Livro Xintoísmo

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    I ochihi ko Kaneoya

    A concepo do xintosmo para o japons era de si to natural, genrica evasta, que at a chegada do budismo no sculo VI, no tinha nome especificado.

    Quando se acharam diante de uma religio estrangeira, denominaram a nativa de

    Kannagara no Michiou Xint, que significa caminho dos deuses. difcil saber

    exatamente o que era o xintosmo antes da chegada do budismo. No era apenas a

    nica religio; era o nico modo como os antigos japoneses se relacionavam com o

    mundo, pois acreditavam profundamente que os deuses, os homens e a Natureza so

    nascidos dos mesmos ancestrais: no havia separao conceitual entre a Natureza e o

    homem. "No havia denominao para a Natureza, como algo apartado e distinto

    do homem, algo que pudesse ser contemplado pelo homem" (Sakamaki Shunzo in

    MOORE, 1975, p. 24). Ou seja, no havia distino entre sujeito e objeto, observador

    e observado. O homem era apenas parte de um todo, "intimamente associado e

    identificado com os elementos e as foras do mundo em seu redor". Fato que se nota

    pela importncia das principais divindades, entre as milhares, associadas aos

    principais fenmenos da natureza: o nascimento, o crescimento, as transformaes e a

    morte. Essa estreita proximidade com a Natureza e elementos de seu entorno

    constitui-se na principal caracterstica do Xint (HERBERT, 1964, p. 17).

    Supe-se que o modo como viam o mundo era uma forte concepo intuitiva de

    uma profunda unidade subjacente, biolgica e fsica ao mesmo tempo, entre todos os

    homens (mortos, vivos e no nascidos), a Natureza e todas as entidades invisveis ao

    homem, porm dignas de venerao (HERBERT, 1977, p. 10). no dizer do professor

    Ono, "para os que veneram o kami, xint o nome coletivo de todas as crenas que

    compreendem a ideia do kami" (ONO, 1990, p. 3).

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    Relacionando as trs mais antigas correntes de pensamento que esto na

    gnese do pensamento japons, teria dito o prncipe Shotoku, que difundiu o

    budismo no Japo: O Xintosmo a raiz e o tronco de uma grande rvore robusta e

    transbordante em inesgotvel energia; o Confucionismo so os galhos e as folhas e o

    Budismo so as flores e frutos(HERBERT, 1977, p. 11).

    Por dois ou mais milnios, junto com o budismo e o confucionismo, essa

    religio autctone moldou o carter desse povo.

    Perde-se nas brumas do tempo a origem do xintosmo. Supe-se que o localonde os aldees se reuniam, no centro ou na entrada da aldeia, foi considerado

    sagrado e marcou-se por um ponto caracterstico, como um rochedo, uma caverna,

    uma montanha ou uma grande rvore (ROCHEDIEU, 1982, p. 67). A se debatiam os

    assuntos da aldeia e era tambm o local das festas. O marco passou ento a ser

    venerado como sagrado, como um kami da aldeia (idem). s vezes o local escolhido

    se dava em torno de alguma antiga famlia, talvez a pioneira da comunidade (ONO, p.

    27). Os santurios primitivos eram simples "altares ao ar livre, frequentemente

    esculpidos na rocha, sobre os quais se depositavam oferendas" (LITTLETON, 2002,

    p. 68). No raro, em comunidades rurais, os santurios eram erigidos no interior de

    densas florestas, localizao acessvel apenas por gente da comunidade. seguro

    ento, afirmar-se que a adorao Natureza se constituiu na f primitiva do povo

    japons, evidenciado pelos deuses de estreita relao a ela: deusa do sol, deus da lua,

    deus da montanha, deus do mar, deus do vento entre outros (HARADA, 1914, p. 30).

    Em tempos primeiros, quando ainda no se construam santurios, acreditava-se que as divindades moravam longe e faziam visitas em ocasies especiais. Era

    ento preparado um pequeno abrigo de nome himorogi, cercado por corda de

    palha e ao centro, um ramo de rvore. Cercava-se o espao tambm com rochas

    (iwasaka) (Ueda Kenji in TAMARU, 1996, p. 31). Por acreditar que as divindades a

    passaram a habitar, os abrigos tomaram a forma de casas. No apenas a morada,

    mas tambm o espao no entorno foi ento considerado sagrado. Por serem

    construdos em meio Natureza, nas montanhas, perto de cachoeiras ou em ilhasisoladas, a prpria Natureza era vista como smbolo da divindade. Como local

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    sagrado, na construo de santurios, so seguidos os princpios da simplicidade,

    pureza e harmonia com a Natureza.

    So os principais textos do xintosmo:

    a) o Kojikiescrito em 712, traz um relato das tradies conservadas oralmenteat o ano 628;

    b) o Nihongiescrito em 720, cerca de duas vezes mais longo do que o Kojiki; a continuao dos seus relatos at o ano 700;c) o Kogoshui, escrito em 807, fornece alguns detalhes ausentes nos dois escritosanteriores;d) o Sendai Kuji Hongiescrito em dez volumes no final do IX sculo, relata ahistria do Japo da era dos deuses at o VII sculo;e) o Engi-shiki promulgado em 967, embora um texto de administraogovernamental contenha os trs textos do Norito, liturgia que se oferece aos Kami.(HERBERT 1977, p. 13-14)

    Teogonia surgimento dos principais deuses do panteo xintosta

    L-se na primeira seo do Kojiki: os nomes dos Kami que se tornaram no

    Alto Plano dos Cus (Takama-no-hara) no incio do Cu e da Terra so Ame-no-minaka-nushi-no-kami (Augusto mestre do Centro do Cu), em seguida Takami-

    musubi-no-kami (Augusto elevado Kami que produz), e depois Kami-musubi-no-

    kami (Divino Kami maravilhoso que produz).

    Na ltima gerao nascem Izanagi (Varo que convida) e Izanami (Varoa que

    convida). A estes, os deuses ordenam consolidar e fazer nascer a Terra, entregando-

    lhes uma lana celeste ornada de joias. De sobre a Ponte Flutuante Celestial (Ame-

    no-uki-hashi), agitam com sua lana flamejante as guas do oceano e de seus pingos

    se forma a ilha Onogoro, a primeira terra do Japo, que muitos autores relacionam

    Ilha de Awaji. Seu nome significa auto condensado e a nica entidade que no

    provm da unio sexual dos deuses.

    Aps construrem nesta ilha o Augusto Mastro Celestial e uma sala (ou

    palcio) de oito braas, ambos contornando o mastro, o homem pelo lado esquerdo e

    a mulher pelo direito, unem-se como homem e mulher. Porm, tendo Izanami tomado

    iniciativa, a unio no resultou em boas crias e refizeram a unio, cabendo desta vez

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    a iniciativa ao homem (HERBERT, 1965, p. 50-51). No Nihongi consta verso na

    qual a mulher toma a iniciativa e faz o contorno pelo lado esquerdo, atendendo ao

    que lhe diz o homem, e este contorna o pilar pelo lado direito. A unio fracassou pelo

    resultado e a refizeram, invertendo os lados e cabendo a iniciativa da palavra desta

    vez ao homem.

    O Nihongi descreve que aps o nascimento de Awaji e de Hiruko, Izanagi e

    Izanami produzem o mar, os rios, as montanhas, as rvores e as ervas. O Kojiki lista o

    nascimento de outros elementos da natureza, nascendo por ltimo o deus do fogo

    Kagu Tsuchi. Do parto, Izanami tem sua genitlia queimada, adoece, morre e desce ao

    reino dos mortos. Izanagi mata ento o filho Kagu-tsuchi cortando-lhe o pescoo e de

    seu cadver, nascem os deuses da montanha (HERBERT 1977, p. 48-50). Izanagi nose conformando vai buscar Izanami e lhe pedido que espere enquanto ela pediria

    autorizao para o Kami de Yomi (Divindade das Trevas). Mas Izanami se demora e

    impaciente Izanagi busca pela amada; ao encontr-la, Izanami j tendo se alimentado

    da comida dos mortos, encontra-se com o corpo j putrefato. Da cabea, do peito, do

    ventre, da genitlia, das mos e dos ps de uma Izanami enfurecida saem ento oito

    divindades, as deusas do Trovo. Izanagi brande sua espada, mas em vo. Estas,

    juntas com Izanami encolerizada perseguem Izanagi que lhes atira um ornato de

    cabea preto que se transformando em uva, recolhido pelas divindades. Na fuga,

    desesperado, Izanagi atira trs pssegos s horrveis mulheres de Yomie enquanto

    estas os comem, ele consegue escapar e fechar o reino dos mortos atrs de si, mas

    ouve a maldio de Izanami: "irei ao seu mundo todos os dias e trarei mil almas

    para o meu reino", ao que responde Izanagi: "e eu farei com que nasam 1500

    descendentes meus por dia". Esta maldio parece habitar ainda no inconsciente

    coletivo, representada quase sempre pela mulher como os seres terrificantes do mundo

    dos mortos. O homem sempre a vtima aterrorizada. De fato, constitui tabu corrente

    para o japons a invaso do mundo dos mortos, assim como a profanao do

    mundo dos kami, que pode resultar em algum mal, advertncia que encontramos no

    provrbio "Sawaranu Kami ni tatarinashi" (no provm mal de kami que no

    incomodado) (HARADA, p. 46).

    Izanagi ao chegar ao reino dos vivos com as vestes esfarrapadas e putrefatas

    vai banhar-se no rio. Atribui-se a este fato o grande apreo do hbito do banhoe a utilizao da gua em rituais de purificao xintostas. Neste ato, de seu olho

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    esquerdo nasce Amaterasu, a deusa do sol, de seu olho direito, Tsukiyomi, o deus da

    lua, e de seu nariz, nasce Susanowo, o deus dos mares (HERBERT, 1977, p. 56).

    designado o reino dos Cus - Takama-no-hara - como habitao de

    Amaterasu, mas no se conformando com o reino dos mares que lhe foi designadohabitar, Susanowo vai de vez em quando ao reino da irm e lhe faz algumas

    maldades como destruir os diques da plantao de arroz. No texto do Kogoshui l-se

    que enquanto a deusa Amaterasu trabalhava nos seus arrozais, Susanowo fincava

    estacas na plantao anunciando seu direito de propriedade, semeava campos j

    semeados ou abria-lhe os diques danificando a plantao de arroz. Quando

    Susanowo atira um cavalo escanhoado na oficina de tear da irm, que inspecionava o

    trabalho das tecedeiras, estas se assustam, se ferem gravemente nos teares e morrem.Amaterasu, decepcionada, se retira para uma caverna e o universo mergulha na mais

    completa escurido.

    Os deuses encarregam a divindade Omoikane-no-kami (Aquele que Integra o

    Pensamento) para trazer Amaterasu de volta. Este manda fazer um espelho mstico

    de oito lados e junto com um colar de pedras preciosas os pe numa rvore sakaki -

    trazida do Monte Kagu -, na entrada da caverna, dispondo na base, oferendas. O deus

    ento rene aves que cantam longamente ao Pas da Eternidade, e lhes faz lanar um

    ao outro seu canto prolongado. A tradio representa este atoo canto preparatrio

    para a cerimnia de resgate da deusa Amaterasu nos portais chamados torii,

    entrada dos santurios, indicando o limite entre o sagrado e o profano. O torii, que

    significa poleiro de aves, tambm construdo em locais considerados sagrados. A

    deusa Ame-no-Uzume-no-mikoto sobe em cima de uma prancha que ressoa a seus

    ps e dana como se estivesse possuda por uma divindade pronunciando palavras

    divinamente inspiradas e descobre seus seios durante a dana. A dana fez rir osoitocentos kami, o que atraiu a ateno de Amaterasu. Espiando levemente,

    surpreende-se com o riso das divindades e a alegria de Ame-no-uzume que lhe

    diz estarem todos contentes por haver ali um kami mais ilustre que Amaterasu.

    Os deuses encarregados aproximam ento o espelho da deusa Amaterasu que,

    surpresa, deixa pouco a pouco a entrada da caverna para contempl-la. Os deuses

    rapidamente fecham a caverna e ali pem um shimenawa, uma corda de palha de

    arroz tranada, e o mundo volta a ter o brilho do sol.

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    Os deuses decidem proibir ento a entrada de Susanowo no reino enviando-o

    definitivamente para o reino de Izumo, expulsando-o do reino dos Cus. Em Izumo

    Susanowo encontra um casal de velhinhos chorando porque o monstro de oito

    cabeas e oito caudas, cujo corpo sanguinolento e flamejante de comprimento que se

    estende por oito vales e oito colinas, em cujas costas crescem musgos e rvores - uma

    grande serpente (ou drago) chamada Yamata-no-Orochi - que j havia devorado sete

    de suas oito filhas, viria buscar a ltima. Susanowo diz que matar o monstro e pede

    que providenciem ento oito barris de saqu destilados oito vezes, postos em cada

    uma das oito plataformas atrs das oito portas. Aps algum tempo de espera, surge o

    gigante monstro aterrador que, atrado pelo cheiro da bebida feita de arroz

    fermentado, mergulha as oito cabeas nos oito barris, aps passar pelas oito portas e

    bebendo o saqu, logo adormece e Susanowo decepa as oito cabeas com sua espada

    de oito palmos. Ao decepar tambm a cauda do monstro, danifica o corte da lmina,

    mas a encontra uma grande espada cortante, conhecida como Kusanagi-no-tachi que

    posteriormente envia deusa Amaterasu. Ambas as espadas so veneradas em

    santurios. A primeira, chamada de Orochi-no-aramasa, que matou a serpente gigante

    venerada no santurio Iso-no-kami-jingu na provncia de Nara e a outra, aps breve

    passagem pelas mos da deusa Amaterasu, (HERBERT, 1964, p. 243) venerada no

    santurio Atsuta Jingu (HERBERT, 1977, p. 95). Os outros dois objetos sagrados, o

    espelho e o colar de pedras preciosas so venerados no santurio de Ise na provncia

    de Mie, o mais importante do xintosmo (HERBERT, 1965, p. 109). A moa, de

    nome Kushinada, casa-se ento com Susanowo e na sexta gerao, nasce o deus

    Okuni-nushi-no-kami (Grande organizador e consolidador da Terra) (HERBERT,

    1977, p. 95-96).

    O prncipe Ninigi, neto de Amaterasu, recebe dos ancestrais celestes os trs

    tesouros sagrados: o espelho, a espada e as joias, antes de partir para a Terra com a

    misso de consolid-la. Segundo o Kojiki, Amaterasu ao entregar o espelho diz ao

    prncipe Ninigi: "considera este Espelho exatamente como se fosse Nosso

    augusto Esprito e venera-o como se tu venerasse a Ns" (HERBERT, 1964, p.

    234). Segundo Kitabatake, a deusa teria dito tambm ao neto: "ilumine o mundo

    inteiro com o brilho desse Espelho. Reine sobre o mundo pelo maravilhoso [poder de]

    dominao dessas Joias. Triunfe sobre aqueles que no se submetem brandindo essa

    Divina Espada".

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    Na Terra, Ninigi casa-se com a filha de O-yama-tsu-mi, Kono-hana-saku-ya-

    hime que d luz quatro ou cinco filhos (HERBERT, 1977, p. 126-127), um dos

    quais, de nome Hiko-ho-ho-demi casa-se com Toyo-tama-hime, que se torna me de

    Ugaya- fukiya-aezu. Este, casando-se com Tama-yori-hime torna-se pai de KamuYamato no Iware-hiko, mais tarde conhecido como Jinmu Tenn, o primeiro

    imperador (HERBERT, 1964, p. 52) que funda o pas em 11 de fevereiro de 660 a. C.

    (SIEFFERT, 1968, p. 13). Como no havia caminhos no pas, a deusa Amaterasu

    envia ao imperador Jinmu um corvo de trs patas de nome Yatagarasu como

    guia para penetrao no interior do pas (HERBERT, 1965, p. 217).

    O erudito Chikafusa Kitabatake (1292-1354) fala sobre o simbolismo dos trs

    tesouros do xintosmo:

    "O espelho no possui nada que realmente lhe pertena, mas, sem desejos egostas,

    reflete todas as coisas revelando as suas verdadeiras qualidades. Sua virtude reside na sua

    reao a essas qualidades, e como tal, ele representa a fonte de toda honestidade. A virtude

    das joias reside na sua doura e docilidade: so a fonte da compaixo. A virtude do sabrereside na sua fora e determinao: a fonte da sabedoria. A menos que o soberano rena em

    si mesmo estas trs virtudes, ter grande dificuldade em governar o pas" (HERBERT,

    1964, p. 248 ).

    A tradio de no se materializar em formas visveis as divindades, revelada

    pela ausncia de imagens ou dolos como objetos de adorao nos santurios

    xintostas (HARADA, p. 45). O espelho no propriamente objeto de adorao, mas

    "tipifica o corao humano que na sua pureza reflete a imagem da divindade" (idem).

    "O espelho limpo reflete as coisas tais quais so; simboliza a lmpida mente do kami e

    ao mesmo tempo considerado como a simblica corporificao sagrada entre o fiel

    e o kami". No Jinno Shotoki, de 1339, explica Kitabatake: "O espelho a fonte da

    honestidade porque ele tem a virtude de responder de acordo com a forma dosobjetos. Ele aponta os desejos divinos da justia e da imparcialidade." (idem) Em

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    alguns santurios xintostas, os fiis quando querem reverenciar mais formalmente

    algo alm da tradicional reverncia na entrada dos santurios, so conduzidos pelo

    monge ao local sagrado onde est postado um espelho: sutil mensagem que convida o

    visitante auto reflexo.Fazendo uma anlise a partir do nome, Hayao Kawai, moderno estudioso do

    Xint, diz que kagami (espelho) deriva de kage (sombra ou reflexo) e mi (ver).

    Amaterasu ao aceitar sua imagem refletida no espelho, aceitou tambm o "lado

    escuro do seu esprito virgem", isto , ao se recolher, os oitocentos deuses do Alto

    Plano dos Cus (Takama-no-hara) ficaram no escuro, mas a Deusa do Sol acabou

    tambm experienciando a escurido do seu esprito. Assim como os humanos tm o

    lado obscuro e desconhecido da mente, para ser perfeita ela precisava ter a sombra.

    (KAWAI, 1964, p.183).

    Os santurios xint so precedidos pelos caractersticos portais torii, que

    significa poleiro de aves, numa referncia s aves que contriburam para a sada da

    deusa Amaterasu da caverna, intrigada com seu canto (ROCHEDIEU, p. 131).Constitui-se de duas traves verticais encimadas por duas horizontais. Postadas antes

    dos acessos aos santurios, separa "o mundo secular, o exterior impuro do terreno

    sagrado que envolve o santurio. Traz geralmente os "gohei"4 - tiras de papel

    branco cortadas em ziguezague - dependuradas, indicando a presena de deuses. Ao

    passar por ele, o visitante do santurio simbolicamente se submete a um ritual de

    purificao das impurezas acumuladas no mundo exterior".

    4 As tiras de papel so chamadas shide. Gohei o conjunto que contm as shide. (HERBERT, 1964, p.

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    Hoje, comumente vista na entrada dos santurios e nos torii, a corda tranada

    representa a sombra do sol. posta tambm em locais de particulares aps ritos de

    purificao, o que preserva o local de ms influncias e mantm afastados os maus

    espritos (HERBERT, 1967b, p. 115). Simbolicamente indica locais onde esto as

    oferendas aos kami ou locais sagrados onde habitam.

    O nmero oito aparece na escritura Kojiki nada menos que 50 vezes e ooitenta, 18 vezes. Isso, segundo Herbert, viria de um ditado popular: "nanakorobi, yaoki" (caia sete vezes, levante oito). No entanto, o professor se

    permite formular hiptese na qual "o nmero oito e seus mltiplos indicam nagrande maioria dos casos, a ideia combinada do perfeito e completo".Mitologicamente trazem "a ideia do divino e sagrado". (HERBERT, 1964, p.234). E uma tentativa das foras terrestres de se opor "influncia superior"(HERBERT, 1965, p. 126).

    Na cultura japonesa o lado esquerdo est identificado com o sexo masculino, e

    o direito com o feminino. Embora no se encontre uma explicao clara sobre o fato,

    Herbert mencionando Masao Yamane, falando do sol, diz ser o nascente o lugar

    honroso, seguido pelo sol pleno e depois o poente. Hidari (esquerdo) refere-se hi

    (sol), o masculino, e a direita, migi, refere-se a mi (de mizu), gua, elemento feminino

    (Masao Yamane - HERBERT, 1964, p. 237). Os tradicionais quimonos so

    sempre fechados com o lado esquerdo sobreposto ao direito, quer sejam masculinos

    ou femininos, de passeio ou mesmo os quimonos esportivos que vemos na prtica de

    esportes de origem japonesa como o jud, kend, aikid, carat etc. A dobradura

    contrria, com o direito sobreposto, o lado feminino, - a dobradura da morte;

    como se vestem os mortos, o que vemos, por exemplo, em filmes como "Okuribito",

    traduzido por "A Partida", do diretor Yojiro Takita e sugerido numa cena em

    "Hiroshima, meu amor", do diretor francs Alain Resnais. Vale lembrar que na

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    mitologia, quem morre e desce ao reino dos mortos a mulher; o xito do contorno

    com gerao de boas crias se deu quando ambos obedeceram a suas posies. De

    Izanagi, nascem do seu olho esquerdo, a principal deusa do xintosmo, Amaterasu e

    de seu olho direito, o deus Tsukiyomi, de menor importncia ainda que Susanowo,

    nascido do nariz.

    Como se pode observar, xint escrito com dois ideogramas; o primeiro

    kami (deus ou deuses) e o segundo michi (caminho via estrada).

    O ideograma ou kanji um sistema de escrita originado a partir da

    representao pictogrfica do objeto que podem se combinar em dois ou mais

    caracteres para significar um terceiro, cujo significado est necessariamente

    relacionado aos caracteres que o compem. O invisvel representado a partir da

    juno de caracteres do visvel. esclarecedor para entendimento do xintosmo, o

    conhecimento da escrita original da palavra nesses caracteres chineses.

    Sobre o assunto, assim explanamos no site nipocultura:

    "O kanji (kami) formado pelo radical esquerda (shimesu-

    hen) que significa por si s, mostrar, apontar, exibir ( verbo Shimizu

    ). Sua origem indica elementos da natureza o sol, a lua e a estrela

    sobre os quais se deposita alguma oferenda o altar primitivo

    indicada pelos traos acima dos smbolos pictogrficos. Acreditava-se

    que os espritos (os poderosos, da natureza) se manifestavam por esse

    processo; passou a significar o lugar onde esto os espritos. O

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    complemento da direita representa nuvens sendo cortadas por um longo

    e potente raio: isto a voz dos deuses, os espritos esto falando; e

    exatamente esse o verbo representado por essa parte: (verbo mousu -

    ) falar, declarar, proclamar. verbo polido, de respeito, usado para

    declaraes formais ou para superior hierrquico. Outra origem, citada

    por Katsumi Yamada, so as costelas e a espinha dorsal na vertical com

    o significado de corpo ereto. Kami significa ento, os espritos que

    falam que se manifestam junto a um altar. Na falta de melhor traduo,

    o Ocidente traduziu o termo kami por Deus ou deuses".

    "(Michi) significa caminho, via, estrada. Formado por um radical

    que significa ps (parte da esquerda) e outro direita que significa

    pescoo (kubi). O radical ps d ideia de movimento, de ir, caminhar, de

    andar para frente, avanar. Em tempos antigos os homens acreditavam

    que carregar as cabeas do inimigo como sinal de vitria e eficcia de sua

    ao, espantava os maus espritos. Depois, costumavam deix-las

    expostas na entrada principal dos povoados. Onde estavam s cabeas era

    ento a estrada, o caminho".

    A etimologia do significado aponta diversas origens. Kami significa

    (HERBERT, 1964, p. 37-39):

    1. Com outro kanji (), superior, em oposio a inferior (shimo -- );

    2. Aquele que possui poder superior;

    3. Derivado de kimi, que significa senhor, mestre.

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    4. Derivado da lngua ainu, kamui, aquele que cobre sua sombra.

    5. Derivado de kamosu, fermentar.

    6. Derivado de kabimoye, germinar e crescer.

    7. Derivado de kabi, musgo, lquen.

    8. Derivado de "kagami" ou "kangami" (espelho). Pelo seu importante papel na

    mitologia surgem outras explicaes relacionadas ao objeto: "o corao do kami

    puro como um espelho limpo, sem o menor trao de desordem"(Ansai Yamazaki

    apud in loco citato); ainda relacionado ao objeto, o termo derivaria de:

    8.1 "kagayaite mieru", o que se v brilhante;

    8.2 "akami" (abreviado de akiraka-ni-miru", o que v tudo claramente;

    8.3 "kamu gami", brilhante-ver, isso porque "o Esprito divino, tal um claro

    espelho, reflete todas as coisas da Natureza, operando com uma justia

    imparcial, sem tolerar um s gro de mcula"(ibidem);

    8.4 "kakushi-mi", aquele que se esconde;

    8.5 "kakuri-mi" ou "kakure-mi", pessoa ou corpo oculto;

    8.6 "kagemi", corpo da sombra;

    8.7 "kashi-komi", medo reverencial, respeitoso;

    8.8 uma combinao de "ka", oculto, misterioso, invisivel, intangvel,

    "respeitar algo oculto ou indistinto como uma sombra ou o perfume de uma

    flor" e "mi", a plenitude ou a maturidade, o que respeita o visvel ou

    tangvel. Kami seria ento, ao mesmo tempo entidade madura, invisvel e

    intangvel;

    8.9 uma combinao de "ka", estranho, e "mi", pessoa; kami seria ento umapessoa "dotada de uma substncia misteriosa e maravilhosa";

    8.10 uma combinao sutil de "fogo" (ka) que queima verticalmente e "gua"

    (mi), que escorre horizontalmente;

    8.11 uma combinao de "ka", prefixo demonstrativo e "mi", por "hi", o sol.

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    O conceito de kami est mais prximo dos deuses das religies politestas

    com suas virtudes e fraquezas, do que do deus todo poderoso do monotesmo

    (GRIFFIS, 1895, p. 70-71). Motoori Norinaga, estudioso do xintosmo, props o

    conceito: o que quer que fosse altamente impressionante, possusse a qualidade de

    excelncia e virtude, e inspirasse um sentimento de temor respeitoso(HERBERT,

    1977, p.15). Qualidade de excelncia significa poderes alm dos do homem, como as

    foras da natureza, do destino, da sorte e tambm os espritos de grandes homens, os

    que tm enorme poder espiritual sobre a vida humana como o Imperador. As foras

    da natureza so as foras "misteriosas e temveis, como os astros, as montanhas, os

    rios, os mares, o vento, os animais selvagens, as rochas e as rvores". (SIEFFERT,

    p.12). Estas e os santurios xint guardam estreita intimidade - indefectivelmente h

    vrias rvores no entorno dos santurios. Kami tambm tratamento honorfico de

    nobreza, dispensado pelos japoneses para os sagrados espritos, que so dignos de

    reverncia pela sua virtude ou autoridade (ONO, p. 6). " apenas o ser superior, que

    pode ser divindade celestial ou nascida no cu ou mesmo o esprito de falecidos

    imperadores, sbios ou heris" (HITCHCOCK, 1893, p. 491). Escreve o prof. Ono,complementando:

    "Tambm considerados como kami so os espritos guardies de territrio, de

    ocupaes e de habilidades; os espritos de heris nacionais, homens que se destacaram

    pelas aes ou virtudes e aqueles que contriburam para a civilizao, cultura e bem estar da

    humanidade; homens que morreram pelo pas ou pela comunidade.Na falta de termo mais

    adequado, o Ocidente traduziu kami pela ideia que mais se lhe aproximava no seu

    vocabulrio: deus ou divindade, o que torna a traduo inadequada pela simples ideia de

    bondade e altas virtudes inatas a estes seres, o que no condiz com o carter de alguns kami,

    como vimos. Sieffert sugere traduzir por numina, do latim: "nessas condies, traduzir kami por

    deuses sem dvida inadequado considerando-se essa poca; melhor seria numina, maneira

    dos romanos" (SIEFFERT, p. 12). 5 Sobre o termo, Jung, citando Rudolph Otto, explicita:

    "[ o numinoso ] uma existncia ou ao dinmica que no causada por um ato

    arbitrrio. Ao contrrio, a ao apreende e domina o sujeito humano, que antes sua

    vtima do que seu criador. O numinosum, qualquer que seja sua causa, uma condio do

    sujeito, independente de sua vontade. Esta condio deve ser imputada a uma ordem exterior

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    ao indivduo. O numinosum ou a qualidade de um objeto visvel ou a influncia de uma

    presena invisvel que causa uma transformao especial da conscincia" (JUNG, 1965, p. 12).

    5 Numen, numenis. poder, grandeza; poder divino, divindade;.(Dicionrio latim-

    portugus, 2008, p.322)

    Mas no apenas com o sentimento de reverncia, temor, respeito e admirao

    o japons cultua os espritos superiores como kami. Pessoas que morrem pelo pas ou

    pela comunidade, ou o ser humano comum, fraco e digno de pena, tambm pode se

    tornar um kami e ser reverenciado (ONO, p. 7). Jean Herbert, francs, estudioso do

    xintosmo, relata-nos singular caso ocorrido em Toba, na provncia de Mie. Toba

    cidade litornea famosa pela produo de prolas, cujas ostras so colhidas ainda hoje

    por mulheres equipadas apenas com mscara, sem provimento de oxignio. Entre as

    mergulhadoras havia uma de nome On-be, que fatiava dedicadamente a carne do

    molusco abalone (awabinashi). Um nobre que passava pelo local viu o trabalho de

    On- be e, admirado, levou as tiras de carne seca para o Grande Santurio de Ise como

    oferenda aos deuses. On-be passou ento a regularmente oferecer o produto de seu

    trabalho no mesmo santurio. Aps sua morte, foi venerada como kami sob o nome

    de Kuguri-kami (HERBERT, 1967a, p.107-108), e seu trabalho passou a figurar nos

    envelopes (noshibukuro) e papis (noshigami) de felicitao no Japo, que trazem

    invariavelmente no canto superior direito, figura estilizada da fatia de awabi.

    Esclarece Herbert sobre o kami:

    Poderamos dizer que numa acepo geral designa toda entidade digna de

    venerao e mais estritamente, toda entidade objeto de culto, notadamente num templo. Pode

    se tratar de um ser extraterrestre, primitivo ou mais recente, de um ser vivo humano ou no,

    ou mesmo de um objeto material, seja natural (rocha, gruta, rvore), ou criado pelas mos do

    homem (espelho etc.)". (HERBERT, 1977, p.15).

    O que desperta reverncia no objeto o kami que ali habita; o que se venera,

    explica Hauchecorne, no o "fenmeno ou o objeto em si, mas o esprito a

    contido que o rege".

    O kami, no corpreo, tem apenas funes, enquanto o homem, corpreo, tem

    a prtica das aes. Assim como os deuses no podem praticar aes que necessitam

    da corporificao, aos homens no lhes dada a prtica de funes que prescindem

    do corpo. (Banzan Kumazawa HERBERT, 1964, p.39). O material tem vida pelokami, que imaterial. a deificao da fora vital que une esprito e matria e est

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    em todas as coisas, nos seres animados e inanimados (Chikao Fujisawa apud in

    HERBERT, 1964, p. 39-40). No xintosmo, o homem e a fora exterior, isto , a

    Natureza ou o Todo.

    o material e o imaterial, o visvel e o invisvel, so um s (ibidem). O homem a

    prpria personificao dessa ideia, ele o bem no estado natural, ou seja, ele

    apenas parte de um todo maior, onde esto a Natureza e seus elementos,

    diferentemente do monotesmo das religies ocidentais que se funda na crena num

    ser nico, supremo, onipotente, criador do homem e de todas as coisas.

    No Xint a vida espiritual est relacionada venerao e comunho com o

    kami, "adorao de suas virtudes e autoridade", assim como a f no kamiimplica, na verdade, comportamento de acordo com a "mente do kami" (ONO, p.3.

    6). Modernamente o Xint assumiu viso mais ampla no sentido de se aproximar da

    psique humana, "da ideia de justia, ordem, favor divino (bno)", sem esquecer que

    a funo do kami opera pela harmoniosa cooperao mtua.

    Antes da introduo do budismo e das artes chinesas, os deuses xintostas no

    tinham nem imagem nem forma (BRILLANT, p. 172). Ainda hoje, salvo os mais

    importantes, mais frequentemente representados, (Izanagi, Izanami, Suzano-o eAmaterasu), os deuses do xintosmo so seres sem imagem que apenas enfeixam um

    conjunto de caractersticas: como os humanos, boas e ms.

    Por entenderem nocivas consolidao pacfica do pas, os Aliados durante a

    ocupao militar aps a Segunda Guerra, proibiram os estudos dos textos do

    xintosmo, assim como a participao de funcionrios do governo nos cultos dessa

    religio, considerada srio obstculo ideolgico ocupao norte-americana como

    doutrina que fomentara a expanso territorial japonesa aps a Reforma Meiji.

    Algumas crenas xintostas incomodavam as foras de ocupao, crists, entre as

    quais, a de que o imperador japons seria um deus. A maioria dos telogos xintostas,

    porm, no define o que kami. Assim como os japoneses, sabem o que kami, isto

    , sentem o que kami, mas, porque nunca precisaram defini-lo, tm a natural

    dificuldade. O japons entende o kami intuitivamente, sem necessidade de ser

    conceitualizado pela teologia.

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    Derivado do Tao chins (mesmo kanji - - ), definido como "a essncia de

    todas as virtudes, [...] o que est perto, ao alcance das mos e que erroneamente os

    homens o procuram longe" (HARADA, p. 55). Discorre Yang Chu e Hu Shi sobre o

    Tao: "A natureza a atividade natural, o silente fluir dos acontecimentos tradicionais, a

    majestosa ordem das estaes e do cu; o Tao, ou o Caminho, corporificado e

    exemplificado em cada fonte, rocha ou estrela; essa impessoal, imparcial e, no

    entanto, racional lei das coisas, com a qual a lei da conduta do homem tem que se

    conformar, caso ele deseje viver em sabedoria e paz. Esta lei das coisas o Tao ou o

    caminho do universo, do mesmo modo que a lei da conduta o Tao ou o caminho da

    vida; na verdade, pensa Lao-Tze, os dois Taos so um s, e a vida humana, em seus

    ritmos essenciais e normais, faz parte do ritmo do universo." (Yang, Chu, 16, 19.

    Schneider, ii, 810, Hu Shih, 14 in WILHELM, R., Short story of Chinese civilization,

    New York, 1929, DURANT, 1942, p. 185-186).

    Confcio falando mais diretamente sobre o Tao como conduta do homem,

    dizia que Caminho a harmonia com as coisas da natureza, que provm do Cu:

    "Sinceridade o Caminho do Cu; realizar a sinceridade o Caminho do homem.

    Aquele que possui a sinceridade quem, sem esforo, faz o que certo e compreende

    sem necessidade do pensamento: ele o sbio que natural e facilmente incorpora o

    Caminho". (HARADA, p. 54).

    Numa cultura em que os deuses so extremamente abundantes (fala-se em 800

    ou 8000 as divindades do Xint), mas cujos desejos em relao ao homem apenas

    um, o japons o resume em apenas um conceito: michi, caminho ou via. Seguir a via

    dos deuses a mensagem indelvel fortemente introjetada no inconsciente coletivo

    desse povo, o que molda seu carter, pensamento e a vida. As artes, a cultura e os

    esportes de origem nipnica trazem esta mensagem: shod o caminho da

    escrita; kadou, o caminho das flores ou dos arranjos florais tambm

    conhecido como ikebana; kad, com outro kanji para ka significando poesia,

    o caminho da poesia ou a arte do poeta; butsud , o caminho dos

    ensinamentos budistas; sad ou chad , o caminho do ch ou a arte da

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    cerimnia do ch; kend , o caminho da espada; jud , caminho suave

    ou caminho da luta suave; karat-d , caminho da arte marcial de mos

    vazias.

    Michi, caminho ou via, guarda estreita relao com o comportamento do

    nipnico. Embora impreciso amplo e vago, como si nos conceitos dessa cultura,

    para o japons, michino precisa ser explicitado, definido, ensinado nem imposto:

    algo que lhe parece claro, sem necessidade de palavras para se conceitu-lo. ,

    muito possivelmente, o termo mais antigo e de mais largo significado dentro da tica

    e da religio na cultura japonesa, "uma inconsciente observncia do Caminho"

    (HARADA, p. 48). Ao homem de michi regras morais ou conjunto de mandamentos

    no lhe parecem necessrios. Suas aes so livres e sua auto expresso, nessacondio de natural liberdade, est mais verdadeiramente de acordo com o Caminho

    Ele entender com o corao e aprender na convivncia que seguir a via dos deuses

    seu caminho natural: portar-se como um deus, sentir plenamente seu deus

    interior, ou seja, internamente onde est o controle moral, inato ao homem,

    independendo, pois, de controle externo por leis e normas. Estar no Caminho

    apenas seguir sua natureza, seu impulso natural. Estar fora do Caminho constitui um

    insulto, significa acusar algum de levar vida errante (HARADA, p. 49). A naturezadas coisas determinada por leis divinas. Estar em harmonia com a Natureza estar

    no Caminho.

    "Kami nagara no michi" - ou a Via dos deuses - apenas o estado natural das

    coisas, onde inexiste a ideia do certo ou errado, ou seja, a tica e a moral no entram

    na apreciao. Os deuses venerados e os maus espritos so igualmente

    reverenciados, o que torna desimportante um enquadramento tico para esses seres.

    A tica ou a sua ausncia, ainda que temporria, aceita como natural aos deuses, tal

    qual nos humanos. No que seja impossvel apreciar sob esse ngulo - na

    mitologia, os principais deuses tm seus momentos de clera ou decepo -, mas o

    xintosmo no se ocupa disso, porque no tem importncia, no significante, ensina

    Nyozekan Hasegawa (HASEGAWA, 1939, p.10). Ao japons como crena e prtica

    do xintosmo, basta-lhe estar no Caminho, ou seja, ser naturalmente si prprio. O

    japons primevo era j um ser despreocupado com o enquadramento tico, era

    "naturalmente puro, santo e correto", afirmava Griffis (GRIFFIS, p. 72).

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    O japons no se sente vigiado, no conhece punio e recompensa como

    mecanismos ligados s aes provenientes do seu arbtrio. No existe a ideia de que

    deuses punem comportamento contrrio sua vontade e premiam os que lhes

    obedecem. "Recompensas e punies no so oferecidas como meio de tornar o

    homem bom" (HITCHCOCK, 1893, p. 503). Nesse sentido, inexiste uma pedagogia

    divina para a educao do homem.

    Muro Kiuso considera o amor como a essncia do Caminho, a virtude cardeal.

    "[...] assim como o homem morre quando seu pulso para, ento tambm, seu corao

    morre quando o princpio do amor perece. Por isso o amor pode ser chamado vida

    do corao" (HARADA, p.58). Ainda com foco na naturalidade interior, Nakae-

    Toju identifica o Michi com "a verdade adquirida com o conhecimento de si mesmo"que provm no do mundo nossa volta nem de livros, seno do nosso prprio

    interior, isto , "da nossa alma" (idem). O conhecimento ento est no nosso interior,

    na nossa alma divina. Para esse comentarista o Caminho algo imanente, invisvel,

    imperceptvel, m a s onipresente em nossas vidas. " o que habita no universo,

    assim como a alma habita o homem".

    Seguir o caminho no obedecer, se submeter vontade de um ser superior;

    apenas viver, ser si prprio. To natural como apreciar flores da cerejeira: para isso

    no preciso nada, apenas o corao em sintonia com a beleza da flor, ou como

    dizem os zen-budistas e haicastas, sentir seu corao, uma flor de cerejeira. (D. T.

    SUZUKI in FROMM, 1960, p. 13, 21).

    Para o homem nipnico michi mais do que conceito filosfico, regra de

    vida ou mandamento religioso. a prpria essncia da vida. Na sua obra The Faith

    of Japan, o professor Tasaku Harada, assim se expressa a esse respeito:

    Por michi, a via, entende-se um conceito misterioso, no formulado, e, todavia

    influente, que acompanhado de terror religioso e de solenidade. O termo michi

    provavelmente o mais expressivo de todo o vocabulrio japons em matria de tica e de

    religio. A princpio, e como na lngua corrente, significa carreira ou caminho. Em religio e

    em tica, significa via, ensinamento, doutrina ou, como s vezes se traduz princpio. (O seu

    equivalente chins tao). Na sua presena, respira-se uma atmosfera edificante. Um homem

    de michi um homem de carter, um justo, que tem princpios e convices e que obedece

    natureza da sua humanidade. Acusar algum de se ter afastado do michi um insulto,porque isso implica perversidade para com aquilo que existe de mais essencial no homem.

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    Michi uma componente recebida do Cu, o ideal celeste que deve ser realizado na

    humanidade. Michi tambm o modo de vida que nos dado como ideal e que aceitamos

    seguir. Diz-se que o confucionismo o michi dos sbios e dos sensatos, o budismo o

    michi de Buda, o xint o michi dos kami. A moralidade michi, a harmonia entre a vida e o

    ideal, e considera-se mesmo que a razo constitui a essncia do michi. Mas, seja qual for osentido em que se empregue, michi exprime uma convico muito profunda e sincera que liga

    o indivduo, de maneira solenemente impressionante, altura e profundidade do grande

    Todo. Ele implica que a essncia da vida humana se liga a uma vida sobre-humana. Num

    poema de Michizane Sugawara, l-se: Se no secreto do nosso corao/ Seguirmos a via

    sagrada/ Os deuses certamente nos tero em sua guarda/ Mesmo que nunca lhes dirijamos

    nenhuma orao. [...] kannagara representava o ideal religioso do povo, uma obedincia

    inconsciente via, que julgavam existir desde tempos imemoriais. Agir em conformidade

    com o curso da Natureza, sem esforo consciente, obedecendo ao impulso que nos sugere a

    nossa constituio, , para o xint, a mais elevada virtude. Esse curso da. Natureza a

    vontade dos deuses. A vontade dos deuses realiza-se em tudo o que age naturalmente.

    Encontramos a uma extrema simplicidade, uma f total na justeza do que natural. Tal o

    corao do michi japons. ( HARADA, p.50 traduo de Jos Pinto - ROCHEDIEU, p. 108-

    109).

    Como vimos nascido e cultuado no meio da natureza, os santurios so

    invariavelmente localizados em meio a rvores, alguns no meio de florestas, perto de

    montanhas ou corrente de gua.

    comum a venerao de rvores no Xint. Em tempos antigos, o termo mori

    (floresta) era sinnimo de santurio e as rvores do entorno, chamadas de kannabi

    (abrigo dos deuses) (ONO, p. 98).

    Diante dos santurios, sem que se compreenda nada, pode-se ser um adorador,impressionar-se com as indefectveis rvores, o lago, o ambiente, independentemente

    da especificidade que sustente aquele santurio (HERBERT, 1964, p. 24). Nos

    santurios no se d importncia ao aspecto filosfico ou doutrinrio que sustentam a

    f, mas aos fatos histricos e costumes que o envolvem. Quase nada se encontra que

    fale sobre a natureza do kami, dos ritos e prticas do santurio (ONO, p. 92).

    O estudioso Yanagita Kunio afirma que no h nos santurios xintostas

    instruo doutrinria e s se aprende o xintosmo pela convivncia e peloexemplo(BARROS, 1988, p. 46). O santurio e seus ritos, aceitos como smbolos da

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    f comunitria, ao mediarem relao do homem com os deuses, faz as instrues

    doutrinrias desnecessrias (ONO, p. 11) De fato, os japoneses mais seguem os

    exemplos e tiram lies de conduta das personagens mitolgicas do que obedecem a

    alguma instruo ou mandamento. No h combate do mal com o bem. Nos seus

    primrdios tambm no havia necessidade de templo ou santurio. Como vimos, as

    celebraes eram feitas ao ar livre, geralmente beira de um rio, cachoeira ou no

    elevado de uma colina, num espao cercado para esse fim. Fala sobre o santurio

    xint Jean Herbert:

    O templo xint uma manifestao visvel e sempre eficaz da relao de

    consanguinidade que existe entre o indivduo e o mundo inteiro, a humanidade, os seres vivos

    e no vivos, os mortos, a terra toda, os corpos celestes e os deuses, qualquer que seja o nome

    que se lhes d. A pessoa que entra no templo torna-se mais ou menos consciente,

    inevitavelmente, desta relao ntima e, a certa altura, d-se conta de que todos os sentimentos

    de ansiedade, de antagonismo, de solido, de desnimo, desaparecem, do mesmo modo que

    a criana vem repousar tranquilamente nos braos da me. Uma sensao quase palpvel de

    paz e de segurana invade o visitante medida que vai avanando para o interior do recinto

    sagrado (HERBERT, 1964, p. 155-156 traduo de Jos Pinto. ROCHEDIEU, p. 129-130).

    Produto desse sentimento de irmandade, o xintosmo " essencialmente o

    credo que afirma a vida", e trata muito pouco da morte e do mundo ps-morte.(LITTLETON, p. 89). Suas cerimnias e ritos comemoram no apenas o quotidiano

    do indivduo como nascimento, aniversrio e casamento, mas tambm os da

    comunidade e da nao (ONO, p. 50). Cr-se no xintosmo que o tama (esprito) por

    algum tempo ainda exera influncia na vida antes de se tornar um antepassado kami

    (entidade elevada, deus) da famlia qual pertenceu, o que d razes identitrias

    ancestralidade da famlia ou do cl. (idem). Alguns se tornavam at mesmo o kami

    venerado por trabalhadores de sua guilda. (HEARN, 1984, p. 124) Os aprendizes eram

    introduzidos no trabalho e no culto ao kami de seus colegas.

    Havia profunda identificao entre o trabalho e o Xint. O carpinteiro vestido

    como monge xint invocava a proteo de deuses e realizava certos ritos ao designar

    o local de sua obra. O alfazeme submetia-se a ritual religioso na confeco de sua

    espada: "trabalhava vestido como monge, submetia-se a ritos de purificao enquanto

    trabalhava para obter uma boa lmina". Seu local de trabalho era protegido pela corda

    sagrada shimenawa, onde no entrava nem seus familiares e s se alimentava de

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    comida preparada no fogo sagrado. Durante seu trabalho no falava com ningum,

    nem mesmo com gente de sua famlia.

    O culto extremamente simples feito diante de um oratrio domstico

    (kamidana). Cr-se que os espritos (kami e ancestrais) protegem sua famlia e "no

    deixam de servir ao seu senhor, aos pais, esposa e aos filhos, como quando estavam

    ainda em vida." (Hirata in BRILLANT, p. 183). O kamidana deve estar sempre limpo

    e imaculado. Oferecem-se geralmente pequenas pores de comida e gua; costume

    tambm oferecer coisas de que o morto gostava. (ONO, p.59). Porta-se como se o

    familiar venerado estivesse ainda vivo, oferecendo-lhe ou comunicando-lhe

    promoes, recebimento de salrios, diplomas, nascimentos, casamentos e todo fato

    importante da famlia, como expresso de agradecimento. Idealmente o ritual deve ser

    dirio, mas no se lhes devotam mais do que os cumprimentos e gentilezas que

    fazemos quotidianamente aos nossos familiares. As crianas costumam fazer a

    comunicao no kamidana de suas notas escolares, antes mesmo de exibi-las aos

    pais (HERBERT, 1964, p. 250). Sobre o culto familiar, discorre Wenceslau:

    "os avs, pelas suas prprias virtudes durante a apagada existncia, e pelas

    propiciaes que os vivos lhes tributam, no desempenho dos ritos familiares, alcanam a

    bem- aventurana; e os seus espritos agradecidos pagam em afetuosa proteo os cuidados

    rituais que se lhes votaram, guiando os vivos nos seus passos sobre a terra, plainando-lhes as

    dificuldades, encaminhando-os tambm para a bem-aventurana esperada. Vive-se, pois,

    pode dizer-se, para morrer; e morre-se para viver." (MORAES, 1924, p. 82-83).

    famlia imperial cabe-lhe outros rituais como o Niinamesai6, a comunicao

    da maioridade e assuno do ttulo de prncipe herdeiro. O imperador deve reportar

    periodicamente deusa Amaterasu, no santurio de Ise, os principais acontecimentos

    do pas. (HERBERT, 1964, p. 250).

    A maioria dos casamentos so celebrados no ritual xintosta e as cerimnias

    fnebres, no budista. O jesuta portugus Lus Almeida ao visitar o Japo em 1565,

    observou: "os japoneses rezam aos kami (divindades) pedindo longevidade, sade,

    riqueza, fama e todos os outros benefcios terrenos, voltando-se, no entanto para

    Hotoke (Buda) para implorar a sua salvao religiosa pessoal", caracterstica da

    religiosidade desse povo que permanece ainda nos dias atuais. (YUSA, 2002, p. 17).

    Poucos so os que optam por enterrar seus mortos em cemitrios xintostas,

    preferindo a cremao. Enquanto o xintosmo otimista e est ligado a festivais, o

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    budismo acabou assumindo o papel de oficiante dos funerais. Isso se deve proibio

    da presena de cadveres nos santurios - local dedicado exclusivamente aos kami - e

    a falta de hbito de ritos funerrios dos monges xintostas - tambm de dedicao

    exclusiva aos kami -, devendo qualquer outro assunto ser tratado fora do santurio

    (ONO, p. 110). A dinastia Tokugawa (1603-1867), com a perseguio aos cristos,

    ordenou que os sepultamentos fossem realizados apenas por monges budistas.

    Tida como a religio da natureza, o xintosmo a religio que comemora os

    fatos da vida, celebra e vivifica-os em rituais de renovao: a colheita, as estaes do

    ano, os festivais, adquirindo por esse motivo o ar alegre e festivo das comemoraes

    da comunidade, chamadas matsuri. No Xint a vida vivida em comunho com a

    vontade divina est protegida (ONO, p. 50); por isso, o mundo bom, uma ddiva dos

    deuses ao qual o homem deve responder com gratido sua famlia, a seus ancestrais

    e ao kami, assumindo "suas obrigaes com a sociedade e contribuindo para o

    desenvolvimento de tudo que lhe foi confiado". A vida quotidiana considerada como

    um servio para o kami, isto , o matsuri.

    6 a mais importante cerimnia do xint que ocorre em 23 de novembro quando o

    imperador, como sacerdote supremo do xint, em nome do povo japons, partilha arroz

    novo e saqu branco e preto com a deusa Amaterasu. (HERBERT, 1964, p. 71)

    Intimamente ligado natureza, que se renova visivelmente a cada estao, a

    renovao se d tambm na reconstruo dos santurios no Parque de Ise, na

    provncia de Mie. Desde o ano 690 no reinado da imperatriz Jito (686-697) os

    santurios so reconstrudos a cada 20 anos, poucas vezes interrompida por guerras

    ou dificuldades financeiras da famlia imperial. Para essa reconstruo, chamada de

    sengu, so utilizados 130 mil rvores de hinoki (cipreste japons) de 200 anos, para

    que "a deusa do sol, Amaterasu (a divina ancestral da casa imperial) e a deusa da

    colheita, Toyouke, adquiram renovado vigor, garantindo a vitalidade da linha

    imperial e da cultura do arroz, sem os quais seria impossvel a sobrevivncia da

    nao. (LITTLETON, p.62-63). As peas dos santurios desconstrudos so

    utilizadas para construo de outros santurios (idem). A ltima reconstruo se deu

    em 1993, o que indica este ano de 2013 como a prxima reconstruo.

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    Para o Xint a vida s tem sentido e s encontra o seu verdadeiro estado na

    pureza, e a vida que perde a sua pureza no agrada s divindades e transforma-se

    assim numa vida anti-xintosta cheia de pecados, de manchas e de desgraas.

    (ROCHEDIEU, p. 60).

    As cerimnias de incio de atividade inauguraes em geral festivais

    populares ou torneios esportivos geralmente so precedidos por ato de purificao. A

    purificao diz respeito no apenas ao corpo, mas tambm ao esprito. Para os

    xintostas, a purificao o ato cerimonial mais importante, pois o que aproxima

    nosso esprito do esprito puro dos deuses e para alguns o que permite atingir a

    Realidade ltima, porm, esta unio s se d na presena de um corao puro e claro.

    (ROCHEDIEU, p. 61) Para o Xint, os ritos e a liturgia so elementos secundrios

    diante da importncia que assume a atitude de se manter claro e puro o corao

    (ibidem). Nos santurios xintostas est disposta invariavelmente uma pia com gua

    corrente, servida por uma concha de bambu para a higiene da boca e das mos,

    antes de o fiel entrar no santurio. Purifica-se o corpo externa e internamente antes de

    entrar na presena dos deuses (LITTLETON, p. 61-62). Para a purificao preciso

    que ocorra: (ROCHEDIEU, p. 97-100) vontade e o poder divino que purifica e o

    esforo do homem que busca a purificao.

    A mancha atrai os maus espritos e faz o homem dependente destes. So ritos

    de purificao:

    1. O haraidestinado a limpar as manchas advindas do mal cometido;

    2. O misogidestinado a remover as impurezas advindas de outros males que noas de cunho moral como, por exemplo, contato com coisas impurezas como o

    cadver. Usa-se em geral a gua como elemento purificador. Mais do que o rito de

    purificao, o misogi abrange todo o processo de disciplina mental.

    3. O imirefere-se observncia de condutas de purificao com evitar a ingesto

    de certos alimentos, aes e contatos com o intuito de se preservar a pureza total

    do culto. Neste estado de imi devem estar no apenas o oficiante, mas tambm os

    encarregado da preparao da cerimnia. proibido ainda como atos

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    preparatrios para o imi, ouvir msica, ingesto de bebidas alcolicas ou de

    alimentos que no tenham sido cozidos em fogo puro e ocupar-se de atividades

    que causem preocupao, fadiga ou sofrimento.

    Acredita-se que o homem receba avisos do descontentamento dos deuses

    quanto sua conduta, devendo ento empregar todos os seus esforos para recuperar

    seu estado normal de pureza.

    So faltas ou ms condutas: (SIEFFERT, p. 12).

    1. O tsumiatitude em que h vontade deliberada de praticar o mal.

    2. O wazawai a desgraa, a provao e a calamidade, cuja ocorrncia independe

    da vontade;

    3. O kegaria impureza, a mancha ocasionada pelos fatores j vistos.

    Apenas o tsumi de inteira responsabilidade individual, havendo, entretanto,

    responsabilidade na conduta por negligncia ou imprudncia se formos abatidos por

    tsumi ou kegari. De fato, mesmo inconscientemente, a invaso de territrio proibido,

    de domnio do kami constitui tsumi, adverte Sieffert que, melhor esclarece o conceito

    de tsumi, desconsiderando o que o Ocidente geralmente traduz por pecado ou falta:

    "a transgresso de certos limites nem sempre formalmente proibidos nem definidos,

    mas carregados de um potencial mgico perigoso devido simples presena de umkami" (idem). Carregar no corpo ou na alma qualquer das faltas torna-nos

    inapropriados para entrar nos santurios, devendo o fiel, antes, realizar a purificao

    da boca e das mos com gua corrente disposta na entrada chamada temizuya (ONO,

    p. 34). Na poca dos samurais, antes dos combates, alguns se purificavam com essa

    gua, vertendo-a tambm na lmina de suas espadas.

    Entre os atos que chocam a sensibilidade e que no se aplicam apenas s ms

    aes, est o cortar a pele viva ou morta, do homem ou de animais, da seremconsiderados impuros o manejo do sangue e de seres mortos, ou ainda infligir cortes

    e perfuraes na pele como as tatuagens ou piercings. O corpo, assim como as

    vestimentas, deve ser puro, sem mcula (GRIFFIS, p. 85). Nos banhos pblicos h

    avisos proibindo a entrada de pessoas alcoolizadas ou tatuadas. So impuros o ofcio

    do aougueiro ou do coveiro, geralmente executados por prias. O parto, a doena, o

    moribundo e o doente terminal so considerados impuros. William Elliot Griffis

    relata que no Japo antigo eram construdas cabanas para parturientes ou

    moribundos que eram depois queimadas, finalizadas o uso (GRIFFIS, p. 85).

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    Perverso costume que penalizava a parturiente e o doente, quando mais precisavam de

    cuidados e apoio. Esse costume permaneceu ainda em algumas regies do Japo at

    1878.

    Nota-se o cuidado com a limpeza em todos os lugares: nos locais pblicos, nas

    casas, nas escolas, onde desde pequenas as crianas aprendem a cuidar da limpeza da

    classe e das dependncias da escola. Discorrendo sobre o que via, o portugus

    Wenceslau de Moraes escreve, surpreso, observando as ruas de um Japo ainda de

    vida pacata: "muito limpas; so os moradores que as varrem, com escrpulos de

    mincia, cada qual na parte que fica em frente sua casa; o ofcio de varredor

    municipal desconhecido no Japo." (MORAES, p. 75). E em outro trecho: "pode-se

    dizer que, na habitao japonesa, o principal luxo, muitas vezes o nico, a limpeza;

    mas esta to requintada, que embriaga!...". Ainda nos dias de hoje, curiosamente o

    Japo no tem varredores nem lixeiras nas ruas, mesmo nas grandes cidades como

    Tquio. Sujar lugar pblico desrespeitar o prximo que tambm o utiliza o espao.

    Manchar ou ferir nosso corpo, cortando, perfurando, ferindo ou ministrando-

    lhe drogas que desvirtuem sua natureza, isto , tudo que nos desvie de um

    comportamento bom, respeitoso, contrrio, segundo um telogo xintosta, ao que foi

    desejado pelo esprito divino significao de nossa vida terrestre - significa ser

    desrespeitoso com a divindade que em ns habita. Assim tambm, uma conduta que

    ofenda nosso prximo por palavras, aes ou pensamentos, mostra a mcula do

    esprito, o distanciamento do natural Caminho. O esprito ofensor est duplamente em

    falta: consigo e com a divindade que est abrigada no prximo. mancha que

    lanamos ou permitimos que se lance sobre ns, obstando a volta ao estado natural,

    vale dizer, de retornarmos ao estado de bons, de retornarmos ao Caminho. Wenceslau

    relata-nos sua surpresa quanto lngua japonesa:

    "Neste momento, deixemos assomar, se nos apraz, aos lbios um sorriso, como nico

    comentrio; mas sorriso benevolente, de simpatia por esta gramtica japonesa, a mais corts

    de todas as gramticas conhecidas. De fato, resulta pelo menos uma vantagem evidente; na

    lngua japonesa no existem palavras insultuosas, obscenas; o termo mais rude que um japons

    pode proferir baka, imbecil. A gramtica nipnica faz-nos lembrar duma corte atarefada,

    meticulosa, na qual os cortesos em chusma - substantivos, adjetivos, advrbios, verbos,

    posposies e todo o resto - palpitam, rodopiam incessantemente em mesuras, em

    cortesias, em requebros, em reverncias, seguindo regras de precedncia da mais complicada

    pragmtica imaginvel, ou antes, inimaginvel e a lngua japonesa incontestavelmente umadas mais belas lnguas hoje faladas, como tambm uma das mais difceis.".

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    As aes do Xint, os ritos de purificao e as ideias de mcula procuram

    alcanar um ideal de pureza corporal e espiritual, destacando-se o esforo ao retorno

    do estado normal, isto , estado divino, estado de bom. Corolrio natural desta

    concepo, para o xintosmo nosomos mau, apenas estamos mau. Estar nesse estado estar impuro, com o corao manchado, anuviado; afastarmo-nos da nosso

    verdadeiro Eu ou permitir que nos afastem.

    O homem no responsvel pelos males que se abatem sobre sua vida, salvo

    aqueles produzidos por sua voluntria conduta, mas somente sua a responsabilidade

    de viver uma vida reta, honesta, tica e clara, como o desejo dos deuses.

    Se observarmos as fases de desenvolvimento porque passaram as religies,

    de indubitvel concluso o primitivismo do Xint, a fase ainda "das ideias infantis"

    dessa religio como afirma Griffis (GRIFFIS, p. 69). "Estagnado" nessa fase de

    desenvolvimento, a Natureza - por fora da crena de que os homens, a Natureza e

    os deuses, provm de um nico ancestral - objeto de profunda apreciao, respeito e

    inmeros festivais por todo o pas. A comunho com o divino e com a prpriaNatureza se funde num nico sentimento, assim descrito emocionadamente por

    Rochedieu:

    ... o Japo sabe conservar certos lugares unicamente pela beleza, e muitas

    vezes surpreendente e comovedor para o Ocidental ver nos parques grandes templos, ou

    simplesmente presenciar num jardim pblico um pai acompanhado do filho parar em

    silncio ao p de um lago, de uma pequena ponte, de uma cascata ou das flores e ter uma

    atitude de recolhimento porque, para o japons, a comunho com o divino obtm-se as

    mais das vezes atravs da unio de todo o seu ser com as belezas naturais, com obras dearte selecionadas, com a harmonia que emana de um monumento. No o valor ou a

    grandeza da matria utilizada que cria a beleza, mas o amor com que o artista se debrua

    sobre a sua obra, nela trabalhando por vezes durante anos, mas incutindo desse modo, no

    objeto que cinzela ou no quadro que pinta, algo da sua alma, algo de si prprio, e esse algo

    que procura transmitir atravs da obra de arte sempre aquilo que de melhor h em si.

    (ROCHEDIEU, p.37).

    A beleza natural fundamental para a venerao dos kami nos santurios,

    independentemente do kami a cultuado. Segundo Ono, esse refinado senso esttico

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    da beleza que enleva o homem, conduzindo-o do mundo profano ao sagrado, que o

    faz experimentar o viver em comunho com "o alto e profundo mundo do divino"

    (ONO, p. 97).

    As leis xintostas no provm de um deus nico, dado aos homens porrevelao como nas grandes religies do Ocidente. So descobertas dentro da

    Natureza onipresente, encantadora e ao mesmo tempo mstica que se lhe mostra. A

    Natureza no hostil como na mitologia judaico-crist que expulsa o homem do

    Paraso; pelo contrrio, ela existe abenoada pelos deuses e se desenvolve com

    harmonia e cooperao. , portanto, ddiva divina, presente dos deuses para os

    homens.

    A vida conectada ao kami - propsito natural do Xint - fornece tambm o

    perfil ideolgico das atividades comerciais e industriais do pas. O Xint considera

    que no apenas as atividades da cultura, mas a produo de "alimentos, roupas, bens e

    tudo que proporcione felicidade ao mundo, est conectado diretamente ao kami"(ONO, p.84). Fazendo jus a um forte senso da preponderncia do coletivo, para o

    Xint, "todo aquele que promove sua prpria felicidade, deveria promover tambm a

    felicidade da sociedade. [...] Ns somos mais felizes quando fazemos outros felizes"

    (idem). Uma atividade que no tenha essa ligao pode estar fadada ao fracasso

    (idem). Mas o Xint no iderio que despreza a matria, falando apenas de "bens

    espirituais e divinos". natural desejar um bem e adquiri-lo; no necessariamente

    um mal, assim como no ter bens no motivo de admirao. natural que uma vida

    correta, de caminhante da Via dos deuses, seja por estes abenoada (idem). Os desejos

    de bens formulados para o bem- estar pblico sero abenoados pelos kami, ao

    contrrio, "a riqueza utilizada com fins egostas ou que fira outros, no est de acordo

    com a Via dos deuses".

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    Nas suas origens o matsuri, que vem do verbo matsuruadorar, venerar -, era

    uma cerimnia simples realizada no alto de uma colina ou na orla de um bosque, o

    que explica a macia presena dos santurios xintostas junto entrada de bosques e

    florestas (ROCHEDIEU, p. 112-113). A princpio o matsuri era uma cerimnia em

    que os homens do cl pediam aos deuses por boas colheitas. Era realizada noite,

    iluminada por alguns archotes, em torno de uma rvore onde se acreditava desciam os

    deuses. O matsuri era o centro espiritual da sociedade, o que determinava as relaes

    entre os que adoravam seu kami (ONO, p. 106). O momento mais solene era a dana

    do xam vestido de mulher que em transe pronunciava palavras, como no ritual da

    dana mitolgica da deusa Ame-no-Uzume que atraiu a ateno da deusa Amaterasu.

    Com o tempo o matsuri estendeu-se por todo o povo da aldeia e aps as cerimnias

    rituais de preces, passava-se aos festejos de rua, alegres e enrgicos, que hoje

    adquiriram caractersticas populares e folclricas.

    So xintostas vrias formas de entretenimento como "a dana (kagura), a

    msica acompanhada de danas clssicas (bugaku), competio de arco-e-flecha

    (kyudo), arqueria montada (yabusame), turfe e a luta japonesa sum" que so

    executadas alegremente como oferenda aos deuses.

    Em tempos antigos era ato importante a prtica de ritos ao kami pelo

    Imperador e pela alta corte, para assegurar a paz e a tranquilidade da nao. De

    fato, matsuri compe tambm a palavra matsuri-goto que significa governo, mas que

    transcendentalmente significa para o japons administrar, dentro de um esprito de

    matsuri, os assuntos deste mundo. (HERBERT, 1964, p. 269) Conceito de uma

    poca em que os assuntos de governo e da religio no eram separados, ou seja, osatos de governo eram tambm religiosos (HARADA, p.33). O chefe de uma

    comunidade (uji) era seu representante espiritual e temporal, e ao Imperador, pela

    sua ascendncia divina, cabia-lhe a funo de zelar como "alto sacerdote" pelo bem

    estar de todo o povo (Shunzo Sakamaki in MOORE, 1975, p. 152).

    Compreende o rito do matsuri a seguinte sequncia da cerimnia (HERBERT,1964, p. 270-271):

    a) Kiyome - purificao interior e exterior dos participantes;

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    b) Shubatsu - purificao dos homens e das coisas no local onde se ir celebrar

    o matsuri;

    c) Kshin - petio ao kami para que faa descer o seu esprito sobre o local

    do matsuri. Para isso so necessrias trs coisas:

    1. tocar um tambor ou campainhas;

    2. abrir a porta interior do santurio; entoar o chamamento do kami, que por

    vezes acompanhado de certas palavras msticas;

    d) Kensen - apresentao de oferendas ao kami;

    e) Norito-sjo - salmodiar os norito (invocaes);

    f) Tamagushi-hten - oferenda de um ramo de sakaki;

    g) Bugaku - oferenda ao kami de cantos e danas;

    h) Ura-goto - adivinhao;

    i) Tessen - retirar as oferendas apresentadas ao kami;

    j) Shshin - convidar o kami a retirar-se;

    k) Naorai ou nahorahi - refeio feita em comunho.

    Os pedidos de boa colheita nos campos e proteo e prosperidade para os

    aldees so precedidos de oferendas vrias, geralmente alimentos, e ao final, a

    saudao e demonstrao da alegria por estarem na presena da divindade feita

    com um banquete. O matsuri bastante apreciado com macia participao do povo,

    desfiles com andores portando santurios em miniatura (mikoshi) e carros alegricos

    acompanhado de dana e msica tpicas da regio ou da ocasio. Alguns desfiles

    lembram feitos histricos da comunidade. Os matsuri assemelham-se ao nosso

    carnaval no que tm de alegria e descontrao.

    No sum, tradicional luta japonesa, sobre o dohy (ringue onde se realizam as

    lutas) figura construo tpica representando o teto de um santurio xintosta. No

    incio de cada torneio um monge xintosta procede ao ritual de purificao do local e

    dos lutadores. Estes, no seu traje de apresentao, trazem penduradas as tiras de papel

    shide - utilizadas nas cerimnias de purificao xintosta - atadas cintura com

    uma corda tranada que lembra o mitolgico shimenawa. Ao iniciar a luta, os

    lutadores se purificam passando gua na boca e jogando sal no dohy.

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    Nascido em meio Natureza, seu credo e suas divindades da derivam.

    Onipresente e provedora, seus recursos - orgnicos, inorgnicos, animais, a flora e a

    fauna - so uma ddiva dos kami para o bem-estar do mundo. (ONO, p. 103). O

    primitivo japons desenvolveu uma relao orgnica de amor e respeito Natureza,

    que o dotou "das virtudes de reverncia para com os Deuses, os soberanos e os pais, a

    bondade para com nossas esposas e nossas crianas." (HERBERT, 1964, p. 121).

    A ausncia do esprito de retribuio (castigo/recompensa) ligado ao proceder

    a individual substitudo pela subordinao ao grupo. Relata Michiko Yusa:

    "noes como "ir para o cu" ou respeitantes a mritos religiosos no somotivos para se praticar o bem: se os japoneses praticam boas obras porque sabem

    que tais atos vo contribuir para o bem-estar geral da sociedade." (YUSA, p. 18).

    O xintosmo no considera a existncia de uma verdade absoluta como no

    monotesmo, onde a coexistncia entre os fiis se d pelo compartilhamento das

    mesmas crenas e valores. Os xintostas consideram a harmonia (- wa) a base para

    a coexistncia, o que implica aceitao e respeito s diferenas. 7 O homem no foi

    criado por deuses como no monotesmo, isto , no produto do trabalho de uma

    divindade, mas produzido pela unio do "esprito de dois deuses criadores", isto ,

    "um terrestre e outro divino" (HERBERT, 1964, p. 120, 103). Ento, para o Xint o

    homem biologicamente descendente em linha direta de deuses, o que lhe faz parecer

    natural modelar sua vida pela de seus ancestrais divinos. No h um ancestral divino

    nico. Criador e criatura dentro da obra da criao exercem uma funo ativa e

    passiva. Comentando Masao Yamane, Herbert aduz: "sob uma ptica puramente

    prtica, se um homem segue o modo de vida que lhe foi legado pelos seus ancestrais

    divinos, qual a necessidade que ele tem de codificar regras sobre a conduta que

    ele dever observar em tais ou quais ocasies?".

    7 Wa era outro nome do Japo. Os antigos japoneses j eram conhecidos como

    wajin no perodo de Han Anterior (207 a. C. a 7 d. C.) (YAMASHIRO, 1986, p. 31). Ainda

    hoje, wa usado para se referir s coisas tradicionais do Japo: waka, poesia japonesa;

    washoku, culinria japonesa, washitsu, sala em estilo japons, wadaiko, tambor japons

    etc.

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    No xintosmo as destruies, a desgraa, o infortnio, tm origem no Yomi,

    mundo das trevas e origem do mal (HERBERT, 1964, p. 114). Mas mesmo os oni

    (demnios, entidades do mal), podem ser circunstancialmente reverenciados como

    entidades do bem, a despeito de seu comportamento ou caracterstica. So seres

    invisveis, assumindo por vezes forma animal cuja expulso pelo exorcismo deve ser

    feita pelo monge (LITTLETON, 2003, p. 150). Entre os animais, a raposa adquiriu

    grande popularidade na cultura, figurando em inmeras lendas como animal

    inteligente que assombra e engana e tem o poder de se transformar em mulher. No

    Xint, seu culto associado ao kami Inari, deus da prosperidade e do arroz, que zela

    por sua boa colheita. "O mal causado por esses seres visto apenas como interrupo

    temporria do caminho natural". Mesmo o que pratica o mal pode a qualquer

    momento voltar para o mundo da luz e da bondade. Para o Xint, a vida do homem

    abenoada e " uma s, ligada linearmente a de seus ancestrais" por isso, o culto no

    deve ser negligenciado. (ONO, p. 104). O nascimento produto do desejo do esprito

    divino e tem como misso, "por um lado, a responsabilidade de realizar as esperanas

    e ideais de seus ancestrais; de outro, ele tem o inescapvel dever de tratar seus

    descendentes com grande amor e carinho, ento eles tambm podero realizar as

    esperanas e ideais do esprito de seus ancestrais".

    No existe no Xint a noo de pecado como o oposto da virtude. O homem j

    originariamente virtuoso, o pecado apenas "algo extrnseco" ao homem, "um erro

    que no afeta a verdadeira natureza do homem". (HERBERT, 1964, p. 133). O erro

    no se liga noo de pecado, mas a um inato senso de vergonha pela perda da

    honra, para cuja recuperao, mesmo a vida era considerada um preo justo a se

    pagar. (Nitobe, 2005, p. 60).

    O japons tem a convico ntima de poder vencer e suplantar qualquer

    adversidade porque cr haver herdado de seus antepassados, divinos dons e

    faculdades especiais, bastando-lhe apenas deix-los manifestar e ento, as virtudes dos

    kami surgiro espontaneamente. Hirata dizia que o homem japons "foi trazido

    existncia pelos espritos criadores dos sagrados kami ancestrais", razo porque

    possuem j a Via dos Deuses. (HERBERT, 1964, p. 121).

    Na ausncia do Bem e do Mal como entidades absolutas, a moral e a tica

    baseiam-se na honra. Estendendo-se para alm da prpria, abarcando tambm a dafamlia, revela-se satisfatrio instrumento de controle social. A honra o que liga

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    o japons ao senso tico, afirmava Nitobe. ( Inazo Nitobe, p. 130). O japons no

    dado especulao filosfica, mas tem forte intuio calcada no sentimento, que se

    manifesta desde a abnegao at o sacrifcio pessoal. O que geralmente permanece

    reprimido pela disciplina social, se manifesta por vezes de forma surpreendente.

    (BRILLANT, p. 167).

    O Ocidente, de racionalismo cartesiano e positivismo cientfico, certamente

    estranhar a desnecessidade do burilar tcnico das palavras e de definies

    precisas dessa cultura. Influenciada fortemente pelo xintosmo, palavras so

    insuficientes para se narrar o Todo, que inenarrvel. E o Todo prescinde de palavras

    para ser apreendido. Para Sokyo Ono, o que explica a longevidade de dois milnios

    da f nipnica: sentida, no pensada, isto , apreendida com o corao e no com a

    razo; e assim tambm transmitida na vida quotidiana: de corao para corao,

    sem necessidade de palavras (ONO, p. 92). Embora com nfase no sentimento, o

    Xint no tem "os impulsos da paixo das grandes religies; so de uma piedade

    serena e polidos, tanto para com os deuses como para tudo que superior"

    (BRILLANT, p. 167). Ao estrangeiro, dificultoso se torna entender o Xint, mesmo

    com explicaes, o que no o impede de compreender o Caminho do Xint, sem que

    realmente o tenha entendido racionalmente (ONO, p. 94). Talvez porque, como relata

    Fujisawa, "no h no Xint espao entre f e razo, porque jamais foi perdido

    seu primitivo contato com a dimenso da profundidade da vida, do qual devem ter

    emergido no passado toda crena especial" (FUJISAWA, 1959, p. 16). O japons

    no se interessa pelo que o faz crer, mas pelo que o faz fazer, constata Inazo Nitobe

    (HERBERT, 1964, p. 24).

    Para o xintosmo fundamentalmente essencial pureza interior do corao

    do homem. (Engelbert Kaempfer p. 122-123). No corao (sentimento) esto as

    regras morais e ticas necessrias ao homem, a j incutidas pelos deuses, sendo

    desnecessrio especific-las. Basta que se trilhe o Michi, caminho dos deuses. Explica

    Edmond Rochedieu a doutrina do telogo japons Motoori (1730-1801):

    Os japoneses, que obedecem direo necessria dos deuses, nunca sentiram a

    necessidade de um sistema tico. O homem, gerado pelas duas divindades criadoras, Izanagi e

    Izanami, possui naturalmente o conhecimento do que deve fazer ou evitar. Todas as

    ideias morais indispensveis sua felicidade foram inscritas na sua mente pelos deuses. Os

    desejos humanos, que fazem parte da nossa natureza, esto ligados harmonia geral do

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    mundo a nica moral vlida a do corao, que est de acordo com a natureza humana,

    refletindo esta prpria harmonia geral(ROCHEDIEU, p. 126).

    Moral que era certamente o segredo da Raposa ao Pequeno Prncipe no

    romance de Exupry: "s se v bem com o corao. O essencial invisvel aosolhos." (SAINT- EXUPRY, 2009, p. 70). E como o xintosta procura sentir o

    sagrado e o forte misticismo da Natureza presente no Xint, independentemente da

    divindade ali presente. No raro os crentes desconhecem o nome da divindade ali

    venerada, importando-lhe apenas senti-la, apreend-la com o corao (Hideo

    Kishimoto in MOORE, p.113-114).

    A pureza interior do corao, makoto para os japoneses, , para o xintosmo,

    sua virtude mais fundamental (HERBERT, 1964 p. 123). Nos Princpios

    fundamentais da estrutura nacional, publicados em 1937 pelo Ministrio da Instruo

    Pblica, l-se:

    "o corao de sinceridade a mais pura manifestao do esprito do homem.

    Sinceridade significa que de palavras verdadeiras nascem aes verdadeiras. O que dito

    pela boca deve certamente se manifestar nas aes. A sinceridade a fonte de onde provm

    a beleza, a bondade e a verdade".

    O xintosmo ensina que apenas pela convivncia se pode aprender a ser

    xintosta. No apenas a convivncia pessoal importante no Xint. O cuidado com

    as relaes sociais da advindas so igualmente importantes. Para os praticantes das

    artes marciais japonesas, por exemplo, o local de treinamento, como no xintosmo,

    terreno merecedor de respeito e reverncia. local de aprendizado e aprimoramento

    espiritual, para o que as lutas so instrumentos. Praticantes de jud, sum, kend

    ou outra arte marcial de origem nipnica, costumam reverenciar o local da prtica e

    o adversrio antes e depois da luta. Nas escolas, antes do incio das atividades,

    alunos e professores tambm costumam se cumprimentar com uma pequena

    reverncia. Mas no s os esportes sofreram essa influncia. As atividades que

    enlevam o esprito, aproximando do Caminho, tm alto prestgio na sociedade

    japonesa. Os artistas, calgrafos, monges e poetas figuram nessa categoria. Os

    artesos de raro talento so classificados como "tesouros da nao". O professor,

    aquele que divide com os pais a tarefa da formao dos filhos, desde os tempos

    feudais, goza de elevado prestgio social e gratido dos pais, como nos relata(HEARN, 1984, p. 434-437). Dedicao que constata tambm Wenceslau ao

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    narrar, espantado, caso de um professor em Tquio "que para poder sustentar em

    casa alguns estudantes sem recursos, sustentava-se ele, a si prprio, com o regime

    exclusivo de batatas!..." e prossegue relatando caso de descendentes de antigos

    senhores feudais que se viam em dificuldades para;

    " atenderem s necessidades de muitas das famlias e indivduos dos seus extintos

    feudos, incluindo estudantes pobres; encargo que nenhuma lei escrita impe, evidentemente,

    mas que sugerido por ntimos brios de pundonor, que vm de longe e ningum quer

    eliminar dos usos e costumes." (MORAES, p. 256).

    Akira Kurosawa, o cineasta japons mais conhecido no Ocidente, filmou

    "Madadayo" em 1993, seu ltimo trabalho, j em cadeira de rodas, sobre a vida do

    professor Hyakken Uchida. verso romantizada pelas lentes do cineasta, mas v-se

    o relacionamento professor-aluno, puro, bem humorado, respeitoso. Ao final, a seumodo, o poeta das telas, ciente do seu estado de sade, se despede do seu pblico.

    Em vez de direitos e prerrogativas, a educao japonesa atribuiu ao nipnico

    obrigaes e deveres - com a famlia, com a sociedade e com a nao (BARROS,

    op. cit., p. 19). Aos princpios sociais ticos e objetivos do confucionismo juntou-se

    a tica subjetiva do amor ao prximo do Xint. Na conscincia desse povo, basta-lhe

    o direito - no escrito, no declarado, no garantido em lei, mas compreendido e

    aceito -, de morar no seu pas com a sua gente. Constata sobre a obrigao do

    japons, Benedicto Ferri de Barros, ex-articulista do jornal "O Estado de S. Paulo":

    "Os japoneses recebem desde o nascimento uma herana de dvidas sociais e crescem

    sob um cdigo de obrigaes que no cessa de aumentar, medida que eles se

    desenvolvem pessoal e socialmente. De tal maneira que, iniciando-se como devedores de

    seus antepassados, passam depois a devedores do pai, em seguida do mestre, depois de cada

    um dos seus superiores, e, assim, quanto mais ascendem, mais devedores se tornam - sendo o

    imperador o maior devedor de todos os japoneses. Por reciprocidade, cada japons tenta

    aliviar os dbitos dos que, acima deles, esto acumulados de tamanha responsabilidade".

    As obrigaes assumidas e cumpridas acabam por determinar

    consensualmente direitos e posies. No se discute nem se disputam direitos e

    posies.

    Como descrito por Offner e Straelen, citados linhas atrs, "o japons gosta

    do que no formulado e contenta-se com sugestes sutis...", o Rescrito Imperial

    promulgado em 1 de janeiro de 1946, com o pas j sob ocupao dos Aliados,

    tambm, genericamente fixa princpios e no normas, ou seja, orienta, mas no

    especifica. Afirmava que o elo entre o soberano e seu povo, liga, "do primeiro ao

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    ltimo pela confiana e afeio mtuas" (Sakamaki Shunzo in MOORE, op. cit.,

    p.31). Como vemos, no norma ou lei escrita no sentido ocidental. como define

    Morton, referindo-se Constituio do prncipe Shotoku, "uma coleo de mximas

    provindas principalmente do confucionismo para guiar e estimular pessoas

    envolvidas no governo". (MORTON, 1984, p.20). J no primeiro artigo da

    "Constituio dos 17 Artigos" de 604, o prncipe inscrevera o princpio do "Wa",

    harmonia, paz, reconciliao (YAMASHIRO, 1986, p. 42).

    No Decreto Imperial sobre a Educao (Kyiku Chokugo) promulgado pelo

    Imperador Meiji (1868-1912) em 1890, nada h de norma especfica, declarando

    apenas valores ticos, o culto s artes, o incentivo educao e o destaque

    ancestralidade, o cuidado que devem ter uns para com os outros:

    Decreto Imperial sobre aEducao

    Sabei vs, meus sditos:Nossos Ancestrais Imperiais fundaram o Nosso Imprio em uma base ampla eeterna e tm implantado firme e profundamente a virtude; Nossos Sditos sempreunidos na lealdade e piedade filial tm ilustrado de gerao em gerao a belezadisso. Isto a glria do carter fundamental do Nosso Imprio e inclui-se tambm afonte da Nossa educao. Vs, Meus sditos, sede filiais aos seus pais, sede

    afetuosos com seus irmos e irms; sede harmoniosos como marido e mulher;como verdadeiros amigos; levai convosco a modstia e a moderao; estendei avossa benevolncia a todos; prossegui o aprendizado e cultivai as artes;desenvolvei as faculdades intelectuais e os poderes da perfeita moral; almdisso, levai adiante o bem pblico e promovei interesses em comum; semprerespeitai a Constituio e observai as leis; quando surgir emergncia, devei vosoferecer corajosamente ao Estado; e assim guardar e manter a prosperidade doNosso Trono Imperial coevo com o Cu e a Terra. Assim vs deveis ser osNossos bons e fiis sditos, transmitir as melhores tradies de vossosantepassados. O Caminho traado aqui de fato o ensinamento legado pelosNossos Ancestrais Imperiais, a ser observado pelos Vossos Descendentes esditos, infalvel para todas as idades e verdadeiro em todos os lugares. Esse o Nosso desejo que seja levado a srio em toda reverncia, em comum convosco,

    Nossos sditos, que ns possamos alcanar a mesma virtude.30 dia do 10 ms do 23 ano de Meiji(Dia 30 de Outubro de 1890).Assinatura Manual Imperial; Selo Imperial.

    Na religiosidade desse povo, ou antes, no comportamento formado pela

    religiosidade, por vezes confunde-se o que de uma ou de outra religio. Mais

    acertada seria a assertiva de que a religiosidade do nipnico formada pela mescla

    das trs religies que mantm reas de influncia prprias e reas onde se

    somam. H nos contos budistas, fato ocorrido com o monge zen-budista Bankei(1622-1693), tido como grande sbio e cujos retiros eram bastante concorridos,

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    recebendo em seu templo monges do Japo inteiro, interessados nos seus

    ensinamentos. Numa ocasio os monges descobriram um que era ladro e foram

    falar com Bankei, que ouviu pacientemente, mas nada disse e nada fez. Pego

    novamente furtando dinheiro dos colegas, os monges novamente foram a Bankei,

    desta vez indignados, exigindo sua retirada como condio para que permanecessem

    no seminrio. Bankei novamente ouviu-os com pacincia, dizendo-lhes ao final do

    relato: "- vocs podem abandonar o seminrio, podem ir embora, porque j sabem

    a diferena entre o certo e o errado, mas eu ficarei com esse monge, que aqui veio

    para aprender e ainda no sabe a diferena". E o monge errante chorou copiosamente,

    perdendo a compulso pelo furto. O budismo prega a benevolncia e a compaixo,

    mais subjetivas, mais prximas do homem, mas sob a ampla, objetiva e genrica

    ptica xintosta, removeu-se a ndoa, a mancha, que como uma iluso, obstava a

    manifestao do corao claro e puro do monge errante, ou seja, o monge voltou

    novamente a trilhar o Caminho, voltou ao seu estado natural de bondade, permitiu ao

    seu kami interior se manifestar.

    O reconhecimento da bondade natural do ser humano ou na sua capacidade de

    regenerao, o que muda tambm completamente o homem e o destino de Jean

    Valjean, trazido ao convvio do amor humano pela acolhida do benevolente

    bispo Bienvenu que se recusa a ver no ex-presidirio o ladro, mas apenas o

    homem digno, sob cujas vestes rotas se abrigava um bom corao. Em meio a um

    mundo de penria e sofrimento, so as personagens que vm a lume sob a pena

    humanitria de Victor Hugo em "Os Miserveis", fazendo com o calor humano o

    contraponto misria social e econmica que permeiam o romance. "A bondade em

    palavras cria confiana, a bondade em pensamentos cria profundidade, a bondade

    em ddiva cria amor", dizia Lao-Ts, fundador do taosmo de cujas razes

    ideolgicas medrou o xintosmo.Do amor s belezas da Natureza teria surgido esse amor ao ser humano,

    segundo Nakamura Hajime (MOORE, p. 145). Extensivo aos elementos da Natureza,

    tambm aos animais, devotasse-lhes idntico tratamento. Relata-nos Wenceslau: "...

    mas o campons trata o boi como um irmo de trabalho, no como um quadrpede

    escravizado; com o boi se entende pela palavra e pelo gesto, conversa mesmo com ele

    sobre coisas de lavoura, nunca se lembrou de construir um aguilho." (MORAES, p.

    54-55).A Associao dos santurios xintostas (Jinja Honch) resumiu a f xintosta:

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    1. Ser grato s bnos divinas e aos benefcios dos ancestrais; ser

    diligente na observao dos rituais xintostas, executando-os com sinceridade,

    regozijo e pureza do corao.

    2. Servir ao prximo sem pensar em recompensa e buscar largamente odesenvolvimento da vida neste mundo, como desejado pela vontade divina.

    3. Unir-se uns aos outros em harmonioso reconhecimento da vontade do

    imperador, orando para que o pas possa prosperar e que outros povos tambm

    possam viver em paz e prosperidade. (Ueda Kenji in TAMARU, p. 31).

    A falta de um ser nico, absoluto, que enfeixa todo o poder, constituiu-se na

    dificuldade de se compreender o deus do monotesmo ocidental. (OSHIMA, 1992,

    p.28). Acostumado a uma relao aberta, livre, sem regras morais, coletiva, pacfica,

    harmoniosa com outras religies, com ligaes a vrios deuses, invisveis ou

    corporificados em objetos ou na Natureza, deve ter lhe parecido estranha promessa

    de uma vida melhor, proporcionada por um nico e diferente deus, cujo monoplio

    da salvao se d pelas suas regras. Deve ter causado no apenas estranheza, mas

    espanto um "Deus ciumento dono absoluto dos destinos do homem, cuja justia sem

    misericrdia, envolve o inferno e o eterno tormento", o que seguramente fez os

    nativos, reticentes diante de to "terrvel ensinamento" (HITCHCOCK, p. 509). Mas

    a maior dificuldade na aceitao do cristianismo constituiu-se no abandono de seus

    ancestrais, que no seriam salvos por no terem seguido os mandamentos, e, portanto,

    destinados ao fogo do Inferno. (YUSA, 73). O choque das crenas, que obrigava o

    nativo a abjurar seu credo e promover a destruio de templos e santurios,

    incentivados pelos religiosos cristos como prova da aceitao do novo credo como o

    nico verdadeiro, contribuiu tambm para a impopularidade da cristianizao,

    culminando com o edito do kanpaku8 Hideyoshi Toyotomi (1537-1598) que

    acabou expulsando os cristos ocidentais das terras japonesas: " inaudito que os

    missionrios obriguem as pessoas a converterem-se sua f e as incitem a demolir

    templos e santurios". Relata-nos Lafcadio sobre o assunto:

    "Lemos nas histrias das misses sobre daimys convertidos queimando milhares detemplos budistas, destruindo incontveis obras de arte e