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LORAUX, Nicole - Maneiras trágicas de matar uma mulher

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T E X T O S DEERUDIÇÃO & PRAZER

A Morte dos Deuses, Michel HenryA Morte nos Olhos, Jean-Pierre VernantDioniso a Céu Aberto, Marcel DétienneManeiras Trágicas de Matar uma Mulher,

Nicole Loraux

Nicole Loraux

MANEIRASTRÁGICASDE MATAR

UMA MULHERImaginário da Grécia Antiga

Traduzido porMÁRIO DA GAMA KURY

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Título original:Façons tragiques de tuer une femme

Tradução autorizada da primeira edição francesa publicada em 1985 por I lachcttc, de Paris, França, na coleção Textes du XXe Siècle dirigida por Maurice Olender

Copyright © 1985, Hachette Copyright © 1988 da edição brasileira:Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJTodos os direitos reservados.A reprodução nao-autorizada desta publicação, no todoou etn parte, constituí violação do copyright. (Lei 5.988)

(Edição para o Brasil.Não pode circular em outros países.)

Ficha técnica Revisão de texto: Angela Loureiro. Diagramação: Celso Bivar. Capa: Gilvan F. da Silva. Composição e montagem: Ed. Ubyassara Ltda. Revisão: Ricardo Santos, Carlos Kayfcld, Naír Damctto. Impressão: Tavares e Tristão Granea e Editora de Livros Ltda.

ISBN: 85-7110-046-2

Sumário

7 Prólogo 15 Distribuição 21 Maneiras trágicas de matar uma mulher

27 A Corda e o GládioUm suicídio de mulherpor uma morte de homem 27Uma morte desprovida de andreia 29A incisão no corpo viril 33Enforcamento ou sphagé 36A esposa que se lança 42O silêncio e o segredo 48No thálamos: morte e casamento 51Morrer com 53A glória das mulheres 56

63 O sangue puro das virgensSacrifícios em que é bom pensar 64 Novilha, poldra: domadas 68 Da execução como casamento 72 Liberdades virginais 80 A glória das moças 88

91 Lugares do corpo0 ponto fraco das mulheres 92 Enumeração do corpo viril 97 A alternativa de Polixena 101

116 Notas139 Sobre a autora

Prólogo

“Mortes representadas em cena, grandes dores, ferimentos”: acontecimentos da tragédia, espe-táculos para os olhos. Considerando os exem-plos dados por Aristóteles para ilustrar sua definição do pathos trágico como “ação causa-dora de destruição ou dor” 1 quem poderia duvidar um instante sequer de que, no teatro ateniense, a morte não tenha sido realmente exposta à visão do espectador? Thanatói en tói phanerói: agonias em público, assassínios di-ante dos olhos de todos... Lendo mais uma vez com perplexidade a frase de Aristóteles, tomo a decisão de advertir o leitor de que, nas pági-nas seguintes, o ouvinte da tragédia levará vantagem sobre o espectador: tudo passa pelas palavras, porque tudo se passa nas palavras, principalmente a morte. Investigando as mo-dalidades trágicas da morte das mulheres, nada encontrei que seja visto ou que seja primeiro

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visto. Tudo começou por ser dito, por ser ou-vido, por ser imaginado – visão nascida das palavras e presa a elas. Assim, ao empenhar-me em um longo exercício de leitura, tentei captar, pura e simplesmente, aquilo que dava de ime-diato ao público antigo o gozo intenso do pra-zer de ouvir.

Palavras lidas para substituir ou mesmo para reencontrar as palavras ouvidas, aquelas que a representação trágica oferecia à escuta ativa do público ateniense. Palavras de duplo ou múltiplo sentido. Em síntese, texto, nada mais que texto. Pode ser que contar “muito mais com a imaginação que com a vista, mais com o ouvido que com o olho” 2 seja uma escolha minha, mas que importa? Na Atenas do século V a.C, essa foi a escolha do gênero trágico. Não tentarei prová-lo. Precisaria para tanto de mais que um prólogo, e somente por prazer, ou de memória, evocarei algumas das razões que levam a colocar a tragédia sob o signo da es-cuta.

Há, inicialmente, as razões do historiador. Seria necessário evocar o apego decididamente etimológico dos gregos à sua língua e o amor que eles demonstram por suas palavras (que eles chamam de “nomes”). Conviria lembrar até que ponto, no século V ateniense, as regras da escuta dominam esses discursos cívicos que

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denominamos um pouco impropriamente gê-neros literários. Ouso mesmo formular a hipó-tese de que, no teatro de Atenas, a escuta era, para o público da representação trágica, como que uma leitura muito refinada, à altura da “profundidade” do texto3. Se o espectador anti-go, tal como gostamos de imaginá-lo depois de 1er Jean-Pierre Vernant, tiver sido esse espec-tador de ouvido apurado para quem a “lingua-gem do texto pode ser transparente em todos os níveis, em sua polivalencia e em suas ambigüidades”4, então temos de atribuir a esse ouvinte onipotente uma atenção da qual o mí-nimo que se pode dizer é que ela quase não tinha flutuações, uma memória por nós total-mente esquecida e a capacidade espantosa de realizar o longo trabalho sobre o significante durante o curto tempo da representação teatral. Ficção, talvez, mas ficção necessária. Podemos então formular a hipótese de que, arrebatado pela profundidade polissêmica do texto, o leitor se empenha na interminável busca das palavras em eco.

O historiador já se afastou na ponta dos pés. Resta o texto e, diante do texto, seus usu-ários muito contemporâneos. Na primeira linha destes estão o diretor e os atores. Não espere-mos, entretanto, que eles tornem a dar um cor-po à idéia de espetáculo5. Por pouco que seja

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interrogado, o diretor confessará a dificuldade que enfrenta para convencer os atores a dizerem – a somente dizerem e sobretudo a não repre-sentarem – as grandes unidades textuais com-ponentes de uma tragédia: o coro do Agamêm-non sobre o sacrifício de Ifigênia, a narração da morte de Dejanira nas Traquínias ou a imola-ção de Polixena na Hécuba6.

Resta ao leitor, então, aceitar até o fim a aposta no texto. Leitora de tragédias, não tive aliás escolha. Fui constrangida a isso desde que, procurando traçar as vias trágicas da morte das mulheres, tive de admitir que essas vias eram textuais. Nada encontrei além da narração. Como se só se pudesse confiar a morte das mulheres às palavras, como se apenas as pala-vras soubessem levá-la a termo. Para isso há seguramente razões históricas, razões de civi-lização: uma mulher grega vivia sua existência de moça, de esposa e de mãe no lugar mais recôndito da casa; ela também devia partir desta vida de sua casa bem fechada, ao abrigo dos olhos, longe de todo o público. Mas, seja como for, a decência, ainda que sociológica, nunca bastou para explicar tudo.

Não é difícil admitir que os sacrifícios das virgens – este puro desvio – só possam rea-lizar-se no terreno da narração; a tragédia co-loca as moças em cena apenas para dela tirá-las

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e para entregá-las, longe dos olhos, ao cútelo do degolador: execução escandalosa, ficção satis-fatória narrada passo a passo pelos mensageiros em linguagem técnica cujas palavras carregam o impensável com todo o peso do real. Faz bem matar as moças em pensamento, em narração. Mas há também o suicídio das esposas, que vem complicar tudo, porque é revelado também pela narração, e não pela visão. Estarão essas desesperadas realmente cometendo uma espé-cie de transgressão, para terem de voltar a ocu-par precipitadamente seu lugar – sombrio, oculto, fantasmático – para então encontrarem a morte cuja narração ao público dependerá de uma ama ou de um servidor? É nessa reticência em mostrar a morte que a invenção trágica da feminilidade encontra, sem dúvida alguma, seu limite, com essa maneira que as esposas perdi-das têm de voltar ao seu lugar para rematar uma ortodoxia. Mas isso não é tudo: recorrer à or-dem da linguagem7 para matar Fedra ou Deja-nira talvez seja uma das dimensões constituti-vas do trágico em sua definição grega. Ao menos não se deve subestimar o benefício imaginário muito real que essas mortes apenas ditas deviam trazer a um público de cidadãos. Dessas mortes postas em palavras direi sem hesitar o que Baudelaire dizia do belo, definido como “prestando-se a conjecturas”: a morte-

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narração presta-se infinitamente mais a con-jecturas que as violências exibidas diante dos olhos. Para o cidadão de Atenas, a apresentação teatral das mulheres já é, em si mesma, uma ocasião admirável para pensar a diferença dos sexos: mostrá-la para confundi-la e depois re-encontrá-la, mais rica após haver sido confun-dida, mas ainda assim consolidada ao ser rea-firmada no último instante. Pelo fato de nela se dramatizarem e se condensarem todos os momentos dessa história, a morte de uma mu-lher é a ocasião por excelência para essa ope-ração imaginária, ainda mais porque a tragédia usa para dizê-la palavras de múltiplos sentidos que, de certo modo, “sabem”8.

Palavras precisas, como aiora e áiresthai, dotadas de sentido técnico na linguagem reli-giosa ou sacrificial9; palavras muito gerais como báinein, designação neutra da ação de marchar (“ela partiu, a esposa...”); nomes de lugares do corpo10 – a garganta, por exemplo. A tragédia usa todas essas palavras da língua e as transforma para fazer delas a trama de um discurso bem audível que, sob a narração, fala ainda e sempre da diferença dos sexos. Foi na tradução literal dos textos que procurei aquilo que, no seio da representação trágica, se passa ao nível das palavras quando um mensageiro conta a morte de uma mulher.

Mas passemos ao texto.

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Não gostaria, entretanto, de iniciar essa leitura prolongada sem antes agradecer, por suas su-gestões e observações, todos aqueles a quem expus a totalidade ou parte destas pesquisas em meus seminários na E.H.E.S.S., nas universi-dades de Toulouse e de Trieste, na Cornell University, em Princeton e em Harvard. Agra-deço principalmente àqueles que, convidándo-me a falar da morte trágica das mulheres, de-ram-me a oportunidade de escrever estas pági-nas: Gregory Nagy em primeiro lugar, e Clau-dine Leduc. Agradeço finalmente a Maurice Olender por acolher-me na coleção “Textes du XXe Siècle”, por ele dirigida.

Nota do tradutor:

Em relação aos nomes próprios gregos, a auto-ra usa geralmente a forma tradicional francesa,

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como Achille, Ajax. Às vezes, entretanto, opta pela transliteração (preferida pelo tradutor e adotada em seus trabalhos anteriores: Heracles, Têcmessa, Teucros, Macária). Respeitando o critério usado predominantemente pela autora, e com vistas à uniformidade dentro de uma mesma obra, seguimos a forma tradicional portuguesa, dando entre parênteses, na Distri-buição anteposta à obra, a transliteração dos nomes gregos: por exemplo, Aquiles (Aqui-leus), Ájax (Aias).

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Distribuição*

ÁDMETO: (Ádmetos) Marido de Alceste. Ver Eurípides,Alcesle.

AGAMÊMNON: Rei de Argos e comandante da expediçãogrega contra Tróia. Sacrifica sua filha Ifigênia e é morto por sua mulher Clitemnestra. Ver Esquilo, Agamemnon e Coéforas, e Eurípides, Ifigênia em Áulis.

ÁJAX : (Aias) Rci de Salamina. Recuperando a razãoao sair do desvario em que o lançou Atena, suicida-se com seu gládio. Ver Sófocles, Ajax.

ALCESTE: (Álcestis) A “melhor das mulheres”. Esposade Ádmeto, rei da Tessália; aceita morrer em lugar de seu marido. Ela morre; Heracles a traz de volta do Inferno depois de disputá-la com Tânatos, a Morte. Ver Eurípides, Alcesle.

ANTÍGONA: (Antigone) Filha de Édipo e de Jocasta. Porocasião da morte de seus irmãos, caídos num combate decorrente da guerra civil e do sui-cídio mútuo, enterra Polinices contrariando a

* Os personagens, sua história trágica e a menção às peças das quais são protagonistas e que serão citadas.

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proibição de Creóme. Condenada à morte em confinamento, enforca-se. Ver Sófocles, Antígona, e Eurípides, Fenicias.

AQUILES: (Aquileus) Pouco presente na tragédia, oherói da Ilíada é em Áulis o noivo fictício de Ifigênia. Em Tróia, Polixena é imolada sobre seu túmulo. Ver Eurípides, Hécuba e Ifigênia em Áulis.

CASSANDRA: Filha de Príamo e de Hécuba, profetisa emquem ninguém acreditava, levada como ca-tiva para Argos pelo rei Agamemnon e morta com ele por Clitemnestra. Ver Esquilo, Agamemnon, e Eurípides, Troianas.

CLITEMNESTRA: (Clitaimnestra) Mulher de Agamemnon, mãede Ifigênia, de Orestes e de Electra. Mata Agamêmnon auxiliada por Egisto, e é morta mais tarde por Orestes com a ajuda de Elec-tra. Ver Esquilo, Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, Sófocles, Electra, e Eurípides, Electra c Ifigênia em Áulis.

CREONTE: (Crêon) Irmão de Jocasta, marido de Eurídi-ce, pai de Hcmon e de Mencceu. Rei de Tebas após a morte dos filhos de Édipo. Ver Sófocles, Antígona, e Eurípides, Fenicias.

DANAIDES: Filhas de Dânaos, evitam o casamento e oshomens, especificamente os filhos de Egito (Áigiptos), seus primos. São acolhidas em Argos pelo rei Pelasgo. Ver Esquilo, Suplicantes.

DEJANIRA: (Deiâneira) Mulher de Heracles em Traquis,envia ao herói a túnica de Nesso, presente de amor – pensa ela –, mas na realidade presente de morte. Suicida-se com um gládio. Ver Sófocles, Traquínias.

ÉDIPO: (Oidípous) Filho de Laio e de Jocasta, assas-sino de seu pai e marido de sua mãe. Diante

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do cadáver de Jocasta cega-se com o pino de um broche da roupa da morta. Seus filhos Etéocles e Polinices exterminam-se mutua-mente, sua filha Antígona enforca-se. Ver Sófocles, Edipo Rei, Antígona, e Eurípides, Fenicias.

EGISTO: (Áigistos) Amante de Clitemnestra e primode Agamêmnon, ajuda a mulher a matar o marido e é morto por Orestes. Ver Esquilo, Agamêmnon e Coéforas, e Eurípides, Electro.

ELECTRA: Filha de Agamemnon e de Clitemnestra,espera o retomo de Oreslcs para vingar o pai morto matando sua mãe. Ver Esquilo, Coéfo-ras, Sófocles, Electro, e Eurípides, Electro e Orestes.

ERECTEU: (Erecteus) Rei de Atenas. Sacrifica sua ousuas filhas para salvar a cidade. Ver Eurí-pides, Ion e os fragmentos de Erecteu.

ETÉOCLES: (Eteoclcs) Filho de Édipo e de Jocasta. Mor-re no combale fratricida cm que enfrenta Polinices. Ver Esquilo, Sete contra Tebas, e Eurípides, Fenicias.

EURÍDICE: (Euridice) Mulher de Creonte, mãe de Hê-mon. Ouvindo a notícia do suicídio de seu filho, mata-se com um gládio. Ver Sófocles, Antígona.

EVADNE: (Euadne) Mulher do herói Capaneu, lança-sena pira fúnebre de seu marido, morto diante de Tebas. Ver Eurípides, Suplicantes.

FEDRA: (Faidra) A Cretense, mulher de Teseu. Apai-xonada por seu enteado Hipólito, que gosta somente da deusa Ártemis, enforca-se. Ver Eurípides, Hipólito.

HECUBA: (Hecabe) Mulher de Príamo, rei de Tróia,mãe de numerosos filhos e filhas, entre as quais Cassandra e Polixena. Ver Eurípides, Troianas e Hécuba.

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HELENA:

HÊMON:

HERACLES:

HERMIONE:

HILO:

HIPÓLITO:

IFIGÊNIA:

JASÃO:

JOCASTA:

A bela Helena. Mulher de Menelau, raptada por Páris. Segundo alguns autores, somente seu fantasma foi a Tróia. Ver Esquilo, Agamemnon, e Eurípides, Troianas, Helena e Orestes.(Háimon) Filho de Creonte e de Eurídice, noivo de Antígona. Suicida-se com um gládio ao descobrir sua noiva enforcada. Ver Sófocles, Anlígona.(Heracles) Herói dos doze trabalhos e de numerosas esposas. Num acesso de loucura mata Mcgara e seus filhos. Morre vítima do funesto presente de Dcjanira. Ver Sófocles, Traquínias, e Eurípides, Heracles. Filha de Mcnclau e de Helena, mulher de Neoptólcmo. Ver Eurípides, Andrômaca e Orestes.(Hilos) Filho de Heracles c de Dejanira. Ver Sófocles, Traquínias.(Hipólitos) Filho de Tcscu e da amazona Antíope. Gosta apenas de Artemis c da caça. O amor de Fcdra e a maldição de seu pai le-vam-no à morte. Ver Eurípides, Hipólito. (Ifigência) Filha de Agamemnon e de Cli-temnestra, sacrificada por seu pai para propi-ciar os ventos que levarão a frota grega a Tróia. Em certas versões do mito, salva in extremis pela deusa Artemis ela é transporta-da para Táuris, onde realiza sacrifícios hu-manos, antes de Orestes levá-la de volta para a Grécia. Ver Esquilo, Agamêmnon; Eurí-pides, Ifigênia em Áulis e Ifigênia em Táuris. (Iáson) O marido humano, demasiadamente humano de Medéia. Ver Eurípides, Medéia. (locaste) Mãe e mulher de Édipo, de quem tem dois filhos – Etéocles e Polinices – e

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duas filhas – Antígona e Ismene. Enforca-se ao descobrir o incesto, ou mata-se com um gládio quando vê seus dois filhos mortos. Ver Sófocles, Édipo Rei, e Eurípides, Fenicias. Homero chama Jocasta de Epicasta.

LEDA: Mãe de Helena e de Clitemnestra. Desespe-rada por causa da má reputação de Helena, enforca-se. Ver Eurípides, Helena.

MACÁRIA: (Macária) Filha de Heracles, aceita ser sacri-ficada para salvar seus irmãos. Ver Eurípides, Heracles.

MEDÉIA: Princesa colquídia casada com Jasão, que aabandona para casar-se com a filha do rei de Corinto. Ela mata o rei e sua filha com vene-no, e seus próprios filhos com um gládio. Ver Eurípides, Medéia.

MÈGARA: Esposa fiel de I léracles em Tcbas, morta comseus filhos pelo herói num acesso de loucura. Ver Eurípides, Heracles.

MENECEU: (Mcnoiccus) Filho de Crcontc, irmão deIlcmon. Mata-se para salvar a cidade. Ver Eurípides, Fenicias.

MENELAU: (Mcnêlaos) Rei de Esparta, marido de Hele-na. Ver Eurípides, Troianas, Andrômaca, Helena c Orestes.

NEOPTÓLEMO: (Ncoptôlemos) Pilho de Aquiles; imola Poli-xena sobre a sepultura do pai e é morto em Dclfos. Ver Eurípides, Hécuba e Andrômaca.

ORESTES: Filho de Agamemnon e de Clitemnestra,irmão de Ifigênia e de Electra. Mata sua mãe para vingar a morte de seu pai. Ver Esquilo, Coéforas e Eumênides; Sófocles, Electra; Eurípides, Electra, Ifigênia em Táuris e Orestes.

POLINICES: (Polineices) Filho de Édipo e de Jocasta.Morre no combate fratricida em que enfrenta

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Etéocles. Ver Esquilo, Sete contra Tebas, eEurípides, Fenícias.

POLIXENA: (Polixene) Filha de Príamo e de Hécuba,sacrificada por Neoptólemo sobre a sepultu-ra de Aquiles. Ver Eurípides, Troianas eHécuba.

TÊCMESSA: Companheira de Ájax, de quem ouviu que osilêncio é o adomo das mulheres. Ver

Sófocles, Ajax.TESEU: (Teseus) Rei de Atenas, marido de Fedra, pai

de Hipólito. Maldiz precipitadamente o filho.Ver Eurípides, Hipólito.

TEUCRO: (Tcucros) Mcio-innão de Ájax. Ver Sófocles,Ájax.

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Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher

Dando sua vida à cidade, os atenienses caídos em combate receberam “o elogio imutável e a mais insigne das sepulturas – não falo do lugar onde repousam, mas da fama que deixam, memorável para sempre [...]. Com efeito, para os homens ilustres a terra inteira é a sepultura e, para dar conta do que foram, não basta uma inscrição gravada numa esteia em sua cidade: em terra estrangeira, uma lembrança não-escrita da escolha por eles feita mora cm cada pessoa”.

“O tempo jamais apagará em teu marido a lembrança eterna de teu valor, Nicoptolcme.” ‘

Este trecho de epitáphios e este fragmento de epitafio servem de introdução àquilo que na cidade grega – no caso, Atenas – se diz da morte dos homens e de uma morte de mulher. Os homens morreram na guerra, realizando rigorosamente o ideal cívico; submissa a seu destino, a mulher morreu em seu leito – ao menos essa é a história possível. Aos homens a cidade ofereceu oficialmente uma bela sepul-tura e um elogio em forma de oração fúnebre pronunciada pelo mais célebre dos homens de Estado; e, sob o impacto do verbo eloqüente de

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Péricles, o epitafio gravado no monumento do Cerâmico empalidece diante da palavra de gloria e sua promessa de lembrança imutável e universal. Para Nicoptoleme, desconhecida cujo nome guerreiro significa vitória em com-bate, basta um pouco de lembrança privada: algumas linhas gravadas numa esteia e a afir-mação de que seu marido jamais a esquecerá. Forte contraste, talvez muito perfeito para ser totalmente exato. Sem dúvida nem todos os homens de Atenas morrem em combate, mas não existe um cujo epitafio não confie de algu-ma maneira à cidade a lembrança eterna das qualidades do morto; nem todas as mulheres de Atenas extinguem-se em seu leito, mas é sem-pre ao marido (ou na pior das hipóteses à fa-mília) que compete preservar a lembrança da morta.

Do ponto de vista paradigmático dos modelos sociais, é verdade que a cidade nada tem a dizer a respeito da morte de uma mulher, fosse ela tão perfeita quanto lhe é permitido ser; com efeito, a única realização para uma mulher é levar sem alarde uma existência exemplar de esposa e de mãe ao lado de um homem que vive sua vida de cidadão. Sem ruído. Essa é a vida que Péricles aconselhava no epitáphios às viú-vas dos atenienses caídos em combate. A gló-ria (kleos) dos homens é palavra viva, levada

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aos ouvidos da posteridade pelas mil vozes da fama; para falar da glória de uma mulher, des-de o tempo em que Pénélope afirmava que somente o retorno de Ulisses faria crescer sua kleos diminuída (Odisséia, XIX, 124-128), o único orador era o marido. Aquele mesmo que, após a morte da esposa, será o depositário de sua lembrança. Morto o marido, resta às mu-lheres não dar aos homens assunto para falarem delas, quer no tom de censura, quer no de elo-gio; a glória das mulheres é não terem glória2. Essa circunstância certamente não facilita a tarefa de quem deseja conhecer a realidade muda da vida das mulheres. Mas esse não é o meu objetivo. Permanecerei resolutamente voltada para o logos, evitando o risco de enrai-zar-me num gênero literário que, na cidade, consagra à morte das mulheres um discurso diverso daquele absolutamente privado da confiança e do luto.

Entretanto, para não complicar mais ainda a tarefa, é necessário deter-se um pouco mais na leitura dos epitafios. Ganhar-se-á com isso a convicção de que uma mulher não saberia pos-suir sua morte; para aquela cujas virtudes de-vem culminar no bem-viver do marido não há fim heróico – pensada a partir do registro da prova que qualifica, a “morte heróica” é viril. A morte da esposa encerra pura e simplesmente

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uma vida de devotamento e de afeição, de bom humor e de reserva, da qual, sem dúvida, o marido saberá daí em diante “falar muito bem”. Nessas condições, que palavra cívica poderia ser articulada num discurso sobre a morte das mulheres? Certamente não no gênero histórico, sobretudo se o historiador se chama Tucídides e seu assunto é a Grécia; relato de guerra e de decisões políticas, a historiografia tucidídia nada tem a ver com as mulheres, mesmo em vida. Acredita-se que Heródoto era menos categórico a esse respeito, mas, de maneira igualmente previsível, ele se interessava apenas pelas mulheres bárbaras ou esposas de tiranos, e por sua morte só quando violenta – ou pretexto para alguma exposição sobre um rito fúnebre anormal3; mesmo nestes casos, trata-se de menções breves, não decorrentes de uma elaboração mais desenvolvida. Há, porém, um gênero cívico que, comprazendo-se institu-cionalmente em confundir a fronteira do mas-culino e do feminino, libera a morte das mu-lheres dos lugares-comuns onde a confinava o luto privado. Falo da tragédia, onde, como é verdade em Heródoto, as mulheres só morrem de morte violenta4. Mas, no universo trágico, a morte, mesmo ocorrendo no campo de batalha, é sempre posta sob o signo da violência, e os homens sofrem-na tanto quanto as mulheres.

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Pelo menos por algum tempo, restabelece-se uma espécie de equilíbrio entre os sexos.

As mulheres trágicas morrem violenta-mente. Com maior exatidão, uma mulher con-quista sua morte nessa violência. Morte que não seja somente o fim de uma vida exemplar. Morte que lhe pertença como sua, como a Jo-casta de Sófocles, que a infligiu “ela mesma a si mesma”5, ou que, de modo mais paradoxal, lhe foi imposta. Uma morte brutal, cuja comu-nicação se faz sem frases – assim, para a es-posa-mãe de Édipo, “basta uma palavra, tão curta para dizer quanto para ouvir: está morta, a nobre figura de Jocasta” – mas cujas moda-lidades, dolorosas ou chocantes, ensejam uma longa narração. Com efeito, logo depois de ser enunciado em sua nudez de fato bruto, o acon-tecimento provoca uma indagação, sempre a mesma: “Como? Dize como!” 6 Então o men-sageiro conta, e é assim que a tragédia rompe o silêncio amplamente observado na tradição grega sobre as modalidades da morte.

Mas impõe-se uma precisão: se, na tragé-dia, a morte das mulheres tem acesso ao dis-curso tanto quanto a dos homens, convém ob-servar que no interior do espectro das modali-dades de morte violenta se opera de fato uma distinção entre homens e mulheres: aparece então uma ruptura do equilíbrio entre os sexos.

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Do lado dos homens, a morte, salvo algumas exceções – a de Ajax e de Hêmon, que se sui-cidam, a de Meneceu, que se oferece para ser a vítima de um sacrifício – toma a forma do assassínio: assim, é de fato um assassínio – oikeios phonos, morte em família – a morte formalmente guerreira dos filhos de Edipo, que se matam mutuamente no campo de batalha. Quanto às mulheres, apesar de eventualmente serem mortas, como Clitemnestra, como Mê-gara, é muito maior o número daquelas que recorrem ao suicídio como a única saída numa desgraça extrema: Jocasta e, ainda em Sófocles, Dejanira, Antígona e Eurídice; Fedra e, também em Eurípides, Evadne e Leda, no segundo pla-no da Helena; no caso das moças, o cútelo do sacrifício é o instrumento privilegiado da mor-te, podendo-se acrescentar à coorte das esposas suicidas o grupo de virgens sacrificadas, de Ifigênia a Polixena, passando por Macária e pelas filhas de Erecteu.

Não estarei aqui privilegiando o assassí-nio, entretanto, não me impedirei de evocar suas formas trágicas: por ser mais equitativa-mente partilhado entre homens e mulheres, sem dúvida o assassínio é um critério menos perti-nente da diferença dos sexos em sua relação com a morte. Sendo assim, no tocante às mor-tes femininas, darei relevo principalmente ao suicídio das esposas e ao sacrifício das virgens.

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A Corda e o Gládio

Um suicídio de mulher por uma morte de homem

“Para uma mulher, permanecer no lar, sem esposo, abandonada, já é um mal enlouqueccdor. E quando, alem disso, vem um mensageiro e depois outro, trazendo sempre notícias piores, todos alardeando infe-licidade para a casa [...]! Se este homem tivesse recebido tantos feri-mentos (traumalon) quantos, por vias diversas, o rumor trazia à sua casa, haveria mais cicatrizes em seu corpo (íêtrotat) que malhas numa rede [...]. Eis as notícias cruéis que me fizeram suspender mais de uma vez meu pescoço num laço, do qual só me tiravam usando a violência.” (Esquilo, Agamêirmon, 861-876)

Por trás da mentira, cujo uso a rainha domina admiravelmente, há uma verdade ou, ao menos, uma verossimilhança apropriada ao universo trágico enunciado nessas palavras de Clitem-nestra ao acolher Agamêmnon de volta a seu palácio: a morte do homem clama irresistivel-mente pelo suicídio de uma mulher, sua mulher. Uma morte de mulher para contrabalançar a morte de um homem? Em virtude da honra heróica que a tragédia se compraz em recordar, a morte de um homem só poderia ser a de um guerreiro no campo de batalha – assim, nas

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Coéforas, os filhos de Agamemnon por um instante desejarão retrospectivamente, para seu pai, uma morte gloriosa ao pé das muralhas de Tróia – e, à simples notícia desse fim, a esposa morria passando a corda pelo pescoço em sua morada bem fechada. É em nome dessa mesma verossimilhança trágica que, nas Troia-nas (1012-1014), Hécuba censurará aspera-mente Helena porque jamais alguém a “sur-preendeu na iminência de passar um laço pelo pescoço ou de afiar um punhal como teria fei-to uma mulher de sentimentos nobres (gennaia gyné) com saudade de seu primeiro marido”.

Assim como sua irmã Helena, Clitemnes-tra não se matou. A rainha certamente não é uma Pénélope (embora, no mesmo discurso mentiroso, ela evoque seus olhos inflamados pelas lágrimas durante as longas vigílias em que chorava o marido), como também não é uma esposa trágica comum. Clitemnestra não se matou, e quem vai morrer é Agamêmnon, com o corpo retalhado de ferimentos e colhido num véu em forma de armadilha. Clitemnestra não cogitou de matar-se; ela desviou a morte de sua pessoa para a do rei, da mesma forma que, em vez de matar-se, Medéia matará indireta-mente Jasão por via de seus filhos, por via de sua nova esposa7. Em Clitemnestra, a mãe de Ifigênia e a amante de Egisto sobrepuseram-se

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à esposa. A rainha assassina desmentiu a lei da feminilidade, que determina que diante da aporia da infelicidade se ache uma saída no nó de um laço8.

Uma morte desprovida de andreia

Achar uma saída no suicídio: solução trágica reprovada pela moral na confusão da vida coti-diana. Mas, principalmente, solução de mulher e não, como às vezes se pretendeu, ato heróico9. Que, em Sófocles como na tradição épica, o herói Ajax se suicide é uma coisa; que ele se suicide virilmente é outra – voltarei a esse assunto –; mas não se deve pensar que, a partir desse exemplo, se possa tirar a conclusão geral de que, no imaginário compartilhado dos gregos, todo suicídio resulta da andreia (nome grego da coragem enquanto ela é o apanágio dos homens). Muito mais conforme à ética tra-dicional é sem dúvida o Heracles de Eurípides, que, do fundo do desastre, aceita a idéia de suportar a vida10. Do ponto de vista do cidadão, as coisas são ainda mais claras: nada de mais estranho ao suicídio que o imperativo marcial da “morte gloriosa”, que deve ser aceita, e não procurada11. Sabe-se que, por haver desejado com excesso de ostentação morrer em Platéia,

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após a batalha o espartano Aristódamo foi pri-vado por seus concidadãos da glória póstuma de uma citação por ato de bravura. Espartano ou não, um guerreiro suicida-se apenas sob os golpes da desonra – este é o caso de Otriadas no livro I de Heródoto, e de Pantites no livro VII. Essas constatações são ecoadas pelo Platão das Leis, pensador normativo mas fiel à conve-niência cívica, que inflige ao suicida, por “fal-ta absoluta de virilidade”, a sanção institucional de uma sepultura tão solitária quanto esquecida, à margem da cidade e na noite do anonimato (IX, 873 c-d). Acrescentar-se-á – o que não é indiferente – que à falta de um nome especí-fico para o suicídio, a língua grega usa para designar esse ato as próprias palavras referen-tes ao assassínio dos pais, esse cúmulo de ignomínia12.

O suicídio, então: morte trágica, talvez, escolhida sob o peso da pressão por aqueles sobre os quais se abate “a dor excessiva de um infortúnio sem saída”13. Na tragédia, sobretudo morte de mulher. Mas há uma modalidade dessa morte, já depreciada em si mesma, mais que as outras marcada pela infâmia e mais que as outras associada a uma desonra sem remé-dio: refiro-me ao enforcamento, morte hedion-da ou, falando com maior propriedade, morte “informe” (áskhemon), mácula máxima que

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uma pessoa se inflige sob o golpe da vergo-nha14. Considera-se também – mas será isso verdadeiramente um acaso? – que o enforca-mento é morte de mulher: morte de Jocasta, de Fedra e de Leda, morte de Antigona (e, fora da tragédia, morte de inúmeras moças que se en-forcam para dar a um culto sua origem ou para ilustrar os enigmas da fisiología feminina)15.

O enforcamento, morte feminina. Ousaria mesmo dizer que nele a expressão da feminili-dade pode desdobrar-se infinitamente: as mu-lheres e as moças sabem que a corda – instru-mento usual do enforcamento – pode ser substituída, como em Antigona estrangulada no laço feito de seu véu, pelos adornos com que se cobrem e que são emblemas de seu sexo. Véus, cintos, faixas: esses instrumentos de sedução constituem virtualmente armadilhas de morte para aquelas que os usam, como as Danaides suplicantes explicam ao rei Pelasgo16; em suma, aproveitando a expressão vigorosa de Esquilo, há nisso uma bela astucia, mekhané kalé, em que apeithó (a persuasão) erótica se põe a ser-viço da mais sinistra das ameaças.

Não insistirei aqui na convivência da mulher com o campo da métis, essa inteligência astuciosa característicamente grega. Todavia, não se deve esquecer que toda ação realizada por uma mulher, esteja ela armada com o gládio

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para matar ou para matar-se, corre sempre o risco de ser inexoravelmente recoberta pelo vocabulário da astucia. No Agamemnon, por exemplo, a fim de evocar os desígnios assassi-nos de Clitemnestra afiando o gládio para usá-lo contra seu marido, Cassandra, contra toda expectativa, recorre à imagem do veneno mis-turado na taça; mas o texto da Oréstia substi-tuirá rapidamente o veneno pela armadilha muito real do véu que aprisionará Agamêmnon como se fosse numa rede – materialização audaciosa da metáfora de métis. A mesma ló-gica aparece nas Traquínias: sem querer, De-janira colhe Héraclès na armadilha envenenada da túnica de Nesso. A partir de então poderá pedir ao gládio a salvação de uma morte rápida, mas nem assim terá evitado que, mesmo fu-gazmente, seu suicídio seja incluído no registro industrioso da inteligência astuciosa17.

A essa métis envolvente, em ação nas pa-lavras e nos atos das mulheres e que tece as redes mortíferas ou aperta os nós de inúmeros laços, a tragédia contrapõe tudo que corta e dilacera, em suma, que derrama sangue. Isso nos leva às Suplicantes de Esquilo e à sua compulsão para o enforcamento. Ultimo recur-so em sua fuga desvairada diante dos filhos de Egito, o laço de morte protegeria as Danaides contra o desejo violento dos machos, da mesma

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forma que a precipitação do alto de uma rocha escarpada, em que pensam por um instante, as premuniría contra o casamento, esse constran-gimento em que o marido é somente um senhor. Mas não é por acaso que elas denominam esse senhor dáiktor. não “raptor” (como, na edição “Les Belles Lettres”, quer a tradução francesa muito conceituada de Paul Mazon), mas com maior precisão “dilacerador”18. Para escapar a essa dilaceração – sem dúvida a do estupro e do defloramento –, há somente duas vias: a morte das Danaides no nó de uma corda, e a conseqüente mácula para a cidade, ou sua vida ao preço de uma guerra na qual o sangue dos homens será derramado “por causa das mulhe-res” (Suplicantes, 476-477). As Danaides não se enforcarão. Conhece-se a seqüência: o casa-mento finalmente realizado, as nupcias de san-gue, mortíferas para os maridos, e mais tarde o castigo no Hades. Mas isso é outra história.

A incisão no corpo viril

A crer em Eurípides, um gládio arma a mão de Tânatos (a Morte). Sem dúvida isso não é puro acaso: se a morte, igual para todos, não faz distinção entre suas vítimas e corta indiferen-temente a cabeleira das mulheres e dos homens, convém a Tânatos, encarnação da morte no

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masculino, empunhar o gládio, emblema da morte viril19.

Isto porque um homem digno desse nome somente poderia morrer no campo de batalha, sob o gládio ou a lança de outro homem. É pouco glorioso o Menelau de Eurípides, o único grego a voltar de Tróia sem a marca de um ferimento sequer recebido de perto, ferimento a que está sujeito o homem completo20. E até num sacrifício humano – esse ato corrompido sob todos os aspectos –, convém que o sacrifica-dor seja um homem, sobretudo quando a vítima é masculina; essa circunstância é atestada na Ifigênia em Táuris, quando Orestes pergunta à sua irmã, antes de havê-la reconhecido:

“Tu, mulher, ferirás homens com a espada?”

e quando Ifigênia responde garantindo a presença no santuário de um degolador (spha-geus) para incumbir-se dessa tarefa21.

Essa regra imperativa, que determina que o homem morra pela mão do homem, sob o gládio e no sangue derramado, não é derrogada sequer pelo suicídio na tragédia. Em Sófocles como em Píndaro, Ajax aniquilou-se com a espada, fiel até o fim à sua estatura de herói, que vive e morre da guerra onde, numa troca

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sem dúvida sujeita a regras, fere-se e se é feri-do. Ájax suicida-se, mas como um guerreiro22. Cortado pelo ferro com o qual se identificava (Ájax, 650-651), ele dilacera seu flanco com essa espada que, ao encenar sua própria morte, o herói transforma num princípio ativo (não afirma ele que o “degolador (sphageus) está lá, de pé, para cortar o melhor possível”?)23. A espada de Ájax: significante primordial, en-contrado a cada passo na trama metafórica da tragédia de Sófocles, e que dá ao texto sua coerência. Se a espada do guerreiro torna-se realmente o escalpelo invocado por Ájax em seu clamor, existem, no sentido que se diz fi-gurado, muitos outros gládios em Ájax: por exemplo, as próprias palavras da língua que, afiadas como o aço, “cortam a carne viva”. Como admirar-se, então, de que à vista do cadáver do herói a espada cortante da dor tras-passe Têcmessa “até o fígado”?24

Nada mais direi a propósito da espada de Ájax; outros antes de mim souberam falar dela, às vezes soberbamente, como Jean Starobins-ki25. Não me estenderei tampouco sobre o tema do sangue derramado, embora central em Ajax, pois há outro herói de Sófocles para ilustrar o caráter necessariamente sanguinolento do sui-cídio viril. Refiro-me ao noivo de Antígona, cuja morte é anunciada sob a forma intraduzí-vel da glosa etimológica:

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“Hêmon morreu; sua própria mao o ensangüenta”.26

Baste-me relembrar que o nome de Hêmon (Háimon) se assemelha extremamente ao do sangue (haima): sendo assim, traspassado por seu próprio gládio, o filho de Creonte consuma o presságio de seu nome e morre como homem.

Enforcamento ou sphagé

Há entretanto uma palavra que não se poderá evitar por mais tempo de pronunciar, porque ela obseda o gênero trágico e é oposta insistente-mente ao vocabulário do enforcamento. Essa palavra é sphagé, nome do degolamento nos sacrifícios e também do ferimento e do sangue que corre dele. Como o verbo sphazo e seus derivados, ela serve evidentemente para desig-nar os sacrifícios, o de Ifigênia em Esquilo e em Eurípides, e também, em Eurípides, o de Ma-cária nos Heráclidas, o de Polixena na Hécuba e nas Troianas, e finalmente o dos filhos de Erecteu, oferecidos à pátria a título de sphagia (íon, 278). Até aqui, nada de anormal, ou qua-se nada. Mas, de Esquilo a Eurípides, passando por Sófocles, sphazo e sphagé servem também para designar o assassínio no seio da família

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dos Atridas. E sobretudo é ainda às mesmas palavras que se recorre para a designação do suicídio quando é sanguinolento: suicídio de Ajax, de Dejanira, de Eurídice. Invocar-se-á, para justificar o seu emprego um tanto diver-gente, alguma lei de impropriedade semântica que caracterizaria a tragédia em seu recurso à linguagem? Rebaixar-se-ia sphazo à categoria das palavras mais neutras ou mais descritivas como skhizo e daízo, que se referem à dilace-ração do corpo27? Isso importaria em desco-nhecer o rigor do significante trágico, que só desvia a língua para fins nv.iito precisos – por exemplo, o de confundir as ordens. É melhor apostar no sentido e observar que, carregadas de valores religiosos, sphazo, sphagé e spha-gíon não designam na tragédia um degolamen-to assassino qualquer, nem um suicídio qual-quer, e sim a longa seqüência de “assassinatos resultantes da aplicação da lei do sangue” na família dos Atridas, ou a morte voluntária de Eurídice ao pé do altar de Zeus Herqueio28. De maneira mais geral, sphagé caracteriza a morte pela espada como morte “pura” em contraste com o enforcamento29.

Logo depois de lembrar essa oposição entre os dois modos – o masculino e o femi-nino – do morrer, deve-se admitir que a in-fringimos de fato evocando a morte “viril” de

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Dejanira ou de Eurídice, que cravam um gládio no corpo. E em Eurípides não faltam heroínas para preferir o gládio à corda quando pensam na morte; assim, montando guarda à porta do aposento onde se consuma o assassínio de Cli-temnestra, Electra brande um gládio, prestes a voltá-lo contra si mesma se o cometimento fracassar (Electra, 688,695-696). Inversamen-te, há no mesmo Eurípides homens para quem a morte sobrevém por haverem sido apanhados em laços inextricáveis, como se se tratasse de uma mulher; acontece o mesmo com Hipólito, cujo corpo, enlaçado às rédeas de seus cavalos como se fosse com uma peia, é arrastado sobre os rochedos da estrada30. Mas, em relação aos homens, esse modo anormal da morte é obvia-mente mais raro.

Voltando então a meu propósito, observa-rei que a confusão trágica que dá a uma mulher uma morte viril não resulta de contingência alguma. Por exemplo, a morte de Jocasta nas Fenicias. Em Sófocles, sabe-se que Jocasta, imediatamente após perceber quem era ela em relação a Édipo, enforca-se, como mulher esmagada por uma desgraça insuportável. A Jocasta de Eurípides não se enforca; ela sobre-vive à revelação do incesto e morre por causa da morte de seus filhos, ferindo-se com o mes-mo gládio que os matou31. Sem dúvida trata-se

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aqui de um desvio absolutamente notável em relação a uma tradição firmemente estabeleci-da, desde Homero e do enforcamento de Epi-casta. Dever-se-ia, então, como fazem certos autores, atribuir essa inovação a uma evolução das mentalidades, sempre mais hostis às mortes por enforcamento?32 Para dizer a verdade, nada autoriza tal hipótese porque, desde a Odisséia (XXII, 462-464), a corda ocasiona a mais im-pura das mortes. Neste aspecto, quase não se percebe em que as mentalidades teriam evoluí-do. Mas convém sobretudo ler o texto de Eu-rípides tendo em vista o de Sófocles; notar-se-á então que há nas Fenicias urna espécie de reinterpretação de conjunto da personagem de Jocasta, e a morte viril daquela que não é mais, como em Sófocles, essencialmente uma esposa, e sim exclusivamente uma mãe33, deve desde então ser creditada a essa reelaboração crítica da tradição.

A partir deste exemplo e de alguns outros cheguei a esboçar, evocando a morte trágica das mulheres, uma generalização onde o en-forcamento estaria associado ao casamento – ou melhor, à supervalorização da condição de esposa (nymphe) – e o suicídio sanguinolento à maternidade, pela qual, nas dores “heróicas” do parto, a esposa se realiza plenamente34. Apesar de continuar me atendo a esta leitura,

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não voltarei a ela, pois o que me interessa no momento é a confusão e principalmente as afir-mações, numerosas em Eurípides, que parecem postular uma espécie de equivalência entre a corda e o gládio.

A corda ou o gládio: em uma palavra, a morte a qualquer preço, sejam quais forem as suas vias. Numa situação desesperada, assim raciocinam as mulheres viris (que, afinal de contas, prefeririam o gládio), assim se gabam as mulheres excessivamente femininas que, como Hermione, não ousarão sequer enforcar-se – mas, num caso ou no outro, a seqüência do texto é perfeitamente clara sobre qual seria, gládio ou corda, a verdadeira escolha da de-sesperada. Corda ou gládio: é essa ainda a es-colha que, diante da iminência da morte de Alceste, o coro deixa a Ádmeto, afirmando que “tal desventura justifica que se abra a garganta (sphagé) ou que se passe no pescoço o nó de um laço suspenso” – simples maneira de assi-nalar que, por haver fugido à morte, um homem feminizado não poderia subtrair-se à angústia que aniquila as mulheres35.

Mas, como esses exemplos sugerem, mesmo quando a confusão chega ao máximo, seu único objetivo é, paradoxalmente, reforçar a oposição em sua ortodoxia. Por exemplo, na peça que tem o seu nome, Helena, chamando a morte em suas preces:

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“Com um nó mortífero, com um nó suspenso, enlaçarei meu pescoço, ou então, com um grande esforço, cravarei em minha carne a lâmina inteira de uma espada cujo ímpeto assassino abrirá em minha garganta uma fonte de sangue, e me imolarei às três deusas...”

Como indica a resolução final, a única eventualidade que Helena considera digna dela é a sphagé; mas, olhando de frente, a escolha já se esboçava nas palavras usadas por Helena quando falava em se enforcar, sobretudo nessa “phoníon aiórema”, essa intraduzível e con-traditória “suspensão sangrenta” que os tradu-tores dissimulam como podem, porque, pensam eles, a característica do enforcamento é que o sangue não corre durante a sua consumação36. É precisamente nesse oxymoron que devemos adivinhar a escolha da heroína, para quem só se pode pensar em morte sanguinolenta e cujas palavras rejeitam o enforcamento no instante mesmo em que ela evoca a sua eventualidade. Phoníon aiórema: assim, anunciando antecipa-damente o sangue da sphagé, a língua de Hele-na antecede seu pensamento.

Reafirma-se então ainda mais forte a opo-sição entre a corda e o gládio, com a ressalva de que, daqui em diante, algumas evidências se impõem. Nunca, mesmo tendo pensado nisso, um homem se enforca37; então, sempre que se mata, um homem o faz como homem. Em compensação, para a mulher a alternativa está

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aberta: buscar no nó de uma corda um fim bem feminino, ou apoderar-se de um gládio rou-bando aos homens sua morte. Questão de iden-tificação, isto é, de coerência interna do perso-nagem trágico? Talvez. Nem por isso o dese-quilíbrio é menos evidente, provando, se for necessário lembrá-lo, que o gênero trágico domina perfeitamente o jogo da confusão e conhece os limites que não pode transpor. Ou, para dizer de outra maneira, que a mulher nes-se caso está mais autorizada a fazer-se de homem para morrer que o homem a adotar, mesmo na morte, qualquer conduta feminina, seja ela qual for. Liberdade trágica das mulhe-res: liberdade na morte...

A esposa que se lança

Mas, já que a alternativa está aberta para as mulheres, e há as que escolhem as vias da feminilidade até o fim, detenho-me ainda um instante no enforcamento e nos valores ligados a ele.

Para além do vocabulário da métis e do julgamento implícito que seu emprego faz pe-sar sobre uma morte em que alguém se prende a si mesmo na armadilha de um laço, uma pa-lavra merece reter nossa atenção, porque des-creve e sugere em vez de julgar.

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À audição da palavra aiora (ou eora) liga-se a dupla imagem de ura corpo suspenso e do ligeiro movimento de balanço que lhe é imprimido38. Deve-se lembrar que em Atenas aiora era o nome de uma festa em que as re-presentações do enforcamento se associavam à brincadeira do balanço; não se trata aqui, to-davia, da Aiora religiosa, e sim da visão indu-zida pelo emprego trágico da palavra. Aiora de Jocasta, aiórema de Helena: Édipo forçou a porta que Jocasta havia fechado cuidadosa-mente depois de passar por ela, e todos vêem agora a mulher enforcada, “presa ao nó balou-çante” (plektais corais empeplegmenen); da mesma forma, para Helena, que não se enfor-cará, o enforcamento se resumia no termo aiórema. Nesse ponto o leitor de tragédias lembrar-se-á de haver encontrado esta palavra em outro contexto: o da morte por lançamento. Nas Suplicantes de Eurípides, Evadne se pre-para para lançar-se ao fogo, junto à rocha ele-vada (aitheriapetra) que domina a pira fúnebre de seu marido Capaneu:

“Eis-me aqui, neste rochedo, como um pássaro, por sobre a pira de Capaneu, elevando-me rápida num balanço (aiórema) funesto.” (Suplicantes, 1045-1047)

Deter-nos-emos o tempo necessário para verificar que aiórema designa tanto o balanço

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da enforcada quanto o vôo de Evadne, e que existe na linguagem trágica um parentesco temático evidente entre o enforcamento e a precipitação. Talvez alguém se admire: a en-forcada se lança no vazio, sem dúvida, mas seu corpo deixa o solo para ficar preso ao alto do teto; a precipitação, ao contrário, é uma queda profunda (bathy ptomá). O próprio verbo aeiro, que significa a elevação e a suspensão, aplica-se a esses dois lançamentos orientados em sen-tido inverso, para o alto, para baixo, como se o alto tivesse sua profundidade, como se alguém só chegasse embaixo – o solo, mas :.imbém as profundezas subterrâneas – elevando-se39. Por estranho que seja, essa é a lógica implícita que, somente ela, permite esclarecer a associação recorrente dessas duas maneiras de elevar-se no interior das “odes de evasão”, esses trechos líricos onde, esmagados pelo real, freqüente-mente o coro e às vezes a heroína trágica (ou o herói) cantam suas aspirações à morte como à fuga salutar. Ter-se-ia de evocar as Suplicantes de Esquilo, o Hipólito de Eurípides, e muitos outros textos. Para ir ao essencial observarei que, em todos eles, a mesma imagem retorna: a do lançamento alado, mas também, explicita-mente, a do pássaro. O pássaro Evadne encon-tra eco em Fedra, pouco tempo antes pássaro de mau agouro e logo pobre pássaro fugido das

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mãos de Teseu: do alto de um rochedo ou no nó de um laço – que importa? – Evadne e Fedra levantaram seu vôo, para sempre. Há também as mulheres que se limitam a sonhar com o vôo: Hermione, que em seu desejo de morte queria ser pássaro, as Danaides desesperadas em face da aproximação dos machos, as mulheres do coro da Ifigênia em Táuris ou da Helena, al-ciones sem asas, arrebatadas pela saudade ar-dente da pátria distante40.

O fato de o pássaro, esse operador trágico da evasão, realizar imaginariamente a fuga permite que se enuncie algumas proposições sobre o que se diz das mulheres a propósito do enforcamento41. A primeira é que, em sua pro-pensão a levantar vôo, essas esposas (que a ortodoxia das representações cívicas quer se-dentárias) têm uma certa relação de conaturali-dade com o “algures”; e ei-las lançando-se no ar e pairando entre o céu e a terra. A segunda é que basta uma desventura para que elas esca-pem ao homem, saindo de sua própria vida, saindo da vida dele, como deixam a cena: bruscamente. Identificado que é com o modelo marcial, o homem deve permanecer em seu lugar, afrontar a morte frente a frente, como Ájax que, no trespasse, se reencontra com a terra à qual o prende sua espada, fixa no solo, cravada em seu corpo.

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Para as mulheres a morte é uma saída. Bêbeke: “Ela partiu”, diz-se de uma mulher que morreu ou que se matou. Diz-se de Alceste, diz-se de Evadne que deixou de um salto (bêbeke pedásasa) a casa de seu pai para subir ao ro-chedo de onde se lançará, ainda de um salto – o último (pedásasa). E, chorando a morte de Fedra, que “desapareceu como um pássaro escapado das mãos”, Teseu grita: “um salto súbito (pédema) levou-te para o Hades”42. Mas é tempo de relembrar que, se para uma mulher a morte é movimento, somente levantam vôo as heroínas extremamente femininas. De fato, o anúncio da morte de Dejanira, que prefere o gládio à corda, começa como seria de esperar, mas termina com uma conotação insólita:

“Dejanira partiu para sua última estrada – a última –, com um pé imóvel (Bêbeke . . . /ex akinetou podôs).” (Traquínias, 874, 875)

O pé imóvel de Dejanira é talvez – a sugestão é de Jebb, o editor inglês de Sófocles – algo como uma locução proverbial empre-gada para eufemizar a morte, um modo de de-signar a marcha e a estrada como puramente metafóricas. Prefiro ver nessa expressão, em oposição ao vôo na aiora, uma maneira de sugerir, antes de o coro interrogar-se a respeito da forma da morte, que a mulher de Heracles

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não fugiu pela via do enforcamento. Que ela morreu como um soldado. Mas, inversamente, é tempo de voltar ao suicídio marcial de Ajax para verificar que, na apresentação dessa mor-te, Sófocles soube relembrar discretamente que para um homem o suicídio é morte desviante; foi certamente viril a morte do herói, mas com a ressalva de que é a espada do herói que está de pé (hêsteken) no lugar do hoplita, enquanto Ájax irá traspassar-se, lançando-se num salto rápido – salto esse (isso causará admiração a alguém?) denominado pédema41.

Boa ocasião para observar novamente que, se na tragédia o masculino e o feminino brin-cam cruelmente com a distribuição da humani-dade em homens e mulheres, essa brincadeira nada tem de fortuita, mas tende a sugerir o modo – adequação ou desvio – pelo qual cada personagem vive o seu destino de ser sexuado, essa realidade ao mesmo tempo mui-to real e muito imaginária de que a cidade desejaria produzir uma realidade antes de tudo social.

Entretanto, sejam elas femininas ou viris, há para as mulheres um modo de morrer se-gundo o qual elas permanecem plenamente mulheres. É sua maneira, fora do teatro, de encenar seu suicídio; encenação minuciosa escondida do olhar do espectador e no essencial

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narrada; encenação que, em Sófocles, obedece mesmo a uma estrutura regida por fórmulas: uma saída silenciosa, um canto do coro e depois o anúncio por um mensageiro de que a mulher se matou longe dos olhares.

O silêncio e o segredo

O silêncio é o ornamento das mulheres: idéia presente em Sófocles, retomada por Aristóteles e expressa em Eurípides através de Macária que, no momento de intervir na ação, empenha-se em mostrar que sabe disso ao observar que, para uma mulher, o melhor é não sair do inte-rior bem fechado de sua casa44. Mas as mulhe-res trágicas vieram misturar-se ao mundo viril da ação: elas sofrem por isso. E as heroínas de Sófocles voltam silenciosamente à morada que haviam deixado para morrer nela. Silêncio de Dejanira em face das acusações de Hilo, pesa-do silêncio de Euridice no qual o coro adivinha com razão uma ameaça oculta, meio-silêncio de Jocasta, palavra de duplo sentido onde a voz afinal se extingue45.

Esses silêncios, que o ouvido percebe como outros tantos sinais angustiantes, anteci-pam uma ação que a mulher quis subtrair à vista: Fedra tornou-se invisível (áphantos) e

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Dejanira desapareceu (diêistosen) – digamos que ela organizou a desaparição definitiva gra-ças à qual, longe da vista dos mortais, chega ao mundo invisível do Hades fugindo a todos os olhares no próprio interior do palácio onde se refugiou46. Da mesma forma, Jocasta e Fedra ocultam-se por trás de portas trancadas, her-méticamente fechadas sobre a morte, encerra-mento que redobra o aprisionamento do corpo no enforcamento; Édipo terá de lançar-se con-tra a porta, Teseu esbravejará e suplicará que lhe abram os ferrolhos47: só então poderão ver suas mulheres. Mortas. Os espectadores não vêem o corpo de Jocasta, mas verão o de Fedra, da mesma forma que o de Eurídice, aparecer à sua vista ao mesmo tempo que à de Creonte – e o mensageiro sublinhará o jogo de cena:

“Pode-se vc-la, pois ela não está mais cm seu retiro (en mykhois)”**.

Admirável jogo do visível e do oculto, em virtude do qual não se vê a morte de uma mu-lher mas somente uma mulher morta. Então, como ss mais nenhum interdito pesasse sobre essa lugubre contemplação, a ação dramática pode continuar, e mesmo, como no Hipólito, organizar-se daí em diante em torno do corpo da morta e de sua presença silenciosa: Fedra desapareceu, mas seu corpo está ali, esse corpo

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tirado do nó fatal para ser estendido na terra como convém, esse corpo que ela quis usar como prova contra Hipólito e que, mudo para sempre, leva todavia a mensagem da ausente49. Essa é sem dúvida uma maneira bem feminina de apresentar a própria morte. De fato, com Ájax, cujo cadáver é um elemento dramático pelo menos tão importante quanto o de Fedra, as coisas se passam de maneira diferente, e a distribuição do ver e do ocultar é decididamente outra: se Ájax é o paradigma viril do suicídio, conseqüentemente um homem tem o direito de suicidar-se diante dos espectadores50. Mas, pela circunstância de sua morte ser apenas uma imitação canhestra da morte gloriosa do guer-reiro, o interdito de ver aplica-se a seu corpo. Antes de começar entre os chefes do exército o debate sobre a conveniência de “ocultá-lo” em uma tumba, Têcmessa e depois Teucro, cada um à sua maneira, esforçam-se por dissimular o espetáculo tão doloroso quanto inconve-niente51.

Deve-se enfim mencionar o vaivém entre o ver e o ocultar que se instaura a propósito de Alceste, morta em substituição a um homem. Alceste que morre em cena e cujo corpo, inici-almente levado ao interior do palácio, será no teatro objeto de uma longa prôthesis (exposi-ção) antes de o cortejo fúnebre (ekphorã) reti-

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rá-lo da vista – definitivamente, acredita o coro, e é verdade que, sem a intervenção de Héraclès, Alceste teria desaparecido para sem-pre52. Mas Alceste, a única a não ir para o Hades, é uma exceção; são inúmeras as mu-lheres trágicas que partem para lá sem retorno.

No thálamos: morte e casamento

Voltando sobre nossos passos, detenhamo-nos por um instante na porta desse lugar bem fe-chado onde uma mulher se refugia para morrer longe dos olhares. Com seus sólidos ferrolhos, que têm de ser forçados para se poder chegar até a morta, ou melhor, ao corpo de que ela já escapou, esse lugar indica o pequeno espaço da autonomia concedido às mulheres pela tragé-dia. Sempre suficientemente livres para matar-se, elas não o são para escapar a seu enraiza-mento espacial: o retiro recôndito onde elas se matam é também o símbolo de sua vida, vida que tira seu sentido fora de si, que só se realiza nas instituições – casamento, maternidade – que ligam as mulheres ao mundo e à vida dos homens. E é pelos homens que as mulheres morrem, é pelos homens que elas se matam com maior freqüência53. Por um homem, para um homem: distinção ausente em muitos tex-

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tos, mas que Sófocles sublinha com uma aten-ção especial, na Antígona, onde Eurídicc mor-re por seus filhos mas por causa de Creonte, nas Traquínias, onde Dejanira morre por causa de Hilo, por amor de Heracles. Assim a morte das mulheres confirma ou restabelece sua relação com o casamento e com a maternidade.

É tempo de denominar o lugar onde elas se matam: trata-se precisamente do aposento conjugal, o titulamos. Dejanira se precipita nele como faz Jocasta, Alceste derrama nele suas últimas lágrimas antes de enfrentar Tânatos e, saindo do palácio para morrer, é ainda para esse lugar que ela voltará seus pensamentos e seus queixumes. Quanto à pira de Capaneu, onde Evadne se lança para reencontrar nela a união carnal com o marido, ela é chamada de thala-mai (câmara fúnebre). Essa palavra condensa as múltiplas afinidades de sua morte com as nup-cias54.

Entretanto, se o thálamos é a parte mais recôndita da casa, há ainda no interior do thála-mos o leito, lelçhos, lugar de um prazer tolera-do pela instituição do casamento se for bastan-te moderado, lugar sobretudo da procriação. Não há morte de mulher que não passe pelo leito: é lá, e somente lá, que Dejanira e Jocasta podem, antes de matar-se, reiterar para si mes-mas sua identidade55. É lá também que morre

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Dejanira, na cama que ela havia associado demasiadamente aos prazeres da nymphe: ma-tando-se como um homem, não se morre menos por isso em seu leito quando se é mulher.

Enfim, prendendo sua corda ao teto do aposento conjugai, Jocasta e Fedra atraem a atenção para o madeiramento simbólico da casa. Essa viga da cumeeira, conhecida na Odisséia como mêlathron, é chamada de têramna por Eurípides; ela pode designar meto-nimicamente o palácio pensado em sua dimen-são de verticalidade. Mais ainda: de Safo can-tando o epitalamio

(“Vamos, carpinteiros, levantai a viga do teto (mêlathron), Himeneu! pois eis aqui entrando na casa nupcial um noivo igual a Ares!”)

até Eurípides, parece realmente que essa viga tem muito a ver com o marido, cuja alta estatura ela domina e protege56. Ocasião talvez de re-lembrar que, em seu discurso mentiroso, Cli-temnestra chamava Agamêmnon de “coluna que é o sustentáculo do alto teto” (Agamêmnon, 897-898). No momento de saltar no vácuo, é a presença ausente do homem que a mulher en-contra pela última vez em cada ponto do thá-lamos.

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Morrer com

Igualmente, ninguém deve se admirar demais de que muitas dessas mortes solitárias sejam pensadas como outras tantas maneiras de mor-rer com o homem. Morrer com: modalidade mortal do synoikein, o “morar com” que dá ao casamento grego uma de suas designações mais correntes57.

Morrer com: este não era certamente o desejo de Clitemnestra, que em vez de morrer preferiu viver com Egisto, mas é o quinhão que Orestes, com uma ironia fustigante, lhe reserva quando, antes de golpeá-la, convida-a a ir “dormir” na morte “com” aquele que ela ama-va e preferira a seu marido. Justa reviravolta das coisas na lógica da Oréstia, justa compen-sação pela morte de Cassandra ao lado de Agamêmnon, que Clitemnestra antes apresen-tara como o trespasse devido a uma amante58. Morrer com: aquilo que a lógica do assassínio impunha às mulheres da Oréstia será para as suicidas o objeto de um querer muito seme-lhante ao amor e ao desespero. Assim Dejanira, logo que adivinhou a catástrofe já em marcha, anunciou às mulheres de Traquis, suas confi-dentes, sua intenção de acompanhar Heracles na morte: “Decidi que se lhe acontecer alguma desgraça morrerei com ele, eu também, no

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mesmo impacto, ao mesmo tempo” (Traquí-nias, 719-720); intenção firmemente amadure-cida, expressa quatro vezes no mesmo verso, e à qual ela se adequará totalmente. Entretanto, o “com” terá sentido apenas para ela mesma. Vencido, Heracles a renegará porque ela lhe roubou a morte dos homens, condenando-a, para além da morte, à solidão que foi seu qui-nhão na vida. Evocar-se-á também a Helena de Eurípides, que não morre mas fala muito em morrer e que, virtuosa como a de Estesícoro em seu exílio egípcioS9, jura que se Menelau mor-rer ela se matará com a mesma espada para repousar ao lado do marido. Enfim, se toda conduta contém seu excesso, Evadne merece uma menção especial: desvairada com o casa-mento, bacante do amor conjugal, faz da pira fúnebre de Capaneu um túmulo compartilhado e, não contente com aspirar a morrer com o homem amado, sonha com o aniquilamento à maneira erotizada da união dos corpos:

“Misturarei meu corpo ao de meu marido na chama ardente, repousando unida a ele, carne contra carne”‘0.

Morrer com: para uma mulher, maneira trágica de ir até o fim do casamento, realizando, é verdade, um deslocamento temível, pois é na morte que a coabitação com o marido se con-

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sumará. Há entretanto uma mulher, mais mãe que esposa ou, melhor, mãe em excesso, capaz de deslocar o “morrer com” para o lado da maternidade. Refiro-me à Jocasta de Eurípides que, coerente com seu destino de mãe inces-tuosa, morre da morte de seus filhos e, “morta, repousa entre seus bem-amados, envolvendo ambos com seus braços”61. É assim que Eurípi-des reconstrói nas Fenicias a história de Jocas-ta; ela que, casando-se com seu próprio filho, havia misturado as nupcias com a maternidade, somente poderia morrer como mãe. Mas, da mesma forma, o homem a quem as mulheres dedicam sua morte, apresenta, como já vimos, duas figuras alternativas. Já que se trata de morrer, uma mulher como Eurídice prefere a morte por seus filhos à vida com o marido. A originalidade de Jocasta é morrer com aqueles que ela pôs no mundo, matando-se sobre seus corpos, no mesmo lugar em que encontraram sua morte guerreira.

A glória das mulheres

Chegou a hora de indicar o que o discurso trá-gico sobre a morte das mulheres tira das repre-sentações socialmente admitidas na Atenas clássica, e em que se afasta delas. Esta questão

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remete ao difícil problema da “gloria das mu-lheres” (kleos gynaikon), cuja formulação, mesmo a mais cotidiana, não se esgota com-pletamente na abrupta profissão de fé de Péri-cles.

Porta-vozes de uma ética tradicional, em matéria de glória das mulheres os epigramas funerários manifestam um radicalismo menos intransigente que o de Péricles no epitáphios. Digamos que eles não ignoram totalmente essa noção. Mas essa glória, sempre subordinada à realização de uma carreira de boa esposa, con-funde-se com o valor (arete) propriamente feminino, devendo ser evocada de preferência num modo condicional, talvez no tom de reti-cência. O valor das mulheres não se confunde com o valor pertencente aos homens, que não tem de ser especificado: não há “valor mascu-lino”, há areté em si. Ouçamos o discurso do luto em sua ortodoxia:

“Supondo-se que ainda exista na humanidade uma virtude feminina, ela coube em partilha a esta mulher”,

diz prudentemente um epitafio de Amorgos; e um epitafio do Pireu reitera:

“O que é uma raridade para uma natureza feminina – virtude acom-panhada de castidade –, coube nobremente a Glicera num duplo quinhão.”

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Quanto ao elogio e à admiração da huma-nidade, às vezes explicitamente conferidos a uma esposa, a morte, este último acidente, nada vale, e a vida que ela levou vale tudo. É isso que se deve entender de outro epigrama do Pireu:

“Por ocasião de sua morte Cairipe recebeu no mais alto grau aquilo que é no mundo o elogio mais nobilitante das mulheres.”

Numa formulação ainda mais precisa, o epi-grama gravado no túmulo de uma ateniense afirma:“Mais que ninguém no mundo, Antipe, rccebias o elogio adequado às mulheres, e agora, que estás morta, ainda o recebes.”

Eis algumas menções à glória cotidiana das mulheres. Talvez isso seja muito para Atenas, mas é também pouco. É verdade que as boas esposas não são trágicas.

Isso não significa que as mulheres trágicas não sejam esposas. Mas elas o são na morte – e só na morte, parece, pois só sua morte lhes pertence, e é na morte que elas consumam o casamento. Pode-se então formular duas pro-posições contraditórias, mas complementares, sobre sua morte. A primeira, sensível à força dos valores tradicionais, afirma que quando as heroínas de tragédias se realizam como esposas na morte reforçam a tradição no instante mes-

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mo em que inovam. A segunda, atenta a abranger tudo que, na tragédia, tomaria o “par-tido das mulheres”62, constata que, na morte, as esposas ganham uma glória cuja extensão ul-trapassa consideravelmente a do elogio conce-dido pela tradição a seu sexo. Sem decidir en-tre as duas proposições, porque cada uma delas tem sua exatidão, observar-se-á que é de fato impossível não sustentar as duas simultanea-mente, a todo instante e caso por caso. Isso, sem dúvida, chama-se ambigüidade, e ambíguo é o prazer da kátharsis em virtude do qual, duran-te uma representação trágica, os cidadãos se comovem vendo o sofrimento dessas mulheres heróicas que encarnam no teatro outros cida-dãos vestidos com trajes femininos.

Glória trágica das mulheres, glória am-bígua.

Tomemos como exemplo Alceste, figura paradigmática desta interpretação do casamen-to pela morte. O coro diz convictamente que ela foi “entre todas as mulheres a melhor para com seu marido”; e suas últimas palavras são para dizer ao marido: “Adeus” (Khaire), exatamen-te como as boas defuntas nas esteias dos cemi-térios atenienses. Entretanto, essa Alceste irre-preensível testemunha brilhantemente que a glória das mulheres é sempre artificiosa: Al-ceste a devotada, a amante, a virtuosa, mas a

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quem somente essas qualidades másculas que são a audácia e a pertinácia asseguram a “mor-te gloriosa”; ou, porque a morte gloriosa é es-sencialmente viril e a esposa fiel ocupou o lugar do homem, essa tolma (audácia) feminiza em contrapartida o marido bem-amado, condenado a assumir uma paternidade maternalizante e a viver desde então recluso como uma virgem ou casto como uma recém-casada no interior desse palácio que sua mulher deixou quando, para morrer, entrou no espaço aberto dos feitos viris63.

Glória eminentemente ambígua é também a de Evadne, desejosa de morrer ao mesmo tempo como esposa e como guerreiro. Para honrar o casamento, a mulher de Capaneu bus-ca a morte como um hoplita equívoco, desar-vorado longe do campo de batalha: de pé sobre a rocha escarpada, ansiosa pela glória de um túmulo comum, desejosa de que toda Argos tome conhecimento de sua morte, mas adorna-da como uma mulher determinada a seduzir – como uma nymphe, talvez. Disso resulta que a “vitória” por ela reclamada como seu quinhão a leva muito além de seu sexo, que normal-mente ganha renome na ocupação de tecer e por uma sábia discrição. E quando Evadne afirma que sua vitória é a da areté (virtude), parece que nem a mulher nem o guerreiro nela presente

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devem achar nessa atitude sua satisfação. Com efeito, o coro, composto de mães enlutadas, não crê realmente em sua virtude feminina, marca-da pelo excesso, nem tampouco em sua audá-cia, cuja “virilidade” combina mal com a es-posa que ela pretende ser6*.

Há também a glória tardia de Dejanira, que só após ter cometido o ato irreparável pro-clama seu desejo de boa fama (Traquínias, 721-722), e sobretudo aquela – quão paradoxal! – de Fedra. Tão apaixonada pela glória quanto por Hipólito, Fedra morre por ter perdido a reputação de esposa de Teseu, mas coloca essa morte, que deseja nobre, sob o signo da métis, colocando um nó em volta de seu pescoço, fazendo desse nó uma armadilha para Hipólito e deixando a sinais escritos o cuidado de clamar por uma falsa verdade. Entretanto seu nome será ilustre, por causa desse amor em que ela imaginava perder sua glória, por causa dessa morte funesta. A contradição atinge o auge. É verdade que Afrodite nada mais tem a ver com aquilo, mas a própria Fedra tem muito65.

Duplicidade da tragédia em matéria de feminilidade... Por estarem “deslocadas”, essas glórias de mulher nem por isso levam menos a pensar, a ouvir, a ver. Mas, em sua qualidade de

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esposas por falta ou excesso, Fedra, Dejanira, Alceste ou Evadne não deixam de morrer sob o signo do casamento. Sem dúvida é preciso aceitar que constantemente a tragédia se afasta da norma em proveito do desvio, sem que nun-ca se tenha certeza de que, sob o desvio, a nor-ma não esteja silenciosamente presente. Tam-bém tentamos simultaneamente as duas leituras possíveis: aquela que faz o inventário de todas as distorções que, do seio de um sistema de valores, é possível aduzir a esses valores, e aquela que dá ouvidos a uma voz às vezes dis-sonante no conjunto grego dos lôgoi sobre as mulheres.

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O Sangue Puro das Virgens

Entre as moças em flor é o sacrifício e o sangue derramado que dominam. Por terem menos autonomia que as esposas, mesmo no universo trágico, as virgens não se matam; são mortas. Generalizando dessa maneira, não esqueço que existe ao menos uma virgem que fornece um desmentido categórico a tal proposição: refiro-me certamente a Antígona que, não se contentando com matar-se, mata-se como as esposas lacrimosas, buscando no enforcamento um último recurso. A dificuldade é real, e seria inútil tentar atenuá-la. No mínimo convém proceder a uma análise meticulosa das condi-ções inerentes à consumação da morte de An-tígona, onde se misturam inextricavelmente um suicídio bem feminino e algo como um sacrifí-cio fora das normas. Embora tenha tido, em sua opinião, o cuidado de não comprometer nem sua responsabilidade pessoal nem a da cidade,

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Creonte condenou inapelavelmente Antígona ao Hades, vítima humana oferecida aos deuses infernais para que eles se apoderassem de sua jovem vida66; sepultada viva, a filha de Édipo estava condenada a morrer asfixiada e, no laço feito com seu véu de virgem, ela antecipará a asfixia por outra via. Seu proveito com isso é inventar sua própria morte e condenar Creonte à mácula que ele queria evitar. Mas o sentido desse enforcamento não se esgota no gesto pelo qual Antígona, fiel à lógica das heroínas de Sófocles, escolhe morrer por suas próprias mãos e converte em suicídio o que seria uma execução: matando-se como as mulheres bem femininas, a moça reencontra na morte tanto uma feminilidade que enquanto viva renegara com todo o seu ser, como um tipo de nupcias. Voltarei a essa questão. Mas, nessa morte ex-cepcional, o importante era acentuar antes de mais nada o aspecto de exceção e a estranha norma que determina que se executem as vir-gens na tragédia.

Essa é realmente a norma, ou aquilo que parece ocupar o seu lugar no universo trágico: um sacrifício, geralmente sanguinolento, cuja vítima é uma moça.

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Sacrifícios em que é bom pensar

Examinemos a morte de Ifigênia sob o cútelo do sacrificador, morte paradigmática que nenhum dos três grandes trágicos deixou de evocar, e mais de uma vez. A morte de Ifigênia: um sacrifício, mas cuja vítima é uma moça, não um animal. Simples detalhe? Poder-se-ia crer que sim, observando que, para dizer a morte de Ifigênia, a tragédia recorre de bom grado aos verbos sphazo e thyo, normalmente usados para significar o degolamento e o ato do sacrifício. Mas há textos que nos levam a ver nesse deta-lhe uma monstruosidade e nos fazem pensar essa morte sob a categoria do assassínio (phonos)67.

Sacrificar uma virgem: numa palavra, valer-se do jogo teatral para pensar o impensá-vel, plantar-se no cúmulo da alienação para interrogar ali a norma a partir do desvio – direi eu: sob a proteção de um desvio que se mostra muito evidentemente como tal? Atenta em mascarar o assassínio oculto no sacrifício, a prática religiosa das cidades esforçava-se para que o degolamento do animal fosse submetido a uma encenação rígida68. Pulverizando essas piedosas precauções, o gênero trágico, à escu-ta do mito, entrega as moças ao cútelo do de-golador. E o impensável torna-se narração (pois

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nada dessas mortes virginais será posto diante dos olhos, tudo será confiado à sugestão das palavras): uma narração boa para ser ouvida porque o teatro é ficção69. Por certo, a cidade na realidade não sacrificava suas moças; mas, na oportunidade de uma representação, ela ofere-cia aos cidadãos a dupla satisfação de trans-gredir imaginariamente a proibição do phonos e de sonhar com o sangue das virgens.

Se sobre esse jogo catártico do imaginário, da proibição e do real, haveria muito a dizer, muito haveria também sobre a função do teatro, essa cena que a cidade se oferece para nela atar e desatar ações sobre as quais o próprio pensa-mento seria perigoso e insuportável. Não será todavia a reflexão trágica sobre o sacrifício que reterá aqui nossa atenção, e sim o conjunto dos procedimentos que, de Esquilo a Eurípides, cercam a morte das moças. Já que também o mesmo se aplica à figura da párthenos, cabe aqui a interrogação sobre aquilo que, do dis-curso mitológico às narrações da tragédia, faz de uma virgem a vítima designada de um sa-crifício contra as regras.

Ifigênia, Macária, Polixena ou as filhas de Erecteu: virgens oferecidas à sanguinária Árte-mis, à temível Perséfone ou aos habitantes do Hades, para a salvação da comunidade, para que se possa começar uma guerra ou ao con-

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trário para chegar a seu fim, para que se trave o combate decisivo e que a vitória caiba ao lado dos sacrificadores. Em suma, outras tantas sphagia. A quem se perguntasse o que vale para as phártenoi a sinistra honra de ser entregues assim ao cútelo do degolador, lembraríamos primeiro que, por ignorar o casamento e os tra-balhos de Afrodite, a moça adquire por meio do imaginário social noções relativas ao mundo da guerra. Talvez se evoque então Atena, virgem e guerreira. Mas Atena é uma deusa, enquanto Ifigênia, Macária, Polixena e as filhas de Erec-teu são simples mortais: à deusa cabe o privi-légio de combater, às mortais cabe o de serem sacrificadas. As virgens não poderiam comba-ter ao lado dos varões mas, quando o perigo é extremo, seu sangue corre para que a comuni-dade dos andres viva70. Às vezes velam pela boa ordem da imolação os “escolhidos” (loga-des), essa elite da juventude guerreira cuja vocação para a morte é mais imperativa que a de quaisquer outros combatentes. Venha a der-rota: os escolhidos deixar-se-ão matar até o último; para que venha a vitória, os escolhidos conduzirão ao cútelo do sacrifício uma virgem escolhida71.

Para que o sangue dos homens não seja derramado em vão, teria portanto de correr sangue virgem ou, de acordo com a proclama-

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ção dos sacrifícadores no momento de realizar sua tarefa, “sangue puro”72. Além disso, tal lógica, sempre referenciada ao tempo do mito, é a do imaginário: sejam quais forem as liber-dades que a tragédia tome com a realidade das práticas sociais, nenhum espectador poderia esquecer-se de que, mesmo confrontada com o perigo, uma cidade se contenta geralmente com a imolação de animais e de que, pensada na perspectiva excessivamente ortodoxa do siste-ma sacrificial, a imolação de uma virgem é pelo menos uma anomalia. Seria para resolver essa tensão do real e do imaginário que, de Esquilo a Eurípides, a tragédia se empenha em anima-lizar metaforicamente as moças sacrificadas?

Novilha, poldra: domadas

No Agamêmnon de Esquilo, Ifigênia debate-se “como uma cabra” e seu pai a destina à morte “como um animal (boton) escolhido num reba-nho de ovelhas”73. É a uma novilha (moskhos) que Eurípides a compara duas vezes, mais pre-cisamente a uma “novilha das montanhas des-cida virgem de um antro rochoso”74. Sempre sacrificada na hora crucial do início do comba-te, a cabra não é uma vítima ordinária; com a novilha, o modelo do sacrifício pareceria mais

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clássico se a vítima não fosse caracterizada como montanhesa. De fato, uma vez que só se pode imolar dentro das regras um animal do-méstico, verifica-se que uma novilha monta-nhesa não é absolutamente uma vítima confor-me a essa exigência: a montanha torna selva-gem tudo que vive nela e, salvo quando se tra-ta de Hermes, que sabe manipular como artis-ta a confusão das regras75, não seria possível sacrificar uma vaca das montanhas. Nessa comparação de Ifigênia com uma oreia mos-khos ver-se-á então um modo de sublinhar o desvio que caracteriza todo sacrifício humano, “a selvageria da vítima substituindo a selvage-ria do ato”76. O desenlace da tragédia, aliás, proporciona uma confirmação dessa análise: quando finalmente Artemis – ou o poeta – substitui a moça por uma vítima animal, como a corça corredora da montanha que expira sob o cútelo de Calcas, o mundo selvagem se in-troduz irreversivelmente no coração do sacri-fício.

A semelhança de Ifigênia, Polixena em vias de ser sacrificada é assimilada a uma no-vilha das montanhas e, pelo caminho oblíquo dessa analogia, sua imolação se inscreve na interseção do civilizado e do selvagem. Mas, para evocar Polixena, a comparação não pare-ce a figura de estilo mais adequada. Talvez

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porque nenhuma substituição deve suavizar in extremis seu destino, a jovem recebe um trata-mento principalmente metafórico: ela é a novi-lha de Hécuba, mas também é sua “poldra” (po-los)11. Detenhamo-nos um instante nesta última palavra, ainda que seja para evocar outras situ-ações muito semelhantes onde ela é usada igualmente para caracterizar uma vítima jovem: trata-se do filho de Creonte, Meneceu, candi-dato ao sacrifício e, também ele, identificado com um potro (Fenicias, 947); mas também ocorre uma inversão da metáfora, transportada a um universo – como o da historiografia – onde a parte do real é mais compulsiva: já não é a moça que é uma poldra, e sim a poldra que é uma virgem, como compreenderá Pelópidas que, convidado a sacrificar uma “virgem lou-ra”, saberá decifrar o oráculo imolando uma poldra ruça (Plutarco, Pelópidas, 20-22).

Da mesma forma que os animais selva-gens ou asselvajados, o cavalo não é uma víti-ma ordinária de sacrifícios – ele tem seu lugar nos sacrifícios militares, um lugar incontesta-velmente mais ambíguo que o da cabra. Trata-remos todavia de polos e das conotações espe-cíficas dessa palavra, que não cobrem necessa-riamente o campo das representações associa-das ao cavalo. De fato, se nos interrogarmos sobre aquilo que faz de Polixena e de Meneceu

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uma ou um polos, deveremos deslocar a tônica, da polaridade do selvagem e do doméstico para a oposição entre o que já está domesticado e o que ainda não está78. Polixena é poldra indo-mada, Meneceu é potro não preparado; essas metáforas não indicam somente que ambos são vítimas designadas para um sacrifício anômalo; sugerem também que estão como se fosse na expectativa do casamento. Em suma, para eles como para Ifigênia em Áulis, há uma estreita interação entre o casamento e o sacrifício. A espera dessa domesticação que é o casamento, a moça assimila-se naturalmente a uma égua indomada, a uma novilha ainda desconhecedo-ra do jugo79; mas, por definição, a vítima do sacrifício deve ser também livre do jugo, e é naturalmente – cingindo-nos ao menos à trama metafórica do texto – que, prometidos à decapitação, pôloi e môskhoi trocarão o casa-mento pelo sacrifício80.

Não devemos entretanto enganar-nos: se, para Ifigênia e para Polixena, o casamento in-tervém no sacrifício, convém ver nisso mais que um jogo de poeta sobre uma metáfora sig-nificante. De fato, se o tema do sacrifício se ordena em torno de uma metáfora ligada a ani-mais, é porque, como a vítima, a moça é sub-missa, passiva, dada, conduzida. Digamos com maior precisão que os sacrifícios trágicos es-

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clarecem o ritmo muito cotidiano do casamen-to, pelo qual a virgem passa de um kyfios (tu-tor) a outro, do pai que a “dá” ao marido que a “conduz”81. Ironia trágica dos cortejos fúnebres que deviam ter sido nupciais – o de Ifigênia, o de Polixena, também o de Antígona82 –, casa-mentos ao inverso por levarem a um sacrifica-dor que é freqüentemente o próprio pai83 – e, ver-se-á mais tarde, para a casa de um marido chamado Hades. Ironia trágica o gesto do filho de Aquiles, “tomando pela mão” Polixena para pô-la no alto do sepulcro de seu pai84. Quando a vítima é uma virgem, o sacrifício é tragica-mente irônico, por assemelhar-se demais ao casamento.

Da execução como casamento

Para esclarecer essa semelhança, não nos apres-saremos a relacioná-la com qualquer sistema geral em que Eros se comunicaria com Tâna-tos85. Com efeito, se generalizarmos muito depressa, se nos contentarmos com a satisfação que experimentamos com a descoberta da “evi-dência de algumas grandes leis universais”, ar-riscar-nos-emos pura e simplesmente a esque-cer a língua – grega, mas sobretudo trágica – onde se enuncia a equivalência da execução e

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do casamento. Ao ímpeto interpretativo prefe-rir-se-á, então, uma vez mais, a lenta caminhada na literalidade do significante trágico.

Uma primeira figura impõe-se imediata-mente: as virgens conduzidas à morte são es-posas para Hades. Nas representações partilha-das da vida social, cabe à morte ser metáfora do casamento porque, durante todo o cortejo nup-cial, a moça morre por si mesma: tanto é assim que em Locris as noivas deviam imitar Persé-fone raptada pelo esposo vindo do mundo subterrâneo86. Benefício incomparável da fic-ção: consagrando as moças à morte, a tragédia inverte a ordem usual do discurso; indo contra a metáfora, as virgens trágicas chegam à mo-rada dos mortos como se trocassem a casa pa-terna pela do marido87, quer seja seu destino encontrar, sem maior precisão, o “casamento no Hades” (Eurípides, Troianas, 445), quer seja encontrá-lo na união com Hades.

Casamento no Hades, união com Hades: no âmago do sacrifício ou da execução, o des-tino trágico das párthenoi inscreve-se no fundo dessa tensão do no e do com e, como se toda virgem devesse inelutavelmente realizar-se como esposa, não existe aparentemente tercei-ro termo para essa alternativa entre uma versão “fraca” e uma versão “forte” da morte como casamento88. Assim, é no trespasse que Antí-

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gona, morta por haver preferido um irmão morto a uma vida de esposa, terá diante de si um casamento, quer se imagine que ela vá “encontrar um marido no Hades”, como sugere Creonte, quer ela esteja destinada sem mais rodeios a casar-se com o senhor dos mortos: antes de morrer ela dera ao esposo infernal o nome de Aqueronte, mas no discurso do men-sageiro a moça (kore) encontrou o próprio Hades em “seu aposento nupcial cavado na rocha”89. Além disso, corpo já inerte abraçado por Hêmon, Antígona escapa ao noivo que entretanto se matará para juntar-se a ela, movido pelo desejo desesperado de desposá-la “na morada de Hades” (Sófocles, Antígona, 1240-1241). Seja ainda Ifigênia, vinda a Áulis para casar-se com o melhor dos aqueus, mas que afinal verifica que seu esposo é “Hades e não Aquiles”90.

Mas, com Ifigênia, começa um percurso através das figuras mais secretas, próprias para enunciarem a equação mortal das nupcias e do degolamento. Um lamento de Agamêmnon, suspirando em vão a propósito do destino de sua filha, prenderá especialmente a nossa aten-ção, pois o que ele exprime é talvez mais que uma evocação dos esponsais infernais de Ifi-gênia. Quando o rei brada:

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“Quanto à desventurada virgem – que digo? virgem (párthenos)? – Hades, segundo parece, casar-se-á com ela dentro de pouco tempo” (Ifigênia em Áulis, 460-461),

deve-se ouvir nessa exclamação uma simples variação em torno das nupcias de Hades? Ou deve-se dar sentido à reticência de Agamêmnon e entender que a virgem perde sua virgindade no sacrifício? Esses dois versos da Ifigênia em Áulis não bastariam por si mesmos para con-firmar a segunda hipótese. Há, porém, duas outras passagens de Eurípides onde uma vir-gem sacrificada, sem ser entretanto declarada esposa de Hades, sofre a perda da virgindade. É o que ocorre com Polixena que, em Eurípides, não se casa com Aquiles na morte91. Polixena, até então nymphe prometida a reis e que, em sua altivez, pretende entregar a Hades apenas seu corpo (demas), de forma nenhuma sua pessoa; Polixena que, no instante da morte, dirá somente que vai “para debaixo da terra, sem esposo, sem himeneu”. Ora: uma vez imolada, esta mesma Polixena será qualificada por sua mãe lacrimosa de “esposa sem esposo, virgem que não é mais virgem” (nymphe ánymphos, párthenos apárthenos)92.

Com Polixena, certamente o comentador pouco preocupado em deter-se numa expressão delicada, pode ainda descartar-se desta proje-tando sobre o texto de Eurípides o romance

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helenístico das nupcias de morte com Aquiles; ele escreverá então que, na morte, as “cativas de guerra tornavam-se concubinas de seu se-nhor”93, e considerará o problema resolvido prometendo a jovem troiana à sombra do herói grego. A dificuldade, entretanto, reabre-se mais aguda do que nunca nos Heráclidas com a vir-gem Macária. Macária, que não é oferecida a um herói, e sim sacrificada a Core; Macária, que não pretende unir-se ao marido da deusa dos mortos, e para quem Hades é apenas o nome de um lugar; Macária, que renuncia à hora das nupcias para salvar sua raça e a vida de seus irmãos. Macária, párthenos exemplar. Mas, evocando a glória decorrente de sua es-colha e as honras fúnebres que serão seu qui-nhão, a virgem Macária declara que “terá esse tesouro em vez de filhos e de virgindade” (anti paidon... kai partheneias)94. Embaraço dos tra-dutores, embaraço dos comentadores: que uma virgem troque os filhos que não terá pela glória, isso afinal de contas está na ordem das coisas onde, pensam os comentadores, pensam os tra-dutores, uma mulher – principalmente grega – não poderia ter tudo; mas em que a glória deveria “ocupar o lugar” da virgindade no caso de Macaría, a virgem sábia? Pergunta ingênua, de que alguns comentadores e tradutores se desembaraçam dando a anti (em vez de) dois

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sentidos muito diferentes, dependendo de o regime ser “os filhos” – bem precioso que será substituído pela glória – ou a “virgindade” – estatuto incompleto de que, numa leitura ao mesmo tempo psicológica e pequeno-burguesa, se imagina que uma párthenos deseje livrar-se o mais depressa possível para realizar-se no casamento: e as honras fúnebres tornam-se uma “compensação” por essa virgindade forçada95. Porque nada de tudo isso é realmente convin-cente, nem mesmo conforme ao rigor grave característico da filha de Heracles, desejar-se-ia, com a ajuda da leitura adotada até agora remontando da Ifigênia em Áulis para a Hécu-ba e os Herácüdas, oferecer uma resposta ca-paz de conservar toda a força da declaração da moça: trata-se efetivamente de dois bens pre-ciosos que a virgem dá com sua vida; dois bens aos quais ela renuncia para sempre: os filhos que ela não terá, e a virgindade intacta que ela vai perder com a vida no instante do degola-mento.

Com efeito, lendo os textos com rigor é preciso concordar com a estranha verificação de que uma virgem sacrificada perde sua parthêneia (yirgindade) sem entretanto ganhar um marido. À semelhança de Ifigênia, à seme-lhança de Polixena, Macária jamais será uma gyné; apesar disso, não é mais uma párthenos

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que o Hades ganhará. Nem mulher, nem vir-gem, mas um entremeio, como uma nymphe. Uma nymphe ánymphos, entretanto, esposada sem esposo. É sob a forma desse oxymoron, evocado há pouco a propósito de Polixena, que se deve pensar a figura paradoxal da virgem sacrificada, da qual se tira a parthêneia no ins-tante mesmo da exaltação de sua pureza de novilha indomada. Graças sejam dadas por isso a Macária: por não ser prometida a nenhum Aquiles, a nenhum Hades, a filha de Heracles compele o leitor à audácia, ou, no mínimo, a uma interpretação mais exigente do texto. Pode-se então formular algumas proposições: num certo nível de generalidade, na tragédia euripidiana a morte de um ser jovem provoca necessariamente a evocação de suas nupcias96 e, nessa perspectiva, a virgem sacrificada, esposa de Hades, nada mais é que uma encarnação entre outras do equivalente da morte e do ca-samento. Mas existe também em Eurípides urna língua, obscura para dizer o obscuro, em que a morte sanguinolenta das párthenoi é pensada como uma maneira anômala, atópica, de con-sumar a virgindade em feminilidade. Como se, talvez, a decapitação valesse por um deflo-ramento97: garganta cortada, Ifigênia, Polixena e Macária são párthenoi apárthenoi, virgens

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não-virgens. Assim, sob o signo do impensável, as virgens trágicas de Eurípides dão o passo que satisfaz ao mesmo tempo os deuses irritados e os sonhos dos espectadores.

Sem dúvida objetar-se-á a esta análise que existe em Eurípides pelo menos uma vítima jovem de sacrifício do sexo masculino. Evocar-se-á então o irmão de Hêmon, Meneceu, cuja imolação à terra de Tebas a cólera de Ares exi-ge nas Fenicias. Mas deve-se ver na morte de Meneceu a versão viril, portanto tebana, do sacrifício virginal: no universo dos espartos (os “semeados”), que outra vítima senão um macho poderia morrer pela pátria, essa terra de ma-chos98? Certamente a circunstância de a vítima ser um rapaz e não uma virgem não é sem conseqüências: assim, por ser um privilégio masculino empunhar a arma, ao contrário das párthenoi que tombam sob o cútelo do degola-dor, o filho de Creonte é seu próprio sacrifica-dor, e nessa morte ninguém saberia distinguir claramente o sacrifício do suicídio, e o suicídio de uma gloriosa morte guerreira”. Mas o es-sencial está na semelhança, não no afastamen-to: embora se devote como um guerreiro, é por sua virgindade de potro ainda ignorante da domesticação do casamento que Meneceu deve ser designado como vítima do sacrifício100

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Ocasião, para quem se interessa pela antropo-logia do casamento grego, de lembrar que também a propósito do homem essa instituição é critério de maturidade101, apesar de a passa-gem ser mais marcante nas mulheres. Ocasião principalmente para meditar sobre a lei segun-do a qual só a virgindade se presta ao sacrifício, para que, glorificada pelo verbo trágico, o sa-crifício humano possa ser pensado.

É assim que, por ignorar o himeneu, Meneceu vem ocupar um lugar ao lado de Ifi-gênia, de Polixena e de Macária. Mas – a nobreza de seu devotamente não poderia mas-cará-lo – se todo sacrifício humano é desvi-ante, o imaginário prefere entregar ao degola-dor uma moça a ter que pensar esse desvio. A párthenos: uma vítima submissa, passiva, dócil. Sem dúvida.

Liberdades virginais

Para ser fasto, todo sacrifício animal deve mostrar a aquiescência da vítima102. Mesmo imaginado por um autor trágico, um sacrifício humano não poderia deixar de enquadrar-se nessa regra. A não ser que se queira apresentar esse sacrifício como um puro assassínio, onde

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a moça conduzida à imolação não consente. Essa é a escolha103 de Esquilo no Agamêmnon.

Sem dúvida a palavra phonos não é expli-citamente pronunciada, porém o sacrifício da virgem é claramente designado como uma mácula, antes mesmo de, na descrição de Ifi-gênia levada ao suplício, o texto acumular as provas de acusação contra o pai que ousou imolar sua filha. Nada há, até o estatuto virgi-nal da moça, que não seja pensado como uma circunstância agravante (“tudo isso – até sua idade virginal! – ela viu descartado como se nada fosse!”). Mas o essencial é que Esquilo não deixa lugar algum a esse assentimento da vítima, que confere ao sacrifício animal sua legitimidade formal; logo depois de ser dado o sinal da degolação, a violência passa a dominar: erguida, agarrada, amordaçada para que não se lhe ouvissem os gritos104, Ifigênia, que se debate e se agarra à terra, recusa desesperadamente sua aquiescência10* a essa imolação cujo aspecto escandaloso Esquilo se compraz em subli-nhar106.

Se excetuarmos a. Ifigênia em Táuris, cuja heroína recorda horrorizada a violência que lhe foi infligida de modo muito esquiliano, a es-tratégia euripidiana em face das virgens imola-das é completamente diferente. De fato, Eurí-pides aceita a ficção do sacrifício humano ape-

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nas para desviar-lhe a significação. Maneira hábil de recusar aquilo que entretanto a ence-nação e a realização descrevem minuciosa-mente. Sob a aparência de respeitar a regra da aquiescência, transforma-se o assentimento em escolha livremente feita e a morte infligida em morte voluntária, para não dizer em morte glo-riosa. Tudo está no lugar, porém nada tem agora o mesmo sentido.

Ainda uma vez a filha de Agamêmnon adquire o caráter de paradigma, ela que, na Ifi-gênia em Áulis, morre voluntariamente (hêkou-sa: ver o verso 1555). Agarrada por mãos bru-tais, a Ifigênia de Esquilo foi “erguida por cima do altar” (hypenhe bomou labein aerden) e, nisso que é uma prática sacrificial normal com uma vítima animal, Esquilo via apenas um sinal flagrante de violência e de compulsão107. Aer-dén: no ar. Se, na aiora do enforcamento, as esposas elevam-se no ar espontaneamente, a moça sacrificada não desejou um instante se-quer deixar o chão. Pobre Ifigênia: Eurípides recordar-se-á dela na Ifigênia em Táuris, onde, desde os primeiros versos da tragédia, a filha de Agamêmnon, numa franca imitação do texto esquiliano, evoca o instante funesto em que, “infortunada, agarrada e erguida acima do al-tar” (hyper pyras metarsia lephtheisa)m, ela ia perecer atingida pelo gládio. Inversamente, não

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causará maior admiração que, no fim da Ifigê-nia em Áulis, onde a liberdade da heroína não poderia se coadunar com uma compulsão, ain-da que ritual, esse sinal de pura violência tenha desaparecido. De fato, quando, de pé diante de seu pai, Ifigênia anuncia que, dando com toda a liberdade seu corpo para ser sacrificado, apre-sentará silenciosa e corajosamente o pescoço, a virgem impede por isso mesmo os argivos de porem as mãos sobre ela – maneira de recusar-se a ser tratada como vítima e “erguida” de conformidade com o ritual (Ifigênia em Áulis, 1551-1561). Depois disso a atenção se con-centra nos preparativos para a imolação e, do que foi no último instante o comportamento de Ifigênia – altivamente erecta, ou talvez ajoelhada? – o texto, numa elipse eloqüente, nada mais diz. Em compensação – e sem dúvida não se trata aqui de um acaso –, desde que o gládio de Calcas a feriu a descrição volta a ser precisa a propósito da corça montanhe-sa imolada em vez da moça, alongada sobre o solo mas cujo sangue jorrava para molhar no alto (arden) o altar de Artemis109: com a vítima animal o ritual do sacrifício, mesmo desviante, retomou seus direitos, embora a párthenos ti-vesse desaparecido, imobilizada em sua livre escolha.

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Entretanto, a figura mais perfeita dessa recusa virginal de ser “agarrada e erguida” é ainda Polixena – que todavia o exército grego espera ver debater-se, pois a missão dos esco-lhidos aqueus era conter seus saltos desespera-dos110. Princesa troiana mas irmã de infortúnio de Ifigênia e como esta sacrificada pelo exér-cito grego, Polixena sabe deter o gesto do sa-crificador que fazia aos escolhidos o sinal para agarrarem-na (labein); à semelhança de Ifigênia ela proclama sua liberdade, proíbe que a to-quem com suas mãos e declara que estenderá corajosamente o pescoço. A partir desse ins-tante a narração passa a ser mais precisa: Aga-mêmnon – ele, novamente! – dá ordens aos jovens para soltarem apárthenos. Então, pon-do o joelho em terra, a virgem Polixena se ar-rima firmemente no solo para morrer111. Esse joelho dobrado não nos sugerirá qualquer prá-tica oriental, bárbara, de prosternação (prosky-nesis), pois em sua reivindicação de liberdade, Polixena é digna de ser grega. Pensar-se-á ainda menos em algum gesto de súplica112: ajoelhada, a Polixena de Eurípides não está implorando como estará na tradição iconográfica posterior, que se compraz com interpretações mais senti-mentais de sua atitude113; muito ao contrário, nessa postura seguida por um “discurso de uma bravura incomparável” deve-se adivinhar a

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aceitação serena da morte, mas também e prin-cipalmente a recusa, expressa em ato, a ser tra-tada como um corpo passivo, “agarrada e erguida” como a Ifigênia de Esquilo, como a Polixena que, muito antes de Eurípides, os pin-tores de vasos gostavam de reproduzir levan-tada horizontalmente acima do altar114.

Da compulsão máxima sofrida pela Ifigê-nia de Esquilo – a mesma que Eurípides se compraz em transportar para Táuris – à liber-dade heróica de Polixena115, a distância é grande, na medida das reinterpretações com que os poetas e as mentalidades contribuem para uma tradição. Eurípides prefere em geral conferir à párthenos coragem e liberdade de decisão, qualidades que, na realidade pouco trágica da vida, as instituições negam à moça grega. Co-ragem e decisão: isso é ainda característico de Macária, com essa afirmação muitas vezes rei-terada de sua liberdade; Macária que também não queria morrer nas mãos dos machos, mas a quem o texto dos Heráclidas recusa estranha-mente a homenagem póstuma de uma descrição de sua morte116.

Macária, Polixena, Ifigênia: libertas do pai quando este as condena à imolação, pois des-viam para seu próprio uso a liberdade de esco-lha característica do kyrios111, as virgens euri-

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pidianas se apropriam do sacrifício que se lhes impõe como sua morte, uma morte que lhes pertence.

Uma morte que lhes pertence: sem hesitar, certos comentadores incluem esses trespasses reivindicados no número dos suicídios118. As-sim fazendo eles reduzem a importância do audacioso desvio através do qual a vítima sacri-ficial conquista o domínio de sua própria mor-te. Suicídios, sacrifícios voluntários? Seria melhor ver aqui uma variante, muito singular por ser virginal, da morte heróica que se aceita pela pátria e/ou pela glória. Nada há até o hêkousa (“voluntário”), pelo qual as párthenoi consagradas proclamam sua livre aquiescência ao sacrifício, que se assemelhe à figura retóri-ca da morte aceita (ethêlein apothnéisken), essa designação cívica do consentimento do tres-passe. Com efeito, a morte gloriosa não é pro-curada, é aceita: da mesma forma que os cida-dãos de Atenas e de Esparta se inclinam dian-te de um imperativo ditado pela cidade, as vir-gens aceitam um destino de que se apro-priam119.

Mas, seguramente, nunca nada é tão sim-ples em Eurípides e, na sábia confusão que cruza a morte heróica com o sacrifício, o suicí-dio não é completamente estranho. Por exem-plo, a morte das filhas de Erecteu. No íon, à

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exceção de Creusa, poupada graças à sua ju-ventude (277-278), essas párthenoi eram spha-gia, vítimas sacrificiais que seu pai “ousa imo-lar pela terra” ateniense. No Erecteu, tudo in-dica que somente uma das moças era sacrifica-da. Ou, mais exatamente, que ela encontrava uma morte heróica no sacrifício: com efeito, a prescrição anunciada por Atena no fim da peça de “sepultá-la exatamente onde (hoúper) ela morreu” assemelha-se muito com as homena-gens que, em Heródoto os atenienses reser-varam a seu concidadão Telos, caído pela pá-tria, sepultando-o “precisamente onde ele tom-bou”120. Até aqui tudo parece claro. Excessiva-mente claro: com efeito, prosseguindo em sua alocução Atena dá ordens a Praxitea, mulher do rei e mãe da moça, para sepultar no mesmo túmulo as irmãs da vítima que, fiéis a seu jura-mento, se mataram sobre o corpo da virgem decapitada. E eis que um túmulo coletivo, essa honra reservada aos guerreiros com “a glória igual para todos”, abrigou os corpos das virgens e, além disso, reuniu na morte a vítima sacrifi-cial e as jovens suicidas121. É verdade que, jus-tificando essas honras fúnebres pela nobreza (gennaiotes) demonstrada pelas irmãs, a deusa apresenta seu sacrifício como uma forma vir-ginal de morte heróica. Assim ficam lado a lado e se aproximam o sacrifício, o suicídio e a

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morte heróica. Mas, tratando-se de uma tragé-dia de Eurípides, quem ousaria esperar que ele se apegasse a alguma lição inequívoca? De fato, a confusão dos gêneros, das instituições e das linguagens é prática eminentemente euri-pidiana, quaisquer que sejam as “intenções” do trágico, quer ele use ou não a ironia e pretenda ou não deixar à crítica dos espectadores esses exércitos viris que acham a sua salvação no sangue das virgens122.

A glória das moças

Às párthenoi, então, uma morte heróica e o louvor imortal.

Se, para as moças como para as mulheres feitas, a morte se inscreve sob o duplo signo do casamento e da glória, sem qualquer dúvida a fama das virgens tem mais semelhança com a êukleia (a nobre glória) guerreira que a das esposas.

Por certo a glória é essencialmente viril, e a Meneceu, o jovem potro morto como guer-reiro, cabe sem contestação o título de “vito-rioso”. Mas, em Esquilo, era também vitoriosa a párthenos Cassandra aquiescendo a uma morte sanguinolenta que, deflagrando o ciclo de assassínios, vingaria sua linhagem exter-

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minada123. Gloriosa em sua hybris era a Antí-gona de Sófocles, única entre os mortais a des-cer por sua livre vontade (autônomos) ao mun-do dos mortos124. Quanto às virgens sacrifica-das, diz-se sobre elas o bastante para sugerir que a glória lhes é conferida irrestritamente: glória de Macária ou de Polixena, glória de Ifi-gênia em Áulis por quem as mulheres do coro cantarão o peã125, como se, abandonando o lado dos varões, a grandeza viril passasse para essas moças das quais se tira a virgindade com a vida. De fato, em sua determinação súbita que des-concertou mais de um comentador, a filha de Agamêmnon, párthenos paradigmática, con-quista, para si mesma e para suas irmãs de glo-rioso infortúnio, um valor (arete) que ultrapas-sa o de Aquiles126.

Sendo assim, elabora-se na tragédia, a propósito das virgens sacrificadas, uma refle-xão sobre a condição problemática de párthe-nos. Reflexão paradoxal que subverte os gestos do casamento submetendo-os ao prisma às vezes muito pouco deformante dos ritos sacri-ficiais. Além disso: construção imaginária – e marcada pelos limites próprios do imaginário – de uma acepção virginal da glória. Deusa, Ártemis pode perfeitamente identificar-se com

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seu epíteto de Êukleia; ela é a gloriosa. Mas, que dizer da gloria das moças bem mortais (e que morrem por isso) senão que ela é como se fosse roubada aos guerreiros que não morrerão, porque o sangue virginal correu por eles? Com efeito, no âmago do imaginário trágico resta uma impossibilidade por onde o real retoma seus direitos: a propósito da morte das moças, como pouco antes a propósito da morte das esposas, não há palavras para pensar uma gló-ria feminina que não existam na língua da fama viril127.

E sempre a glória faz correr o sangue das mulheres128.

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Lugares do Corpo

Benefícios do imaginário, todavia: melhor ser-vida que a esposa cotidiana ou a moça prema-turamente desaparecida mencionadas nos epi-gramas funerários – pálidos fantasmas de dis-cursos, cuja beleza jamais é evocada –, a mu-lher trágica conquista um corpo no jogo da gló-ria e da morte. Um corpo por onde com certeza vem a morte. Mas esta é a regra dos jogos do imaginário: perde-se neles aquilo que ao mes-mo tempo se conquista.

Um corpo, então. Mas um corpo mal co-nhecido: em geral mais preocupada com prá-ticas institucionais que com esquemas corpo-rais, a reflexão antropológica sobre a tragédia nem sempre tem prestado atenção suficiente a esse tópico do corpo trágico que, de Esquilo a Eurípides, se desenha em torno dos lugares da morte. Para terminar, proponho um levanta-mento desses lugares por onde a morte vem às

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mulheres, descobrindo-os na literalidade dos textos. Com efeito, para realizar um levanta-mento semelhante a única via é confiar, mais uma vez, na precisão do significante trágico. Precisão propositalmente clínica; assim, con-trariamente ao que poderiam sugerir traduções mais desejosas de transpor os textos que de deixá-los à sua especificidade grega, o “fíga-do”, na tragédia, é sempre exatamente o fígado, e não algo parecido com o coração129, e não é indiferente que a morte advenha a Dejanira, ferida no fígado, por onde ela vem aos homens. Mas não antecipemos.

O ponto fraco das mulheres

Aos olhos horrorizados de Creonte e de seu séquito aparece subitamente – visão brutal, figura do irremediável – o corpo morto de Antígona “suspensa pelo pescoço”, kremastén áukhenos (Sófocles, Antígona, 1221). Mas, para evocar as tristes enforcadas, o pescoço no laço, Eurípides recorre mais freqüentemente à palavra dere130. Palavra mais rica, sem dúvida, por ser dotada de uma carga afetiva mais forte: no silêncio do abandono, o que a filha de Édi-po prendeu no nó de seu véu, aukhén, foi o pescoço visto pelo lado da nuca; ao contrário,

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dere é “a parte da frente do pescoço, a gargan-ta”, ponto forte da beleza das mulheres – pense-se na “garganta esplêndida” de Afrodite, pela qual, no canto III da Ilíada, Helena re-conhece a deusa, na “garganta delicada” que a amada de Safo gosta de enfeitar de flores, ou no “pescoço deslumbrante de alvura” que, sob o olhar da ama, Medéia desvia para chorar – mas é também aquilo mesmo que, na volup-tuosidade do luto, as virgens e as mulheres se comprazem em ferir, unha aguda sobre gar-ganta delicada131.

Dere é tudo isso, e é para a mulher prin-cipalmente o ponto de sua maior fragilidade. É pela dere que se enforca, é também por ela que vem a morte para as moças imoladas. Com efeito, nas narrações de sacrifícios dere desig-na com precisão a parte do corpo onde os ofi-ciantes aplicam o cútelo no instante de matar132. Recordação da Ifigênia em Táuris: “Ah! Quan-do meu pai infeliz aproximou seu gládio de minha garganta...” Advertência de Aquiles à filha de Agamêmnon: “Quando vires o gládio bem perto de tua garganta...” Garganta de Ifi-gênia, garganta coberta de ouro de Polixena que o sangue vai logo avermelhar: de nada serviria multiplicar os exemplos e enumerar infinita-mente as ocorrências de dere num contexto sacrificial133. No máximo se assinalará que, do

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lado da dere, há ainda o sopro e a vida: em tor-no dessa palavra mais de uma vez a evocação do sacrifício se imobiliza no instante suspenso da ameaça em que, com o cútelo sobre a gar-ganta, a virgem ainda respira. Mas, tratando-se de uma garganta já cortada ou na qual o gládio se aprofunda, dere cede o lugar a laimos, nome da garganta como goela134, pois uma vez cortada a bela superfície do pescoço, a morte se in-troduz no interior do corpo. A linguagem trá-gica é precisa, aqui e sempre. E são precisas as descrições: no instante de ferir Ifigênia, o sa-cerdote examina com o olho agudo do anato-mista a garganta (laimos) da vítima para dis-tinguir nela o ponto onde o cútelo se aprofun-dará melhor (Ifigênia em Áulis, 1579); e quan-do no Orestes, no instante em que crê poder imolar finalmente Helena a título de vítima expiatória o herói, “inclinando-lhe o pescoço (dere) sobre o ombro esquerdo”, prepara-se para “aplicar-lhe seu gládio negro na garganta (laimos)”, mais de um comentador reconheceu nesse relato a evocação precisa de um gesto de sacrificador135. Tudo está então em ordem – a ordem conveniente à execução. A menos que haja aqui, oculta, alguma ordem secreta regu-lando o corpo feminino: como se, muito além das práticas rituais e de seus imperativos, a garganta das mulheres chamasse a morte, para

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matar Clitemnestra é ainda na garganta que Orestes golpeia – sem dúvida, para Eurípides, maneira de comentar a palavra sphagém – e nas Fenicias é através do pescoço que Jocasta enfia o gládio do suicídio (veja-se o verso 1457). Talvez, evocando a Jocasta de Sófocles que, mais normalmente, passava o laço por seu pescoço, ver-se-á nesta precisão algum piscar de olhos de Eurípides, decidido a sublinhar o desvio que o suicídio guerreiro da heroína in-troduz em uma tradição firmemente estabele-cida. Da mesma forma, a propósito da garganta cortada de Clitemnestra, talvez nos recordemos do discurso mentiroso onde, no Agamêm-non, ela pretendia haver passado mais de uma vez a corda em volta de seu pescoço (dere: veja-se o verso 875). Jocasta, Clitemnestra: duas maneiras, para uma mulher, de ser mor-talmente atingida no local onde deveria ter apertado o laço; num caso como no outro, falar-se-á então em sobredeterminação. Mas verda-deiramente estranha é a sobredeterminação em virtude da qual, enforcamento ou sphagé, suicí-dio137, assassínio ou sacrifício, as mulheres aparentemente devem morrer pela garganta, e somente por ela.

Sem dúvida o leitor deve estar se pergun-tando como é, na tragédia, a morte dos homens. E será inevitável responder-lhe que estes, de

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fato, morrem bem poucas vezes golpeados na garganta, quer sejam vítimas de um assassínio, quer tombem durante um combate138. Se ima-ginamos que a morte de Clitemnestra é para vingar a de Agamêmnon “pelas mesmas vias” (“trôpon ton autorí”), sob essa expressão é preciso perceber o parricidio e não as modali-dades estritas do assassínio, pois, a crer em Sófocles, o rei traído foi abatido com uma machadada em plena testa139. E se em Homero o pescoço é um dos pontos mais vulneráveis do guerreiro – é nele, di’áukhenos, que Aquiles enfia seu dardo no corpo de Heitor, e não faltam na Ilíada combatentes para expirar com a gar-ganta traspassada140 –, nada disso se pode observar no universo trágico. No máximo se evocará um coro das Fenicias sobre o comba-te singular entre os filhos de Édipo, que fará “correr o sangue da garganta fraterna” (homo-gène dêran)141; mas, além de que na realidade é por outras vias que a morte advém a Eteocles e a Polinices, admitir-se-á naturalmente que esse duelo fratricida, última ocorrência de uma guerra civil na escala da familia, ressalta mais da sphagé que da guerra.

Essas análises conduzem a uma inevitável conclusão: na garganta das mulheres a morte é de certo modo dissimulada, oculta na beleza mesma que os textos somente evocam com

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mais liberdade no exato momento em que, ameaçada, a vida nelas vacila. Pescoço alvo de Medéia amargurada, cujo suicídio a ama teme, garganta alva, garganta sem defeitos de Ifigê-nia, sobre a qual o gládio assassino já está em vias de cair142: assim o fantasma euripidiano do cútelo sobre a garganta serve para revelar a visão trágica da sedução feminina, perigosa antes de tudo para aquela que é seu suporte demasiadamente frágil.

Enumeração do corpo viril

Não há ponto algum do corpo por onde a morte épica não possa “domar” o homem: há o pes-coço, certamente, mas também o baixo ventre (Iliada, XI, 380), a fronte, as têmporas, o flanco, o peito (principalmente o lado direito), os pulmões, a virilha, o umbigo, o calcanhar... Pararei aqui essa enumeração cujo único obje-tivo é sugerir a riqueza viril do corpo homérico, todo ele vulnerável para dilacerar, cortar, aba-ter143. Certamente a tragédia não retoma esta compulsão enumerativa, mas isso não a impe-de de dotar o homem de um corpo incompara-velmente mais diversificado que o da mulher, ao menos no que concerne às vias de acesso à morte.

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Há o flanco (plêurori), que o guerreiro protege ainda mais por saber que morrerá se for atingido nele144; e até o assassínio parece ter de encontrar seu caminho no corpo viril por essa via mortal: assim, assassinado à traição em Delfos e traspassado pelos golpes que numero-sos projéteis lhe causaram, Neoptólemo so-mente cai quando um gládio afiado o atinge no flanco145. Há o ventre, onde nas Fenicias Poli-nices é atingido mortalmente por um golpe no umbigo, e toda essa cavidade interior do corpo onde os próprios médicos nem sempre distin-guem com clareza um alto e um baixo, um fron-teiro e um lateral, porque tudo ali se comunica, de tal maneira que se pode dizer indistintamen-te que o golpe mortal penetra “através dos pul-mões” ou “através do flanco”146. E, principal-mente, atendo-nos ainda à mesma região do corpo, há depois o golpe no fígado, fatal para o guerreiro: aquele que, no Erecteu, provoca a morte de Eumolpo, aquele que, nas Fenicias, Polinices moribundo consegue desfechar em Etéocles. Golpe mortal entre todos os golpes mortais, pois Etéocles morrerá antes de seu irmão, e sem poder articular uma única palavra; golpe funesto cujo poder fulgurante Medéia, a feiticeira, conhece muito bem, ela que, planejando uma morte tripla sob o disfarce de

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uma ação guerreira, imagina por um instante desfechar no fígado do rei de Corinto, de sua filha e de Jasão147.

O flanco, o fígado: lugares mortais do corpo guerreiro. Também para o suicídio é neles que se crava a espada quando se é ho-mem. No flanco, como Hêmon, ou como Ajax, esse paradigma do suicídio viril148. No fígado, como por um instante vem ao pensamento de Heracles, Orestes ou Menelau quando pensam em se aniquilar, tempo suficiente para sublinhar a nobreza inerente a tal morte149. De fato, o fígado é órgão vital (o que não autoriza entre-tanto a traduzir sistematicamente “coração” onde o grego diz hépar) e, para exprimir a vio-lência de um afeto, o tema do “golpe no fígado” é ainda a metáfora usada na tragédia150.

Voltemos aos golpes que nada têm de metafóricos. Aos golpes bem reais que abrem no corpo as vias da morte. Golpes viris, então. À exceção de que, na tragédia, há mulheres que morrem em conseqüência deles; assim, se os heróis euripidianos – Heracles, Orestes ou ainda Electra (Electra, 688) – pensam no sui-cídio através do fígado, há em Sófocles mu-lheres para acharem em seu desespero a cora-gem de consumá-lo. Mencionei Eurídice, com sua morte ao mesmo tempo sacrificial e guer-

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reirá151, que dá o último golpe na virilidade problemática de Creonte. Mencionei principal-mente Dejanira, essa esposa frágil que sabe muito bem por onde a morte chega aos guer-reiros pois, sem hesitar, traspassa seu flanco “com um punhal de corte duplo, enfiado entre o fígado e o diafragma” (Sófocles, Traquínias, 930-931).

Não é óbvio, todavia, que, sendo-se mu-lher, se possa viver até o fim a morte dos ho-mens, forçando a língua a inventar um femini-no para palavras que, como parastates (com-panheiro de fileira), somente se concebem no masculino152, e convém determo-nos ainda um instante nesse suicídio “que a mão de uma mu-lher ousou cometer” (Traquínias, 898). Morte viril133, certamente, essa proporcionada no modo homérico pela “espada gemente que corta a carne” (Traquínias, 886-887); além disso, para matar-se Dejanira descobriu essas partes guerreiras do corpo que são o flanco e o bra-ço154. Mas aqui começa precisamente a dificul-dade: para golpear-se sob o fígado, Dejanira descobriu seu flanco esquerdo (Traquínias, 931), e não o direito, como seria de esperar de quem possuísse um conhecimento mínimo de anatomia. E os comentadores desamparados interrogam-se: distração de Sófocles? Essa é uma hipótese ditada pela preguiça, e portanto a

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pior155. Ainda assim seria melhor ater-nos ao comentário de Jebb sugerindo que nesse trecho a palavra hépar é usada por Sófocles no senti-do muito geral de “centro da vida”. Mas, além de que tal emprego não dispensaria de modo algum a localização do órgão em sua situação exata, restaria explicar por que Dejanira se golpeia no flanco esquerdo – detalhe sem dúvida embaraçoso, mas que certamente não foi enunciado por acaso; muito ao contrário, levantarei a hipótese de que essa anomalia está cheia de sentido: com efeito, descobrindo seu flanco esquerdo, a esposa de Heracles desnu-dou o lado do feminino156 – ardil textual, con-tradição voluntariamente aberta para sublinhar que inexoravelmente a morte de uma mulher, ainda que consumada pelas vias mais viris, não escapa às leis da feminilidade.

Deve-se então saber manter uma incoe-rência cheia de sentido: Dejanira morre ferida exatamente sob o fígado e à esquerda, como uma amorosa que desejou in extremis acres-centar a seu trespasse os valores do mundo da guerra157. Apostemos que, embora percebido na ambigüidade trágica, um corpo de homem não apresenta essas incoerências.

A alternativa de Polixena

Ainda uma alternativa, ou antes uma pergunta: por que, no momento de ser sacrificada, Poli-

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xena, que acaba de declarar-se pronta a “apre-sentar a garganta (deren) com o coração va-lente” (Eurípides, Hécuba, 549), muda de idéia para propor a Neoptólemo a escolha entre duas vias de morte?

Nesse ínterim, é verdade, o comandante do exército aqueu ordenou aos escolhidos que soltassem a moça. Então, aproveitando o que lhe restava de liberdade, Polixena tomou a ini-ciativa:

“Ouvindo as palavras do soberano, ela segurou seus véus e do alto do ombro rasgou-os ate o meio do flanco perto do umbigo, descobrindo seus seios c o peito admirável de estálua (mastoús te ... sterna th’hos agálmatos / kállista). Depois, pondo um dos joelhos cm terra, disse estas palavras de uma bravura incomparávcl: “Eis meu peito (stêrnon), rapaz; se é nele que preferes desferir o golpe, golpeia-o; se é no pescoço (hyp’áukhena), eis minha garganta (laimos) pronta!” (Hécuba, 557, 565)

De fato, Neoptólemo hesita. Mas, não é a alternativa enunciada por Polixena que o leva a “querer e não querer”; é, pura e simplesmente, “a piedade pela moça”. E, sem mais hesitar, como sacrificador precavido, “ele corta com a espada a passagem do sopro”158. Vale dizer que ele escolheu a norma: nenhum sacrificador golpeia a mulher no peito, e há bem poucas mulheres na tragédia a quem a morte chega pelo seio159. Que desejaria então significar Po-lixena dirigindo-se assim a Neoptólemo?

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Sem dúvida, na linguagem aristotélica tal problema não se apresentaria, porquanto, em virtude dos critérios do anatomista, sphagé, nome da garganta virtualmente aberta, serve precisamente para designar “a parte comum ao pescoço e ao peito”160. Mas, no universo trágico onde morre Polixena, nenhum justo meio pode resolver uma alternativa e, por serem os lugares do corpo muito investidos de valores simbólicos, toda escolha – principalmente quando não se impunha em relação à tradição – faz sentido.

Stêrnon ou laimos: já que o “peito” se opõe à garganta cortada em sua designação tópica, sem dúvida será conveniente determo-nos, como Eurípides, no detalhamento da bele-za nua de Polixena. Talvez não seja a nudez em si da virgem que deva reter a atenção: as vir-gens sacrificadas são geralmente despojadas de suas vestes161 e, por pretender ser livre até o fim, a própria Polixena realiza aquilo que as párthenoi imoladas devem sofrer em face da compulsão162. Mas, descrita em sua beleza de estátua, a nudez de Polixena, percebida pelo olhar dos soldados do exército aqueu, é em Eurípides algo como um espetáculo – o que ela continuará a ser desde a pintura helenística até a de um Pedro de Cortona163. Então Polixena descobriu seus seios (mastoús) e seu peito

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(sterna) admirável. Nenhum pleonasmo nessa indicação, pois é raro o uso simultâneo das duas palavras por Eurípides, a tal ponto que elas são dotadas de valores diferentes. Belo exemplo de objeto parcial, mastôs é o seio materno regur-gitante de leite mas também, percebido indire-ta e fugazmente, o seio muito erotizado da bela Helena à vista do qual – os gregos gostam de contar—Menelau um dia deixou cair sua espa-da164. Os valores de stêrnon são mais diversifi-cados: se, no homem, o “peito” é um dos luga-res do corpo onde, na guerra, é aconselhável enfiar a arma – mata-se a cada momento um adversário que, por não ter fugido, ganha com isso uma morte gloriosa165 –, o peito das mu-lheres é evocado principalmente como fonte de afeto, estético ou sentimental: stêrnon de Elec-tra ou de Ifigênia, ternamente apertado contra Orestes ou Agamêmnon, tenro peito virginal de Ifigênia que Agamêmnon, para chorar sobre a beleza sacrificada de sua filha, associa à bela face e aos cabelos louros da párthenos, alvo peito, enfim, que as mulheres descobrem no luto, para golpeá-lo e feri-lo num contraste muito sugestivo166.

Associando essas duas palavras, mencio-nando o seio desejável juntamente com o peito de bela plástica167, a evocação de Polixena des-nuda não visaria somente a erotizar a morte da

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virgem? Ainda se deve distinguir entre aquilo que o exército vê (que a narração do mensa-geiro quer testemunhar fielmente) e o que Po-lixena pretende. Com efeito, a alternativa pro-posta a Neoptólemo é uma iniciativa dupárthe-nos, e somente para ela tem sentido. Ora: diri-gindo-se ao filho de Aquiles, Polixena não evoca seus seios desejáveis, vistos com agrado pelo exército dos gregos, mas somente stêrnon: “Eis meu peito, rapaz; se é nele que preferes desferir o golpe, golpeia-o...” Não é então a idéia de erotizar seu fim que leva Polixena a falar, ela que, no Hades, visa apenas a repousar, morta entre os mortos, ela que, moribunda, saberá manifestar o mais virginal dos pudo-res168. Que é, então, que dá sentido à sua pro-posição?

Se, com receio de ir mais longe na inter-pretação, nos detivermos nessa questão, uma digressão pelas narrações romanas da morte de Polixena permitir-nos-á talvez avançar, ainda que seja para verificar que além da diversidade das variações foi feita uma única e mesma lei-tura de Eurípides, que põe o fim da moça sob o signo da coragem marcial. A Polixena de Sê-neca, por exemplo, que deve casar-se com Aquiles na morte, e cuja imolação se desdobra num aparato nupcial muito completo169. E eis que no instante de morrer, para a maior surpre-

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sa do leitor em busca de um sacrifício nup-cial170, a virgem (virgo) se transforma em vira-go, a terna vítima se comporta como comba-tente, encarando frontalmente o golpe fatal:

“Longe de recuar, a moça audaciosa e viril (audax virago) voltou-se em direção ao golpe mortal, altivamente erecta e com a face intrépida.”

E a multidão admirou sua coragem (tam fortis animus) (Seneca, Troianas, 1151-1153). Séneca é bom leitor de Eurípides: seria essa a maneira de comentar a proposição de Polixena (“Se preferes golpear o peito, golpeia-o”)?

Sem nos apressarmos em concluir, voltar-nos-emos para Ovidio, leitor ainda mais fiel de Eurípides. No livro XIII das Metamorfoses, eis Polixena, “virgem infeliz elevada por sua co-ragem acima de seu sexo” (plus quant femina virgo), conduzida à tumba de Aquiles para ser degolada lá. A filha de Príamo dirige então ao filho do herói o mesmo discurso proferido no trágico grego (“Mergulha tua arma em minha garganta ou em meu peito”, jugulo vel pectoré) e, ao mesmo tempo, descobre sua garganta e seu peito. Como em Eurípides, ela tomba “tomando o cuidado de cobrir as partes de seu corpo que quer ocultar aos olhares e de obser-var a decência imposta pelo pudor a uma mu-lher casta”171. Mas, escolhendo a via do corpo

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mortal, Ovidio deu ao sacrificador o gesto negado por Eurípides a Neoptólemo:“O próprio oficiante, chorando, mergulha relutantemente a espada no peito que se oferece a seus golpes” (Metamorfoses, XIII, 475-476).

Para explicar esse desvio, ainda mais no-tável por aparecer sobre o fundo de uma gran-de fidelidade ao modelo grego, talvez se possa invocar algum gosto, peculiar a Ovidio172 ou à poesia latina, por esse tipo de morte: então re-lembrar-se-á sem dúvida que a Camila da Enei-da é ferida mortalmente em seu seio durante um combate173. Sem dúvida. Mas, observando que a seqüência do texto de Ovidio se dedica insis-tentemente a comentar a coragem de Polixena, caída como seus irmãos sob as armas de Aqui-les (Metamorfoses, XIII, 497-500), convence-mo-nos de que há mais a dizer a esse respeito. Podemos assim formular a hipótese de que, preferindo proporcionar à virgem a morte que, em Eurípides, ela sugeria que se lhe concedes-se, o poeta latino pretendia, contra Eurípides, dar todo o seu sentido à alternativa euripidiana: à garganta, como uma vítima sacrificial, ou ao peito, como um guerreiro.

Eis aí formulada a interpretação diante da qual, pouco antes, havíamos hesitado: se eram os atrativos da mulher que, na nudez de Poli-xena, deslumbravam o exército grego, para a párthenos o golpe no peito teria simplesmente

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significado que Neoptólemo prestava uma ho-menagem merecida à sua andreia.

Mas, sabe-se que a andreia, nome da co-ragem, é virtude masculina... Assim, a digres-são pela poesia latina serve para confirmar a contrario essa proposição que imaginávamos poder antecipar a propósito de Dejanira: seja qual for a liberdade oferecida pelo discurso trágico dos gregos às mulheres, ele lhes recusa a de transgredir até o fim a fronteira que divide e opõe os sexos. Sem dúvida a tragédia trans-gride, confunde, esta é sua lei, esta é sua ordem. Mas nunca a ponto de subverter irreversivel-mente a ordem cívica dos valores, na qual a mulher viril pode chamar-se Cîitemnestra, mas não Polixena, porque ela deve ser ameaçadora, e não sedutora. Polixena podia perfeitamente oferecer seu peito como um guerreiro, e o exér-cito grego via nisso apenas o desnudamento por uma virgem de seus seios de mulher.

É então pela garganta que, em Eurípides, Neoptólemo, como bom sacrificador, imola a virgem, golpeada no ponto fraco das mulhe-res174. Sem dúvida não estava ao alcance da tragédia destruir um discurso predominante: não é ainda na garganta ou, se se preferir, no pescoço, que desde a época arcaica Aquiles fere

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mortalmente Pentesiléia?175 A garganta ainda e sempre, na guerra como no sacrifício: escoiha significativa, sem dúvida, numa tradição nutri-da pela epopéia, onde o corpo viril se oferece inteiro aos ferimentos fatais. Para esclarecer a regularidade – dir-se-á a monotonia? – dessa reiteração, sem dúvida seria necessário pro-curar-lhe a lei fora do universo trágico, junto à reflexão ginecológica dos gregos onde a mulher é imaginada entre duas bocas, entre dois co-los176, onde o comportamento errático da matriz embarga brutalmente a voz na garganta das mulheres177, onde muitas moças em idade de ser nymphai se enforcam para escapar à sufocação temível que as enlouquece no interior de seu corpo178. Talvez, então, por pouco que sejamos leitores das Cinco Psicanálises, recordemo-nos de Dora, de sua tosse sintomática e das observações de Freud sobre “esse deslocamento de baixo para cima” que bloqueia a garganta porque “[esta] região do corpo conservou num grau muito elevado, na moça, o papel de zona erógena”179. Mas, uma vez imergido no pensa-mento médico dos gregos, uma vez passado com armas e bagagens para os domínios da psi-canálise180, seria difícil reencontrar-se com o universo trágico. Com efeito, a tragédia nada quer saber, ou, ao menos, nada quer dizer expli-

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citamente acerca desse imaginário ginecoló-gico. Baste-me então constatar esse silêncio sem forçá-lo, e sugerir que, no corpo trágico, nada é deixado ao acaso da livre associação porque todos os lugares da morte estão nele em seu lugar certo.

Invenção, ortodoxia; liberdade, compulsão: sobre o fundo dessa tensão inscreve-se o des-tino das mulheres na tragédia, como, sem dú-vida, em muitos níveis da experiência cívica ateniense. Com a ressalva de que, como a tra-gédia exalta singularmente o lado da liberdade, a compulsão, por sutil que seja – insidiosa-mente presente em tal ou qual significante – revela-se aí, uma vez descoberta, mais forte nas palavras que nas instituições. Com a ressalva, também, de que a invenção se opera no terreno totalmente discursivo da ficção, e de que sua estrada real é a da morte181.

Interessar-nos pelo que se diz da morte das mulheres na tragédia é dar-nos desde o princí-pio a satisfação de nos instalarmos em um posto de observação privilegiado. Se é verdade que,

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logo depois de estabelecida a fronteira intrans-ponível que separa o masculino do feminino, o imaginário grego compraz-se em confundi-la, para tentar determinar os procedimentos e os limites de tal jogo não teremos de nos situar no lugar institucional dessa confusão, isto é, no próprio cerne da interferência trágica?182

Esse era efetivamente o meu projeto: de-terminar como e até que ponto valores viris e atributos femininos agem uns sobre os outros na encenação trágica das mulheres pois, tra-tando-se dessa problemática “metade da cida-de”, credita-se pressurosamente à tragédia uma audácia notável nesse século V ateniense. Nada tem em si de consternador que a audácia pare-ça menor do que se poderia supor: toda inves-tigação corre o risco de recusar ou de modificar suas hipóteses de partida ao longo do caminho, principalmente quando elas foram adotadas com uma reserva – no caso, a convicção de que é necessário evitar a todo custo o dilema inútil do feminismo e da misoginia. Procurou-se simplesmente trilhar as vias indiretas da muito singular ortodoxia trágica, não sem pra-zer – o prazer que se pode tirar desse jogo de desvios – e talvez não sem ganho. Nesse per-curso sinuoso tem-se ao menos o ganho da in-terrogação lúcida sobre a possibilidade de des-vios significativos no seio de um gênero cívico.

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Com efeito, o paradoxo da morte gloriosa das mulheres é que a única morte bela é a viril; também, para conquistar a inatingível ¡déos gynaikon, esposas e moças exercitam-se na andreia; ora, é precisamente aqui que a femi-nilidade as espreita e, sem que elas o saibam mas para maior edificação dos espectadores, as domina num instante, o momento de uma pa-lavra, de uma escolha muito significativa do texto trágico. A esse respeito Eurípides, cantor ou inimigo das mulheres (nunca a tradição soube pronunciar-se verdadeiramente sobre esse ponto), nada tem a invejar a Sófocles, esse mestre da ambigüidade, o que implica verificar algo parecido com uma constância da tragédia em pensar a feminilidade nos mesmos termos. Conclusão certamente geral no fim de um longo exercício de leitura que buscou seguir atentamente a literalidade dos textos. Mas, nessa generalidade, apraz-me encontrar o be-nefício essencial de tal investigação. Falando da “morte das mulheres na tragédia”, pretendia-se tentar uma generalização confiando no gênero trágico como tal. Confiar no gênero era postu-lar-lhe a unidade, ou no mínimo tentar distin-guir-lhe as constantes, passíveis de serem de-signadas como representações partilhadas do discurso trágico – partilhadas, ainda que, de um autor a outro, elas sejam asperamente dis-

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cutidas. Tal desígnio implicava certamente recusar de início maneiras firmemente estabe-lecidas de 1er os trágicos: uma, baseada no dogma sacrossanto da evolução, que pretende que, de Esquilo a Sófocles e de Sófocles a Eurípides – sendo esses dois últimos autores praticamente contemporâneos –, as noções e as escolhas intelectuais “mudam” (evoluem, diz-se); a outra, desejosa de isolar cada obra em sua especificidade, e que se empenha em dis-tinguir a predileção de determinado trágico por determinado motivo – assim, Esquilo se inte-ressa muito pela violência do assassínio, Sófo-cles pela vontade desesperada que anima o suicida, e Eurípides pela imolação de tenras vir-gens183. Sem ignorar caminhos muito balizados, desejou-se fazer outro percurso. E para mim é importante que, no fim, ele tenha se revelado legítimo; que, de um trágico a outro, a interro-gação sobre a feminilidade tenha sido bem-sucedida, mesmo havendo diferenças quanto ao uso de termos, como esse verbo airo, ao qual foi necessário voltar mais de uma vez apesar de os limites serem os mesmos (assim, a garganta das mulheres tende a envolver sua morte).

Para proceder a um levantamento desses pontos do discurso influenciados por vários fatores, a via agora está bem traçada. Consiste em submeter os textos trágicos às interrogações

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de uma antropologia da Antigüidade. Esforço frutuoso – sua demonstração já não precisa ser feita –, com a condição todavia de que ele se desdobre numa atenção sem falhas à especifi-cidade do gênero. Procurou-se também sub-meter as questões da antropologia a um inter-rogatório mais centrado nos caminhos e nas modalidades gregas do imaginário, para tentar compreender a natureza do ganho contabiliza-do pela cidade por ocasião desse parêntese ins-titucional que é a representação dramática. Em outras palavras: em que a figura do oxymoron, cara aos textos trágicos, é essencial à represen-tação dramática que a cidade oferece a si mes-ma? Ou ainda: qual o ganho dos espectadores do teatro ao pensar em termos de ficção aquilo que, na vida cívica, não pode nem deve ser pensado? Ocasião de refletir sobre o objetivo dessa “purificação” trágica184, que sem dúvida purga menos o homem em seu caráter privado que o cidadão, porque purga afetos que o bom uso do estatuto de cidadão deve ignorar. E sa-crificam-se virgens no teatro de Dioniso...

Em busca das modalidades dessa operação de pensamento cívico, concentrou-se a atenção no significante e mesmo naquilo que, no texto das tragédias, é algo como um subtexto, talvez identificável somente pela leitura. Isso levou a que, muito aquém do efeito trágico, se

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remontasse ao horizonte da inteligibilidade do gênero. Sendo assim, voluntariamente foi as-sumida a posição pouco lírica de leitor. Mas é necessário tomar essa resolução: jamais ocu-paremos o lugar dos espectadores atenienses do século V. Ao menos, com essa perceptibilidade, aposto que chegamos a compreender aquilo que, na morte de Dejanira ou no sacrifício de Polixena, proporcionava ao espectador ateni-ense o prazer contido que é facultado pela frui-ção do desvio representado, pensado, domado.

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Notas

PRÓLOGO

1. Aristóteles, Poética, 1452 b 11-13.2. Assim U.C. Baldry (Le Théâtre tragique des Grecs, tradução

de J.-P. Darmon, Paris, 1975, pp. 69-70) caracteriza a prefe-rência da tragedia pelo texto.

3. Tiro esse termo de J.-P. Vernant, “Tensions cl ambiguïtés dansla tragédie grecque”, cm J.-P. Vernant c P. Vidal-Naquct,Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Paris, 1972, p. 35.

4. Art. cit., p. 36.5. A não ser que certas palavras sejam representadas, para suprir

a atenção muito insuficiente prestada pelo espectador moder-no às grandes unidades discursivas. Assim, na recente monta-gem da Orestia por Jean-Phiíippc Gucrlais (Teatro Orbe,novembro-dezembro de 1984), agitar realmente a lebre e aságuias no primeiro coro do Agamêmnon resultaria cm sugerira violenta materialidade do significante textual. Distinguirse-a esta estratégia da prática – ameaçada pelo psicologismo— consistente cm “representar” um texto.

6. Na tragédia raciniana R. Barthcs chama essas grandes unida-des de “grandes massas indivisivas de linguagem” (Sur Raci-ne. Paris, 1963, p. 21).

7. Segundo Banhes (Sur Racine, Paris, 1963, p. 21), refletindosobre a “decência” raciniana, esta é a única ordem trágica.

8. Adapto uma expressão de Maria Moscovia a propósito dotrabalho de Freud sobre as palavras da linguagem corrente,cuja “consistência sexual” ele descobriu, mas onde discerne

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“de certo modo palavras que sabem” (“La Déclaration”, L’Écrit du temps, 1 [1982], p. 209).

9. A propósito dessas palavras, ver pp. 42-44 e 81-85.10. Sinal, entre outros, de que não se trabalha impunemente sobre

a diferença dos sexos: dando esse título à terceira parte de meutexto, eu tinha simplesmente “esquecido” de que ele era o tí-tulo do número 3 da Nouvelle Revue de Psychanalyse, prima-vera de 1971.

MANEIRAS TRÁGICAS...

1. Epitáphios (oração fúnebre) pronunciado por Péricles (Tucí-dides, IT, 43, 2-3); o epitafio foi extraído da coleção de W.Peck, Griechische Vers-Inschrifien, Berlim, 1955 (ns 1491:Atenas, século IV a.C). Ao longo do texto serão citadas igual-mente as inscrições n° 1497,1790,1690,890, 891,1075 e 893.

2. Tucídides, II, 45, 2, declaração muito comentada e discutida,a começar por Plutarco que, no início de sua obra Das virtudesdas mulheres, se insurge contra tal concepção. Mas Plutarco,que vê nas virtudes femininas “uma parte de exposição histó-rica”, pertence a uma época em que, nos gêneros literáriosmenos centrados na cidade que os da época clássica, há umlugar para a intervenção das mulheres na história.

3. Hcródolo, II, 89 (o corpo das belas egípcias); 11,1 (Cassanda-nc), 129 (a filha de Miqucrino); III, 31-32 (a irmã e esposa deCambises); IV, 50 (c V, 92: Melissa); IV, 205 (Feretime).

4. Eurípides, (Hipólito, 813) qualifica de bíaios thânalos (morteviolenta) o enforcamento de Fedra.

5. Édipo Rei, 1230: hêkonla kouk ákonta; ver também 1236 e1237: aulé pros hautes. Ao contrário de Dcjanira ou de Eurí-dice, cuja morte é imputada a uma responsabilidade (aitia)exterior, a aitia da morte de Jocasta lhe é inteiramente atri-buída. A citação seguinte encontra-se nos versos 1234 e 1235.

6. Ver Sófocles, Traquínias, 878 e 880, Antígona, 1174;Eurípides, Hipólito, 801, Feníicias, 1354.

7. Compare-se Eurípides, Medéia, 39-40 e 379.8. O nó do laço (brokhos) dá realidade ao nó metafórico da infe-

licidade; compare-se Eurípides, Hipólito, 671 e 781.9. A. Katsouris (“The Suicide Motive in Ancient Drama”, Dioni-

so, 47, 1956, pp. 5-36) faz essa afirmação, embora não possadeixar de reconhecer (p. 9) que na tragédia o suicídio é majo-ritariamente cometido por mulheres.

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10. Rccordar-se-á que Ájax é, na tradição, o único herói masculi-no a ir até o extremo de um suicídio. A interpretação propos-ta aqui a respeito da escolha de Heracles opõe-se à de J. deRomilly (“I^e Refus du suicide dans l’Héraclès d’Euripide”,Arkhaiognosia, 1, 1980, pp. 1-10).

11. Há uma distância imensa entre o querer racional (etheló) e o deinclinação (boúlomai); ver N. Loraux, L’invention d’Alhenes,Paris-Haia, 1981, pp. 99-104, e, sobre Aristódamo (Hcródoto,DC, 71), “La Belle mort Spartiate”, Ktèma, 2 (1977), pp. 105-120. Kotar-se-á que em Le Suicide (reedição, Paris, 1981, p.374), E. Durkheim interpreta como um suicídio a morte deAristódamo. Olriadas: Heródoto, I, 82; Pantitcs, idem, VII,232.

12. Por exemplo, autôphonos e autokhêir. A sobredeterminaçãosuicídio/morte em combatc/assassínio familiar é particularmente nítida no combate singular entre os filhos de Édipo: verEsquilo, Sete contra Tebas, 850; Sófocles, Anlígona, 172;Eurípides, Fenicias, 880. Outros exemplos: Esquilo, Agamêm-non, 1091; Euripides, Orestes, 947; e Sófocles, Anlígona,1175, bem como o comentário de L. Gcmct ao livro IX dasLeis (Paris, 1917), p. 162 (873 c-d).

13. Essa é uma das circunstancias atenuantes consideradas porPlatão em sua condenação do suicídio (Leis, IX, 873 c 5-6).

14. Vergonha: Platão, Leis, TK, 873 e 6; hediondez do enforca-mento: Eurípides, Helena, 298-302; mácula: Sófocles, Antígona, 54 (lobe), bem como Esquilo, Suplicantes, 473 (miasmanum sistema de suicídio por vingança); desonra: Eurípides,Helena, 134-136, 200-202, 686-6S7 (morte de Leda).

15. Fechando definitivamente o corpo muito aberto das mulheres,o enforcamento é por assim dizer inscrito na fisiología femi-nina; ver N. Loraux, “Le Corps étranglé”, em Y. Thomas(editor), Le Châtiment dans la cité, Roma-Paris, 1984, pp. 195-218.

16. Sófocles, Antígona, 1220-1222; Esquilo, Suplicantes, 455-466.17. O veneno: Agamemnon, 1260-1263; o véu-armadilha: 1382-

1383, 1492, 1580, 1611; Coéforas, 981-982, 998-1104; Eu-mênides, 460, 634-635. Dejanira: Sófocles, Traquínias, 883-884 (emésalo); 928 (tekhnomenes). A mistura da “via direta”do gládio corn a métis chega ao auge na Medéia: 384-409 e1278 (onde a espada é rede).

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18. O enforcamento em vez do macho: Esquilo, Suplicantes, 787-789; a precipitação em vez do dáikior, ibidem, 794-799.Aproximar-se-á dáiklor do goos dáikier. Sele contra Tebas,916; soluço dilacerante, luto gemente onde se dilacera seucorpo â imagem daquele dos mortos, nesse caso os filhos deÉdipo, eles mesmos autodáikíoi, ibidem, 735. Notar-se-á enfimque no verso 680 das Suplicantes o verbo daxio (dilacerar) fazuma primeira aparição para caracterizar a guerra civil comodilaceradora da cidade. Não há portanto razão alguma para oeufemismo de transformar “dilacerador” em “raptor”.

19. Eurípides, Alceste, 74-76; outras metáforas da morte comocortante ou sangrenta: ibidem, 118 e 225. A propósito deTânatos como morte no masculino, ver J.-P. Vcmant, “Figuresféminines de la mort”, a aparecer numa coletânea coletivaMasculin/Féminin en Grèce ancienne.

20. Eurípides, Andrômaca, 616: oudê trotheis. O escoliasta temrazão (contra Mcridicr, o tradutor da coleção “Les Belles Lettres”): Mcnclau foi realmente ferido de longe no canto IV daIlíada pela flecha de Pàndaro, mas nenhum ferimento lhe foiinfligido de perto, pelo gládio ou pela lança, e esse é o sinal desua bravura duvidosa.

21. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 621-622; sobre o lugar reservado ao dcgolador na consumação do próprio sacrifício femini-no, ver M. Détienne, “Violentes Eugénies” em M. Détienne eJ.-P. Vernant (editor), La Cuisine du sacrifice en pays grec,Paris, 1979, p. 208.

22. Sobre essa troca, que comentei em “Blessures de virilité” (LeGenre humain) 10, 19S4, pp. 38-56), ver Pindaro, 8ª Neméia,versos 38 e seguintes (bem como a 7ª Neméia, 25 e seguintes,e a 4ª Ístmica, 35 e seguintes). Ter-se-á em mente que, na tra-gédia de Sófocles, a espada pertencente a Heitor é um presen-te do inimigo: quanto a Ájax, ele morre como “tomba” oguerreiro (piptó: Ájax, 828, 841, 1033).

23. Ájax, 815, com a tradução e o comentário de J. Casabona, Re-cherches sur le vocabulaire des sacrifices en Grèce, Aix-en-Provence, 1966, p. 179. Notar-se-á que a espada é empunha-da (hêsteken) como fica normalmente na mão do hoplita emscu posto. No verso 1026 Teucro fará da espada um phoneus,um matador.

24. O escalpelo: 581 –582, num contexto ao mesmo tempo medicoe relacionado com o sacrifício (ver Traquinias, 1032-1033, e

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Antígona, 1308-1309); a língua afiada: 584; a carne cortada pela narração: 786; a infelicidade que traspassa o fígado, 938.

25. J. Slarobinski, “L’Épée d’Ajax”, em Trois Fureurs, Paris,1974, especialmente pp. 27-29 e 61; ver também D. Cohen,“The Imagery of Sophocles: a Study of Ajax’ Suicide”, Greeceand Home, 25 (1978), pp. 24-36, e Ch. Segal, “VisualSymbolism and Visual Effects in Sophocles”, Classical World,74, 1981, pp. 125-142.

26. Hêmon: Antígona, 1175 (ver também 1239). Sobre haimacomo nome da efusão de sangue, ver H. Koller, “Haima”,Gloíta, 15, 1967, pp. 149-155.

27. SkJiismôs: Esquilo, Agamêmnon, 1149 (Cassandra); skhizo:Sófocles, Electra, 99 (assassínio de Agamemnon). Daízo:Esquilo, Agamemnon, 207-208 (sacrificio de Ifigênia), Coéfo-ras, 860, 1071 (o assassínio).

28. A Ici do sangue: J. Casabona, Vocabulaire, p. 160. Evocar-sc-á na Elecíra de Eurípides a presença do material para os sa-crifícios (kanoun, sphagi?) na evocação do assassínio de Cli-temnestra (1142; ver 1222: kalárkhomai, comentado por P.Stengel, Opferbrãuche der Griechen, Lcipzig-Bcrlim, 1910, p.42). Eurídice é sphagíon: Antígona, 1291, com o comentariode J. Casabona, Vocabulaire, p. 187; ver também as observa-ções da edição comentada do texto por Jebb (Cambridge,1900) sobre bomia (o suicídio ao pé do altar) e a espada dosuicídio como cútelo do sacrifício (v. 1301).

29. Ver por exemplo Eurípides, Helena, 353-359.30. Hipólito, 1236-1237, 1244-1245. Em face da dor que o

aco-mete, Hipólito moribundo, como Heracles colhido na armadi-lha de um ardi], implorará à espada libertadora que lhe corte acarne (1375; compare-se Sófocles, Traquínias, 1031-1033).

31. Uso voluntariamente essa expressão logicamente impossível,pois o texto das Fenicias não somente não especifica qual dasduas espadas ela empunhou, mas sugere até, em sua generali-dade, que se trata da espada genérica dos filhos (ver os versos1456 c 1577-1578).

32. R. Hirzcl, “Der Selbstmord”, Archiv für Religionswissenschaft, 11, 1908, principalmente pp. 256-258.

33. Comparar-sc-ão o Édipo Rei, onde Jocasta é “pantelés dãmar”(esposa perfeita), e as Fenicias, onde Jocasta morre “com” seusfilhos e será enterrada com eles (1283, 1482, 1553-1554,1635); da mesma forma, Eurídice é pammétor, toda mater-nidade (Antígona, 1283).

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34. “Le lit, la guerre”, L’Homme, 21,1981, pp. 37-67; ver também“Ponos. Sobre algumas dificuldades do sofrimento como nomedo trabalho”, Annali delVIslitulo orientale di Napoli, 4, 1982,pp. 171-192.

35. Corda ou gládio: para Helena, se ela tivesse sido uma gennaiagyné (Troianas, 1012-1014), para Creusa, se seu plano demorte fracassasse (Ion, 1064-1065), para Elcctra, a viril (Orestes, 953), que preferiria o gládio (1041,1052), para Hermione,a jactanciosa (Andrômaca, 811-813, 841-844), cuja ama temesobretudo que ela se enforque (815-816), para Ádmcto (Alces-te, 227-229). Ver ainda Andrômaca, 412, c também Heracles,319-320 e 1147-1151.

36. Hélène, 353-357 (tradução de H. Grégoire, Les Belles Lettres;phoníon aiôrema (353); afasto-me aqui da interpretação de J.Casabona, Vocabulaire, op.cit., p. 161; deve-se acrescentar queo verbo orêgomai, usado pela heroína, é mais pertinente ao atode “ferir” (numerosas ocorrências na Ilíada) que ao ato de “darum nó”.

37. O enforcamento é evocado por Orestes (Esquilo, Eurnênides,746; Euripides, Orestes, 1062-1063), c por Édipo (Sófocles,Édipo Rei, 1374; Eurípides, Fenicias, 331-333).

38. Ver P. Chantraine, Dictionnaire étymologique de la languegrecque, verbete aeiro (I, p. 23, sobre o derivado aiora). Eorade Jocasta: Sófocles, Édipo Rei, 1264.

39. Bathy piorna: Esquilo, Suplicantes, 796-797; aeiro: por exem-plo Hipólito, 735 (ode de evasão) e 779 (ertemene, de artao,derivado de aeiro), Andrômaca, 848,861-862; a profundeza doéter: Medéia, 1295.

40. As asas, o ímpeto de voar: Medéia, 1295; Heracles, 1158;Hécuba, 1110; l’on, 796-797 e 1239; Helena, 1516. O pássaro:Hipólito, 733 (o coro), 759, 828 (Fedra); Andrômaca, 861-862(Hermione); Ifigênia em Táuris, 1088, 1095-1096 (ápterosomis pothousa), Helena, 1478-1494; sobre o pássaro preso noalçapão e a mulher enforcada, ver N. Loraux, “Le Corpsétranglé”, art. cit.

41. . Das mulheres e, sob outro aspecto, dos homens feminizados:Jasão, Heracles, que, tendo cometido esse crime “feminino” que é o assassínio dos próprios filhos, pensa em levantar vôo (antes de renunciar ao suicídio e de recuperar a virilidade). Poliméstor mutilado por mulheres e escravas. A fuga: Esquilo, Suplicantes, 806; Eurípides, Ion, 1239.

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42. Eurípides, Alceste, 262-263 (imagem da estrada), 392, 394;Suplicantes, 1017, 1039 e 1043; Hipólito, 828-829.

43. Sófocles, Ájax, 815 e 833. Licofron (Alexandra, 466) falaráigualmente em pédema.

44. Aristóteles, Política, I, 13, 1260 a 30, citando Sófocles, Ájax,293 (é o “eterno refrão” pelo qual Ájax responde às perguntasde Têcmessa); Eurípides, ¡leráclidas, 474-47.

45. Sófocles, Traquínias, 813-814; Antígona, 1244-1256; ÉdipoRei, 1073-1075 (com as observações de Jebb sobre siopé emsua diferença com sigé).

46. Hipólito, 828; Traquínias, 881 (diêistosen é derivado de distos,invisível). Sobre o jogo da vista e dos olhares na narração damorte de Dcjanira, haveria muito a dizer.

47. Sobre o interior fechado e a abertura das portas, ver Édipo Rei,1261-1262, e Hipólito, 782, 793, 809-810 e 825 (note-se apropósito da abertura dos ferrolhos o uso do verbo khalan, queno Édipo Rei, 1266, designa o desatamento da corda de Jo-casta).

48. Antígona, 1293 (e 1295,1299). Sobre mykhos, o aposento maisrecôndito da casa, e as ligações dessa palavra com a feminili-dade, ver J.-P. Vernant, “Ilestia-IIermès”, Mythe et Penséechez les Grecs, I, Paris, 1971; observar-sc-á a esse respeitocom E. Vcrmcule (Aspects of Death in Early Greek Art andPoetry, Berkeley, Los Angeles e Londres, 1979, pp. 167-169)que, sempre com conotações eróticas, a morte das mulheres éatraída pelo recôndito, pelo profundo.

49. Notar-se-á que Fcdra não é mais mencionada pelo nome;quando se referem a seu corpo, Tcseu e Hipólito falam de “estaaí” (958) ou empregam a palavra soma (“corpo”) (1009).

50. Não é certo que este tenha sido realmente o caso, e, sobre essamorte como sobre muitas outras mortes trágicas, a discussão étumultuada: ver, por exemplo, A.M. Dale “Seen and Unseen inthe Greek Stage”, em Collected Papers, Cambridge, 1969, pp.120-121, e C.P. Gardiner, “The Staging of the Death of Ajax”,ClassicalJournal, 75, 1979, pp. 10-14.

51. O corpo do herói: Ájax, 915-919, 992-993, 1001, 1003-1004.Ao contrário, o corpo do guerreiro morto em combate é “belo”:compare-se J.-P. Vernant, “La Belle mort et le cadavre outragé”, em G. Gnou e J.-P. Vcmant (editor), La Mort, les mortsdans les sociétés anciennes, Cambridge-Paris, 1982, pp. 45-76.

52. Alceste morre em cena: Alceste, 397-398; a partir do verso 606o cortejo fúnebre está pronto, mas a intervenção do velho pai

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de Ádmeto vai de fato instaurar uma prôthesis (entre os versos 60S e 740; ver também 1012).

53. O caso mais óbvio é o de Alcestc, que leva o devotamenteconjugai até o extremo de morrer em lugar de seu marido, e otexto de Eurípides usa múltiplas preposições (pro, hyper, periou anli) para exprimir essa versão exagerada da permuta con-jugal: Eurípides, Alcesle, 16,37,155,178,282-283,284,433-434, 460-463, 620, 682, 698, 1002. Nessa coorte de mulheresque morrem pelos hotens. Leda, morta por causa de sua filha,é uma exceção, que talvez se deva relacionar com o tema deDemétcr e de Core na Helena.

54. Sófocles, Traquínias, 913; Eurípides, Alceste. 175, 187 e 248-249, Suplicantes, 9S0 (ver 1022; o thálamos de Pcrséfone).Thálamos e casamento: ver por exemplo V. Magnicn, “LeMarriage chez les Grecs anciens. L’Initiation nuptiale”,L’Antiquité Classique, 5, 1936, pp. 115-117.

55. Ver Sófocles, Traquínias, 918-922, Édipo Rei, 1242-1243,1249, e também Eurípides, Alceste, 175, 177, 183, 186-188,249.

56. Odisséia, XI, 278: Epicasta prende o laço aph’hypseloio mêla-thron; Eurípides, Hipólito, 768-769: téramnon apô-nymphídion. Mêlalhron, viga da cumieira: R. Marlin, “LePidáis d’Ulysse et les inscriptions de Délos”, RecueilPlassart,Paris, 1976, pp. 126-129 (com referências); mêlathron comometonimia do palacio: Ilíada, II, 414, Odisséia, XVIII, 150;mêlalhron como metonimia da morada nupcial: Eurípides,Ifigênia em Táuris, 375-376. Mêlalhron e o marido: Safo,fragmento 229, edição Page.

57. Admeto, por exemplo, exorta Alceste a esperá-lo no Hadespara lá “morar com” ele: Eurípides, Alcesle, 364; aliás, eleexprime ao mesmo tempo o desejo, normalmente feminino, deestar estendido ao lado de Alcestc (366, 897-902).

58. Esquilo, Coéforas, 905-907, e também 894-895 e 979(Clitcmnestr3); Agamemnon, 1441-1447 (Cassandra, que,aliás, assumiu essa “morte com”: Agamêmnon, 1139 e 1313-1314).

59. Aludo à Palinodia na qual, após haver, como Homero, “falado mal” de Helena, o poeta Estesícoro substitui por um fan-tasma a mulher adúltera que seguiu com Paris para Tróia,enquanto a Helena real, virtuosa, permanecia no Egito durante a guerra de Tróia. Juramento de morrer: Eurípides, Helena,387, declaração a que alude Mcnelau nos versos 985-986.

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60. O túmulo comum: Eurípides, Suplicantes, 1002-1003; synlha-nein: 1007,1040, 1063 (1071); a união dos corpos: 1019-1021.

61. Fenicias, 1458-1459 (em toisi philtálois); no verso 1578 elatomba ainphi teknoisi (“entre” ou “perto de” seus filhos).

62. Tiro essa expressão de um artigo de Cl. Nancy, “Euripide et leparti des femmes”, cm E. Levy (editor), La Femme dans ¡essociales antiques, Estrasburgo, 19S3.

63. A melhor (aritle, esthle, phihate) das mulheres: Eurípides,Alceste, 83-85, 151-152, 200, 231, 235-236, 241-242, etc.; aúltima palavra: 391 ; a morte aceita: 17 (thêlein, verbo do impe-rativo hoplítico: ver 155); a monc gloriosa: 150 (ver 157 e 453-454); a audacia: 462, 623-624 e 741; a nobreza: 742, 993.

64. Virilidadc, glória c audácia: Eurípides, Suplicantes, 9S7, 1013,1014-1016, 1055 (kleinon), 1059, 1067; os trajes nupciaisfúnebres de Evadnc: 1055; alem da feminilidade: 1062-1063;aquém da virilidade: 1075. Outros exemplos da gloria femini-na cm Eurípides: Helena, 302; Uécuba, 1282-1283.

65. Tentei falar mais longamente sobre o assunto em “La Gloire etla mort d’une femme”, Sorcières, 18, 1979, pp. 51-57.

66. Antífona, 773-780. Sobre as semelhanças e as discrepanciasentre a execução de Antigona e a da vestal incesta, reporto-mea um estudo ainda inédito de Augusto Fraschctli.

67. Para sphazo, ver a nota 28; thyo e seus derivados: Esquilo,Agamémnon, 214-215, 224-225, 234-240, 1417; Sófocles,Electro, 531-532, 572-573. Phonos e phoncuo: Eurípides, Ifi-gênia emÁulis, 512, 939 c principalmente 1317-131S; nessapeça Clitcmncstra designa sempre o sacrificio de Ifigênia comouma execução (ktano). Nolar-sc-á que, em Esquilo, a críticamanifesta-sc cm todos os sentidos, apesar do emprego do verbothyo – mas o sacrifício se voltará contra Agamemnon, “sa-crificado” por Clitcmncstra (Agamemnon, 1503).

68. Ver os trabalhos de J.-L. Durand sobre as Bouphonia (princi-palmente “Le Corps du délit”, Communications, 26, 1977, pp.46-61), e também, sobre a “encenação”, as observações de J.-P. Vcrnant, “Sacrifice et mise à mort dans la thusia grecque”,em Le Sacrifice dans l’Antiquité, Entretiens de la FondationIlardt, vol. 27, Vandocuvrcs-Gcnève, 1981, pp. 1-18 e 22.

69. Se o sacrifício não aparece aos olhos dos espectadores, doponto de vista do logos ele não é submetido a qualquer censura,e os mensageiros detalham longamente sua narração; acha-seao nível do discurso aquilo que J.-L. Durand observará a pro-pósito das representações figuradas, que “o sacrifício humano

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deve ser mostrado no terreno do imaginário” (“Bêtes grec-ques”, em La Cuisine du sacrifice, op. cit., p. 138). Sobre o sacrifício humano como ficção, ver também as observações de A. Henrichs, “Human Sacrifice in Greek Religion. Three Case Studies”, em Le Sacrifice dans l’Antiquité, op. cit., pp. 195-235.

70. Párlhenos e guerra: J.-P. Vernant, “La Guerre des cités”,Mythe et société en Grèce ancienne, Paris, 1974, p. 38. Derramar o sangue de uma filha única para salvar a comunidadedos andres: o raciocínio é explícito no fragmento do Erecteude Eurípides, citado por Licurgo (Contra Leocrates, 100, ver-sos 23-39); ver N. Loraux, “Le Lit, la guerre”, op. cit., pp. 42-43.

71. Eurípides, Hécuba, 525-527, 544: lektoi t’Akhaion êkkritoineaníai, logades. Ncm todas as párthenoi sacrificadas cha-mam-se Polícrita (“a muito-escolhida”: compare-se W.Burkert, Structure and History in Greek Mythology and Ritual,Los Angeles-Londres, 1979, p. 73), mas todas são “escolhi-das”.

72. Eurípides, Hécuba, 537 (akraiphnes haima), Ifigênia emÁulis,1574 (ákhranton haima); se a pureza do sangue é metonimiadaquela da virgem, a narração de Pausânias a respeito da filhade Aristódemo poupa essa metonimia, e ákhranlos, pura, é avirgem a sacrificar (IV, 9, 4). Khraino: tocar, portanto “ma-cular”...

73. Esquilo, Agamemnon, 232 e 1414-1416 (que, na lógica daOréslia, se comparará com Eumênides, 450: o ciclo da mácu-la fecha-se depois de haver corrido sobre Orestes o sangue deum animal novo (botón) degolado).

74. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 359; Ifigênia em Áulis, 1080-1083.

75. Sobre o sacrifício de Hermes no Hino homérico dedicado aesse deus, ver L. Kahn, Hermes Passe, Paris, 1978, principalmente pp. 41-73.

76. Citação de Paul Vidal-Naquet, “Chasse et sacrifice dansVOrestie d’Eschyle”, em J.-P. Vernant e P. Vidal-Naquet,Mythe et tragédie en Grèce ancienne, op. cit., pp. 135-158 (p.139). A corça que substituiu a moça (Ifigênia em Áulis, 1587-1589 e 1593): versão mais antiga da história (A. Henrichs,“Human Sacrifice”, art. cit., p. 199), remontando aos CantosCiprios e à qual se opõe uma versão mais difundida (Esquilo,

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Píndaro, Sófocles) onde a virgem era realmente sacrificada; ver P. Jouan, Euripide et les légendes des Chants Cypriens, Paris, 1966, pp. 273-274.

77. Eurípides, llécuba, 205-206 (comparação), 526 (metáfora; noverso 327 da Alexandra de Licofronte, Poüxena é stephêpho-ros bous, novilha adornada com fitas); 142: polos.

78. Stella Georgoudi chamou-me a atenção para a circunstância depolodamnein designar o ato de preparar um potro para fazerdele um cavalo; o grego desconhece o verbo hippodamnein.

79. Ver V. Magnicn, “Vocabulaire grec reflétant les rites du mariage”, em Mélanges Desrousseaux, Paris, 1937, pp. 293-297,e “Le mariage chez les Grecs anciens”, L’Antiquité Classique,5, 1936, principalmente pp. 129-131, bem como Cl. Caíame,Les Choeurs des jeunes filles dans la Grèce archaïque, I,Roma, 1977, pp. 411-420, e M. Détienne, “Puissances dumariage”, em Y. Bonncfoy (editor), Dictionnaire des mylholo-gies,ll, Paris, 1981, p. 67.

80. No verso 1113 da Ifigênia em Aul’is, Agamêmnon joga com oduplo sentido, anunciando que os môskhoi estão prontos parao sacrificio pré-nupcial das protéleia.

81. A história da filha de Aristódemo (Pausânias, IV, 9, 4-10) éesclarecedora: contestando que Aristódemo seja ainda kyriosde sua filha, o noivo da moça lembra que, no entremeio cm quese acha a nymphe, a passagem de um kyrios para outro já seconsumou; Aristódemo “deu” sua filha em casamento, e nãopode mais “dá-la” em sacrifício. Ver a esse respeito, P. Roussel, “Le rôle d’Achille dans Vlphigênie à Áulis”, Revue desÉludes grecques, 28, 1915, principalmente p. 249, e “Le Thème du sacrifice volontaire dans la tragédie d’Euripide”, RevueBelge de Philologie et d’Histoire, I, 1922, principalmente pp.234-235, bem como as observações de J. Redficld, “Notes onGreek Wedding”, Arethusa, 15, 1982, pp. 180-201 (p. 187).

82. Se, na voz média, ágomai significa (para o homem) “levar”uma mulher, casar-se com ela, a forma passiva ágomai convémà moça em sua significação de “ser conduzida”, tratando-se davítima (ago na linguagem do sacrifício: Porfirio, Da Abstinência, H, 2S, 1 ). Ambigüidade trágica do verbo ágein: Ifigênia emÁulis, 434, 714 (e passim, tanto é verdade que a característicaprincipal de Ifigênia é “ser conduzida”); Hécuba, 43-44, 222-223, 369,432 (Polixena); ver também Sófocles, Antígona, 773,885 (e 811, 916), e a “condução” de Alceste por Tânatos(Eurípides, Alceste, 259).

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83. No Agamemnon, o pai é o sacrificador (209-211, 224-225),mesmo se, no instante supremo, os sacrificadores são rebai-xados (239-240); no último momento, na Ifigênia em Áulis, eleé substituído por Calcas: ver F. Jouan, Euripide, op.cit., pp. 277e 288, e notícia da edição da Ifigênia em Áulis, Les Belles Lettres, Paris, 1983, pp. 26-27 (com as referências bibliográficassobre o debate concernente à autenticidade desse trecho). Apropósito do tema literário do pai sacrificador, ver F. Pcllizer,Favole d’ ideníità, favole di paura, Roma, 1982, pp. 102-103.

84. Hécuba, 523 (mesmo gesto no vaso (hydria) de Berlim 1902):deve-se recordar, com CJ. Leduc, que engye é originariamen-te uma “empalmação”, um “empunhar” (“Réflexions sur lesystème matrimonial athénien à l’époque de la cité-État”, emLa Dot. La valeur des femmes, G. R. I. E. F., Toulouse, 1982,p. 13).

85. Ver sobre essa questão W. Burkert, Homo Necans, Berlim,1972, pp. 78-80, além da discussão entre J. Rudhardt, A. Hen-richs, G. Piccaluga e W. Burkert em Le Sacrifice dansl’Antiquité, op. cil., pp. 236-238.

86. Ver L. Kahn e N. Loraux, “Mythes de la mort”, no Dictionnaire des mythologies, II, pp. 121-124. Semelhanças entre acerimônia do casamento e a dos funerais: J. Reducid, “Notes”,art. cit., pp. 188-191.

87. Segundo me parece, é realmente a tragédia que opera essainversão; o lema do himencu no Hades será retomado nosepitafios a partir da época helenística e em numerosos epigra-mas da Antologia Palatina, mas, excetuado o célebre e difícilepitafio de Frasícleia (W. Peek, Griechische Vers-Inschriften,ns 68), a poesia funerária das épocas arcaica c clássica nãoassocia esse tema à morte das moças.

88. Por recusarem o casamento, as Danaides preferem a corda aocontacto do macho, e o reinado de Hades ao de um marido(Esquilo, Suplicantes, 787-791); mas, se elas fingem ignorá-lo,o espectador sabe muito bem que ao trocarem um senhor poroutro, elas permutarão pura e simplesmente um marido por um“marido”.

89. Casamento no Hades: Anlígona, 653-654; casamento com oAqueronte: 810-816; lithôstroton kores nymphêion Haidou:1204-1205; ver ainda os versos 568, 575,796-797, 804 (thála-mos), 891-892 (tymbos, nymphêion). Sobre Antígona-Kore, veras observações de Ch. P. Segal, Tragedy and Civilization,Cambridge (Mass.)-Londres, pp. 152-206.

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90. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 369; ver também Ifigênia emÁulis, 461, 540, 1278; a imbricação do casamento e do sacri-fício, já perceptível na Ifigênia em Táuris (216, 364-371 : hai-matêron gãmon, 818-819, 856-861), domina toda a Ifigênia emÁulis: ver por exemplo H. P. Foley, “Marriage and Sacrifice inEuripides’ Iphigenia in Áulis”, Areihusa, 15 (1982), pp. 159-180.

91. De Licofronte (Alexandra, 323 e seguintes) a Seneca e até maistarde, o tema da morte de Polixena como “sacrificio nupcial”(A. Fontinoy, “Le Sacrifice nuptial de Polixène”, L’Antiquitéclassique, 19, 1950, pp. 383-396) é helenístico e romano.

92. Eurípides, llécuba, 352-353 (nymphe), 368 (Hades), 414-416,e principalmente 611-612.

93. L. Méridier, comentando o verso 612 (edição Les BellesLettres).

94. Macária sacrificada a Core: Eurípides, Heráclidas, 409-410,490, 601; o Hades: 514; a hora das nupcias etn vez da vida deseus irmãos: 579-580; morta por seu genos: 590; os filhos e apartheneia: 591-592.

95. L. Mcridier, comentando o verso 592; ver também a traduçãode Ph. Vellacott, Ironie Drama, Cambridge (Mass.)-Londrcs,1975, p. 191 (“por crianças não-nascidas, virgindadeirrcalizada”). Prcfcrir-se-á a tradução de Marie Delcourt(Gallimard, “La Pléiade”): “tesouro que para mim ocupa olugar de crianças, de minha virgindade oferecida”.

96. Esse lema aparece mesmo nos casos de filhos do sexo mascu-lino: Eurípides, Heracles, 481 –484 (Mêgara oferecendo as Ke-res a seus filhos como esposas), Troianas, 1218-1220 (para-mentação fúnebre/nupcial de Astiânax).

97. Isso pressupõe uma certa representação do corpo feminino,onde a garganta recebe valores sexuais; voltarei ao assunto naspp. 108-110.

98. Um gegenés por outro: em língua autóctone isso se diz aníikarpou kárpon (um fruto em lugar de um fruto: Eurípides,Fenicias, 931-941); notar-se-á que, espartano de pai e mãe(994-996), Mcneccu é por assim dizer nascido da pátria (996):em língua espartana não há outra mãe senão a terra dos pais(ainda mencionada nos versos 913, 918, 947-948, 969, 1056).

99. Fenicias, 1009 (início, stas, como o hoplita), 1012 (“libertareiminha terra”) e 1090-1092.

100. Fenicias, 942-948, comentada por P. Roussel, “Le rôled’Achille”, art.cit., p. 243.

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101. Para matizar a frase de J.-P. Vernant, que propõe que “o casamento [seja] para a moça o que a guerra é para o rapaz” (“LaGuerre des cités”, art. cit. p. 38), ver as observações de P.Schmitt-Pantel, “Histoire de tyran”, em B. Vincent (editor),Les Marginaux et les exclus dans l’histoire, Paris, 1979, pp.217-231, principalmente pp. 226-227.

102. A crer em Plutarco (Questões de mesa, 8, 8, 3), era necessáriauma ordem expressa de Delfos para o sacrifício de animais, “eainda hoje não se degola qualquer animal antes de ele, bai-xando a cabeça sob uma libação de água pura, anuir por umsinal à sorte que lhe está reservada”: ver por exemplo P.Roussel, “Le thème du sacrifice volontaire”, art. cit., além deW. Burkert, “Greek Tragedy and Sacrificial Ritual”, Greek,Roman and Byzantine Studies, 7 (1966), principalmente pp.106-107.

103. Essa escolha reitera a que consiste em fazer efetivamentemorrer Ifigênia: compare-se A. Henrichs, “Human Sacrifice”,p. 199.

104. Ora: deve prevalecer no sacrifício um silêncio de bom augurio,e a euphemia envolve ao contrário o sacrifício na Ifigênia emÁulis: 1467-1469, 1560, 1564 (ver ainda Hécuba, 530, 532-533: sacrifício de Polixena).

105. Mácula, impureza, impiedade: Esquilo, Agamemnon, 209,220;a idade virginal: 228-230; a violência, 232-238.

106. Cassandra, outra moça esquiliana, recusa-se a pensar seu as-sassínio como um sacrifício: ela, ciente de que um cepo à guisade altar a espera (Agamemnon, Mil), quer até ser corajosa(1289), mas opõe-sc a que o coro normalize sua situaçãocomparando-a a uma novilha impelida pelos deuses marchan-do bravamente para o altar (1297-1298 e 1299-1303).

107. Agamêmnon, 232-234; sobre Ifigênia procurando um refúgiono chão, ver as observações de J. Bollack, VAgamemnond’Eschyle, I, 2, Lille-Paris, 1981, pp. 295-298. Não é necessário supor, como F. Jouan (Euripide, op.c.it., p. 271, nota 5),que Esquilo se inspirava aqui na representação do sacrifício dePolixena existente numa ánfora tirrênia de Londres: de fato, épossível que, cada um em sua linguagem, o pintor c o poetatraduzam, ern função de uma vítima humana, a prática sacri-ficial que consiste em “erguer” (aeiro, áireslhai) a vítima; verP. Stengel, Opferbrãuche, op. cit., pp. 105-112, e J. Casabona,Vocabulaire, op.cit. p. 162. Aerdén é um advérbio derivado de

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aeiro. Se, com J. Rcdfield (“Notes”, art. cil., pp. 191-192 e 19S, nota 5), considera-se que, levantar da terra a noiva por ocasião das nupcias, eqüivalia a dramatizar sua necessária recusa à aquiescência, talvez se descubra no texto de Esquilo mais uma inferencia entre sacrifício e casamento; entretanto, já que a violência aqui não é de forma alguma simulada, somente a interpretação sacrificial me parece pertinente neste ponto.

108. Ifigênia em Táuris, 26-27; trata-se, palavra por palavra (metar-sia, adjetivo derivado de aeiro, fazendo pensar em aerdén) deuma “citação” de Esquilo (ver sobre este problema R. Aclion,Euripide héritier d’Eschyle, Paris, 1983,1, pp. 106-107, e H,p. 117).

109. Ifigênia emÁulis, 1587 e 1589 (ardén). A tradução de F. Jouan(“seu sangue jorrava em ondas sobre o altar da deusa”) não dáseu sentido tópico à palavra ardén.

110. llécuba, 525-527: os escolhidos (a elite dos jovens guerreiros)aqueus devem “conter com seus braços os saltos (skírlema) danovilha” Polixena; de fato, skirtao (saltar) aplica-se aos ani-mais jovens, poloi ou cabras (Teócrito, I, 152).

111. llécuba, 545, 548-550, 554, 561. Uma passagem do Ájax deSófocles indica claramente que, ajoelhando-sc, seja-se ou nãosuplicante, o essencial é que a pessoa se agarre ao solo (1180-1181).

112. Em contraste, é sobre o joelho dobrado de Cassandra súpliceque Clitemncstra, num extremo de crueldade, levanta o machado (compare-se N. Alfieri, P.E. Arias, M. Hirmcr, Spina,Munique, 1958, p. 59 e ilust. 99: aproximadamente 430 a.C):gesto bárbaro? Gesto de desespero? Ou os dois ao mesmotempo como cm Esquilo, Persas, 929-930?

113. Ver a Antología de Planudes, IV, 150 (descrição de uma Polixena ajoelhada e “implorando por sua vida”). Da mesmafonna, em Lucrecio, é uma Ifigênia (Ifiânassa) suplicante quedobra o joelho antes de ser erguida pelas mãos dos homens econduzida ao altar (De Rerum Natura, I, 92 e 95).

114. Além da ánfora tirrenia de Londres (97-7-272), mencionar-sc-á a de Berlim (4841).

115. Na descrição de Polixena, Eurípides inverte certos traços daIfigênia de Esquilo (compare-se J. Schmitt, Freiw illige n Op-ferlod bei Euripides, Giessen, 1921, pp. 57-58).

116. A liberdade de Macana (501-502, 528-529, 550, 559) passapor sua recusa a entregar-se espontaneamente à incerteza de

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uma tiragem da sorte; recusa a morrer nas mãos dos machos: 560-561, 565-566. Não tomarei uma decisão sobre os versos 821-822 e as razões do silêncio observado a propósito da execução (censura voluntária ou reelaboração posterior).

117. Medír-se-á o distanciamento fazendo uma comparação com ahistória da filha de Aristódemo (Pausânias, IV, 9,4-6), onde éo pai que deve dar e dá sua filha por sua própria vontade(hekoúsios, hekon). Para terminar, na Ifigênia em Áulis éAgamêmnon que age sob pressão, akon (1157).

118. Por exemplo A. Katsouris, arí.cií. na nota 9, pp. 16 e 21.119. Sobre a morte gloriosa em sua oposição ao suicídio, ver N.

Loraux, L’invention d’Athènes, op.cit., pp. 100-105, e “LaBelle mort Spartiate”, art. cit., p. 108.

120. Erecleu, fragmento 65 Austin, verso 67, que se comparará comHeródoto, I, 30 (Telos de Atenas).

121. Erecleu, fragmento 65 Austin, versos 68-70: o túmulo coletivo e a glória partilhada eram para Praxitea a recompensa específica dos andres: Licurgo, Contra Leocrales, 100, versos32-33. Ironia trágica...

122. Ver Cl. Nancy, “Euripide et le parti des femmes”, art. cit., pp.85 e 88, e Ph. Vellacott, Ironie Drama, op. cit., pp. 178-204.

123. Meneceu morre de pé (Fenicias, 1009, 1091) como os guer-reiros (1001-1002); ele ganha com isso a admiração do coro-por sua vitória (1054-1057: kallínika; compare-se 1314: ôno-ma gennáion). Nas Troianas Cassandra antecipa sua chegadavitoriosa (niképhoros: 460) ao mundo dos mortos. Sobre a tol-ma e a êukleia de Cassandra, ver ainda Esquilo, Agamêmnon,1302, 1304.

124. Sófocles, Antígona, 817-822 (autônomos; ver ainda 502-504,694-695); mas essa glória é ambígua, e a moça adivinha isso:836-839 e 853.

125. Macária: Heráclidas, principalmente 533-534, 627-628 (amorte dos agalhoi, designação tópica da morte militar).Polixena: Hécuba, principalmente 348, 380-381 e 592 (nobreza). Ifigênia: comparar-se-á Ifigênia em Áulis, 1252 (recu-sa da morte gloriosa) c 1374-1375 (eukleás), 1398 (a memória), 1423-1424 (nobreza), 1504 (glória imortal); o peã deArtemis é cantado pelo coro para Ifigênia: pelas mulheres parauma virgem (o peã é normalmente masculino: Cl. Caíame, LesCoeurs des jeunes filles, op. cit., I, pp. 148-149).

126. Ver a esse respeito as observações de G. B. Walsh, ClassicalPhilology, 69, 1974, pp. 241-248: a arelé para Ifigênia e, emsentido contrário, a aidós, virtude feminina, para Aquiles.

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127. Durante uma apresentação deste texto Deana Chirassi-Colom-bo chamou minha atenção para um trecho das Metamorfoses(Xni, 692-699), onde Ovidio tira a conseqüência mais radicaldessa lei metamorfoseando emjuvenes os corpos das filhas deOrion que se tinham suicidado pela pátria. Mas a metamorfo-se é estranha à lógica da tragédia, que prefere ater-se aos re-cursos do discurso.

128. Se a tragédia é feminista, ela o é à maneira dessas feministasdas quais fala P. Darmon, que “regeneram o gênero femininonum banho de sangue” (Mythologie de la femme dansl’ancienne France, Paris, 1983, p. 59).

129. Para dar um exemplo mencionarei a tradução de Mazon (LesBelles Lettres) dos versos 271 –272 das Coéforas, onde o “fígado quente” passa a ser o “sangue de meu coração”, por ra-zões que aliás Mazon explicita claramente, numa nota onde oque está em jogo é bem formulado: transposição ou tradução“literal”, que só pode ser indicada ao pé da página. A propó-sito dessas questões ver ainda as observações de J. Dumorticr,discípulo de Mazon, na introdução à sua obra Le Vocabulairemédical d’Eschyle et les écrits hippocratiques, Paris, 1935.

130. Por exemplo: Helena, 354; Hipólito, 781.131. Ver P. Chantrainc, Dictionnaire étymologique, verbetes au-

khén e dere; garganta de Afrodite: llíada, III, 396 (e HinoHomérico a Afrodite, 88); garganta da amada: Safo, fragmen-to216Page, 16; pescoço de Medéia; Eurípides, Medéia, 30-31;o luto: Eurípides, Medéia, 30-31; o luto: Eurípides, Electra,146-147.

132. Sobre sphazo como designação da degolação, sobre a equiva-lência de sphazo e de deirotomeo (cortar a garganta), e sobresphagé como o nome da garganta, ver J. Casabona, Vocabulai-re, op.cit., pp. 155-156 e 175.

133. Ifigênia em Táuris, 853-854 (compare-se 1460); Ifigênia emÁulis, 1430 (e 1516, 1560, 1574); Hécuba, 151-153. Eviden-temente, se ocorresse a imolação de um homem ela se fariatambém pela garganta: Heracles, 319-320 (verifica-se, porém,que jamais ocorreu efetivamente esse tipo de imolação).

134. Dere e o cútelo sobre a garganta: por exemplo, Orestes, 1194,1349, 1575; laimos e o sacrifício em ato: Heráclidas, 822;Fenicias, 1421; Ifigênia em Áulis, 1579; laimos é também agarganta de Polixena pensada como vítima sacrificial (Hécu-ba, 565; em 567 Neoptólemo corta nela “a passagem dosopro”). Laimôtomos (-tmetôs) caracteriza a Gôrgona com agarganta cortada: ¡on, 1054; Electra, 549; Fenicias, 455.

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135. Eurípides, Orestes, 1471-1473, com a nota de F. Chapouthier(Les Belles Lettres) e a de M. Delcourt (Gallimard, “La Pléiade”); sobre a significação do gesto que consiste em mover paracima e para baixo o pescoço da vítima, ver P. Stengel,Opferbrãuche, op. cit., pp. 113-125.

136. Eurípides, Electra, 1223, e também 485 (no verso 1222 Orestes usa o verbo “sacrificial” katárkhomai e, no verso 1228, oferimento de Cb’temnestra é qualificado de sphagás). Já emEsquilo, Clitemnestra era golpeada na garganta: Eumênides,592 (pros derén íêmon) bem como Coéforas 883-884(aukhén).

137. Ver Helena, 355-356 (nos planos de suicídio de Helena, lai-motômou sphagás é a alternativa para o enforcamento).

138. O próprio Hgisto que, em Eurípides, é colhido pela morte nosacrifício prestes a ser consumado, não é golpeado na gargan-ta por Orestes, que lhe parle o dorso, e sim nas vertebras (Electra, 841-842).

139. Trâpon ton auton: Coéforas, 21 A; a machadada em plena tes-ta: Sófocles, Electra, 95-99 e 195.

140. O pescoço, ponto fraco: Iliada, XXII, 321 –327 (morte de Hei-tor), e também VIU, 325-326 e XXIII, 821; guerreiros com agarganta cortada: XIII, 202; XVII, 49; XXI, 555 (deirolomeo).Ver também Hesíodo, Escudo, 418 (Cieno morto com umgolpe no pescoço). Em Homero, Ch. Daremberg (La Médecine dans Homère, Paris, 1865, pp. 14-15 e 38) enumera seisferimentos na garganta e sessenta e dois no pescoço; as razõespuramente funcionais invocadas por M. D. Grmek (Les Maladies à l’aube de la civilisation occidentale, Paris, 1983, p. 35)não bastam para explicar sem dúvida a repetição de tal feri-mento na epopéia.

141. Fenicias, 12S8-1292; guerra civil (stasis) e sphagé: ver M.Détienne e i. Svenbro, “Les loups au festin ou la cité impos-sible”, cm La Cuisine du sacrifice, op. cit., p. 231.

142. Eurípides, Medéia, 30; Ifigênia emÁulis, 875. Pode-se avaliara diferença em relação à Ilíada, onde o pescoço percebidocomo alvo e delicado no momento em que a espada o corta éo de um homem, porque somente o corpo do guerreiro é ero-tizado; ver E. Vermeule, Aspects of Death, op. cit., p. 101-105.

143. Todos esses lugares de morte são tirados do canto IV (457-531). Para a vulnerabilidade essencial do corpo viril emHomero, ver o livro já citado de E. Vermeule (pp. 96-97).

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144. O flanco protegido: Eurípides, Troianas, 1137; Heráclidas,824; o flanco atingido: Esquilo, Sete contra Tebas, 624, eprincipalmente 888-S90 (evocação, pelo coro, da morte dosfilhos de Édipo atingidos no flanco esquerdo – lado anormal,lado sinistro –, dieuônymon telymmênoi... homosplânkhnonpleuromalon, trecho que parodia Eurípides nos versos dasFenicias citados na nota 141).

145. Eurípides, Andrômaca, 1150; no verso 1120 Neoptólemo nãofoi “tocado no lugar certo” e, nos versos 1132-1134, recorta-do por golpes causados pelos projéteis (pedras, dardos, flechas,etc).

146. Ferido através do umbigo (Fenicias, 1412-1413), Polinices cai,dobrando a pleura kai nédyn. A imagem do gládio através dopulmão/através do flanco: comparar-se-ão Esquilo, Coéforas,639-640, Eurípides, Ion, 766-761, e Esquilo, Eumênides, 843.

147. Erecleu, fragmento 65 Austin, verso 15; Fenicias, 1421 e1437-1441; Medéia, 379.

148. Hêmon: Anlígona, 1236 (pleurais); Ájax: Sófocles, Ájax, 834(plêuran) (compare-se Píndaro, Neméias, VII, 25 e seguintes:diá phrenon; sobre o ferimento no diafragma, ver Dumortier,Le Vocabulaire medical d’Eschyle, op.cit., p. 11).

149. Eurípides, Heracles, 1149; Helena, 982-983; Orestes, 1062-1063 (eugéneia). Obscrvar-se-á que um dos temas do Orestesé a oposição entre a sphagé, procedimento de assassinio, e umamorte voluntária e nobre, decorrente do golpe no fígado.

150. Esquilo, Agamemnon, 432, 792; Coéforas, 272; Eumênides,135 (e 158); Sófocles, Ájax, 938; Eurípides, Suplicantes, 599;Hipólito, 1070.

151. Sófocles, Antígona, 1315-1316 (hypWhipar); 1291-1292(sphagion); 1301 (botnia); 1283 (plêgmasin); 1314 (en pho-nais; compare-se 696, onde a morte guerreira de Polinicesmanifestou-se en phonais).

152. A ama foi “companheira de fileira” (parastális: Traquínias,889) do suicídio, aliás solitário, de Dejanira; recordar-se-á quea noção de parastales fundamenta a ordem hoplítica da fa-lange.

153. Que se deve interpretar na lógica do texto, e não, como faz G.Devercux em um estudo aliás muito atento à literalidade datragédia (Tragédie et poésie grecques. Paris, 1975, pp. 117-136), naquela de um inconsciente – o de Dejanira ou o deSófocles (no qual essa “masculinização” da doce e tema esposadeveria ser atribuída a um “retomo do reprimido”).

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154. Traquínias, 923-926: embora o broche aberto por Dejaniratenha mantido suas vestes entre os seios, a mulher de Heraclesnão desnuda seu peito, e sim o braço e o flanco.

155. Pouco mais satisfatória é a leitura – no caso, a de G. Devcreux(Tragédie et poésie grecques, op.cit.,pp. 114,122,136)—quepõe todo o trecho sob o signo do lapsus calami; atribuir alémdisso essa “confusão” da direita e da esquerda às “fortes ten-dências homossexuais” de Sófocles porque “duas categorias desujeitos, os homossexuais [...] e os canhotos, têm a tendênciade inverter a esquerda e a direita” (página 137) não é sério:quando se lê um texto trágico não se deve esquecer que se lêum texto, e um texto muito elaborado.

156. Ver N. Loraux, “Heraklcs, le surmâle et le féminin”, RevueFrançaise de Psychanalyse, 1982, p. 725.

157. Notar-se-á que, nas Traquínias, as conotações do flanco podemser tanto eróticas quanto guerreiras: ver os versos 930-939 e1225-1226 (comparc-se Eurípides, Hécuba, 826).

158. llécuba, 566-567. Na Alexandra de Licofronte, o filho deAquiles golpeia Polixcna também na garganta (verso 326, lai-misas).

159. E num contexto inteiramente diferente que Aristódemo, quematou sua filha para provar que ela não estava grávida, a vê emsonho “com o peito e o ventre abertos” (Pausânias, IV, 13, 2).Até onde vai o meu conhecimento, não há mulher que morrapelo seio na tragédia; malgrado o uso suplicante que faz de seumasías, Clitcmnestra, como já vimos, é atingida na garganta,c Mazon, influenciado pela cena das Coéforas, traduz nasEumênides, 84, “traspassar o seio de uma mãe” onde o textofala somente de “traspassar o corpo materno” (metrôiondemas).

160. Aristóteles, História dos Animais, I, 14, 493 b 7 (koinon meros aukhenos kai slethoús sphagé), comentado por J. Casa-bona, Vocabulaire, op. cit., p. 175, nota 31.

161. A interpretação mais corrente do verso 239 do Agamemnonindica que o “vestido cor de açafrão” de Ifigênia cai por terra;mas, boas razões advogam outra leitura, onde é a “tinta deaçafrão” do sangue da virgem que se derrama sobre a terra (vera demonstração de J. Buüack, L’Agamemnon d’Eschyle, op.cit., I, 2, pp. 300-303). Se, como pensaram alguns comenta-dores, o sacrifício de Polixena é uma reinterpretação euripi-diana dos versos de Esquilo, dever-se-ia atribuir a Eurípides aleitura tradicional desse trecho.

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162. Nos Herádidas, Macana alude ao ato de tirar o véu (verso561). J. Hcckenbach (De Nuditale Sacra Sacrisque Vinculis,Giesscn, 1911, pp. 9-10) quesliona-se a respeito dessa práticano caso de Polixcna. Assinalar-se-á que esse desvelamento éuma espécie de parodia brutal de anakálypsis da noiva duran-te a cerimônia do casamento; SSneca diz a mesma coisa a seumodo, Troianas, 87-93.

163. Pintura grega: ver a Antologia Grega, IV, 150; Pedro de Cor-tona: penso no Sacrifício de Polixena no Museu do Capitólio,em Roma.

164. Há em Eurípides vinte e sete ocorrências de masías comonome do seio materno, contra duas menções no sentido erótico:Andrômaca, 629 (ver Aristófanes, Lisístrata, 155-156) e Ciclope, 170. Tiro a noção de “objeto parcial” da linguagem dapsicanálise: ver J. Laplanchc e J.-B. Ponlalis, Vocabulaire de¡a psyclianalyse. Paris, 1967, pp. 294-295.

165. Eurípides, Suplicantes, 604; Fenicias, 134, 162, 1375, 1397,1437; desde Hornero (litada, XIII, 288-290, XXII, 282-285),o guerreiro valoroso deve ser atingido pela frente, no peito, enão nas costas.

166. niectra: Eurípides, Orestes, 1049; Electra, 1321; Ifigênia: Ifi-gênia em Áulis, 634; a beleza virginal de Ifigênia, ibidem, 681(nolar-sc-á: 1- que o peito, a face e os cabelos – marcas dabeleza – são precisamente aquilo que se maltrata no luto; 2-que, na Elecíra de Eurípides (1023), Clitcmncstra resume oescândalo do sacrifício na evocação da “face alva” de Ifigênia);lulo: Suplicantes, 87, 979; Troianas, 794; Andrômaca, 832-834. O peito “como o de urna estatua” (hós agálmatos) que. faza beleza de Polixcna, evoca num registro totalmente diferentea Ifigênia de Esquilo, jóia (ágalma) da casa paterna (Agamem-non, 208).

167. Notar-se-á que a associação tão rara de mastoi e de stêrnonaparece outra vez na Hécuba (424: o adeus de Polixena à suavidade do corpo materno).

168. Hécuba, 20S-210 (nekron inelá); 568-570 (pudor).169. Séneca, Troianas, 195-196, 202, 361-364, 940-944 e 1312 (a

narração do sacrifício começa por thalami more).170. C. Fontinoy (“Le Sacrifice nuptial”, art. cit., p. 386) admira

se de que o tema do casamento, a seus olhos essencial, seja tãopouco desenvolvido na narração do sacrifício.

136

171. Ovidio, Metamorfoses, XIII, 451-452, 458-459, 479-480.Eurípides, modelo de Ovidio e de Séneca: R. Aelion, Euripi-de héritier d’Eschyle, op.cit., H, 114, nota 9.

172. No mesmo livro das Metamorfoses, uma das filhas de Orionmata-se “com uma coragem acima de seu sexo atingindo seupeito desnudo” (XIII, 693).

173. Ver G. Arrigoni, Camilla, Amazone e sacerdotessa di Diana,Milão, 1982, principalmente as pp. 37-38 (seio direito deCamila). Notar-se-á que Dido se fere igualmente no peito(Eneida, IV, 689); e a prosa dos historiadores não fica atrás: éno peito que Lucrecia enfia o gládio (Tito Lívio, I, 48,11), queVirgínia atinge sua filha para salvar-lhe a virgindade (TiloLívio, III, 48, 5). Convém aliás observar com G. Devereux(Tragédie et poésie grecques, op.cit., p. 123) que, nos textoslatinos, as mulheres suicidam-se em geral com o gládio.

174. O outro ramo da alternativa começa por hyp’aukhena (Hécu-ba, 564); ou, para Polixcna, a nuca c também – classicamcn-tc – o lugar do jugo (ibidem, 376).

175. A morte da amazona Pentesiléia já é mais clássica na épocaarcaica, um topos das representações figuradas: ver porexemplo E. Vermeule, Aspects of Death, op.cil., p. 158, etambém D. von Bothmer, Amazons in Greek Art, Londres,1957, IV, 2 e figuras LI/1 (ánfora antiga com figuras negras,Londres, B 10).

176. Refiro-me aqui às análises de Giulia Sissa sobre o corpo dasmulheres imaginado entre a boca de cima e a de baixo (LeCorps virginal, a ser publicado). Como o pescoço, o colo doútero pode chamar-se aukhén: ver Hipócrates, Doenças dasmulheres, HI, 230 (e também n, 169: trâkhelos, outro nome dopescoço).

177. Hipocrates, Doenças das mulheres, II, 127, 151 (e também110, 126, 201, 203); a propósito do Jugar dessa “afonía histérica” no “sistema hipocrático dos silêncios do corpo”, ver M.G. Ciani em Le Regionidelsilcnzio, Pádua, 1983, pp. 157-172.

178. É notável a esse respeito o tratado hipocrático sobre as Doen-ças das moças, cujas proposições essenciais analiso em “Lecorps étranglé”, op. cit., p. 216.

179. S. Freud, Cinq Psychanalyses, tradução de M. Bonaparte e deR. M. Loewenstein, Paris, 1966, p. 61.

180. Que, de acordo com uma observação que me transmitiu Mo-nique Schneider, nem sempre soube dar a devida importânciaà garganta das mulheres.

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181. É importante nesse contexto a figura de Medéia, quando ela serecusa a voltar a morte contra si mesma; matando em vez dematar-se, Medéia aciona uma lógica diferente, em face da qualé sem qualquer dúvida menos fácil para o espectador contabi-lizar os ganhos do imaginário.

182. Tiro a expressão “interferência” de Vidal-Naquet, em J.-P.Vemant e P. Vidal-Naquet, Mythe et tragédie en Grèce ancienne, op. cit.

183. As coisas acontecem assim ao menos nas prças que, por cau-sa da escolha dos eruditos alexandrinos, chegaram integralmente até nós c constituem o corpus disponível para todos,sobre o qual se resolveu trabalhar; para falar apenas em Eurípides, relembrar-se-á que, a exemplo de Fedra, sua Laodâmiae sua Estcncbcia se suicidavam, nas tragédias perdidas.

184. A famosa kátharsis (Aristóteles, Poética, 6, 1449 b 28), deacordo com a tradução de R. Dupont-Roc e J. Lallot (Paris,1980; ver o comentário a esse trecho, pp. 1S6-193).

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Sobre a Autora

NICOLE LORAUX é diretora de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (His-toria e antropologia da cidade grega).

Livros publicados: L’Invention d’Athènes. Histoire de l’oraison funèbre dans la “cité classique” (Mouton, 1981); Les Enfants d’Athéna. Idées athéniennes sur la citoyenneté et la division des sexes (Maspero, 1981).

Entre seus artigos pode-se mencionar: “La ‘Belle mort’ Spartiate”, em Ktéma, 2, 1977; “Sur la transparence démocratique”, em Raison Présente, 49, 1979; “L’Oubli dans la cité”, em Le Temps de la Réflexion, 1, 1980; “Le Lit, la guerre”, em L’Homme, XXI, 1, 1981; “Héra-klès: le surmâle et le féminin”, em La Revue Française de Psychanalyse, 1982; “Ce que vit Tirésias”, em L’Écrit du Temps, 2, 1982: “Le Fantôme de la Sexualité”, em La Nouvelle

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Revue de Psychanalyse, 29, 1984; “Le Corps étranglé”, em Du Châtiment dans la cité. Sup-plices corporels et peine de mort dans le mon-de antique, École Française de Rome, 1984; “Blessures de virilité”, en Le Genre Humain, 10, 1984.

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