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Lua, lobos e cerrado

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Josber é encarregado de auxiliar um grupo de estudiosos pelos diversificados caminhos do ambiente mato-grossense. No entanto, algo que parecia ser uma lenda regional começa a interferir nos dias, ou melhor, nas noites dos pesquisadores, tornando a previsível pesquisa em uma inesperada aventura. Confrontados com essa nova realidade, terão de enfrentar várias criaturas, e a mais presente delas: os lobisomens. Mesmo em meio ao desespero, surge a paixão entre Josber e Tiacha, uma fabulosa guardiã, que se revelará como uma questão a mais no conflito entre o humano e o sobrenatural, selando o destino de todos.

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André Tressoldi

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André Tressoldi

São Paulo, 2014

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

LUA, LOBOS E CERRADO

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2014ImPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAzIL

DIREITOS cEDIDOS PARA ESTA EDIçãO àNOvO SécULO EDITORA

cEA – cENTRO EmPRESARIAL ARAgUAIA IIAlameda Araguaia, 2190 - 11o andar

Bloco A – conjunto 1111cEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SPTel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

[email protected]

copyright © 2014 by André Tressoldi

coordenação editorial Nair Ferraz

Diagramação claudio Tito Braghini Junior

capa monalisa morato

Preparação André Dick

Revisão Rita costa

Tressoldi, André Lua, lobos e cerrado / André Tressoldi. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. -- (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 14-07391 CDD-869.93

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995)

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2014ImPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAzIL

DIREITOS cEDIDOS PARA ESTA EDIçãO àNOvO SécULO EDITORA

cEA – cENTRO EmPRESARIAL ARAgUAIA IIAlameda Araguaia, 2190 - 11o andar

Bloco A – conjunto 1111cEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SPTel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

[email protected]

Dedico àqueles que mesmo em dificuldades nunca deixam de lutar e permanecem fiéis a seus ideais, no intuito máximo de melhorar a realidade a sua volta, mesmo quando outras pessoas acredi-tam ser totalmente improvável.

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I

Tínhamos adentrado naquele bioma já num percurso apro-ximado de nove ou dez milhas. Não sabia ao certo, pois há muito havia perdido a noção do espaço avançado. Percorríamos o cerra-do em uma Land Rover, que pertencia a um centro de pesquisa universitária. A visão era deslumbrante, tenho de admitir. Os meus olhos se enchiam com a visão da peculiar vegetação do cerrado e suas macegas amarelentas, salpicadas por algumas palmeiras e árvores retorcidas que despontavam em locais inusitados. Que sensação boa era essa! Sem trânsito, sem barulho excessivo de motor. O mato me acalmava! A Land Rover corria a vinte quilômetros por hora; tiráva-mos algumas fotos. Estávamos explorando a região; deveríamos tirar fotografias e catalogar os hábitos de alguns marsupiais do cerrado. Era a pesquisa de doutorado de Eduardo Luz. Eu era um mero aju-dante, no entanto conhecia bem o cerrado. Sempre gostei das aulas de Geografia.

Éramos cinco pessoas: além de mim, o doutorando Eduardo, o motorista Otávio, a professora Olga e Madeleine – sei lá o que era esta, pensei que poderia ser uma aventureira ou pistoleira, po-rém muito simpática e atraente. O problema era que, em relação a Madeleine, o professor Eduardo já marcara bem e não sobrava espa-ço para outros. Apesar de achar que, em alguns momentos, a moça lançava-me um olhar, não sei se sensual, mas no mínimo enigmático.

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O agravante era que há uma semana pesquisando e dormindo

no cerrado, em barracas, a imaginação sensual às vezes perpassava os

pensamentos. Uma vez, inclusive, amanheci melado. Havia sonhado

com Madeleine. No entanto, ao acordar, a dura realidade me emba-

çou os olhos, pois deparei-me ao lado de Otávio e seu ronquinho.

Meu companheiro de barraca estava ali só por dinheiro; trabalhava,

sua função era dirigir. Um tanto estranho, não parecia que esboçava

muitas emoções, e não era prazeroso conversar com ele; as con-

versas que tínhamos se limitavam ao tempo, temperatura do dia e

“puxa, que estrada ruim”. O homem era um enigma. A única coisa

que se visualizava debaixo de sua camisa suada pelo calor era um

crucifixo inseparável. Ele havia dito, não sei como, em um excesso

de conversa, que naquelas bandas do cerrado havia ou aconteciam

coisas estranhas e que não gostava de estar ali. Como todos zomba-

ram dele, nunca mais tocou no assunto. Todas as noites rezava meia

hora; eu admirava aquilo. Neste tempo conturbado, poucas pessoas

no mundo dedicam um tempo à oração. Se bem que no meio do

cerrado, com um manto estrelado, imenso e lindo, a inspiração era

fantástica – quase me via em estado de contemplação, na boca da

noite, quando os grilos emitiam sua música.

– Vamos acordar, moçada! – gritou Eduardo, às seis da manhã,

os grilos ainda cantando.

Que droga, pensei eu. Meu corpo jazia pesado e cansado, ain-

da precisava de mais umas duas horas de sono.

Otávio levantou depressa e tomou banho de gato, logo já esta-

va desmontando as barracas. Naquele dia iríamos nos deslocar a outra

região do cerrado. Enquanto ele desmontava as tendas, Olga e Ma-

deleine preparavam um café, que saiu fraco demais para o meu gosto.– Josber – gritou Eduardo –, chega de moleza, vamos com

isso, o tempo urge. – Não é necessário reproduzir os palavrões que se passaram em minha mente. Só melhorei o humor depois de comer.

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Otávio não reclamava de nada. Isso era irritante. Como podia existir uma personalidade assim? Apesar de reclamações em excesso serem piores.

– Bom dia, Madeleine! Bom dia, professora Olga! – falei.– Bom dia! – responderam ambas, Madeleine, com os olhos

um tanto ainda inchados.– Professor Eduardo, quais são as diretrizes para hoje? – per-

guntei.– Vamos para o Nordeste; ajuste este GPS. – Jogou-o em mi-

nha mão. – Estamos há uma semana no cerrado. Até agora os mar-supiais foram tímidos: quase não apareceram. Hoje estou disposto a varar a noite em busca dos bichinhos.

– Esses bichos são muito esquisitos, professor. Já me esqueci o que o senhor quer com essa pesquisa. Quer provar o que mesmo?

– A correlação entre os marsupiais australianos e os do cer-rado brasileiro. – Não entendia que benefício traria essa pesqui-sa ao mundo, porém não importava, era-me interessante passear pelo cerrado.

Antes que completasse meus pensamentos, irrompeu a pro-fessora Olga:

– É fascinante. Se estiver certo em sua teoria, poderá provar que os marsupiais brasileiros, na verdade, foram transportados até aqui. Mas como?

– Olha, minha teoria ainda não está elaborada, mas, com cer-teza, quanto estiver, você saberá.

– Ai, Eduardo, será que hoje teremos mais sorte? Ontem não encontramos nenhum desses bichos.

– Calma, Madeleine, esses bichos têm hábitos noturnos, por isso, hoje, depois do almoço, descansaremos e mudaremos a estraté-gia. Trabalharemos à noite, teremos mais sorte assim.

– Senhor professor, não gosto da ideia de andarmos por aí de noite, coisas estranhas...

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– De novo essa história. Pare com isso, Otávio! Sei que é da região e deve ter crescido em meio a lendas e misticismos populares, mas já está na hora de se desvencilhar disso. Além do que, quando contratamos seus serviços, não fez nenhuma ressalva a nós. Desse modo, terá que nos acompanhar, quer queira ou não. Advirto-o que, se não, ficará com apenas metade do valor contratado.

Senti que Otávio resignou-se. Estava precisando de dinheiro, devia estar devendo.

– Como é lindo! – exclamou Madeleine ao visualizar, adian-te de uma pequena colina, um ipê-amarelo explodindo em flores e cor, contrastando com o horizonte azul e salpicado de nuvens de algodão.

– É muito lindo – continuou Olga –, adoro a paisagem do cerrado, o bioma é muito rico.

Também me impressionei com a beleza, encheu meus olhos, e até Otávio olhou para o ipê, de rabo de olho. Nos galhos dele se via, a ensaiar seu canto, um sabiá do campo. A Land Rover conti-nuava pelo cerradão, que, de certa forma, era plaino. Estávamos em algum lugar de Mato Grosso, era uma parte que o governo estadual prometera preservar. Em outros lugares, dizia o professor, a soja já havia tomado conta. Entretanto, pelos meus estudos de Geografia e pelo mapa, ainda havia muito cerrado, graças a Deus!

– Olha, olha, Josber! Que lindo, é fabuloso! – gritou Made-leine bem no meu ouvido, depois de haver me puxado pelo braço. Passava ao lado um grande tamanduá-bandeira. A câmara fotográfica de lente potente entrou em ação.

– Rápido, tire fotos! – gritou o professor para mim. Esses gritos repentinos me irritavam. Às vezes pensava que esse professor estava para militar como Madeleine estava para pistoleira, em ordem diretamente proporcional.

Otávio dirigia, impassível, sobre o capinzeiro e onde mais a Land Rover conseguia adentrar com suas rodas traçadas. Paramos na

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sombra de um ipê-roxo. Pausa para almoço; eram já dez da manhã. As comidas pré-cozidas foram abolidas logo no segundo dia de nossa incursão pelo cerrado; resolveram fazer comida de verdade. Se está-vamos no mato de verdade, tínhamos de comer comida de verdade.

Não sabíamos que, naquela parada, haveríamos de nos deparar com uma cena que, para mim, foi o máximo. O sabichão do profes-sor – com seu coturno e roupa à moda dos pesquisadores de filme, com coletinho e tudo – começou a andar pelo capinzeiro, sentou-se por um momento e depois levantou. Nós quatro permanecíamos voltados a ele. Ainda não tínhamos iniciado os preparativos do al-moço. Os olhos castanhos dele brilharam contra o Sol.

Ai ai ai! – gritou, enquanto estapeava a perna e dava contra-ções cômicas e frenéticas.

– O que foi, o que foi? – gritaram as damas. – Formiga, formiga! – bradou o professor. Não resisti, fui dominado por um ataque de risos. Enquanto

ria, o homem, desesperado, tentava se desvencilhar das danadas. Ri mais alto quando desabotoou a cinta e começou a tirar a roupa atra-palhadamente. Arrancou tudo menos a cueca, até que tomou uma picada naquele lugar e gritou, arrancando a cueca. Eu, a essa altura, rolava de rir... Otávio estava com os olhos arregalados e as senho-ritas olhando assustadas. A bunda branca e encaroçada de ferroadas foi mais um motivo para disparar outro acesso de riso; talvez o riso tivesse sido encadeado pela cara cômica do professor se debatendo. Um homem vencido pelas formigas! Porém, depois da situação ter

sido controlada, não escapei de um sermão básico, e tive de me

conter, durante o sermão, quando me lembrava da cena. O professor

ficou possesso de raiva comigo. Madeleine e Olga também riram,

não tanto quanto eu, mas riram bastante, principalmente Madeleine,

entretanto, com Madeleine ele era todo carinho.

Almoçamos naquele dia um feijão tropeiro preparado por

Otávio. Além de motorista, também era nosso cozinheiro. Estava

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delicioso; certamente tínhamos um ótimo cozinheiro. Fizemos uma

sesta rápida, meia hora, para depois continuarmos pelo caminho.

O professor seguiu o dia animado, apesar das formigas.

– Vamos lá, pessoal, estou sentindo, hoje nós vamos ter sorte!

– Vamos caçar coalas! Huru! – zombei.

– Olha o respeito, moleque – repreendeu-me, rindo. A essa

altura, mesmo com as horas de xaropice do professor, de vez em

quando, o humor dava lado.

– Vamos, Otávio, fala um pouquinho, conta pra gente como

é sua vida em Mato Grosso! Você quase não fala. Por quê? – intro-

meteu-se Madeleine.

– Minha vida? Não gosto de falar dela.

– Dela e de nenhuma outra – disse Olga, rindo. – Respeito isso.

– Boca fechada num entra mosquito – disse.

– Não se pode dizer o mesmo de formigas e barras de calça

sem liga – disse Madeleine, tirando uma casca de Eduardo.

– Argh! Nunca vão esquecer disso? Queria ver se fosse com

essa pele delicadinha e branquinha sua, Madeleine.

– Uns têm sorte, outros azar – completou Olga.

– Até você, professora? Tô ferrado mesmo, perdi o respeito.

Quero que saibam que ainda sou o líder desta matilha.

– Obrigada pela “matilha”! – disse Madeleine.

– Não tem de quê. Vamos, pessoal, acho que o tropeiro do Otá-

vio me animou. Hoje estou sentindo... sentindo que teremos sorte.

– Professor, me explica uma coisa, por que os cientistas e

pesquisadores se dizem céticos e incrédulos, mas por vezes falam

em intuição? Isso não seria o mesmo que se crer em alguma coisa?

– Boa pergunta – disse Olga.

– Obrigado – completei.

– Ah, Josber, seu estraga prazer, não estou a fim de estragar

meu ânimo com filosofias.

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– Nossa, professor! Como pode um doutorando dizer isso? –

protestou Madeleine.

– Não foi isso que quis dizer, é que não quero mudar de foco,

a filosofia não é focal.

– Não entendi direito, professor – disse Madeleine.

– É sobre isso que estou dizendo, estamos mudando de assun-

to, de foco, vamos nos focar nos marsupiais, please.

– Ai, please! Que fofo! – zombei.

– Será que não dá para falarmos um pouco a sério? Vamos

nos organizar para hoje. É bom o Otávio nos preparar um café

bem forte, pois os marsupiais gostam de ficar acordados à noite –

sugeriu Olga.

– Marsupiais! Barrr! Não sei por que dar um nome tão boni-

to pra um bando de gambás fedorentos – brinquei.

– Seu ignorante, não são só gambás! – irritou-se o professor.

– Calma, é só brincadeira!

– Só um recado, não brinque com os meus personagens de

pesquisa.

Que professor ignorante, pensei. Todos se constrangeram. Isso

era o defeito dele, muito delicado em certas coisas e sistemático em

outras. Nunca sabíamos o que o agradaria ou não.

Continuamos lentamente na Land Rover. Parecia um clichê

de filmes de safáris africanos, porém sem os animais gigantes. O

motor roncava e o barulho dos pneus esmigalhando a macega era

relaxante. O cheiro do capim semitriturado pelos pneus era ótimo.

As nuvens e o calor... Até o calor era bom, pelo menos para mim.

Gostava de sentir o calor, pois fazia a gente se sentir unido à natu-

reza. Deve ser por isso que odeio ar-condicionado. A vegetação é

inspiradora! Nos cantos de pequenos vales, localizavam-se os cerra-

dões, a variação da vegetação criava um contraste e era interessante.

A vantagem que vejo no cerrado em comparação com outros tipos

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de biomas é a vista e o arejamento que lhes são próprios. Numa flo-resta como a Amazônica, por exemplo, não estaríamos nem vendo o Sol, mas somente a sombra de árvores. Muito melhor é o cerra-do, mistura tudo: céu e vegetação, animais e variações de paisagens e os lindos ipês-amarelos, sem contar as carnaúbas, alguns pássaros elegantes e seus sons, que ajudam a manter uma impressão favorá-vel desse bioma, que é o meu preferido. Dos biomas brasileiros, o segundo predileto para mim é a Mata Atlântica.

A paisagem era notável, não só para mim, que adorava o cer-rado, mas também para os meus colegas. Via-se a admiração em seus olhos. Madeleine se admirava mais; era sua primeira incursão pelo cerrado virgem.

Continuamos conversando e tirando fotos. Recebemos de Eduardo instruções de como nos portar naquela noite. Primeiro te-ríamos de encontrar um local considerado propício, depois montar os equipamentos para filmagem e armar armadilhas para capturar alguns espécimes.

Por precaução contra onças-pintadas, tínhamos, no carro, dois rifles e dardos tranquilizantes. Um seria manuseado por Eduardo e outro por mim. Também havia uma caixa de rojões; o barulho, às vezes, é útil, se bem que deselegante para biólogos e pesquisadores.

Repentinamente o professor gritou para Otávio:– Vire à esquerda, a nordeste! Vamos seguir por aqui!Enxergava-se, a uns três quilômetros, um cerradão e, mais à

frente, uma pequena elevação planáltica que se estendia por um considerável espaço de terra. Do outro lado do cerradão, lá longe, dava para avistar uma macega amarelada, num outeiro.

– É ali! – disse o professor. – É ali que passaremos a noite.– Ali? Depois de deixarmos a caminhonete, provavelmente

teremos de andar a pé uns dez quilômetros – indagou Olga.– Ele deve ser mineiro; tudo é ali para mineiro – disse

Madeleine.

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– Ah, Dr. Eduardo, não acho uma boa ideia a gente pousar lá, ouvi dizer que existem muitos lobos nesta região – disse Otávio.

– Não seja tolo, os lobos-guarás são inofensivos – concluiu Eduardo.

– Não estou falando de lobos-guarás.– Não existem outras espécies de lobos no Brasil.– Também não estou falando desses lobos, mas sim de

lobisomens.Irrompemos em gargalhada, pois o jeito como Otávio falou a

palavra lobisomem era cômico.– Que besteira, Otávio! Um homem de meia-idade acreditar

nessas coisas – disse o professor. – Você já viu alguma coisa?– Não, eu nunca vi, mas o povo fala.– O povo fala demais, quero ver as provas. Existem provas?– O Dr. não lembra dos chupa-cabras e do ET de Varginha?

Pra mim, não passam de lobisomens medonhos.Tivemos um novo surto de gargalhadas.– Tá bom. Não adianta tentar tirar essa crença de você, Otávio.– Nem lembrava mais dessa história de chupa-cabra e ET de

Varginha – falei.– Mas eu não esqueci – Otávio fez o sinal da cruz. – E digo

uma coisa: só vou pousar lá porque assinei um contrato e preciso de dinheiro.

Prosseguimos a incursão. Paramos o veículo onde um jaca-randá do cerrado e um barbatimão faziam sombra. Era o máximo que se podia chegar motorizado, depois teríamos de percorrer o resto do caminho a pé. Enganchamos os equipamentos em nossas costas. Botamos nas costas as pesadas mochilas, os materiais e as bar-racas. Nunca, desde o início da expedição, tivemos de andar muito. O tanto que iríamos percorrer a pé me fustigava com uma leve pre-guiça; também, até aquele momento, só andamos motorizados, mas o professor, em sua intuição e entusiasmo, disse que o insucesso nas

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buscas era exatamente por causa do barulho do motor. Teríamos de fazer à moda antiga, nem tudo era melzinho na chupeta, dizia ele.

As mulheres, igualmente, pegaram algumas mochilas. Olga até que era bem forte, talvez fosse mais forte que o professor; e eu não gostaria de levar um tabefe dela. Aqueles braços rechonchudos po-deriam amontoar qualquer desavisado. Ao contrário, era a delicade-za de Madeleine, cuja silhueta era magrinha, contudo aparentava ser bastante forte, isso porque ergueu a mochila com muita facilidade.

Pegamos todas as coisas: os rifles antionça, os rojões, os fós-foros, as barracas, as câmeras – ainda bem que eram leves – e todos os demais apetrechos; juntamente com a comida, é claro! Protestei, a parte mais pesada tinha sobrado para mim e para Otávio, porém fomos vencidos nas reclamações, pois, dos outros três, duas eram mulheres e o homem era o líder. Vamos brincar de mula, imaginei e sussurrei. Eles me olharam estranho, não acharam graça.

Otávio fechou a caminhoneta, e fomos. No caminho ia o professor com a bússola. Antes, marcou com o GPS as coordenadas do local onde deixamos nosso carro, a fim de não o perdermos quando voltássemos. Logo enfiou o GPS no bolso e abotoou-o. An-dávamos em fila: o professor Eduardo, Olga, Madeleine, eu e Otávio, essa era a sequência. Coitado do Otávio, deveria estar com o dobro de peso que eu carregava. Quem mandou nascer pobre. Maldade, infelizmente verdade! Seguíamos. Teríamos de atravessar parte de um cerradinho, uma mata de capoeira e passar por um pequeno vau. Ainda bem que no cerrado não existem muitos daqueles cipós e vegetação cerrada que impede a progressão. Em contrapartida, o capinzeiro me dava um pouco de receio, tinha medo de pisar em al-guma víbora, apesar de que estávamos com coturnos de cano longo.

Vimos de um lado da trilha um grande vespeiro. Ai, aquilo era doído, já havia experimentado algumas ferroadas de marimbondo, na adolescência. Por isso, passamos por eles com o maior cuidado. No entanto, o professor afirmou que eram inofensivos, desde que

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não os importunássemos. Mesmo assim, eu, Madeleine e Otávio ficamos apreensivos. Percebi, durante a caminhada, que Otávio não temia apenas “lobos homens”. Era um medroso de primeira.

Depois da capoeira subimos uma pequena elevação coberta com capins e alguns cactos dispostos entre a vegetação baixa; era o cerradinho. Após descermos a lomba, entramos em outra capoeira. Dessa vez chegamos ao fundo de um valezinho, e ficamos surpresos com o pequeno riacho de água cristalina, que descia suave. Aprovei-tamos para descansar um pouco, e nos despimos das pesadas mochi-las. Só dez minutos de descanso e o professor já protestou.

– Vamos continuar! Faltam apenas quatro horas para o Sol se pôr e quero chegar ao local antes que escureça.

– Minha nossa – disse Madeleine –, vamos demorar tudo isso para chegar lá?

– Provavelmente. No ritmo que estamos, sim. O capinzeiro alto dificulta em alguns trechos.

– É! – gritei. – Da Land Rover parece tudo mais bonito.– Vamos embora, moçada, vamos acelerar um pouco!– Vá com calma, professor – disse Olga –, eu não posso acele-

rar muito. Essa asma maldita me faz os pulmões pesados.– Tudo bem, Olga, desculpe! Iremos no passinho da vovó.– O senhor está me insultando?– Não, Olga, isso é uma expressão militar, quando queremos

dizer que vamos fazer uma corridinha leve e sem esforço.Olga se sentiu um pouco incomodada, talvez porque estivesse

na crise dos quarenta.Otávio não pronunciava nenhuma palavra. Só fazia gemi-

dos, causados pelo excesso de peso nos lombos; o jambo de sua pele disfarçava a vermelhidão no rosto. Mais meia hora de cami-nhada e estávamos quase todos exaustos, menos eu. Por incrível que pareça, deu-me um surto de bom humor e ultrapassei a fila de andantes enquanto falava que eram moles e não aguentariam

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um dia de sobrevivência verdadeira. O professor, pelo cansaço, já tinha perdido o ânimo para me responder.

Cortando o capinzeiro, disparei na frente. Fui em torno de uns quinhentos metros adiante deles e sentei nas raízes de uma linda ár-vore. Descarreguei a mochila e deitei, depois de ter tomado um gole de água. Até eles chegarem a mim, demorariam uns dez minutos; estavam baqueados. Descansaram meia hora debaixo da árvore. Um pica-pau vermelho emitia o som de picos agudos na madeira dura. Ao longe, avistei, na macega, as costas de uma anta. Logo que nos farejou, saiu em disparada. Aproveitamos para fazer um lanchinho. Nós e as meninas precisávamos ir ao banheiro, uns para fazer o nú-mero um; outros, o dois. A moita mais próxima recebeu a adubação e a ureia, logo retornamos aliviados. Ficamos uma hora nessa espera.

– Professor – disse Madeleine, passando as mãos pelos cabelos compridos e enroladinhos –, parece que não conseguiremos chegar lá até a noite. Andamos muito, e parece que estamos só na metade.

– Devem ser estes pequenos vales que nos enganaram com a distância... Acho que mais duas horas de caminhada chegaremos.

– Está tudo bem com você, Olga? – perguntei. – Parece um pimentão.

– Estou bem, vou conseguir, sou brasileira e não desisto nunca.– Esse chavão é ridículo e hilário! Que vergonha! – completei.– Madeleine, você parece que é a única que não perdeu a

elegância depois do cansaço, parece que você nem sua – obser-vou Olga.

– Suo pouco, mas estou sentindo que minhas pernas estão ensopadas por dentro da calça.

– E a minha cueca deve estar... – dizia eu.– Fedendo – disse Otávio, para surpresa geral.– Então é engraçadinho também? – perguntei.– Não é isso, é que, quando estava andando na minha frente,

você soltou cada federal que Deus o livre guarde.

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Irrompemos em gargalhadas; muito engraçado o jeito como ele falava. Fiquei um pouco constrangido, tinha segurado ao má-ximo, mas aquele feijão tropeiro deve ter feito seu efeito. Droga! Odeio quando acontece isso; pegam no seu ponto fraco.

– Vamos continuar! – exigiu Eduardo.– Está bem, Du – respondeu Madeleine.Achei meigo o “Du”, mas não comentei. Para que comentar?

Não tinha nada a ver com a intimidade dos dois. Professor sortudo!Os quatro continuavam sofregamente. Eu, lentamente, ia

acompanhando o ritmo rastejado por eles. Incrivelmente transbor-dava muita energia ainda; estranhei, achei que me saí uma boa mula de carga.

Do local onde fizemos a última parada, embrenhamo-nos no capoierão. Fomos observando, de vez em quando, alguma vegetação; de vez em quando, pois estávamos cansados e não havia mais aquele ânimo de olhar tudo de belo que víamos. Andamos pelo capoeirão por mais uma hora e meia. Debaixo das árvores e, pelo horário, a luz já estava se tornando penumbrosa. Vimos, durante a travessia, alguns primatas curiosos e ariscos. Otávio ficou receoso.

Saímos do capoeirão. Faltava pouco agora, mais meia hora e chegaríamos ao local onde o professor encasquetara que ha-veria marsupiais; era uma pequena colina coberta de uma relva amarelenta, em razão da seca. Olhávamos para trás, não víamos mais a caminhonete.

Chegamos, paramos e escolhemos um bom local para armar as barracas. Faltavam ainda uns vinte minutos para escurecer, o Sol já estava alaranjado e tecia no céu seu espetáculo particular. Nenhum de nós permaneceu indiferente a ele, mas não podíamos parar; que-ríamos armar as barracas antes do véu negro da noite.

– Vamos lá, pessoas, apressem-se! Precisamos terminar isso rá-pido; não queremos ter de ficar montando barracas no escuro – or-denou Eduardo.

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– Pelo calendário, hoje será noite de Lua cheia, então estará bem claro – retrucou Madeleine.

– Mesmo assim – grasnou o professor –, é melhor terminar-mos logo com isso. Toda vida que é melhor fazer as coisas de dia. Isso não se discute.

– Concordo – disse Olga. – A noite, por mais clara que seja, ainda é turva, e as lanternas e os lampiões podem espantar nossos marsupiais.

– Vamos ver se o senhor está certo e se aqui encontraremos os bichos. Se estiver certo, tiro o chapéu, mas se não estiver, tere-mos andado um bocado à toa – meti-me.

– Veja pelo lado bom – disse Madeleine, sorrindo. – Pelo me-nos você queimou calorias.

– Queimei calorias? Isso não é queimar, eu diria cremar. Pela madrugada! Que que é isso? Suei como porco.

– Bem, professor – interrompeu Olga, que não apreciava muito conversar fora do contexto da pesquisa –, hoje se a Lua aparecer ficará fácil patrulharmos o perímetro em busca de nos-sos amiguinhos.

– Estou contando com isso. Se dermos sorte, esse local vai fornecer muitos subsídios para a minha tese.

Olga havia me dito que imaginava o dia em que ia ser ela quem elaboraria a sua tese. Sonhava com o título, “Doutora”, idea-lizava com letras douradas, acho, pois quando falava expressava um gosto e um brilho no olhar admiráveis. No entanto, eu não via por esse modo; Olga, com mais de quarenta, solteirona ainda e se de-dicando desse jeito aos estudos, para mim parecia se tratar de uma fuga pessoal, não sei se da realidade ou de si mesma. Pensei por um momento e me entristeci; ela nunca teria êxito, pois fugir de si mesmo é impossível. Madeleine era diferente, vivia o momento e era misteriosa nesse sentido. Não dava para saber se era estagiária ou o quê, ou se estava só experimentando a aventura ou se tinha um caso com o professor. Só que, de longe, ela era mais interessante que

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Olga, em vários sentidos, principalmente na aparência e nos modos elegantes e femininos.

Apressamo-nos e montamos tudo o que podíamos. O coitado do Otávio aparentava muito cansaço. Mesmo assim, não foi poupado e recebeu a ordem de preparar a janta. Muito resignado, foi e iniciou os preparativos num pequeno fogareiro que trazíamos na mochila.

Novamente alguém mencionou a Lua cheia, e notei que um medo perpassou pelos olhos de Otávio; noite de lobisomens, devia ter imaginado. Eu pensava: vamos logo com isso, quero jantar. O duro seria ter de passar a noite sem banho, pois eu já estava grudan-do; sorte que durante a noite costumava soprar, de vez em quando, uma leve brisa.

Jantamos uma sopa de macarrão com batatas. Estava bom, mas receava que logo estaríamos com fome de novo. Sopa faz digestão logo! Otávio preparou outro café, e bem forte. O professor avisou que o trabalho iria avançar noite adentro. Pelo que pude ouvir, ele tinha dito que deveria haver muitas tocas de marsupiais no local onde estávamos.

Durante a refeição conversamos.– Foi uma longa caminhada, mas valeu. Olhe como o céu é

bonito daqui! – disse Madeleine.– É mesmo, as estrelas, hoje, estão dando um show à parte –

disse o professor, enquanto uma luz verde do tamanho de uma bola de golfe passou a cem metros de nós.

– Nossa! O que é aquilo, Eduardo? – perguntou Madeleine.– São pirilampos. Eles gostam de sair em noites de calor –

respondeu Eduardo.– São o mesmo que vaga-lume? – perguntei.– Não, os vaga-lumes acendem e apagam, piscando; os pirilam-

pos mantêm sua luz contínua e forte, além do que, são bem maiores.– Nossa, quantos! Que coisa linda – disse Madeleine, apon-

tando o dedo para um local acerca de cem metros à frente.

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Logo um sobrevoou por cima de minha cabeça. Era um es-petáculo sensacional: os pirilampos dançando embaixo, enquanto as estrelas brilhavam acima. Poucas vezes em minha vida vi cenário tão belo e harmonioso. Sem contar ainda com o som dos grilos e, mais longe, dos sapos: uh uh, chu, anru, esses e os mais diversos sons. Re-pentinamente uma coruja piou. Nós levamos um susto, parecia um grito horrível, mas logo o professor deu aquele risinho amarelo de vergonha de ter se assustado e falou que era uma coruja. Explicou até a espécie, disse que era uma suindara e estava a caçar alguns preás ou outros roedores. Eu não tirei sarro do professor e de ninguém com o susto, pois também me assustei; confesso que me arrepiei ao ouvir o grito da ave.

– Professor – perguntei –, de que lado mesmo nós viemos?– Bem de lá, é claro – apontou para frente de si.– Claro que não, viemos de lá – disse Olga, mostrando para

o lado oposto.– Você está enganada – disse Madeleine, suavemente. – Lem-

bra? É pra lá, eu me lembro daquelas montanhas.– Não passamos por nenhuma montanha, não daquele jeito

– eu disse.– Ai, meu Deus, estamos perdidos! – disse Otávio, persignando-se.– Calma, Otávio, temos o GPS e a bússola, estamos salvos –

brincou o professor. – Só que, hoje, não vamos nos preocupar com isso, e sim com nossa pesquisa.

Notei que Otávio pareceu mais aliviado ao saber da bússola e do GPS. Achei também que nenhum de nós tinha o menor senso de direção, pois ninguém precisava mais a direção de onde viemos. Isso era um tanto desconfortável, especialmente agora que a noite cobrira o cerrado. Nós não tínhamos noção de para que lado estava a cami-nhonete, e isso me dava uma sensação de que estávamos em uma es-pécie de prisão a céu aberto, uma prisão sem fim. Porém, a beleza do céu estrelado e dos pirilampos fez desaparecer essa sensação sinistra.

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