhora. Ser‡ que melhora mesmo ?

Era incr’vel como certas concep•›es de leitura e certas posturas andavam

 juntas. Estere—tipos de comportamento duplicavam estere—tipos de pensamento. O

teatro como uma utopia sem restri•›es, como um outro lugar alŽm deste, umatranscendncia vazia ao mesmo tempo  fascinante Ð  pois produzia uma liberta•‹o e

uma energia incontrol‡veis - e frustrante, j‡ que precisava se renovar constantemente

 pela elimina•‹o de todas os empecilhos e dificuldades, essa concep•‹o nivelava todos

os atos, impedia qualquer continuidade e conex‹o alŽm do gozo imediato.

A p‡gina, sempre ela, ali diante de seus olhos, era um testemunho real e

intranspon’vel de algo outro irredut’vel a essa l—gica de nega•‹o e autosuficincia.

A voz de alguŽm que n‹o Ž voc, as muitas vozes que escapam a violncia deuma œnica voz. As palavras que n‹o s‹o suas, dispostas de um modo que n‹o Ž o seu.

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Mas sempre era preciso explicar, enquanto o mais necess‡rio era tentar ouvir,

mostrar na obra n‹o o feito, mas o fazer. Mesmo atŽ que venha alguŽm e diga que o

que voc diz sobre um texto Ž o texto mesmo, Ž o meu texto e n‹o existe nada alŽm

disso...

Com o passar do tempo, o cont’nuo contato com os textos dram‡ticos foram

me impulsionando a diversificar minhas atividades. Inicialmente, escrevi sobre as

obras lidas em sala de aula247. Em sincronia com isso passei a escrever textos

teatrais248. Essa natureza desdobrada entre o analista e o criador muitas vezes n‹o era

t‹o desdobrada assim. Nos primeiros textos havia muito do pensador, do literato, do

escritor e n‹o do dramaturgo a servi•o da cena. ƒ um ran•o que carrego, uma certa

rela•‹o com a palavra, com a habilidade em v-la fora de uma comunica•‹o cotidiana,

de seu prolongado uso informativo. Pois, desde meu trabalho como poeta, o que me

cativava era a tentativa de dominar,violentar, conhecer a l’ngua, e n‹o dizer coisas.

Pegar a l’ngua e revira-la, descobrindo diferenciados modos de me valer dela era para

mim uma maneira de n‹o chegar ˆ œltima palavra, ˆ palavra definitiva, que me faria

calar, que tornaria inœtil a minha presen•a. Mas minha atividade de descobrir e

violentar a l’ngua n‹o se movia na dire•‹o da atomiza•‹o da palavra, de sua

desconstru•‹o, como no Concretismo. Meu alvo era o dito, a frase, a senten•a, um

sentido de constru•‹o colocado em primeiro plano frente ao referente das palavras.

Em meu caso, a escritura teatral veio corrigir meu percurso de esteta de escombros

anticomunicacionais.

O primeiro texto meu encenado foi O filho da costureira, um poema

dram‡tico encomendado pelo ent‹o aluno William Ferreira para seu projeto de

diploma•‹o. Apenas escrevi o texto. Discuti o texto com o William uma vez s—.

O processo criativo do William era bem pessoal e experimental. Ele vinha de

uma tradi•‹o mais corporal, e o manuseio com a palavra, principalmente uma palavraem situa•‹o extrema como a do texto, foi um grande desafio, no que se refere ˆ op•‹o

ou n‹o de se prover alguma inteligibilidade para a cena, j‡ que o texto determinava-se

247  Reuni estes textos no livro  A imagina•‹o dram‡ticaBras’lia, Texto&imagem,1998.

248  Reuni parte desses textos teatrais no livro  A idade daTerra, Bras’lia, Texto&Imagem, 1997. Reuni todos os textos textosteatrais que atŽ ent‹o escrevi no livro ainda inŽdito  A tr‡gica

virtude. Hoje todos est‹o disponibilizados no sitewww.marcusmota.com.br.

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em um hermetismo poŽtico. Para mim que apenas escrevi, entre a sŽrie impactante de

imagens produzidas pela performance de William Ferreira, ficou a cena real de um

homem na platŽia o qual, em um dos dias de apresenta•‹o da pe•a, n‹o parava de

chorar. E a sensa•‹o de ouvir e ver as palavras alŽm do papel tendo um efeito sobre

alguŽm, eu ali, n‹o s— como espectador, mas como observador, me impulsionou a

escrever mais e mais, febrilmente. Eu queria aprender aquilo, queria saber mais sobre

essa experincia.

E, em menos de um ano havia escrito 12 textos curtos para a cena, o que junto

com alguns textos poŽticos, constituiu meu primeiro livro publicado, A idade da terra.

Logo depois, junto com alunos que formavam o grupo Quinta Cnicas ( Guto ,

Suail, Magno, Cristiane, Cl‡udia, Let’cia, Marcelo), come•amos a fazer uma pesquisa

sobre comicidade no cinema norte-americano dos anos 20-30.

Assistimos e analisamos filmes de Buster Keaton, Chaplin, Gordo e o Magro,

H. Loyd, entre outros, e, ap—s as discuss›es sobre cenas e personagens, fui escrevendo

o roteiro tendo em mente os atores espec’ficos para cada papel. Depois do roteiro

 pronto, a profa. Br’gida Miranda orientou e desenvolveu a encena•‹o e interpreta•‹o

 junto com os alunos. Algumas vezes fui aos ensaios, mas procurava n‹o me

 posicionar como o guardi‹o das palavras escritas. Mas tambŽm n‹o tinha muito o que

fazer sen‹o confirmar ou n‹o algumas solu•›es de cena. O espet‡culo  Aluga-se

estreou no anfiteatro 09 na UnB, depois foi para o interior de S‹o Paulo e retornou a

Bras’lia e se apresentou em v‡rios lugares. A melhor apresenta•‹o e a que me

entusiasmou como autor foi a durante um congresso de Psicodramistas na sala Villa

Lobos. Fazer aquela imensa sala rir foi uma das maiores alegrias que tive.

 Neste ’nterim, comecei a ter maior contato com Hugo Rodas. Fui como

expectador a v‡rias de suas obras. Ele foi ver a pe•a Aluga-se logo em um dia ruim e

n‹o gostou. A sua rea•‹o e coment‡rio foram breves. Na minha cabe•a ficou essareprova•‹o. Ele nem gastou muito tempo falando do que achou ser uma bobagem.

Realmente, estava ruim nesse dia, uma comŽdia sem for•a. Quando da viagem para o

interior de S‹o Paulo, eu havia feito uma lista de sugest›es que tenho atŽ hoje escrita.

Eram coisas que eu tinha dito, mas sem muita autoridade.

Ap—s as rea•›es negativas, a Br’gida mexeu justamente em grande parte

daqueles pontos da lista. E a pe•a ficou —tima. Bom para os que viram.

Essas coisas foram ficando em minha cabe•a, essa sensa•‹o de que o trabalhoda escritura era uma pequena parte de algo maior, mas que, por minha disposi•‹o ou

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’ndole, eu me abstinha de avan•ar, de sair dessa pequena parte. Eu percebia

interpreta•›es e atos que tornavam improdutivo o processo de encena•‹o. Entretanto

resistia, preferia a c™moda situa•‹o de n‹o interferir mais veemente no estava sendo

realizado, a n‹o ser quando era solicitado. Na verdade, o que eu tinha era um modelo

da imagem do escritor em minha mente, aquela imagem da isolada criatura aferrada

ao seu trabalho solit‡rio. E a sa’da desse gabinete me dava uma sensa•‹o de perda, de

esvaziamento de minha presen•a. O que me era aborrecido estava na tal da repeti•‹o,

na infind‡vel atividade de sempre fazer as mesmas coisas sempre outra vez. Isso para

mim era o fim249. Eu calculava em silncio que, com o tempo investido nos ensaios,

 para cada ensaio, eu escreveria tantas e tantas p‡ginas. Eu idealmente me colocava no

in’cio e no fim do processo criativo Ð no roteiro e na apresenta•‹o. E, suspenso entre

essas duas margens, nem conseguia obter maior rendimento dos textos que escrevia,

nem nos espet‡culos que eram realizados. Pois essa suspens‹o n‹o conseguia dar um

senso de perten•a ˆquilo tudo.

Este confuso e hesitante autor com o passar do tempo foi sendo solicitado a

 participar mais veementemente do fazer teatral. Com a proximidade do centen‡rio de

nascimento de Federico Garcia Lorca (1898-1936), tanto Hugo Rodas quanto eu nos

envolvemos em atividade paralelas de homenagem ao dramaturgo espanhol. Entre

meados de 1997 e in’cio de 1998 eu traduzi para a Editora UnB as pe•as A Casa de

 Bernalda Alba, Yerma e  Assim que Passarem Cinco Anos e conferncias de Garcia

Lorca, bem como textos curtos dele, pouco conhecidos. O texto de Yerma foi

utilizado em projeto de Diploma•‹o de Gisele Santos, a qual se tornou minha

assistente de tradu•‹o. Hugo Rodas valeu-se de minha tradu•‹o de  Assim que

 passarem cinco anos para turma de Interpreta•‹o 04 de 1998.

Essa intensa atividade de tradu•‹o, alŽm da Les‹o por esfor•o repetitivo

(Dort) em minha m‹o direita, me mostrou que uma das melhores maneiras de seaprender dramaturgia Ž traduzir textos teatrais. Eu j‡ lidava com textos

demasiadamente ÔdespragmatizadosÕ em sala de aula, com suas marcas performativas

quase que eliminadas, e a tradu•‹o me possibilitou o acesso a procedimentos

dramatœrgicos mais espec’ficos. Ainda mais que eu tinha a oportunidade de ver

encenados os textos traduzidos.

249 Anos depois, perguntei ao Hugo se ele n‹o se cansava da repeti•‹o nosensaios(em l’ngua francesa, ÔensaioÕ Ž ÔrepetitionÕ. Ele me respondeu: ÒN‹o me canso.Isso Ž meu trabalho. Estou trabalhando.Ó

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AlŽm dos procedimentos, comecei a identificar uma coisa que faltava em

minha escritura para cena: f™lego. Meus textos eram pequenos, intensos, breves,

refugiados e ilhados apenas na palavra e na minha determina•‹o antiga de encontrar

um universo referencial outro que o mundo em meu derredor. Com as tradu•›es, pude

ver largas estruturas que ultrapassavam a ocorrncia do agora, do momento imediato

de sua elocu•‹o.

Ainda, Lorca era um poeta que se tornou dramaturgo. Possu’a um arsenal de

 procedimentos liter‡rios, de manipula•‹o da palavra. Sua poesia apropriava-se de

 procedimentos de desorienta•‹o do leitor atravŽs da met‡fora de met‡fora250. Esse

afastamento da normalidade comunicativa, esse hermetismo era atravessado pela

musicalidade, pela defini•‹o aural de seu verso. Desde suas pe•as de maturidade essa

luta entre o poeta e o dramaturgo se fez presente. Odramaturgo em Lorca corrigiu o

seqŸestro do poeta das garras do festim in—cuo dos vanguardismos. Tanto que  Assim

que passarem cinco anos Ž uma par—dia do pr—prio Lorca como d‰ndi e artif’cio.

Ent‹o Lorca me fazia aproximar de Hugo Rodas, o mesmo Lorca que tanto foi

determinante para a paix‹o mesma de Hugo pelo teatro, e pelo teatro universit‡rio,

visto que Lorca, como se sabe, havia fundado um grupo, La Barraca, que percorria a

Espanha representando cl‡ssicos e pe•as modernas251.

Para um espet‡culo- homenagem a Lorca no Espa•o Cultural Renato Russo,na

508 sul, Hugo convocou v‡rias pessoas, incluindo a mim. O grupo era enorme e

confuso. Havia muita indefini•‹o e intempestividade. Ao mesmo tempo, os trabalhos

de tradu•‹o precisavam ser conclu’dos a tempo para publica•‹o pela editora UnB,

 publica•‹o que saiu apenas em 2000. Mas saiu. Com o natural esvaziamento de minha

 presen•a, aquela primeira parceira entre mim e Hugo n‹o foi algo muito satisfat—rio.

ÒN‹o confio nos te—ricos, n‹o confio!Ó foi o que ele me disse com seus olhos em

mim. Eu n‹o tinha tempo para explicar e nem queria. Mas o som de sua voz e a vis‹odele dizendo o que ele me disse continuaram em mim, lentamente, profundamente.

250  Para este t—pico, v. textos de Lorca como ÒA imagem poŽtica de Dom Luis G™ngoraÓ em Conferncias (Editora UnB,2001) e o livro Estrutura da L’rica Moderna de H. Friedrich ( DuasCidades, 1978).

251 Para mais detalhes, v. Biografia de Garcia Lorca, de IanGibson ( Globo, 1989).

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Se algo nos trouxe t‹o pr—ximos e ao mesmo tempo t‹o separados, Ž porque

havia uma raz‹o, uma raz‹o que em 1998 n‹o entendi, mas que n‹o deixou de me

solicitar. Eu queria n‹o desistir daquilo, queria que ele n‹o desistisse de mim.

Com a necessidade premente de parar de dar aulas e estudar mais detidamente

um problema espec’fico de dramaturgia, entrei no doutorado. Com as tradu•›es de

Lorca, ficou claro para mim que, tanto como autor, quanto como ensa’sta precisava

urgentemente me reciclar, confrontar processos criativos mais espec’ficos. Ent‹o fui

estudar ƒsquilo e o teatro grego. Dramaturgia musical. E descobri e entendi muita

coisa e o escopo de minha compreens‹o da cena se expandiu vertiginosamente252.

Sem o compromisso das aulas, consegui adquirir um saber que era uma habilidade, e

n‹o uma prescincia.

Durante o doutorado, envolvido com as pesquisas e com os gastos com

compras de livros, tive uma pe•a minha encenada no CCBB,  Docenovembro, em

2001.

Foi uma vergonha para mim, pois como n‹o participei de nada, tive de me

contentar de ver um resultado n‹o muito satisfat—rio, resultado este que poderia ter

sido outro se eu de alguma forma tivesse participado do processo criativo.

Escrever e n‹o proporcionar uma m’nima contribui•‹o com o escrito isso era

vergonhoso. Quanto mais eu conhecia dramaturgia, mais incorporava outras

dimens›es que o ato da escrita. E esse caso da pe•a foi emblem‡tico.

Enfim ap—s o doutorado, durante o qual fiquei trs anos sem escrever um

œnico texto dram‡tico, fui convidado pelas alunas formandas, Andrea Araœjo, Knia

Dias e L’via Fraz‹o253, para junto, com Hugo Rodas, orient‡-las no projeto de

diploma•‹o, e ainda por cima o texto escolhido era meu,  Idades. Lola. Esta dupla

orienta•‹o me reunia novamente com o Hugo Rodas e me dava a oportunidade de

 participar mais detidamente pela primeira vez de um processo criativo para cena.Mas, de in’cio, os papŽis eram bem definidos, em fun•‹o das exigncias do

 projeto de diploma•‹o. Era pressuposto que minha colabora•‹o estava mais alinhada ˆ

orienta•‹o da monografia final e que o trabalho de orienta•‹o da interpreta•‹o ficaria

252 A tese de doutorado foi defendida do Departamento deHist—ria da UnB em 2002, com o t’tulo ÔA dramaturgia musical deƒsquilo: investiga•›es sobre composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o defic•›es audiovisuais.Õ

253 Com participa•‹o especial de Alex Souza.

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a cargo do Hugo. Esta divis‹o mesma, esta necessidade de dois orientadores para uma

mesma e global atividade, encerrava as dif’ceis rela•›es entre arte e academia.

Mas, ao mesmo tempo, por meio das pr—prias exigncias e distin•›es do

 projeto de diploma•‹o, tal divis‹o era confrontada com sua integra•‹o, na medida em

que os dois orientadores estavam ali,sempre presentes. Bastava uma mudan•a de

atitude para que as coisas se tornassem mais produtivas.

Ao mesmo tempo, havia os resqu’cios das comemora•›es em torno de Lorca.

Pois eu era alguŽm agora desconfi‡vel e ainda mais um te—rico titulado!!!

Minha maior preocupa•‹o era reverter esse julgamento. A minha repetida

situa•‹o c™moda de autor acabou por ser tornar inconfort‡vel.

Eu percebi o inc™modo causado pela escolha de um texto meu. Era um texto

antigo РIdades. Lola. Escrito antes das preocupa•›es com maior f™lego e qualidade.

Eu nem me lembrava mais dele. J‡ n‹o era autor, mas um leitor.

Acho que o Hugo naquele primeiro momento n‹o apreciava muito fazer um

texto meu. Digo isso porque eu esperava dele alguma aprova•‹o, algum elogio.

Afinal eu achava que era preciso isso, gostar mais explicitamente do texto para

o realizar. Mas, diante de mim, diante um outro professor, sua postura ,Come•amos a

discutir o texto. E eu comecei a falar do texto, de como ele foi escrito. Hugo me

interrompeu, e disse que nesse primeiro momento isso n‹o era importante. O autor

 precisava morrer, pensei. E foi me dando aquela vontade louca de voltar para o

computador, de ficar escrevendo , pois era s— o que eu sabia fazer. Por dentro eu me

 perguntava o que estava fazendo ali. Ent‹o todos foram falando e falando sobre o

texto. E diziam coisas que n‹o faziam muito sentido e especulavam, associavam tudo

com tudo e eu me via me encolhendo dentro mim, buscando uma sa’da para longe

dali. Mas insisti. N‹o iria desistir. N‹o iria repetir erros do passado. Respirei melhor e

fui observando como Hugo conduzia o ensaio e, dessa observa•‹o, fui procurandoentender o que estava acontecendo, o que ele fazia.

Ent‹o fui entendendo que essa primeira etapa de contato com o texto, apesar

de sua aparente informalidade e caos, possu’a uma l—gica. AtravŽs de est’mulos, de

impulsos, de tentativas, de propostas e revis›es de propostas, o Hugo ia constituindo

uma sŽrie de aproxima•›es com o imagin‡rio implicado no texto. Hugo se valia de

referncias as mais d’spares poss’veis, das mais variadas fontes, do sublime ao

grotesco, para poder oferecer linhas de orienta•‹o para o padr‹o estŽtico da pe•a e dainterpreta•‹o dos personagens. Tudo vinha ˆ cena - sons, rostos, figuras,

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 personalidades, filmes, can•›es. Esse exerc’cio da mem—ria, essa mem—ria para

imaginar e fisicizar era perturbadora porque sobrepunha uma enormidade de dados

que logo e logo mais iam sendo substitu’dos por outros.

Isso exigia demais dos intŽrpretes, pois, nas novas solicita•›es, substitui•›es,

era preciso ver n‹o s— o que era alterado e sim o que ia permanecendo.

Ent‹o, valendo-se de mœltiplas referncias para se aproximar do imagin‡rio da

 pe•a e da constru•‹o dos personagens, Hugo exigia demais dos intŽrpretes,

transformando-se tanto em motivador quanto alvo de nega•‹o. A condu•‹o do

 processo criativo era desenvolvida a partir de uma cont’nua atividade sobre a inŽrcia

dos intŽrpretes, suas tendncias de encontrarem respostas e a•›es imediatas ou

reprodutivas. ÒIsso n‹o Ž teatroÓ dizia quando algo era feito dentro dessas tendncias.

Ou ÔDas theaterÕ quando havia a ultrapassagem das seguran•as, dos apoios, das

comodidades.

Realmente, a figura excessiva de Hugo, sua condu•‹o intensa e

multireferencial, muitas vezes desorientava os intŽrpretes. Diante da constitui•‹o de

algo, de algo ainda em devir e por vir, da criatividade exposta e em expans‹o,

realmente muitas vezes algumas afirmativas mais veementes causavam desconforto.

Mas, dentro do contexto, do amplo contexto do que estava sendo realizado, dessa

 busca sem concess›es do melhor, da qualidade do movimento, das a•›es tudo

encontrava seu porqu. Pois, em virtude do processo criativo, da realiza•‹o do

espet‡culo, tudo era comissionado, tudo era levado em conta, tudo era preciso para se

encontrar o que se procurava.

Algo que inicialmente me perturbou e que em seguida tornou-se fascinante foi

a atua•‹o mesma de Hugo diante da dificuldade do intŽrprete. Um fator de

fundamental import‰ncia para a condu•‹o operada por Hugo reside no fato que ele Ž

um grande ator, vers‡til na voz, nos movimentos e na m‡scara. Ao incluir em suacondu•‹o desempenhos dos papŽis , ele explicita certos tra•os que procura extrair,

tornar claro para os intŽrpretes, coisa que muitas vezes verbalmente n‹o se consegue

atingir. Assim, o intŽrprete tanto verbal quanto performativamente Ž disponibilizado a

se integrar totalmente no processo criativo. Em outras situa•›es, Hugo n‹o somente

 performava o papel, como parodiava alguns desempenhos dos intŽrpretes. E, em um

 primeiro momento, poderia alguŽm pensar em deboche. Mas para quem estava

sintonizado com o que estava sendo realizado ali, essa par—dia n‹o era para diminuir oator, pois detinha-se justamente n‹o no papel mas na atitude do ator em sobrepor, ao

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seu trabalho, as suas resistncias, ou repetidos subterfœgios ou atos j‡ visados em

coment‡rios anteriores.

Estes dois œltimos pontos muitas vezes n‹o ficavam claros nem para mim nem

 para os intŽrpretes. Mas, com o cotidiano dos ensaios, pude constatar que

determinados julgamentos sobre esse tipo de condu•‹o n‹o eram v‡lidos. Na boataria

de corredor, a qual estamos t‹o acostumados que julgamos natural e n‹o intervimos

criticamente, em alguns momentos ouvi certos coment‡rios desabonadores quanto a

uma poss’vel condu•‹o desp—tica ou cruel de Hugo Rodas. N‹o sei de antes, n‹o sei o

que houve, n‹o sei se ele mudou ou se todos aprendemos. Sei apenas, pelo que

 presenciei, que, em prol da qualidade do processo criativo e mesmo de sua

efetividade, certos esfor•os precisam ser feitos, e, dentro de um ambiente de

forma•‹o, de aprendizagem, justamente o medo de errar, o medo de se expor, o

mentalismo cnico, o excesso de nega•‹o existente produzem tantos obst‡culos,

tantas inibi•›es que resta apenas a proporcional a•‹o contra esses obst‡culos. Ao fim,

e isto Ž um grande segredo, toda a exorbit‰ncia presen•a de Hugo nos ensaios Ž uma

doa•‹o, uma rara oportunidade de encontro com uma doa•‹o, ato para qual se

formulam raz›es e julgamentos sem que muitas vezes seja interrogado o que Ž

 possibilitado nesse impressivo ofertar.

Durante a caosmese inicial, onde se inaugura o processo criativo e o universo

imaginativo da pe•a Ž conhecido por meio de intermitentes aproxima•›es, muito

tempo Ž utilizado nas cenas iniciais. Muitos e muitos ensaios n‹o ultrapassam os

limites das primeiras p‡ginas do texto. Confesso que diante dessa situa•‹o eu me

exasperava. Sob a press‹o institucional de prazos, n‹o prosseguir, n‹o avan•ar

 produzia uma certa sensa•‹o de desperd’cio e inutilidade, principalmente para quem

achava, como eu, que poderia resolver coisas apenas no papel. Mas justamente essa

demora, essa dificuldade de ir adiante Ž que ia criando um outro tempo, o tempo noqual se circunscreviam outros marcos, outras necessidades, outras disposi•›es frente

ao ritmo habitual de nossas vidas. Impor um outro ritmo ao que j‡ carregamos,

fundamentar um ritmo atravŽs da compreens‹o e decorrentes descobertas daquilo que

est‡ sendo vendo, era uma atividade basilar na condu•‹o do Hugo. N‹o se trata de

 promulgar um outro mundo, um outro tempo m’stico, mas de proporcionar uma certa

continuidade de atos e atitudes cada vez mais comprometidas com o processo criativo

que ali estava sendo desenvolvido e que precisava da participa•‹o ativa de todos osenvolvidos. Ao tempo do mundo, vai surgindo cada dia o tempo do trabalho, o

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trabalho impondo seus ritmos de manipula•‹o dos instrumentos para produzir coisas

de se ver e ouvir.

Dentro desse tempo detido e melhor direcionado para os ritmos do trabalho,

um procedimento que me chamou a aten•‹o foi o de o Hugo solicitar que os

intŽrpretes lessem o texto para ele. A partir desse texto lido, orienta•›es e comandos

eram proferidos. Para um professor de texto como eu, esse era um procedimento que

me instigava. Ao contr‡rio de Hugo, eu lia bastante o texto e ia para a sala de aula e

comentava e orientava sua compreens‹o. Ës vezes eu achava que ele pedia para que

alguŽm lesse porque ele n‹o tinha lido ou teria esquecido. Coisas de autor iniciante.

Depois fui observando com mais precis‹o esse procedimento. O que era pedido ao

intŽrprete Ž que ele apresentasse o texto, como numa audi•‹o, e, a partir das pr—prias

 palavras ditas, a partir do desempenho do intŽrprete, as orienta•›es eram colocadas. A

leitura de sala e a leitura de cena eram coisas diversas, seguindo mŽtodos diferentes,

 porque tm objetivos dissimilares. Essa leitura do 'papel' era uma exposi•‹o de

material a ser trabalhado pela experincia e senso de atualidade cnica de Hugo

Rodas. A integra•‹o do texto lido nas amplas dimens›es de seu desempenho

desencadeava uma sŽrie de comandos e exerc’cios que refiguravam, desfiguravam e

configuravam o que fora dito. A forma•‹o de musicista que Hugo possu’a favorecia

esse tipo de escuta para a representa•‹o. N‹o se trata apenas de uma intui•‹o

 privilegiada, de uma natureza extraordin‡ria sem ra’zes. O extraordin‡rio nisso

 justamente Ž o uso da escuta, do ouvir mais que o som, mais que o dito, mais que a

l’ngua. Do ouvir para ver, para o concretizar . Mesmo que Hugo Rodas seja muito

conhecido por suas habilidades visuais, essa dimens‹o aural Ž determinante e pouco

comentada. As propriedades do som, que reverbera, localiza e Ž mixado, creio s‹o

habilmente coordenadas na percep•‹o dos horizontes de atua•‹o e constru•‹o do

espet‡culo a partir do texto lido em voz alta. Ao certo, temos a conjun•‹o dehabilidades sonoras e visuais, uma audiovisualidade que se determina em fun•‹o das

implica•›es do trabalho de sua concretiza•‹o.

Com isso, Hugo Rodas dentro do processo criativo vale-se tanto de

 procedimentos amplos, que vinculam contextos imediatos de cena ˆ totalidade do

espet‡culo, quanto de adi•›es, de detalhes significativos inseridos na obra.

Trabalhando nos detalhes ao mesmo tempo em que na amplitude, Hugo vai

 proporcionado uma mem—ria que prossegue e se efetiva a partir de renovados atos de

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conserva•‹o e mudan•a, evitando que dispersos pontos sem tratamento ou revis‹o

deixem de ser considerados e enfrentados.

Posteriormente, tivemos a etapa de se erguer o espet‡culo, montar todas as

cenas atŽ chegarmos a um certo todo, uma totalidade que seria objeto de novas

incurs›es depois. Nessa etapa, eu comecei a ser mais solicitado a opinar.

Lembro que as pr—prias intŽrpretes algumas vezes manifestaram o desconforto

com minha presen•a. A raz‹o apontada era o fato de eu ser o autor. Mas para mim era

outra coisa. Eu ainda n‹o estava integrado ao processo, nem possu’a tradi•‹o nisso. A

minha estranha posi•‹o de nem condutor nem intŽrprete desenvolveu um espa•o

indefinido dentro dos ensaios. Mesmo com minha maior participa•‹o, ainda eu era o

terceiro espa•o. Com o prosseguir do processo criativo, mais contribui•›es eram

incorporadas. Diante dessa transversalidade, o meu terceiro espa•o foi incrementando

a pluralidade dos atos envolvidos no processo criativo254.

Durante essa etapa, Hugo comentou comigo sobre as deficincias do texto:

 poucas situa•›es de intera•‹o entre os personagens, falas longas e autocentradas e seu

inacabamento. De fato, era um texto meu mais antigo, elaborado durante os febris e

intempestivos descarregos de experincias imaginativas no papel. Tinha uma

apressada macroestrutura atravŽs da qual um dado universo ficcional se direciona para

sua desestabiliza•‹o. Sempre tive avers‹o a escrever como se anotasse a banalidade

dos atos cotidianos. Todas as defesas da banalidade do cotidiano que eu lia

repercutiam um contexto europeu de rea•‹o ˆ queda de grandes valores e ideais. Eu

n‹o vivia na Europa, apesar de conhecer mais dramaturgia europŽia que brasileira. A

 pe•a Idades.Lola era um conjunto de trs cenas de uma vidinha interiorana, altamente

estilizadas em sua express‹o. A minha avers‹o ao retratismo me impediu de ter maior

f™lego, maior extens‹o de desenvolvimento de situa•›es. Entre o hermetismo e o

reconhecimento parcial das referncias a pe•a se debatia. Mas, mesmo assim, produzia certas falas, certas cenas belas, na beleza de um dizer constru’do e triste,

triste porque incompleto. Mas nunca uma ru’na. Assim, minha postura impedia o

avan•o do material que eu tinha em m‹os. Para tanto, Hugo solicitou que eu

escrevesse mais para um momento de embate entre os personagens.

254  Na ficha tŽcnica do espet‡culo  Idades. Lola temos: figurino/cen‡rio -

Hugo Rodas e elenco; confec•‹o perucas Ð Guto Viscardi; ilumina•‹o -Marcelo Augusto; programa•‹o. Visual - Emir Godinho.

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Tal solicita•‹o de escrever mais para um texto em processo de realiza•‹o, tal

necessidade de escrever foi algo muito confortante. Acho que atŽ me recompensava

 pelo que havia feito, pelo que havia deixado de fazer. Ali mesmo, em cena, enquanto

ensaiavam, peguei o papel e escrevi. Frente ˆ pronta solicita•‹o, a imediata resposta,

como se Hugo tivesse me pedido algo como intŽrprete, e assim o era.

 Na distribui•‹o dos papŽis, Hugo havia optado por dar oportunidades iguais

 para os intŽrpretes. Achei isso fundamental, mesmo que durante a apresenta•‹o

causasse uma certa desorienta•‹o ver a mesma personagem central Ð Lola Ð sendo

 performada por trs atrizes bem diferentes. Foi fundamental esta op•‹o, pois me

esclareceu um ponto b‡sico hoje para mim ao escrever textos teatrais: voc escreve

 para pessoas que v‹o atuar e voc deve levar isso em considera•‹o, o tempo dessas

 pessoas em cena, as cenas em que elas contracenam e as cenas em que est‹o s—s.

Oportunidades iguais levam voc a pensar que tudo que voc mostra Ž avaliado e

voc deve levar em conta isso.

 N‹o que se crie uma democracia, uma simetria quantitativa na distribui•‹o.

Mas as personagens precisam ser consideradas no tempo de sua apresenta•‹o e

 julgamento, concretizando uma realidade de avalia•‹o que formata a obra, como eu

havia estudado nas tragŽdias gregas.

Ao mesmo tempo, essa distribui•‹o acarretava a necessidade de contracena•‹o

dos intŽrpretes n‹o entre si, mas com o modelo, com a figura da personagem Lola,

 para que fosse reconhecido minimamente que se tratava dessa figura. Assim, tornou-

se premente orientar os desempenhos para essa nfase na mœtua perten•a ˆ uma figura

compartilhada. Essa sincroniza•‹o de referncias creio foi o maior desafio

interpretativo da pe•a, gerando nfase em outras atividades que a constru•‹o

veross’mil do papel.

 Nos trabalhos que as intŽrpretes escreveram como requisito para o projetodiploma•‹o, havia uma luta conceptual entre mŽtodos de interpreta•‹o realistas e n‹o

realistas. Uma (Andrea) optou por discutir para alŽm da oposi•‹o e a outras duas

valeram-se e descri•›es n‹o representacionais, como mŽtodo Laban ou colagem.

Estava em xeque a necessidade de haver (se Ž que alguma vez existiu) uma defini•‹o

homognea da interpreta•‹o do espet‡culo, correlato atuacional da idŽia de

homogeneidade da representa•‹o, paradigma dos artistotelismos em todas as suas

modalidades de manifesta•‹o. Hugo Rodas valia-se de mŽtodos e de procedimentosde v‡rias defini•›es, muitos deles atŽ excludentes, tudo em fun•‹o das exigncias do

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 processo criativo. A œnica coisa que ele frisava bem Ž que n‹o queria que o intŽrprete

estivesse ÔrepresentandoÕ, o que pode ser compreendido como uma postura de n‹o

aderncia ao trabalho realizado em cena.

 Nesse momento, dois procedimentos foram sendo mais empregados: o da

c‰mara lenta e o da coreografia. Este œltimo veio em decorrncia do jogo entre atores

e personagens, mas generalizou-se como padr‹o. A coreografia afigurou-se mais que

mera marca•‹o de gestos ou movimentos e posturas. A espec’fica rela•‹o entre

 palavra e movimento dentro do espet‡culo reivindicou a prevalncia de atos mais

autoreferenciais, que expusessem para a platŽia a orienta•‹o construtiva da cena.

Assim, desde os primeiros contatos com o texto, o objetivo foi sempre ampliar o

escopo da presen•a do ator, sua densidade. A constitui•‹o das figuras individuais era

revertida para a elabora•‹o de outras referncias e atos cont’guos. O intŽrprete era

confrontado com seus mecanismos de defesa durante a realiza•‹o de seu trabalho ao

mesmo tempo em que o enfrentamento desses mecanismos tornava mais

compreens’vel para ele as tŽcnicas e os procedimentos utilizados neste trabalho. Cada

vez mais a condu•‹o se propunha a interrogar a personagem, os atos de viabiliza•‹o

da cena e n‹o mais o indiv’duo ator. A coreografia se manifestava como momento

decorrente dessa maior conscincia da cena, de sua constitui•‹o. Pois a compreens‹o

de simult‰neos atos espec’ficos ora para o primeiro plano do intŽrprete, ora para

segundos planos estabelecia uma clara correspondncia entre desempenho e

entendimento. O incremento da percep•‹o art’stica, atravŽs do enfrentamento dos

 bloqueios existenciais e tŽcnicos, atingia uma dimens‹o mais integral nos

desempenhos mutuamente dependentes, situados e temporalizados. Para ouvir e ver

esta mœsica, somente possuindo o ganho da desconstru•‹o anterior.

 Na verdade o que chamamos de 'coreografia' pode ser entendido como

Ôafina•‹o em performanceÕ. Fazer soar juntos os diversos, reuni-los, Ž uma opera•‹ocomplexa, cujo efeito n‹o explica sua realiza•‹o. A simples motiva•‹o de a tudo

coreografar pode se converter em um esteticismo abstrato e sem fundamento. Pelos

corredores Ð novamente os corredores Ð ouvia-se que uma das marcas do estilo de

Hugo Rodas residia nas marcas coreografadas. Mas, pelo que entendi e presenciei, a

coreografia aqui n‹o Ž um molde, uma meta que anula, uniformiza tudo em prol de

sua aplica•‹o. A produ•‹o de um tipo de l—gica de exibi•‹o, no qual os intŽrpretes

sobrecarregam-se de atos alŽm do refor•o de uma continuidade de primeiro plano,demanda tanto controle e compreens‹o do que se faz que n‹o se pode definir a priori.

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  S"S

Pois essa marca•‹o multiplanar vem justamente dos materiais empregados, dos

intŽrpretes e do espa•o de cena e do universo ficcional. A resistncia que esses

materiais exp›em frente ˆs marcas n‹o Ž eliminado durante a atividade de

composi•‹o. A composi•‹o e sele•‹o do padr‹o estŽtico do espet‡culo articulam essa

resistncia, essa impossibilidade de fluxo dos materiais com sua elabora•‹o.

Logo, a marca n‹o Ž algo em si, como uma entidade. E a marca da marca, essa

marca em segundo, grau, como met‡fora de met‡fora, Ž o ganho da inteligibilidade

mesma do que se est‡ fazendo, do trabalho do intŽrprete. A coreografia Ž a exposi•‹o

mesma da compreens‹o dos padr›es estŽticos, Ž a composi•‹o mostrada e revelada, Ž

a metaferncia, a caixa preta. A eficincia dos atos coreogr‡ficos reside nesse

desempenho dos suportes cognitivos. Enfim, mostrar Ž mostrar-se, compreender para

se fazer compreender, irrup•‹o das raz›es e dos porqus.

Assim, a capacidade do intŽrprete de n‹o vincular imediatamente a palavra a

a•‹o, e, ent‹o, investigar este intervalo, descobrir novos nexos e v’nculos para seus

atos e, dentro desse esfor•o, diferenciar e ampliar sua express‹o foram momentos

encadeados rumo a uma compreens‹o ampliada da densidade de sua presen•a em

cena. Dessa maneira, todo aquele impulso, seja excessivo, seja desprovido de

relev‰ncia e ‰nimo, vai dando lugar a um empenho de saber manipular a intensidade e

foco de sua atua•‹o. Sendo trs intŽrpretes no revezamento de um mesmo e diverso

 papel, essa manipula•‹o da atua•‹o, essa marca•‹o multiplanar exibia para os agentes

e para o pœblico o entendimento e a apropria•‹o da cena.

A c‰mera lenta foi um procedimento conseqŸente dentro desse trabalho de

incremento da percep•‹o estŽtica. Exerc’cios que intervinham no tempo do

desempenho completavam os que modificavam sua intensidade. Possibilitar aos

intŽrpretes a sobrextens‹o de sua atua•‹o, para que acompanhem, observem e sintam

seus atos, medindo-os no arco de seus fins e in’cios, capacita-os a aproveitar a energiade uns para viabilizar outros. Desobrigar-se da pressa de encerrar logo as a•›es ou

ainda, pior, deter-se em apoios de descanso entre os atos, transformou-se em um

exaustivo trabalho. Pois h‡ sempre a recusa da suspens‹o, do entre-mundos, da

demora. E ap—s tantas solicita•›es de renovadas tentativas de se ritmar os

movimentos, essa recusa ascende muitas vezes ˆ uma nega•‹o mais febril e passional.

Mas esse tempo, esse outro tempo que n‹o o dos rel—gios, o tempo do qual n‹o tenho

sen‹o lembran•a, pois se afasta de mim, esse tempo Ž o tempo de uma conquista, dasabedoria dessa conquista.

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  S"V

Hugo enfaticamente denunciava o que ele chama de Ôponto mortoÕ como

tempo nenhum, sem expressividade que surgia durante os procedimentos de c‰mera

lenta e a coreografia. Como essa conquista produz uma certa continuidade em cena, a

continuidade constru’da pela compreens‹o e manipula•‹o dos atos e dos tempos dos

atos muitas vezes n‹o est‡ bem determinada. Entre um ato e outro tempo, esses

instantes de n‹o resolu•‹o, hesita•‹o, n‹o delineamento ou trabalho. Pois a platŽia

acompanha a continuidade dos atos, e a continuidade dos atos que mutuamente se

reenviam. E ela tambŽm percebe e v os momentos em que esse esfor•o encontrou

seus dep—sitos de entulho, os tempos n‹o exercitados ou amadurecidos. E a condu•‹o

de Hugo procura alertar os intŽrpretes para a compreens‹o desses obst‡culos e

resistncias, para que, por seu enfrentamento, a amplitude de todo o desempenho

alcance uma melhor efic‡cia.

Ap—s o levantar do espet‡culo, com o espet‡culo em suas m‹os, Hugo

 procedeu a intervir diretamente nos momentos n‹o resolvidos da obra e nos pontos

 potencialmente perigosos como passagens, coreografias, can•›es, contracena•›es,

tŽrminos de se•›es. Para tanto, ele passava sem interrup•‹o o espet‡culo, anotando no

 papel v‡rias observa•›es que mais tarde, ao fim do ensaio, eram apresentadas e

debatidas.

Este procedimento registrei bem em minha mente, pois, depois em outro

espet‡culo que juntos orientamos, eu, logo do in’cio do ensaios, fiz uns coment‡rios

que n‹o se relacionavam com o momento do processo criativo. Para cada etapa desse

 processo h‡ um tipo de procedimento, de observa•‹o, de coment‡rio, de exigncia. De

in’cio, n‹o havia necessidade dos figurinos e objetos de cena. Ap—s a introdu•‹o

destes, era imprescind’vel sua utiliza•‹o. De in’cio, o texto era discutido e lido. Sem

seguida, n‹o mais. Os intŽrpretes deviam j‡ trabalhar a partir de decis›es criativas

realizadas. No caso das anota•›es de Hugo, justamente nas semanas que antecediam a

 primeira apresenta•‹o, eis a folha de papel, o texto em suas m‹os...

Algumas vezes eram renovadas solicita•›es a respeitos de atos que

aparentemente n‹o iriam encontrar melhor rendimento nem na estrŽia. Outros

coment‡rios eram modifica•›es, acrŽscimos e elimina•›es de atos. Quanto mais se

aproximava o tempo da exibi•‹o para o pœblico ainda a composi•‹o da obra era

desenvolvida.

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E o que me conquistou definitivamente foi na noite de vŽspera da primeira

apresenta•‹o, o Hugo, aquele senhor de 62 anos, aquele menino fabulador, sem

camisa, meio irritado e apreensivo na sala Saltimbancos, martelando tachinhas,

ajustando figurinos, instruindo o iluminador, falando em suas v‡rias l’nguas, rindo e

xingando atŽ tarde da noite.

E eu estive ali com ele e com todo mundo, e as apresenta•›es foram muito

 boas e como eu aprendi255.

E tenho aprendido. No mesmo ano orientamos juntos  As partes todas de um

benef’cio, um musical que escrevi solicitado por alunos que participaram da pe•a

 Aluga-se. Este musical inaugurou o teatro do Complexo das Artes, apresentado entre

8 e 11de Fevereiro de 2003.

Em julho de 2003 Hugo e eu orientamos a tragŽdia musical Salve o prazer, de

Zeno Wilde,  e estivemos juntos em outro texto meu, Salada para trs256   . Uma

an‡lise do processo criativo desses œltimos espet‡culos nos daria oportunidade para

outras hist—rias.

Em todo caso, eu gostaria de deixar meu agradecimento e homenagem a Hugo

Rodas em forma dessa reflex‹o-depoimento. Todo o seu trabalho em prol de um

teatro de qualidade, de um teatro universit‡rio criativo e atuante tem impulsionado e

deslumbrado pessoas dos mais variados campos e atividades. Entre tantas dificuldades

e carncias e falta de apoio, o intermitente furor realizacional de Hugo Rodas pode

nos ajudar a focar no que Ž importante, no que devemos almejar. Pois se para ele essa

longevidade art’stica tem sido t‹o saud‡vel, para os que pensam na hist—ria do teatro

tal produtividade Ž renovadora e atrativa.

255  As œnicas cinco apresenta•›es da pe•a foram entre 4 e 8 de setembro de2002.

256 Estreou no mesmo teatro do Complexo das Artes em 2003. Trabalhei comHugo em montagens de Quem tem medo de Viginia Wolf, de Albe, em Navalha naCarne, de Pl’nio Marcos, em 2006. Com o impulso de sua fant‡stica figura, comecei adesenvolver,a partir de 2004, um trabalho de dire•‹o, produ•‹o e composi•‹o deDramas Musicais, em um projeto interart’stico îpera Estœdio, resultando namontagem de Bodas de F’garo, de Mozart, em 2004; Carmen, de Bizet, e O Telefone,de Menotti, ambas em 2005; Cavalleria Rusticana, de Mascani, O Empres‡rio, deMozart, e Saul ,a minha parceria com Guilherme Girotto, todas em 2006. E Calib‹,

 parceria com Ricardo Nakamura, em 2007. Como se v, muitas de minhas posturas etemores prŽ-hugo foram posteriores modificadas.

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18- TODOS OS TEATROS DE HUGO RODAS

As obras de Hugo Rodas possuem uma assinatura, um rosto. Depois de assistir

a v‡rias delas e participar de diversos processos criativos com ele, creio que o

mistŽrio de sua pulsante criatividade pode ser compreendido, sem, Ž claro, a supress‹o

de seu impacto e beleza.

Para tanto proponho que se pense em 4 elementos fundamentais que, juntos,

explicitam o qu‹o distinto Hugo Rodas Ž e o qu‹o atrativo ele continua a ser.

A motiva•‹o para uma abordagem mais ensa’stica deste texto advŽm de se

 procurar valer dessa situa•‹o celebrat—ria para propor que se comece mais

incisivamente usufruir pensar Hugo Rodas. Creio que a atra•‹o que suas obras e

 personalidade exercem sobre todos Ž um trabalho que pode bem ser esclarecido, pois

se apresenta organizado e acess’vel, como que nos informando sobre sua pr—pria

realiza•‹o. Por mais elaborados e complexos que se efetivam os jogos cnicos de

Hugo, eles perduram como um convite para sua participa•‹o festiva e decodificadora.

1- A utopia liberadora.

A hist—ria pessoal e art’stica de Hugo Rodas se sobrep›em sob o horizonte

daquilo que depois ficou identificado como contracultura, popularizada sob o

emblema de sexo, drogas e Rock and Roll. Mas a vers‹o uruguaia disso, alŽm de

 pouco discutida,possui diferentes facetas que a brasileira. A rejei•‹o de normas

sociais, o choque de gera•‹o entre pais e filhos teve um car‡ter distinto em cada pa’s.

A busca por liberdade por jovens de cl‡sse mŽdia, essa puls‹o por novasexperincias, impulsionada por livros e representada pelo cinema, encontrou no

Uruguai um espa•o estratŽgico. Em um pa’s com estabilidade econ™mica e social

durante dŽcadas, com uma democracia que somente foi interrompida em 1973, a

 pr‡tica e os efeitos da ruptura foram t‹o intensos, quanto espec’ficos. Pois,

diferentemente de outros pa’ses, como EUA ou Fran•a, n‹o havia um inimigo, um

grande antagonista externo e localizado contra o qual se opor. ƒ na tens‹o entre a

l—gica das fam’lias e o impulso individual que temos um perfil da utopia liberadorauruguaia.

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Desde j‡ o novo, o que se quer como mudan•a, Ž algo que responde a uma

vontade de querer mais, de se conectar ao mundo, de seguir est’mulo a est’mulo e

viver e conhecer mais. Em um pa’s formado por imigrantes, as conquistas sociais e

econ™micas da primeira metade do sŽculo XX, que criaram o mito do Uruguai como a

Sui•a da AmŽrica, possibilitaram a forma•‹o de indiv’duos liberais, livre pensadores,

atualizados, querendo se integrar com e participar de conquistas tŽcnicas e culturais

do mundo. A ideia Ž que move, n‹o um Vietn‹. Trata-se de uma utopia que n‹o Ž

atropelada pelos fatos. O inc™modo, a insatisfa•‹o Ž impulsionada dentro de

condi•›es favor‡veis para o pleno desenvolvimento dos indiv’duos. Por que quanto

mais se tem, mais se quer; quanto mais se sabe, mais se quer saber.

Essa espiral ascencional, essa escalada move o sujeito do conhecido para o

desconhecido. A ruptura ent‹o n‹o Ž uma completa nega•‹o do passado, do que j‡ se

Ž.Antes, Ž uma decorrncia. Pois foi justamente esse passado, essa base que proveu as

condi•›es da mudan•a. Jovens instru’dos, bem nutridos, bem informados s‹o jovens

capazes de realizar grandes coisas, orgulhosos de si e abertos ao mundo em constante

renova•‹o. O paradoxo Ž apenas aparente - por que mudar se j‡ se tem tudo?

A utopia liberadora que vem da ex-Col™nia de Sacramento motiva-se

 justamente nessa riqueza, nessa abund‰ncia. ƒ uma utopia que se alimenta do excesso.

Quando a economia e a ordem social apresentavam ’ndices satisfat—rios recorrentes, o

acesso a bens culturais e simb—licos estava n‹o s— enra’zado na gera•‹o p—s-grerra

como n‹o foi superado pelo consumo de bens materiais. No lugar de um r‡pido e

instant‰neo crescimento econ™mico que se traduz em uma explos‹o de bens de

consumo, t’pico de emergentes e Ônovos ricosÕ, o Uruguai est‡vel foi palco de uma

vis‹o de futuro: organiza•‹o e institui•›es s—lidas projetam para cada nova gera•‹o a

amplia•‹o e manuten•‹o das conquistas. S— se continua ganhando quando se avan•a.

 N‹o Ž a riqueza do pai que me torna rico.Para Hugo essa utopia liberadora inicialmente se constr—i sob o est’mulo de

leituras: Walt Whitman, Herman Hesse, AndrŽ Gide, entre outros. A ordem era de se

estar conectado a tudo, ler tudo, como Hugo mesmo afirma: ÒVoc n‹o podia se

sentar em uma mesa de bar se voc n‹o tinha lido o œltimo livro, visto a œltima pe•a

de teatro e todos os jornais. voc n‹o se sentava.(...) Ser adolescente em 1957 era ler

tudo. Tudo. Porque, alŽm disso, o teu pai lia tudo, lia o jornal inteiro, todo dia. Lia a

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not’cia de Europa, via a not’cia, via a televis‹o todo mundo estava aparentado com

tudo isso. Era familiar.257Ó

Dez anos depois do momento referido nessa cita•‹o, a utopia liberadora

eclode com toda sua for•a na maior ruptura existencial e art’stica no m’tico ano de

1968. Nas palavras de Hugo: ÒEm 1958 a gente estava disposto a tudo. Por que a’

realmente Ž que est‡ a divis‹o das coias. Em 1963 a gente come•ou na

clandestinidade. Em 1960 come•ou-se a ter conscincia da revolu•‹o. (...) Para mim

revolu•‹o tem a ver com algo assim, na minha cabe•a, n‹o me importam as

defini•›es. Revolu•‹o para mim significa isso: c‰mbio violento, Ž r‡pido. N‹o Ž pelo

voto, n‹o Ž democr‡tico. Abre sua cabe•a e pense o que quiser, mas revolu•‹o para

mim tem esse significado. Vamos nos rebelar contra algo, h‡ uma necessidade maior,

que n‹o Ž pol’tica e Ž pol’tica, a verdadeira. Ent‹o nesse momento estava

absolutamente farto de tudo, porque j‡ vinha de uma maturidade de toda essa lida

louqu’ssima , muito louca, o final dos anos cinquenta e a entrada dos anos

sessenta.(...) Ent‹o, tem que vir uma palavra revolu•‹o. Para ver o que era meu

 pensamento quando eu tinha vinte e oito anos Ð e j‡ tinha dez procurando

desesperamente alguŽm. E a’ apareceu Graciela, que era uma promessa vinda de Nova

York com dan•a contempor‰nea.258Ó

As implica•›es dessa utopia liberadora v‹o se tornar mais claras quando

avan•armos em nossas considera•›es.

2- Conhecimento em contato

A segundo elemento fundamental para compreender Hugo Rodas Ž sua pr‡tica

de conhecimento em contato. Algumas informa•›es antes de prosseguir nossoargumento. Em sua hist—ria art’stica, Hugo participou de diversos tipos de

teatralidade, formais e informais, cotidianas e extracotidianas259: 1-Dos jogos cnicos

com os parentes, 2-encontramos Hugo depois frequentando cinemas, casas de

espet‡culo (teatro,balet,—pera), restaurantes, festas do ano, reproduzindo o que via e

ouvia; 3- em seguida, integrando grupo de cultura popular, com professores de dan•a

257

 SOUZA 2007:XXXVII.258 SOUZA 2007: LII, 53,XLV.259 SOUZA 2007:29-51.

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que se apropriavam movimentos tradicionais, transformando-os esteticamente; 4-

ainda, teatro amador;5-a seguir um passo maior, assumindo as artes cnicas - 10 anos

(1958-1968) de escola de teatro e companhia teatral no Teatro Circular de

MontevidŽu, com aulas formais, projetos de montagem, pesquisas de express‹o,

realizando performances e interven•›es ,happenings  e depois teatro de repert—rio e

teatro profissional, com entrada na companhia; 6- dessa forma•‹o entre a escola e

grupos experimentais, radicaliza sua op•‹o no (re)encontro com a dan•arina Graciela

Figueiroa, e uma pr‡tica h’brida, movimento/dan•a/teatro/tudo, ele com 28 anos,

1968, constituindo com ela uma comunidade que partilhava processos

criativos,vivncias e intimidades, apresentando-se em espa•os pœblicos; 6- ap—s

viagens por Argentina e Chile, Hugo fixa residncia em Bras’lia, em 1975, tendo aqui

trabalhado com artistas de diversas tendncias e formado gera•›es de artistas, desde

de suas oficinas montagens atŽ seu trabalho na Universidade de Bras’lia,iniciado em

1989, na qual se aposentou em 2009, j‡ com o t’tulo doutor pelo reconhecimento de

seu saber, isso sem deixar de estabelecer v’nculos criativos com S‹o Paulo (JosŽ

Celso Martinez Correa e o teatro Oficina, Antonio Abujamra), Rio de Janeiro,

Goi‰nia e Portugal.

Como se v nas resumidas linhas acima h‡ momentos dessa trama que muitos

interessados ou n‹o no teatro poderiam ter passado. Que mudan•a Ž essa de uma

crian•a divertida em um core—grafo? Ou de um costumaz espectador de filmes e

—peras em um premiado diretor, ganhador, entre outros, do prmio Shell em 1996,

mesmo morando fora do eixo Rio-S‹o Paulo, pela dire•‹o de DorotŽia260? Como se

v, h‡ um diferencial, algo que acompanha e distingue uma carreira excepcional. No

caso de Hugo, trata-se de uma habilidade de participar e transformar experincias

interpessoais. Essa habilidade n‹o reside em um estilo œnico de representa•‹o, em

uma estŽtica monol’tica. Aprender a fazer coisas quando se est‡ junto parece ser umdos tra•os de Hugo Rodas, esse tipo de conhecimento em contato.

Para tanto ele se formou passando por diversos modos de produ•‹o art’stica,

assimilando todos, fazendo de tudo. Mesmo que durante algum tempo possa ter se

demorado em uma determinado modo de produ•‹o, sempre esteve aberto ao est’mulo

de possibilidades outras de processos criativos. No lugar de se interrogar em torno de

uma pureza abstrata do que seria ÔarteÕ ou da melhor maneira de realiz‡-la, Hugo

260 Dire•‹o de A DorotŽia, de Nelson Rodrigues, partilhada com Adriano e Fernando Guimar‹es.

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Rodas optou, com todos os riscos, ™nus e alegrias, por se libertar da monomania de se

definir em virtude do que tal obra ou liga•‹o poderia representar. Ele poderia sem

dœvida fazer o mesmo do mesmo e consolidar-se como um guru ou uma franchise. No

lugar disso, preferiu engajar-se cada vez mais em nœmero maior de montagens e

 produ•›es. S‹o impressionantes seus nœmeros: normalmente Hugo Rodas v seu

nome relacionado anualmente a mais de 9 realiza•›es. O imenso volume de trabalhos

nos mais diversos tipos de atua•‹o (dire•‹o, consultoria, cenografia,

figurino,dramaturgia,etc) ultrapassa a capacidade de algum dia um texto ou livro

 poder conter tudo o que Hugo faz.

Durante os ensaios, as cenas se alternam vertiginosamente em mudan•as de

mudan•as, provocando um estado ampliado de insights criativos entre os membros do

 processo. Durante o tempo em que Hugo se encontra junto com os atores a oposi•‹o

entre ensaio e apresenta•‹o Ž derrubada. Ao conviver, ao partilhar, ao estarem

conectados, Hugo e o grupo estabelecem um espa•o de troca e orienta•‹o de

referncias e atos que se efetiva em encontros inesquec’veis e trocas riqu’ssimas. A

complexidade e controle dessas experincias interindiviuais foram se elaborando

durante todas os diversos encontros de Hugo com seus mestres,colegas e estudantes.

H‡ uma certa medea•‹o entre aleartoriedade e precis‹o nisso, como no improviso do

 jazz, como tocar junto, afinar-se, dan•ar com alguŽm. O nœcleo desse horizonte

improvisacional reside no complexo dan•a/mœsica. Os ritmos da tribo/taba e os

movimentos dialogantes de seus coristas parecem ser uma imagem fundamental da

 poŽtica de Hugo Rodas. Mesmo na cena realista mais empedernida desloca-se

diagonalmente o rumor dos pŽs sobre o ch‹o, movendo as dimens›es do tempo e do

espa•o de agora para a tela em que se projetam os cantos imemoriais da ra•a.

Mas isso se torna poss’vel somente porque h‡ uma troca e modifica•‹o de

saberes. Podem haver desequil’brios e flutua•›es nessa situa•‹o, em virtude dos presumidos papŽis que seriam atribu’dos a um e outro part’cipe. ƒ assim que se

formam mal-entendidos e lendas. O medo de errar pode nos fazer projetar no outro

nossas inseguran•as. PorŽm, ninguŽm ficaria tanto tempo no mercado, trabalhando

durante anos com tanta gente e formando artistas de qualidade se n‹o produzisse

algumas hist—rias e traumas. Para cada modalidade de contato, um perfil de atua•‹o.

O que precisa ficar bem colocado Ž que a complexidade de grupos criativos gera seus

efeitos e conhecimento em fun•‹o da totalidade de seus membros. Sempre Hugo vairenovando seus la•os com o grupo, refazendo e propondo novas a•›es durante cada

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 projeto. Essa persistncia e tenacidade Ž ambivalente: pode ser recebida negativa ou

 positivamente. No entanto, Ž um par‰metro para todos: n‹o h‡ uma completa

concord‰ncia entre aquilo se prop›e no in’cio e aquilo que se apresenta ao fim. Os

marcos iniciais e finais s‹o apenas posi•›es de uma experincia que se fortalece sob o

signo de sua mutabilidade. Sabendo as transforma•›es, conhecendo as din‰micas, os

membros integrantes dos processos criativos se apropriam daquilo que

empreenderam.

Hugo ao fim se torna n‹o s— alguŽm com uma vis‹o de mundo inusitada,

religiosa capacidade de transmudar as coisas: o criador Ž um gestor de pessoas e

situa•›es. Ele precisa administrar conflitos,crises,euforias e medos. Ao mesmo tempo,

necessita sensibilizar o grupo para o fazer. E como fazer isso? Conhecimento em

contato significa que arte e pessoa est‹o interligados. ƒ que o aprendizado de uma

tŽcnica espec’fica como forma de resolver problemas expressivos e que espec’ficas

formas de abordagem das quest›es de relacionamento s‹o procedimentos que n‹o se

excluem261. Tendo passado por processos criativos e formas de conv’vio e modos de

 produ•‹o diversos, Hugo pode constatar que cada contato Ž œnico porque manifesta

seu grau de tens‹o e resolu•‹o durante o tempo de seu pulso e irradia•‹o. Ao ter

experimentado formas de conv’vio e cria•‹o t‹o diversos quanto quase antag™nicos,

como de uma companhia teatral e o dos grupos-comunidades experimentais, Hugo

sabe que as situa•›es podem ser combinadas, como casos possiveis, como arranjos de

 possibilidades. Com isso, n‹o se trata de acœmulo de conhecimento, como um estoque

de truques para usar aqui e ali. Antes, o de uma desenvolvida habilidade para

compreender cada acontecimento como constru’do, e, disso, pass’vel de uma

interven•‹o modificadora.

3-Imagina•‹o sonhadoraO terceiro aspecto que bem nos esclarece a criatividade de Hugo Rodas Ž o da

intensidade de uma imagina•‹o sonhadora. Hugo habita o mundo com seus

devaneios constantes, renovados, intermitentes, como um coito sem fim. Essa fus‹o

entre o onirismo e a vida n‹o Ž um emblema escapista. Imaginar n‹o Ž um ato de

261 Segundo Hugo ÒToda minha educa•‹o foi assim. Minha educa•‹o Ž tŽcnicamesmo. As pessoas ensinavam coisas: o que voc vai fazer com o corpo, o que vocvai fazer com a voz. O que voc vai fazer com sua conscincia? Com sua cabe•a, comseu pensameno?Ó (SOUZA 2007: XXXII).

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excepcionalidade fortuita. A qualidade desses sonhos advŽm de muito trabalho e de

uma hist—ria de tantas realiza•›es. Ainda, n‹o Ž o caso de apenas estabelecer rela•›es,

superficiais analogias. Por sua imagina•‹o sonhadora Hugo pensa, sente e faz. Os

objetos,atos e desejos deslumbrados na mente de Hugo possuem dimens›es bem

definidas e encen‡veis. Do menino com a luz do cinema no rosto, vivenciando

lugares,pessoas, sons e tramas da tela, ao artista que avan•a sobre n—s com suas

audiovisuais cria•›es efetiva-se uma longa hist—ria de aprendizagem e excelncia na

fus‹o da matŽria dos sonhos com a materialidade da vida.

A experincia operativa do sonho precisa melhor ser estudada. As obras de

Hugo s‹o documentos dessa disciplina on’rico-realizacional. No senso comum,

multiplicam-se f—rmulas como a de Disney (ÒDreams come TrueÓ) ou da patologia

(sonho=perturba•‹o). Contudo, tais valoriza•›es se baseam em uma marcada ant’tese

entre sonho e realidade, um jogo dicot™mico que de antem‹o celebra a vis‹o de uma

hierarquia, de um elemento da d’ade ser melhor que o outro. No caso de Hugo, a

inf‰ncia solit‡ria de filho œnico n‹o explica o potencial criador de sua imagina•‹o. O

ato imaginativo n‹o se explica por nada: antes Ž ele que torna tudo significativo,

compreens’vel. Imaginar para Hugo Ž reorganizar os m—veis de sua sala, Ž sonhar

todo um espet‡culo antes de sua montagem pelos atores, tŽcnicos e pœblico, Ž ouvir

uma hist—ria e ampl‡-la. N‹o h‡ oposi•‹o entre vida e sonho pois a vida est‡ sendo

sonhada para existir. Somente a vida sonhada Ž a vida vivida, pois n‹o Ž mais apenas

vida, Ž mais outra coisa, Ž sua revis‹o, Ž sua forjada forma de aparecer, Ž vida-sonho

tudo junto.

 Nesse sentido, n‹o Ž uma ideia ou uma simula•‹o. A experincia operativa do

sonho Ž a articula•‹o da existncia em seus detalhes mais habituais e extempor‰neos.

ƒ um di‡logo acordado com as coisas em suas possibilidades. O devaneio cont’nuo

liberta o sonhador, cativa-o para fontes da descoberta incessante de tudo que Ž ouexiste. Pois tudo Ž ato criado, Ž esfor•o de se fazer vis’vel e aud’vel pelo toque da m‹o

que descerra a manta da inŽrcia que cala nossos sentidos.

Sonhando, Hugo pensa e faz. O excesso do sonhador se manifesta no excesso

das coisas sonhadas. As obras de Hugo projetam esse devaneio avassalador que

consome atores e audincia. H‡ todo um surgir de sons, imagens e movimentos

s’ncronos e ass’ncronos, interrup•›es, mudan•as de expectativas, sobreposi•›es, em

suma, um espa•o movente mesmo na tridimensionalidade daquilo que imediatamentese revela sobre nossos olhos. Mas se o sonho altera as posi•›es, os lugares de quem

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sonha e de quem Ž sonhado, n‹o poder’amos, seguindo Bachelard, experimentar a

 possibilidade de o sonho nos sonhar, de a obra nos fazer, de nos permitir avan•ar

sobre a pele do mundo e desossar nossas defesas t‹o seguras que o pavor ao devaneio

implode262?

Esse sonhar ent‹o Ž corp—reo, f’sico: traduz-se no espa•o de seu acontecer. A

descoberta e dom’nio da corporeidade transformou a imagina•‹o em uma coreografia

total, n‹o s— reduzida aos eventos art’sticos. O exerc’cio das imagens mentais

encontra seu corol‡rio nessa gin‡stica consciente. Arrumar os m—veis da casa, pensar

um cen‡rio, andar Ð tudo transparece o encontro de conhecimentos explorat—rio, que

ao mesmo tempo atualiza e renova o que j‡ existe.

O car‡ter assombroso e provocador das obras de Hugo pode ser compreendido

 por essa imagina•‹o atlŽtica, que funde em um s— ato o devanear e o pulsar da

matŽria. Tal fus‹o n‹o gera uma recinto confort‡vel nem para o criador nem para a

audincia. A perturba•‹o reside justamente nisso: na dissolu•‹o da distin•›es prŽvias

e dos obst‡culos que buscam neutralizar os efeitos de uma imagina•‹o em a•‹o,

aberta para suas possibilidades.

 Nesse sentido, Ž preciso avan•ar na compreens‹o dessa atividade imaginante

criadora de forma a desmistific‡-la, sublimando-a de seu oculto mistŽrio. As obras de

Hugo s‹o claras aplica•›es de tŽcnicas que articulam a cada momento esses devaneios

materiais. Em cena s‹o expostos os sonhos como indu•›es aos sonhos. Se o que se

mostra l‡ n‹o Ž como a vida, Ž por que na maior parte da vida vivemos a resistir ao

clamor profundo do que nos lan•a para o abismo. Hugo Rodas n‹o s— caiu - jogou-se

nesse abismo, como fez o caos se esparramar. E de l‡ ele vem, trazendo os

vislumbres de algo que insistimos em enterrar no mais distante de n—s: em nosso

desconhecimento de n—s mesmos. Ent‹o,para Hugo, o devaneio criador Ž a articula•‹o

do autoconhecimento.Do menino bem educado da pequena cidade de migrantes italianos ao setent‹o

celebrado de agora temos n‹o apenas uma trajet—ria art’stica, mas express‹o de

alguŽm que foi medindo, a partir da vis‹o de futuro da classe mŽdia da ex-col™nia de

sacramento - e contra essa mesma vis‹o- e da inumŽr‡vel rede de trocas e contatos, o

alcance de seus atos a partir da contradan•a dos devaneios realizadores. Com seus

sonhos, efetuados de v‡rias maneiras, com v‡rias pessoas em v‡rios lugares, Hugo

262 Para Bachelard, ver nosso trabalho ÒA poŽtica das raz›es e as raz›es da poŽticaÓ in Revista Humanidades, n. 29, 1993.

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 pode saber fazer o que podia fazer. E sempre quis fazer mais. Tudo que se colocava

como obst‡culo deveria e foi ultrapassado. Mas o primeiro e o maior de todos era

ultrapassar compreensivamente a si mesmo a partir do momento que se conectava

com o mundo. Esse desejo de querer mais e mais saber, essa puls‹o de possuir e

deixar-se possuir pelo aquilo que o fascina Ž da inser•‹o do sonhador na realidade

atravŽs do sonho, sonhando e sonhando-se, sensibilizando e sensibilizando-se.

Da’ o efeito multiplicador, improvisat—rio dessa atividade on’rica. N‹o se

sonha contra ou alŽm dele. Hugo Rodas consegue transmutar o que sonha em matŽria,

a matŽria sonhada n‹o fica inernete, engavetada: antes ganha sua solidez por ser

flu’da, reelaborada, como um presente que se refaz e desfaz sem cessar.

Essa plasticidade imaginativa Ž proporcional ao seu ’mpeto configurador:

sonha-se para se realizar. O perfil realizacional da imagina•‹o de Hugo encontra na

cena espacializada seu campo de experincias e sensa•›es fundamental. Temos poetas

da cor, da luz, da l’ngua, dos sons, do movimento. Para alguŽm que se disponibilizava

a se apoderar de tudo, de ter uma fun•‹o c—smica em seu onirismo, o palco como

fronteiras de fazeres,artes,of’cios e conhecimentos Ž um correlato dessa percep•‹o

expandida. A op•‹o pela multidimensionalidade da cena viabilizou a saciedade

insaci‡vel de Hugo por querer participar de realidades mœltiplas e correlacionadas.

Para alguns, o palco serve de v‡rios modos para diferentes prop—sitos: surge como

 pœlpito para os castrados ou tribuna para dŽspotas. No caso de Hugo a cena foi a festa

multiorg‡smica, lugar da qualidade da a•‹o, do corpo e mente integrados em que tudo

faz sentido porque Ž realizado, configurado, exposto como esfor•o, habilidade e

conhecimento. Hugo nos chama para ver como as coisas s‹o feitas. O palco Ž lugar

 para demonstra•‹o de sua oficina.

4- Audiovisualidade

Em raz‹o disso, chegamos a œltimo aspecto que gostaria de destacar: a

audiovisualidade. Hugo Ž um artista e pensador audiovisual. O teatro Ž o lugar da

emergncia de sons e imagens que articulam uma imagina•‹o que se fisiciza. H‡ um

 piano branco na sala de Hugo, como uma b’blia aberta. Quem o visita sempre d‡ de

cara com ele. Um piano branco! As teclas est‹o amareladas, h‡ partituras antigas na

estante. Por si s— o piano branco de Hugo Rodas nos faz sonhar. E no sonho ouvimosmœsicas. O objeto piano, essa m‡quina de sons, p›e-se a cantar. Em sua mudez de

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objeto, de arm‡rio de cordas e teclas, o piano se torna grandiloquente, dan•arino,

ruidoso, e conduz nossos olhos, passos e ouvidos. No silncio ou na sinfonia, o piano

 branco de Hugo Rodas cintila na sala e faz convergir para si todas as aten•›es.

 Nas pe•as de Hugo Rodas h‡ sempre mœsica, e de v‡rios tipos, comos tantos

os olhos que tudo observam. H‡ can•›es que ele mesmo comp›e durante o processo

criativo. H‡ os atores tocando instrumentos de percuss‹o e cantando. H‡ o ritmo dos

movimentos, a rela•‹o entre as coisas em cena, os atores e o pœblico. H‡ o silncio,

 prenhe de espectativas, em uma c‰mera lenta. H‡ os tempos da luz recortando o que

deve ser visto.

 Nos œltimos 10 anos essa rela•‹o com obras dramatico-musicais parece ter se

intensificado, com as montagens,entre outras, de Salve o Prazer, Rosanegra, îpera

de trs vintŽns, Macufagia e No Muro.îpera Hip-Hop.  Mas a maior presen•a de

musicais Ž uma demanda de hoje: Hugo sempre trabalhou, desde seus trabalhos em

que se formava como ator no Teatro Circular, de MontevidŽu, com obras

interart’sticas263. No lugar da cena homognea, centralizada no ator ensimesmado em

seu discurso sobre o mundo, Hugo aderia a pr‡ticas que estebelecem canais v‡rios de

comunica•‹o do artista com seus sentidos e do artista com a platŽia. Ent‹o essa

cultura hodierna dos musicais, da musicaliza•‹o do teatro, do jogos audiovisuais, de

eventos sinestŽticos que rompem com a linearidade do efeitos e de sua organiza•‹o,

ou seja, toda uma cartilha que agora se apresenta atrativa a uma nova gera•‹o de

artistas, tudo isso, mais que moda, vem sendo enfrentado em diversos modos de

 produ•‹o e teatralidade desde os fins dos anos 50 do sŽculo passado. A abertura do

artista ao di‡logo entre tradi•›es expressivas diversas como cinema,teatro,dan•a,

mœsica e literatura n‹o deveria ser encarada apenas como uma alternativa, uma outra

maneira de se formar criadores. Vendo Hugo trabalhar entende-se que o impacto

 plural de suas obras Ž complementar ˆ heterogeneidade de sua feitura. Entremeandouma variedade de est’mulos audivisuais, Hugo prov ao pœblico um contexto

multimidi‡tico de experincias. A tecnologia est‡ no modo como as coisas s‹o

dispostas e n‹o simplesmente mostradas. As l—gicas muitas vezes n‹o coincidentes

entre som e imagem s‹o manipuldas em fun•‹o daquilo que se realiza. Com mais de

50 anos participando de obras interart’sticas, Hugo domina muito bem procedimentos

263 Segundo Hugo, ÒTodas as pe•as minhas s‹o musicaisÓ(SOUZA 1997:XXXII).

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n‹o s— dos intŽrpretes e sim do espet‡culo inteiro. A dom’nio da audiovisualidade

integra o ator Hugo ao dramaturgo Hugo.

A dimens‹o audiovisual em Hugo desenvolveu-se e amadureceu a partir do

momento em que as demandas da autoconscincia do intŽrprete que ele sempre foi se

tornaram maiores. Uma coisa Ž cuidar de sua cena, da qualidade de seus movimentos.

Outra Ž a ordem da composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o da totalidade da obra. No

instante em que o ator amplia seus horizonte, floresce, insere-se em um todo, h‡ mais

que uma diferen•a de amplitude. A mœsica, com seus par‰metros acœsticos, com seu

controle temporal dos eventos, contribuiu para uma clarifica•‹o dessa complexidade

 presente no tr‰nsito do intŽrprete ao diretor. Na verdade a arte do sons fundamentou

 para Hugo a plasticidade do imagem, do movimento. Ele passou a tratar o som como

imagem, e a imagem como som. ƒ a musicalidade que torna poss’vel ˆ percep•‹o a

interven•‹o modificadora das coisas em seu ritmo de configura•‹o. A musicalidade

aplicada ao que se altera tanto exibe por quais processos a modifica•‹o foi realizada,

quanto se transforma na pr—pria mudan•a, na pr—pria realidade alterada. Em outras

 palavras: n‹o se usa a mœsica para adornar uma cena, e sim a cena adquire sua

espec’fica configura•‹o por meio do poder estruturador da sonoridade, dos atributos

do som. Assim, n‹o se trata de ter mœsica em um espet‡culo. A mœsica n‹o vem a

reboque, como um complemento. A musicalidade da obra Ž sua poŽtica, Ž a

exposi•‹o de suas rela•›es e efeitos e de como esses efeitos escolhidos nos remetem a

um arranjo dado.

Em raz‹o disso, temos o car‡ter de festa, celebrat—rio como uma marca da

 poŽtica audiovisual de Hugo Rodas. Festa dos sentidos, festa da carne, da liberdade da

 boca que prorrompe em mil can•›es, do corpo batuqueiro, das coreografias

contrapont’sticas. As v‡rias artes conjugadas em suas tens›es e complementaridades

facultam-nos esse ritual multiorg‡smico que transcende o arranjo das configura•›es eas tŽcnicas de sua realiza•‹o. E o que se celebra nessa festa de sons e imagens? - a

vincula•‹o de ordem e caos, do desejo de querer saber com a experincia de se perder

na vertigem do fruir.

Em processos criativos que se valem de pr‡ticas interart’sticas, as exigncias

dos intŽrpretes e da condu•‹o s‹o mœltiplas. Esse excedente de demanda motiva uma

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maior controle da express‹o264. Pois sempre h‡ o perigo da sobreatua•‹o decair em

atua•‹o afetada,confundido os v‡rios efeitos que produz com as habilidades que

necessita atualizar. O dom’nio sobre essa excedncia s— Ž poss’vel por uma longa

experincia com a heterogeneidade, de forma explorar suas potencialidades, a

entender a linguagem da varia•‹o.

Hugo Rodas em sua forma•‹o de espectador teve a oportunidade de consumir

est’mulos de obras multidimensionais como filmes e —peras. AlŽm disso, em sua

educa•‹o seguindo modelos da classe mŽdia europŽia, teve forma•‹o em l’nguas e

 piano. Superestimulado, deu o passo seguinte: envolveu-se na firme decis‹o de n‹o

esmorecer, de n‹o ceder ao impulso de se dar por satisfeito no resultado de suas

experincias sens—rias. Antes, transformou a pr—pria percep•‹o em objeto de

investiga•‹o e amplia•‹o. Ao tra•ar a identidade entre percep•‹o e realidade,

entendeu que Ž preciso ir alŽm dos resultados, dos produtos. Eventos interart’sticos

s‹o bombas de est’mulos variados. E a sensa•‹o de se valer de todos os sentidos faz

com que as obras seja canais e possibilidades para se reconectar percep•‹o a

 percep•‹o, vontade a vontade.

Em virtude disso, a audiovisualidade em Hugo Rodas n‹o se confina ˆ

ilustra•‹o de ideias ou narrativas a priori. As obras est‹o vinculadas a processos

criativos nos quais percep•›es expandidas s‹o pacientemente trabalhadas. Os sons e

as imagens s‹o os modos pelos quais as trocas criativas s‹o efetivadas. N‹o n‹o Ž o

caso de afirmar que Hugo se vale de recursos audiovisuais em suas pe•as e sim que o

 processo criativo Ž sens—rio e articulado por inteligncias mœltiplas. Can•›es e

movimentos conectam os integrantes do processo: sons e imagens s‹o ao mesmo

tempo o que se percebe e como se percebe o que est‡ se fazendo.

A partir do mitico nœcleo dan•a-mœsica, Hugo Rodas torna denso o espa•o

em que se arremessam intŽrpretes e pœblico. Nunca o vazio, o v‡cuo absoluto. Tudose encontra habitado por elaboradas estratŽgias de se fazer vis’vel e aud’vel a trama

das experincias sens’veis. Justamente Ž em rela•‹o a este pretenso lugar vazio que

Hugo age. A contextura audiovisual da cena de Hugo Rodas n‹o se detŽm em n‹o s—

alterar o que havia como tambŽm propor algo para o que atŽ o momento era

264 Discuto essas quest›es em ÒA realiza•‹o de —peras como campo interart’sticoÓComunica•‹o apresentada ao XV Congresso da ANPOM. link:www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2005/sessao20/marcus_mota.pdf.

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desprovido de forma. Por sons e imagens Hugo tanto refaz quanto inaugura a

realidade. O que se ouve e o que se v agora Ž o que se deve pensar e sentir. Como

coisa imaginada e realizada audiovisualmente, a cena transforma-se em algo que vale

 por si, como alguŽm que celebra sua pr—pria vida e vontade.

5- Proje•›es finais

Estes s‹o quatro aspectos, quatro pontos de partida para se entender o mistŽrio

Hugo Rodas. No lugar de uma resenha de seus feitos, a proposta desse artigo foi

iniciar um debate sobre as implica•›es de um criador t‹o not‡vel como Hugo se

converter em provoca•‹o para os afetos e pensamento. Preparado o campo, podemos

nos mover em outra dire•‹o Ð a de Hugo Rodas como pensador.

Uma das carater’sticas mais marcantes na modernidade do sŽculo XX foi o

fato de artistas ocuparem o lugar que antes parecia ser privilŽgio de comentadores n‹o

artistas. Shakespeare n‹o deixou nenhum livro sobre sua dramaturgia, mas editoras

inglesas todos os anos abarrotam o mercado com as mais diversificadas teorias e

explana•›es da obra e biografia do bardo. L‡ na GrŽcia antiga, S—focles teria sido o

 primeiro a se expressar sobre seu processo criativo em um livro sobre o coro, que se

 perdeu, e Arist—fanes se valia de interrup•›es no espet‡culo (par‡base) para se dirigir

diretamente ao pœblico e debater a rela•‹o entre a comŽdia e os espectadores. J‡ no

sŽculo passado, Stanisl‡vski, Meyerhold, Brecht, Grotowski, entre outros, atingem

uma enorme repercuss‹o de seus trabalhos por meio de textos publicados. Com a

abertura de cursos superiores de teatro n‹o mais relacionados a departamentos de

letras e filosofia, a autonomia das artes cnicas se manifesta em um maior nœmero de

 publica•›es e infla•‹o de conceitos. Novos tempos: o artista Ž quase intimado a se

expressar textualmente sobre seus atos. De uma tradi•‹o ‡grafa, que encontrava umaoscilante validade apenas em um discurso de segunda m‹o, o teatro irrompe como

objeto de conhecimento multidisciplinar, com artistas cnicos cada vez mais

interessados em consumir conceitos e produzir eventos.

Hugo se encontra na encruzinhada de dois in’cios de sŽculo: os albores do

sŽculo XX, intempestivos, com r‡pidas mudan•as, uma multiplica•‹o de experincias

e estŽticas, e o in’cio do sŽculo XXI, reciclando o passado, procurando ainda uma

orienta•‹o em como escapar das ortodoxias da modernidade (Òo mellhor teatro Ž oexperimentalÓ) e enfrentar a pluralidade de conceitos e experincias art’sticas.

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Essa encruzilhada Ž evidente a partir do momento em que se observa como

Hugo Rodas se apresenta como um caso inusitado: tendo travado contado com as

mais diversas tendncias e propostas cnicas, n‹o se enclausurou em nenhum r—tulo,

em nenhum estŽtica particular, valendo-se de tudo, para, em fun•‹o disso, atingir uma

identidade, uma assinatura. O fato de ter feito uma escola de teatro em sua fase de

forma•‹o, dos 18 aos 22 anos, e depois concluir um ciclo avan•ado em sua carreira

como integrante de uma escola superior de teatro- UnB - Ž revelador. No ambiente do

teatro de estudantes h‡ a exigncia de leitura de textos outros que os dos autores

teatrais. Na Žpoca do Teatro Circular, em 1958 em MontevidŽu, com foco em projetos

de interpreta•‹o, o autor da vez era Grotowski,Ótodo mundo na minha escola era

grotowiskiano,todos os meus professores eram grotowskianos.Mas utilizavam

diversas tendncias, uns eram mais stanislavskianos, outros mais artaudianos, e todo

mundo sonhava em fazer Brecht.265Ó Tendncias teatrais eram discutidas pela leitura

de ensaios, pela circula•‹o de ideias, que se convertiam em est’mulos para o processo

criativo. E, como se depreende da cita•‹o, Hugo formou-se em uma abordagem

eclŽtica de recep•‹o das teorias: havia a possibilidade de se combinar autores que

 poderiam se contradizer no discurso mas que convergiam em fun•‹o de est’mulo a

modos de percep•‹o abertos ˆ expans‹o e maior autoconscincia dos intŽrpretes

criadores.

Tal leitura aplicativa de autores teatrais enfatiza um determinado tipo de

 perfil intelectual: o de transformar a obra como um discurso sobre si mesma no lugar

de produzir discursos paralelos, coment‡rios ˆ cria•‹o. O que Ž para ser dito Ž o que

se encontra expresso na contextura audiovisual da obra. Toda obra fala de si mesma j‡

em sua realiza•‹o. Pois, havendo um processo criativo no qual a sensibiliza•‹o dos

intŽrpretes Ž uma experincia cognitivo-perceptual, aquilo que se mostra no palco s‹o

as op•›es, a reflex‹o desse processo.Mais de cinquenta anos ap—s ter desenvolvido este modo de integrar teoria e

realiza•‹o, Hugo Rodas se apresenta tanto como criador, quanto como pensador

cnico. As fontes para abordagem te—rico-pr‡tica encontram-se nas intera•›es verbais

durante processos criativos, em entrevistas nas quais ele comenta seus trabalhos e

exp›e suas ideias e nas obras encenadas. Todas essas modalidades de produ•‹o e

difus‹o de conhecimento partilham de seu contexto gerador: uma imagina•‹o

265 SOUZA 2007:XLV.

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operativa interart’stica que se efetiva e se aprimora em situa•›es de trabalho

expressivo coletivo. Por isso muitas vezes em Hugo h‡ uma express‹o verbal que Ž

t‹o performativa e explorat—ria quanto ˆ condu•‹o dos ensaios, marcada por

renovadas redefini•›es de referncias anteriormente propostas. Pois para Hugo h‡ o

hoje, o agora, a atualidade das coisas sendo feitas e desfeitas, no frescor do seu

surgimento. Desse modo, a palavra velha ou absoluta, o pensamento prescritivo e

fechado em si mesmo Ð tudo isso se desvanece diante da constante investiga•‹o por

diferentes arranjos do que fora dito, pensado e sentido.

Essa mobilidade de pensamento, esse atletismo intelectual de Hugo transita

tambŽm entre as fronteiras de gneros e situa•›es discursivos. Ao se comunicar com

os artistas ou ao se expressar sobre seu trabalho, Hugo Rodas pode agir de v‡rias

formas: ora vale-se de conceitos, argumentos, descri•‹o clara dos fundamentos

determinados exerc’cios e o porqu de cada movimento adotado, ora pode jogar o

 jogo do mestre de cerim™nias ou do buf‹o, entretendo quem dele se aproxima. Do

sublime ao grotesco, Hugo move-se entre extremos de extremos transformando uma

aula em performance e vice-versa, pois tudo est‡ conectado a tudo. O excesso, a

dispers‹o,o cercar por todos os lados, a interrrela•‹o entre esclarecimento discursivo e

 persuaviva sedu•‹o s‹o procedimentos que se alternam, sobrep›em e se fundem,

fazendo com que, ap—s o desligamento do contato, n‹o saibamos distinguir onde

come•a ou termina aquilo que era um debate intelectual ou uma irrup•‹o de

comŽdien. 

Talvez por isso n‹o h‡ livro que possa conter Hugo. Bibliotecas poderiam se

abarrotar com an‡lises de suas realiza•›es. Os mœltiplos est’mulos que suas

realiza•›es provocam, a heterogeneidade como s‹o elaboradas, o pluralismo

fundamental no modo como se processa a condu•‹o do processo criativo, entre outras

 percept’veis e mensur‡veis manisfesta•›es de Hugo pensador, sustentariam pesquisasque proporcionaram uma melhor compreens‹o n‹o da pessoa de Hugo, mas sim de

varia•›es metodol—gicas para se enfrentar a complexidade de uma imagina•‹o

interart’stica e fisicizada.

Por exemplo: neste livro que ora se publica h‡ fotos e textos baseados em

algumas das montagens de Hugo. Isso Ž um primeiro exerc’cio de aproxima•‹o.

Posteriormente, usando mŽtodo da cr’tica genŽtica aplicados aos estudos teatrais,

 pesquisadores poderiam se debru•ar sobre algumas dessas montagens e, por meio deentrevistas com Hugos e dos participantes do trabalho estudado, juntamente com

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registros jornal’sticos e visuais, reconstruir n‹o a totalidade do espet‡culo e sim o

 processo criativo, suas op•›es, suas etapas, seu resultado audiovisual. Imagino que

ap—s fazer isso com montagens ’cones de Hugo Rodas poderiam ent‹o ter acesso n‹o

s— a uma imagem mais completa de sua carreira, quanto se embrenhariam em uma

hist—ria cultural que n‹o se limitasse a uma historiografia das artes cnicas em

Bras’lia, nem em uma louva•‹o do mito huguiano. E os v’deos? O que dizer do

material em VHS e digital que registra diversas das montagens de Hugo Rodas?

Quanto se pode desentranhar dos sons e imagens desses registros, justamente de um

artista/pensador audiovisual?! Ou mesmo acompanhar remontagens de mesmas

obras? Analisar esses registros como feitos de uma racionalidade criativa Ž um campo

de estudos fundamental.

Para alguŽm que cada vez mais nos solicita por mais publica•›es,parece algo

t‹o paradoxal que haja poucou livros e artigos realizados sobre si. H‡ tanto o que

fazer, tanto o que observar. ƒ preciso enfrentar algumas resistncias ˆ a•‹o positiva.

Poderia vir o argumento que Hugo mesmo n‹o publicou nada - o que Ž mentira. Ele

vem tornando pœblica sua abordagem multimodal de teatral h‡ dŽcadas, seja por

montagens, seja por entrevistas. Ora, se Hugo n‹o escreveu um imposs’vel tratado

sobre a arte do teatro mulltidimensional Ž que ele esteve muito tempo ocupado

realizando esse teatro. No arco entre hero’smo fundador do modernismo teatral e a

melanc—lica reciclagem de conceitos e teorias de nossa Žpoca, o perfil intelectual de

Hugo Rodas se apresenta como alternativa, como ’ndice de um outro caminho. Pois,

em sua envergadura e extens‹o, ajuda-nos in loco a desidealizar essa vers‹o Žpica das

artes cnicas, feita de rupturas que se consolidam em teorias, e teorias que prescindem

de rupturas, tudo certinho para caber em um manual de hist—ria do teatro.

Ainda, esse mesmo perfil contribui para que n‹o se confunda informa•‹o com

conhecimento. Como sabemos, nunca dispusemos de tanto acesso ao que as pessoas podem fazer como hoje. Um artista hoje pode filmar todas as etapas de seu processo

criativo, disponibilizar na internet, produzir mesmo uma obra coletiva com artistas do

mundo inteiro em tempo real. Hoje podemos ler os textos de todos os pensadores e

artistas e ampliar a recep•‹o deles por meio de teses e pesquisas e investiga•›es que

 publicadas em livro ou disponibilizadas na rede mundial de computadores parecem

nos oferecer uma imagem mais completa daquilo que procuramos conhecer. Mesmo

assim, o eloquente silncio em torno de Hugo( e dele pr—prio), esse silncio n‹oexpresso em tratados, mas transformado em babel por meio de suas obras e

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entrevistas e colaboradores e parceiros de trabalho, esse silncio enfrenta a erudi•‹o

de nossa Žpoca, a hipervaloriza•‹o de uma postura que confunde o  status  de estar

antenado com as mudan•as, de consumo e coment‡rio de mudan•as sem saber como

se realiza de fato o que se modifica.

Talvez por isso seja inesperado encerrar este ensaio de um livro que celebra

Hugo Rodas enfatizando diversos aspectos de um Hugo pensador. ƒ com frequncia

que diante do fasc’nio com Hugo muitos tentem imit‡-lo, reduzindo-o. E nessas

vers›es diluidas do demiurgo de Juan Lacaze o que parece consenso Ž o lema Ôpara

saber basta fazerÕ. Isso nem Ž meia verdade. H‡ uma impactante racionalidade no

modus operandi  de Hugo. As dicotomias entre teoria pr‡tica, pensamento/a•‹o,

raz‹o/emo•‹o, muitas delas impressas nos textos dos mestres do modernismo, s‹o n‹o

s— insuficientes como incapazes de formular uma aproxima•‹o ˆ riqueza intelectual

de Hugo Rodas. N‹o adianta tentar ser Hugo. Seu modo de abordagem busca

autonomizar o sujeito. Tentar ser Hugo Ž falsificar essa rela•‹o de base. Ës vezes

queremos ser como ele pois queremos poder fazer as coisas que ele faz. No caso, a

identidade n‹o Ž de pessoa, e sim de afinidade art’stica. PorŽm, de todo jeito, o que

 precisa se ter em mente Ž que n‹o se pode separar a atra•‹o de sua raiz. E o que gera

essa querer ser ou essa vontade de pertencer demonstra-se na clara conscincia do

saber fazer, no conhecimento seguro de como proceder nas diversas demandas e

etapas de um processo criativo.

 No lugar do culto, o conhecimento. Com um maior esclarecimento do que

Hugo faz, tornam-se r’diculos certos comportamentos possessivos e etiquetantes.

Ali‡s, uma caracter’stica pouco comentada de Hugo Ž justamente sua comicidade,

tanto na condu•‹o dos ensaios, quanto na organiza•‹o de suas obras. ƒ um tra•o

sempre presente, cheio de varia•›es, com diversos matizes e efeitos, como

contrapartida do pr—prio processo criativo: construir, destruir e rir o tempo todo. MasŽ um tipo de humor que acompanha o fazer da obra sem ser completamente mordaz

ou ir™nico. ƒ a proje•‹o de um rosto que se diverte no que se encontra ocupado,

oscilando entre o jœbilo da realiza•‹o e a tortura do bem fazer. Eis um tema para

futuros desdobramentos.

Outro ainda, cultural, relacionado a este humor, Ž o do entrechoque entre as

matrizes expressivas e vivenciais de Hugo, tens›es do migrante: o carnaval

 brasileiro e tradi•‹o platina. Brasil e Uruguai, como culturas que reciclaramlocalmente a Europa, de diferentes modos, e Hugo entre essas modalidades de

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  SSS

apropria•‹o e transforma•‹o do legado colonial. O brasilguaio Hugo refazendo-se ao

aportar o Brasil. O Hugo de muitas l’nguas, pluril’ngue, lingua alguma, a fala e o ato.

E, sem mais querer dizer mais, a ’ntima rela•‹o de Hugo com o cinema, com

seu grande repert—rio de obras f’lmicas, intertextualmente comentadas e redispostas

em suas obras teatrais.

Disto, chegamos no œltimo t—pico de nosso artigo: a pessoa de Hugo. Deixei

 para o final, pois Ž o primeiro e mais imediato aspecto a chamar aten•‹o. O fato de

Hugo, de uma fam’lia e um pa’s de migrantes, ap—s de deixado seu pa’s

sucessivamente para Argentina e Chile e depois de algumas andan•as entre Bahia, Rio

e S‹o Paulo ter fixado sua moradia em Bras’lia Ž algo bem significativo. Uma cidade

aberta, em forma•‹o - Bras’lia, que esse ano completou 50 anos. Fixar residncia n‹o

significa fixar-se, mas h‡ um senso de const‰ncia, algo que reserva um desejo de

 permanecer. Hugo quer ser lembrado por Bras’lia. Hugo e Bras’lia, a cidade e seu

artista.

Principalmente agora que, mais de 30 anos depois de sua chegada, a cidade e o

teatro vivendo seus impasses: em Žpoca de editais e teatros institucionais, como

ampliar a imensa demanda por teatro diante das amarras e limites de n‹o termos

espa•os privados de teatro nem de tamanho mŽdio? J‡ temos condi•‹o de oferecer boa

forma•‹o para atores, diretores, encenadores. Mas temos pouca abertura para reflex‹o

cr’tica, circula•‹o de ideias e possiblidade de temporada. A estada de Hugo

consolidou um teatro de qualidade por meio de oficinas-montagem. Agora o grande

desafio Ž termos temporadas mais extensas, Ž ultrapassar o desperd’cio com projetos

que demandam trs meses de ensaios para no m‡ximo 6 apresenta•›es em diferentes

salas de espet‡culo. Isso se dar‡ quando bras’lia tiver mais teatros privados de

dimens›es como por exemplo da sala Martins Penna. Pois como h‡ muitos grupos e

muita produ•‹o para poucos espa•os, para abrigar todo mundo, fatora-se os lugares deapresenta•‹o, dando poucos dias para todos mundo apresentar. Com a diversifica•‹o

da demanda por novas formas de teatro, que Hugo tanto colaborou a fortalecer com

seu trabalho com artistas de diversos estilos e propostas, h‡ a premente necessidade

de se trabalhar com teatros e temporadas, sair do modelo estatizante-institucional.

Esse passo Ž um indicador de crescimento e solidifica•‹o de uma cultura cnica na

capital.

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Entre ficar e transitar- oximoro? Irresolœvel contradi•‹o? Hugo em Bras’lia

desde 1975. Uma pergunta: como viabilizar esse desejo de permanncia, dessa

vontade de perdurar de alguŽm que passou a vida a se consolidar como um agente de

transforma•›es? Creio que junto com o aplauso, com o sorriso, com os elogios

transbordantes devemos come•ar a estudar Hugo Rodar, aprender com ele, interrog‡-

lo. Para tanto devemos dar o passo seguinte: a mesma disposi•‹o em amar precisa ser

extensiva ao bem cuidar. Precisamos multiplicar o acesso ao patrim™nio de suas

realiza•›es: neste livro publica-se parte desse material, como um ponto de partida

 para ulteriores projetos. H‡ diversas entrevistas, cr’ticas de jornal, programas de

 pe•as, fotos e v’deos de apresenta•›es. H‡ ainda as anota•›es e observa•›es de

 parceiros de trabalhos criativos e de estudantes. AlŽm disso, Hugo tem desenhos,

can•›es, croquis, poemas, cadernos de anota•›es e auto-observa•‹o. Tantos arquivos,

tantas fontes podem resultar na cria•‹o de um centro de documenta•‹o n‹o apenas

catalogar registros e dep—sito de informa•›es, e sim para estimular metodologias de

 processos criativos e novos grupos. Um centro de informa•‹o e pesquisa a partir de

Hugo Rodas em Bras’lia Ð eis um desafio para aqueles que tm partilhado de sua

desafiadora presen•a.

A hist—ria de Bras’lia e da arte de Bras’lia s‹o atravessadas pela renovadora e

clara instiga•‹o chamada Hugo Rodas. Com o Grupo Pitu (1977-1981), Companhia

dos sonhos (1999-2005) e com o TUCAN (1992-2008), em trabalhos de forma•‹o de

artistas e platŽia, Hugo tem initerruptamente projetado para si e para cultura brasiliera

um compromisso de qualidade e radiante brilhantismo que atravessar‡ gera•›es.

Espero que este livro que ora se publica se transforme em um impulso para

confirma•‹o exponencial desse compromisso.

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20- DRAMATURGIA MUSICAL E CULTURA POPULAR:

APROPRIA‚ÌO E TRANSPOSI‚ÌO DE MATERIAIS SONOROS

PARA A CENA 

Uma festa Ž sempre para todos

GADAMER 1985:61.

Desde o in’cio dos anos 2000, a partir de alunos e professores do

Departamento de Artes Cnicas da UnB, tem havido uma tendncia ˆ apropria•‹o e

transforma•‹o de formas da cultura popular 266.

Tal tendncia dentro de um teatro universit‡rio exibe, em um primeiro

momento, questionamento do conhecimento teatral e de sua transmiss‹o dentro da

academia. Predominantemente tanto teorias de interpreta•‹o quanto o repert—rio

ensinados nos cursos de gradua•‹o repercutem identidades e conceitos baseados em

 processos criativos cuja refinada intelectualiza•‹o seleciona enfoques desprovidos da

considera•‹o de teatralidades tradicionais267.

Exemplificando: em teoria da interpreta•‹o, uma abordagem mais

stanislavskiana centra-se em uma situa•‹o isolada do ator, reproduzindo os dilemas

do individualismo europeu. No forte contexto reativo antinaturalista que se seguiu

ap—s, temos uma negatividade cada vez mais radical, preponderando dissocia•›es,

fragmenta•›es e uma not‡vel recusa da m’mesis.

O dualismo m’mesis-antim’mesis configura o arco dentro do qual se

distendem as parcialidades e hegemonias nos estudos teatrais, bem como os libelos

contra qualquer forma de representa•‹o ou teoriza•‹o, acarretando uma desorienta•‹o

educada, uma conscincia limitada pela sedu•‹o que um ou outro extremismo proporciona. Quest›es e procedimentos mais integrais ficam sem contexto,

esclarecimento e exerc’cio. Como todo dualismo na verdade Ž uma prerrogativa de

exclus‹o, refor•o de perspectiva privilegiada adotada de antem‹o, as parcialidades

266  Lembro os espet‡culos  Rosa Negra, sob dire•‹o de Hugo Rodas, O PresŽpio de Hilariedades, a partir da obra de Ariano Suassuna, ambos de 2002, e otrabalho de Diploma•‹o Entrama, orientado pela profa. Paula Vilas, de 2003.

267  Como os de Stanislavski ou de Grotowski. H‡ tambŽm os casos dasteorias amplas sem processo criativo, paradoxo da incorpora•‹o dos estudos teatraisnos centros superiores de ensino.

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mimŽticas e antimimŽticas entram em rota de colis‹o com paradigmas coletivistas e

interacionistas.

Desse modo, Ž como uma op•‹o para pr‡ticas, teorias e repert—rio que o

incremento de processos criativos que se apropriam de teatralidades tradicionais tem

se efetivado. E essa op•‹o que nos propomos a debater, a partir da apresenta•‹o de

algumas discuss›es do processo criativo de um espet‡culo.

 Na elabora•‹o do espet‡culo ÒUm dia de festaÓ reunimos algumas

insatisfa•›es, desejos, hist—rias, procedimentos. Uma primeira quest‹o diz respeito ˆ

correla•‹o entre repert—rio, interpreta•‹o e identidade. Tanto o grupo de estudantes-

atrizes, quanto os professores orientadores convergiram para uma rea•‹o ˆ cansativa e

extenuante (embora sempre regenerada) a•‹o da cultura de massa na determina•‹o do

cotidiano. Vivendo em cidades, podemos observar que cada vez mais se amplia a

homogeneiza•‹o das identidades, ao passo que se reduzem espa•os outros de

figura•‹o.

A possibilidade de um outro mundo que n‹o este, de um outro rosto, de

realidades n‹o t‹o mentais como alternativas aos mundos variados e repetidos, aos

rostos e mentes indexados ˆ reprodu•‹o de um rosto e mente enredados em uma trama

convencionalizada e imposta foi se tornando uma provoca•‹o e uma meta para os

membros do espet‡culo. Pois, se a capacidade efabuladora da cultura de massas reside

em sua oferta de virtualidades apraz’veis, por que n‹o efabular tambŽm, como forma

de se descolar da esquematiza•‹o dos atos de pensar, agir e sentir?

A partir dessa motiva•‹o de se buscar outras referncias que as habituais

consagra•›es do mesmo, de nosso regime de fascina•‹o e encantamento com

contextos privados e imediatistas da experincia humana, n—s nos dirigimos para as

teatralidades tradicionais.

Inicialmente, interrogamos nossa mem—ria, pois a maioria dos membros dogrupo pertence a uma primeira gera•‹o urbana. Parentes, agregados, conhecidos, entre

outros, foram sendo narrados e analisados. Gestos, modos de vestir, falar, olhar, ouvir,

responder, corpos inteiros, multidimensionais, em nexos e atos. Esses quadros sem

moldura foram anotados e dissecados. Sem trama alguma, eles se impunham por meio

do conjunto, amplitude e atratividade.

Sem seguida aos quadros, desenvolveu-se uma discuss‹o sobre a identidade e

interpreta•‹o. A academia privilegia a encena•‹o de cl‡ssicos ocidentais europeuscujas tradu•›es, por sua vez, frequentemente valem-se de molduras liter‡rias na

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sele•‹o de seus materiais verbais. A fala estrangeira duplica-se nessa moldura

liter‡ria, ratificando uma dissocia•‹o entre voz e corpo do ator. Sem lugar de onde

falar, ou falando de um lugar j‡ definido e definitivo por suas exclus›es, a

interpreta•‹o muitas vezes procura suplementar esse alheamento, insistindo em um

encaixe entre a pessoa do papel e a pessoa que o representa. A mem—ria biogr‡fica Ž

movida para promover a biografia de uma figura.

Ora, assim agindo, a interpreta•‹o aproxima-se dos mŽtodos propagand’sticos

da cultura de massifica•‹o. N‹o Ž ˆ toa que existe uma estŽtica da m’dia enquanto

 persiste uma estŽtica de figuras isoladas. Eis o estranho paradoxo que unifica

atividades diversas: o paradoxo do individualismo hodierno, no qual temos a

socializa•‹o das inst‰ncias privadas, um coletivismo que torna comum o mesmo, a in-

diferen•a.

 No caso da prepara•‹o do espet‡culo ÒUm dia de festaÓ, essas quest›es sobre

identidade e interpreta•‹o ganham maior evidncia em virtude de os articuladores da

cena ser todos do sexo feminino: seis mulheres268.

 Na manipula•‹o de materiais sonoros, frente aos h‡bitos hodiernos de se

subordinar o som ˆ imagem, t’nhamos na forma•‹o de atores um obst‡culo a

enfrentar: a separa•‹o entre voz e corpo. Vendo e ouvindo os materiais sonoros das

teatralidades tradicionais, era mais do que preciso focalizar a dimens‹o aural da

representa•‹o. Mais que uma limpeza de ouvidos269, tornou-se imprescind’vel

acompanhar a produtividade do som em um contexto performativo. Tal fato tem sido

continuamente ratificado durante o processo criativo. N‹o h‡ exce•‹o ou alternativa

diante disso. Tornou-se necess‡rio enfrentar uma dramaturgia que levasse em

considera•‹o essa situa•‹o clara e definida sem o recurso a desvios e adapta•›es.

Afinal, a confronta•‹o com esse limite e possibilidade desdobra a busca por

referncias que ultrapassem esquematiza•›es prŽvias e estere—tipos de a•‹o. Amem—ria de figuras atrativas em contextos n‹o urbanos acopla-se ˆ unanimidade

actancial feminina. Pois, dentro do repert—rio ocidental Ž reconhec’vel uma tendncia

hegem™nica na distribui•‹o assimŽtrica entre fun•›es e sexualidade, havendo tanto

268  As alunas-atrizes Ana Paula Barbosa, B‡rbara Tavares dos Santos,Fabyola Rebbeka Barbosa Del Aguila, Mariana Nunes Baeta Neves, Luciana MouraBarreto, Silvia Beatriz Paes Lima Rocha.

269  SCHAFER 1992:67-68, SCHAFER 1997:291-294.

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uma reduzida esfera protag™nica feminina, quanto uma defini•‹o desse protagonismo

ou n‹o por oposi•‹o ou dependncia a uma agentividade masculina.

Tal tendncia no repert—rio disp›e estere—tipos de a•‹o que, dentro de uma

trama, adquirem o status de eventos resolvidos, constantes. Da’ resulta a seguinte

genŽrica equa•‹o como expediente dramatœrgico: a contracena•‹o entre sexos

diferentes Ž igual a elimina•‹o de suas diferen•as por meio de uma expectativa de

enlace a ser ratificada. Os encontros e desencontros entre os sexos diferentes apenas

 protelam ou reafirmam uma l—gica de enredo. O feminino sobrevive como elemento

subsidi‡rio, como ÔrecompensaÕ.

 Na verdade, para alŽm das quest›es de gnero, prevalece a vit—ria do esquema

sobre os elementos na representa•‹o, sendo o masculino o ve’culo do esquema. A

representa•‹o Ž um meio de exibi•‹o, simula•‹o e aprendizagem de uma perspectiva

sem contradi•›es que tudo explica por que se demonstra inflex’vel a caracter’sticos.

Assim sendo, a presen•a de um grupo de seis mulheres como articuladores de

cena intensifica a reivindica•‹o de um universo ficcional e de uma dramaturgia que

n‹o se limitem a reproduzir esquema e estere—tipos actanciais t‹o despejados e

reproduzidos nos grandes centros urbanos.

Aos exerc’cios de mem—ria, seguiram-se exerc’cios de a•›es dentro de

situa•›es de produ•‹o tradicionais270. Para o grupo de atrizes foi proposto a

elabora•‹o de improvisos a partir da mem—ria e da observa•‹o de rotinas de

sobrevivncia presentes em um cotidiano n‹o urbano. Os improvisos foram

 posteriormente escritos como cenas, mas cenas sem referncias a uma macro-estrutura

dramatœrgica.

Dentro desse cotidiano de experimenta•›es, uma outra atratividade foi

ganhando relevo: o calend‡rio das festas. A altern‰ncia entre trabalho e festa revela

uma organiza•‹o c’clica bem diferente da dicotomia ocupa•‹o/lazer presente nassociedades urbanas. O trabalho da festa Ž apropriado diferentemente por seus

realizadores e possui diversas orienta•›es de intera•‹o e participa•‹o.

A complementaridade festa-trabalho transformou-se em um eixo de macro-

estrutura•‹o do espet‡culo, nominando-o. Para esse eixo e seu imagin‡rio implicado

270  A prepara•‹o do espet‡culo Um dia de Festa  inicialmente foirealizada no espa•o de duas disciplinas optativas no primeiro semestre de 2003:ÔCorpo tr‡gicoÕ, orientada pelo prof. Jesus Vivas, e ÔTŽcnicas experimentais em ArtesCnicasÕ, orientada por mim. No segundo semestre de 2003 foram incorporadas asorienta•›es dos professores Ces‡rio Augusto e S™nia Paiva.

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foram agregados procedimentos e op•›es de representa•‹o e interpreta•‹o: intera•‹o

cena/platŽia a partir de atos que se direcionem para e exibam rotinas em seu n‹o

acabamento simult‰neas ao cotidiano que envolve tais rotinas. Por isso Um dia de

 festa. A correla•‹o entre fazer e contracenar permitiu-nos pensar em uma defini•‹o

integrativa para o espet‡culo. Frente ao particularismo e restri•›es dos esquemas e

estere—tipos, a integra•‹o dram‡tica se apresenta como corretivo e proposi•‹o de

 percurso investigativo.

 Nesse ponto, ampliou-se a manipula•‹o e apropria•‹o de materiais da cultura

tradicional e o eixo trabalho-festa, por haver a passagem da mem—ria e exerc’cio de

improvisos para a sua observa•‹o. As atrizes participaram de eventos nos quais

 puderam analisar e compreender in loco performances festivas em suas

audiovisualidade e dramaturgia, realizadas no entorno de Bras’lia e em Recife.

Em seguida a essa participa•‹o e seu estudo com os conceitos desenvolvidos

 por M. Schaffer, consolidou-se a prerrogativa da configura•‹o aural -

sobredetermina•‹o do som em um processo criativo que interroga teatralidades

tradicionais.

Historicamente, a equa•‹o vis‹o = conhecimento tem produzido sŽrias

distor•›es na compreens‹o de atos auralmente orientados em situa•‹o de

representa•‹o. Ora, os sons s‹o vistos somente em rela•‹o ˆ imagem visual, como

desdobramentos ou construtos da vis‹o, ou s‹o progressivamente eliminados frente ao

 papel protag™nico da visualidade. E a hegemonia da visualidade, pelo menos nas

teorias herdeiras do platonismo, incrementa a predomin‰ncia de estŽticas mentalistas,

e o h‡bito ds e trabalhar com pr‡ticas dram‡ticas sem referncia ˆs suas marcas

 performativas ou ao seu processo criativo.

 Na manipula•‹o de materiais sonoros, em confronto aos h‡bitos hodiernos de

se subordinar o som ˆ imagem, t’nhamos na forma•‹o dos atores um obst‡culo aenfrentar: a separa•‹o entre voz e corpo. Ver e ouvir os materiais sonoros das

teatralidades tradicionais era mais do que preciso para que se enfatizasse a dimens‹o

aural do espet‡culo que estava sendo constru’do271. Mais que uma Ôlimpeza de

271  AlŽm do material gravado nos laborat—rios etnogr‡ficos j‡ citados,consultou-se a seguinte discografia:  Mœsica popular do Norte, vols 1-4.  DiscosMarcus Pereira, Brasil, 1976; Os negros do Ros‡rio. Lapa Discos, Oliveira-MG,1986-1987;  Da idade da pedra-Dona ZabŽ da Loca. Ensaio Discos, Pernambuco,1995; Cantos de devo•‹o-Coco de Cabedelo. Terrero Discos, Cabedelo-PB, 1996; Liade Itamarac‡. Ciranda Produ•›es, Recife, 1997; Sert‹o Ponteado: Mem—rias musicais

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ouvidos272Õ, tornou-se imprescind’vel acompanhar a produtividade do som em um

contexto performativo.

M‡rio de Andrade, procurando definir e descrever os eventos dram‡tico-

musicais tradicionais nota, que apesar da variedade de suas designa•›es273, temos uma

composi•‹o ou divis‹o em partes bem distintas : o cortejo e a embaixada274.Essa

divis‹o bipartide caracteriza-se por diferentes nexos entre os articuladores do

espet‡culo e espa•os de intera•‹o. No cortejo, temos a locomo•‹o dos articuladores,

 promovendo a movimenta•‹o e acompanhamento do pœblico. Durante o percurso, o

espa•o de representa•‹o n‹o localizado generaliza a presen•a do som das cantigas

como fator organizativo das performances. A can•‹o situa os performers e a

audincia.O percurso expande a realidade aural do espet‡culo entre o acaso dos

incidentes do caminho e a configura•‹o do material sonoro. J‡ durante a embaixada, o

espa•o de representa•‹o Ž fixo, mesmo que a partir desse espa•o os epis—dios ou

 jornadas desempenhados abarquem situa•›es de tempo e espa•os outros que o tablado

de agora. A fluidez f’sica do espa•o no cortejo Ž desdobrada na fluidez imaginativa do

espa•o da embaixada275.

A atratividade do som desempenhado pelos articuladores de cena, reunindo e

mobilizando sua audincia, estabelece distin•›es para a compreens‹o e realiza•‹o dos

eventos276.

do Entorno do DF . Roberto Corra Discos, Bras’lia e Goi‡s, 1998; Mœsica do Brasil,vols. 1-4. Editora Abril, Brasil, 1998. Coco Ra’zes de Arco Verde. Terrero Discos,Arco Verde-PE,1999; Comadre Florzinha. CPC-UMES, Recife, 1999; BoizinhoTucum-Vit—ria de Mearim. Associa•‹o Boizinho Tucum e Prefeitura Municipal deVit—ria-ES, 2000; Mestre Salustiano-Cavalo Marinho. Toni Braga Produ•›es, Olinda-

PE, 2001.272  SCHAFFER 1992:67-68 e SCHAFFER 1997:291-294.273  ANDRADE 1982 a : 33 Ònunca houve um nome genŽrico designando

englobadamente todas as nossas dan•as dram‡ticasÓ274  ANDRADE 1982 a: 57.275  ANDRADE 1982 a : 82 Òo que h‡ de mais caracter’stico nas dan•as

dram‡ticas como cen‡rio Ž o uso imemorial do processo de aglomera•‹o de lugaresdistintos. (...) O tablado, a frente da casa, enfim a arena em que dan•am a partedram‡tica Ž suposta representar este e aquele lugar indiferentemente , e ˆs vezes doislugares distintos ao mesmo tempo.Ó

276  ANDRADE 1982 a: 61Òo princ’pio da mœsica nesses cortejoseuropeus Ž nitidamente de encanta•‹o atrativa, pois os instrumentos de sopro s‹omais comumente empregados como chamamento m‡gico dum qualquer benef’cio.Ó

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De forma que a disposi•‹o e arranjo dos materiais sonoros s‹o selecionados

 por sua ocasi‹o, por sua situa•‹o de representa•‹o. Assim, ouvir essas mœsicas Ž

analisar seus procedimentos de organiza•‹o do espet‡culo, ao invŽs de se ocupar do

autofechamento das formas, sua exclusividade e alheamento frente ao contexto de

execu•‹o.

Para tanto, uma opera•‹o intelectual afigura-se inadi‡vel: trata-se da

ultrapassagem da moldura. Para ouvir o som e compreender suas referncias e

implica•›es performativas, Ž necess‡rio integrar som, palavras e movimentos em sua

mœtua complementa•‹o, mœtua complementa•‹o que n‹o Ž uma s’ntese a priori,

forjada intelectualmente, mas o resultado da manipula•‹o dos materiais em fun•‹o de

sua situa•‹o de representa•‹o, levando em conta a diferen•a desses materiais e a

descontinuidade decorrente de sua apresenta•‹o.

Os materiais sonoros escutados harmonicamente eram simples, baseados em

reiterados horizontes de tens‹o e relaxamento que dividiam o texto musical. Mas esse

 binarismo reiterado acarretava o princ’pio de repeti•‹o como fator estruturante das

 performances. Por meio da repeti•‹o do padr‹o harm™nico eram providas

determinadas expectativas de configura•‹o e abarcamento dos desempenhos - fins e

in’cios, a possibilidade do encaixe, expans‹o e montagem de partes dentro das partes.

A repeti•‹o situa a marca•‹o b‡sica a partir da qual diferencia•›es outras ser‹o

efetivadas.

Dentro desses arcos de tens‹o e relaxamento harm™nico, temos a

instrumenta•‹o. Em simultaneidade ou n‹o com o canto, o acompanhamento

atravessa a performance e sua instrumenta•‹o, a escolha de seus materiais, determina

o que se representa. Principalmente o sistema percursivo. Os instrumentos escolhidos,

combinados e os ritmos desempenhados interpretam e especificam, mais que o car‡ter

da mœsica, referncias tanto para universo imaginativo concretizado quanto para osmovimentos dos articuladores de cena. A dan•a e o canto valem-se desses padr›es

 para elaborar sua coreografia e sele•‹o vocabular. Pois o sistema percusivo exibe

m—dulos que em sua combina•‹o e varia•‹o s‹o escutados durante os cantos e dan•as,

seja durante as pausas do canto, o que demonstra o fato que Ž a partir de um

continuum  sonoro, de um espa•o organizado ritmicamente que a performance se

organiza. As varia•›es da textura s‹o os cont’nuos atos de se repropor o espa•o

sonoro e seus suportes materiais. A correla•‹o entre figura e fundo aqui mais seentende: ao invŽs de uma dicotomia simplista entre principal e secund‡rio,

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observamos que a reitera•‹o de padr›es r’tmico-sonoros n‹o se faz com o objetivo de

refor•ar um primeiro plano da palavra cantada. Antes, Ž a simultaneidade de atos

representacionais in loco  para mobilizar a audincia e configurar o espa•o de

desempenhos que fundamenta esse encadeamento de atividades que se interpenetram.

ƒ sempre para alŽm da moldura, para uma repercuss‹o que os sons se dirigem.

Do mesmo modo, o texto cantado e a coreografia realizada n‹o se definem por

suas inst‰ncias individuais. A altern‰ncia entre os desempenhos e suas materialidades

insere a continuidade sonora na continuidade da varia•‹o do que se mostra e integra.

A co-ocorrncia ou separa•‹o entre as modalidades de performance que

analiticamente podem ser descritas e mapeadas n‹o se justifica formalmente. A

altern‰ncia entre as modalidades de performance Ž movimento de amplitude da

configura•‹o dos desempenhos. Contra a atomiza•‹o de seus constituintes, a

dramaturgia musical avan•a na promo•‹o de sua perspectiva de integra•‹o. Ouvir e

ver as performances auralmente orientadas Ž participar da extens‹o de uma a•‹o sobre

materiais diferentes integrados justamente na forma•‹o de amplos contextos de

recep•‹o.

Ap—s estes estudos, discuss›es e improvisos, a prepara•‹o do espet‡culo

chegou a um momento crucial: o da elabora•‹o de um roteiro de representa•‹o. J‡

dispœnhamos de diretrizes do imagin‡rio a ser representado, dos materiais sonoros, da

constru•‹o de personagens e cenas, da macro-estrutura•‹o do espet‡culo.

Para essa etapa, solicitou-se que as atrizes compusessem dois exerc’cios

escritos que seriam retrabalhados pela orienta•‹o de dramaturgia. O primeiro

descrevia um dia, o arco que se distende da madrugada atŽ a noite, um dia e suas

ocupa•›es. O segundo exerc’cio era o da escritura de um roteiro a partir das

discuss›es j‡ realizadas.

Esses exerc’cios funcionavam como aproxima•›es a uma maior concretiza•‹ode um roteiro base para a fase posterior da encena•‹o, principalmente no que diz

respeito ˆ ordem e seqŸncia dos eventos e na sele•‹o e nomina•‹o das figuras.

De posse desses exerc’cios de roteiro, a orienta•‹o de dramaturgia passou ˆ

escritura do roteiro base. A tarefa de escrever para um elenco definido dentro de

diretrizes comuns e com a necessidade de facultar momentos de igual destaque para

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avalia•‹o das atrizes, constitui-se em uma situa•‹o-problema277. Partindo desses

limites e determinantes, procedeu-se ˆ roteiriza•‹o como incorpora•‹o mesma da

situa•‹o-problema.

Eis alguns procedimentos dramatœrgicos utilizados na elabora•‹o do roteiro de

Um dia de festa: como medium  das performances, exibindo seu controle r’tmico e

expondo as materialidades sonoras do espet‡culo e v’nculo com as dramaturgias

tradicionais, adotou-se o verso. Uma dramaturgia em versos, dominante na cultura

 popular, foi hegem™nica na erudita e liter‡ria atŽ o sŽculo XVIII. O reino da prosa

encontrou seu auge no sŽculo XIX com propostas realistas-naturalistas278. A

necessidade de legitimar os conteœdos e referentes de uma representa•‹o, de

transformar o espet‡culo em produto do pensamento, de uma idŽia, cada vez mais,

desde o Iluminismo, foi expurgando atos e referncias que demonstrassem a

teatralidade da representa•‹o. A busca da transparncia das representa•›es279,

cancelando as perturba•›es do medium, proporcionou a separa•‹o de atividades

verbais e musicais, cabendo ˆ fala sem marcas de uma configura•‹o audiofocal mais

expl’cita uma domin‰ncia nunca antes vista nos palcos. Entre o pœblico e os atores,

n‹o h‡ mais a diferen•a que a palavra contracenando com sua organiza•‹o r’tmico-

sonora e com a organiza•‹o r’tmico-sonora do espet‡culo produz, tanto que drama

versificado tornou-se exce•‹o presente apenas nos autos populares, em obras antigas

ou em isoladas cria•›es modernistas.

A op•‹o por uma dramaturgia em versos, ao mesmo tempo em que se insere

dentro de uma grande tradi•‹o teatral como a de Shakespeare e a do teatro grego,

retoma e transforma dramaturgias tradicionais. Essa dupla perten•a ˆ cultura

tradicional e erudita, determinou a modela•‹o dos versos. Dois tipos de versos foram

utilizados no espet‡culo: um verso recitado cont’nuo que fisiciza espa•os de intera•‹o

entre os personagens, e o verso cantado.

277  N‹o esquecer que todo o processo criativo Ž articulado dentro doespa•o institucional e did‡tico de um Projeto de fim de curso em interpreta•‹o teatral.

278  Note-se a despropor•‹o: se tomamos os documentos do sŽculo V a.C(tragŽdia grega) como ponto de partida e o intervalo entre sec. XVIII e sec. XX comoin’cio e auge do reino da prosa, temos vinte e dois sŽculos contra trs, vinte e doissŽculos de drama versificado, o que nos mostra uma outra escala temporal digna deser pensada. Note-se que Ž durante esse mesmo intervalo (sŽc. XIX-XX) que temosuma separa•‹o de atividades, com a dramaturgia musical mais associada a espet‡culosoper’sticos.

279 Como veremos no cap’tulo final deste livro.

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 No verso caso do cont’nuo, optou-se pelo verso de 11 posi•›es mŽtricas, ao

invŽs do verso de 10 posi•›es, este de imensa produtividade liter‡ria, e dos versos de

7 e 5 posi•›es, t‹o eficientes na dramaturgia tradicional280.

A motiva•‹o de tal escolha deu-se em raz‹o da busca por desenvolver uma

dramaturgia em versos impusesse seus padr›es r’tmicos por meio de sua concep•‹o e

estrutura•‹o musical e n‹o na transposi•‹o de padr›es j‡ t‹o reconhecidos. Frente ˆ

imediata correla•‹o entre os conhecidos metros de 10 e 7/5 posi•›es, preferiu-se

fundamentar a resposta da platŽia em um metro que incorpora as vantagens de ambos

os metros cont’nuos tradicionais e liter‡rios, sem as desvantagens de suas conven•›es

e familiaridade. Para que as palavras n‹o fossem acobertadas pela satisfa•‹o e

identifica•‹o do metro, optamos pelo mascaramento inicial da metrifica•‹o atravŽs do

verso de 11 posi•›es. Tal estratŽgia se apresenta v‡lida frente ao reino da prosa. ƒ

 partir desse reino que nos movimentamos.

Ainda, alŽm do verso cont’nuo de 11 posi•›es, temos a rima. O desgaste do

uso da rima nas can•›es da cultura de massas e a rea•‹o anti-parnasiana que insufla a

forma•‹o da moderna experincia poŽtica brasileira, determinou a escolha de um

 padr‹o de rimas que repercutisse o mascaramento utilizado na metrifica•‹o. Adotou-

se um esquema que alterna rima e ausncia de rima. Sempre temos um verso sem

coincidncia final de som com o verso seguinte, seguido por dois versos que tem

coincidncia: abbcddeffghhijjlmmnoopqqrss .... AlŽm disso, as rimas s‹o soantes,

somente as vogais coincidem Ð em nosso caso sons com as vogais ÔiÕ e ÔaÕ em s’labas

t™nicas.

A utiliza•‹o de um verso cont’nuo com termina•›es soantes e outras n‹o

marcadas para um drama em versos apresentou-se como solu•‹o para uma cultura

 prosaica, ou de neutraliza•‹o aural, que engloba tanto as atrizes, quanto a audincia.

Tanto para quem ouve, quanto para quem atua o uso de organiza•›es r’tmico-sonorasŽ um obst‡culo. A prevalncia de esquemas actanciais veiculados em prosa incentiva

a ado•‹o de uma fala plena, hom—loga de uma unifica•‹o dos n’veis de realidade do

espet‡culo. J‡ com versos, h‡ os constrangimentos sint‡ticos, sem‰nticos, vocabulares

280  Segundo CåMARA CASCUDO 1984:339 Ò O metro do romance,fundado no tetr‰metro trocaico acatalŽtico, o octan‡rio trocaico,  pie de romances,como lho diziam os espanh—is, determinou o setiss’labo, pela n‹o contagem de umas’laba no hemist’quio. O esp’rito do idioma, a ’ndole do ritmo popular fixou osetiss’labo como sendo o metro nacional. (...) O Povo n‹o cultivou as formas cultas dosoneto nem os versos de 12 s’labas.Ó

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e referenciais que sele•‹o e combina•‹o das palavras efetiva281. Quem atua e quem

 participa do espet‡culo v-se confrontado com materialidades organizadas com as

quais ter‹o de contracenar para poder interagir com o que Ž representado. H‡ a

necessidade de um esfor•o, de um impulso para alŽm de uma normalidade

comunicativa. A dramaturgia musical vale-se de padr›es r’tmicos e sonoros para

modificar a situa•‹o do intŽrprete. Frente ao som, o espa•o de troca e intera•‹o Ž

transformado.

Dessa maneira, os procedimentos de metrifica•‹o n‹o se reduzem a

expedientes de ornamenta•‹o. Nessa pe•a, a ado•‹o de um verso cont’nuo com

constrangimentos r’tmicos e sonoros procura interpretar auralmente o movimento de

aproxima•‹o e estranhamento que perpassa tanto as situa•›es representadas, quanto o

evento mesmo de um drama musical. O verso atravessa a representa•‹o, indexando

referncias ao imagin‡rio encenado, ˆ constru•‹o das performances das atrizes e da

audincia e ao modo mesmo de articula•‹o das possibilidades n‹o prosaicas em uma

sociedade de consumo. Atravessando a representa•‹o, o verso correlaciona a

amplitude e organiza•‹o do espet‡culo com a amplitude e mœtua implica•‹o das

referncias. Como agente de repercuss‹o e horizonte de expectativas, o verso

cont’nuo de rima soante faz irromper sobre seus articuladores e receptores uma

coer•‹o que se traduz em recusa a h‡bitos e situa•›es comunicacionais

convencionalizadas282. Modelando a inteligibilidade do que Ž dito, as palavras deixam

de se justificar pela identidade entre papel e estabilidade psicol—gica, como se aquilo

que se diz em cena fosse exclusivamente propriedade de quem se Ž ou do que se faz,

uma ÔnaturezaÕ. O excesso que a configura•‹o sonora do verso cont’nuo realiza ao

281  Como nem todas as palavras possuem a mesma termina•‹o sonora, arestri•‹o aural acarreta a restri•‹o vocabular.

282  Sobre este ponto, R. Wagner (1995:231,233) comenta: ÒAtoresinteligentes, aos quais importava comunicar-se com o entendimento dos ouvintes,

 pronunciaram {o iambo, verso cont’nuo}como simples prosa. Os insensatos, quediante do ritmo do verso n‹o eram capazes de compreender seu conteœdo,declamaram como melodia sem sentido e sem som, t‹o incompreens’vel quanto n‹omelodiosa. (...) a rima soante se estabeleceu como condi•‹o indispens‡vel do versoem geral. (...) O verso que conclui com rima consoante Ž capaz de determinar aaten•‹o ao —rg‹o sensorial do ouvido atŽ o ponto em que este possa sentir-se atra’do

 pela escuta do regresso da parte rimada pela palavra. Pois com isso este —rg‹o est‡disposto ˆ aten•‹o, quer dizer, cai em um espera expectante (...) Somente quando ainteira capacidade sensorial do homem Ž estimulada plenamente ao interesse por umobjeto comunicado a ela por um sentido receptor, consegue a for•a para estender-sede novo.Ó

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modificar pr‡ticas e t‡ticas interpretativas impulsiona o som ao ato, fazendo uma

montagem entre palavra e a•‹o. ƒ a partir desse excesso de organiza•‹o da

 performance que a performance mesma correlaciona suas diferentes modalidades em

seus diversos tempos e habilidades. A organiza•‹o r’tmico-sonora da performance em

cena abre-se para alŽm de seu registro escrito, exibindo a ampla contextura dos atos

representacionais e recepcionais, expondo a audiovisualidade do espet‡culo. Ao invŽs

do apagamento das marcas aurais, os quais revelam e orientam a fic•‹o

desempenhada e compreendida, a continuidade do padr‹o r’tmico-sonoro imp›e

 justamente a sua configura•‹o. Ora, uma situa•‹o de representa•‹o audiovisual exige

meios audiovisuais e uma recep•‹o orientada para estes meios e situa•‹o.

O segundo tipo de verso utilizado no espet‡culo Um dia de festa foi o cantado.

As partes cantadas do espet‡culo sucediam-se as partes de verso cont’nuo. Essa

altern‰ncia encontra-se bem fundamenta na pr‡tica dramatœrgica ocidental283  e no

interior mesmo da organiza•‹o das performances tradicionais. O princ’pio de

altern‰ncia j‡ havia sido utilizado na metrifica•‹o das partes n‹o cantadas.

Macroestruturalmente, a altern‰ncia entre partes cantadas e partes de versos cont’nuos

encontra na organiza•‹o das performances cantadas sua matriz.

Assim sendo, os ritmos escolhidos para as partes cantadas, a composi•‹o

mesma das partes cantadas justifica-se em virtude da macroestrutura do espet‡culo.

Para tanto, foram escolhidos e refigurados materiais tradicionais previamente

escutados e analisados, materiais esses que se configuravam como interpretantes de

sua situa•‹o de representa•‹o. Logo ap—s o mon—logo de abertura da pe•a, temos um

canto de apresenta•‹o das personagens, constru’do a partir de um coco tambŽm

utilizado em abertura de performance. Ap—s a primeira cena de di‡logos, nos valemos

de uma composi•‹o que justap›e um coco e uma ciranda, para uma dramatiza•‹o de

um relato. Segundo a rubrica, ÒConta-se a hist—ria de Arminda em forma de umaciranda misturada com um coco. Com essa mistura de andamentos e ritmos,

deslocam-se os referentes: o coco, mais agitado e sincopado Ž usado para as partes

mais descritivas da cena e a ciranda para as partes mais impactantes.Ó

Durante o espet‡culo, cantos de trabalho alternam com di‡logos e, ao fim,

temos uma catira para fechar o espet‡culo, retomando e invertendo o canto de

apresenta•‹o.

283  V. MOTA 2002.

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Enfim, o que podemos atŽ aqui afirmar que o caminho rumo ˆs dramaturgias

tradicionais satisfaz e estimula uma apreens‹o mais global do fazer cnico, integrando

 pr‡ticas e saberes que se caracterizam pelo enfrentamento de sua

multidimensionalidade e das problem‡ticas implica•›es dessa multidimensionalidade.

Fazer ver, fazer-se ouvir e mobilizar, crescer para alŽm de n—s mesmos 284 diante de

alguŽm s‹o diferentes e correlacionadas atividades e metas inspiradas na

aprendizagem de dramaturgias tradicionais. E Ž rumo a uma dramaturgia musical que

todas essas atividades e metas se definem e se compreendem.

284  GADAMER 1985:79.

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21- A DISCUSSÌO DA IDƒIA DE ESPA‚O EM KANT E SEU

CONTRAPONTO NA TEATRALIDADE

 Na abertura de seu longo ensaio sobre cronotopias no romance, em nota de

rodapŽm, M. Bakhtin apresenta o diferencial de sua abordagem em rela•‹o a Kant

nesses termos: Ò Na sua ÒEstŽtica Transcendental Ó(uma das partes b‡sicas da Cr’tica

da Raz‹o Pura) Kant define o espa•o e o tempo como formas indispens‡veis de

qualquer conhecimento, partindo de percep•›es e representa•›es elementares.

Tomaremos a aprecia•‹o de Kant do significado destas formas no processo de

conhecimento, mas n‹o a compreendemos, diferentemente de Kant, n‹o como

transcendentais, mas como formas na pr—pria realidade efetiva. Tentaremos revelar o

 papel destas formas no processo de conhecimento art’stico concreto.(BAKHTIN,

1988,p. 212.)Ó

O projeto investigativo de Bakhtin, pois, fundamenta-se em um jogo de

 partilha e refuta•‹o da proposi•‹o kantiana. Tal proposi•‹o Ž o ponto de partida ao

mesmo tempo em que alvo cr’tico. O diferencial se encontra na recusa da abstra•‹o

que se pode depreender da ÒEstŽtica TranscendentalÓ. A produtividade do conceito de

cronotopia em arte, da Òinterliga•‹o fundamental de tempo e espa•oÓ, formando Òum

todo compreensivo e concretoÓ, no qual Òo pr—prio tempo condensa-se, comprime-se,

torna-se artisticamente vis’velÓ e Òo pr—prio espa•o intensifica-se, penetra no

movimento do tempo, do enredo e da hist—ria285Ó, est‡ diretamente relacionada com a

supera•‹o integrativa do apriorismo kantiano.

Assim, espa•o e tempo como condi•›es de conhecimento s‹o apropriados,mas espa•o e tempo n‹o permanecem como inst‰ncias absolutas. Antes, tanto s‹o

referncias para a apropria•‹o quanto para sua transforma•‹o em um processo

criativo. Logo, Ž para a flexibilidade da moldura que Bakhtin aponta. Tempo e

espa•o, ao mesmo tempo em que prŽvios, prŽ-existentes, s‹o redefinidos pela

interven•‹o modificadora da arte.

285  Todas afirma•›es em aspas deste par‡grafos provm de BAKHTIN1988:211.

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Voltando-se a Kant, podemos melhor compreender essa rea•‹o ˆ abstra•‹o do

tempo e do espa•o que caracteriza n‹o s— Bakhtin como o pensamento p—s-metaf’sico,

e que impulsionou uma pluralidade de manifesta•›es art’sticas modernas e

contempor‰neas.

Kant, procurando emancipar a ÔRaz‹oÕ de toda sua circunscri•‹o teol—gica e

tradi•‹o filos—fica em seus infind‡veis debates e especula•›es, empreende uma busca

 pelos princ’pios atravŽs dos quais h‡ produ•‹o de conhecimento. Essa hip—tese

regressiva situa para alŽm e independentemente da experincia a fonte dos atos

cognitivos.

A arquitet™nica da raz‹o, constru’da em A Cr’tica da Raz‹o Pura, parte, pois,

da pressuposta separa•‹o entre Òdois troncos do conhecimento humano, porventura

oriundos de uma raiz comum, mas para n—s desconhecida, que s‹o a sensibilidade e o

entendimento. Pela primeira, s‹o-nos dados os objetos; mas pela segunda s‹o esses

objetos pensados.286Ó

Essa hier‡rquica divis‹o proporciona o mŽtodo e as tarefas da investiga•‹o

kantiana: primeiro haver‡ uma descri•‹o da sensibilidade, uma teoria transcendental

da sensibilidade; em seguida, uma descri•‹o do entendimento, uma teoria

transcendental do entendimento.

A precedncia da sensibilidade sobre o entendimento Ž ambivalente. A

sensibilidade aparece como momento da atividade de conhecer. Nesse momento, as

Òcondi•›es por meio das quais nos s‹o dados os objetos de conhecimento precedem as

condi•›es segundo as quais esses mesmos objetos s‹o pensadosÓ. Mas tal

 proeminncia Ž secund‡ria. Pois o encontro da sensibilidade com os objetos Ž

configurado pela existncia prŽvia n‹o do objeto, mas da capacidade de pensar esses

objetos, pela intui•‹o que medeia a compreens‹o desses objetos. Ou seja, a

sensibilidade pensa, n‹o como o entendimento. Pensa por meio de intui•›es, um tipode quase-racioc’nio, uma apreens‹o. Antes da situa•‹o interativa com os eventos, h‡ o

intermŽdio desse pensar ainda n‹o formalizado em sistema.

Para melhor esclarecer racionalidade sens’vel, Kant advoga o isolamento da

sensibilidade, Òabstraindo de tudo o que o entendimento pensa com seus conceitos,

 para que reste a intui•‹o emp’rica.Ó Depois, Òapartaremos ainda desta intui•‹o tudo o

que pertence ˆ sensa•‹o para restar somente a intui•‹o pura e simplesÓ E, finalmente,

286  Sigo neste e nos par‡grafos seguintes Introdu•‹o e Primeira parte daDoutrina Transcendental dos Elementos de  A Cr’tica da Raz‹o Pura.

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ap—s essas duas exclus›es Ž que entra o espa•o: Òh‡ duas formas puras da intui•‹o

sens’vel, como princ’pios de conhecimento a priori, a saber , o espa•o e o tempoÓ. A

sensibilidade Ž constru’da em uma cadeia de exclus›es e redefini•›es primeiro

relacionados com a divis‹o das capacidades, depois quanto ao dom’nio de seus

objetos e, por fim, quanto ao seus fundamentos.

A conceptualiza•‹o do espa•o Ž decorrente dessa tentativa de isolar o que

determinaria uma sensibilidade pura, na qual n‹o h‡ nada que perten•a a sensa•‹o. ƒ

uma sensibilidade desprovida de sensibilidade, Ž a idŽia de uma sensibilidade sem a

experincia sens’vel. E a cincia de todos os princ’pios da sensibilidade a priori  Ž

denomina EstŽtica transcendental. A estŽtica Ž compreendida aqui como um

empreendimento que busca conhecer o que n‹o Ž sens’vel na sensibilidade, o que se

extrai dela, o que dela se separa e se manifesta como idŽia.

As opera•›es mentais de se isolar os objetos da sensibilidade acarretam ainda

um res’duo de experincia concreta - a extens‹o e a figura. O repert—rio de produtos

do mundo Ž expurgado de sua diversidade infinita para se confinar na forma e no

nœmero. A independncia desses atributos genŽricos quanto ˆ sua materialidade e

manuseabilidade Ž o que importa.

ƒ a partir dessa abstra•‹o da sensibilidade que o conceito de espa•o Ž

discutido em Kant. Como uma comprova•‹o da existncia e necessidade de uma

estŽtica transcendental, de um conhecimento das coisas que n‹o passa pelas coisas

mesmas, Ž que o espa•o aparece.

Em decorrncia disso, o espa•o n‹o Ž espa•o. A primeira experincia do

espa•o como algo exterior a mim e suficiente em si mesmo deixa de existir. Para

Kant, Òa representa•‹o do espa•o n‹o pode ser extra’da pela experincia das rela•›es

dos fen™menos externos, pelo contr‡rio esta experincia externa s— Ž poss’vel, antes

de mais nada, mediante essa representa•‹o.Ó Antes de ser coisa, o espa•o Ž uma idŽia.E Ž somente como idŽia que temos conhecimento do espa•o. Pois somente

conhecemos a idŽia. A idŽia de conhecer Ž o pr—prio conhecimento. Logo, tudo tem

de se tornar idŽia para ser conhecido.

Por isso o espa•o torna-se, deixa de ser o que Ž, transforma-se em uma

Òrepresenta•‹o necess‡ria, apriori, que fundamenta todas as intui•›es externas.Ó Mas

como aquilo que Ž, deixa-se de ser em sua limita•‹o, para expandir-se em fundamento

de tudo que existe? Note-se como h‡ uma dupla l—gica de redu•‹o e infla•‹o. Quanto

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mais o espa•o perde matŽria, mais presente ele Ž. A desmaterializa•‹o do espa•o

acarreta sua generaliza•‹o.

 N‹o estando em nenhum lugar, mas constituindo a idŽia de todos os lugares,

onde se encontra esse espa•o? Segundo Kant como intui•‹o, o espa•o Òdeve

encontrar-se em n—s a priori, isto Ž, anteriormente a toda a nossa percep•‹o de

qualquer objetoÓ Como uma idŽia nata, uma disposi•‹o a reagir e se sentir afetado por

objetos e da’ traduzir essa sensa•‹o em uma representa•‹o Ž que o espa•o se

esclarece. O que na verdade o espa•o Ž encontra-se na exposi•‹o de como a

sensibilidade funciona. As opera•›es da sensibilidade determinam a espacialidade.

Dessa maneira, tal como a sensibilidade, o espa•o Ž desprovido de um contexto

 pr—prio. A partir das distin•›es e hierarquia propostas por Kant Ž que ele passa a

existir. A realidade do espa•o depende de sua Ôvalida•‹o objetivaÕ, produzida pela

arquitet™nica que Kant constr—i. O espa•o nada Ž se n‹o for possibilitado por essa

arquitet™nica. Para que o espa•o exista Ž preciso que se aceite a explica•‹o e a

sistem‡tica kantiana.

Assim, a dogm‡tica kantiana transparece como um interdito que somente acata

aquilo que previamente foi estabelecido. Da’ haver tanta negatividade: Ònada do que Ž

intu’do no espa•o Ž uma coisa em siÓ, Òo espa•o n‹o Ž uma forma das coisasÓ e,

finalmente, Ònenhum objeto em si mesmo nos Ž conhecido e que os objetos exteriores

s‹o apenas simples representa•›es de nossa sensibilidade.Ó

Essa dr‡stica invers‹o da situa•‹o cotidiana, na qual os objetos est‹o para n—s

e o contato com eles nos ensina a modelar modalidades concretas de sobrevivncia e

cria•‹o, correlaciona-se ˆ tentativa kantiana de sistematizar a capacidade de conhecer

em sua universalidade. Um modo b‡sico de conhecer, a sensibilidade, Ž a recep•‹o ao

mundo. PorŽm, tal recep•‹o Ž feita pelo est’mulo da coisa, para pela idŽia, pela

intui•‹o em mim dos objetos. O solipsimo kantiano refreia a espacializa•‹o mesma dosujeito cognoscente.

 No teatro, em uma situa•‹o de generalizada fisicidade, essa distin•‹o entre o

sujeito e o espa•o, entre exterior e interior Ž solapada: tudo Ž expl’cito, tudo se

mostra, tudo se exibe como feito e fato de uma contextura observacional. Vejamos,

como exemplo, um caso concreto.

Acompanhando v‡rias montagens do premiado ator e diretor Hugo Rodas,

chama aten•‹o o que podemos denominar Ôinteligncia coreogr‡ficaÕ. Tal intelignciase demonstra atŽ as raias do virtuosismo: dificilmente ele repete uma configura•‹o

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espacial. Na vis‹o hodierna muitas vezes o espa•o de cena Ž um lugar para se colocar

coisas e pessoas, como se o espa•o j‡ estivesse ali, precisando ser apenas organizado,

como uma despensa ou um arm‡rio.

Mas tome-se a sua recente montagem (2006) de  Navalha na Carne, de Pl’nio

Marcos. Primeiro, quando voc entra no teatro, o pœblico est‡ disposto nas

arquibancadas laterais, em volta do espa•o central de atua•‹o. Somente a parte do

fundo n‹o est‡ ocupada para o pœblico. Assim se forma uma quase arena, que limita a

 perspectiva do que vai ser visto. Em cada lugar h‡ uma experincia de observa•‹o. O

espa•o de atua•‹o Ž um corredor com cadeiras marcando os pontos extremos das trs

linhas de movimenta•‹o dos atores. Os atores n‹o contracenam diretamente. O

 publico observa as trajet—rias dos atores, completando os atos de restrita

contracena•‹o. Nesses pontos de convergncia entre as a•›es dos atores Ž que o

 publico interage com o espet‡culo. Assim, o publico percebe o movimento como

movimento e ao mesmo tempo se apropria do que v. ƒ um jogo espec’fico entre o

n‹o realismo da cena, na estiliza•‹o dos movimentos, e o hiperrealismo do efeito, na

rea•‹o aos ataques, humilha•›es e golpes que nossa imagina•‹o completa. Assim,

todos est‹o atuando. Nisso, n‹o temos propriamente ÔmovimentoÕ no espa•o. Os

atores mostram a orienta•‹o de seus atos, mas o acabamento deles Ž realizado pela

 platŽia. N‹o coincidem o ato e seu agente. O ato violento desloca-se do agente para a

audincia.

Ora, como isso Ž realizado? Simplesmente os atores desdobram-se em

 personagens conectados a um mundo de referncias dos seus personagens e em

 bailarinos, no qual seus corpos efetivam o contexto f’sico dos atos envolvidos na

atualidade da cena. Os atores disparam referncias intelectuais e org‰nicas para a

 platŽia. E, por incr’vel que pare•a, esse desdobramento que enriquece e amplia a

 presen•a dos atores em cena s— se faz poss’vel pela interrup•‹o da fus‹o entre atua•‹oe totaliza•‹o das referencias da personagem. Para alŽm do paradoxo, Ž justamente

nessa interrup•‹o, neste n‹o acabamento que a inteligncia coreogr‡fica de Hugo

Rodas se compreende. Porque os atores v‹o come•ar a apresentar em cena o processo

criativo que durante os meses anteriores ˆ apresenta•‹o possibilitou uma sele•‹o de

atos, gestos, olhares, a materialidade mesma dos atuantes e do espet‡culo. Quando o

mundo da pe•a se choca com o processo criativo, temos isso mesmo: o diferencial da

abordagem, da di‡ria e detida transforma•‹o dos atores, de seus corpos, de suasmentes. Sem o tempo dessa transforma•‹o, n‹o h‡ esse desdobramento.

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Assim, aqueles que se deslocam no espa•o colocam o espa•o em movimento -

a l—gica de op•›es firmemente estabelecidas e testadas durante o processo criativo. O

desdobramento do ator entre personagem e bailarino faz irromper esse corpo

 preparado, aberto aos est’mulos da orienta•‹o, e capaz de saber o que fazer durante o

tempo de sua exibi•‹o. Em uma peca t‹o encenada como Navalha na Carne isso foi

fundamental. A premente consuma•‹o dos atos violentos deu lugar ˆ sua

redistribui•‹o para todos que vieram no teatro. A situa•‹o n‹o fica restrita aos atores.

As criaturas da sarjeta como Neusa Sueli, Vado e Veludo, o seu mundo n‹o Ž s— o

mundo deles.

Impressionantemente uma pe•a de quase quarenta anos (1967) ter suas

referncias ainda com muito apelo e efeito. Mas isso s— foi obtido n‹o somente por

causa das palavras, e sim pela inteligncia coreogr‡fica, espacial, performativa de

Hugo Rodas que, ao encenar a pe•a e distribuir os atores e o pœblico em cena e ao

orientar a din‰mica da contracena•‹o, soube enfatizar a abertura da cena ao mundo.

Com sua longa experincia de teatro, habilitado em trabalhos de teatro de rua, dan•a e

teatro convencional, Hugo Rodas conhece como poucos a amplitude do que significa

o design da cena. Como cada espet‡culo Ž œnico, cada espet‡culo deve resolver sua

materialidade de modo œnico. E, sem dœvida alguma, o melhor ponto de partida Ž

conferir aos atores uma flexibilidade que se pode encontrar na modela•‹o do espa•o.

Os atores modelam a si mesmo e a espa•o Ð e esse espa•o os modela. Os atores s‹o

agentes de espacializa•‹o, s‹o criaturas do espa•o.

Diante do trabalho de Hugo Rodas com  Navalha na Carne, pude novamente

apreciar a beleza incisiva e terr’vel de Pl’nio Marcos, um verdadeiro teatro da

crueldade. Pude de fato estar em movimento.

Com o espa•o em a•‹o, com agentes espacializados, a conscincia do espa•oadquire diferentes prerrogativas. Em vez da unicidade do espa•o, baseada na redu•‹o

operada por restri•›es mentais Ð como se v em Kant Ð temos a ades‹o integral do

agente a uma situa•‹o espec’fica de produ•‹o de referncias, na qual negocias com

materialidades existentes e, a partir dessa negocia•‹o, h‡ uma redefini•‹o dos

elementos prŽvios em prol da atualidade de sua efetiva•‹o. A espacializa•‹o teatral Ž

o lugar de transforma•‹o de materiais in situ.

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22- DRAMATURGIA E COMIDADE: NOTAS DE PESQUISAS EM

CURSO

Pensar a comŽdia

Em uma imediata percep•‹o, tirando nome de autores, obras e programas

televisivos, um imenso conjunto de referncias pode surgir quando nos referimos a

comicidade. Logo vem ˆ mente uma infinidade de palavras: rir, riso, sorriso, rid’culo,

engra•ado, palha•o, bobo, palha•ada,piada, clown, bufo, buf‹o, Commedia delÕarte,

grotesco, deboche, humilha•‹o, ironia, s‡tira, sat’rico, bobagem, estœpido, tolo,

ignorante, intriga,boneco, desenho animado,  sit com,  stand up comedy,

gags,improviso esquete, escada, tombos, feio, duplas, velho, gordo, comŽdia de

situa•‹o, comŽdia de costumes... e assim vai.

Inicialmente, o escopo da lista reœne referncias as mais diversas, o que

mostra n‹o s— a alta produtividade da comicidade como tambŽm sua diversidade.

Assim a comicidade torna-se um objeto polifocal, que em suas mœltiplas

manifesta•›es pode ser observado,analisado, apreciado e discutido sob variadas

 perspectivas.

Podemos come•ar a organizar este aparente caos reconhecendo que um grupo

dessas dispersas referncias diz respeito ao efeito que a comicidade produz Ð rir.

Assim, uma das caracter’sticas da comicidade reside em seu efeito na produ•‹o de um

desempenho, de atos em quem dela participa.

Tal caracter’stica, porŽm, apesar de t‹o evidente e fundamental, n‹o define

totalmente a comicidade. H‡ experincias c™micas, performances que n‹o fazem rir. E

h‡ v‡rios tipos de risos, desde a gargalhada espalhafatosa, uma convuls‹o e perda def™lego, atŽ um riso de constrangimento, o rir sem gra•a.

O efeito c™mico, ao mesmo tempo que revela grande parte da produ•‹o da

comicidade n‹o Ž seu fundamento, nem, muito menos o cl’max, a meta, a totalidade

do processo. Esta reflex‹o nos leva para tentar perceber a amplitude da comicidade.

Outras referncias na lista apontam para procedimentos, tŽcnicas e, disto para

estilos de interpreta•‹o e performance. A quest‹o n‹o s— est‡ em quem se apropria do

evento c™mico e responde a ele. De outro lado, h‡ o articulador da comicidade, aqueleque efetiva os est’mulos. Em situa•‹o de performance, a comicidade efetiva-se em

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uma intera•‹o entre certos est’mulos e os efeitos. Os efeitos s‹o produzidos pelos atos

do articulador. Suas a•›es e rea•›es modelam expectativas e experincias da

recep•‹o. A produ•‹o da comicidade Ž efetivada em um contexto de nexos, v’nculos e

atos que se reenviam. A interdependncia entre atos e desempenhos configura um

espa•o de produ•‹o da comicidade.

Tais procedimentos e tŽcnicas n‹o s‹o um estoque de ferramentas dispon’veis,

uma maquinaria de persuas‹o. A materialidade da comicidade, expressa na

manipula•‹o de situa•›es de intera•‹o, especifica-se em tradi•›es compositivas e

 performativas que s‹o horizontes de expectativas tanto para os intŽrpretes quanto para

o pœblico. Dessa forma, h‡ diversas modalidades de produ•‹o de comicidade,

relacionados com pr‡ticas e situa•›es determinadas. Se a comicidade materializa-se

em situa•›es de

contato e intera•‹o e cada situa•‹o tem sua especificidade, fazer ir Ž explorar

essas situa•›es, Ž um estudo desses contextos. E a contextualiza•‹o da comicidade Ž a

compreens‹o do nexo entre procedimentos e estas situa•›es.

Quanto mais nos aproximamos dos termos que a lista consigna mais

conclu’mos que n‹o s‹o s— palavras, que existe uma brutal diferen•a entre a idŽia do

c™mico e sua produ•‹o. Assim partimos da redu•‹o do fen™meno por meio da

generaliza•‹o de um tra•o - o efeito- para a amplitude de sua configura•‹o Ð a

 produ•‹o de comicidade.

 Nessa amplitude, os termos designam agora v‡rios aspectos dessa produ•‹o:

composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o, produ•›es e materiais. ComŽdia de situa•‹o, por

exemplo. Diz respeito a um tipo de composi•‹o, a uma modalidade de organiza•‹o do

espet‡culo c™mico. A distribui•‹o das cenas, a rela•‹o das cenas entre si, a constru•‹o

de expectativas tudo isso faz de uma comŽdia de situa•‹o o que ela Ž, e n‹o outra

coisa. Isso do ponto de vista da composi•‹o. Ainda, tal composi•‹o Ž performada,materializada em cena por um tipo de interpreta•‹o, cen‡rios, ilumina•‹o.

Continuando, tal comŽdia seleciona materiais, idŽias, vivncias, que s‹o

reinterpretados em fun•‹o de sua estŽtica. O mundo representado articula o mundo

conhecido, redefinindo-o em fun•‹o do que vai ser mostrado. N‹o se pode dizer que

uma comŽdia de situa•‹o Ž definida somente pelos materiais que mostra, pela forma

como organiza suas cena, pela forma como Ž interpretada ou produzida ou por seus

efeitos. A comŽdia de situa•‹o Ž apreendida na amplitude de seus recursos e procedimentos.

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Mais ainda: h‡ tradi•›es diversas de espet‡culos definidos como comicidade

de situa•‹o. Pode ser entendida por oposi•‹o a uma comŽdia de personagem, com

 predomin‰ncias de complica•›es da trama, como na ComŽdia de Erros, de

Shakespeare, ou em Sitcons, como Seinfeld, ou a comŽdia de Plauto.

AlŽm disso, a defini•‹o de um espet‡culo como comŽdia de situa•‹o n‹o

exclui a utiliza•‹o de procedimentos de outros tipos de espet‡culo. Do mesmo modo,

os nomes na lista ora se referem a elementos de composi•‹o, ou a procedimentos de

realiza•‹o, como escada.

De qualquer forma, a comicidade se constitui em desafio ao pensamento ao se

 propor como objeto polifocal que em sua amplitude requer uma disposi•‹o

 pluralizada e despojada por parte do intŽrprete.

Ainda mais que em nossos tempos t‹o pragm‡ticos e imediatistas tudo parece

ficar sens—rio demais, com a consagra•‹o de uma hegemonia dos resultados. Isso fica

 bem not—rio na estranha unanimidade de que a grande parte dos espet‡culos esteja

convergindo para a busca da gra•a. ƒ preciso ser sempre engra•adinho. Propagandas,

filmes, telejornais, pe•as teatrais Ð cada vez a gente tem que se divertir. As coisas se

dividem entre divertidas e n‹o divertidas. E quem quer sofrer?

Essa obsessiva demanda por fazer rir compreende-se em parte pela fisicidade

do efeito c™mico. Quando voc faz rir, e rir espalhafatosamente, voc o resultado do

seu ato, voc ouve o pœblico. Esta ruidosa presen•a e nas casas e nos teatros satisfaz

tanto quem ri quanto quem faz rir. A causal e estreita conex‹o entre est’mulo e

resposta completa-se nesse circuito. Por alguns instantes h‡ uma proximidade, uma

fus‹o. Naquele momento, as pessoas se sentem —timas por participarem de uma

experincia de consumo na qual emo•›es podem ser expressas. E como quem manda

Ž o consumidor (a grande ilus‹o ), este bastar-se a si mesmo na gra•a e no corpo em

festa Ž o auge de uma cadeia de eventos que foram feitos s— para voc, meu amigo.Tudo o mais desaparece, pois teus olhos j‡ est‹o cheios de l‡grimas. Foi muito bom

 pra voc. Mas acabou. Agora saia dessa cadeira, desligue a tv e volte para casa. Veja

agora onde voc est‡. As coisas continuam as mesmas. Continuam? Elas alguma vez

foram.

Como tudo fica engra•adinho somente nos produtos engra•adinhos, h‡ um

intervalo desproporcional entre tŽcnicas e est’mulos ao riso e o universo da audincia.

Essa unanimidade ris’vel do mundo perde a gra•a quando nos deparamos com acomplexidade do mundo e com a complexidade mesma da comicidade.

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Um desafio para pesquisas 

H‡ um temor que certas coisas estudadas possam perder sua efetividade.

Assim, elas continuam a existir no ostracismo do elogio ou da condena•‹o. A

comicidade Ž um exemplo disso. Cifra um conjunto de pr‡ticas, produtos e tradi•›es

ampl’ssimo, uma variedade de nomes e fun•›es, uma imensa presen•a em nossa

existncia sem que, por isso, seja menos ambivalentemente defrontada com desejos de

saber ou n‹o saber.

Para alŽm do aspecto valorativo, diversas estratŽgias interpretativas em

 procurado uma aproxima•‹o mais esclarecedora da comicidade. A compreens‹o

dessas estratŽgias e de seus limites possibilita n‹o s— um conhecimento da comicidade

e sim de nossas formas de apropria•‹o da realidade. Na verdade, tentar conhecera

comicidade mostra como produzimos conhecimento. Ao invŽs de um passivo algo de

investiga•‹o, este variacional e multifocal objeto explicita seu intŽrprete. Aprender a

comicidade Ž compreender atos e situa•›es e de conhecimento.

 Na filosofia, como se v por exemplo em BŽrgson (O riso), h‡ a estratŽgia de

se definir previamente o objeto de investiga•‹o. Este mŽtodo aprior’stico estabelece

conceitos como defini•›es daquilo que se estuda. A identidade entre o conceito e sua

defini•‹o (A Ž B) acarreta a generaliza•‹o de um tra•o, de um atributo daquilo que se

examina. Ap—s, este tra•o ampliado Ž proposto como fundamento, explica•‹o do que

se observa.

Tal estratŽgia traduz o deslumbre do pensamento com uma descoberta. A

sobrevaloriza•‹o de um tra•o, sua eleva•‹o a essncia da coisa, acarreta para um

intŽrprete um foco em seu desempenho ao mesmo tempo que uma satisfa•‹o com o

achado. Esta proje•‹o do intŽrprete no objeto de investiga•‹o todavia interrompe a

amplia•‹o da descoberta. Como um espectador, ele se resigna ao produto e ilude-se

como sujeito do processo. Em atividades interativas, Ž preciso ir alŽm da fase dadescoberta, do fasc’nio da resposta e inserir-se mais na atividade de compreens‹o. A

expans‹o de um atributo como definidor do fen™meno n‹o passa da expans‹o de uma

certeza inicial tornada verdade final. Ao fim, d‡-se um salto, uma enorme acrobacia

no mŽtodo aprior’stico: a eleva•‹o do tra•o a essncia parece descrever uma

totalidade, uma apropria•‹o da inteireza do fen™meno. Na verdade, s— temos um

apressado salto.

Ora, se a comicidade para existir precisa ser produzida, se Ž necess‡rio haverum contexto de produ•‹o para sua efetividade, h‡ uma homologia entre este contexto

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de produ•‹o sobre a comicidade e a situa•‹o de se produzir conhecimento sobre a

comicidade. Tanto a comicidade quanto seu conhecimento se realizam em situa•›es,

em padr›es interativos . Os atos que neutralizam este escopo interacional neutralizam

a produ•‹o da comicidade e sua compreens‹o. Como objeto de investiga•‹o, a

comicidade exige que se aproxime dela comicamente. Rindo? N‹o s—: rir Ž o efeito. A

comicidade estrutura uma experincia que pode ser analisada em seus procedimentos.

O primeiro passo Ž a compreens‹o de sua performatividade.

Desse modo agindo, podemos reconhecer dois pressupostos para o estudo da

comicidade:

1-  a comicidade como performance e como objeto

investig‡vel efetiva-se em um contexto de produ•‹o no qual

referncias, nexos v’nculos promovem uma situa•‹o interativa que

determina o horizonte de atos de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o.

Mais que um elogio ou condena, a comicidade se esclarece como em

sua atitude referencial, contextualiz‡vel;

2-  sempre de olho na praga da contextualiza•‹o, reverso da

medalha do mŽtodo aprior’stico, tal atitude referencial n‹o se refere

somente a nexos entre atos c™micos e n‹o c™micos. A comicidade Ž

metareferencial, focaliza a si mesma durante sua performance.

Enfatiza os atos mesmos envolvidos em sua produ•‹o.

Ou seja, a comicidade reorienta referncias prŽvias para a

atualidade de sua produ•‹o, para a situa•‹o de sua

 performance. Dessa maneira, mais que uma idŽia, a comicidade

manifesta-se como uma interven•‹o em nossas estratŽgicas de

compreender e modelar atos pessoais ou interpessoais, mas que

efetiva n‹o somente como uma conscincia desses atos e sim

como ato, ato de atos. Rimos e fazer rir, agindo. A a•‹o c™mica

Ž um desempenho aplicado aos seus efeitos.

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Comidade e Riso

A f—rmula acima, alŽm de ter sido t’tulo de grande livro sobre a quest‹o - de

V. Propp - revela uma op•‹o metodol—gica que aparentemente explica aquilo sobre o

qual estamos falando sem, contudo, tornar intelig’vel o que de fato est‡ envolvido na

atividade de sua compreens‹o. Trata-se de uma moldura causalista: um evento c™mico

 produz riso. O riso Ž o efeito da comicidade. Se houver riso, h‡ comicidade.

Esta l—gica causalista situa no efeito a realidade do evento. H‡ uma hierarquia

entre procedimentos e produtos, entre fatores e resultado. ƒ o resultado que determina

a produ•‹o. A produ•‹o Ž o resultado daquilo que resulta. Nesta redund‰ncia

demarca-se a presen•a de algo por um determinado aspecto que Ž escolhido e elevado

a imagem geral do processo. A quest‹o n‹o Ž tanto uma vis‹o simplificadora que

iguala fim de atividade com sua finalidade. O que realmente Ž crucial reside na op•‹o

de se abster de acompanhar os mœltiplos e simult‰neos aspectos envolvidos da

realiza•‹o de alguma coisa em prol da consagra•‹o de um isolado componente.

 No caso da produ•‹o da comicidade, o riso comparece como uma resposta que

acompanha, avalia e marca a participa•‹o naquilo que Ž exposto para recep•‹o. O riso

Ž um aud’vel, sonoro, material ato que confere a aquilo que serviu de est’mulo ˆ

resposta um certo diferencial. No entanto, esta percep•‹o pontual do riso n‹o

corresponde ao seu contexto de efetiva•‹o nem muito menos ˆ sua determina•‹o. H‡

v‡rias modalidades de riso. H‡ v‡rios objetos e modalidade de produ•‹o de

comicidade. Rimos de coisas diferentes e de modos diversos. Muitas vezes nem rimos

de algo que Ž c™mico. H‡ atŽ o riso de constrangimento, silencioso.

Ora, se rimos sempre diferentemente, o riso n‹o Ž a essncia da comicidade,

nem sua maior defini•‹o, pois o riso Ž vari‡vel, variante, produto e est’mulo de

diferen•as distingu’veis.Por isso, a f—rmula Ôcomicidade e risoÕ, com seu c—gito Ò Me alegro, logo dou

risadasÓ , obscurece uma atividade mais ampla, o que motiva a necessidade de se

 pesquisar a produ•‹o de comicidade, e ir alŽm de uma verdade t‡cita, aceita sem

discuss‹o,uma obviedade Ð ÒMe alegro, logo dou risadasÓ.

Claro que n‹o estamos propondo uma investiga•‹o da comicidade sem o riso,

sem uma resposta c™mica. Como provoca•‹o fica o impulso de se ultrapassar o

circuito causa-efeito e uma atitude pontual em rela•‹o ao riso para que haja umamaior compreens‹o das implica•›es de se pensar e experimentar a comicidade em sua

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heterognea intera•‹o de atos e referncias. Como evento interativo, como produ•‹o

de um contexto de intera•‹o, situa•›es c™micas exploram atividades mesmas de se

estabelecer horizontes de interpreta•‹o. De forma que n‹o adianta aplicar ˆ

comicidade uma epistemologia esquem‡tica sendo que a comicidade se dirige

 justamente para a constru•‹o desses esquemas.

Assim, como saber, como conhecimento da experincia de conhecer, a

comicidade amplia-se e integra habilidades, procedimentos e atos, exibindo tanto a

diversidade destes quanto sua plural convergncia. Ao rirmos, percebemos como ao

mesmo tempo somos foco e participantes de algo que n‹o se confina a n—s mesmos.

Contra o insulamento do sujeito, a experincia c™mica registra e correlaciona os

d’spares. Longe de propor um comunitarismo ideal, a comicidade Ž uma atividade de

integra•‹o, tanto naquilo que nos une quanto naquilo que nos separa.

Comicidade e cinema mudo

Entre realiza•›es e gneros do primeiro cinema, temos uma variedade enorme

de obras classicadas como c™micas. AlŽm do efeito c™mico, tais obras se organizavam

em fun•‹o de claros procedimentos dramatœrgicos, que correlacionam temas de

composi•‹o(como as partes s‹o elaboradas e conectadas) a problemas de recep•‹o.

O document‡rio When Comedy was King  (1960), de Robert Youngson, Ž uma

colet‰nea de trechos de filmes da arte c™mica dos filmes mudos. Vou comentar dois

desses trechos.

 No primeiro, a partir de  A pair of Tights, de 1928, temos uma cena

aparentemente casual: dois amigos saem para tomar sorvete com suas amigas. N‹o h‡

como estacionar.. Ent‹o um das mo•as vai comprar sorvete, enquanto os outros, o

motorista e o outro casal, esperam por ela. Ora, Ž realmente a partir dessa cena de

reconhecimento, de contextualiza•‹o, que a comicidade vai operar. Como em umafuga musical, primeiro vem a apresenta•‹o do material que ser‡ posteriormente

transformado. A comicidade opera sobre referncias prŽvias,conhecidas. Essa cena, o

 ponto zero do esquete, ser‡ o alvo, o foco de inverven•‹o e performance dos atos dos

agentes em cena.

Tal situa•‹o inicial consiste de a•›es das personagens: o esquete se abre com o

carro estacionando e a mo•a indo comprar sorvete. Se ela cumprisse com este

 programa de a•›es, n‹o haveria comŽdia. Tudo que acontece se organiza agora emfun•‹o das dificuldades que s‹o interpostas entre o ato de comprar sorvete e ir

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embora. As a•›es propostas na abertura do esquete projetam um senso de

acabamento, de finaliza•‹o. Mas o n‹o cumprir este programa, este n‹o acabar Ž uma

a•‹o. ƒ nisso que consiste a opera•‹o c™mica: a passagem do programa de a•›es e

expectativas presentes na cena inicial para a redefini•‹o deste material prŽvio, que

 passa agora a tem como contexto de sua produ•‹o os atos de sua transforma•‹o.

Assim, a complica•‹o de uma situa•‹o aparentemente banal desloca o olhar

 para aquilo que Ž enfatizado nos obst‡culos da continuidade das expectativas.

De um lado temos o aparente fracasso da a•‹o: a mo•a falha ao n‹o conseguir

trazer os sorvetes. Mas essa l—gica s— Ž v‡lida no universo n‹o c™mico. Se o objetivo

do esquete fosse mostrar apenas uma mulher indo comprar um sorvete e voltar com

ele, tal avalia•‹o estaria correta.

Entretanto, o esquete Ž montado para explorar a n‹o realiza•‹o segundo o

senso comum, segundo aquilo se projeta sobre as premisas oferecidas na abertura do

esquete, mas sim em fun•‹o da construtividade que selecionou o que vai ser

mostrado.As dificuldades para que a a•‹o se realize segundo as expectativas dadas

v‹o orientar a recep•‹o para observar coisas se d‹o dentro do horizonte do esquete.

Os obst‡culos agem como filtros, que selecionam n‹o s— o que se v, mas o modo

como se percebe. Assim, na passagem do senso comum para o universo organizado

do esquete, as dificuldades detalham o universo imaginativo que est‡ sendo proposto

agora, a partir das carca•as do universo prŽvio. Tudo o que Ž mostrado enfatiza o

novo universo e seus procedimentos de efetiva•‹o.

Instalados nessa experincia que se organiza em uma l—gica outra de a•›es,

come•amos a nos surpreender com o que acontece e acabamos por rir. Tal resposta

relaciona-se ao fato de procurarmos explicar o que acontece segundo nossas

expectativas. PorŽm, diante de eventos com uma baixa taxa de ocorrncia, produz-se

uma resposta ambivalente frente ao que ambivalentemente Ž exibido. De um lado, osagente, os atos e os materiais s‹o comuns., conhecidos. De outro, o produto da

integra•‹o e utiliza•‹o desses materiais e atos n‹o o Ž. A baixa frequncia do que

ocorre sugere n‹o s— sua raridade como tambŽm seu ineditismo. As possibilidades de

alguŽm ir comprar sorvete e se defrontar com tantas complica•›es Ž sem dœvida algo

raro e inesperado.

A baixa frequncia desse excepcional evento, contudo, n‹o significa sua

escassez referencial ou de recursos. Antes, Ž dentro de uma perspectiva de excessoque o que se pressupunha comum Ž realizado: a dif’cil busca do sorvete se desdobra

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na dificuldade em estacionar o carro. Paralelamente temos as dificuldades de a mo•a

comprar e trazer o sorvete para seus amigos e as de seus amigos estacionarem o carro.

O desdobramento do esquete em a•›es paralelas e igualmente complicadoras amplia a

reorienta•‹o das expectativas de cumprimento de um programa de a•›es e

expectativas. Estas cenas dentro do esquete sobrep›e, distribuem e generalizam as

novas orienta•›es de recep•‹o dos eventos. No lugar de um genŽrica continuidade dos

acontecimentos, temos sua circularidade: a mo•a entra e sai da sorveteria; o carro

sempre retorna para busca a mo•a. As repeti•›es Ž que se tornam os marcos do

esquete, o come•o e fim de uma microsequncia. E tais marcos tornam-se, ao fim, os

referentes, as expectativas de acabamento do esquete.

Das certezas de cumprimento dos atos partimos para a certeza de sua

organiza•‹o: os atos n‹o se encontram motivados por pressupostos ou premissas

morais. N‹o que estejam livres Ð seguem um program de realiza•‹o que explora as

 possibilidades de amplia•‹o e diversifica•‹o de seus efeitos e procedimentos. Pois, de

um lado, o universo imaginativo parece se organizar como a realidade, a partir de

 padr›es. PorŽm, de outro, Ž a percep•‹o de padr›es que fica em segundo plano no

cotidiano, ou n‹o Ž enfatizada nos atos mesmos. Com o esquete filmado, por causa de

sua realiza•‹o cinematogr‡fica, mostra-se essa organiza•‹o que motiva os atos. Com

isso subverte-se nosso esquema de percep•‹o: n‹o s‹o as pessoas que fazem a

realidade, mas os acontecimentos que ultrapassam a vontade de a•‹o.

O segundo esquete Ž um trecho de  Big Bussiness, performado por Stan

Laurel e Oliver Hardy, os nossos conhecidos O Gordo e O magro. Como no caso do

esquete anterior, o ponto de partida Ž simples, banal Ð a oferta de um pinheirinho de

natal. Tal qual no outro esquete, estamos diante do estabelecimento do contato Ð as

rela•›es entre a cena a platŽia se fazem a partir, como em um fuga musical, daexposi•‹o de uma situa•‹o identific‡vel, que ser‡ alvo das posteriores transforma•›es.

Ap—s esta breve abertura, temos as opera•›es c™micas Ð uma sŽrie de eventos

que cada vez mais se afastam da normalidade inicial. Esta Ž a fase de amplia•‹o do

contato, no qual o mundo da audincia se v confrontado com duas l—gicas

simultaneamente relacionadas aos mesmos eventos. Em uma situa•‹o normal, os

eventos que se seguem tm uma baixa taxa de ocorrncia, mas no universo da

comicidade eles se tornam recorrentes, abundantes. Da venda da arvorezinha partimos para um conjunto de destrui•‹o de propriedades Ð Laurel e Hardy arrasam a casa e o

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quintal do dono da casa que recusou a oferta e o dono da casa arrasa o carro e as

restantes arvorezinhas de Laurel e Hardy.

Em um primeiro momento, se referimos as a•›es que vemos ao mundo em que

vivemos, facilmente conclu’mos que h‡ claras e manifestas transgress›es de c—digos

m’nimos de civilidade, transgress›es estas pass’veis de ajuizamentos e penaliza•›es.

Contudo, nesta comŽdia as restri•›es legais ficam em segundo plano Ð h‡ a entrada de

um policial que apenas observa, intervindo apenas no fim, marcando juntamente o

tŽrmino do esquete, seu terceiro momento Ð o desligamento do contato.

Macroestruturalmente os dois esquetes se organizam do mesmo modo, como

articula•‹o de uma experincia c™mica em suas partes Ð estabelecimento do contato,

explora•‹o do contato e desligamento. A conscincia das partes nos clarifica a

dramaturgia c™mica. Deste modo, mais que o efeito de rir, come•amos a compreender

a amplitude da comicidade, o porqu de rirmos.

Come•amos a rir quando na sucess‹o das a•›es mostradas h‡ uma

incongruncia entre as l—gicas prŽ-c™mica e c™mica. O impulso de normalizar o

referente, de contextualizar o que est‡ acontecendo a partir do que se conhece, estes

atos da recep•‹o s‹o continuamente confrontados com o impulso de

desfamilizariza•‹o que a sucess‹o eventos em cena produz. Da venda de uma ‡rvore,

 partimos para uma crescente sŽrie de retalia•›es, vingan•as. Inicialmente, nossa

rea•‹o Ž rir e abanar a cabe•a, censurando o ato. Mas como uma retalia•‹o Ž seguida

 por outra, aquilo que era exce•‹o e proibi•‹o dentro de nossa l—gica prŽ-c™mica torna-

se agora a normalidade. A sobreposi•‹o de eventos que ultrapassam nosso impulso de

redu•‹o a padr›es prŽvios demonstra como a comicidade atua justamente sobre estes

 padr›es, sobre uma estrutura pressupositiva.

 Neste momento, no embate e embaralhamento entre as l—gicas temos a

oportunidade de bem compreender que a idealiza•‹o da comicidade, uma abordagemque a desvincula a modos de produ•‹o de conhecimento e realidade, pode acarretar

mal entendidos e generalidades sem fim. Atribuir ˆ comicidades valora•›es

extremamente positivas ou negativas em nada contribui para sua compreens‹o.

Rebaixada como arte menor ou glorificada como reveladora de todas as ideologias, a

comicidade perpetua-se em sua indefini•‹o.

Como observamos pela cena do esquete e sua recep•‹o, tanto configura•›es

n‹o c™micas quanto c™micas se organizam por padr›es de referncia que s‹ohorizontes de intera•›es. Ao invŽs de uma oposi•‹o polar ou complementaridade

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esotŽrica, vemos que em nosso cotidiano agimos com determinados padr›es, mas n‹o

os enfocamos, n‹o explicitamos estes padr›es. J‡ na comŽdia Ž a configura•‹o das

a•›es que vem para o primeiro plano. Por isso tanta duplicidade, repeti•‹o e expans‹o

como procedimentos de amplia•‹o e desempenho da premissa c™mica. Na

comicidade, a enuncia•‹o suplanta o enunciado Ð exp›e-se a materialidade, os

suportes expressivos dos atos.

 No caso do esquete de Laurel e Hardy, observamos como a cena divide-se,

duplica-se entre a dupla que destr—i a casa do propriet‡rio e o propriet‡rio que destr—i

o carro da dupla. Essa biparti•‹o efetiva o come•o da amplia•‹o da coerncia c™mica

dos eventos. Inicialmente esta biparti•‹o Ž bem marcada, didaticamente apresentada:

indignado, o propriet‡rio vai para o carro da dupla, arranca um farol e o arremessa no

vidro do autom—vel. Por seu turno, a dupla, que observava tudo como platŽia dentro

da cena, dirige para a casa do propriet‡rio, arranca uma lumin‡ria e a arremessa na

vidra•a da casa.

A seguir, cada anjo exterminador fica demolindo sua por•‹o de realidade.

Assim como no esquete primeiro a dificuldade de agir era a a•‹o mesma da cena, aqui

tambŽm se constr—i o espet‡culo destruindo-se o cen‡rio. Esta l—gica negativa na

verdade, esta negatividade da comŽdia, tem sua efetividade, sua positividade:

interrompendo a teleologia dos atos, seu programa e expectativas de completa•‹o,

acabamento, tal circuito n‹o progressivo das a•›es ao mesmo tempo que interfere no

horizonte de compreens‹o dos atos chama aten•‹o para os pr—prios atos, para seu

contexto de produ•‹o. Uma a•‹o que se exibe dif’cil de ser realizada focaliza n‹o seu

resultado, mas a pr—pria a•‹o, sua construtividade,seu fazer, haja vista a imensa

 produtividade e eficincia da tripla repeti•‹o/prepara•‹o dos atos.

Ap—s a duplica•‹o da cena, a repeti•‹o e a crescente intensidade dos atos

tomam lugar no esquete. Aquilo que em um primeiro momento era censur‡vel, proibido, ilegal e absurdo come•a a se tornar recorrente. Por meio da repeti•‹o,

refor•a-se a l—gica da comicidade, do contexto c™mico. Pois, por meio da repeti•‹o

somos levados a observar n‹o s— o referente imediato da repeti•‹o, seu conteœdo, mas

a pr—pria repeti•‹o, o pr—prio arranjo dos atos, dispostos em seqŸncias assemelhadas,

mas intensamente diferenciadas.

Por meio da repeti•‹o, ainda, os eventos que tinham uma raridade come•am a

se tornar comuns. Repetir Ž produzir padr›es, tornando-os observ‡veis. Vemos emconjunto a coisa e sua configura•‹o. A amplitude c™mica consiste nisso: em integrar

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eventos e sua produ•‹o.

Dessa maneira, tornando palat‡vel, percept’vel o modo de organiza•‹o de uma

realidade, a comicidade funciona com explicitadora da construtividade de v’nculos e

referentes. Em nosso mundo habitual tambŽm nos organizamos por padr›es,

repeti•›es e generaliza•›es desses padr›es. A comicidade vale-se dos mesmos

 procedimentos de elabora•‹o de coes‹o e coerncia e coes‹o de nossa realidade.

Entretanto, a diferen•a esta em manifestar e tornar observ‡vel a co-existncia entre a

a•‹o e sua configura•‹o. E a comŽdia o faz isso a partir de eventos banais apropriados

nas fronteiras, nas margens de sua legitimidade ou sensatez, para que, a partir da

eleva•‹o do comum ao raro, e do raro ao comum, nossas capacidades de compreens‹o

e elabora•‹o de estratŽgias interpretativas sejam desafiadas em seus limites e limiares

Tanto que, ap—s a generaliza•‹o , temos a hipŽrbole c™mica, quando o

confronto entre l—gicas, entre impulsos de normaliza•‹o e ruptura s‹o superados em

 prol de alguns momentos quando a comicidade Ž referente de si mesma. O ato de

constantemente referir-se ao j‡ conhecido Ž substitu’dos pelos pr—prios referentes que

a comicidade prov. No esquete de Laurel e Hardy isso acontece quando o

 propriet‡rio desvincula-se de sua vingan•a e rivalidade quanto ˆ destrui•‹o da dupla e

acaba por quase ser engolido pelos farrapos das ‡rvores que, j‡ destru’das, ele tenta

destruir e pelas pancadas em um carro j‡ explodido e eliminado. Neste momento, a

seqŸncia de atos destrutivos chega ao seu ‡pice-n‹o h‡ mais que destruir, n‹o h‡

mais como ir alŽm, mas se vai, arrasando-se com o nada, com o vazio, pois, quando

n‹o h‡ matŽria suficiente nem combust’vel o bastante, inventa-se Ð o que importa Ž

que no sem mundo mesmo assim h‡ o mundo.

Conclus›es

A fenomenologia da comidade a partir dos esquetes de humor do cinema

mudo norte-americano iniciou-nos em uma mais atenta observa•‹o de produ•‹o e

recep•‹o de eventos c™micos. Em um primeiro momento, o ponto zero, o in’cio, Ž-nos

mostrado o mundo tal como ele Ž, ou como parece ser, por meio de uma a•‹o t’pica e

familiar. Neste momento o mundo dos espectadores e o mundo da cena est‹o em

equil’brio, quase s’ncr—nicos, partilhando assemelhadas referncias. Ent‹o o h‡ um

 problema: a a•‹o programada ou proposta n‹o se cumpre. Inicia-se a ruptura entre omundo tal como ele se apresentava e a continuidade de adiamentos dos planos, do

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 programa de a•›es prŽvio. Essa ruptura Ž esticada: aquilo que n‹o estava conforme ˆs

expectativas insiste em perdurar, projetando um outro conjunto de referncias. Essa

continuidade da ruptura Ž importante assinalar. Pois n‹o se trata de apenas

constantemente se referir ao que j‡ n‹o Ž, mas sim a intensifica•‹o da co-presen•a

entre aquilo que era, e aquilo que agora se imp›e. O erro, a falha, a interrup•‹o, o

deslocamento Ð tudo isso se em um primeiro momento estava ataviado ao forte

momento de abertura, depois de algum tempo demonstra-se em si mesmo. Assim, se

antes havia algo proposto como ÔnormalÕe em seguida a sua descontru•‹o, temos no

decorrer do tempo n‹o s— a sobreposi•‹o de duas l—gicas excludentes da realidade,

como o absurdo de aquilo que antes fazia sentido passa a ser ineficaz, e aquilo que era

a ruptura com a pretensa estabilidade transforma-se o padr‹o dos acontecimentos. Em

ultimo momento, quando n‹o se pode mais voltar atr‡s e estamos instalados no

familiaridade com absurdo, chegamos ao xtase c™mico, com o acœmulo de situa•›es

impoder‡veis, quando estamos libertos de buscar sentido fora do acontecimento

mesmo, em sua organiza•‹o.

Como se pode observar, posturar que idealizam a comicidade, vendo- a apenas

como momento de rutpura, de exce•‹o, de aberta a um novo e outro horizonte,

acabam por se interrogar limitadamente sobre seu modo de produ•‹o e recep•‹o.

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22- TEATRO E CONCEITOS: UM DEBATE ABERTO

Durante sŽculos o paradigma plat™nico ou a coer•‹o iluminista justificaram a

mœtua desconfian•a e concorrncia entre artistas e pensadores. Agora, com o

 benepl‡cito de institui•›es de ensino superior, diversos cursos e p—s-gradua•›es s‹o

abertos, projetos de pesquisa s‹o propostos e desenvolvidos, em um natural curso das

coisas sem que, muitas vezes, haja o questionamento a respeito da modalidade de

conhecimento debatida e estudada. N‹o se trata de um saber sobre arte, mas um saber

desde j‡ artes‹o.

As reflex›es aqui esbo•adas dirigem-se francamente a esta exuberante e

fervilhante novidadeira produ•‹o intelectual em Artes Cnicas. Creio que este novo

momento nas rela•›es entre arte e pensamento naturaliza, muitas vezes, uma pretensa

opacidade entre os termos atravŽs da estratŽgia da mera aplica•‹o de conceitos.

Atualmente, em alguns centros de ensino e pesquisa, canoniza-se a forma•‹o de

reprodutores de teorias retiradas de seus contextos intelectuais.

Frente ˆ baixa estima do campo das artes de espet‡culo, a apressada aplica•‹o

de conceitos se imp›e bruscamente. N‹o Ž ‡ toa que grande parte dos conceitos

advŽm das Cincias Sociais ou de ferramentas burocr‡ticas-epistmicas como a

Semi—tica. Nessa babel s— se fala uma linguagem: a da importa•‹o de referentes que

 justifiquem os atos estudados fora de seu contexto produtivo. N‹o Ž a importa•‹o de

conceitos o que se critica, mas a interrup•‹o das quest›es mesmas existentes nos

 par‰metros de elabora•‹o de representa•›es. A importa•‹o apenas duplica a perda da

especificidade do que j‡ n‹o se trabalha. Em todo caso, Ž preciso sempre resistir ‡

sedu•‹o do a apriori.

 Na base destas posturas est‡ o que podemos chamar Ôpressuposto detransparncia das representa•›esÕ. Segundo este pressuposto, a teatralidade Ž uma

constante homognea, evidente em si mesma, alheia ˆ necessidade de se interrogar

seu contexto de produ•‹o. Em virtude de se falar dela, existe enquanto fato mental.

Privilegia-se o acesso ˆ representa•‹o atravŽs do pensamento. A concretiza•‹o da

representa•‹o em uma forma vis’vel e aud’vel Ž extens‹o de uma idŽia. De maneira

que a materialidade do feito teatral Ž a ratifica•‹o do pensamento sobre sua

realiza•‹o. Este feito n‹o passa de ve’culo de um conteœdo inc—lume ao processo desua efetiva•‹o.

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Ora, assim raciocinando, o conceito Ž desvinculado de seu contexto produtivo

 porque se pressup›e que n‹o h‡ saber, que h‡ conhecimento apenas imediatamente

ap—s o estudo de algo j‡ realizado. Durante sua realiza•‹o o que se efetiva n‹o Ž

cognitivamente v‡lido. Somente sua reconstru•‹o intelectual Ž que possibilita seu

entendimento. N‹o se faz e n‹o se pensa ao mesmo tempo. Da’ a Ôtransparncia da

representa•‹oÕ, com marcas cognitivas acess’veis somente por uma media•‹o

intelectual descontextualizada.

Assim, um feito cnico se legitima em virtude de sua apropria•‹o. O sucesso

da explica•‹o que separa evento e contexto produtivo Ž o sucesso do mŽtodo

empregado e n‹o do objeto estudado. Os processos criativos tm seu c—gito no

cogitatum alheio que se torna pr—prio.

ƒ incr’vel como se visualiza um entrechoque bastante esclarecedor nesse

mundo ao revŽs. Enquanto as chamadas Cincias Sociais procuram oxigenar suas

abstra•›es com categorias oriundas da teatralidade, a legitima•‹o de um pensamento

nas Artes Cnicas busca se fundamentar em outras disciplinas.

 Nesse momento, surge a quest‹o: o que Ž isso que se quer conhecer e negar

tanto para que tenha sentido este esfor•o? Para que se estuda, analisa e se escreve

sobre artes? Ora, se se estuda, analisa ou se escreve simplesmente para aplicar uma

teoria sem levar em conta que um processo criativo Ž produtor de um saber teoriz‡vel

quando de sua realiza•‹o, ent‹o toda esta brilhante f‡brica explanat—ria Ž inœtil. Pois

se Ž poss’vel aplicar a teoria independentemente do objeto, ent‹o n‹o Ž preciso

aplicar.

Vendo deste modo, Ž mais trabalhoso amoldar o objeto, reduzindo-o ˆs

 prerrogativas do modelo ou do sistema explicativo prŽvio. Mas como h‡ sŽculos os

 processos criativos s‹o comentados por referncias surdas ao contexto produtivo,

ent‹o o que seria trabalho torna-se esfor•o arrefecido.De forma que o atual momento onde se integrou arte dentro da academia em

certas ocasi›es n‹o Ž um glorioso entrar pela porta da frente. Ainda mais com a

confus‹o cada vez mais brutal entre arte e misticismo, intensificada pela

democratiza•‹o de uma perspectiva n‹o estŽtica do fazer teatral. A intelectualiza•‹o

do entendimento do fazer teatral Ž complementada pela ritualiza•‹o dos espet‡culos e

da forma•‹o dos atores. O racionalismo de uns e o irracionalismo de outros desviam-

se das raz›es e das prerrogativas do processo criativo. Em pleno sŽculo XXI os

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tambores embalam a mesma cantinela m’ope e tr™pega do saber falar sem fazer ou do

fazer sem saber falar do que se fez.

Pois o saber teatral Ž operacionaliz‡vel, pode ser compreendido e transmitido,

 produzindo novas realiza•›es. O conhecimento adquirido atravŽs de contextos

 produtivos Ž diversificado atravŽs da continuidade de novas incurs›es criativas. ƒ este

conhecimento variacional e redimension‹vel, intimamente relacionado aos

 procedimentos espec’ficos de realiza•‹o de espet‡culo, que precisa ser pesquisado.

 N‹o adianta demarcar um terreno e n‹o colocar os pŽs nele.

O espa•o de cena Ž a contextualiza•‹o de um fazer que se disponibiliza pelo

espet‡culo. O espet‡culo encena suas escolhas, pensadas e debatidas durante seu

 processo criativo. O processo criativo procurou explorar e definir a exibi•‹o destas

escolhas, resultantes de uma reordena•‹o de materiais em fun•‹o de sua exposi•‹o.

V-se, pois, como, ao nos atermos aos problemas relacionados diretamente com a

elabora•‹o de espet‡culos, sua complexidade torna-se mais patente, explicitando n‹o

somente temas para discuss›es, mas quest›es concretas relacionadas com a

especificidade do que se estuda.

A ausncia do enfrentamento da situa•‹o de representa•‹o tem promovido o

expediente de transferir apressadamente uma agenda cr’tica de temas e concep•›es da

hora para o centro da atividade intelectual em artes do espet‡culo. O teatro virou

tribuna, palco dos outros e n—s restamos estrangeiros em terra estranha e deserta. Sem

conhecimento e sem tradi•‹o, presos ao alimento de agora, vagamos mendigando

cita•›es das grandes correntes de pensamento sem termos pensamento algum.

Isso ainda mais se agrava em se tratando de um pa’s perifŽrico como o nosso.

A repetida afirma•‹o que n‹o temos um sistema intelectual forte e que apenas

reproduzimos e atualizamos concep•›es importadas Ž refor•ada atravŽs da n‹o

considera•‹o de uma teoria da pr‡tica teatral a partir da interroga•‹o de seu contexto produtivo.

Esta teoria n‹o Ž uma completa descri•‹o do que se analisa nem a imposi•‹o

de uma pr‡tica-modelo. Os atos mesmos de se constituir uma representa•‹o possuem

um horizonte te—rico em virtude da correla•‹o de v‡rias quest›es operacionais

concomitantes ao ato mesmo de sua realiza•‹o. A simultaneidade de perten•as

diversas reivindica a considera•‹o da amplitude envolvida neste fazer. A redu•‹o

conceptual baseia-se na recusa ou controle dessa inst‰ncia variacional do processocriativo para a cena. ƒ preciso ent‹o que a teoria da pr‡tica teatral d conta dessa

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realidade variacional basilar. E uma teoria que problematiza a varia•‹o ela mesma se

desabsolutiza. Assim, temos a reflexibilidade de teorias mais relacionados com o

 processo criativo, pois elas mesmas n‹o apenas incidem sobre um objeto

transform‡vel como transformam-se em interpreta•‹o desse impulso diferencial.

Pois a especificidade do fazer cnico est‡ em como construir padr›es

vinculadores entre as varia•›es, entre os v‡rios n’veis de referncia apresentados

durante uma exibi•‹o. ƒ preciso distinguir as varia•›es das varia•›es e situ‡-las em

sua produtividade. A elimina•‹o de uma perspectiva privilegiada que monitora o

entendimento das referncias parece, desde j‡, um fator de efetiva•‹o de contexto

 produtivo cnico e a explora•‹o de seus n’veis de referncia.

De maneira que a atividade de representar defronta-se com seus limites e

 possibilidades. Os obst‡culos para sua elabora•‹o se tornam os vetores de sua

realiza•‹o. Um contexto produtivo Ž o enfrentamento de tarefas atravŽs de atos

diretamente relacionados com a possibilidade mesma de haver realiza•‹o. O

espet‡culo Ž uma meta que n‹o subsiste apenas como idŽia e planejamento. A

necessidade de sua realiza•‹o faz sucumbir todos esquemas prŽ-dados. O espet‡culo

torna-se a modifica•‹o de pressupostos, inten•›es e materiais prŽvios. Nessa

modifica•‹o exibi-se o espet‡culo mesmo. Altera-se para se fazer espet‡culo, para se

exibir aquilo que Ž espet‡culo.

Assim, acompanhando as modifica•›es realizadas durante o contexto

 produtivo, podemos compreender a especificidade do fazer teatral. Sendo estas

modifica•›es interven•›es que redefinem e orientam tanto a disposi•‹o desses

materiais quanto sua recep•‹o, temos que a nova situa•‹o decorrente dessas altera•›es

singulariza sua apresenta•‹o, e sua apresenta•‹o Ž o seu horizonte compreensivo. As

modifica•›es integram-se em um contexto extenso que exibe o padr‹o das altera•›es,

sua forma de apresenta•‹o. Ao mesmo tempo, esta forma de apresenta•‹o n‹o sefecha sobre si mesma. Sendo espet‡culo, sendo algo que se mostra, a forma de

apresenta•‹o exibe as altera•›es efetivadas e nesta exibi•‹o possibilita sua

observa•‹o. Tudo que Ž mostrado Ž observ‡vel. Mas, em virtude disso, a observa•‹o

n‹o Ž uma decorrncia, um res’duo. Ora, se aquilo que Ž exibido est‡ em uma situa•‹o

de exibi•‹o, logo aquilo que se mostra se efetiva em fun•‹o de sua exposi•‹o. As

altera•›es tanto de materiais quanto de planejamento s‹o feitas a partir da

 prerrogativa de que v‹o ser observadas todas as coisas levadas ‡ cena. O par‰metrodas modifica•›es se encontra em efetivar uma contextura observacional. Que algo vai

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ser mostrado e observado isso torna-se o pressuposto do contexto produtivo das artes

de cena. A cena Ž a emergncia de suas condi•›es de observa•‹o.

Disso temos que a realiza•‹o de um espet‡culo n‹o se resume ˆ sua exibi•‹o

ou a outro centro unificador das pr‡ticas representacionais. ƒ que se confunde

exibi•‹o com visualidade. O fato vis’vel n‹o Ž sin™nimo do feito mostrado. O

espet‡culo, dessa maneira, descentrando a visualidade como inst‰ncia final e œnico

meio de acesso ao que se representa, permite que procedimentos de focaliza•‹o que

ampliam as possibilidades de apresenta•‹o de eventos em cena sejam articulados.

Pois, se o espet‡culo Ž o que se v, ele n‹o precisa durar. Apenas v-se e pronto. O

 predom’nio de estratŽgias da visualidade como fator explicativo da elabora•‹o de

espet‡culo Ž a rŽplica expressiva de uma leitura intelectualista extrema: ambos, o olho

e mente, substituem a varia•‹o e a heterogeneidade da cena por monovalentes

 justificativas da hierarquia dos n’veis representacionais do espet‡culo.

De forma que lidar com heterogeneidades, com varia•‹o n‹o Ž novidade. O

elogio da diferen•a pode ser a nostalgia da ordem. A ratifica•‹o da multiplicidade se

faz muitas vezes por sua retifica•‹o. N‹o basta constatar a realidade multidimensional

dos espet‡culos. Da’ o lugar da teoria: como interpretar esta multidimensionalidade

sem recair na redu•‹o do mœltiplo a uma unidade prŽ-dada ou a uma dispers‹o

generalizada. Pois a multidimensionalidade s— existe em fun•‹o do contexto

 produtivo. N‹o se trata de um discurso, de uma idŽia. ƒ um fazer. A teoria, aqui, Ž

reflex‹o das implica•›es representacionais desse fazer; Ž, ent‹o, uma teoria do

espet‡culo, teoria da pr‡tica teatral.

Se o mostrado n‹o Ž apenas o visto, a ocorrncia de algo n‹o Ž somente sua

apari•‹o. Esta n‹o localidade problematiza os eventos apresentados e sua pr—pria

apresenta•‹o. Pois n‹o sendo aquilo que o concretiza, mas precisando dessa

concretiza•‹o para ser mostrada, ent‹o temos uma estranha l—gica de concomit‰nciaem uma mesma ocorrncia de movimentos dispares que se entrechocam.

 Na verdade, este estranhamento inicial Ž compreens’vel quando se entende sua

realiza•‹o. Se n‹o nos confinamos na ocorrncia isolada conclu’mos que na

realiza•‹o atualiza-se um movimento n‹o atomizador, uma a•‹o sobre sua

apresenta•‹o mesma. Aquilo que se mostra efetiva sua orienta•‹o como ato que

exerce uma reordena•‹o de sua ocorrncia. Mostra-se como pertencente a sua forma

de apresenta•‹o. Da’ o estranhamento. Pois ao exibir-se, mostra-se aqui, Ž vis’vel.

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  Sm;

Mas este ÔaquiÕ, anterior ˆ ocorrncia, vis’vel e aud’vel antes de algo ali surgir,

 perde a const‰ncia adquirida por estabilidade referencial. Assistimos naquilo que se

mostra n‹o a confirma•‹o daquilo que j‡ estava dispon’vel, ali ˆ m‹o. Justamente o

contr‡rio: temos a diferencia•‹o daquilo que em sua disposi•‹o prŽvia consistia o

horizonte primeiro e œltimo de nossa mundividncia e uma nova atualidade para n—s

ainda a se constituir. O espet‡culo em sua inst‰ncia emergencial marca a diferen•a e a

separa•‹o entre o que agora Ž uma anterioridade sempre presente e o que perdura

como uma atualidade sempre em constitui•‹o.

A diferen•a entre mostrado e vis’vel n‹o se apaga imediatamente, mas persiste

durante toda a representa•‹o. No prosseguimento daquilo que se mostra, hesitamos

em conferir, para aquilo que se exibe, seu acabamento vis’vel. Pois no espet‡culo, ao

compreendermos que aquilo que Ž exibido n‹o se confina naquilo que se mostra,

deixa-nos ˆs margens de uma instabilidade referencial como a•‹o contra ˆ inŽrcia

referencial. Ainda mais: identificados como diversos, mesmo que se compreenda a

amplitude do mostrado sobre o vis’vel, a visibilidade n‹o Ž apagada, ela se torna

operacionaliz‡vel pelo que se mostra. O intervalo entre uma e outra modalidade das

ocorrncias nos oferece a dimens‹o sincr™nica dos diferidos, proporcionando a

efetiva•‹o dos v‡rios n’veis de referncia como n’veis de representa•‹o do espet‡culo.

A presen•a dessa diferen•a intervalar nas ocorrncias mesmas do que se encena Ž

integrada no pr—prio processo criativo. A persistncia dessa tens‹o marca a

especificidade das artes de cena.

Da estabilidade da inŽrcia referencial partimos, pois, para a exposta

interven•‹o. No que se mostra torna-se vis’vel esta interven•‹o modificadora. A

continuidade da exibi•‹o Ž a continuidade dos atos envolvidos em fazer durar esta

 presen•a de altera•‹o. A qualquer momento pode haver o colapso daquilo que se

forma, daquilo que se exp›e. Para tanto, a representa•‹o demonstra-se como esfor•ode sua continuidade, cont’gua ao ato mesmo de apresentar algo. Defrontando-se

contra sua pr—pria desestrutura•‹o, a constitui•‹o de uma atividade representacional

exp›e o enfrentamento dessa iminncia desfiguradora ao configurar-se. A forma de

apresenta•‹o, pois, n‹o Ž um apagamento do esfor•o representacional, mas sim sua

transforma•‹o em obra. A representa•‹o configura-se a partir de sua situa•‹o de

 performance. A forma n‹o se imp›e sobre a realiza•‹o. As condi•›es de realiza•‹o

 problematizadas ativam a configura•‹o do que se mostra.

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  Sml

Da’ a n‹o coincidncia entre mostrado e visto. Em um primeiro momento o

que se mostra tem menor dimens‹o do que se v. Mas na medida em que o espet‡culo

segue seu curso, a realiza•‹o se imp›e sobre a inŽrcia referencial, interagindo com

ela, modificando o eixo de observa•‹o. Diferenciando-se e especificando-se em sua

configura•‹o, aquilo que se mostra torna o centro focal da recep•‹o. A visibilidade Ž

orientada ao  frame do que Ž mostrado. Temos um esfor•o complementar ao esfor•o

de configura•‹o: o esfor•o de recep•‹o.

Pois, com a amplitude do que Ž mostrado sobre o que Ž visto, aprofunda-se a

assimetria entre espet‡culo e recep•‹o e promove-se a necessidade de se estabelecer

v’nculos entre o mundo da representa•‹o e o mundo da audincia. Na medida em que

o espet‡culo se especifica e estabelece suas referncias, reposiona-se a audincia

frente a esta diferencia•‹o observ‡vel. Distinguindo-se de sua emergncia, o

espet‡culo demonstra que veio para ficar, que se prolonga e demora-se para alŽm de

sua ocorrncia pontual. Representa•‹o e audincia aproximam-se na disparidade de

suas referncias e perten•as.

 Na continuidade da representa•‹o esta disparidade repercute na

impossibilidade de fus‹o de ambas as esferas, frente ˆ diferen•a promovida pela

irreversibilidade temporal, pois nunca coincidem atos n‹o s’ncronos, j‡ em uma

sincronia de diferidos. O espet‡culo mesmo Ž a exibi•‹o da assimetria entre

representa•‹o e audincia, pois sua dura•‹o e extens‹o baseiam-se nessa n‹o

concomit‰ncia dos d’spares. S— Ž poss’vel haver espet‡culo quando a diferencia•‹o de

sua ocorrncia Ž generalizada. ƒ preciso manter a diferen•a atravŽs diferen•a.

Distinguindo-se e variando, o espet‡culo proporciona sua efetiva•‹o.

Mas diferen•a Ž diferen•a de algo. O diverso de si mesmo n‹o produz o que

diferenciar. Para diferir constantemente, Ž preciso expor aquilo que distingue sem

cessar. A amplitude do distinguir Ž realizada para prover a atualidade daquilo que seconfigura diverso do que havia de antem‹o. A atividade de diferencia•‹o Ž remetida

 para a constitui•‹o da identificada modalidade que se quer exibir. O espet‡culo exibe

o diferencial daquilo que mostra para fazer-se distingu’vel, compreens’vel em seu af‹

de representar aquilo que o especifica. A diferencia•‹o submete-se ao esfor•o

configurativo que situa e constitui o espa•o atual daquilo que se mostra. O espet‡culo

mostra porque mostra-se nas raz›es de sua diferencia•‹o. E estas raz›es est‹o ali,

expostas. N‹o pertencem a nenhuma espera transcendental ou totalmente alŽm ou

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  Smm

aquŽm da comunidade terr‡quea. Elas n‹o est‹o acima ou adiante de sua pr—pria

exibi•‹o. S‹o raz›es espetaculares, a realiza•‹o de suas condi•›es de inteligibilidade.

Esta reflexibilidade do espet‡culo, contudo, n‹o Ž um tema aut™nomo de seu

contexto produtivo. A reflexibilidade do espet‡culo est‡ diretamente relacionada com

sua realiza•‹o. A realiza•‹o corrige e orienta a composi•‹o, livrando-a de uma

 perfei•‹o eidŽtica. A reflexibilidade Ž a presen•a na exibi•‹o de um contexto

 produtivo enfrentado e incorporado na representa•‹o. A fisicidade do espet‡culo, em

virtude de sua realiza•‹o, torna a reflexibilidade n‹o uma idŽia, mas um conceito

operacional.

O descentramento da visualidade na compreens‹o de espet‡culos proporciona

a abertura para uma abordagem mais atenta ˆ sua especificidade. Pois h‡ a tendncia

de, ao se tomar o vis’vel como meio principal de acesso ˆs representa•›es, inverter-se

a causalidade produtiva e se privilegiar o produto, o resultado final em sua pretensa

homogeneidade e se desconsiderar todos os momentos esclarecedores de um processo

criativo.

Atentos para a amplitude do que se mostra em uma representa•‹o

tridimensional temos escalas e magnitudes mais diferenciadas assim como os limites

mesmo daquilo que se exibe. Pois, frente ˆ impossibilidade de fus‹o entre audincia e

representa•‹o, vemos que o espet‡culo Ž a explora•‹o dos limites e das possibilidades

 presentes nessa impossibilidade. O pœblico presente principalmente apenas ouve e v

aquilo que Ž exposto e a representa•‹o exibe esta parcialidade. N‹o h‡ o toque. E,

mesmo que ele aconte•a, Ž por momentos inseridos na assimetria. A assimetria

 providencia a continuidade da varia•‹o inaugurada pela emergncia da exibi•‹o. A

 permanncia do espet‡culo Ž a explora•‹o dessa assimetria.

Da’ podermos qualificar de audiovisuais os par‰metros de contato estabelecido

entre representa•‹o e audincia. A diferen•a que os conjuga Ž trabalhada atravŽs dematerialidades audiovisuais.

A fisicidade do espet‡culo, tanto na manipula•‹o de materiais durante o

 processo criativo quanto na exposi•‹o durante sua representa•‹o, subverte os

esquemas mentalistas que procuram reduzir a apreens‹o dos feitos teatrais ˆ uma

discursividade. AtŽ mesmo a consagrada nomenclatura Ôlinguagem teatralÕ obscurece

a intera•‹o complexa de par‰metros f’sicos-expressivos da elabora•‹o de espet‡culos.

A analogia com a linguagem, vista em sua abstra•‹o sistmica, n‹o esclarece procedimentos espec’ficos de composi•‹o n‹o lingŸ’sticos. O mŽtodo anal—gico

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sempre Ž um artif’cio limitador pois se compara algo pouco conhecido com algo que

se quer conhecer, duplicando o desconhecimento. Toma-se uma parte de alguma coisa

 para iluminar um pedacinho de outra.

Para alŽm disso, creio, porŽm, que Ž preciso colocar na agenda do dia a

discuss‹o mesma dos processos criativos. Sem enfrentar problemas de composi•‹o,

realiza•‹o e recep•‹o vamos discutir o qu? Espet‡culo e globaliza•‹o? A morte dos

 pingŸins dourados da Amaz™nia e sua fŽ cnica? O ser teatral e alma do mundo?

Enfrentando o processo criativo temos a contextualiza•‹o da teatralidade a

 partir de seu fazer, e ent‹o, vendo quais os problemas s‹o enfrentados e com isso os

limites e as possibilidades desse fazer, podemos compreender as especificidades e os

 padr›es dessas atividades e, dessa forma, teorizar, ampliar o feito pelos par‰metros de

sua elabora•‹o.

Assim explicitado um processo criativo que objetiva sua explicita•‹o mesma,

temos a considera•‹o do fazer como obra, n‹o em uma unidade composicional

unit‡ria, org‰nica. A an‡lise do processo criativo n‹o se reduz ˆ exposi•‹o da obra

como algo comp—sito, autocentrado. A obra teatral Ž um feito vinculante. Produz

nexos para sua efetiva•‹o, transforma suas referncias em orienta•‹o. A composi•‹o Ž

a familiaridade com a constitui•‹o desses v’nculos. O espet‡culo Ž a exposi•‹o de

atos vinculantes atualizados em sua representa•‹o. A obra orienta-se para o nexo de

suas referncias, para a exibi•‹o de referncias que produzem intera•‹o. De maneira

que a criatividade do compositor da obra est‡ relacionada com esta dimens‹o dos

nexos. A forma de apresenta•‹o do espet‡culo torna a exposi•‹o de uma atividade

vinculat—ria ampla e cont’nua. O ritmo de representa•‹o Ž a varia•‹o dos nexos. Se

tudo se mostra, compor Ž exibir o c—gito relacional da e na representa•‹o.

Esta orienta•‹o vinculante do espet‡culo, decorrente de sua realidade

exposit—ria, determina a composi•‹o para sua realiza•‹o. A composi•‹o n‹o se separada realiza•‹o, antes Ž seu pensamento. Compor Ž pensar a realiza•‹o. A performance

como horizonte da elabora•‹o do espet‡culo corrige falsas certezas mentalistas. Pois a

representa•‹o n‹o pode conter tudo. Ela Ž menor que o mundo. Ela tem seu mundo

em suas condi•›es de performance. A realiza•‹o n‹o Ž um ato suplementar, mas a

explicita•‹o dos atos do espet‡culo.

Pensa-se em atos como partes narrativas da representa•‹o. Mas quando

falamos de atos nomeamos n‹o uma linearidade actancial que atualiza um esquemanarrativo. Estamos falando de atos representacionais, conjunto interligado de

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marcadas a•›es que exibem o espet‡culo. Se compor Ž realizar, realizar Ž agir. Os atos

singulares de possibilitar a representa•‹o mostram que a performance do espet‡culo

n‹o Ž uma concretiza•‹o apenas, uma etapa posterior ˆ composi•‹o. A realiza•‹o Ž

tanto o teste da composi•‹o como sua compreens‹o. Os atos perform‡ticos tm um

 perfil cognitivo que transformam as a•›es na realiza•‹o em atos interpretativos. A

realiza•‹o Ž a exposi•‹o da estrutura interpretativa do espet‡culo. O espet‡culo

mostra-se como um feito interpret‡vel, difundindo sua inteligibilidade. Expondo-se e

exposto, o espet‡culo promove o acontecer de sua interpreta•‹o. Realizando-se, a

representa•‹o torna-se compreens’vel e articulada. Mostra-se em seus atos de

representa•‹o como fazer distingu’vel e a conhecer. ƒ uma provoca•‹o ˆ sua

apreens‹o.

Desempenhado para ser compreendido, mesmo que represente atos contra sua

compreens‹o, o espet‡culo tem seu acabamento na audincia. N‹o se trata de um

 publicotropismo (Grotowski). N‹o Ž o pœblico que Ž o respons‡vel pela elabora•‹o do

espet‡culo A representa•‹o n‹o Ž serva de sua platŽia. Aqui a discuss‹o sempre recai

na autonomia da representa•‹o e sua pureza ou na vis‹o do pœblico como um dado

n‹o estŽtico. Sem a considera•‹o da globalidade e da especificidade do processo

criativo a considera•‹o da recep•‹o flutua como um barco ˆ deriva. Requer-se o

 pœblico sempre que for necess‡rio justificar uma e outra coisa: 1 - o pœblico Ž

importante porque o espet‡culo Ž um apelo ˆ conscincia social; 2- o pœblico n‹o Ž

importante porque o espet‡culo Ž um exerc’cio estŽtico, uma pesquisa de linguagem.

Mas uma coisa Ž pœblico, outra audincia.

Ora sendo a representa•‹o teatral um fazer que se mostra a audincia n‹o Ž um

dado —bvio ausente do contexto produtivo. A recep•‹o n‹o vem a reboque de sua

necessidade. Se n‹o se levou em considera•‹o desde o inicio do processo criativo a

quest‹o da recep•‹o Ž porque foram feitas escolhas para apagar esta presen•aindelŽvel. No espet‡culo ficam as marcas desse apagamento. A modalidade de

intera•‹o produzida por um espet‡culo Ž atualizada em sua forma de apresenta•‹o. Os

 pressupostos de representa•‹o s‹o explicitados atravŽs da realiza•‹o. N‹o h‡ como

esconder algo que se mostra.

O problema Ž que se confunde pœblico e recep•‹o. A presen•a de um grupo de

 pessoas imediatamente frontal a uma cena n‹o faz disso uma recep•‹o se n‹o foi

levado em conta isso durante o processo criativo. Diferentemente, o audit—rio em potencial Ž um fluxo que atravessa a representa•‹o quando se considera a recep•‹o

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um fator integrante do espet‡culo. Eu posso ter um espet‡culo com pœblico mas sem

recep•‹o. Ou posso tornar rarefeita a recep•‹o atŽ perder o pœblico. A fisicidade da

representa•‹o coloca o problema te—rico da fisicidade do audit—rio potencial, da

constitui•‹o da audincia DESTE espet‡culo, a transforma•‹o do pœblico em

audincia.

Pœblico Ž um conceito civil, audincia Ž uma realiza•‹o estŽtica. Pessoas

reunidas em um espa•o aberto s‹o ÔpœblicoÕ. Pessoas disponibilizadas para uma

situa•‹o de representa•‹o s‹o ÔaudinciaÕ. Com a hodierna elimina•‹o de diferen•as

n‹o Ž invulgar que temos gente se comportando como pœblico em teatros e cinemas.

Ora este problema s— ratifica a especificidade do feito teatral. De nada adianta

 projetarmos para as artes da cena conceitos e experincias familiares ˆ an‡lise

liter‡ria. A rela•‹o obra-leitor Ž diversa da rela•‹o espet‡culo-espectador. A obra

teatral n‹o se esclarece atravŽs de uma morfologia lingŸ’stica. O sucesso do modelo

da estŽtica da recep•‹o na literatura vale-se de uma mudan•a na compreens‹o da

textualidade liter‡ria baseada na an‡lise de romances que se valiam de procedimentos

teatrais em sua escritura, tais como elimina•‹o da perspectiva privilegiada do narrador

e distribui•‹o de focos narrativos dissipativos. Enquanto isso nas artes de cena a

recep•‹o n‹o Ž um conceito da hora, mas um fator de seu processo criativo.

A relev‰ncia da receptividade situa o processo criativo teatral em sua

completude. O espet‡culo n‹o Ž a concretiza•‹o das idŽias de um autor, mas a

representa•‹o de uma atividade interacional que se amplia na medida em que exibe-se

intelig’vel e distingu’vel. A considera•‹o da audincia Ž a explicita•‹o da amplitude

de um processo que se limita em sua exibi•‹o. O aproveitamento da receptividade n‹o

Ž oferta de momentos que alimentam respostas imediatas, mas sim a compreens‹o da

multiplanaridade dos atos representacionais, envolvidos em simult‰neas referncias.

O entendimento do processo criativo na integra•‹o de composi•‹o, realiza•‹oe recep•‹o bloqueia qualquer tentativa de se empreender uma reflex‹o sobre as artes

do espet‡culo com o intuito de regular as produ•›es. O estudo das artes de espet‡culo

em seu contexto produtivo n‹o objetiva canonizar determinadas pr‡ticas, mas

demostr‡-las em seus procedimentos,possibilitando a conscincia da infinitude do

campo a partir do conhecimento de suas especificidades. N‹o se estuda algo em sua

amplitude para reproduzir ou legitimar certas pr‡ticas. Pois se o estudo for inserido na

globalidade do contexto produtivo v-se que a especificidade advŽm da varia•‹oexibida e sustentada, de modo que conhecer algo j‡ Ž integrar o conhecido na

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compreens‹o do fazer e n‹o do j‡ feito. De modo que a reflex‹o n‹o Ž independente

de atos de compreens‹o contextualizados. Um saber sobre artes da cena j‡ Ž ent‹o um

conhecimento que se representa inserido. H‡ uma fatal homologia entre conhecer e

representar. A dimens‹o explicitada das artes de cena Ž a exibi•‹o de um saber das

artes de cena. O ponto de viragem est‡ no seguinte: n‹o h‡ conhecimento fora de sua

execu•‹o. O espet‡culo teatral Ž o feito a ser compreendido, pois se estrutura como a

explicita•‹o de uma estrutura interpret‡vel. Conhecer um processo criativo Ž um

equ’voco j‡ que o processo criativo Ž ele mesmo a realiza•‹o de uma compreens‹o.

Saber e representar n‹o s‹o opostos. Ao contr‡rio, desmistifica-se a aura

 pseudometaf’sica da cria•‹o ao se considerar uma atividade representacional como

um feito intelig’vel.

A dimens‹o emergencial das artes de cena explicita em sua exibi•‹o n‹o s—

seu entendimento, mas a interpreta•‹o mesma de nossa atividade compreensiva. Por

isso, artistas que se posicionam contra qualquer car‡ter cognitivo ou racional de sua

arte, defendendo o irracionalismo e a intui•‹o, posicionam-se contra a arte que

 praticam. Retomam e refor•am a separa•‹o entre arte e conhecimento produzida pelos

estudiosos que separam reflex‹o da arte de seu contexto realizacional.

O div—rcio arte e conhecimento Ž bom para estes artistas como para aqueles

intelectuais, pois em meio ao obscurantismo a falta de inteligibilidade dos feitos

estŽticos serve para endossar equ’vocos, invalidando julgamentos.

Enfim, meu intento aqui Ž apresentar alternativas a este renovado div—rcio

entre arte e reflex‹o sobre a arte a partir de uma explicita•‹o dos conceitos

operacionais que um processo criativo atualiza em seu contexto produtivo.

A necessidade de conceitos operat—rios Ž premente como forma de se

ultrapassar as oposi•›es entre teoria e pr‡tica na atividade de representa•‹o para a

cena. Em virtude da evidenci‡vel realidade f’sica da representa•‹o audiovisual, umarejei•‹o de seu horizonte te—rico Ž postulada. Ou, em contrapartida, frente ˆ supress‹o

desta realidade ou disponibiliza•‹o da mesma como material para discuss›es alheias a

esta problem‡tica, as implica•›es do fazer s‹o negligenciadas. Contudo, sempre Ž

 preciso ter em mente que conceitos s‹o ferramentas. Podemos ter a coisa e n‹o o

nome. N‹o se trata de fetichizar os conceitos.

Por conceitos operat—rios entenda-se, pois, a inser•‹o de procedimentos

composicionais empregados em uma obra audiovisual em um contexto esclarecedorde sua atividade representacional. Dado que a manipula•‹o de materiais para a

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obten•‹o de uma fic•‹o fisicizada n‹o se reduz aos mesmos materiais, e que esta

manipula•‹o possui uma tradi•‹o, uma hist—ria que registra e explora modalidades de

solu•›es composicionais, os procedimentos retomam e desenvolvem quest›es

realizacionais. O fazer Ž um estudo das possibilidades de sua realiza•‹o. Aquilo que Ž

feito atualiza o embate frente ˆ restri•›es e alternativas que a materialidade e a

tradi•‹o de sua pr‡tica compositiva continuamente devolvem a cada novo fazer. O

acesso ˆ hist—ria desses problemas realizacionais se faz por meio da media•‹o de

conceitos operat—rios que indicam o contexto de quest›es composicionais dos

 procedimentos de constitui•‹o da obra audiovisual. Conceitos, hist—ria, processo

criativo.

Ao invŽs de uma descri•‹o formalista estrita que v a obra como um sistema

autocontido reconstru’do completamente por conceitos, temos o limite do processo de

conceptualiza•‹o em processos representacionais. A metalinguagem, a descri•‹o do

analista, n‹o Ž um substitutivo do objeto focado. O ideal de traduzir o feito

audiovisual em uma nova linguagem, mais precisa e sem contradi•›es, exclui o

confronto com atos pontuais de sua elabora•‹o.

Por detr‡s dessa l—gica encontra-se a incr’vel e desejada obsess‹o por uma

realidade mais fundamental , a matriz origin‡ria de todas as formas de representa•‹o,

como se o representado fosse um reflexo, uma atualiza•‹o do modelo.

Este ’mpeto generalista atenta para sua motiva•‹o disciplinadora. O esfor•o de

se efetivar um uma formaliza•‹o absoluta da representa•‹o atravŽs de sistem‡tica

conceptual autoreferente objetiva, por fim, produzir uma imposi•‹o de normas de

regula•‹o da atividade representacional. Pois se a descri•‹o alcan•a sucesso em sua

apreens‹o das extens›es do objeto estudado, ent‹o esta descri•‹o formalizada torna-se

 ponto de partida para a composi•‹o .

Contudo, o sucesso dessa formaliza•‹o n‹o advŽm da explora•‹o dos problemas inerentes ˆ atividade representacional, mas baseia-se no incremento das

exclus›es que a normaliza•‹o canoniza. Tanto que se pode falar de um fazer sem

realizar coisa alguma.

Partindo de e tendo em mente que uma representa•‹o audiovisual reivindica

quest›es relacionadas tanto ˆ sua composi•›es quanto ˆ sua realiza•‹o (performance),

conceitos operat—rios s‹o necess‡rios como forma de movimenta•‹o frente a estas

quest›es.Enfim, para tanto, h‡ a necessidade de conjugar as seguintes tarefas:

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1-

cr’tica integrativa da tradi•‹o modernista, distinguindo suas orienta•›es e

 posturas, de modo a superar os entraves proporcionados atravŽs de posicionamentos

absolutos e dogm‡ticos, principalmente no que diz respeito ˆ autonomia e

espiritualiza•‹o dos processos criativos e ˆ recusa da tradi•‹o. Pois,

contraditoriamente, muitas das atitudes revolucion‡rias se tornam cativas daquilo que

negavam, transformam-se em dogmas. Experimentalismo e criatividade n‹o s‹o

 propriedade exclusiva do eterno vanguardismo. H‡ outras tradi•›es dentro da

tradi•‹o. ƒ preciso refutar a separa•‹o entre arte e hist—ria, arte e tradi•‹o.

Em decorrncia disso, tona-se imprescind’vel contextualizar o Modernismo

teatral do sŽculo XX e sua busca da autonomia e pureza expressivas, distinguindo

suas orienta•›es de modo a tornar compreens’vel propostas ao invŽs de reproduzir

seus equ’vocos. Dessa maneira, evita-se resumir o que aconteceu no sŽculo passado a

uma hegem™nica postura, incontest‡vel e absoluta. N‹o se pode fazer a equivalncia

entre tendncias d’spares. Como emblema ter’amos: as modernidades teatrais, para

alŽm da homogeneidade da heran•a cr’tica e revolucion‡ria do experimentalismo

cnico.

A partir dessa contextualiza•‹o, procuramos fazer notar que muitas das

quest›es relacionadas com a autonomia do campo das Artes Cnicas providenciam o

reconhecimento de um contexto produtivo espec’fico para estas artes. A busca de uma

especificidade n‹o refuta a presen•a de uma tradi•‹o criativa, aproximando contextos

hist—ricos e expressivos. N‹o Ž no ÔespiritualÕ que reside a ÔessnciaÕ do campo, mas

em seu fazer. O isolacionismo essencialista e metaf’sico da arte converte-a em um

tema para discurso e n‹o para realiza•‹o. O levar em conta esta dimens‹o

realizacional amplia e muito o entendimento do que se faz ou do que se procura fazer.

A prŽvia defini•‹o do que se realiza separa composi•‹o e realiza•‹o, eliminando aimport‰ncia da segunda. Se a realiza•‹o Ž uma proje•‹o de idŽias pressupostas

inalteradas, se Ž um recipiente, ent‹o pode-se prescindir dela. Basta pensar apenas. A

 prevalncia de uma situa•‹o de performance, da exibi•‹o, de um espa•o de

representa•‹o e emergncia refuta a continuidade entre idŽias prŽvias e processo

criativo, reivindicando novas abordagens do que se observa. Pois temos o  fator

 performance atuando: tudo Ž transformado durante o processo criativo. Composi•‹o e

realiza•‹o se interpenetram.2-

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aten•‹o mais demorada ao processo criativo dram‡tico e sua

metareferencialidade, como forma de vincular os conceitos empregados ao seu

contexto produtivo, possibilitando o recurso a conceitos operacionais. Ora, se algo Ž

compreens’vel, Ž porque em sua realiza•‹o ele se efetiva inteligivelmente. A

metaferencialidade Ž uma ratifica•‹o do car‡ter exibitivo e perform‡tico das artes de

espet‡culo. N‹o Ž um momento especial no qual se comenta a pr—pria composi•‹o. Na

verdade, a realiza•‹o explicita sua composi•‹o. O teatro Ž uma metafic•‹o, pois

depende de sua inteligibilidade espec’fica para realizar-se como espet‡culo. Em

fun•‹o de sua realidade multitarefa, que aproxima atos diversos e simult‰neos, as

referncias desempenhadas em cena s‹o a orienta•‹o mesma de sua compreens‹o.

Dessa forma, o teatro Ž uma arte de superf’cie, de exposi•‹o, de emergncia,

de eventos. N‹o h‡ o oculto ou o ÔmistŽrico (mistŽrio + histeria)Õ, pois tudo Ž revelado

atŽ o n‹o dito ou o n‹o visto. Tudo o que n‹o se mostrou ou se revelou n‹o era para

ser mostrado ou revelado. O fator performance determina a atualidade de uma

representa•‹o vis’vel e presente em sua realiza•‹o. ƒ preciso ultrapassar uma

defini•‹o bin‡ria da cena, disposta entre vis’vel e n‹o vis’vel, esquema que retoma o

dualismo psicof’sico tradicional. Se se comp›e algo que n‹o foi mostrado ent‹o o que

se comp™s Ž irrelevante. S— Ž relevante o que se mostrou, o que se tornou evidenciado

e intelig’vel durante a atividade mesma de sua exposi•‹o. A cena Ž um espa•o de

exibi•‹o, marcado por se expor assim. A estrutura tridimensional, quadimensional

daquilo que se mostra espacializa os referentes exibidos de forma a se estabelecer

como alvo observacional para quem a interpreta. O finito espa•o dessa exibi•‹o

impede associa•›es ideais independentes do que se mostra em cena. Tudo que se

mostra exige seu fundamento espetacular. A cena corrige a imaterialidade da mente.

CritŽrios mentalistas baseados em idŽias sem contexto produtivo fracassam em

explicar os procedimentos realizacionais. Uma estŽtica operat—ria Ž necess‡ria. Aespacializa•‹o teatral determina sua operatividade audiovisual

 Neste espa•o finito cada ato especifica sua ocupa•‹o. O tempo de exposi•‹o

daquilo que se exibe articula-se com altera•›es daquilo que se mostra. Cada ato Ž uma

ocorrncia, compreendida em sua posi•‹o, extens‹o, dura•‹o e retomada.

Contudo, explicitado localmente os atos se dirigem contra sua localidade. A

continuidade de sua presen•a determina a visagem de diversos tempos de sua

 presen•a. N‹o sendo meras idŽias encarnadas tambŽm n‹o s‹o monol’ticos blocosestacion‡rios, assim como o espet‡culo n‹o Ž a amplia•‹o e manuten•‹o de uma

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ocorrncia pontual isolada. Como articular a tens‹o entre o local e o n‹o local, entre a

emergncia pontual e uma amplitude das ocorrncias?

Da mesma maneira que isoladamente um ato pode ser inserido em n’veis

mœltiplos de referncia simult‰neos sucessivamente esta varia•‹o da presen•a Ž

operacionalizada. A varia•‹o local desde j‡ remete para a varia•‹o translocal, de

modo que nos aproximamos da compreens‹o da espacializa•‹o cnica com maior

entendimento. As dicotomias presen•a-ausncia, local - n‹o local, entre outras, s‹o

dicotomias aparentes, intensificadas apenas pela aplica•‹o de estratŽgias explicativas

que n‹o levam em conta a especificidade do contexto produtivo de artes que se valem

de espa•os representacionais. Para alŽm dos binarismos, temos a superf’cie, o lugar de

emergncias que se constitui em algo para ser observado, compreendido. A exposi•‹o

ordena-se em fun•‹o da distribui•‹o de seus materiais em virtude da explora•‹o de

suas possibilidades representacionais e n‹o como adequa•‹o a um seqŸenciamento

convencionado, atribu’vel a veicula•‹o de uma perspectiva privilegiada. H‡ o fazer-se

da exposi•‹o que exibe sua contextura observacional pr—pria, em virtude das

 possibilidades escolhidas. Pois a cena exp›e em fun•‹o de sua inteligibilidade, em

fun•‹o de sua recep•‹o. AlŽm do local e do translocal, temos a situa•‹o de

 performance tornada uma contextura observacional.

Espacializada, a cena especifica-se e exibe-se. A composi•‹o e a realiza•‹o se

complementam na recep•‹o. A mœtua implica•‹o de composi•‹o, realiza•‹o e

recep•‹o nos mostra a complexidade dos atos representacionais das artes de

espet‡culo.

Daqui se seguem, n‹o exaustivamente, os seguintes problemas-conceitos de

um espet‡culo teatral:

a- diferencia•‹o drama/ narrativa. Examinando bem o pressuposto de

transparncia da representa•‹o, que afirma ser a fic•‹o um ve’culo para uma no•‹oque n‹o se modifica quando representada, chegamos ao predom’nio de estratŽgias

narrativas como forma de determinar o escopo e a forma de apresenta•‹o de fic•›es

audiovisuais. Como vimos, a assimetria entre audincia e representa•‹o procura dar

conta de parte de quest›es ausentes em um modelo descritivo que se confina ˆ

narratividade. O drama Ž um englobante. Sua diversidade de situa•›es n‹o se

restringe a atos narrativos.

 b- espa•o de representa•‹o e situa•‹o de observ‰ncia A especificidade dafic•‹o audiovisual e seus problemas e escalas de realiza•‹o e composi•‹o reivindica o

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espa•o de representa•‹o. A divis‹o do todo em partes e a marca•‹o dessa divis‹o s‹o

atividades correlativas que contextualizam o prosseguir da representa•‹o. O nome '

cena ' tem sido utilizado para caracterizar a rela•‹o espa•o-temporal onde e quando

uma por•‹o delimitada dessa divis‹o Ž encontrada. Dessa atividade, pode-se concluir

que, frente ˆ impossibilidade de se exibir a totalidade do que se quer representar em

um œnico ato, um conjunto de atos Ž articulado e ganha sua realidade em fun•‹o de

compor e atualizar momentos que marcam compreens‹o do espet‡culo. Mais que uma

formaliza•‹o narrativa, a sucess‹o de cenas interpreta o contato de uma audincia

com uma fic•‹o. Estruturas de contato que exploram este enfrentamento s‹o dispostas

no decorrer da representa•‹o. O acontecer dessa experincia de ajustamento frente ao

diverso, inserindo-se em uma situa•‹o de observ‰ncia, n‹o se d‡ abstratamente, mas

ocorre no entrechoque de referncias, em um espa•o de representa•‹o. Desde o in’cio

a fic•‹o que o espet‡culo exp›e (e se exp›e) exibe seus pressupostos e procura

orientar a atividade interpretativa da recep•‹o. Atravessa toda a representa•‹o uma

cont’nua a•‹o avaliativa, interpretativa, imaginante da audincia, ajustado-se ao que

observa. Para dar conta dessa a•‹o, os dramaturgos antecipam-se formulando pouco a

 pouco a audincia em potencial de seu espet‡culo, testando o nexo entre espet‡culo e

recep•‹o. A materializa•‹o das referncias se d‡ na rela•‹o entre um espa•o figurado

na representa•‹o e a posi•‹o dos agentes dram‡ticos em rela•‹o a este espa•o. Espa•o

Ž igual ˆ acontecimento. O acontecimento precede o agente e o agente torna

compreens’vel o espa•o reagindo e refigurando-o. O agente Ž avaliado espacialmente

como algo que tem posi•‹o, extens‹o, dura•‹o e sobrepresen•a. Esta quadratura do

agente dram‡tico integra-o em uma situa•‹o de observ‰ncia, fazendo com que os

tra•os e as referncias as quais ele nos remete sejam contextualizadas em fun•‹o da

atividade imaginativa-interpretativa do espet‡culo que correlaciona a fic•‹o que se

mostra com o esfor•o cognitivo da recep•‹o. O espa•o de representa•‹o Ž o acontecerda compreens‹o do que Ž representado. O que se representa Ž mais do que se

apresenta, mas o que se mostra n‹o se esvazia na sua exibi•‹o.

 Nunca esquecer que como estamos sujeitos somente ˆ visualidade e a audi•‹o,

n‹o havendo contato f’sico direto, tudo Ž recebido em termos de observa•‹o. Tudo

que se mostra Ž constru’do em fun•‹o de ser observado. A espacializa•‹o do que Ž

mostrado Ž sua transforma•‹o em conhecimento audiovisual. Os agentes s‹o pontos

focais dos quais partem e para os quais chegam referncias e orienta•›es a respeito doque Ž representado e como se d‡ a representa•‹o. Toda referncia Ž uma orienta•‹o,

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um ’ndice de espet‡culo. A continuidade da representa•‹o Ž constru•‹o de sua

observ‰ncia, Ž a operacionaliza•‹o de sua focaliza•‹o dram‡tica. N‹o Ž o seguir de

uma idŽia ou o confirmar uma expectativa que define o modo de ser da representa•‹o.

Partindo do estabelecimento de um contato, Ž preciso criar as condi•›es de sua

inteligibilidade. ƒ preciso converter-se em fato observ‡vel o que prop›e ser um feito

de fic•‹o. Mas o espa•o de representa•‹o n‹o Ž uma homogeneidade. Como

contextura de observa•‹o, articula-se seus v‡rios n’veis, a simultaneidade das d’spares

 presen•as da atividade imaginativa do espectador e da atividade ficcional da

representa•‹o.

Assim, tudo Ž explicitado. N‹o h‡ o absc™ndito, o profundo, o mistŽrico. O

espa•o de representa•‹o e a contextura observacional nos lembram dos limites e das

 possibilidades do espet‡culo.

c- atos atos personativos Este conceito nos auxilia na tentativa de melhor

compreender o que chamamos personagem. A cultura personalista e individualista na

qual nos movemos sobrecarrega a fic•‹o como forma de refor•o de uma identidade

sem diferen•as, identific‡vel. A mal compreendida teoria do distanciamento de Brecht

nos auxilia na atividade de descentrar a fic•‹o da personagem. Ora ao partimos

mesmo de uma assimetria fundamental que se prolonga pelo espet‡culo e que a fic•‹o

empreendida por este espet‡culo Ž a tentativa de integrar a assimetria em uma

situa•‹o de observ‰ncia, Ž imposs’vel a absoluta fus‹o personagem/espet‡culo,

 personagem/audincia.

Fundamental para isso Ž perceber a diferen•a entre contexto de cena e situa•‹o

dram‡tica. N‹o esvaziando a localidade do que se mostra nem perpetuando a

literalidade do que se apresenta, esta distin•‹o Ž œtil para determinar a focaliza•‹o

dram‡tica proporcionada pelos agentes dram‡ticos. Eles agem em um contexto de

cena, uma m’nima referncia tempo-espacial identific‡vel, com a qual contracenam ea qual tornam intelig’vel. Mas o agente dram‡tico n‹o se reduz ˆ sua ambincia, pois

ele tem outros atos. A ilumina•‹o do contexto de cena frente ao todo do espet‡culo se

d‡ quando ele evoca a situa•‹o dram‡tica que o sobredetermina. O contexto de cena

se v integrado em uma compreens‹o que ultrapassa o reconhecimento de seu

 presente imediato, compreens‹o esta proporcionada pelos atos personativos, mas que

muitas vezes o pr—prio personagem n‹o incorpora como algo que entendeu. A platŽia

sabe mais que os agentes dram‡ticos, pois eles tem um destino de escritura. O prosseguir do espet‡culo Ž a continuidade da diferen•a de saberes da recep•‹o e dos

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agentes dram‡ticos. H‡ n’veis de realidade em cena como diferen•as de saber. Esta

diferen•a pode ser marcada pelos termos contexto de cena (saber restrito aos atos

representados) e situa•‹o dram‡tica ( saber ampliado pelo fazer-se do espet‡culo).

ƒ nos agentes dram‡ticos e em seus atos que a explora•‹o do contato entre

representa•‹o e audincia Ž desenvolvida. Eles duplicam a rela•‹o cena-audincia. A

contribui•‹o da personagem para o espet‡culo n‹o se restringe somente a feitos de

caracteriza•‹o. A realidade multitarefa de um agente dram‡tico ultrapassa tambŽm

sua instrumentaliza•‹o como porta-voz autoral. De qualquer forma, sabemos que

somos mais complexos, variados e mut‡veis que uma figura. Como bem nos

demonstrou Pirandello em "Seis personagens em busca de um autor". Os atos das

 personagens contribuem tanto para sua individua•‹o quanto para a individua•‹o do

espet‡culo. As personagens mesmas s‹o atos, s‹o essas a•›es expl’citas e

diferenciadas. S‹o atos personativos. ƒ preciso desustancializar o conceito de

 personagem, retirando-o de uma inst‰ncia reprodutiva que providencia uma œnica

estratŽgia de vincula•‹o da audincia ao espet‡culo. Desusbtacializado, o agente

dram‡tico se materializa no conjunto de nexos que ele efetiva em sua situa•‹o de

representa•‹o.

d- marca•‹o emocional do espet‡culo. Correlacionando representa•‹o e

compreens‹o, dimensionamos a fic•‹o audiovisual em tarefas intelig’veis que

solicitam atos complexos e interligados. O cont’nuo recurso ˆ compreens‹o Ž o dar-se

conta de que alguŽm v e avalia e imagina o que voc mostra. E a convivncia com

este olhar e sua internaliza•‹o por parte de quem faz arte ou aprecia arte Ž um modo

de desnaturalizar nossa habitual tendncia de resolver tudo que se representa em

termos de discurso ou de elogio m’stico. O reenvio para uma contextura de

observ‰ncia e de inteligibilidade n‹o nega de maneira alguma a emo•‹o na arte

audiovisual. Antes, a situa frente ˆ sua atividade representacional. Pois emo•‹o Žmarca•‹o, Ž focaliza•‹o de algo que se entende ou busca compreender. Como n‹o se

 pode tocar ou sentir o que o outro Ž ou sente, s— podemos pressupor, imaginar de

acordo com o confronto entre o que sabemos e o que j‡ sab’amos. Frente ˆ eventual

dispers‹o da recep•‹o, a emo•‹o Ž marcada, separada, reconhec’vel, sendo uma

varia•‹o da compreens‹o do que se representa. A dimens‹o cognitiva da marca•‹o

emocional de modo algum elimina seus efeitos sens’veis. Antes, efetiva a

racionalidade presente em todas as etapas da elabora•‹o, performance e recep•‹o deuma obra.

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e- integra•‹o dram‡tica ƒ preciso refor•ar uma vis‹o global dos problemas de

uma dramaturgia audiovisual. Vendo o drama como uma categoria de composi•‹o, e

n‹o de conteœdo, atravŽs do qual se ficcionaliza uma memor‡vel experincia de

observ‰ncia, notamos que aquilo que Ž assimŽtrico e ass’ncrono Ž explorando ,

 possibilitando uma integra•‹o dos d’spares em uma pervivncia mais extensa. Ao fim

o espet‡culo Ž a exposi•‹o de sua inteligibilidade, sua metaficcionalidade. A diferen•a

entre o que Ž mostrado e o que Ž compreendido, torna n‹o coincidentes o fim da

apresenta•‹o e o tŽrmino do espet‡culo. A morte das personagens contribui para

marcar e lembrar a separa•‹o entre fic•‹o e realidade encenada na representa•‹o. A

forma de apresenta•‹o da fic•‹o Ž esclarecida pelo modo com se integra a recep•‹o.

3-

revis‹o do conceito de dramaturgia como meio de acesso aos espec’ficos

contextos de produ•‹o do espet‡culo teatral visto como fic•‹o audiovisual. A

dramaturgia apresenta-se como explora•‹o das potencialidades representacionais do

espet‡culo.

Um dos fortes obst‡culos da tradi•‹o espiritualizante-modernista foi a palavra.

A .Artaud paradoxalmente condenou o texto valendo-se liricamente da palavra. Ap—s

tivemos colagens e atomiza•›es do texto. O forte contexto reativo de ent‹o fazia crer

que a melhor maneira para se autonomizar o espet‡culo teatral, atingindo sua

essncia, era acatar uma ant’tese entre corpo e palavra. A plasticidade do corpo seria

um remŽdio contra a abstra•‹o da linguagem.

Mas dramaturgia n‹o Ž sin™nimo de distribui•‹o de falas. Assim como a

 palavra tem sua plasticidade. A hip—tese regressiva de o teatro possibilitar um

encontro total e sagrado entre as pessoas Ž uma utopia que n‹o tem realiza•‹o. O

espet‡culo, em sua articula•‹o finita, n‹o d‡ conta de tamanhos empreendimentos.

Da’ a dramaturgia. Frente ˆs escalas do espet‡culo e ˆ situa•‹o de representa•‹o, Ž preciso tornar essas limita•›es as possibilidades mesmas do que se encena. A

dramaturgia explora os par‰metros de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o, efetivando

uma configura•‹o espec’fica. A dramaturgia Ž um roteiro de representa•‹o, onde a

correla•‹o entre os par‰metros Ž especificada. Dramatizar Ž estabelecer os v’nculos e

os nexos entre audincia e espet‡culo a partir do espet‡culo. A dramaturgia Ž a

compreens‹o em express‹o desses v’nculos e nexos. N‹o se trata somente de escrever,

n‹o se trata apenas da palavra. Dramaturgo Ž quem realiza os par‰metros estŽticos doespet‡culo. E drama?

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Muitas vezes n‹o h‡ linguagem para aquilo que parecemos compreender bem.

Ou ainda que a raridade de um fazer criativo envolva sem piedade as amarras de sua

sustenta•‹o. Vejamos o caso do drama. O cont’nuo recurso ˆ palavra efetivou n‹o um

gnero mais um estilo interpretativo tornado ’ndice de valora•‹o quase absoluto e por

isso alvo de recusa. A ininterrupta sobreposi•‹o de aplica•›es ao drama, contudo,

retira-o de seu contexto produtivo e das quest›es composicionais. N‹o Ž em v‹o que

se busque um filme dram‡tico, uma mœsica dram‡tica, uma pintura dram‡tica. O

recurso extensivo ao drama comparece na apropria•‹o de uma experincia de

ordena•‹o, disposi•‹o e inteligibilidade dos materiais audiovisuais. O modo como se

estabelece uma marca•‹o distingu’vel das sucess›es apresentadas, fazendo com que a

dura•‹o do que se mostra revele sua integra•‹o em uma atividade representacional

desencadeada, apela para a qualifica•‹o Ôdram‡ticoÕ. A disposi•‹o de partes do

espet‡culo reconhec’veis em sua estrutura•‹o de forma a fazer notar uma suspens‹o

do que Ž exibido, sonegando uma continuidade na apresenta•‹o para promover uma

reorganiza•‹o orientadora do espet‡culo rumo ˆ n‹o localidade do que se mostra,

delineia a elabora•‹o dram‡tica da representa•‹o. De sorte que o dram‡tico aponta

 para a compreens‹o da forma do espet‡culo da atividade audiovisual. Partindo da

 posi•‹o, dura•‹o, extens‹o e sobrepresen•a da disposi•‹o de materiais sonoros e

visuais, dramatizar Ž argumentar e integrar em um espet‡culo tarefas composicionais.

A dramaturgia Ž a escrita e trato com estas tarefas. A escritura de uma obra

audiovisual necessita n‹o s— do conhecimento dos materiais e dos meios de sua

viabiliza•‹o, mas do defrontar-se com problemas estŽticos-realizaciononais. Por isso

a textualidade espec’fica da dramaturgia se esclarece melhor quando melhor Ž

compreendida como elabora•‹o de um roteiro de representa•‹o.

H‡ uma tradi•‹o de se propor sons e imagens para uma platŽia, fato que nos d‡

a op•‹o de escapar de muitos de nossos entraves pop-p—s-modernista. Ultrapassando asepara•‹o entre texto e espet‡culo vemos o dramaturgia como roteiro do drama, como

roteiriza•‹o de situa•›es de enfrentamento da assimetria entre pressupostos da

audincia e pressupostos da representa•‹o. A macroestrutura•‹o que um roteiro das

 performances possibilita Ž uma anal’tica da representa•‹o e da atividade imaginante.

Enfim, assimetria entre espet‡culo e recep•‹o, atos vinculantes, duplica•‹o

das rela•›es entre espet‡culo e recep•‹o,integra•‹o dram‡tica,focaliza•‹o dram‡tica,correla•‹o referncia/orienta•‹o, marca•‹o emocional, audiovisualidade,

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metareferencialidade teatral, atos personativos , atos representacionais s‹o mais que

entradas em um dicion‡rio. O enfrentamento desses problemas b‡sicos torna-se a

 pr—pria compreens‹o do contexto produtivo das artes de espet‡culo.

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