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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA CENTRO DE ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UCAN ANO 6 Nº 7 DEZEMBRO DE 2010

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

CENTRO DE ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA

LUCERE

REVISTA ACADÉMICA DA UCAN

ANO 6 – Nº 7

DEZEMBRO DE 2010

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REGRAS DE APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS

A Revista Académica da Universidade Católica de Angola – LUCERE – tem como foco

essencial a reflexão sobre a realidade social, cultural, histórica e económica de Angola.

Os seus domínios particulares de interesses são:

Pobreza e distribuição do rendimento.

Disparidades regionais internas.

Agricultura, desenvolvimento comunitário e reforma agrária.

Cultura, desenvolvimento e modernidade.

Os aspectos históricos, sociólogos e psicológicos do desenvolvimento.

Antropologia cultural e desenvolvimento.

Modelos de desenvolvimento económico.

Transferência de tecnologia e empreendedorismo.

Integração económica regional.

Industrialização e modelos de competitividade.

Administração, Governação e Transparência.

Economia, recursos naturais, ambiente e desenvolvimento sustentável.

Planeamento e gestão estratégica macro e microeconómica.

Direitos humanos e democracia.

População, urbanização e desequilíbrios demográficos.

A Revista académica LUCERE aceita artigos teóricos, sobretudo se apresentarem uma

abordagem interdisciplinar inovadora. No entanto, a sua prioridade vai para as reflexões

empíricas e para os estudos de casos que tenham repercussões sobre os nossos modelos

de crescimento, governação e interacção social. A LUCERE aceita, de igual modo,

artigos curtos que traduzam experiências ou reflexões pessoais sobre as temáticas

anteriores.

A Revista Académica da UCAN é, predominantemente, uma publicação em português,

mas são aceites artigos em inglês e francês.

A política editorial da Revista Académica LUCERE expressa-se pelos seguintes

parâmetros:

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Os artigos são avaliados pelo Conselho de Redacção e pelo Conselho Cientifico.

Os artigos devem ser originais, não se aceitando os que já tiverem sido

publicados noutras revistas.

Uma vez aceite o artigo, o seu autor não poderá retirá-lo sem a anuência do

Conselho de Redacção da Revista.

As opiniões expressas pelos autores dos artigos não engajam a Revista.

Os artigos devem ser remetidos em suporte informático e acompanhado dum

exemplar em papel.

Os artigos devem ter no mínimo 15 páginas e no máximo 25 páginas, em

formato A4, Times -New Roman, tamanho 12, sem espaços entre os parágrafos

e com um espaço para dentro nos parágrafos.

Nesta dimensão devem caber um resumo do artigo, uma conclusão e as

referências bibliográficas.

Os autores dos artigos devem identificar – se no inicio do mesmo com o nome,

profissão e eventuais referências académicas.

As notas de rodapé devem ser indicadas em cada página e devem ser numeradas

em série.

As citações devem ser registadas em itálico.

As referências bibliográficas devem ser feitas de acordo com a indicação autor

data (por exemplo, Dupont 1998,p.10-14).

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MENSAGEM DO 2º. SÍNODO DOS BISPOS E A REINVENÇÃO ÁFRICA

Damião A. Franklin

Reitor da UCAN

I – PRELIMINARES

É um tema aliciante, porque muito actual e oportuno, sobretudo neste ano em

que vários Estados Africanos celebram os seus cinquenta anos de Independência

política.

Actual, porque vários povos africanos e por isso vários cidadãos aguardavam a

expectativa da independência política com a panaceia para as duas vidas e com andar do

tempo veio a frustração senão foi total, pelo menos, em parte, atingiu não uma pequena

franja das respectivas sociedades.

Oportuno, porque uma das razões do segundo Sínodo era para desbravar o

momentoso tema: “África é mas atingida por estes males (cfr.n.4 da MENSAGEM). E

rica em recursos humanos e naturais, mas grande parte do nosso povo continua a

arrastar-se no meio da pobreza e de misérias, de guerras e conflitos, de crises e

desordens. Estas raramente são consequências de desastres naturais, mas devem-se em

grande parte a decisões e acções humanas levadas a cabo por pessoas que não se

interessam pelo bem comum e muitas vezes numa trágica e criminosa cumplicidade de

dirigentes locais com interesses estrangeiros.”

Todavia, não é minha intenção esgotar o assunto. Pretendo apresentar algumas

pinceladas que ajudem a conscientizar os próprios africanos para que em tantas

oportunidades aprendamos a ser protagonistas do nosso presente já vivido e o presente

ainda não vivido, o futuro

Assim, começarei por delinear alguns aspectos METODOLÓGICOS para uma

leitura apropriada dos textos do Magistério da Igreja, seguindo depois a REFLEXÃO

TEOLÓGICA, segundo São Paulo sobre Reconciliação. Paz e Justiça (cfr. Mensagem

do Sínodo) e finalmente, uma espécie de PLANO ESTRATÉGICO de ACÇÃO que a

Mensagem sugere.

II – ACENO METODOLÓGICO

Com que binóculos devemos ler a MENSAGEM? Porque esta metodologia?

Na Igreja Católica, vige bastante, a hermenêutica de continuidade ou reforma e a

hermenêutica da descontinuidade ou ruptura. Por exemplo, foi notória a aplicação desde

princípio no último Congresso Teológico sobre o Sacerdócio, durante o Ano

SACERDOTAL, ano passado.

Esta hermenêutica foi recordada por BENTO XVI no seu primeiro discurso á

Cúria Romana, na apresentação dos votos de Natal, aos 22.12.05.

Na verdade não se põe em causa a continuidade dos princípios mas pode avançar para

uma certa descontinuidade de certas práticas históricas destes princípios, na esteira do

pronunciamento de João XXIII.

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Na abertura do Concílio VATICANO II, aos 11.10.1962 e do discurso de

encerramento de Paulo VI, aos 7.12.1965.

Por conseguinte, o “depositum Fidei” pode e deve ser salvaguardado, todavia o

modo de enuncia-lo pode ser contestado pelos desafios do tempo e do lugar. Os cristãos

devem estar prontos para aquele que as razões da respectiva esperança (cfr. 1Pe.3,15) e

segundo Bento XVI, é “exactamente neste conjunto de continuidade e diversos níveis

que consiste a natureza da verdadeira reforma.

Neste prisma, a MENSAGEM não pode fugir ao mesmo princípio de

continuidade e descontinuidade, como supra mencionado.

III – Assim, quando a MENSAGEM (II parte) aborda a Reconciliação, a Paz e a Justiça

não foge dos parâmetros da Fontes habituais. Senão vejamos:

O múnus episcopal leva-nos a considerar tudo á luz da fé”. Nº 7, recordando

ainda o protagonismo SECAM – Cristo nossa Paz – 2000.

Toda a iniciativa de reconciliação vem de deus, foi amiúde recordado na

Assembleia Plenária (cfr. 2 Cor.5,17 – 20). De igual modo a justiça também é obra de

Deus, por meio da sua graça justificadora em Cristo……

Por outro lado, continua a MENSAGEM-n.8, partindo de S. Paulo:

Deus nos confiou a mensagem da Reconciliação e nos escolheu como

embaixadores de Cristo, exortando por nosso intermédio.

A Igreja em África, quer como a Família de Deus, quer individualmente a nível

dos seus membros crentes, tem o dever de ser instrumento de paz e de reconciliação,

segundo o coração de Cristo, nossa paz e reconciliação, desde que ela própria se

reconcilie com Deus. Ás suas estratégias neste campo, devem ultrapassar as do mundo,

indo para o transcendente, para o mais além” nós vos exortamos em nome de Cristo

reconcilia-vos com Deus “ (2Cor.20), isto é, apelamos a todos que se deixem reconciliar

com Deus. Só assim poderá abrir caminho a autentica reconciliação entre as pessoas,

isto é, sem esta base, dificilmente se combaterá o círculo vicioso da ofensa, das

vinganças, à retaliação e para o efeito a perdão é crucial.

Na verdade, se nós não antepusermos a água do Baptismo ao sangue humano,

tribal, radical, cultural….estas palavras não passarão de” flatus vocis”. “Nemo dat quod

non habet”, já diziam os antigos ….

Como consequência desta autoconsciência, a Igreja deve ser sal e luz do mundo,

para as realidades temporais, socio-económico-culturais-politicas.

IV – PLANO ESTRATEGICO DA IGREJA SEGUNDO A MENSAGEM

A causa da miséria e pobreza, segundo a mensagem, encontra-se em grande nas

decisões e acções humanas com deficit pelo bem comum, pelo desrespeito pela pessoa

humana concreta, pelo dever de solidariedade e por vezes numa trágica e criminosa

cumplicidade de dirigente mancomunados a interesses estrangeiros, favorecendo o

espectro da corrupção e outros desmandos…. (cfr. Nos.5,36-37).

A terapia não pode ser a do desespero (n.6). Apelam a esperança e encorajam as

iniciativas positivas ….”Por isso, apelamos a todos e a cada um para darem as mão se

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enfrentarem os desafios da reconciliação, da justiça e paz em África. São muitos os que

sofrem e morrem, não há tempo a perder (n.6). A África não está abandonada ao

fracasso. O nosso destino continua a estar nas nossas mãos… (n.42)

Tratai África com respeito, com dignidade (n.32), apelando as grandes potências

em consonância com a Encíclica Caritas in Veritate…

Os bispos louvam os esforços em prol da emancipação económica da África com

existência de um governo…infelizmente aí reside o ponto crítico. Continuam a esperar

por uma melhoria geral de Governação geral em África, saudando o caminho de uma

autêntica Democracia. (35).

A própria Igreja é convidada a arregaçar as mangas. Tanto a igreja Universal

(nn.9-13), como a African (14-28). Como não implicar a comunidade Internacional (29-

33), o próprio Continente Africano (34-37), sem descurar a Colaboração ecuménica (38-

41).

A Igreja Universal, a MENSAGEM a solicitude pastoral do Magistério

Pontifício, em questões socio-políticas e sobretudo com o vademecum e recurso

material, o compêndio da Doutrina social da Igreja, vivamente recomendável a todos os

nossos fieis leigos, especialmente aqueles que desempenham altos cargos nas nossas

comunidades (cfr.n.9).

Agradecendo a amizade de Sumo Pontífice pela África e africanos, a Mensagem

agradece igualmente a FUNDAÇÃO SAHEL, combatendo as de certificações do Sahel,

bem como as Representações Pontifícias em 50 dos 53 Países africanos (cfr.n.10).

Não faltaram palavras de apreço pela solidariedade dos responsáveis das igrejas

irmãs além da costa africana, presentes na aula sinodal, bem como por tudo quanto

possam fazer dos respectivos países pelo bem da África. Para isso, seja fortalecida a

relação actualmente entre o Conselho das Conferencias Episcopais de Europa (CCEE) e

o SECAM e as relações fraternas com Igrejas das Américas (cfr.n.11).

Questões atinentes à Emigração merecem atenção, como forma de partilha de

dons, levando a interessar-se pelos descendentes de africanos que vivem noutros

continentes, especialmente, nas Américas (cfr.12).

Como não agradecer a actividade missionaria “ad gentes” par a África de tantos

missionários, religiosos e leigos? Não faltaram e não faltam mártires (cfr.n.13).

Com efeito, a Igreja em África, existente e actuante desde os seus primórdios,

como em Egipto, Etiópia, cuja colaboração com as Igrejas subsaarianas deve ser

salientada, através de envio de sacerdotes Fidei Donum e doutros missionários.

(cfr.n14).

A Igreja em África recepciona o apelo da aula sinodal para uma colaboração

Sul-sul, dando-nos as mãos, como trocando impressões (cfr.16).

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Outro ponto estratégico da acção é interesse e revitalização de SECAM,

instrumento de pastoral orgânica, bem como o COSMAM (Confederação dos

Superiores Maiores da África e Madagáscar) – cfr.n.17.

Os próprios Bispos se comprometem a exercitar a colegial idade efectiva e

afectiva, a comunhão nas suas conferências episcopais, visando também esta

colaboração a nível dos mass média (cfr.n.18.), sem descurar a colaboração ecuménica,

inclusive com os muçulmanos (cfr.38-41)” servatis servandis”

Na verdade, o múnus episcopal seria incompleto se na Agenda prioritária

faltasse uma atenção especial a reconciliação, paz e justiça, o que implica interessar-se

pelo combate à pobreza, o maior obstáculo no caminho da paz e reconciliação. Daí o

papel da formação, mobilizando os seus fieis, de acordo com a sua missão, de os

implicar na planificação, formulação, implementação, avaliação da justiça e da paz.

Porque não implementar também o micro-credito? (cfr.n.19).

Aos sacerdotes, religiosos, pede-se um engajamento “tous azimuts” nos planos

de reconciliação, justiça, e paz, sempre em comunhão, envolvendo todas as pessoas e

sectores da paróquia: diáconos, religiosos, catequistas, leigos, homens e os jovens

(cfr.n.20). Os leigos organizados em pequenas comunidades cristãs, na esteira da

Ecclesia in Africa (n.93). Aos leigos se pede o espírito de oração, sim, mas formação

religiosa sólida, também, atenção especial às bases da Igreja, como Sagrada Escritura e

o CATECISMO da Igreja Católica, o Compendio da Doutrina Social para o tema

específico do Sínodo. Não se descure o papel das Universidades CATÓLICAS e

Instituições similares, para a formação de um laicado católico bem formado,

especialmente de intelectuais capazes de enfrentarem os desafios da hora presente

(cfr.nº.22).

Um protagonismo especial pede aos homens em cargos públicos, como u

exercício de apostolado para o bem comum, deixando de escandalizar o povo e denegrir

a imagem da igreja.

Citam o exemplo do Presidente Julius Nyerere, cujo processo de beatificação “é

um catalisador para muitos dos nossos cristãos na vida pública (cfr.23).

Dado, porém, mas não concedido que assim não fosse, o papel das Famílias

Cristãs é inadiável; seja na defesa da identidade da família cristã e perseverança nos

seus ideias, como também na vigilância em relação a cultura pós – moderna com os seus

ideais virulentos sobre a família…… apelam aos governos o seu engajamento neste

campo, de fedendo s família, cuja procriação responsável seja respeitada e ajudada ….

(cfr.24-27)

As epidemias com SIDA podem ser erradicadas pela via que a igreja apregoa,

contrariamente aos métodos reducionistas dos profilácticos (cfr.31). Apelam às grandes

potências, às multinacionais, no campo de ajudas, a serem mais magnânimos e não a

olharem aos seus interesses de lucro fácil e por vezes fomentando desordens bélicas

para melhor escoamento do material letal. Afinal, a pobreza assim a aumentar (cfr.32)

Como se pode depreender todas estas boas intenções pouco servirão se o próprio

africano não despertar, não assumir, em primeira pessoa, o protagonismo e considerar-

se o actor da sua felicidade, contra a síndroma de dependências (cfr.Instrumentum

Laboris nº. 66).

Apesar de alguns passos, como a integração regional a nível da União Africana,

o Nepad …há uma longa travessia a empreender …(cfr.nºs.34-35). Este Sínodo

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proclama-o claramente, alto e bom som. É tempo de mudar de atitudes para o bem da

geração presente e futuras…

Á GUISA CONCLUSÃO, podemos inferir que a Mensagem do Sínodo espelha

a dinâmica da continuidade da descontinuidade, na medida em que muitas das

afirmações feitas já fazem parte do património antropoteológico do Magistério da

Igreja, acrescentando o ensinamento social de Bento XVI, nas suas Encíclicas IN SPE

SALVI e CARITAS IN VERITATE.

Com o efeito, no centro de tudo está diálogo entre homem africano e seu

CRIADOR, de cuja vida deseja participar e par tal, se impõe uma mística de

centralidade a pessoa humana, como principio, meio e fim de tudo, seja social, político,

económico, cultural, neste mundo globalizado….

Luanda, 2 de Novembro de 2010.

Referências

Vaticano II, Secretariado Nacional de Apostolado de Oração, Braga 1967.

CEAST, Mensagem Pastoral – O nosso viver e agir em Cristo – Dimensão Social, 20 de

Novembro de 2009.

Maurice Cheza, Le Synode Africain, Karthala, Paris 1996.

Sachs Jeffrey, The End of Poverty, Penguin Books 2006

Tati R. Crise Africana e processo de democratização em África, Academia Alfonsiana,

Roma 1998.

Imbamba J. Manuel, Agenda Social: As políticas tendentes à valorização da Pessoa

Humana, in Revista Lucere 2004 (UCAN), pp.83-93.

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Estratégias comerciais e hegemonias resultantes

na economia mundial contemporânea

Julien David Zanzala

(PhD, Docente da UniPiaget)

[email protected]

Resumo: O presente artigo pretende compreender as estratégias comerciais desenvolvidas pelos protagonistas do comércio mundial e as hegemonias resultantes, apesar das tentativas da OMC de submeter todas as economias às exigências do comércio livre, para um comércio internacional mais equitativo. Fundamentou-se nas mais recentes análises da economia internacional, geografia económica, integração regional e teoria do comércio internacional. Os resultados da análise apontam um ressurgimento do proteccionismo, contrapondo-se aos princípios da globalização, uma aposta nas alianças estratégicas e na regionalização e uma hegemonia das principais economias do mundo, vastos mercados solventes com um forte avanço tecnológico nos sectores da economia de ponta. Palavras-chave: Economia mundial, Estratégias comerciais, Hegemonias comerciais.

Introdução

As estratégias comerciais observadas na economia mundial contemporânea, de acordo com De Medeiros (1998), surgem para diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas; estimular os investimentos e as trocas com países terceiros; perturbar os oligopólios existentes, mudando as regras do jogo na luta pela vantagem competitiva; reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo; introduzir-se no mercado internacional, obtendo uma quota crítica; aceder aos canais privilegiados, na linha da segurança concedida pelos acordos comerciais; ultrapassar as decepções e dificuldades encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais; amortecer as tensões políticas e forjar uma cooperação política através do elo comercial; igualizar as vantagens do jogo, entre os principais parceiros comerciais; diminuir a supremacia económica de um parceiro comercial grande e poderoso; lançar a cooperação multilateral.

Segundo o mesmo autor, os acontecimentos dos anos 90 que alteraram a estrutura

política e económica do planeta, nomeadamente com o desaparecimento da União Soviética e surgimento de novos países que se pretendem viáveis, redefiniram novos espaços. O observador das relações internacionais apercebe-se de uma dinâmica diferente, assente numa extrema mobilidade internacional de factores, com rendimentos de escala crescentes e inseridos em mercados de concorrência imperfeita.

Tem sido habitual dividir geopoliticamente o espaço mundial em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Várias são as diferenças entre os dois grupos. Enquanto os indicadores económicos e sociais do primeiro grupo são considerados equilibrados os do segundo grupo piscam vermelho ou são alarmantes. A eficiência das instituições, a distribuição da renda, o nível de renda e o tamanho do mercado interno, a capacidade tecnológica, o padrão de internacionalização da economia, a estrutura financeira e outras tantas características podem ser citadas entre as diferenças. Este facto leva a que muitos indicadores sejam artificialmente sobreavaliados e de difícil comparação. No entanto nenhum espaço económico fica imune a perturbações originárias de outras áreas, ainda que distantes. Daí as constantes recomposições intra-regional, inter-regional e transnacional, com base nas políticas de

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cooperação. Daí também as estratégias comerciais dos governos para favorecer o desenvolvimento de elos económicos internacionais com os países geograficamente vizinhos.

A questão que se debate consiste em indagar se estes blocos regionais prejudicam ou

não o sistema comercial multilateral. Os objectivos gerais desta comunicação são caracterizar essas estratégias comerciais e

identificar as suas principais consequências, que são as hegemonias constituídas no espaço económico mundial. Nos objectivos específicos procura-se apresentar uma síntese do estado actual dos conhecimentos a respeito das estratégias comerciais dos espaços económicos mais relevantes; enquadrar as mesmas estratégias na análise económica de formação de blocos regionais ou de busca de vantagens comparativas; comparar os indicadores básicos dos espaços económicos mais relevantes para compreender melhor as hegemonias constituídas na economia mundial contemporânea.

Quadro teórico da análise

O arrimo teórico da análise económica das estratégias comerciais e de hegemonias constituídas na economia mundial contemporânea está presente num conjunto de disciplinas tais como a economia internacional e integração regional, a teoria estratégica do comércio internacional, a geografia económica e a teoria da localização que leva ao paradigma das deslocações espaciais da actividade económica, na permanente busca de vantagens comparativas, sempre transitórias. As referidas estratégias incidem sobre a constituição de conjuntos regionais quando procedem de uma vontade política dos governos no sentido de favorecer o desenvolvimento de elos económicos internacionais com países geograficamente vizinhos, ou transnacionais, ligadas à ideia da internacionalização generalizada dos mercados adentro da política livre-cambista. Henri Bourguinat (apud De Medeiros) invoca 3 séries de razões explicativas dessas estratégias. O bloco regional seria, para os pequenos países, uma via de introduzir-se no mercado internacional, através da quota crítica; seria uma via de acesso aos canais privilegiados do “vizinho”, na linha da segurança concedida pelos acordos comerciais; seria, para os grandes países, uma via de ultrapassar as decepções e dificuldades encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais. As disputas no comércio mundial

O comércio internacional, principal fonte de divisas nas economias modernas, aparenta-se com frequência, na opinião de Samuelson e Nordhaus (2005), com a perspectiva de um conflito darwiniano de ganho nulo, pela partilha de mercados, de lucros e de recursos vitais. O multilateralismo mundial, cujo símbolo é a Organização Mundial do Comércio, não consegue obstar à aplicação de medidas de salvaguarda, em particular na agricultura ou no sector têxtil. Desde modo, apesar das perspectivas abertas pelas negociações multilaterais, a chave do desenvolvimento reside na capacidade dos diferentes países para desenvolver os seus atractivos e, acima de tudo, para oferecer, de preferência em espaços económicos mais alargados, um potencial de mercado capaz de atrair os investidores. Alves da Rocha (2008) nota, dentre as tendências observadas ao nível do comércio mundial, que ao mesmo tempo que se desenvolve o comércio entre países com níveis semelhantes de desenvolvimento, assiste-se, também, a uma elevada concentração do comércio entre países industrializados e nos produtos transformados, em desfavor das trocas com os países subdesenvolvidos. Assim, os mais importantes protagonistas encontram-se influenciados, em grande medida, por disputas que são muito difíceis de resolver. Por exemplo, muitas empresas ou indústrias

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americanas têm estado envolvidas numa série de disputas com as japonesas. Entre outras coisas, uns acusam os outros de não autorizarem o acesso dos mercados nacionais e fazer dumping, isto é, vender a um preço inferior até talvez abaixo do custo. O que leva uns a tomarem certos tipos de acção de retaliação contra outros países tais como suspender ou retirar concessões comerciais, impor tarifas ou outras restrições às importações dos países envolvidos. O recente ressurgimento do proteccionismo

Nas relações comerciais contemporâneas, observa Alves da Rocha (Rocha idem), o livre comércio é mais excepção do que regra, tanto nos países subdesenvolvidos, como nas economias industrializadas. Normalmente, os governos têm tendência a intervir sobre o grau de abertura e liberdade de comércio com o estrangeiro com o objectivo de favorecer o produtor nacional, face a concorrentes mais competitivos e eficientes. Este processo é denominado protecção. Os economistas têm tendência para argumentar que o livre comércio é a política que melhor serve os interesses da sociedade como um todo. Assim, na sua maioria aplaudiram a descida das tarifas na década de 60 e no início da década de 70 e olharam com desaprovação a onda de proteccionismo crescente durante a década de 80. À medida que a Europa Ocidental e o Japão se iam tornando concorrentes mais fortes, muitas indústrias americanas começaram a fazer lobby no sentido de introduzir quotas e tarifas mais altas e de exigir a protecção do governo federal em relação às importações.

De acordo com Alves da Rocha (idem), o proteccionismo é ainda uma realidade com a

argumentação básica em sua defesa que radica na verificação de falhas no mercado que justificam a intervenção do Estado e da sua política de regulação. Segundo o mesmo autor, os seus defensores advogam o emprego duma política comercial estratégica como medida de protecção à indústria nascente, de redução do desemprego, da substituição das importações e da diminuição dos salários. Existem cinco (5) grandes formas de proteccionismo que importa conhecer: o proteccionismo ofensivo; o proteccionismo defensivo; o proteccionismo orçamental; o proteccionismo para aproveitamento de recursos e o proteccionismo natural.

Pese embora o GATT (General Agreement on Tarif and Trade) e a Organização Mundial

do Comércio (OMC) terem encetados esforços de liberalização, os obstáculos tarifários à livre circulação de mercadorias é uma evidência. A protecção pode dar-se por meio de diversos instrumentos de intervenção pública sobre o comércio exterior, no seu conjunto denominados de política comercial. As formas de protecção habitualmente utilizadas são: as quotas de importação; os controlos cambiais (restrições de pagamentos); a proibição de importações; o monopólio estatal; as leis de compra de produtos nacionais; o depósito prévio à importação e as barreiras não tarifárias.

Durante a segunda metade dos anos 80, os japoneses efectuaram grandes investimentos além-fronteiras e não deixaram de se manter bastante fechados aos investimentos estrangeiros. As empresas japonesas, entre 1986 e 1991, canalizaram 310 mil milhões de dólares americanos de investimentos para os Estados Unidos, 56 para a Europa, 47 para a Ásia e 40 para América Latina. Simultaneamente, os investimentos directos estrangeiros no Japão não passaram dos 18 mil milhões de dólares. As alianças estratégicas

Apesar do seu poderio político, económico e militar os mais importantes protagonistas nem sempre podem ditar leis ao resto do mundo. Porque, na verdade, eles têm uma influência extraordinariamente reduzida sobre as políticas económicas dos outros países. Samuelson e

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Nordhaus (idem) afirmam que uma observação minuciosa revela que os países na segunda metade do século XX abandonaram a luta encarniçada e criaram instituições que servem a causa comum do crescimento e da justiça, na arena internacional. Assim, os blocos regionais para facilitar o trânsito de mercadoria, serviços e capitais são hoje em número considerável. A partir dos anos 90, foram vários os acordos assinados ou reactivados. Mesmos os países em desenvolvimento denotam um interesse crescente pela constituição de blocos regionais, pois estão perfeitamente cientes do risco de exclusão que paira sobre eles, se não reforçarem a sua atractividade enquanto mercados (Desgardins e Lemaire;1997). A constituição de conjuntos regionais pode tomar a forma de zonas de comércio livre, uniões aduaneiras ou outro qualquer acordo de comércio preferencial. Na base da institucionalização da regionalização, estão forças políticas enquadradas nos poderes do estado, tendo em vista diminuir obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas. No plano de facto, a regionalização é encarada como um fenómeno económico resultante das mesmas forças microeconómicas que aparecem na globalização, com o objectivo de impelir a área na via do crescimento, estimulando os investimentos e as trocas com países terceiros. A regionalização visa reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo. Com a unificação da Europa, as empresas estão ocupando um mercado mais amplo, fazendo até fusões com empresas de outros países deste bloco. E com essa unificação, também o conceito de cidadania mudou, já que um belga pode fazer um seguro na Itália, um alemão pode comprar um carro inglês do mesmo preço que é praticado neste país e um espanhol pode abrir a filial de sua firma na Holanda. Um porém nesta unificação é que os países que a compôem, devem dar prioridade aos produtos que são fabricados dentro da união, como é o caso da Grã-Bretanha que deixou de comprar lã da Austrália e Nova Zelândia para dar este direito aos italianos e dinamarqueses, mesmo se a preços mais elevados.

Com Timbergen, a Teoria da Integração Económica Internacional procura equacionar

as maiores vantagens do agrupamento, as quais se podem sintetizar da seguinte maneira:

- Aumentos de produção decorrentes da divisão internacional do trabalho e da especialização internacional, função das vantagens compradas; - Aumentos de produção face ao aproveitamento das economias de escala; - Melhoria das razões de troca da área face a países terceiros; - Mudanças forçadas na eficiência, geradas pela pressão concorrencial; - Mudanças induzidas pela integração e decorrentes de avanços tecnológicos, afluxo de capitais e diferentes velocidades de circulação de factores.

Em suma, os mercados regionais estão melhor integrados, sobretudo entre países

industrializados ou em vias de industrialização, dando, contudo, origem a um certo número de avanços que despertam o interesse da maior parte dos países do mundo. As áreas mais atrasadas podem receber apoio por parte dos outros integrantes para que haja desenvolvimento no espaço económico.

Evidências empíricas das hegemonias resultantes das estratégias

É útil estabelecer a comparação de situações a fim de visualizar, como síntese, as tendências que forjaram os novos espaços económicos, institucionalizados ou não, sob o pano de fundo da globalização. No quadro a seguir, é perceptível a tendência de maior relevo nas trocas intra-zonas. Mais precisamente, existem espaços económicos que dominam e efectuam cada vez mais trocas internas, Europa (72,8%), Ásia (50,1%) e América do Norte (49,8%), em 2009. O comércio europeu, asiático e norte-americano com África, Médio Oriente e CEI é muito reduzido.

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Quadro nº 1: Origem e destino de produtos do comércio mundial em 2009

Destino

Origem de produtos

América do Norte América Central e do Sul

Europa CEI África Médio Oriente Ásia

América do Norte

49,8 8,1 18,1 0,8 1,7 3,0 18,4

América Central e do Sul

28,2 26,5 20,2 1,5 2,8 2,0 16,8

Europa 7,4 1,5 72,8 3,7 2,9 2,5 7,5

CEI 5,1 1,4 57,7 19,2 1,5 3,6 10,9

África 21,0 3,3 39,1 0,3 9,6 2,5 20,4

Médio Oriente

11,4 0,7 12,3 0,7 3,6 12,0 55,7

Ásia 17,8 2,9 18,4 2,5 2,8 4,5 50,1

Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)

Como foi dito, essa regionalização observada é encarada como um fenómeno económico que visa diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas, reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do mundo, e impelir a área na via do crescimento, estimulando os investimentos e as trocas com países terceiros. Para perceber melhor como o comércio mundial é desequilibrado apresenta-se os dois quadros seguintes.

Quadro nº 2: Evolução das Exportações mundiais de mercadorias por regiões

1948 1953 1963 1973 1983 1993 2003 2008

América do Norte

28,1% 24,8% 19,9% 17,3% 16,8% 18,0% 15,8% 13,0%

América do Sul e Central

11,3% 9,7% 6,4% 4,3% 4,4% 3,0% 3,0% 3,8%

Europa 35,1% 39,4% 47,8% 50,9% 43,5% 45,4% 45,9% 41,0%

África 7,3% 6,5% 5,7% 4,8% 4,5% 2,5% 2,4% 3,5%

Médio Oriente

2,0% 2,7% 3,2% 4,1% 6,8% 3,5% 4,1% 6,5%

Ásia 14,0% 13,4% 12,5% 14,9% 19,1% 26,1% 26,2% 27,7%

Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)

Quadro nº 3: Evolução das Importações mundiais de mercadorias por regiões 1948 1953 1963 1973 1983 1993 2003 2008

América do Norte

18,5 20,5 16,1 17,2 18,5 21,4 22,5 18,1

América do Sul e Central

10,4 8,3 6,0 4,4 3,8 3,3 2,5 3,7

Europa 45,3 43,7 52,0 53,3 44,2 44,6 45,0 42,3

África 8,1 7,0 5,2 3,9 4,6 2,6 2,1 2,9

Médio Oriente

1,8 2,1 2,3 2,7 6,2 3,3 2,7 3,6

Ásia 13,9 15,1 14,1 14,9 18,5 23,6 23,5 26,4

Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)

Os quadros acima revelam que as trocas comerciais põem os espaços económicos

numa disputa gladiatória assimétrica. Os principais importadores, a Europa e a Ásia, são os principais exportadores, apesar da tendência de África e América do Sul e Central recuperar, nos últimos anos, um pouco dos prejuízos registados nos anos anteriores.

O desequilíbrio entre o poder económico e financeiro dos espaços económicos

dominantes e o resto do mundo é enorme. Como os vencedores exploraram este desequilíbrio é uma questão essencial bastante discutida nas cimeiras. O poder de comercialização que

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estes têm leva os países exteriores a esses espaços a uma situação difícil. Surgem assim outros blocos comerciais de dimensões mais reduzidas, que apresentam um comércio interno em crescimento. Este jogo prejudica realmente a supressão de barreiras ao comércio mundial.

Para terminar, é correcto lembrar com o Dr. Kevin Watkins da Oxfam que

“tradicionalmente, o comércio internacional é visto como uma actividade exercida entre nações. Na realidade, os fluxos de comércio são dominados pelas poderosas empresas localizadas esmagadoramente na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão”. A concentração assistida do comércio a nível mundial constitui uma oportunidade para essas poderosas empresas conservarem bases regionais internas enquanto continuam a expansão a nível global. Assim a nova prosperidade global preconizada torna-se uma realidade para uma esfera muito limitada da economia mundial.

Com esta reflexão, tornam-se evidentes os limites funcionais das relações económicas e financeiras internacionais tais como preconizadas nos manuais de Economia e ao mesmo tempo das instituições reguladoras dessas relações. No entanto permanece o debate entre os advogados de um comércio livre, impulsionador da actividade económica e criador de riqueza entre as nações e os oponentes que alegam ter sido um factor de crescimento de problemas que o mundo menos precisa: concorrência implacável e interminável, ameaças ao ambiente, propagação desigual do desemprego, crescente poder dos oligopólios transnacionais e alargamento das diferenças entre ricos e pobres, tanto dentro de cada sociedade, como entre as várias sociedades. Referências De Medeiros, E.R. (1998). Blocos Regionais de integração económica no mundo. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Lisboa. Lang, T; Hines, C. (1994). O novo proteccionismo. Protegendo o futuro contra o comércio livre. Instituto Piaget. Rocha, M.J.A (2008). Introdução à economia internacional e integração regional. Universidade Católica de Angola. CEIC. Faculdade de Economia e Gestão. Samuelson, P.A; Nordhaus, W.D. (2005). Macroeconomia. 18ª Edição. McGrawHill, Madrid. Desgardins, B; Lemaire, J.P. (1997). Desenvolvimento internacional da empresa. O novo ambiente internacional. Instituto Piaget. World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0).

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MODUCAN, a policy oriented macro-economic model for Angola

Jan Isaksen and Line Skaldebø (The Chr Michelsen Institute, CMI, Norway)

Alves da Rocha and Milton Reis (Centro de Estudos e Investigação Cientifica, CEIC, Angola

1. Introduction

Two principal features of a macroeconomic model are that it provides a

statistical description of a country’s economy based on defined national accounts data

and that it contains accounting identities, technical and behavioural equations which

when combined with exogenous (determined outside the model) variables may be used

to project endogenous (determined inside the model) variables like GDP, inflation,

employment etc.

It is an important feature of model building that the work that goes into the

model imposes discipline on economic analysts and policymakers and offers a

systematic opportunity for learning about the economy in ways that encourages realism

in policy making. The necessary work with data and mathematics needed for the

building process stimulates capacity building in economic policy institutions. The

intensive use of national accounts, on which macroeconomic models are based, leads to

transparency in economic policy and contributes to better overall governance.

In Angola, economic modelling is only in its beginning stages. As far as we are aware

the only model with a broad coverage is the MODANG used for a number of years in

the Ministry of Planning and the more recent model of the petroleum sector used by the

Ministry of Finance. Modelling has until recently not taken place in universities or

other research institutions in Angola.

This brief article gives an overview of the efforts to establish a macro economic

model for Angola that is now underway at CEIC-UCAN. After a brief review of various

types of macroeconomic models in Ch. 2, we point to some modeling experiences on

the African continent and elsewhere (Ch. 3). Ch. 4 describes important features around

the start of the CEIC-CMI cooperation and the idea of a model. Ch. 5 dwells at some

length on the definition of desired characteristics of the model to be applied to Angola

and Ch. 6 then describes the principal features of a Mundell-Fleming type of model. We

end with a short review of the ongoing work and in Ch. 8 a summary of what practical

advantages one might expect to draw from the construction and use of of the model.

Chapters 1 to 3 of the article draw heavily on a study of macro modeling in Africa by D.

Årnesi.

2. Types of macroeconomic models

For models used in Africa one may distinguish between two main types. Those

that focus on Short and Medium term Stabilization and those dealing with Long term

Growth and Poverty Reduction. Each of these may be classified into sub categories. For

short and medium purposes key types are the macro-econometric IS-LM, based on

established (Keynesian) macroeconomic theory. Such models deal with the effect of

short/medium term demand in the economy and are mainly used for guiding fiscal and

monetary policy as well as certain other features of public sector policy. Also with a

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short term focus the IMF Financial programming models link targets for growth and

inflation with the size of public deficit. Such models are often used as the basis for

dialogue with IMF on fiscal and monetary policies

For longer term concerns and a wide variety of “what-if” analyses as e.g.

structural change issues Computable General Equilibrium (CGE) models may be used.

Because of their extremely high data requirements they are not widespread in use in

Africa. Also addressing longer term concerns are the World Bank RMSM-type models

that has been used to calculate the level of investment, imports and external finance

needed to achieve a targeted GDP growth rate. It has been found helpful for guiding the

assessment of finance requirement, loans and grant aid. The data requirement is

substantial but as used by the World Bank this type of model is often based on “similar

countries’” data and coefficients as local data are often not available.

3. Macroeconomic models elsewhere

A number of theoretical models for various African countries and for Africa in

general have been constructed by academics. Such frameworks tend to be reported on in

academic journals or may be found in libraries of doctoral theses. The type of model we

are discussing here is actually used for policy analysis by the authorities or policy

institutes in various countries and are much more difficult to find information about.

The below information is based on Årnes, 2006 and our own experience.

Angola's macroeconomic model resides in theMinistery of Planning. It is a

macro consistency model with some hundred equations and provides the Angolan

government with macroeconomic projections of GDP (global and sectoral level) for the

medium term.

Zambia has been constructing a model dealing with public financial

management, budgeting and economic policy. The model will aim at improving policy

planning and “translating” the poverty reduction plan into budget allocations and

concrete plans.

A macro model in Uganda is similar to the one in Zambia. Ethiopia’s

macroeconomic model resides in the Ministry of Finance and Economic Development.

The stated objective is to introduce tools that help systematically manage the economy

aimed at efficiently utilizing available resources. There is collaboration with the Micro

Macro Consultants (MMC) based in the Netherlands

In Mozambique a number of models have been developed over the last 8 – 10

years but the Ministry of Finance has not consistently used any of them. The technical

assistance programme in the Ministry’s think tank, the Gabinete de Estudos, has

consisted of two components, one for economic policy issues and one more

academically research oriented models building exercise.

In Malawi, the three main policy institutions, Ministry of Economic Planning

and Development (MEPD), Ministry of Finance (MoF) and Reserve Bank of Malawi

have cooperated to develop a new macroeconomic model. The National Statistical

Office (NSO) is also participating. The model, will be truly independent of the IMF and

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offer alternative projections. Developed in cooperation with Statistics Norway it was

first used for training, but later for policy purposes.

Botswana has since the mid-seventies run a model called MEMBOT as a basis

for the annual budgets and medium term National Development Plans (NDPs),

including the triennial revision of NDPs. Developed first by the Macro-Unit of the

Ministry of Finance, the Botswana Institute for Development Policy Analysis (BIDPA)

has later been involved in developing and maintaining the model structure. The model

is now about to be complemented by a less complicated structure.

Tanzania has its own macroeconomic model that is being updated and used

regularly in the policy process. The model is called MACMOD has been in operation

for a number of years and was interestingly long operated by the Presidents Office and

not the Ministry of Finance. Tanzanian government representatives maintain that the

model is extensively used and has a good deal of indirect and direct impact on policy

and understanding of developments.

In Norway economic models have been used since the 50s. The tradition in

Norway is that the Research Department of Statistics Norway builds and maintains

models which are used by various departments and which can also be run for any other

organisation at a fee. There is a multitude of available models:

• Population models

– BEFREG - Population and migration model

– MOSART - Long term projections, labour force education and social

security (dynamisk microsimulation)

• Energy market models

– NORMOD-T - Simulation of nordic power market

– PETRO - dynamic long term model on global petroleum markets

• Municipal and regional economy

– MAKKO - employment in municipal services

– KOMMODE - municipal budget allocation

– REGARD - projections of employment, labour force, GDP, investment

by region.

• Tax models

– LOTTE - microsimulation of revenue and distributional effects of

changes in the tax system

• Macroeconomic models

– KVARTS – disaggregated model for short/medium projections and

policy analysis based on quarterly data

– MODAG – disaggregate model for short/medium projections and policy

analysis based on annual data

– MSG – general equilibrium model foruse in long term projections of

changes on policies in terms of e.g. Taxation, trade, industrial policy,

environment and energy.

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4. The start of the CEIC CMI modeling cooperation

The cooperation between the CEIC and CMI started in 2006 although contact

between CEIC and CMI researchers predate this. The first annual programme in 2007

did not have a focus on macroeconomic issues but included a study of the government

budget system as well as some training in statistical methods. Under the preparation of

the triennial cooperation programme 2008-2010 both institutions agreed that it would be

important to start the construction of a macro model. The lack of or ageing state of

home grown models in Angola was one reason for the need of a new model.

On the Angolan side an advantage was the prior experience in building as well

as running the MODANG. This was not only an advantage in the technical sense. It

also meant that CEIC had considerable knowledge of the administrative structures

“around” the model itself that is of key importance for the use of quantitative methods

and modelling to good effect in practical policy making. A simple macro model was

also used for training purposes and a database was being built up to furnish the model

with appropriate information.

Similar practical experience was found on the CMI side where researchers had

been involved in model building and macro policy application in several African

countries as well as in Norway. Successful policy modelling with a CMI input e.g. took

place in connection with the MEMBOT and the MACMOD as mentioned above.

The more recent MACMOD in Tanzania has reportedly had considerable

positive indirect impact on Tanzanian economic policies during the last decade. During

a period MACMOD has been a training tool and probably boosted self- confidence

among Tanzanian government economists in their discussions with IMF and the World

Bank. Tanzanian Government representatives emphasize that the increased focus on

national planning exercises such as the PRSP has increased the understanding for the

usefulness of consistent macroeconomic planning and the use of models as tools.

5. Defining the needs

In the project proposal for the MODUCAN macro modeling project which was

part of the CEIC-CMI institutional cooperation 2008-2010 the overall objective was to

contribute to the use of macro modeling for policy purposes in Angola and thus

contribute to sound economic development.

More specifically the project aimed to

Introduce CEIC and UCAN personnel to the use of national accounts and

models for policy research

From the existing base at CEIC develop a macro model and build CEICs

capacity in national accounts and modeling

At an early stage, construct a simple modeling framework for the improvement

of economic projections for the Relatório Económico.

If desirable from the side of the Ministries of Finance and Planning as well as

the Bank of Angola, involve their personnel in the early limited modeling

exercise with a view to commence a discussion about the possibility of an

Angolan planning model.

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Involve the INE in the exercise from the start and thereby provide an impetus for

improvement of economic statistics.

It was found that CEIC and the Government of Angola would be interested in

analysis of the results of public policy at the macro level. Also, it was thought that a

medium term model (up to five years) would be most useful although many of the

problems of the Angolan economy will have to be considered in the longer term,

perhaps as a supplement to the main macro model. The policy analysis character of the

desired model would mean, in principle, that the relevant government controlled

variables would be exogenous. A main government objective was the non inflationary

financing of the government budget. In that connection it would be important to include

bond and TB financing as well central bank financing of the treasury and also interest

and principal payments on government debt.

Analyses of and forecasts for the “true” macro variables, like GDP, total

investment, savings and consumption, imports, exports, exchange rates, prices etc are

main objectives for a macro model. However, most useable macro models comprise a

certain amount of sectoral analysis and forecasting. It was found that some sector

models could be built simultaneously with the main model, others more likely as add-

ons, perhaps at a later stage.

Firstly, the petroleum sector ought ideally to be divided into three sub-sectors:

exploration, production and processing. A link to the petroleum sector model of the

Ministry of Finance was proposed. The choice of production sectors for MODUCAN

would need to take into account the policies of developing the non-petroleum industries

as well as the enormous influence of the petroleum sector. One aim should be to trace

the generation of petroleum wealth and the flow of petroleum generated resources

through the financial sectors and government.

Secondly, the size and diversity of government investment in Angtola justifies

an ancillary model on major public sector projects. (Loosely estimated, government

investment might be 1/3 of GDP at times.)

Thirdly, two key sectors within the government ambit are health and education.

It would be of considerable value to go into some detail on government health and

education expenditure, particularly if it could be linked to indicators for public service

levels and effects in the health and education sectors.

Fourthly, non-oil sector production is likely to be of increasing interest in

government’s efforts to step up these sectors’ contributions to production and

employment. The budgetary effect on prices, exchange rates and the degree of

‘crowding out’ of the private sector are of main importance to diversification. Indeed

the key problem in oil ‘soaked’ economies is to diversify. Therefore, growth and

development in the non-oil sectors will be important indicators for the realization of

diversification objectives through government budget and associated macro policies

At the starting point it was not clear what data would be available for a macro model.

Both IMF and the World Bank pointed out that much data is lacking and that existing

data sources (INE, Bank of Angola and WB/IMF) differ considerably even with regard

to key magnitudes like the GDP. In some cases of missing data it will be necessary to

“construct” data.

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After a good deal of consideration of the pros and cons of various model

frameworks it was suggested that the MODUCAN be built basically on a short to

medium term framework, the so called ‘IS-LM Bop’ framework, also called the

Mundell-Fleming model. The chapter below will give an overview of the principles of a

Mundell-Fleming model. In the actual model built for use in Angola a number of

features are however added.

An orthodox ‘IS-LM Bop’ framework would seem to have a weakness in

ignoring the possibility that developments over a five year period could increase the

potential output by having positive effects on technology labour and - not least for

Angola - capital. This weakness was amended by including the possibility of an

increasing trend in potential output, based on data and forecasts for capital

accumulation and the labour market. In addition, analysis of sectoral output as

mentioned above would contribute more depth in the macroeconomic projections for the

medium/long run. This in turn would pose challenges for consistency since the sectors

analysed would not necessarily, in the aggregate, be in line with the results of the core

macro model. The experience from the MACMOD in Tanzania which showed that this

could be solved by an input output structure was not relevant since I/O data are not

available in Angola. The approach would be either to use “synthetic” and coefficients

from other countries or an iterative “muddling through” method to equate the macro

block output to the relevant aggregates from the sector block.

It can, and we believe, will be argued that the Keynesian IS-LM framework is

concerned only with short to medium term business cycle fluctuations and how fiscal

and monetary policy can be used to handle these. The answer to this is that although

developing countries fluctuations in income and production are usually not seen as

business cycle phenomena but still have much of the same characteristics.

6. Principal features of the Mundell Fleming model

The Keynesian IS-LMii framework is commonly used for analysis of fiscal and

monetary policy in the short and medium term. Keynes held that the fall in aggregate

demand that caused the downturn often was linked to government fiscal and monetary

policy. In the IS-LM model, aggregate demand falls and income and the interest rate

adjusts to reach equilibrium. The Mundell Flemming model adds the Balance of

Payments curve to the IS/LM model. Equilibrium is reached by adjustments in the

exchange rate, the interest rate and incomeiii

. The model emphasizes the differences

between fixed and floating exchange rates.

Equilibrium in the model for demand of goods market is achieved when

investments equals savings. The IS curve derives the relationship between interest rates

and income in the short run. It specifies a simple negative relationship between

investment and the interest rate.

A higher interest rate reduces the demand for goods at a given level of income.

A higher interest rate also reduces investment demand and the demand for consumption.

Higher interest rates reduce demand and lower the level of output where demand equals

the quantity produced (supply) and thus creates the IS curve. The name is derived from

the fact that in a closed economy investments will be equal to savings.

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The slope of the IS curve determined by the sensitivity of investments to

changes in the interest rate, and the sensitivity of GDP to changes in exogenous

variables (the spending multiplier). Changes in GDP caused by changes in the interest

rate is reflected as movements along the IS curve. Changes in exogenous spending

(government spending for example) cause shifts of the IS curve.

Equilibrium in the money market is described by the LM curve. The quantity of

money demanded (demand for liquidity) increase with income and decrease with the

interest rate. Equilibrium in the money market is determined by the demand for liquidity

(liquidity preference) and the quantity of money supplied by the central bank.

If the money supply is fixed, then a rise in aggregate income (increasing the

demand for liquidity) will increase the interest rate at which the demand and supply of

money is equal. The LM curve therefore describes a positive relationship between

output and the interest rate.

The IS – LM diagram can then be depicted as below

The intersection between the two curves shows the only combination of output

and interest rate where both the goods market and the money market are in balance.

GDP (Y) is on the horizontal axis while the interest rate (r) is on the vertical axis. For an open economy the IS curve needs to be specified for a specific exchange

rate. It still depicts the combination of the interest rate and output that equate total

expenditure and production but total expenditure is affected by the exchange rate. When

the economy is open and has floating exchange rates an increase in the interest rate will

also increase the value of the domestic currency and therefore reduce net exports.

Whenever the exchange rate changes, we see a shift in the IS curve.

Export represents foreign demand for domestic goods and services. The foreign

demand for domestic goods depends among other things on the level of foreign income.

Demand also depends on the relative price between foreign and domestic goods. If the

price of domestic goods is lower than goods from other markets, foreign demand for

domestic goods will be higher. The relative price is reflected in the exchange rate

(domestic price for foreign currency). When the exchange rate is flexible an

LM

IS

Y

r

0Y

0r

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22

appreciation of the exchange rate allows domestic residents to buy the same amount of

foreign goods with less domestic currency. A devaluation of domestic currency will

have the opposite effect. If the exchange rate increases (devaluation) domestic goods

becomes cheaper for foreign consumers and demand will increase. An increase in the

exchange rate will also cause imports to fall as imported goods will be more expensive

relative to domestically produced goods. If the exchange rate decreases (appreciation)

then domestic goods become relatively more expensive and foreign demand will

decrease.

The country’s exports become more expensive in the international market when

the value of the currency increases relative to other currencies internationally.

In the case of Angola, the economy is dominated by the petroleum sector, and

the banking system functions relatively poorly. This means that demand might be less

sensitive to interest rate changes and the slope of the IS curve will be less steep. Also a

huge part of investments are made in the petroleum sector, where the decision to invest

is linked to profitability in the sector rather than the interest rate. In the formal model

these investments will be modelled separately and exogenously and independent of the

interest rate. These factors suggest a smaller role played by the interest rate in the

Angolan economy. There is currently a low level of domestic production and exports

are linked first and foremost to petroleum and other natural resources (diamonds). This

particular feature of the Angolan economy is captured in the formal model by allowing

a separate term for petroleum sector exports and petroleum sector related import. The

Kz is not convertible and set via a “managed” auction within a given band. This means

that interest rate and the exchange rate will have smaller effect on output than what we

might find in other economies.

The effect of trade in financial assets is reflected by the BP curve. The balance

of payments curve shows combinations of interest rates and income levels for which the

capital account (trade in assets) and current account (trade in goods and services) offset

each other. The current account is equivalent to the level of net exports, and it is

determined by the domestic level of income, the foreign level of income and the

exchange rate.

We assume that there is less than perfect capital mobility. The BP curve is drawn

for a given exchange rate and a given foreign interest rate.

The IS curve shifts right when there is an expansionary fiscal policy change or

the exchange rate depreciate. The IS curve shifts left when there is a contradictionary

monetary policy change. The LM curve shifts right when there is an expansionary

monetary policy change. It shifts to the left when there is a contradictionary monetary

policy change.Because the basic version of the model assumes fixed prices, it cannot be

used to analyze inflation. When the model was developed in the 1950’s and 1960’s

inflation was of little concern. As inflation became important during the late 1960s and

1970s, the model was extended to incorporate aggregate supply.

The essential feature of this extension is that higher output leads to a higher

price level. The impact from output in prices can operate directly through firms’ price

setting decisions, or indirectly through wages. There is not complete nominal flexibility

(needed for the AS curve to be upward sloping rather than vertical in the output-price

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level) is due to adjustment costs, imperfect information and contracts. The price level

that prevails when output is a t its normal level or “natural rate” can be determined by

rational forward looking expectations, by past levels of inflation or both. The aggregate

supply curve (AS) has been specified in different ways. The essential relationship

though is that there exists a positive relationship between output and the price level.

The IS-LM-AS model consists of three equations in three unknowns: the output,

the interest rate and the price level. When depicting this relationship graphically we

combine the IS and LM curves to obtain a relationship between output and the price

level. Given the fixed money supply, a higher price level reduces real money balances.

Thus, for a given level of income, the interest rate at which the quantity of money

demand equals supply rises. This means that the LM curve shifts upward and the IS and

LM curves intercept at a lover level of output. This inverse relationship between the

price level and output is known as the aggregate demand curve. The aggregate demand

AD and AS curves then determine output and the price level.

The aggregate demand curve summarizes the relationship between the price

level and the quantity of domestic output demanded by consumers, firms, the

government and foreigners.

The AD curve can be derived from the IS LM diagram. An increase in the price

level P increases money demand. The excess demand for money shifts the LM curve

inward, raising r and lowering Y . When P goes down the money demand decreases

and brings about an excess supply of money. This means that the LM curve shifts

outward and lovers r and increases Y .

Any shift in the IS-LM model that is caused by a change in prices is represented

as a movement along the AD curve. Any other shifts in the IS or LM curves that

increases income will be a shift outward in the AD curve (an increase in G ). Any

change in the IS-LM model that reduces income will be an inward shift in the AD curve

(a decrease in sM ).

The terms of trade and the expected rate of inflation are included in the IS curve.

Terms of trade equals the domestic price level minus the world price level minus the

exchange rate. This means that if the domestic price level increase, the world price level

decrease, or a strengthening of the domestic currency making domestic goods relatively

Y

LM’’( 2P )

LM

IS

1r

2r

0Y 1Y 2Y

0r

LM’( 1P )

Y

AD

0Y 1Y 2Y

r

1P

0P

2P

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more expensive will increase the terms of trade and result in a reduction in the trade

balance. Imports increase while exports decrease. The IS curve is stationary only when

the terms of trade is constant.

For the LM curve, the demand is still determined by real national income and the

nominal rate of interest, but the domestic interest rate is also tied to the world interest

rate and the expected depreciation of the home currency.

The aggregate supply curve now responds to two price indicies, the one of

interest to producers and the one of interest to consumers. Employment is constrained

by demand for labor. Employment and output increase if the rate of producer price

inflation exceedes the rate of growth of nominal wages. The wages will be related to the

rate of inflation for consumer prices (part of which are the imported consumables). This

means that the terms of trade will play an important role in determining labour and

hence output supply.

With flexible exchange rates the IS schedule become superfluous. The negative

relationship between inflation and output comes from the money market alone.

If Y goes up, this will create an excess demand for money but if the world

interest rate is fixed and so is the expected depreciation of the home currency, the only

variable that can change is inflation in the home country.

7. Steps in MODUCAN development

Work on the model has been going on intermittently since late 2008 in Norway

and in Angola. An early step was the agreement on the specific structure and variables.

Although this step included consideration of the database in order to prevent the use of

variables for which data were particularly weak of non-existent, frequent setbacks in the

data supply were experienced. In some cases synthetic data had to be used. This did not

boost our confidence in the reliability of the results.

Ironically, the increase in data availability over the last year has created its own

problems. For instance, the detailed trade statistics that have now been published by the

INE could not be ignored and therefore some coefficients first estimated on the basis of

weaker data had to be re-estimated. It now seems likely that a set of national accounts

from 2002 to 2008 will be available shortly. This will in all likelihood mean that a

broad range of model coefficients will have to be reconsidered.

Estimation of a full range of parameters has been completed. We have used the

econometrics package” Stata” for the purpose. One particular problem has of course

been that historical data are lacking to a great extent. This will undoubtedly have the

effect of weakening the correctness of our coefficients. Before 2002 Angola had

periods of triple digit inflation and dramatic changes in nearly all relevant variables the

economy. Basing estimates on such data will mean that the economy described by the

model will implicitly have on board an assumption that economic structures and

mechanisms (partly) are as they were in those days. This means we base the model on a

totally different environment than we have today and which we believe will prevail in

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the future. On the other hand, using the less tumultuous data from 2002 onwards will

limits the length of data series for estimation giving very large confidence ranges.

The model does not use sophisticated modeling software. We have found many

advantages in terms of transparency and easy handling by using a simple spreadsheet,

which, with the recent development in the capacity of spreadsheets, appears to have

computing power enough for our purposes. Most economist will have a good

knowledge of spreadsheets so the handling of the model will not need particular

training. A bit of additional training in programming Visual Basic should also make it

possible to produce nice, tidy and useful user interfaces.

The first version of the model is now functioning. The core model is solved by

using the matrix calculation functions within the spreadsheet. Step one of the

calculation is to solve the system for GDP at constant prices, real interest rate and real

exchange rate using matrix algebra. Based on these three endogenous variables with the

addition of exogenous and parameters, the spreadsheet will calculate the other

endogenous variables.

The team now runs a number of tests of the model. Testing is done by making

projections for a period for which data exist and then check projections against actuals.

Some interesting results have already appeared. For the shorter period the model does

appear to predict GDP very well. However the exchange rate and the interest rate often

differ from the actuals - for some years considerably. The plan is now to finish the

model and produce documentation and user manuals by the end of 2010. We hope that

after this, in the next three year period the model can be used intensively in making

economic projections.

8. Modeling benefits to come?

Although the pace of model building has been much lower than expected, the

work done has rendered results. A number of courses in model building and

econometrics using Stata have been of benefit to a wide range of economists from

CEIC-UCAN and other institutions in Angola. We have noticed increased interests for

the modeling exercise both from the INE and the Ministry of Planning. The model

building has given incentives to further exploration of the economy. The model building

gives incentives to debates on how the economy works and gives input to such debates.

The exercise also contributes to build teams across government institutions. By keeping

close in touch with relevant government departments we hope to avoid the all too usual

syndrome in model building, namely that models are used for a research project only or

linked to technical assistance only.

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AS TRANSFORMAÇÕES ECONÓMICAS ESTRUTURAIS EM ANGOLA – UMA ANÁLISE PARA O PERÍODO 1997/2008

Alves da Rocha Professor Associado da Universidade Católica de Angola

O tema do crescimento económico de Angola continua a ser dos mais estudados,

dentro e fora das fronteiras nacionais. Alguns desses estudos têm procurado descortinar

sinais sustentáveis de diversificação da economia, mas o sector petrolífero continua

majestático, ainda que com perdas episódicas de importância relativa no PIB.

A resolução do conflito militar interno veio propiciar uma situação mais atreita à

obtenção de resultados positivos na política económica, em especial nos equilíbrios

fundamentais e na reconstrução das bases materiais e humanas para o crescimento

económico. A análise do período 1997/2008 revela tratar-se duma sequência importante

de crescimento económico real no país e de aplicação duma política económica de

mercado.

O crescimento económico não foi contínuo ao longo do período em análise,

sendo visíveis diferentes períodos em que a variação real anual do PIB se colocou

abaixo da sua linha tendencial de crescimento.

FONTE: Relatórios Económicos de Angola, CEIC, Universidade Católica de Angola, com base nas informações dos Relatórios de Balanço dos Programas do Governo elaborados pelo Ministério do Planeamento.

O ano de 2002 marca, claramente, uma linha divisória no processo de

crescimento económico do país, devido à finalização do conflito militar interno e à

possibilidade de desviar da guerra uma parte importante dos recursos financeiros

petrolíferos – ou obtidos pela facilidade de hipoteca das receitas futuras do petróleo –

para aplicações na recuperação das infraestruturas físicas e materiais, muito danificadas

pela extensão e violência das operações militares.

Porém, entre 2000 e 2002, como que a antecipar-se o final do conflito militar

interno e com base nas políticas levadas à prática no contexto dos Planos de 2001 e

2002, a economia angolana apresentou sinais duma mudança significativa nos índices

gerais de produtividade, ainda que puxados pela natureza capital-tecnologia intensiva

das actividades de extracção mineral.

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FONTE: Ministério do Planeamento.

Graças, também, à resolução do conflito militar foi possível ao Governo

concentrar as suas acções de política económica em matérias que passaram a fazer mais

sentido e a ter outras condições de resolução dos problemas que as afligiram durante a

longa noite de guerra. O controlo da inflação começou a ser mais efectivo depois desta

data e a estabilização macroeconómica passou a constituir um objectivo com

possibilidades de ser atingido.

As excelentes condições do mercado internacional – taxas médias anuais de

crescimento do PIB elevadas devido aos impulsos emprestados pelas performances

chinesas e preço tendencialmente em crescendo do barril do petróleo – ajudaram a

manobra de estabilização macroeconómica do Governo angolano a partir de 2002, ao

mesmo tempo que a acumulação de receitas fiscais e de reservas em meios de

pagamento sobre o exterior permitiu que se iniciasse o ambicioso programa de

reconstruir o que tinha sido desfeito pela guerra e de construir o que ela não tinha

permitido.

FONTE: Instituto Nacional de Estatística.

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No entanto, não foram suficientes 11 anos de crescimento e cerca de 6 anos de

relativa estabilização macroeconómica para que os fundamentos económicos do país se

alterassem. Com efeito e em termos médios para o período 1997/2008, a estrutura do

Produto Interno Bruto permaneceu, essencialmente, a mesma, com as actividades de

extracção de petróleo a responderem por cerca de 55% do valor de riqueza anualmente

gerado, as receitas fiscais petrolíferas a contribuírem com 80% para as receitas totais do

Orçamento Geral do Estado e a indústria transformadora manter a sua importância

relativa no PIB em redor dos 4%.

. FONTE: Ministério do Planeamento

O baixo valor percentual da representatividade da actividade do petróleo em

1998 deveu-se à crise económica mundial, com a procura e o preço do petróleo a

evoluirem em baixa. O preço médio do Brent nesse ano foi de 12,7 dólares o barril, a

produção angolana de petróleo atingiu a cifra de 738 mil barris de petróleo por dia e as

exportações diminuíram 32,6% face aos valores registados em 1997. Provavelmente

poucos se lembrarão da crise de pagamentos – internos e externos – que se abateu sobre

o país nesta altura e que pressionou o Governo a alterar o Plano de Desenvolvimento

1998-2000, substituíndo-o pela Estratégia de Saída da Crise.

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FONTE: Ministério do Planeamento

Fase de crescimento lento 1997/2002

Depois das eleições de Setembro de 1992, o país assistiu ao recrudescimento,

sem precedentes, da violência do conflito armado interno, devido, em particular, à

rejeição dos seus resultados pela parte da UNITA. O ano de 1995 fica marcado na

História de Angola, depois da independência, como o da extensão do conflito armado a

todo o território nacional e o da intensificação da violência associada. Até 1997, a

actividade económica do país aumentou a sua dependência do petróleo e os sectores

agrícola e industrial estavam virtualmente em falência técnica, tal a intensidade da

destruição de infraestruturas físicas, da fuga dos campos e da insuficiência de recursos

humanos.

Com esta base de funcionamento é natural que até 2002 os principais

estrangulamentos e as mais básicas carências (humanas, materiais, financeiras, etc.)

tivessem favorecido um funcionamento da economia nacional de baixa intensidade e se

tivessem mantido os sinais de crise económica e financeira vindos de trás. A transição

para a economia de mercado – iniciada com a primeira desvalorização do kwanza em

Março de 1991 e num clima de expectativas políticas positivas propiciadas pela

esperança de paz e de implantação do processo democrático – faz-se num contexto de

grande incerteza, caracterizado pela sucessiva diminuição das receitas fiscais

petrolíferas, pelo não funcionamento da economia não petrolífera, pela insegurança de

pessoas e bens e pelas difíceis condições de circulação das mercadorias e dos cidadãos.

Portanto, esta fase de crescimento da economia angolana foi marcada por taxas

relativamente baixas de variação da actividade produtiva e que se podem expressar

numa taxa tendencial de cerca de 6%. Só a partir de 2001 é que a actividade de

extracção petrolífera começa a apresentar sintomas de reversão da crise dos anos

anteriores graças à recuperação da economia mundial. Nesse ano, o PIB petrolífero

retrocedeu 1% face a 2000 e as actividades não petrolíferas apresentaram uma taxa de

crescimento de 10%, com destaque para os 18% dos sectores primários (agricultura,

pecuária, florestas e pescas).

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FONTE: Ministério do Planeamento.

Ainda que a indústria transformadora apresentasse um crescimento do seu PIB

tendencialmente crescente, não existiam condições para que assumisse uma posição

central e estratégica no processo de diversificação da economia angolana. A prestação

de serviços mercantis começou a instalar-se a partir de 2000 e a apresentar razoáveis

dinâmicas de crescimento.

TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)

SECTORES 1998 1999 2000 2001 2002

PIBa 5,2 1,3 9,3 18,0 13,4

PIBt 4,9 7,1 8,9 9,8 10,3

PIBs 5,0 4,4 3,4 6,0 11,6

FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.

A análise da estrutura económica do país mostra que o peso relativo da

economia petrolífera se reforçou, quando comparado com o que vigorava em 1998, em

prejuízo das actividades mais estruturantes do mercado interno, como a agricultura e a

indústria transformadora.

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FONTE: Ministério do Planeamento

Durante esta fase de cinco anos, as preocupações centrais do Governo estiveram

voltadas para o controlo e gestão do conflito armado interno, no sentido de a mais breve

trecho se encontrar uma solução definitiva. No entanto, o crescimento económico e o

processo de estabilização macroeconómica foram, igualmente, propósitos que o

Governo considerava importantes para a preparação do país para a fase pós-conflito

armado. As medidas mais consistentes a favor do controlo do défice fiscal, da redução

da inflação, da convergência cambial e de recuperação da confiança no kwanza

começaram a ser implementadas a partir de 2000, no âmbito, quer do Plano de

Desenvolvimento e Estabilização Económica 1998-2000, quer, especialmente, da

Estratégia Geral de Saída da Crise1.

As condições internacionais começaram a melhorar – as taxas médias de

crescimento do PIB mundial entre 2000 e 2002 foram de 2,1%, 2.4% e 3%,

respectivamente2 –, culminando com um preço do barril de petróleo de 23,74 dólares

em 2002, praticamente o dobro do registado em 1998. Estas alterações no contexto

internacional facilitaram, pela via do aumento das receitas fiscais e em divisas, os

objectivos do Governo quanto à preparação do país para a fase seguinte à guerra.

A inflação foi uma das matérias da estabilização macroeconómica que logo

depois de 2000 começou a mostrar uma tendência de diminuição sustentada. Depois

deste ano não mais o índice de preços no consumidor na cidade de Luanda apresentaria

valores acima dos dois dígitos.

1 Na medida em que persistiam condições adversas na economia mundial, traduzidas numa reduzida

procura de petróleo e num preço do barril que atingiu 12,7 dólares, o Governo entendeu não existirem

condições propícias para a implementação do Plano 1998-2000. O Governo foi remodelado, a equipa

económica integralmente substituída e elaborado um novo Plano, baseado na Estratégia para a Saída da

Crise. 2 International Monetary Fund – World Economic Outlook, September, 2003.

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FONTE: INE

Fase de crescimento rápido 2002/2006

Do ponto de vista político, o acontecimento marcante deste período é a paz. Este

facto, igualmente social, representa um ponto de viragem na trajectória da política

económica, cujas condições começaram a ser criadas depois de 2000. A finalização do

conflito militar interno colocou novos e importantes desafios ao Governo, deixando de

fazer sentido as justificações para os insucessos das medidas governativas e alicerçadas

na reduzida margem de manobra da política económica e no excesso de consumo dos

recursos financeiros pela guerra. O mercado passou a ter enquadramento conceptual na

elaboração dos Programas do Governo e as medidas de fomento e incentivo deixaram

de ser administrativas, para darem mais atenção aos mecanismos mercantis de alocação

dos factores de produção. Durante este período, o Governo conduziu a sua intervenção

na economia através do Plano de 2002 e, depois, por dois programas bienais intitulados

Programa Geral do Governo 2003-2004 e Programa Geral do Governo 2005-2006.

A visão adoptada pelas instituições públicas e por algumas organizações

empresariais angolanas privilegiou a componente estratégica da reconstrução económica

e do progresso social. A elaboração da Estratégia de Desenvolvimento de Longo Prazo

2000-2025 é a prova de que o urgente – exigido pela guerra – deixou de tirar lugar ao

importante e estruturante (determinado pelo crescimento e desenvolvimento).

Consideraram-se como pilares desta Estratégia a construção duma competitividade

estrutural, o desenvolvimento do sector privado, a promoção do emprego, a valorização

dos recursos humanos, a edificação duma sociedade mais justa e a garantia do uso

sustentável dos recursos naturais e da preservação do ambiente.

O preço médio do barril de petróleo passou de 23,74 dólares em 2002, para 61,5

dólares em 2006, um incremento percentual de 159%3, enquanto a economia mundial se

encontrava num período de crescimento de alta intensidade, com taxas de 3,2% em

2003, 4,1% em 2004, 3,5% em 2005 e 4% em 20064. Condições excelentes e propícias

ao lançamento das bases materiais para a reconstrução das infraestruturas e o

3 BP statistical review of world energy June 2008.

4 International Monetary Fund – World Economic Outlook September 2005 e World Economic Outlook

Update, January 2009. World Bank – Global Economic Prospects, 2009.

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crescimento económico. Portanto, ocorreu uma feliz conjugação dos ambientes interno e

externo em favor do crescimento económico de Angola.

FONTE: Ministério do Planeamento

A precipitada quebra do nível de actividade do sector petrolífero em 2003 – o

registo real foi de -2,2% de crescimento – foi devida a factores meramente conjunturais

e relacionados com atrasos na entrada em funcionamento de determinados blocos de

águas profundas.

A taxa tendencial de crescimento deste período foi de quase 14%, mais 9 pontos

percentuais do que a registada no período anterior. O destaque, porém, continuou a

pertencer ao sector petrolífero, com uma taxa média de crescimento no período a rondar

os 14%, mais 1,5 pontos percentuais do que o sector não petrolífero.

TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)

SECTORES 2002 2003 2004 2005 2006

PIBa 13,4 11,7 14,1 17,0 9,8

PIBt 10,3 11,9 13,5 24,9 44,7

PIBs 11,6 9,9 10,4 8,5 38,1

FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.

Através das taxas de crescimento anteriores parece adivinhar-se alguns indícios

de alterações sectoriais, nomeadamente, em relação à indústria transformadora e aos

serviços mercantis. Com efeito, a taxa tendencial de crescimento da indústria

transformadora foi de 20,4% e dos serviços de 15,3%.

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FONTE: Ministério do Planeamento

No entanto, em termos de pesos relativos, a composição do PIB

permaneceu, essencialmente, a mesma. Embora a alteração dos pesos relativos dos

sectores no PIB não seja o critério, por excelência, para se avaliar o processo de

diversificação duma economia, fornece, todavia, uma indicação de tendência. Portanto,

o que de relevante se passou entre 1997 e 2006 foi a manutenção da participação

percentual dos sectores de actividade económica não petrolíferos, em particular, a

agricultura e a indústria transformadora.

FONTE: Ministério do Planeamento

Ou seja: as elevadas taxas de crescimento do PIB deveram-se, no essencial, à

dinâmica do sector petrolífero e os sectores não petrolíferos deveram o seu excelente

comportamento à reduzida base de partida para a aventura do crescimento económico de

Angola, tal o grau de destruição em que o conflito militar deixou o país. Os projectos

industriais e agrícolas implementados neste período não foram suficientemente

estruturantes duma nova ordem económica interna.

Do ponto de vista da estabilização macroeconómica, os sucessos foram ainda

maiores em matérias como o controlo da inflação, a gestão financeira do Estado – com

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sucessivos excedentes fiscais – e a balança de transacções correntes (em 2005 e 2006

foram registados os maiores excedentes com o exterior, repectivamente, 30,2% e 35,6%

do PIB.

FONTE: Ministério do Planeamento

A atenuação do crescimento (2007/2008) e os sintomas da crise internacional (2009)

Durante o período 2007/2008, a política económica do Governo enquadrou-se no

Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008 e as condições para a obtenção

dos objectivos aí definidos5 – com realce para a consolidação da estabilidade

macroeconómica, a reorganização das redes de distribuição (electricidade, água,

transportes), o lançamento de indústrias de apoio à reconstrução nacional, a expansão

das cadeias produtivas – aparentemente existiam e exprimiam-se pelo excelente

ambiente económico interno (taxas elevadas de crescimento em 2005 e 2006, aumento

do investimento privado, melhoria significativa da situação das finanças públicas,

disponibilidade de linhas de crédito, estruturação, modernização e desenvolvimento do

sistema bancário nacional, criação do Banco de Desenvolvimento de Angola e

preservação da paz e da reconciliação nacional) e pelo favorável enquadramento

externo, caracterizado pelas elevadas taxas de crescimento do comércio internacional

(9,8% em 2006, 7,5% em 2007 e 6,2% em 20086) e de variação do PIB mundial (3,4%

em média anual no triénio 2006/20087).

Contudo, o principal estímulo ao crescimento económico de Angola, no período

em referência, continuou a ser dado pelo preço do petróleo no mercado internacional.

Entre 2006 e 2008, o preço médio do barril de petróleo registou um incremento de perto

de 60%, equivalente a uma variação média anual de 16,7%.

Entretanto, os primeiros sinais de antecipação da crise económica mundial

começaram a ser visualizados pela redução do ritmo de crescimento do PIB mundial

(apenas 2,5% em 2008) e pela quebra no índice de preços das commodities não

petrolíferas. A drástica redução do preço do barril de petróleo no último trimestre de

2008 confirmou que a economia mundial entrara em crise dramática e que Angola iria

5 Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008.

6 World Bank – Global Economic Prospects, 2009.

7 World Bank – Global Economic Prospects, 2009.

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sofrer os seus efeitos mais nefastos, agravados pela debilidade da estrutura económica

nacional e pela reduzida capacidade de absorção de choques externos. As medidas de

atenuação dos efeitos desta crise mundial tomadas pelo Governo foram num sentido

inverso ao da maior parte das economias do sistema económico internacional, que

acentuaram a vertente do aumento das despesas públicas (de investimento, subsídios,

transferências, redução de impostos para se estimular a recuperação da produção, etc.).

Compreende-se, assim, que depois de 2007, o ritmo de crescimento económico

diminuiu, apesar de as taxas de variação do PIB ainda se terem apresentado

significativas. A taxa tendencial deste período foi de 17,7%, influenciada pelos 20,9%

de 2007. Ao considerar-se a previsão de crescimento para 2009, a taxa tendencial de

crescimento baixa para menos de 14%.

Em 2008, foi registada uma quebra de 5,5 pontos percentuais em relação à taxa

tendencial e de 7,3 pontos percentuais face a 2007.

FONTE: Ministério do Planeamento

A agricultura e a indústria transformadora ressentiram-se dos efeitos da crise

económica internacional, mas os serviços ainda conseguiram melhorar a sua

performance face a 2007. De sublinhar que alguns segmentos da indústria

transformadora angolana – materiais de construção, alimentação e bebidas e indústrias

químicas – patentearam desempenhos interessantes entre 2007 e 2008 mas, no

fundamental, continuaram a ser as actividades alimentares e de bebidas a dominarem o

panorama manufactureiro nacional (perto de 80% do total).

TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)

SECTORES 2004 2005 2006 2007 2008

PIBa 14,1 17,0 9,8 27,4 1,9

PIBt 13,5 24,9 44,7 32,6 11,0

PIBs 10,4 8,5 38,1 21,8 26,9

FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.

No entanto, as tão desejadas alterações estruturais da economia não ocorreram e

algumas das variações registadas não passaram de meros episódios no longo percurso

do processo de diversificação da estrutura produtiva interna.

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FONTE: Ministério do Planeamento

As condições de preservação da estabilização macroeconómica do passado

degradaram-se na parte final de 2008, acabando por ferir, significativamente, o seu

exitoso percurso anterior. De resto, a resistência da inflação aos dois dígitos traduz a

prevalência de diversas imponderabilidades sobre a actividade económica interna e a

excessiva dependência das políticas macroeconómicas das receitas do petróleo.

As dinâmicas de crescimento registadas entre 1997 e 2008 consequencializaram

uma aumento sustentado no rendimento nacional bruto por habitante, colocando-se o

seu valor nos 3284 dólares em 2008. A grande questão – de resto, comum a qualquer

economia – reside no modo como este rendimento é repartido pelas funções capital e

trabalho e pela população esempenhando, neste caso, o Estado um papel primordial na

correcção da distribuição da renda feita pelos mecanismos de mercado. Não só pela via

da tributação, directa e indirecta, mas, igualmente, pelo montante e natureza das

transferências que o Governo entrega à sociedade.

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CONCLUSÕES

A resolução do conflito militar que afectou a economia e a sociedade angolanas

foi o ponto de partida para as transformações estruturais ocorridas desde então.

Evidentemente que alguma coisa tinha de acontecer. Não era possível aguentar uma

situação de atropelamento dos equilíbrios económicos fundamentais e de degradação

das condições de vida da população.

A reposição dos macroeconomic fundamentals (défice fiscal, convergência

cambial, reservas internacionais, défice externo, inflação, dívida pública) em níveis

aceitáveis e internacionalmente recomendáveis era uma imposição do novo período de

paz. E foi nesse sentido que o Governo angolano, logo no decorrer de 2000, começou a

preparar as políticas macroeconómicas, cujos resultados foram importantes para a

recuperação da economia, através de taxas muito elevadas de variação do Produto

Interno Bruto.

Outro vector relevante para a reconfiguração da economia nacional é o da

construção e reabilitação das infraestruturas económicas e sociais. As primeiras têm

sido um factor importante de incentivo ao funcionamento do sector produtivo e à

difusão do crescimento económico pelo território nacional. As segundas perfilam-se

como indispensáveis para uma maior socialização da educação, saúde, habitação e

serviços diversos de saneamento.

No entanto:

Permanece a excessiva dependência dos sectores de enclave, pouco

entrosados com o resto da economia, essencialmente virados para o

mercado internacional e potenciadores de desigualdades na

distribuição do rendimento nacional.

O peso dos sectores estruturantes duma nova ordem económica

interna – indústria, agricultura, sistema financeiro e tecnologias de

informação – ainda é pequeno, apesar das elevadas taxas de

crescimento dos respectivos valores acrescentados.

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O intenso crescimento económico ainda não se transformou em

desenvolvimento, muito menos em progresso, devido ao modelo de

repartição da renda que prevalece e ao qual só acedem as franjas

sociais ligadas ao poder político.

Grande parte da população continua a não ter acesso à habitação, ao

fornecimento de água e electricidade em condições normais e aos

serviços de saneamento. A prova é dada pelo caos que

recorrentemente a chuva provoca nas periferias dos grandes centros

urbanos, com saliência para Luanda.

As transformações económicas e sociais estruturantes e sustentáveis

são um processo de longo prazo, que exige boas políticas de

desenvolvimento, resguardo dos equilíbrios macroeconómicos

fundamentais, transparência e burocracia competitiva.

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BASE IV DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

A CLÁUSULA DA CONFLITUALIDADE

António Fernandes da Costa

Faculdade de Ciências Humanas da UCAN

1. Introdução

A base IV do acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990, na qual surgem

inseridas as disposições que consagram a queda ortográfica das consoantes sem

realização fonética, ou seja, a eliminação das consoantes mudas, é certamente aquela

que mais polémica tem gerado entre os analistas e destinatários do acordo.

Confrontamo-nos com um tema susceptível de ser abordado sob diversos ângulos. A

nossa perspectiva, neste trabalho, será meramente linguística e centrar-se-á apenas numa

cláusula. Não nos ocuparemos, por exemplo, de considerações de natureza política,

diplomática ou económica relacionadas com o tema, o que não significa que as

assumamos como considerações de somenos importância. Reservamo-las,

simplesmente, para outras vozes mais autorizadas.

As disposições inseridas na base IV chegam a ser vistas por uma certa crítica de

oposição ao acordo, como uma ameaça à identidade da língua. A contestação chega a

atingir proporções radicais, procurando-se excluir toda a possibilidade de diálogo:

“Minha pátria é a língua portuguesa”, sentenciam muitos críticos contestatários. O

recurso a este veredicto pessoano, em que os conceitos de pátria e língua se cruzam

numa equivalência metonímica, mais não significa do que fechar as portas a um debate

possível.

Na verdade, a contestação de Fernando Pessoa à reforma ortográfica de 1911, que

até se caracterizou pela unilateralidade, circunscreveu-se entre as mais radicais da

época. No auge da contestação, Fernando Pessoa lançou aquele que seria o mote final da

sua argumentação contra qualquer cedência a uma reforma da ortografia da língua

portuguesa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Hoje, observa-se a reiteração do

mesmo estribilho pessoano, em nome da rejeição do acordo ortográfico de 1990.

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Contudo, a reforma ortográfica de 1911, apesar de uma forte contestação de uma

determinada intelectualidade da época, prosseguiu o caminho traçado. O que se escrevia

abysmo, lyrio, syntaxe, estylo passou a escrever-se abismo, lírio, sintaxe, estilo, sem

o ípsilon, abandonando-se a memória emocional de uma ortografia etimológica, sem

que a língua tivesse sido chamuscada. Que isto sirva apenas para um exemplo.

2. Os argumentos contra o acordo

Se há pontos do acordo ortográfico de 1990 que têm mais a ver com a consolidação

de certas matérias já autorizadas, no acordo ortográfico de 1943 ou de 1945, a base IV

está entre aquelas que introduzem alterações concretas e significativas na ortografia da

língua portuguesa. Referimo-nos especificamente à ortografia consagrada no português

padrão, em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa. Há consoantes

sem realização fonética que continuam a ser representadas graficamente, na norma

ortográfica portuguesa e africana, por razões de natureza etimológica, por razões ligadas

à genética das palavras. Portanto, os motivos da sua conservação são ditados, acima de

tudo, por determinantes ligadas à memória etimológica e, certamente, a razões de

carácter emocional. Assistimos à reiteração da argumentação usada contra a reforma

ortográfica de 1911.

Como é sabido, na norma ortográfica brasileira as consoantes mudas há bastante

tempo que não são representadas ortograficamente. A base IV do acordo ortográfico de

1990 consagra, portanto, a supressão dessas consoantes, na norma padrão portuguesa e

africana, com vista a uma uniformização da ortografia. E é aqui que reside o pomo da

discórdia.

No conjunto da argumentação utilizada pelos arquitectos do acordo, na

justificação desta unificação estão a valorização da componente fonética, na pronúncia

das palavras, que permite um ensino e uma aprendizagem mais simplificados da língua,

a internacionalização da língua e a circulação do livro e outros elementos culturais,

entre os países da CPLP.

Para os críticos discordantes deste acordo ortográfico, as consoantes mudas têm

uma dupla função, que não podem deixar de exercer. Não só contribuem para a

legitimação da etimologia da palavra, conforme ficou explícito, como garantem a

creditação fónica das vogais precedentes que, por via da sua presença, são abertas.

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Proceder à supressão dessas consoantes levaria a uma espécie de caos, não só no que

respeita à perpetuação da história das palavras, como também no que diz respeito à

representação fonética das vogais precedentes. Assistiríamos, portanto, à degradação do

valor fonético das palavras e, consequentemente, à degenerescência da língua

portuguesa, à degenerescência da sua identidade.

Para uma melhor explicitação da argumentação das vozes discordantes, se na

palavra recepção, o fonema vocálico e, que precede a consoante p, é realizada como

uma vogal definida pelo traço fónico +BAIXO, ou seja, soa como uma vogal aberta, esta

vogal deixará de exibir o valor fonético que se lhe atribui, caso se observe a queda

ortográfica do fonema consonântico. Isto levaria a que a palavra fosse representada

ortograficamente receção, acabando a vogal e por se transformar numa vogal definida

por um traço fónico +ALTO, reconvertendo-se numa vogal átona. Apresentamos apenas

uma ilustração. Poderíamos multiplicar os exemplos.

A supressão das consoantes mudas é uma questão já versada no acordo

ortográfico de 1945, mas de forma ambivalente: “[…] eliminação das consoantes

interiores cc, cç, ct, pc, pç, pt, quando invariavelmente mudas e de sua manutenção,

quando pronunciadas em um país e não no outro ou quando têm valor fonético e/ou

valor de tradição ortográfica e similaridade com outras línguas românicas”.

A ambivalência com que se formula, em 1945, esta cláusula, leva a uma

consequência que perdura até hoje, a manutenção a que se assiste dos grafemas

consonânticos mudos, na norma padrão euro-africana.

Como se observa, a questão das consoantes mudas não é colocada, pela primeira

vez, no acordo ortográfico de 1990, pois constitui uma preocupação que já vem de trás.

O acordo de 1990 pretende pôr cobro a esta ambivalência, procedendo à

unificação desta divergência entre a ortografia praticada, por um lado, no Brasil e a

praticada, por outro lado, em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa.

A base IV, sendo a mais rejeitada pelos críticos que se opõem ao acordo,

conforme ficou explícito atrás, acaba por ser também aquela que é a responsável pela

rejeição de todo o acordo por parte dos referidos críticos. Pois, além dos argumentos

acima transcritos, há um de natureza política e, quiçá, de natureza económica, segundo

o qual se considera que o Brasil beneficia mais com o acordo em causa do que Portugal,

porque lhe atribuirá maior protagonismo, na penetração nos países africanos. Uma vez

que o Brasil já não representa ortograficamente as consoantes mudas, eliminando-as,

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considera-se que o presente acordo está desenhado em função dos interesses do Brasil.

Só serve o Brasil. Em princípio, a análise deste tipo de preocupações não faz parte da

nossa abordagem. A nossa perspectiva é meramente linguística, conforme referimos

atrás.

Por isso, importa tecer alguns comentários sobre os argumentos de natureza

linguística, fundados na história da língua, ou seja, na salvaguarda da origem

etimológica da palavra, e no papel atribuído às consoantes mudas, na creditação do

timbre aberto das vogais que com elas coexistem na mesma estrutura lexical,

precedendo-as.

3. A história da língua e o acordo ortográfico

No contexto do acordo ortográfico, a história da língua será encarada apenas

numa perspectiva parcial, pois corresponderá unicamente à história da palavra. E o que

se entende por história de uma palavra?

Na nossa modesta opinião, achamos que a história de uma palavra não reside em

algo inatingível, impenetrável, algo insusceptível de visualização, algo de místico. Com

todo o respeito, pensamos que a história de uma palavra consiste, em primeiro lugar, na

ligação dessa palavra ao étimo de que provém ou ao derivante de que deriva e, em

segundo lugar, consiste na trajectória evolutiva dessa palavra, perante o étimo ou o

derivante.

Se nos for concedida alguma liberdade, apresentamos aqui a história da palavra

filho, apenas para um exemplo. Provém do étimo latino filiu(m). Quanto à trajectória

evolutiva que a caracteriza, verifica-se a queda do l intervocálico, dado que as

consoantes sonoras na evolução das palavras do latim ao português tenderam a cair ou a

vocalizar-se. Esta transformação conduziu ao surgimento de duas vogais em hiato, fiiu,

que foram eliminadas, mediante a intromissão de uma consoante entre elas. Esta é a

história que tem sido descrita pelos historiadores da língua sobre a origem etimológica e

a trajectória evolutiva da palavra filho, não nos apresentando, por isso, nada de

transcendente, de impenetrável, nada de mítico.

Apesar da transformação que a palavra filho sofreu, caracterizando-se, de certo

modo, por uma estrutura que não é de todo idêntica à do seu étimo latino filiu(m), não

se perdeu de vista o elo da sua origem etimológica, nem se perdeu de vista o respectivo

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trajecto evolutivo. A quase totalidade das palavras sofre uma transformação estrutural,

ao evoluir do latim ao português arcaico e não foi por este facto que se perdeu o elo da

respectiva história, a possibilidade de descrição do respectivo percurso evolutivo.

Analogamente, pensamos que não se perderá de vista a origem etimológica ou o

percurso evolutivo de palavras como acção, concepção, recepção, na sequência da

eliminação, na escrita, das consoantes c e p, respectivamente, quando estas já nem

sequer existem, enquanto estruturas com realização fonética, constituindo estruturas

sem pronúncia, tendo emudecido, há muito.

Se nós compararmos estas palavras com as correspondentes das outras línguas

românicas teremos, em francês:

action

conception

reception.

Em espanhol, teremos:

actión

conceptión

receptión.

O que se constata? Constata-se que as palavras correspondentes, na língua

portuguesa, sofreram uma mais acentuada transformação, ao evoluíram do latim, do que

as suas congéneres, na língua francesa, espanhola, pois provieram umas e outras dos

étimos latinos:

actione(m)

conceptione(m)

receptione(m).

Repare-se que, nas outras línguas românicas citadas, os fonemas consonânticos

p e c, das palavras em referência, continuam a ser pronunciados, tal como o eram, no

latim clássico. Em português, emudeceram. Na fonética das palavras, estas consoantes

já não existem, na língua portuguesa. Existem apenas no desenho ortográfico das

palavras.

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Com essa transformação visível das palavras em causa, na língua portuguesa,

não se perdeu de vista o respectivo trajecto evolutivo até hoje. Não será, certamente,

com a supressão de consoantes, que já nem se pronunciam, já não existem na fonética

das palavras, que só existem no desenho ortográfico, que se vai perder de vista a sua

história e de outras similares que se caracterizam pela mesma ortografia. Pois,

continuaremos a ter pleno conhecimento dos étimos de que provêm e do processo

evolutivo que as tipifica. A história das palavras em causa poderá ser acompanhada, tal

como tem sido a da totalidade das palavras da língua portuguesa.

Quanto à tese fundada no papel das consoantes em causa, na definição do timbre

das vogais que imediatamente as precedem, os críticos discordantes do acordo anunciam

um enfraquecimento antecipado dessas vogais, na sequência da queda ortográfica das

consoantes mudas. Pois, pretendem fazer crer que a eliminação gráfica dessas

consoantes sem realização fonética, corresponderá, ipso factu e irremediavelmente, à

redução do timbre das vogais, que as precedem. A depreciação sonora dessas ocorrerá

de forma imediata, no seu entender.

Pensamos que a tese da antevisão dessa depreciação do timbre das vogais

adjacentes às consoantes em referência é linguisticamente insustentável.

4. O vocalismo pré-tónico e as consoantes mudas

Essas vogais cujo timbre menos reduzido é supostamente creditado pelas

consoantes mudas ocorrem em sílabas pré-tónicas e em sílabas tónicas. Nesta

conformidade, o tema em análise tem especial incidência no vocalismo pré-tónico e no

vocalismo tónico.

Embora existam vogais pós-tónicas abertas, como na palavra agradável e

noutras, não há notícia de ocorrência de vogais abertas pós-tónicas creditadas por

consoantes mudas, na língua portuguesa. Portanto, apresentando-se esta questão

substancialmente associada ao vocalismo pré-tónico e tónico, é no âmbito destes dois

quadrantes linguísticos que deverá ser estudada.

Não se pode negar o facto de que, no domínio da norma padrão euro-africana, o

vocalismo pré-tónico é fortemente dominado pelo vocalismo átono, ou seja, pelo

vocalismo dominado pela redução sonora. De acordo com os foneticistas da língua

portuguesa, esta tendência afigura-se como a regra geral.

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Contudo, também reconhecem os mesmos foneticistas que existem excepções à

regra geral do vocalismo átono, como afirma Mira Mateus:

[…] estão incluídas verdadeiras excepções à regra geral do vocalismo átono, cuja causa é

histórica e não analisável a nível sincrónico. Assim, estas palavras estão marcadas no nível

lexical, nas respectivas formas de base, como não sujeitas à regra geral, e como tal são

aprendidas pelos falantes.iii

Existem palavras com vogais fonologicamente menos reduzidas, ou seja, com

vogais definidas como abertas, em sílabas pré-tónicas, sem que esse traço fonológico

seja legitimado por consoantes mudas. Essas vogais continuam a ser abertas, no

português padrão euro-africano, sem que o respectivo valor fonológico seja posto em

causa. São as excepções de que fala Mira Mateus e outros foneticistas, ao se referirem à

regra geral do vocalismo átono.

Tomemos, como ilustração da matéria, a lista de palavras agrupadas nos dois

conjuntos que se seguem. Na primeira série, agrupamos um conjunto de palavras em

que figuram consoantes mudas. Na segunda série, agrupamos palavras sem o desenho

ortográfico de consoantes mudas:

a) acção;

concepção;

recepção;

b). aquecer;

aquecimento;

corar;

esquecer;

esquecimento;

ganhar;

normal;

normalmente;

padeiro;

pregar (sermão);

economia;

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ortodoxia.

profilaxia

As palavras seleccionadas, nestes dois conjuntos, apresentam uma característica,

em comum. Em todas elas figuram segmentos vocálicos pré-tónicos abertos. A

diferença consiste em que nas palavras do primeiro conjunto figura a representação

ortográfica de consoantes mudas, que supostamente legitimam o timbre menos reduzido

das vogais precedentes e, no segundo conjunto, as vogais são abertas, sem que tal

propriedade fónica seja legitimada por consoantes mudas:

em ac, na palavra acção;

em cep, na palavra concepção;

em cep, na palavra recepção;

em que nas palavras aquecer e aquecimento;

em co, na palavra corar;

em que nas palavras esquecer e esquecimento;

em ga, na palavra ganhar;

em no nas palavras normal e normalmente;

em pa, na palavra padeiro;

em pre, na palavra pregar (sermão);

em co, na palavra economia;

em or, do, em to, na palavra ortodoxia;

em pro, na palavra profilaxia.

Estes são apenas alguns exemplos. Podíamos multiplicá-los, mas pensamos que

se torna desnecessário.

No primeiro grupo, as vogais abertas aparecem ladeadas por consoantes mudas.

No segundo grupo, apesar de as vogais serem caracterizadas por uma localização pré-

tónica, como as vogais do grupo anterior, essas vogais também são abertas, no

português padrão euro-africano, apresentando-se sós, isto é, sem que o referido traço

fónico apareça submetido a uma pretensa legitimação de consoantes mudas.

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A que conclusão nos leva esta coincidência? À conclusão de que a ocorrência de

uma consoante muda não constitui uma condicionante, sine qua non, para a abertura de

uma vogal pré-tónica.

Portanto, não vemos a razão pela qual os críticos discordantes do acordo

antecipam a vulnerabilidade sonora das vogais ladeadas por consoantes mudas,

consoantes já sem existência fonética, caso estas sejam eliminadas ortograficamente.

Como vemos, o fenómeno da ocorrência de vogais abertas pré-tónicas não é

estranho à língua portuguesa. Não será, pela primeira vez, que surgirão vogais pré-

tónicas abertas, caso as consoantes mudas sejam eliminadas ortograficamente, mediante

a implementação do acordo ortográfico. Antes desta eliminação, as vogais abertas pré-

tónicas já ocorrem, no domínio da língua portuguesa. Na palavra ortodoxia, somos

confrontados até com três segmentos vocálicos pré-tónicos caracterizados por um

timbre aberto, sem que nenhum deles seja ladeado ou legitimado por qualquer

consoante muda.

Depois da ilustração sobre a relação entre o vocalismo pré-tónico e uma

provável queda gráfica das consoantes sem realização fonética, passemos à análise da

relação entre o vocalismo tónica e a suposta eliminação.

5. O vocalismo tónico e as consoantes mudas

Tomemos, como exemplificação deste estudo, as palavras seguintes agrupadas

em três séries:

afecto;

directo;

predilecto;

tecto;

carácter;

didáctico;

sintáctico.

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bela;

cela;

feto;

meta (linha de chegada);

rosa;

seta;

sola;

vela;

caderno;

desenho;

porta.

Como se verifica, em todos os exemplos, ocorrem em posição tónica da palavra

vogais definidas por um timbre menos reduzido, ou seja, vogais abertas:

em fec na palavra afecto;

em rec na palavra directo;

em lec na palavra predilecto;

em tec na palavra tecto.

em rác na palavra carácter;

em dác na palavra didáctico;

em tác na palavra sintáctico;

em be na palavra bela;

em ce na palavra cela;

em fe na palavra feto;

em me na palavra meta (linha de chegada);

em ro na palavra rosa;

em se na palavra seta;

em so na palavra sola;

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em ve na palavra vela;

em de na palavra caderno;

em se na palavra desenho;

em por na palavra porta;

No primeiro agrupamento desta ilustração de palavras, as vogais tónicas abertas

aparecem ladeadas por consoantes mudas que, supostamente, legitimam o timbre menos

reduzido que as caracteriza; no segundo agrupamento, incluímos palavras cujas vogais

tónicas, além de serem graficamente acentuadas (o acento gráfico, neste caso, serve para

marcar a abertura da vogal), são ainda ladeadas por consoantes mudas; e, finalmente,

uma terceira série de palavras em que as vogais tónicas, apesar de serem abertas, se

apresentam sem acentuação gráfica e sem consoantes mudas, em contiguidade,

susceptíveis de legitimarem a referida propriedade fónica.

Perante estes exemplos, verifica-se que a abertura da vogal, em posição tónica,

não depende de consoantes mudas. Pensamos que estas podem ser dispensadas, sem que

tais vogais sofram qualquer alteração, quanto à propriedade fonológica que as

caracteriza. Apresentamos apenas alguns exemplos, mas são numerosas as palavras, na

língua portuguesa, nesta condição. Apregoar a vulnerabilidade sonora dessas vogais, na

sequência da supressão ortográfica das consoantes mudas, é apenas uma antecipação de

um fenómeno cuja hipótese de verificação não tem qualquer fundamento linguístico.

A segunda série de palavras, nas quais as vogais se apresentam graficamente

acentuadas e ainda ladeadas por consoantes mudas, constitui um caso flagrante, quanto

à redundância, na validação do mesmo traço fonológico, a validação do timbre vocálico

menos reduzido das vogais tónicas em causa. Se, no primeiro caso, a consoante muda já

nos parece dispensável, esta consoante, sem realização fonética, será muito mais

dispensável e sem consequência para uma vogal que já é tónica e que é ainda

graficamente acentuada, como se verifica.

Quanto à história, pensamos que a supressão ortográfica da consoante muda não

irá afectar nunca a possibilidade de visualização do percurso evolutivo da palavra e

muito menos a sua origem genética, conforme ficou explícito, atrás.

Da história dos acordos ortográficos, buscamos uma outra ilustração dos factos

linguísticos que descrevemos. Este exemplo parece ter constituído o único instante feliz

da história dos acordos ortográficos, no passado. No limiar dos anos 70, decidiu-se

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eliminar o acento gráfico grave, nos advérbios de modo em mente e de certos

diminutivos graficamente acentuados. Até aí, os advérbios de modo em mente e certos

diminutivos derivados de nomes graficamente acentuados, eram representados com um

acento gráfico grave. Exemplo:

agradável – agradàvelmente;

amável – amàvelmente;

café – cafèzinho;

pé – pèzinho;

só – sòzinho.

Que finalidade tinha a aplicação do acento gráfico grave, nestes advérbios de

modo e diminutivos? A finalidade residia justamente na necessidade de manutenção do

valor fonológico das vogais que constituíam segmentos vocálicos abertos, na estrutura

subjacente dos advérbios e dos nomes, em referência:

em dà, na palavra agradavelmente;

em mà, na palavra amavelmente;

em fè, na palavra cafezinho;

em pè, na palavra pèzinho.

Até essa data em que era aplicado o acento gráfico grave, presumia-se,

certamente, que a eliminação deste acento provocaria o enfraquecimento do timbre das

vogais abertas, na estrutura subjacente. Ora, o acento gráfico foi eliminado, nesses

advérbios de modo e diminutivos derivados de certos nomes a que nos referimos e até

hoje, décadas depois, essas vogais, que são vogais pré-tónicas, nos derivados em que

surgem, continuam abertas, na norma padrão euro-africana.

Em agradavelmente, amavelmente e outras estruturas congéneres, temos até

duas vogais pré-tónicas abertas: em da e em vel e em ma e vel, respectivamente; como

mais uma vez se observa, nenhuma delas se apresenta ladeada de qualquer consoante

muda que legitime o respectivo timbre de abertura.

Não entendemos por que razão se apregoa que a queda ortográfica das

consoantes mudas provocará, ipso factu, um fechamento das vogais implicadas que as

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precedem, se tal enfraquecimento ainda não aconteceu, nos múltiplos casos concretos

que serviram de ilustração ao presente trabalho.

Outros aspectos poderão ser reveladores da incongruência decorrente da

conservação das consoantes mudas. Consideremos outro grupo de palavras:

reflecte

reflectia

reflicto

reflicta

Neste conjunto de palavras do mesmo paradigma, somos confrontados com

palavras em que as respectivas vogais tónicas se apresentam ladeadas de uma consoante

muda, uma questão que já foi abordada atrás. Mas voltemos a considerá-la neste caso

específico, para terminarmos.

Em reflecte/reflectia, temos a tónica em ec e em reflicto/reflicta, temos a

tónica em ic. De acordo com as vozes que se opõem ao acordo, admitamos que, no

primeiro caso, em ec, a consoante muda legitime a abertura da vogal tónica. No segundo

caso, em ic, qual será o papel desempenhado pela consoante muda, sendo o i uma vogal

+ALTA, ou seja, uma vogal fechada por natureza, não funcionando com uma segunda

alternância sonora?

Conclusão

Se é verdade que os argumentos dos arquitectos do acordo ortográfico da língua

portuguesa de 1990 só podem ser entendidos numa perspectiva relativista, também se

infere, pelo que ficou dito, que se torna difícil, senão impossível, conceber um acordo

ortográfico inatacável e que agrade a gregos e a troianos - repare-se que se descobre

aqui na sílaba tro da palavra troianos mais um segmento vocálico aberto, na norma

padrão euro-africana, sem que tal propriedade fonológica seja creditada por uma

consoante muda. Se o vocalismo menos reduzido tónico e até o vocalismo pré-tónico

menos reduzido já existe, numa multiplicidade de casos não creditados por consoantes

mudas, a tese do enfraquecimento do timbre das vogais supostamente legitimado por

consoantes mudas, na sequência da queda ortográfica destas, é linguisticamente

insustentável.

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Bibliografia

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ortográfico, Texto Editores, Lisboa, 2008.

MATEUS, Maria Mira et aliae, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho,

Lisboa, 2003.

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Stability in international contracts for hydrocarbons exploration and some of the

associated General Principles of Law: from myth to reality

Nélia Dias

Pós-Graduada em Direito da Comunicação e Direito do Pteróleo e Gás

Mestre em Direito Civil

The so–called stabilized contractual relationship: classical ideas and myth in

contracts for petroleum exploration

There are several types of contracts through which one or more parties, generally

foreign and private, decide to invest in the oil and gas business. These international

contracts may be: a simple traditional concession, a PSA, service (or pure) contracts,

with or without risk clauses, joint ventures, lease contracts, hybrid or others. The main

difference between these is the fact that, on one side, we have one or more private

investors and, on the other, the state (government), a state-owned agency or a

governmental company. We can foresee rights and obligations where there are rights

granted by the state for the exploration, use and destination of the hydrocarbons. Also,

these are contracts that, due to its nature, imply the establishment of a long-lasting legal

relationship. One of “weapons” very much in use to protect the private investment from

governmental and legislative changes has been the stabilization clause. Before

investing, however, it is commonly accepted that the private investor proceeds to the

due diligence, in order to become acquainted with the local law. When such clauses are

foreseen in the state’s legal system , these dispositions are considered to be favorable in

terms of attracting investment (1). They also include the economical hazards the foreign

investor must bear.

PETER CAMERON (2) chooses to differentiate the classical from the modern.

A first notion of these clauses (3) consists in a disposition which ostensibly forbids or

mentions the consequences of the revision of an existing legislation, decrees, dispatches

or other unilateral revisions of the host state. These refer to the contract signed with this

state or to new legislation, regulations, decrees and/or dispatches which will determine a

revision in the legal relationship formerly defined between the host state and the

international investor. Or, still, they essentially dictate that legislative changes that

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affect a project unfavorably do not apply. Formerly, these dispositions were meant to

protect the investor from political hazards (4) of a specific nature (5) and they were a

way of attempting to introduce external legal sources in the contract (6). According to

FIONA MARSHALL and DEBORAH MURPHY (7) these dispositions acquired a high

profile resulting from their inclusion in the contract between the consortium of oil

companies and the states that were involved in the polemic Baku-Tsibilisi-Ceyhan

(BTC).

Through this clause the host state accepts voluntarily that its legislative and

administrative powers will not be able to change one-sidedly or even annul the

contractual conditions agreed with the investor. However, the risk of a one-sided

alteration is always present, depending heavily on the will of the governments, which

may only see things in terms of compensation. With this agreement we see a

strengthening of the roman adage Pacta sunt servanda (8) (agreements must be kept(9)),

protecting the private investor before the sovereignty of the host state over the natural

resources. These dispositions, strongly rooted in the private interest, have been

expressively repudiated by some doctrines and jurisprudence, claiming that the same

preclude the prevailing principle of public interest (10), without forgetting the terms of

casus fortuitus or the abnormal change of circumstances. This remarkable paradigm,

embedded in the Aristotelian thesis of the virtue of keeping one’s promises, must be

compensated, in this seat, in terms of international law, specifically by the VCLT (Art.

26). These clauses are also meant to define that legal security is a conditio sine qua non

of this type of agreements, aiming at the return of private investment (including in areas

as sensitive as fiscal law, environment (11), work, import and export, property rights,

among others).

Although these clauses are designated as above, their content may vary

according to authors and writing techniques. We can differentiate the freezing clauses,

which solidify the law of the host state for the entire duration of the project. Within

these clauses, ANDREA SHEMBERG cit. separates between full freezing clauses

(which aim at freezing all laws for the entire duration of the project) and limited

freezing clauses (which aim at protecting the investor in a more restricted frame of

reference). Other authors (12) choose to speak in terms of stabilization clauses in stricto

sensu or of traditional stabilization, meaning the said freezing, consistency (13) and

intangibility clauses. Here we find the prohibition to alter or annul one-sidedly

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contractually defined regulations, the supremacy of the contract as special law before

general law (legislation), predicting and defending the contract against subsequent

legislation contrary to previously agreed terms, including administrative dispatches and

similar decisions, and the incorporation of a given law in the contract signed with the

host state. For example, the establishment of a new royalty or of new taxes results in

changes to the concession contract whenever taxes were previously agreed upon. In this

case, and given the specificity of the contract, the written or tacit consent of the investor

is necessary (preferentially written) (Art. 39 of the VCLT).

Complementing this, the parties must adjust the form by which it is indispensible

the consent of both parties in case of abrogation or modification of the contract, or to

provide a non-modification, if in the present; if in the future, to prevent the one-sided

non-change or extinction of the contract.

The Principle of good-will or good faith precludes implicitly the faculty of unilaterally

changing or extinguishing the agreement made by both parties. In both negotiations

(preliminary or definitive) and the writing of the agreement, the parties must proceed

with the utmost and reciprocal loyalty and trust in the intention of fulfilling the contract

(subjective good faith) and according to socially accepted standards (objective good

faith). In this dimension one must consider that this rule does not prevent the unilateral

extinction of the contract, but it demands the payment of a just compensation in case it

is extinct. If both parties choose the international law applicable to the agreement, that

allows the use of arguments from the Public International Law, the structural Principles

of the law and the Principle of good faith, recurring to international arbitration (14).

What is the legal and functional value of these clauses? For some, they must be seen as

the limits of non-alienation of state prerogatives or as self-limitation of its legislative

competences. Maxime when it is the prediction that expressly prohibits nationalization

or expropriation (15) of the investor’s assets. As referred by DAVID ALEXANDER

and STEVEN HUNSICKER, investors are exposed to risks of expropriation by

governments, namely in the form of the modern “creeping expropriations” where the

financial advantages of the state are dilated or the control of the government over the

investor’s assets is amplified. However, we believe here that the NOC may play a

crucial role, namely in the fiscal stabilization of contracts. It is only necessary to make a

readjustment by paying additional taxes from their share of the profits or in their

royalty, if it is a PSA, or to reimburse IOC directly. By this we mean indirect

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expropriation. According to some interpretations of the courts, in order to validate a

complaint based on that ground, it is necessary that the investor relinquishes control

over the operations or the value of the deal is annulled, maxime cases Sempra vs.

Argentina (16), PSEG vs Turkey (17) and Eastern Sugar vs. Czech (18).

According to Public International Law, no state may renounce to its prerogative

of sovereignty (19), for it is through it that the state attains the prosecution of public

interest. Therefore, if the investment agreement falls in the public domain or in the

domain of administrative law, it must be treated in the terms of the legal framework of

the host state. As ABBA KOLO and THOMAS WÄLDE wrote, that is why

governments would see these agreements not as mere commercial contracts, but as

genuine instruments of public policies of which their economic development depends.

Note that every stabilization clause that contradicts peremptory norms of International

Law (ius cogens) may not produce the legal effects intended by the investor. This

parameter of sovereignty includes the power of the state over its natural resources to the

point that it is considered that the right of exploration of such resources is absolutely

inalienable or negotiable (20).

Fiscal issues are a sensitive matter. According to SILVANA TORDO (21), we

may speak of flexible, neutral and stable fiscal clauses. A supple fiscal regime allows

the government to take an adequate part of the rent according to given conditions of

profitability. It possesses the advantage of establishing a flexible structure and it is

permanently stable. A neutral regime does not promote nor demote investment and it is

considered an efficient and impartial system. A stable regime is a regime which does

not vary over a given temporal cycle nor it is foreseen that it will vary. About the

relevance of the latter, see LUÍS CEZAR P. QUINTANS (22).

The violation of the stabilization clause: some de facto and legal consequences for

the investment contract

One of the legal remedies available may, especially, be the option for the

mechanisms of contractual resolution of existing conflicts and will have its fundaments

in private investment law (when applicable) which sometimes allow the appeal to a

neutral court of arbitration. The parties involved may also choose an agreement (23),

appealing to international arbitration (24). Most litigations between a state and an

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investor are dealt with by ICSID, UNICITRAL or by arbitration courts ad hoc. In such a

situation it may be necessary to investigate, case by case, as previous question, on the

possibility of appealing to national or international arbitration court, since it is a

concession, because some legal systems consider the existence of a principle of

unavailability of public interest . If the contract possesses a stability disposition any

measure concerning social security may be considered an expropriation (25) which must

be duly compensated (Methanex Corporation vs United States of America).

The host Government (26) may not invoke its prerogative of sovereignty in

order to exclude matters referring to the contract under the jurisdiction of arbitration

court. Here, the arbiter may determine that even though international law recognizes the

right of the government to nationalize or expropriate it does not mean that the

government is not obliged to honor its commitments or pay the just compensations to

the private investor (27). Besides, it suffices to consider the imposition of specific fiscal

obligations, previously inexistent, and that may alter the balanced economic structure

existent to the date of contract execution. Here experience and practice have shown that

it is preferable to allege the violation of the principle of justice and equity in arbitration

court than to indirectly expropriate an investor. The introduction of such a clause in the

contract will have direct consequences in court as a violation of the paradigm of just and

equitable treatment in what concerns promotion of equitable foreign investment (as was

the case of Siemens vs. Argentina (28), PSEG vs. Turkey (29), Enron vs. Argentina (30),

MCI Power Group vs. Equador (31) and Parkerings-Compagniet AS vs. Lithuania (32).

Moreover, this concept is of the highest relevance since the pre-decisions of the investor

are rooted in certain commercial presuppositions, which the host state must not ignore.

It is commonly known that one of the elements integrating any paradigm of justice and

equity (and consequently of protection against arbitrary or discriminatory treatment)

means that the host state has the exact obligation to respect the so-called legitimate

expectations (33) of the investors when they actually decide to invest. But here it is

necessary to define whether we stand before a mere expectation (a simple hope to

eventually acquire the right), or of an acquired right which informs a non limited reality.

This paradigm must act in consonance with the principle of non-discrimination in the

treatment of investors, as discussed in the case Parkerings vs. Lithuania.

It is worthy to note the principle of security in juridical relations and the

obligatory subjection of states and individuals to the Democratic Rule-of-Law State

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referred to by JORGE REINALDO VANOSSI (34). In these democratic states,

behavior of government must be exemplary, included in the good governance, rooted in

the ideals of transparency, protection of legitimate expectations of the investor,

freedom, due process, good faith, and with a constant concern for public interest.

Therefore, a new law must only be enforced in the future, according to LEON FREJDA

SZKLAROWSKY (35): “(…) any legislative reform or imposition of the state must

bear in consideration the fundamental guarantees and rights.”

Another essential legal paradigm is the principle of public order, internal or

international, as advocated by GABBA (36). All norms are grounded in criteria of

public order, thus making clear that the retroactive effect is an act that generates effects

contrary to the purpose of Law, which is the realization of harmony, justice and social

peace. These beneficial principles cannot be realized without the corresponding

stability. That is why such guarantee may be classified, as said by Count GRANIER , as

the “very moral of legislation”. Therefore, we might inclusively, at least in theory,

frame acquired rights as a norm of public order. However, the doctrine is not

unanimous. It is important to be aware of the concept of public law as one that preserves

the common good, avoiding confusions with others (which only apparently deal with

public interest. If the international investment contract possesses one of the substantive

paradigms (37) of International Investment Law, informed in the so-called “umbrella

clauses” (38), a violation by the host state in an investment contract must be seen as a

genuine breach of contract.

Courts have had diverging opinions, v.g., whether a typical BIT clause, referring

the observance of obligations, may transform the proven violation of contract in a pact

or Treaty infraction. It seems that whenever a Host State violates the rights guaranteed

by the BITs to the foreign investor it is breaching norms of customary international law

as well as the obligations derived from a treaty that was signed with the state the

investor is from (note that Switzerland, the Netherlands, the United Kingdom and

Germany usually include such a clause in BITs, whereas France, Australia and Japan

only include this disposition in a minority of contracts). These clauses are usually

drafted like this: “Each party must observe any obligation it has incurred in considering

the investment.” It is supposed that there are presently over 2500 BITs and of these 40%

have such a prevision.(39) There is a wide margin for a certain interpretative

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uncertainty, more or less comprehensive, as to what is the meaning of the phrase “any

obligation”.

In a given interpretation, more generous, the idea is to convert every

commitment of the host state in an international obligation as if it were derived from the

violation of a treaty. We adhere to this wider understanding, even though we know that

this thesis presents several frailties (Eureko vs. Poland). Among other possible

inclinations, this orientation allows the investor the right to bring to the table any

contractual divergences with the host state in an international court of arbitration as well

as in state judicial courts. The first approach of a court regarding this “umbrella”

disposition had a much more restrictive view. In SGS vs. Paquistan the court ruled that

interpretation in that sense was not possible, since that clause aimed at converting the

obligation in a commitment similar to the one of an international treaty. The case of El

Paso vs. Argentina was somewhere between the two extremes, but pending towards a

narrower view of this matter.

The substantially moralizing effect of the insertion of a stability clause in

hydrocarbons exploration

Nowadays, the idea of the importance and function of a clause of this nature is

not linear. Some consider that is has no functionality in international law since it forbids

any interference (arbitrary or illegal) of a Host State regarding an investment contract.

Others understand that these would have a merely financial role, allowing

compensations for the investor. Others still consider that they might confer some kind

of secondary protection even in those situations where international law already

provides some protection to the investor. We believe that beyond the edifying effect and

of the contractual justice they represent their insertion is fundamental whenever certain

states do not intend to honor their commitments until the end of the project even though

we know that “paper accepts everything”.

As far as international law goes, we know it is valid, even though the majority of

problems are derived from the interpretation courts or arbiters make of it. That is

because we can reference the existence of international treaties and conventions which

advocate the stability of contracts. This doctrine of internationalization may aid the

investor contributing with a financial solution that may remedy the expropriation, since

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to repel it would be difficult and problem-ridden. Or the investor may not have a strong

enough stability clause in the contract signed with the government or derived from his

license. Or still the introduced clause may apply to a very restricted area, remaining

limited maxime to the fiscal elements. There may also be situations where the investor

needs, from time to time, of government approvals of a discretionary nature, so they can

begin or expand their activity. Or the government-designed objectives may be very

vague, leaving loopholes in a contract totally subject to unilateral changes by the

government. Even if the investor tries to foresee every situation, the government may

ignore the contractual stipulations assumed and impose whatever alteration it may see

fit. In our opinion, it should be written into law in these instruments that its terms are

legally binding for both parties, regardless of subsequent commitments, negotiations or

extension of contracts, except if both parties, by mutual agreement, express in writing

their will to change the meaning of said contracts.

The future of stabilization clauses in the new hydrocarbons contracts: From

classical stability to recent contractual balance

How can investors minimize their risks? They can pay higher attention to the

option of the applicable law. They may decide to introduce a very well-clad clause that

simultaneously comprehends a provision that tolerates the renegotiation of contract and

predicts the cases of force majeure or an abnormal alteration of circumstances. These

are not incompatible. But private parties involved in negotiations do not usually include

renegotiation (40). This hesitation may have to do with considering that they are making

the contractual relationship unpredictable or increasing the costs of the transaction or,

still, making the contract nonobligatory (41).

Another defense of the investor is materialized in the selection of the law (42).

Most agreements would choose the internal law. However, this may mean less

impartiality or worse preparation of the state court to judge these litigations. If both

parties choose national law then this will be the law applied, although questions

referring to nationalization or compensation fall under the jurisdiction of international

law, as far as the responsibility of the state go. In some developing countries it is

considered that the interpretation of a concession contract is a matter of domestic law.

We do not believe this is the right interpretation. Other countries invoke the already

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mentioned theses of the internationalization of contracts, meaning that once a sovereign

state assumes a commitment with a private investor, it cannot change unilaterally the

terms of contract. Contract may be changed only with mutual consent. The parties may

choose to apply only any given international law. That includes enormous difficulties

since, as it is commonly known, international norms aim at regulating relationships

among states. This is a prominent question, to decide which law to apply in case of

conflict. In these conjunctures, the cases will commonly be resolved recurring to

international arbitration. In case both parties choose to apply a law from a third state

that will be the law applicable to the contract. Whatever the choice may be, and

according to the advice of certain doctrine, it seems indispensible to us that the parties

transpose to the contract a strong appeal to the law or to international general principles

(43); if not, we may be before a case where the stabilization clause may lose all of its

functionality. As far as international arbitration goes, we may find innumerous arbitral

resolutions that comprehend this matter, namely Lena Goldfields, LTD, vs USSR,

Sapphire International Petroleum LTD vs National Iranian Oil Company, Saudi Arabia

vs. Arabian American Oil Company. The same occurred in the so called Libyan

Nationalization cases, alluding to three situations where the clauses we here analyze

prevailed and the nationalization carried out by the Libyan government constituted a

breach in International Law. Finally, we have the case Government of Koweit vs.

American Independent Oil. From another angle, it is fundamental to mention that in

many conjunctures certain norms or Principles of Commercial Law do not exist.

Presently, the mention of these clauses is meant to improve their legitimacy and

applicability (44) in more recent investment contracts. Nowadays there is great mention

of economic equilibrium clauses, economic stability clauses or economic or financial

equilibrium clauses.

In short, the primordial issue is that we are dealing with two laws or interests in

open collision, one of law and public interest and the other of private interest. Where

they disagree, we can conclude, in face of the elements here mentioned, that the public

interest is manifestly predominant, even though it provides adequate and reasonable

monetary compensations.

We have seen that in contracts of hydrocarbon exploration that there is urgent

need to appeal to international law since dispositions of stabilization may lose all their

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practical functionality due to the proven present interpretive inconsistency of

international courts of arbitration.

Next, another angle which seems substantial has to do with the circumstance that

those who negotiate and draft this type of contracts must have the greatest care in their

writing, be it in preliminary drafting phase or in the final writings in order to ensure the

actual utility of these dispositions. According to some authors, lessons learned by

negotiators are as follow: the dispositions must always be put in the clearest of writings,

saying exactly what is forbidden.

And in the absence of international legislation that may standardize foreign

investment (which is an aim) as well as of a court exclusively devoted to these matters,

we are left with courts of arbitration which cannot offer the security that foreign

investments need. We return to the age-old enigma of strength, or of its absence, in

International Law. Therefore, in some international settings it is by far preferable to

choose a global treaty on investment and to establish an international court of this

nature that may ensure a standardized formulation, interpretation and application of the

law according to the paradigms of investment protection.

This problem of lack of strength of these clauses may have grown worse due to the fact

that investors do not possess the same “negotiation superiority” they had in the former

era of concessions.

Another outcome might be the reduction of the duration of oil investment

contracts.

To conclude, it seems fundamental to us that both parties introduce a clause of

economic equilibrium in their oil investment contracts and agree to a BIT or a MAI. It is

a cautious position that frankly benefits the party. If not, we will allow new loopholes to

emerge, and there will be new forms of getting round (v.g. indirect expropriation) or to

“soften” the juridical effects that were intended with the introduction of a stabilization

clause in contracts and the latter loses all reason of existence. Or else we could easily be

tempted to say that these clauses have no actual function at all. Which we don’t agree.

Luanda, 9th

July 2010

NOTES

(1) SHEMBERG, ANDREA, Stabilization Clauses and Human Rights, International

Finance Corporation World Bank Group, UN, 27-05-2009, pages viii and 10-11.

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(2) Cameron mentions that relevant jurisprudence in the application of stability

clauses may be divided into two categories.

(3) MANIRUZZAMAN, A. F M. Stabilization in investment contracts and change

of rules in host countries: Tools for Oil and Gas Investors, London, on

26.02.2007.

(4) COALE, MARGARITA T.B., Stabilization clauses in international petroleum

transactions, EMEKA J.’WOKORO, Anchoring Stabilization Clauses in

International Petroleum Contracts, 2009, accessible in

http://works.bepress.com/emeka_wokoro/1/. PAUL E. COMEAUX e N.

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Bilateral Investment Treaties, Stabilization Clauses, and MIGA &OPIC

Investment Insurance, New York Law School Journal of International and

Comparative law, 1994. BRUNO LEONI, Freedom and the Law, 3rd

amplified

edition, Indianapolis, Liberty Fund, 1991.

(5) BLAKE, CASSELS AND GRAYDON LLP, Addressing risk in international

Petroleum agreements, 07.01.2006,

http://blakes.com/english/view_printer_bulletin.asp?ID=110

(6) PATE, THOMAS J, Evaluating Stabilization Clauses in Venezuela’s Strategic

Association Agreements for Heavy- Crude Extraction in the Orinoco Belt: the

Return of a Forgotten Contractual Risk Reduction Mechanism for the Petroleum

Industry.

(7) MARSHALL, FIONA e DEBORAH MURPHY, Climate Change and

International Investment Agreements: Obstacles or Opportunities- Draft for

discussion, published by the International Institute for Sustainable

Development, 2009, pages 34 and 35.

(8) YANNACA-SMALL, KATIA, Interpretation of the Umbrella Clause in

Investment Agreements, OECD, Working papers on international investment,

number 2006/03, October 2006.

(9) RODRIGUES, SÍLVIO, Notes taken from the class of Post-Graduation and Gas

on 21.04.2009, Faculdade de Direito Agostinho Neto, Luanda and Art. 1.3 of the

UNIDROIT convention.

(10) Different from a petroleum contract of 1999 in Azerbaijan.

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65

(11) VERHOOSEL, GAETAN, Foreign Direct Investment and Legal Constraints

on Domestic Environmental Policies; Striking a “Reasonable” Balance Between

Stability and Change, article published in Law and Policy in International Business,

Vol. 29, 1998,

(12) CAMERON, PETER, Stabilization in Investment Contracts and changes of

Rules in host countries: Tools for Oil and Gas investors, cit., page 7.

(13) NWKOLO, AMAECHI, Is there a legal and functional value for the

stabilization clause in international petroleum agreements,

http://www.dundee.ac.uk/cepmlp/car/html/car8_article27.pdf.

(14) ASMUS, DAVID, JAY ALEXANDER and STEVE HUNSICKER, The

Developed and Developing World – a look at legal issues facing the industry, Oil

and Gas Financial Journal, July, 2006, page 41.

(15) JOFFE, GEORGE, PAUL STEVENS, TONY GEORGE, JONATAN LUX

and CAROL SEARLE, Expropriation of oil and Gas Investments: Historical, Legal

and Economic Perspectives in a New Age of Resource Nationalism, The Journal of

World Energy Law and Business, 2, number 1, pages 3-23.

(16) ICSID, nº ARB/02/16 (Argentina- USs BIT), Award, 28.09.2007.

(17) ICSID, nº ARB/02/05, Award, 19.01.2007.

(18) Case nº 088/2004 (Czech Republic-Norway BIT), Final Award, 12.04.2007.

(19) CAMERON, PETER D., Property Rights and Sovereign Rights: The case of

North Sea Oil, Academic Press, 1983.

(20) KOLO, ABBA and THOMAS WALDE, Renegotiation and Contract

Adaptation in International Investments Projects- Applicable Legal Principle and

Industry Practices, Journal of World Investment, Volume 1, July 2000, Number 1.

(21) A. DAES, ERICA IRENE, in the National Native Title Conference, in

Adelaide, on 03.06.2004,

http://www.hreoc.gov.au/about/media/speeches/social_justice/natual_resources.html

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de petróleo e gás natural, Temas de Direito do Petróleo e do Gás Natural II,

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2005, pages 1-23.

(22) TORDO, SILVANA, Fiscal Systems for Hydrocarbons – Design issues, World

Bank Working Paper, no. 123, cit., pages 14-15.

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(23) QUINTANS, LUÍS CEZAR P., A cláusula de estabilidade tributária nos

contratos publico-privados, Jus Navigandi, Teresina, Year 9, no. 561.

(24) SCHEUER, CHRISTOPH, Consent to Arbitration, TDM, 2, Nº. 5, November

2005.

(25) ORTINO, FREDERICO, Latest developments in investor- state dispute, IIA

Monitor n° 1 (2008) International Investment Agreements, United Nations

Conference on Trade and Development, Geneva, TODD WEILER, International

Investment Law and arbitration, Leading cases from ICSID, NAFTA, Bilateral

Treaties and Customary International Law, Cameron May Ltd. International Law

and Policy, 2005, England.

(26). SCHEUER, CHRISTOPH H, The concept of expropriation under the ECT and

other Investment Protection Treaties, TDM, 2, No.5, November 2005, pages 105-

169.

(27) YANNACA-SMALL, CATHERINE, Indirect Expropriation and the Right to

Regulate in international Investment Law, OECD, Working Papers on international

investment, No. 2004/4, September 2004, pages 3-4.

(28) PRYLES, MICHAEL, Lost Profit and Capital Investments, 2008, page 1,

http://www.arbitration-icca.org/articles.html?author=Michael_Pryles&sort=author,

ROBERT J. INCOLLINGO, Liability: Where does is come from and where does it

end?, http://www.irinfo.org/articles/article_2_2004_incolingo.html.

(29) ICSID no. ARB/03/28 (Argentina Germany BIT), Award, 6.02.2007.

(30) ICSID no. ARB/02/5, Award, 19.01.2007.

(31) ICSID no. ARB/01/3 (Argentina- United States BIT), Award, 22.05.2007.

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(32) M.C.I. Power Group L.C. and New Turbine, Inc vs. Equador, ISCID Case no.

ARB/03/6 (Equador – United States BIT), Award, 31.07.

(33) ICSID no. ARB/05/08 (Lithuania Norway BIT), Award, 11.09.2007.

(34) GABBA, CARLO FRANCESCO, Teoria della retroattività delle leggi, I, 3rd

edition, Torino 1891-99, page 19, TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O

direito adquirido e a republicização do Estado, Multidisciplinary study, Revista do

Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, São Paulo, no. 10, page

68, 2000 in http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109

(35) quoted by CHARLLES ROCHA, Direito adquirido e estabilidade, November

1995, libertas, informative agency of UFPI, 1, no.1, 01.11.1996 in

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp/id=378.

(36) SZKLAROWSKY, LEON FREJDA, Irretroatividade da lei, Jus navigandi,

Teresina, 7, no. 66, June 2003, in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4190

(37) GRANIER( 1815) quoted by TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O

direito adquirido e a republicização do Estado, cit.., page 68, 2000 in

http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109.

(38) DOLZER, RUDOLF and CHRISTOPH SCREUER, Principles of International

Investment Law, February 2008, Oxford University Press.

(39) MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of Investment-State Tribunals:

Lessons for Treaty Negotiators, Issues in International Investment Law, Background

Papers for the Developing Country Investment Negotiators’ Forum, Singapore, 1st

and 2nd

October 2007, THOMAS WÄLDE, The umbrella clause in investment

arbitration- A comment on original intentions and recent cases, The Journal of

world Investment and Trade, 6, no. 2, April 2005, Geneva and A.C. SINCLAIR, The

origins of the umbrella Clause in the International Law Investment Protection”,

Arbitration International 2004, Volume 20, 4, pages 411-434.

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(40) GILL, GEARING e BIRT, Contractual Claims and Bilateral Investment

treaties: A comparative Review of the SGS Cases (20040 21:5 J. Int Arb. 307),

corroborated by MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of Investment-

State Tribunals: Lessons for Treaty Negotiators, cit., especially page 6 (vide

comments on pages 8-11) in

<http://www.iisd.org/investment/capacity/dci_forum_2007.asp>.

(41) BROWN, ROLAND, Contract stability in international petroleum operations,

The CTC Reporter, Number 29, Spring 1990, page 57.

(42) YUKIO GOTANDA, JONH, Renegotiation and adaptation clauses in

Investment Contracts, revisited, Vanderbilt Journal of Transnational Law, Volume

36, 2003, pages 1461-1473.

(43) MANIRUZZAMAN, A.F.M., State Contracts in Contemporary International

Law: Monist versus Dualist Controversies, European Journal of International Law,

volume 12, number 2, 2001, pages 309-328.

(44) P. SUBEDI, SURYA, International Investment Law: Reconciling Policy and

Principle, Hart Publishing Ltd, Oxford and Portland, 2008.

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Análise de correlação versus regressão linear?

Uma lição básica para jovens investigadores das Ciências Sociais

João E. Van Dunem

Professor na Universidade Católica de Angola

Introdução

O título do artigo que o leitor tem em mãos é sugestivo quanto ao seu teor e

público-alvo. Tomando como ponto de partida a aprendizagem das técnicas empregues

em toda a parte para quantificar a força da relação entre fenómenos socioeconómicos,

aos olhos de qualquer jovem investigador das ciências sociais pode afigurar-se tentador

questionar se a opção pela análise de correlação torna a regressão linear inútil ou vice-

versa. Ao fim ao cabo, merecem estes dois instrumentos que os métodos estatísticos

proporcionam ao tratamento da informação ser tratados como instrumentos alternativos?

Este ensaio ambiciona pois, entre outras coisas, oferecer ao leitor uma resposta

convincente a esta interrogação. Iremos deixar bem patente que a resposta favorece um

não: quer isso dizer que não devemos subestimar nem um nem outro método de análise.

Antes pelo contrário, é essencial encarar ambos os métodos como instrumentos de

análise indissociáveis, que se entrosam numa lógica de complementaridade. Ora, é

justamente isso que procuraremos pôr aqui em prática, com uma lição sobre como fazer

o estudo formal do grau de associação entre duas variáveis pertencentes à esfera das

ciências sociais.

Na perspectiva do leitor, esta lição tem a vantagem de ser breve e de fácil

abordagem. Iremos passar em revista alguns conceitos chave como a co-variância da

amostra e o coeficiente de correlação, demonstrar de que forma os dois conceitos estão

relacionados entre si e, finalmente, introduzir aquilo que em métodos estatísticos é

conhecido como o método de regressão linear. Trata-se de uma abordagem que será

realizada em três etapas e em que o exemplo escolhido é hipotético, apresentando dados

meramente fictícios sobre as vendas de um certo produto alvo e seus respectivos

anúncios televisivos na véspera. Talvez seja oportuno insistir que qualquer investigador

sério e empenhado que se dedique ao estudo de problemas relacionados com as ciências

sociais tem a obrigação de estar familiarizado com estes conceitos.

1. Etapa nº 1: A Co-variância e o Coeficiente de Correlação

Podem ser variadas as situações, no âmbito das ciências sociais, em que um

investigador ou analista procura apurar o grau de associação entre duas variáveis.

Importa pois frisar que, em tais casos, a análise de correlação pode ser um instrumento

de enorme utilidade. O ponto fundamental que devemos reter no que toca a este método

de análise é que não permite aferir nada sobre causalidade (ou seja, estabelecer o

sentido da relação de causa e efeito), e deste modo, apenas proporciona ao analista um

esclarecimento sobre a força da relação entre duas variáveis. Além disso, é preciso não

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70

desprezar o facto da análise de correlação só ser eficaz no contexto de relações lineares,

não sendo portanto apropriada para detectar relações entre variáveis cuja natureza não

seja do tipo linear.

Concentremo-nos, em primeira instância, na co-variância, uma das duas noções

usadas por excelência em análise de correlação. A fórmula para a co-variância da

amostra é dada pela seguinte expressão:

(A)

Nota: A fórmula para a co-variância da população (de tamanho N) é a seguinte:

(B)

Nas fórmulas para (A) e (B) apresentadas acima, note-se que cada observação X

tem como par uma observação Y correspondente. A soma dos produtos dos desvios de

X e Y em relação às médias respectivas é, assim, dividida por N ou n - 1, consoante

estejamos a lidar com uma população ou amostra.

De forma a facilitar um melhor entendimento sobre a aplicação destes conceitos

estatísticos, prestemos atenção a um exemplo concreto. Assume-se que a variável X

indica o número de spots comerciais que vão para o ar num canal de Televisão numa

sexta-feira à noite. Y representa as vendas (em milhares de Kwanzas) do produto alvo

no dia seguinte, ou seja, Sábado.

Tabela 1. Cálculos para o valor da co-variância da amostra

( )( )

2 24 -1 4 -1 48 1

5 28 2 25 3 140 6

1 22 -2 1 -3 22 6

3 26 0 9 1 78 0

4 25 1 16 0 100 0

1 24 -2 1 -1 24 2

5 26 2 25 1 130 2

∑ = 21

∑ = 175

∑ = 0

∑ = 81

∑ = 0

∑ = 542

∑ = 17

A partir deste exemplo, utilizando os dados da tabela 1, e

. Usando (A), obtemos então:

=

O termo da co-variância aparentemente indica uma relação positiva e forte entre

os anúncios comerciais e as vendas. Nesta fase, convém contudo acolher este resultado

com alguma prudência. A magnitude do termo da co-variância pode facilmente induzir

em erro visto que o seu valor é influenciado pelas unidades de medida escolhidas. Por

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exemplo, se a variável X é medida em termos do número de anúncios e a variável Y

medida em termos de centenas de Kwanzas, a medida da co-variância será sensível a

estas novas unidades. De facto, é possível constatar que quanto mais pequenas forem as

unidades, maior será o valor da co-variância quando objectivamente não existe nenhuma

diferença na relação subjacente.

É inevitável, portanto, reconhecer que este termo da co-variância não é robusto a

variações nas unidades de medida e por isso necessita de ser corrigido ou, como é hábito

dizer-se na gíria mais técnica, “estandardizado”. Para tal, faz-se apelo ao conceito do

coeficiente de correlação de Pearson, definido para dados numa amostra pela fórmula

seguinte:

(C)

onde = coeficiente de correlação da amostra, = co-variância da amostra, =

desvio-padrão de X na amostra, = desvio-padrão de Y na amostra.

Aviso: O coeficiente de correlação de Pearson para dados de uma população de

tamanho N é dado pela expressão:

onde = coeficiente de correlação da população, = co-variância da população,

= desvio-padrão de X na população, = desvio-padrão de Y na população.

(C) é geralmente referido como o coeficiente de correlação de Pearson da

amostra. Este instrumento estatístico é calculado dividindo a co-variância da amostra

pelo produto do desvio-padrão de X e do desvio-padrão de Y. É possível usar os dados

da tabela 1 para efectuar o cálculo do coeficiente de correlação. O desvio-padrão de X e

o desvio-padrão de Y vão ser dados pelas expressões:

= = 1.7321

= = 1.9149

O coeficiente de correlação de Pearson pode, finalmente, ser calculado com a

seguinte fórmula:

= = 0.854

O coeficiente de correlação pode situar-se entre -1 e +1. Um coeficiente de

correlação de uma amostra precisamente igual a +1, implica que todos os pontos de um

conjunto de dados localizam-se numa recta com declive positivo. No caso do

coeficiente de correlação ser exactamente igual a -1, todos os pontos localizam-se numa

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72

recta de declive negativo. Neste caso específico, o valor estimado para o coeficiente de

correlação de 0.854 sugere uma relação muito forte, positiva e linear entre os anúncios

de televisão à Sexta e as vendas ao Sábado.

O coeficiente de correlação é seguramente um indicador estatístico que suscita

interesse já que pode ser usado para estudar inter-relações lineares entre variáveis

embora, em última análise, não deixe de ser um instrumento quantitativo questionável

em alguns aspectos do estudo das variáveis em questão. Primeiro, não existe

possibilidade de se retirar conclusões quanto à causalidade (qual das variáveis exerce

influencia sobre a outra?); segundo, a sua aplicabilidade está reservada para relações

cuja forma é estritamente linear, não podendo assim servir para detectar relações não

lineares; terceiro, a possibilidade para se testar outras hipóteses sobre o coeficiente de

correlação para além deste ser igual a 0 é bastante limitada.

2. Etapa nº 2: Análise de Regressão Simples

A etapa anterior, a análise de correlação, permite pôr em prática um método

estatístico com o qual é possível conhecer o grau de associação linear entre duas

variáveis. Ora, a análise de regressão pretende ser mais ambiciosa, indo mais longe e

procurando determinar a relação funcional (natureza e forma), entre duas (ou

eventualmente mais) variáveis. A análise de regressão baseia-se na formulação de um

modelo matemático que supostamente permitiria representar o comportamento do

fenómeno sob estudo. O modelo de regressão mais básico é o modelo de regressão

simples que é um modelo de regressão linear com duas variáveis: uma das variáveis é

prevista através do uso de uma outra e será necessário recorrer à teoria para determinar

a direcção da causalidade, um requisito que não era necessário quando estudámos a

análise de correlação.

A variável que é prevista tem o nome de variável dependente ou variável

explicada e é convencionalmente designada por Y. A outra variável, por costume

designada por X, é conhecida como variável independente ou variável explicativa. O

método de regressão simples baseia-se na escolha da recta que melhor se adequa

linearmente aos dados.

Para exemplificar o uso da análise de regressão, vamos agora utilizar os mesmos

dados da tabela 1. A equação para uma recta é dada pela expressão seguinte:

Y = m X + c

onde m é o declive da recta e c é a intercepção da recta. Consideremos no diagrama de

dispersão abaixo os dados sobre anúncios de TV (X) e as vendas correspondentes (Y).

A relação positiva entre as duas variáveis é bem patente. O objectivo da análise de

regressão linear é, no fundo, descobrir a recta que melhor descreve os dados observados.

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Os modelos matemáticos podem ser determinísticos ou probabilísticos. Desde

logo, convém prestar aqui um esclarecimento relativamente a estes dois termos. Os

modelos determinísticos visam produzir um resultado exacto para um determinado

input. O modelo probabilístico, ao invés, consiste numa equação, recuperando de novo

o nosso exemplo, que procurará relacionar as vendas ao Sábado com a publicidade à 6ª

feira e que não irá produzir uma previsão exacta das vendas ao Sábado. Isto acontece

mercê da existência de outros factores importantes envolvidos na explicação das vendas,

contudo negligenciados pela relação matemática. Desta forma, o modelo probabilístico

irá certamente gerar previsões com uma componente de erro. O modelo probabilístico

de regressão para uma determinada população pode exprimir-se da seguinte forma:

A componente representa a parte determinística do modelo

probabilístico enquanto a componente representa a parte aleatória do modelo. A

verdade, porém, é que a análise de regressão usa tipicamente dados de uma amostra e

não de uma população o que leva a que α e β não sejam facilmente alcançáveis e devam

ser estimados a partir das estatísticas e , estas sim resultantes da amostra. Sendo

assim, podemos re-escrever:

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74

Em análise de regressão, assume-se um número importante de pressupostos

sobre o termo , termo incluído na recta de regressão da população. São eles:

a) (o valor esperado de é igual a 0, logo a média é 0)

b) (o valor esperado de ao quadrado é uma constante)

c) onde ≠ (a co-variância entre é igual a 0; isto é, as

componentes residuais na regressão da população são totalmente independentes,

temporalmente ou espacialmente)

d) (as componentes residuais na regressão da

população têm uma distribuição normal com média de 0 e variância constante;

este pressuposto está conforme os 2 primeiros pressupostos mas com a

introdução explicita do pressuposto da normalidade)

Não faz parte dos objectivos do artigo explorar estes pressupostos. Contudo,

convém lembrar que se os distúrbios violarem qualquer um destes pressupostos, as

consequências para os valores estimados do modelo de regressão poderão ser

prejudiciais. Por exemplo, se o pressuposto de normalidade for violado, poderá ser um

sinal da existência de valores extremos (“outliers”), o que por si exige uma investigação

mais aprofundada.

Voltemos agora ao assunto da estimação. Os valores para e podem ser

obtidos com o método dos mínimos quadrados. A recta “ajustada”, representada pela

intercepção e pelo declive é a recta que minimiza a soma dos erros ao quadrado.

Um erro em análise de regressão é o desvio vertical do valor observado de Y em relação

ao valor de Y estimado pela intercepção e pelo desvio . Uma vez que os erros, os

desvios entre os valores observados e os valores ajustados podem ser positivos ou

negativos, vamos elevá-los ao quadrado para assegurar que estes não se cancelam entre

si. O valor Y estimado pela recta de regressão, ou seja, pela intercepção ɑ e pelo declive

b vai ser dado por:

Os valores previstos de Y são previstos através da recta de regressão. O resíduo

ou erro é simplesmente a diferença entre o valor de Y e o valor previsto de Y e pode ser

definido pela expressão . Chegamos finalmente à soma dos erros ao quadrado,

definida por:

pois

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Há vários métodos para estimar os coeficientes da recta de regressão e . Um

deles, bastante divulgado devido às suas propriedades, consiste em minimizar a soma

dos erros ao quadrado (SEQ). Como devemos proceder? É simples, basta usar a

diferenciação parcial da SEQ com respeito a e . Para maior simplicidade, vamos

suprimir nas derivações seguintes os subscritos .

A. Escrever a derivativa parcial de SEQ com respeito a e e igualá-la a 0.

(condição de primeira ordem)

(condição de primeira ordem)

Estas duas equações constituem em conjunto aquilo que em métodos quantitativos

se conhece por condições de primeira ordem. Como temos 2 equações e 2

incógnitas ( e estas equações podem ser solucionadas!

B. Vejamos de seguida a primeira equação.

Se multiplicarmos por –( ) obtemos:

= 0

sendo que

Procurando uma expressão para

C. Temos deste modo uma expressão para a intercepção da recta Olhemos agora

para a segunda equação. Multipliquemos então a equação por –( ):

Expandindo, obtemos:

Substituindo a expressão encontrada para na equação:

Multiplicando por -1 e rearranjando a equação, temos:

Estamos agora mais perto de encontrar uma solução para :

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É possível demonstrar que

E também que:

Deste modo, uma alternativa à fórmula anteriormente encontrada para o declive

da recta é:

Embora esta nova fórmula seja sem dúvida alguma mais compacta, a fórmula

anterior é mais fácil para efeitos de implementação do cálculo. Se aproveitarmos os

dados reportados na tabela 1, podemos facilmente encontrar valores para estimar o

declive e a intercepção da recta. Se o leitor reparar com atenção, há duas colunas

que não foram utilizadas em cálculos anteriores e que contribuem para calcular o

coeficiente . Sendo assim:

Naturalmente, agora é mais fácil encontrar o valor para a intercepção :

Em suma, a estimativa para a intercepção com a aplicação do método dos

mínimos quadrados é igual a 22.18 e a estimativa para o coeficiente do declive da recta

é 0.94. Como interpretar estes coeficientes? A interpretação para é simples: é o nível

autónomo de vendas que ocorrem mesmo sem publicidade televisiva. No caso da

interpretação para o outro coeficiente, indica o efeito de um anúncio extra no volume

das vendas. Assim, um aumento à 6ª feira para mais um anúncio aumenta o volume de

vendas em 0.94 Kwanzas × 1000, ou seja, 940 Kwanzas.

3. Etapa nº3: O Coeficiente de Determinação (R²)

Ninguém pode negar que o método dos quadrados mínimos possibilita uma

aproximação linear à relação entre as variáveis X e Y, como se viu através do exemplo

utilizado neste artigo. Mas a grande questão que se coloca diante de nós neste momento

e que vai merecer tratamento nesta terceira etapa consiste em saber até que ponto esta

aproximação poderá ser considerada boa.

Já definimos SEQ no ponto anterior.

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77

A esta quantidade mensurável dá-se muitas vezes a denominação de componente

inexplicada. Além do mais, é possível aproveitar a nuvem de pontos e medir uma outra

quantidade, a soma total dos quadrados (ou, em alternativa, soma do quadrado dos

desvios totais), adiante designada por SQT, em que a preocupação doravante seria

apenas quantificar a soma das distâncias entre as observações de Y e o valor da média

de Y (e não Y previsto pela regressão), previamente elevadas ao quadrado. O leitor

atento terá presumivelmente dado conta que esta medida, divida pelo número de

observações, resultará no cálculo da variância:

Finalmente, a partir da nuvem de pontos, podemos chegar a uma medida idêntica

que permita quantificar a parte da variação de Y em relação à média de Y que pode ser

explicada pela variável X. A esta medida, que podemos considerar a componente

explicada pela regressão, chamaremos de variação explicada de Y (VEY).

Assim fazendo, é possível apresentar uma particularidade na relação entre as três

quantidades, SEQ, SQT e VEY:

SQT = VEY + SEQ

Sem grande dificuldade, pode-se calcular então as previsões para as sete

observações do nosso exemplo (usando a recta de regressão), medir a diferença entre os

valores actuais e previstos pela recta de regressão e, por fim, estimar o valor de SEQ. A

tabela seguinte reúne resumidamente os cálculos efectuados.

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Tabela 2. Os cálculos de SEQ e SQT

X

Y

Previsão de

Y

Y – Previsão de Y

(Y – Previsão de Y)²

2 24 24.06 -0.06 0.0036 1

5 28 26.88 1.12 1.2544 9

1 22 23.12 -1.12 1.2544 9

3 26 25.00 1.00 1.0000 1

4 25 25.94 -0.94 0.8836 0

1 24 23.12 0.88 0.7744 1

5 26 26.88 -0.88 0.7744 1

Σ = 21 Σ = 175 Σ = 5.976 Σ = 22

A partir dos resultados apresentados na tabela acima, SEQ é igual a 5.976, SQT

é igual a 22 e VEY (22 – 5.976) é igual a 16.024. Verifica-se, pois, que estamos agora

numa posição privilegiada para avaliar a qualidade do ajustamento da recta de

regressão. O coeficiente de determinação (R²), definido como a proporção da variação

de Y que pode ser atribuída à variação da variável X, é precisamente a medida principal

para esclarecer este tipo de questões. No caso do coeficiente de determinação atingir um

valor elevado, não só a qualidade do ajustamento será boa como também a proporção da

variação de Y explicada pela variável X será significativa. O coeficiente de

determinação é definido pela expressão:

Em jeito de balanço, pode-se concluir que cerca de 73% da variação nas vendas

pode ser explicada pela variação em publicidade. Mais curioso ainda: é possível

demonstrar que o coeficiente de correlação calculado na primeira etapa, quando elevado

ao quadrado, é aproximadamente idêntico ao valor estimado para o coeficiente de

determinação. O valor do coeficiente de correlação encontrado é igual a 0.854 e depois

de o elevarmos ao quadrado é igual a 0.729. Diante da evidência aparente de uma

relação causal entre vendas e publicidade, deve-se no entanto acautelar o leitor contra a

grave tentação de se falar em causalidade em contextos em que o método de análise

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79

posto à disposição do investigador circunscreve-se àquele que foi apresentado na

primeira etapa do presente artigo.

4. Observação final

Este ensaio tem uma simples finalidade: sintetizar alguns princípios básicos para

uma abordagem quantitativa do grau de relação entre dois fenómenos, sejam eles de

natureza social ou económica. Fazendo recurso a uma linguagem acessível, o ensaio é

concebido para corresponder eficazmente às necessidades das novas gerações de

estudantes angolanos das ciências sociais e humanas, prestes a vir a desempenhar

funções de alta responsabilidade enquanto economistas, gestores ou investigadores em

Angola.

Devemos sempre encarar os factos como eles se apresentam. Para alcançar a

verdade dos factos, é preciso analisá-los com método e rigor científico, sem qualquer

tipo de rodeios ou tendenciosidade: tudo se joga no reconhecimento da importância de

dispormos de instrumentos práticos como aqueles que aqui vimos que, em última

análise, possam permitir uma tomada de consciência da realidade em que vivemos.

Referências

R L Thomas – Modern Econometrics (Addison Wesley)

Jack Johnston, John Din Nardo – Econometric Methods (McGraw Hill)

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80

DA IMPORTÂNCIA DA UTILIZAÇÃO DE CULTIVARES DE QUALIDADE E

DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA

J.M. Peres do Amaral

Eng.º Agrónomo

I. DO PESO DAS BOAS CULTIVARES NA PRODUÇÃO AGRÍCOLA

A produção agrícola compensadora é condicionada por determinados princípios

que não actuam isolados, mas de modo interdependente, que se conjugam numa lei dita

dos factores limitantes. Segundo esta lei, o mais baixo nível de um factor impede o

efeito positivo de todos os demais, ainda que estes abundem.

Em escritos anteriores discorremos sobre dois factores fundamentais no

condicionamento da produção e da produtividade agrícola: a fertilidade do solo e as

disponibilidades hídricas.

No presente artigo trataremos de uma terceira questão básica para o aumento da

produção e melhoria dos rendimentos unitários, e que é, também ela, um factor

restritivo do desenvolvimento agrícola: a qualidade das sementes e propágulos usados

no cultivo.

O reconhecimento do peso das boas cultivares na produção agrícola vem de

longe. Em 1600, Oliver de Serres já afirmava que “a escolha de boas sementes é um dos

factores mais importantes para a produção de cereais, porque colheita mais que

miserável se pode esperar de sementes de má qualidade”.

As exigências que se põem relativamente à qualidade das cultivares utilizadas na

cultura colocam-se, no geral, no quadro dos seguintes quesitos:

i) Produtividade, traduzida na aptidão para proporcionar um rendimento elevado,

quando colocada em meio conveniente e lhe são dispensadas as melhores

técnicas culturais.

ii) Regularidade de rendimento, aplicada à capacidade de atenuação das oscilações

nas condições do meio, e que confere uma certa aptidão de adaptação da cultivar

à relação clima x solo, ao meio biológico e às técnicas culturais.

iii) Qualidade do produto, referida esta característica, actualmente e cada vez mais,

ao meio biológico e às técnicas culturais.

Cada cultivar é, portanto, caracterizada pela sua produtividade, pela expressão

da sua adaptabilidade, e pela qualidade da produção que fornece.

A cultivar ideal não existe, porque impossível reunir num só individuo os

inúmeros atributos atrás compendiados. Não sendo possível dispor de uma cultivar

muito produtiva, fornecedora de um produto de grande qualidade e, simultaneamente,

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resistente às adversidades do meio e a todos os inimigos, a melhor cultivar será a que

proporciona o melhor rendimento médio de um produto de qualidade.

A observação da produtividade actual das principais culturas praticadas no País

leva à conclusão que todas, tanto alimentares como comerciais, apresentam índices

muito baixos, relativamente ao que se verifica noutros países africanos, alguns com

condições naturais menos favoráveis.

Entre os principais factores que limitam as produções dessas culturas, para além

da problemática da fertilização dos solos e nutrição das plantas e da disponibilidade de

água, coloca-se sem dúvida, a questão da utilização de sementes e propágulos de

qualidade, certificados, problema, em geral, com maior incidência nos cereais (milho,

massango, massambala, arroz, trigo), hortofrutícolas, batata, mandioca e algodão.

II. DOS PROCESSOS DE MELHORAMENTO DE PLANTAS

O homem sempre perseguiu o objectivo da obtenção de plantas de qualidade,

tendo em vista a utilização de cultivares adaptadas aos diferentes sistemas agrícolas,

com maiores e melhores produções e com menos custos.

O emprego de cultivares importadas – diferentes das existentes em determinada

região – por razões de volume da produção, da geração de bens de qualidade, ou de

resistência a pragas e doenças locais, é frequente e tão assíduo que não há, praticamente,

país algum que não lance mão desse recurso. Isto pode considerar-se, já por si, como

uma prática de melhoramento.

Mas pese embora a existência de uma extensa bibliografia descrevendo inúmeras

experiências com cultivares exóticas, levadas a cabo em diversas partes do globo, que

permite inferências sobre espécies e variedades a eleger, a opção final a favor desta ou

daquela tem que apoiar-se em resultados de uma experimentação “in loco”, o que, como

é evidente, impõe uma série de averiguações de ordem agronómica e carrega diversas

contingências.

Outra forma de incrementar o emprego de melhores cultivares, também já muito

generalizada, é a do recurso a material local geneticamente melhorado, que se revela

mais eficiente e capaz de tirar maior proveito das condições e factores de produção

disponíveis.

O melhoramento genético utiliza a biotecnologia, campo de actividade em que

diversas áreas científicas e tecnológicas se interligam para conseguir, por exemplo, o

aumento da produtividade, a melhoria da qualidade, o maior tempo de conservação dos

produtos, a resistência às pragas, doenças e infestantes.

A técnica tradicional do melhoramento genético recorre à hibridação

compreendendo o cruzamento entre entidades genéticas diferentes, tais como: espécies,

variedades, proveniências e linhas seleccionadas. Trata-se de um procedimento moroso,

nem sempre permitindo uma previsão do produto final e que não garante que as

características de interesse se revelem integralmente da forma desejada.

Uma intervenção relativamente recente da biotecnologia na agricultura consiste

na produção de plantas geneticamente modificadas (variedades geneticamente

modificadas – V.G.M.). A informação genética nestas V.G.M. resulta de alterações de

uma forma que não ocorre na natureza por meio de recombinação natural. Através da

manipulação do ácido desoxirribonucleico (DNA) introduz-se um fragmento genómico

de interesse num hospedeiro adequado, tornando possível combinar sequências de DNA

de animais e plantas ou destes com microorganismos.

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O desenvolvimento de culturas geneticamente modificadas operou-se com

alguma rapidez, mas assiste-se, ultimamente, a uma certa oposição social, que clama

pela adopção do princípio da precaução em virtude de dúvidas que se põem quer no que

respeita à preservação da natureza e meio ambiente como no que se refere à saúde.

III. DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA

O melhoramento de plantas em Angola teve início, praticamente, nos séculos

XV / XVI, dinamizado pelos religiosos empenhados no estabelecimento de Missões e

pelos colonos que, tentados pela actividade agrícola, trouxeram e mandaram vir da sua

terra sementes e estacas. Desde cereais às fruteiras e hortícolas, passando pelas

oleaginosas, plantas forrageiras e produtoras de fibra, missionários e colonos

experimentaram o cultivo de formas que lhes eram familiares.

O estabelecimento de explorações agrícolas de maior ou de menor dimensão

levou ao aumento das importações de sementes e propágulos, muitas vezes induzido

pelo insucesso de algumas formas lançadas no cultivo. Da Europa, da América do Norte

e do Sul, da Ásia, vieram sementes e propágulos de inúmeras cultivares para Angola, e,

assim, ainda que empiricamente, se contribuiu, sem dúvida, para o melhoramento.

Mas o recurso a forma importadas, se bem que processo cómodo e, de certo

modo, económico, nunca se mostrou capaz de contornar o inconveniente, de ocorrência

frequente, de resultados muito falíveis. Na verdade, não é de todo expectável que

sementes e propágulos importados mostrem plasticidade bastante para uma inteira

adaptação a condições diferentes daquelas em que e para que foram criados ou

produzidos.

Foi essa conclusão que acabou por conduzir à decisão do desenvolvimento de

projectos locais de melhoramento de plantas e reprodução de sementes para a

agricultura angolana.

A primeira tentativa estruturada de melhoramento de plantas no território foi

realizada por volta de 1920, pelo Engº Seromenho Romão, na intenção de resolver a

problemática do “trigo das chuvas”, que consistia no facto das searas desenvolvidas

durante a quadra pluviosa serem frequentemente devastadas por violentas epidemias de

ferrugem. Mas foi nos anos 30, porém, que o melhoramento e reprodução de sementes e

plantas registou progressos palpáveis, graças ao desenvolvimento de um trabalho

persistente e com carácter de continuidade, modelado por determinações estabelecidas

em regulamentos.

No quadro das Bases Orgânicas dos Serviços de Agricultura da Colónia, fixadas

em 1927, foi aprovado, em 1934, o “Regulamento das Estações de Melhoramento e

Reprodução de Sementes e Fruteiras dos Planaltos de Angola”, que visava,

fundamentalmente, a produção em larga escala “de sementes seleccionadas, de enxertos,

plantas enxertadas e de cavalos frutícolas e de plantas de café arábica”, para distribuição

gratuita aos agricultores. A este objectivo aliava-se o da melhoria e multiplicação de

diversas plantas consideradas de interesse agrícola, tais como, as forrageiras, as de

sombra e abrigo, as fibrosas, as oleaginosas e as destinadas a siderações. Para além dos

objectivos referidos, pretendia-se que as Estações abrigassem Escolas Práticas

destinadas à preparação de capatazes e monitores agrícolas indígenas, e que servissem

de modelo a núcleos de colonização europeia a instalar em redor.

Ao abrigo do Regulamento citado foram criadas as Estações de Sementes do

Cuíma (no planalto do Huambo), de Malanje e da Huíla (Humpata). Simultaneamente, e

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com vista ao alcance dos objectivos expressos, beneficiaram-se as Estações

Experimentais do Algodão (Catete) e do Café (Cazengo), já existentes.

Em 1936, em termos de material melhorado, e gratuitamente, a Estação do

Cuíma distribuiu cerca de 26 toneladas de sementes, a de Malanje 45 toneladas de

sementes e, aproximadamente, 9.000 plantas, e a da Huíla 1 tonelada de semente e cerca

de 12.000 plantas (de fruteiras).

Sem retirar o valor e o mérito das iniciativas relatadas, foi, contudo, a Junta de

Exportação dos Cereais das Colónias que desempenhou um papel determinante no

melhoramento sob bases técnico-cientificas mais elevadas, pelo menos que diz respeito

aos cereais.

No princípio dos anos 40, sob financiamento da Junta, com colaboração dos

Serviços de Agricultura e sob a direcção do Eng.º Agrónomo Saraiva Vieira,

começaram a ser dados passos determinados no melhoramento do trigo, do milho, e de

culturas que, com estes cereais, poderiam intervir na rotação. Numa perspectiva de

trabalho persistente e da viabilidade deste ramo de investigação, instalaram-se, em

1942, algumas colecções vindas de Elvas (Portugal), da Estação de Melhoramento de

Plantas. A colecção incluía 1.800 formas de trigo, cerca de 400 de aveia, 300 de

cevadas, aproximadamente, e um pequeno número de forragens.

Desde início, o programa de melhoramento de trigo visou a obtenção de formas

resistentes às ferrugens – Puccinia graminis tritici Eriks & Henn. e Puccinia triticina

Eriks – causadoras de prejuízos elevados, por vezes totais, e que colocavam em dúvida a

viabilidade do cultivo do “trigo das chuvas” nos planaltos angolanos. De 1940 a 1944,

os trabalhos centraram-se, principalmente, em estudos de adaptação e lançamento na

cultura de algumas variedades, designadamente as Kruger, Kota x Webster e 3606

Kénya. Realizaram-se, também, no período, alguns cruzamentos no propósito de

melhorar a espiga do Kruger, utilizando-se como genitores alguns trigos italianos de

grande densidade de espiga.

Relativamente ao milho, o trabalho de melhoramento centrou-se, até 1944, na

selecção massal rigorosa da variedade angolana branco redondo, a mais carecida de

intervenção, porquanto a interferência de milhos dentados e amarelos obstava o

aparecimento no mercado de lotes sem mistura.

A aveia mereceu, entre 1940 e 1944, pouca atenção: algumas observações das

colecções, e uma selecção natural de certa utilidade, determinada por um virulento

ataque de puccinea coronata.

No que respeita à cevada, cujo programa de melhoramento objectivava a

obtenção de variedades produtoras de elevados teores de malte, os trabalhos realizados

até 1944 limitaram-se ao estudo da colecção e a esporádicos enriquecimentos do

número de formas que a compunham.

No domínio das forragens, em que se perseguia a eleição de formas rústicas

bastante produtivas capazes de garantir alimentação verde no cacimbo, de 1940 a 1944

os trabalhos repartiram-se entre o estudo das colecções, o seu enriquecimento com

novas formas anuais e permanentes, a realização de ensaios comparativos de produção

segundo esquemas estatísticos, e a apreciação do comportamento de alguns capins, em

talhões submetidos a pastagem directa, tidos como prometedores – designadamente dos

géneros MELLINIS, PANICUM e PASPALUM.

A soja foi, também, até 1944, objecto de algumas observações e de ensaios

comparativos de produção.

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Em 1944, a Junta de Exploração dos Cereais das Colónias resolveu adquirir os

terrenos da Chianga, nas vizinhanças da cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo, e

instalar aí uma “Estação de Melhoramento de Plantas”.

Em 1945 visitou Angola o Professor Engenheiro Domingos Rosado Victória

Pires, então Director da Estação de Melhoramento de Plantas de Elvas (Portugal), para

observação dos trabalhos sobre o melhoramento de cereais, iniciados em 1942, pelos

Serviços Técnicos da Junta de Exportação dos Cereais das Colónias. Na sequência dessa

visita e de solicitação que lhe foi feita, o Professor Victória Pires traçou um Plano de

Trabalhos visando o Melhoramento de Cereais de Auto-Fecundação (Trigos, Cevadas,

Aveia e Arroz) e de Fecundação Cruzada (Milho e Centeio), de Forragens e, ainda,

Estudos de Adaptação e Multiplicação, de Afolhamentos, e Ensaios de natureza

agronómica.

A esfera de acção da Estação de Melhoramento de Plantas de Angola viu-se

limitada a partir dos anos 50, até 1961, por insuficiência de meios humanos e materiais.

A actividade desenvolvida passou a centrar-se na manutenção das colecções, em estudos

de tecnologia de fertilização em solos do Planalto Central angolano, e, principalmente,

em trabalho de lançamento de novas cultivares de trigo e de melhoramento do trigo e do

milho. Relativamente ao trigo, prosseguiu-se com o programa visando a obtenção de

formas de valor cultural perante as variações das populações de raças de ferrugem, em

consequência de fenómenos de mutação, hibridação e pela introdução de esporos

carreados pelas correntes aéreas; em relação ao milho, deu-se continuidade ao

melhoramento e à produção de sementes das variedades do Branco Redondo e do

Amarelo Maria e a trabalhos de auto-fecundação para a produção de híbridos.

Em 1962 é criado o Instituto de Investigação Agronómica de Angola (IIAA),

ficando a sede e os principais laboratórios instalados na Chianga (na propriedade que

era pertença da Junta de Exportação de Cereais das Colónias, onde se instalara a

Estação de Melhoramento de Plantas), e tendo adstrita uma rede de mais de 12 Centros

de Estudos Regionais.

A estrutura da Instituição compreendia, fundamentalmente, 7 Departamentos

Especializados: Mesologia e Fertilidade do Solo, Biologia Agrícola, Agricultura,

Estudos Florestais e Tecnologia Florestal, Sanidade Vegetal, Engenharia e Tecnologia

Agrícolas e Economia, Sociologia e Planeamento Agrícolas.

O programa de actividade distribuía-se por 21 projectos de investigação

planificada sobre grandes temas, entre os quais 4 no domínio do Melhoramento

Genético e Cultural: Projectos de Melhoramento de Trigo, do Milho, da Palmeira de

Dendém e do Cafeeiro.

O projecto de Melhoramento do Trigo tinha como objectivo a criação e a eleição

de melhoras formas cultivadas de trigo, guiadas fundamentalmente pela resistência às

doenças e por um ciclo vegetativo de resposta às condições ecológicas de Angola, e,

complementarmente, atendendo às questões de produtividade, da qualidade para a

panificação, da resistência à acama, desgrana e a acidentes de diversa natureza. Em,

síntese, o método de melhoramento adoptado constava do uso da hibridação artificial,

estudo e selecção das descendências durante as gerações heterozigóticas, e o estudo

detalhado, em ensaios de campo, do material homozigótico achado prometedor.

No inicio dos anos setenta foram lançados na cultura quatro trigos produzidos

pelo Instituto de Investigação Agronómica de Angola – IIAA: Maia do Vale, Saraiva

Vieira, Bairrão e Pinto.

O melhoramento do milho perseguia os objectivos já antes traçados no tempo da

Estação de Melhoramento de Plantas da Junta de Exportação de Cereais das Colónias:

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a) Obtenção de milhos com maior capacidade produtiva e bem adaptados

às várias zonas de cultura, através do melhoramento das variedades

locais de polinização livre (criação de variedades sintéticas) e da

consecução de boas linhas auto fecundadas e seu uso em programas de

milhos híbridos;

b) Obtenção de formas de milho resistentes ao Helminthosporium

Turcicum Pass., problema preocupante em diversas regiões do País

importantes no contexto da produção e consumo do milho.

O melhoramento da palmeira dendém – Elaeis Guineensis, Jacq. – seguia um

paradigma que atendia os aspectos da quantidade e qualidade do óleo produzido e o

aperfeiçoamento das técnicas culturais, e pretendia beneficiar duas zonas principais do

território: a da média altitude e a faixa litoral.

No domínio do melhoramento genético, o objectivo incidia no cruzamento do

tipo DURAxPISIFERA, com vista à obtenção de sementes híbridas de TENERA, mais

ricas em polpa e capazes de uma maior produção de óleo, e à sua difusão na cultura.

No que se refere ao melhoramento da técnica cultural, o projecto perseguia o

afinamento dos métodos de forçagem de sementes e o estudo e a difusão dos melhores

procedimentos culturais e tecnológicos.

Quanto ao Programa do Café, o objectivo perseguido era o melhoramento

genético e cultural do cafeeiro. O melhoramento genético privilegiava o C. arábica, em

virtude da sua grande susceptibilidade ao ataque de pragas e doenças e do seu maior

valor comercial. O IIAA criou algumas variedades que se revelaram de elevada

produtividade e resistentes à “ferrugem alaranjada”, provocada pela H. vastratix, Bark

& Br.

O melhoramento do arroz e do feijão passou, durante os últimos anos do período

colonial, a ser objecto de alguns procedimentos preliminares por parte do Instituto dos

Cerais.

Em matéria de arroz procedeu-se a selecções massais sistemáticas e à

multiplicação e distribuição de duas cultivares angolanas de muito interesse comercial,

mas altamente degeneradas por uma utilização repetida – o Ruivo de Angola e o Cristal

de Angola, ambas do tipo carolino – e à introdução no cultivo de duas variedades do

tipo agulha, procedentes de Moçambique: Faia e Chibiça.

Relativamente ao feijão, também sob à orientação do Instituto dos Cerais,

buscou-se a selecção e difusão de variedades cuja cultura já se praticava em Angola, e

tinham certo valor comercial enquanto produto de exportação, designadamente de

branco grado, raiado grado, calembe ou verdinho e manteiga.

Para além dos programas referidos, integrados na acção do Instituto de

Investigação Agronómica de Angola, a instituição desenvolvia, também, alguns outros

dedicados aos estudos florestais, apícolas e piscícolas, que não podem deixar de ser

considerados sob a óptica de melhoramento. Os estudos relativos à floresta abrangiam a

introdução e adaptação de espécies exóticas, selecção de proveniências, selecção de

indivíduos, ensaios de descendência de clones seleccionados, processos de condução

técnica/exploração, aproveitamento de espécies florestais autóctones, e os estudos

laboratoriais visando inovações na tecnologia do lenho.

Numa síntese do que tem sido o Melhoramento de Plantas após a Independência,

poder-se-á dizer o seguinte:

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Até 1992, realizaram-se algumas acções nos domínios do melhoramento

genético do milho e da adaptação de diferentes variedades de feijão, amendoim e trigo,

sob a orientação de alguns técnicos expatriados. Há o registo da ineficiência dessa

colaboração, considerada, posteriormente, como um processo incorrecto de cooperar no

plano científico.

No final de 1993, foi proposto um novo sistema nacional de investigação,

assente em Programas de Investigação subdivididos por grupos de culturas. Foram

criados, inicialmente, 4 Programas de Investigação: dos Cerais, de Raízes e Tubérculos,

de Leguminosas e de Hortofrutícolas.

Com o decorrer do tempo estes programas de investigação ganharam uma

abrangência nacional e passaram a abarcar um mais vasto leque de culturas. O Programa

Nacional de Investigação de Cerais passou a incorporar as questões relativas às culturas

do milho, massambala, massango, trigo, arroz, centeio e cevada; o Programa Nacional

de Investigação de Raízes e Tubérculos passou a integrar as culturas da mandioca,

batata doce, batata comum *, inhame e taro; o Programa Nacional de Investigação de

Leguminosas passou a contemplar as culturas do feijão, amendoim e soja; e o Programa

Nacional de Investigação de Hortícolas e Frutícolas passou a privilegiar o tomate,

cebola, pepino, pimento, gindungo e quiabo, e as culturas da banana, manga e citrinos.

A informação recolhida dá conta que a actividade científica no domínio de tais

programas tem sido bastante restrita por razões que se prendem com a disponibilidade

de investigadores/especialistas e com a falta de meios para dinamização das

infraestruturas de apoio à investigação (Estações, Postos e Campos Experimentais)

Relativamente a resultados alcançados no domínio do Melhoramento, a

informação disponível refere a criação, sobretudo sob financiamento de algumas

entidades estrangeiras, de algumas variedades de milho, e estudos visando a introdução

de formas de feijão – também de milho – , de variedades diversas de mandioca, batata

doce e de batata comum, e de variedades de tomateiros com interesse para o cultivo no

País.

Cremos que os trabalhos realizados não se referem, na sua maior parte, a

melhoramento genético, mas sim à introdução, multiplicação e distribuição de novos

clones e variedades e à multiplicação de algumas espécies.

Certamente que estes programas de adaptação/multiplicação terão limitações no

seu cumprimento, pois é notória a falta de pessoal científico qualificado, capaz de

constituir a massa crítica necessária e preencher as exigências dos trabalhos de

condução da experimentação que se intenta realizar.

Para além disso, a maior limitação de tais programas reside no facto de não

resolverem a contento o problema das plantas necessárias para as condições agro-

ecológicas de Angola. Veja-se, por exemplo, a problemática do trigo relativamente à

ferrugem: os trigos tidos como altamente resistentes em determinado país e em

determinado tempo, mostram-se totalmente susceptíveis quando cultivados noutro país,

e noutro tempo, dado que as raças fisiológicas de uma espécie de ferrugem variam de

região para região e novas e mais virulentas raças fisiológicas de Puccineas surgem com

o decorrer dos anos.

* Em Angola, a batata comum – também chamada de inglesa ou europeia – , é

hoje habitual e impropriamente designada, mesmo em documentos oficiais, por

batata rena . Isto decorre da corruptela “ reino” (Reino referido a Portugal, no

tempo da monarquia, de onde os primeiros colonos recebiam o tubérculo para a

sua alimentação, e assim o designavam por batata do reino para destrinçar de

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outros tubérculos ou mesmo rizomas tuberosos então cultivados e consumidos

na Colónia).

IV. CONCLUSÕES

Um dos requisitos para que os agricultores possam alcançar maiores e melhores

produções é o da utilização de sementes e propágulos de qualidade. Pese embora a

inserção no Plano de Acção do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural e

das Pescas de um Programa Nacional de Produção de Sementes e Propágulos, cujo

objectivo é o da satisfação das necessidades nacionais em sementes e material de

propagação vegetativa, a introdução de novas espécies e variedades, o controlo da

qualidade varietal e sanitária do material distribuído, o estabelecimento e a certificação

de uma rede de multiplicadores de sementes e viveiristas, a realidade é que o País

continua a registar uma enorme fragilidade em tal domínio.

Seja por recurso a procedimentos tradicionais, seja pela via de manipulações

técnicas mais complexas, o desenvolvimento de programas que levem à utilização de

variedades melhoradas, certificadas do ponto de vista genético e sanitário, adaptadas a

diversas condições, é determinante para os agricultores poderem obter maiores e

melhores produções por unidade de superfície cultivada.

Dado que a agricultura angolana se serve, principalmente, de cultivares

procedentes do exterior, afigura-se conveniente caminhar no sentido do melhoramento e

da produção local de sementes e propágulos próprios para as variadas condições do

País, e da sua certificação do ponto de vista genético e sanitário.

A investigação agrária angolana deverá, portanto, preparar-se de modo a poder

recorrer às modernas tecnologias de melhoramento de plantas, salientando-se, contudo,

que, neste domínio, haverá que graduar as pretensões, dado que a complexidade de

alguns domínios da pesquisa na área da biotecnologia requerem recursos humanos e

materiais de que o País só gradativamente poderá dispor.

Importa não desvalorizar o cunho eminentemente científico do trabalho dirigido

para uma agricultura de baixa utilização de factores. A procura de novas cultivares

susceptíveis de proporcionar bons rendimentos sem grande onerosidade dos factores a

empregar é um dos desafios que o País deve encarar.

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ASIMILADOS E CRIOULOS: MESTRES E APRENDIZES OU COMO O PASSADO DE PRESENTIFICA

Elizabeth Ceita Vera Cruz Professora da Universidade Católica de Angola

Resumo

Este texto tem como objectivo desmitificar a ideia-feita relativamente à passividade dos

africanos no concernente à situação colonial. Para o atestar e, no caso dos angolanos,

socorremo-nos da categoria de assimilado e da de crioulo e mais propriamente do seu

papel (de alguns, bem entendido) no âmbito das associações. A partir da situação

colonial, entender como os tentáculos da mesma se fazem sentir na Angola de hoje.

Palavras-chave

assimilados

crioulos

indígenas

colonização

alienação

encarnação

associações

I – Preâmbulo

Se é certo que a política colonial portuguesa teve na assimilação o seu ponto alto

constituindo, deste modo, a pedra de toque da arquitectura colonial, não é menos certo

que o Estatuto do Indigenato foi o seu corolário por ter estatuído e instituído a categoria

de assimilado ao indígenaiii

. Foi com base na legislação que a discriminação foi

legitimada, uma política impregnada de ambiguidades e paradoxos sendo que, aqui,

importa salientar o impacto da mesma junto das gentes. Apesar de a política colonial,

com todas as suas matizes, ter sido uma imposição dos colonizados junto dos

colonizadores, importa desmitificar a enraizada ideia de que, os colonizados, terão sido

um elemento passivo em todo este processo. Dito de outro modo, que os colonizados,

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alguns, também eles, não somente terão “colaborado” de forma activaiii

como, em

outros tantos casos, terão utilizado essa “colaboração” como estratégia em seu proveito.

Sim, porque no concernente ao papel de resistentes e ao seu contributo na luta de

libertação nacional, melhor ou pior, ele é conhecido. Ora, quanto aos aspectos menos

abordados, mas nem por isso menos importantes, aspectos dir-se-ia subterrâneos por

não se ousar discuti-los mas que foram um elemento incontornável na história de uma

boa parte dos sécs. XIX e XX de Angola, aspectos que, ainda hoje, enformam e

perturbam a sociedade angolana, são estes aspectos a trave mestra deste texto. E porque

a cristalização destes elementos minam o espectro social, uma reflexão em torno das

estratégias de sobrevivência, de adaptação, mas também de assumpção de um “novo

estilo e uma nova visão do mundo” emergem. O colonizado apropriou-se da língua, é

sabido, mas apropriou-se, também, do discurso e de algumas práticas.

Entre os conceitos de papel e o de identidade

O que define o conceito de papeliii

, mais do que a posição social ocupada pelo

actor social, são as expectativas e as características individuais dos actores, é o que é

esperado, são as expectativas geradas por essa teia, mais precisamente pela posição

social. Desde logo porque é a sociedade que determina os papéis gerando expectativas

que subjazem aos referidos papéis. Assim, temos que não existe papel sem acção, do

mesmo modo que não existe acção sem papel. A incorporação do papel por parte do

actor, dos múltiplos papéis associados às suas múltiplas funções, não significa, em

última análise, que os actores se identifiquem necessariamente com os mesmos. No

palco da vida, o actor social é um protagonista que não escolhe propriamente os papéis

que desempenha, mas que é por eles e consequentemente pela sociedade, escolhido – o

indivíduo representa. O papel tem uma concepção normativa e é ela – a norma – que faz

com que se possa inferir que este é um dos estádios, é uma das componentes da(s)

identidade(s), se por identidade se entender «o emaranhado que constitui o ser, o estar e

o sentir dos indivíduos, na confluência do individual e do social».

Para Martuccelli (2002: 216 e seg.), o papel tem duas representações, a saber: a

encarnação e o distanciamento. Enquanto no primeiro o social, a sociedade e a

socialização, uma vez interiorizados, passam a constituir uma fonte de satisfação sendo

que estes indivíduos que encarnam os papéis pretendem, em geral, ter direito a uma

consideração maior, superior à dos outros, no segundo o indivíduo é mais tolerante,

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mais permissivo, menos autoritário. Estas diferentes maneiras de habitar (Id., ibd: 218)

os papéis sociais «dão aos indivíduos um sentimento de superioridade subjectiva muito

particular» (Id., ibd.: 220). O papel surge, assim, como uma armadura, uma máscara,

funcionando como uma forma de resistência (Id., Ibd.: 221) – acrescente-se, que, a

leitura de Martuccelli parece sugerir que é o distanciamento aquele onde a máscara é,

assume um papel de relevo já que, na encarnação, o indivíduo deixa de ser um

“fingidor”, assumindo e sentindo-se bem na sua nova pele.

A identidade, ainda que tenha elementos comuns ao papel – tal é o caso dos

diferentes palcos em que o indivíduo se movimenta, do político ao social, passando pelo

cultural (entre tantos outros) –, congrega uma dimensão individual relevante, pois ela

«permite garantir a permanência do indivíduo no tempo, o que faz com que,

independentemente das mudanças, ele, o indivíduo, é sempre o mesmo», pois «l’identité

est ce qui permet dans un seul et même mouvement à la fois de souligner la singularité

d’un individue et de nous rendre, au sein d’une culture ou d’une société données,

semblables à certains autres» (Id., Ibd.:343). Parece ser consensual, pelo menos a este

nível, que quando se fala de identidade(s), fala-se de uma dimensão em construção,

fluida. E, se por um lado ela é marcada pela diferença, por outro é relacional

(Woodward:2003), ainda que, “na linguagem do senso comum, a identificação seja

construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características

que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo

ideal” (Hall: 2003, 106).

A leitura de autores como Hall, Hunting, entre outros, estabelece que: i) a

diferença é o elemento fundador das identidades; ii) é a alteridade que consubstancia as

identidades; iii) as identidades são plurais. Seja ela individual, colectiva ou nacional, o

discurso da identidade é um discurso que contém, na sua tessitura, a exclusão – por ser

seu elemento primacial – do outro em relação ao mesmo. A questão da identidade só se

coloca no confronto, e é face a ameaça da exclusão, é na altercação que paira a

identidade. Por isso ela é construída, por isso se refaz, se reconstrói. É neste jogo de

sedução, nesta guerra aberta, neste permanente conflito que o discurso das identidades

lança as sementes da altercação, podendo tornar-se, na célebre expressão de Amin

Maalouf, «identidades assassinas».

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Porque o espaço do papel é um espaço iminentemente social, o espaço da

identidade parece comprometido se considerado o seu aspecto psico-individual. Parece,

pois, poder avançar-se com a seguinte tese: o indivíduo «revela a sua “identidade”», no

que ela tem de mais intrínseco, no espaço de liberdade que o papel permite. Este espaço

de liberdade que é um atributo da identidade e que esta conquista no seu confronto com

o papel é que faz, da identidade, um elemento primacial do indivíduo.

O assimilado: uma identidade assassina?

E porque as identidades remetem para a problemática do poder – o espaço da(s)

identidade(s), ainda que discursivamente plural, é avaro no que tange à dimensão psico-

individual. As estratégias que se podem considerar de resistência, mas também de

adaptação (e de assumpção, como se verá mais adiante) dos assimilados angolanos

(certamente válidas para assimilados de outras geografias), inscrevem-se no quadro de

um período e contexto político e ideológico: o colonial. Para o presente caso, e

retomando a tese de Martuccelli, associamos o assimilado angolano à encarnação e ao

distanciamento, fixando-nos no primeiro, a encarnação, mercê do seu papel enquanto

aliado do poder colonialiii

.

Se o pensamento é socialmente condicionado, como defende Mannheim, tese

que vem na linha de Marx, não é menos verdade que o inverso também pode ser

verdadeiro, como defende Weber. Parece poder afirmar-se, para já, que se num primeiro

momento e em todas as sociedades existe de facto um condicionamento social do

pensamento, num segundo, quando os papéis e os valoresiii

são intuídos e instituídos, o

peso da estrutura como que se esbate mercê da “adjudicação”dos valores pelos

indivíduos e pela sociedade. É neste palco no qual se degladiam os actores e as

instituições, os actores e o poder político, que se pode observar o papel das associações

na Angola colonial. E é nesse palco que surge o assimilado, uma categoria que é criada

precisamente com o propósito de encarnar não somente os papéis mas, também, os

valores coloniais.

As Associações em Angola: resistência e ambiguidades

No seu trabalho sobre “Movimentos Associativos na África Negra”, o Prof.

Silva Cunha destaca três tipos de associações, a saber: associações místico-religiosas,

associações com fins materialistas ou cooperativistas e associações com fins políticos

(Cunha: 1956).

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Segundo o autor, as duas primeiras já existiam nas “sociedades negras

primitivas”(Id., Ibid.: 7) e se as segundas tinham carácter profissional, as primeiras

tinham ou tiveram, primitivamente, um carácter político. No período colonial, outras

foram surgindo «de base étnica, que tentam agrupar com fins de previdência e

assistência imediatos todos os elementos da mesma tribo» (Id., Ibid.: 8). As associações

com fins políticos, produto da Europa, são constituídas por “partidos políticos de

negros”(Id., Ibid.: 8) entretanto formados em África.

Para Silva Cunha, os factores que estão na origem dos movimentos sociais

estudados são: «a) transformação em curso dos sistemas económicos tradicionais; b) a

perda de crenças religiosas sem que lhes corresponda a convenção real e profunda às

religiões ensinadas pelos colonizadores; c) a transformação da sociedade familiar e a

sua crescente instabilidade; d) a destruição das estruturas políticas; e) os obstáculos

opostos à integração dos nativos nas sociedades dos colonos; f) o desejo de compensar a

falta de segurança individual, proveniente da perda das crenças tradicionais e da

destruição das estruturas familiar e tribal; g) o desejo de compensar uma situação de

inferioridade social» (Ibid.: 48-50).

Diferentes são os tipos de associações existentes, que podem ir dos sindicatos e

cooperativas, passando pelas associações (em geral) e pelos grupos informais. Para além

da natureza específica de cada uma delas, falar-se de associações no período anterior ao

25 de Abril de 1974 e mais exactamente da independência, significa desde logo a

ausência de sindicatos, pela carga não só reivindicativa como política que lhes estava

subjacente. Assim, restam os outros três tipos, sendo que as cooperativas, à semelhança

dos sindicatos, tinham como objectivo o progresso material e laboral, mas também

cultural e educativo, enquanto os grupos formais são normalmente considerados

voláteis, tendo uma natureza efémera e muito restrita, (cabe neste grupo tudo o que não

se enquadre nos já referidos). Quanto às associações, estas têm objectivos

essencialmente culturais, suficientemente vastos onde é possível inscrever igualmente a

educação.

No presente caso, interessam-nos as associações mercê do papel que as mesmas

tiveram ao longo do período colonial. É assim que, no que diz respeito às associações

que são objecto deste texto, o destaque vai para a Liga Nacional Africana porquanto a

mesma acabou por plasmar as reivindicações dos nativos angolanos no que diz respeito

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à sua identidade, por via do progresso material e laboral, cultural e educativo, não

deixando de parte o carácter recreativo de que também se revestia, como se pode

perceber através de leitura da Revista Angola, órgão da Liga. Mas as sociedades

populares angolanas descritas por Óscar Ribas, ainda que com (um) carácter

embrionário ou, dir-se-ia, mais “popular” relativamente ao da Liga, não deixaram de ser

importantes (e não somente na tomada de consciência dos nativos), na medida em que

estas representaram e tipificaram a sociedade dicotomizada que era a angolana (e todas

as outras colonizadas), motivo/razão da criação e sucesso das mesmas. O pendor

identitário marcou indelevelmente a trajectória das mesmas e, deste modo, a questão

nacionalista, mas o seu discurso não está isento de ambiguidades.

A emergência das elites nativas: tradição e modernidade

As sociedades populares angolanas

«São três, os tipos que caracterizam as sociedades populares angolanas. Em

Luanda, onde, pelo seu maior desenvolvimento cultural, mais se acentua o

associativismo nativo, instituíram-se as seguintes espécies de associação: recreativo-

espirituais, espirituais e materialistas» (Óscar Ribas: 1965: 27). Assim começa Óscar

Ribas a obra sobre associativismo e recreio, “Izomba”, onde o autor traça uma

panorâmica das mesmas, através da caracterização e descrição dos seus objectivos e

associados.

Como se pode desde logo entender, estas associações (sociedades populares

angolanas) foram constituídas essencialmente por e para nativos, apesar de não ter

«apenas gente negra mas também mestiça. Até europeus, na falta dos clubes actuais,

nela se comprazeram» (Id., Ibid.: 27).

No que diz respeito às sociedades recreativas, paralelamente à assistência

prestada, «dedicavam-se estas sociedades à dança» (Id., Ibid.: 27), sendo que estas

associações estavam organizadas segundo um regulamento interno, onde as sanções

assumiam papel de destaque, pois era geralmente a «coibição de dançar» (Ibid.: 29), a

alma mater das associações recreativas e dos seus associados, o elemento aglutinador

das mesmas. Mas, se por um lado as sanções eram reguladoras, o aspecto aglutinador, já

referido, constituía sem sombra de dúvida um dos pilares da mesma – é preciso não

esquecer que era/foram as (nas) associações que de um modo mais ou mesmo directo

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participaram na emergência e cristalização de uma elite urbana angolana, elite essa que

por via destas mesmas associações acabavam por divulgar e durante um tempo puderam

preservar (Id., Ibid.: 29) os valores da “sociedade e cultura nativa” – tal é o caso do

género musical, a massemba, das músicas em quimbundo e da indumentária feminina.

A lista das várias associações (recreativo-espirituais), dá disso conta –

emergência de uma elite nativa (entenda-se negra e mestiçaiii

) – através da referência a

alguns dos seus fundadores, boa parte, deles, funcionários públicos. A mais antiga das

associações, referida por Ribas, data de 1900 (sociedade dos Quipacas), indo as datas

até 1945. Relativamente às sociedades espirituais, a referência mais antiga é de 1925, e

talvez a mais célebre a “Tristeza Carmona, Alegria Craveiro Lopes”(Id., Ibid.: 34), cuja

promotora foi a não menos célebre Maria Esquerquenha, popularizada numa música de

Teta Lando.

Ainda segundo Ribas, de entre as sociedades mutualistas que se encontram até

aos anos 40 do século XX, as mais antigas remontam ao século XIX (por volta de

1880).

Quanto às sociedades assistenciais, estas eram exclusivamente femininas.

Talvez, por isso, a assistência das mesmas era «espiritual: visitas a doentes, (...),

condolências a família, celebração da missa de sufrágio» (Ibid.: 30). A importância

disso reflecte-se não só na assistência, mas igualmente e sobretudo, no presente caso,

nas manifestações rituais que acompanhavam estas celebrações.

Para ele, de as descrições de Óscar Ribas permitirem que se ateste da existência

de diferentes tipos de associações, aquilo para que Izomba também aponta é sobretudo

para a importância que as referidas associações tinham para as populações (e não

somente para os seus associados). O facto de existirem associações se não somente de

nativos, entenda-se negros, quase exclusivamente de nativos e o facto de assumirem a

necessidade de preservar os valores da sociedade e da cultura nativa – e, desta forma, a

sua existência – permite aquilatar não somente que se estava em presença de uma

sociedade segregada como, também, da existência de uma elite nativa.

A Liga Nacional Africana: esboço de uma trajectória

Se as três faces da Liga são a social, a educativa e a recreativa, a leitura de

«Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva» cujo primeiro número

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remonta a 1930, permite que se fique com uma visão não só de quem eram os seus

sócios, mas também de quem representava a Liga Nacional Africana, quais os seus

objectivos (este último claramente exposto pelo Cónego Manuel das Neves, Presidente

em exercício da Liga aquando do seu XVII aniversário, onde o mesmo prometia, na sua

alocução, «outras realizações em curso para melhoria não só da vida associativa como

intelectual dos africanos cujos interesses a “Liga” se propôs defender».

Os sócios da Liga nacional Africana contavam-se entre a elite de Angola – entre

brancos, negros e mestiços. Funcionários públicos na sua grande maioria, os mesmos

eram cultores do saber, em que pontuavam as artes e a literatura. Ainda que

oficialmente defensores da mãe pátria (portuguesa, bem entendido) – ou talvez por isso

mesmo –, é possível entrever-se no seu discurso sobretudo o amor pela sua terra,

Angola, pelo seu chão. É assim que a linguagem, ainda que colonial – ideologicamente

preconceituosa, em que a colectividade (a Liga) surge como constituindo um mundo à

parte –, reflecte preocupações que dizem respeito ao progresso da colónia (Angola) e

das suas gentes (os indígenas), de que boa parte era originária. À palavra nativo e/ou

indígena, associava-se estoutra: a dos deserdados. Expediente ou não, o certo é que os

artigos mais incisivos são de um modo geral assinados com pseudónimo. Tais são os

casos de “Lumenção” e “Abafejo”, onde a valorização dos indígenas assume especial

destaque, sendo que a revista vai, ao longo dos tempos, assumindo mais claramente o

seu “sentido de missão”, por exemplo quando reclama a necessidade duma imprensa

“nossa”, e onde se diz a dado momento do artigo que «é lamentável averiguar-se que

entre nós, primitivos e ingénuos, haja quem, obcecadamente, queira inculcar certas

ideias exigindo que elas sejam encaradas e resolvidas pelos outros da maneira como eles

as encaram, sem atender a factores de vária ordem e aos “prós” e “contras” a que tais

ideias estão, geralmente, subordinadas. (...) Colaboremos, pois, com ela para a

realização da ideia que preconizamos – a Imprensa Angolana».

A partir de meados da década de 50 e ao longo da década seguinte, o tom do

discurso foi-se rarefazendo, passando de algum modo a literatura – na página dedicada à

poesia e aos poetas angolanos e mesmo a alguma prosa – a ser a via da acusação, do

libelo, da resistência. A isso não é alheio o início da luta armada, a revogação do

Estatuto do Indigenatoiii

e, naturalmente, como correlato, a censura e o cerco cada vez

mais apertado que entretanto se vai fazendo sentir. Aquilo que parece um paradoxo – de

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paradoxos foi a colonização feita – a aparente institucionalização da cidadania igual

para todos, acabou por ser a via por excelência da operacionalidade do garrote

entretanto imposto.

As ambiguidades e contradições que dão título a este trabalho, que mais não são

e espelham as ambiguidades e contradições do discurso colonial, encontram eco no

discurso dos próprios colonizados. A revista da “Liga” expressa bem estas

ambiguidades e contradições, se não da sua linha política, da de alguns dos seus

associados – o uso das expressões indígena e assimilado (o mesmo que gentio e nativo),

a referência a si próprios enquanto civilizados, instruídos, em oposição à grande massa

dos indígenas, trabalhadores braçais, sem instrução, é bem disso exemploiii

. São

precisamente esses civilizados que, não obstante o seu libelo em prol de melhores

condições de vida para os indígenas, aqueles que encarnam o papel mais do que de

assimilados, de cidadãos portugueses exemplares. Também eles, objecto de

discriminação e, talvez (também) por isso, a sua revolta que se traduzia na defesa dos

“indígenas”, explicando-se deste modo o discurso ambíguo.

É claro que, sempre se pode dizer que esses discursos correspondem a um

tempo-espaço que acabou por ser determinante para a natureza dos mesmos, mas não é

menos verdade que estas ambiguidades e contradições plasmaram a mentalidade de

muitos angolanos, de tal modo que, ainda hoje é possível encontrar-se por via da

cristalização das mesmas mentalidades no que se poderá considerar e chamar, alienação.

Passado e presente: do discurso às práticas assimilacionistas

Segundo Adriano Moreira, o estado de indígena definia-se em face de três

coordenadas: o território, a raça e a cultura. Assim, indígena era todo o indivíduo

nascido nos territórios portugueses de África, negro e primitivo (não civilizado), daí o

poder concluir-se que era toda a população negra. Mas os legisladores sabiam que

precisavam de uns quantos negros que lhes fossem fiéis e que lhes dariam estabilidade e

credibilidade junto da grande massa dos negros, sem esquecer a comunidade

internacional. Por isso, “criou” o assimilado, do mesmo modo que “criou” o

mestiço/mulatoiii

.

Afinal, quem era o assimilado? Juridicamente, o assimilado era o negro,

convertido em semi-branco (semi-branco porque, para muitos colonialistas, os

assimilados e os destribalizados eram arremedos grotescos e, por conseguinte, nunca

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poderiam ser equiparados a brancos não somente por causa da cor da pele que era a

marca distintiva por excelência e da qual não se podiam livrar, mas também porque, por

muito que se esforçassem, os negros, ainda que assimilados, nunca poderiam ser

equiparados aos brancos). O assimilado era negro, sim, que teria abraçado os valores

ocidentais – da instrução (ter no mínimo a 4ªclasse, o que era uma boutade

considerando que a esmagadora maioria dos brancos portugueses eram iletrados,

analfabetos) que passava pelo domínio da língua portuguesa, passando pela posse de

habitação “condigna” e adopção de práticas consideradas válidas, civilizadas (como a

posse e o uso de mesa, cadeiras e talheres), à indumentária, múltiplos foram os novos

papéis e valores que fizeram do assimilado um “distanciado” ou um “encarnado”

(Martucelli). Àqueles que “encarnaram” o papel, que o assumiram na íntegra, não se

pode chamar, como faz Martuccelli, resistentes. Estes serão, antes, os alienadosiii

que,

entre outras práticas e comportamentos eram: i) aqueles que tinham vergonha de

compreender, saber e falar uma língua de Angola, um dialecto, como então se dizia; ii)

aqueles que, mestiços, tinham vergonha das suas mães negras; iii) aqueles que tudo

faziam para ter pronúncia portuguesa, apagando todos os vestígios da sua “pretitude”;

iv) aqueles que consideravam que o casamento com um indivíduo de tez clara – quanto

mais claro, melhor! – era sinónimo de apuramento da raça; v) aqueles ainda, para quem,

comer funje era “coisa de preto” ou um exotismo; vi) aqueles para quem, o uso de

tranças e de indumentária não ocidental – os célebres “panos” – era desprestigiante; vii)

aqueles que consideravam que só os cabelos lisos, desfrisados, assim podiam ser

chamados – os demais eram as “quindumbas”, as carapinhas; viii) aqueles, ainda, para

quem, quanto maior o número de brancos que fizessem parte das suas relações, em

melhor conta se tinham e pensavam ser tidosiii

.

Entre assimilados e crioulos: a (re)encarnação

Vestígios deste discurso e práticas encontramo-los, ainda hoje, no quotidiano,

com excepção da gastronomia, esta sim a única a ganhar foro de cidadania com a

independência.

Os papéis reproduzem-se, tais como as sociedades. A(s) identidade(s), por serem

espaços de liberdade conquistados (aos papéis), permitem aferir que, no caso angolano,

o presente ainda se encontra refém, ancorado no passado. A liberdade, esta, encontra-se

ainda condicionada e, nessa medida, a(s) identidade(s) dos angolanos também se

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encontram minadas das teias do passado. Um exemplo claro e recente (do pós-

independência) é a apologia, por parte de uma elite, relativa à existência de uma cultura

crioula em Angola. Uma cultura sediada no passado e que se terá estendido pelo

presente. Ora, os defensores da existência de uma cultura crioula em Angola, ontem e

hoje, reivindicam-na e revêem-se, no presente, certamente com o que consideram serem

os “valores crioulos”iii

que mais não são do que os associados aos assimilados. É assim

que, não será de estranhar o seguinte exemplo paradigmático: o da língua. Quem e

quantos são os jovens que falam as línguas nacionais (para além do português)? Num

inquérito realizado junto de jovens universitários em Luanda (2006), inquérito esse

cujas conclusões se encontram a ser apuradas, num universo de 172 inquiridos, cerca de

65% dos inquiridos só fala português – e mais, a maioria dos que dizem falar as outras

línguas nacionais são oriundos das províncias do Uíge, do Huambo. Isto é, os

luandenses são aqueles em que o deficit é claro. As (possíveis) explicações serão

múltiplas, mas afigura-se como uma das mais plausíveis o impacto da política colonial e

mais especificamente em Luanda – os mais velhos passaram o testemunho aos seus

filhos: a língua portuguesa é que é «língua de gente».

Sem outro inquérito em que nos possamos apoiar, registe-se, por via da

observação, o facto de, pelo menos nos espaços urbanos, a maioria das mulheres usar

indumentária ocidental – é sobretudo no Norte de Angola, nas províncias de Cabinda,

Zaire e Uíge, porventura mercê da geografia e da própria história de que a influência

dos Congos será o exemplo mais próximo, que se assiste ao maior número de mulheres

com indumentária não ocidental. Quanto ao cabelo e se bem que o as tranças continuem

a ter um peso considerável na beleza feminina, são os cabelos longos, é a tiçagem que se

encontra na linha da frente (uma das manifestações de modernidade).

De aprendizes a mestres, os assimilados de ontem, a cultura assimilacionista,

encontra uma revitalização, dir-se-ia inesperada, nos dias de hoje. O passado

presentifica-se por via das reproduções das práticas do passado, das suas actualizações,

estilizações, como é o caso do mito da mulher “mulata” que, segundo alguns

“desabafos” e notas de imprensa, é uma realidade hoje, em Angola, muito

especialmente na área profissional (o critério é claramente da empresa – instituições e

empresas que têm uma taxa de empregabilidade de mulheres mestiças muito elevada, se

comparada com as mulheres negras).

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Entre tantos estudos e investigações de que Angola carece, a importância,

necessidade e urgência de uma investigação para uma melhor compreensão dos

mecanismos de reprodução dos valores (dos coloniais aos “pós-coloniais”) e os

impactos dos mesmos na sociedade angolana, hoje, é um imperativo.

Referências:

Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva.

CUNHA, J. M. da Silva (1956), Movimentos associativos na África negra, Lisboa, JIU.

MARTUCCELI, Danilo (2002), Grammaires de l’individu, Éditions Gallimard.

RIBAS, Óscar (1965), Izomba: associativismo e recreio, Luanda, Tipografia Angolana.

SILVA, Tomaz (org), Stuart Hall e Kathryn Woodward (2003 [2000]), Identidade e

Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais, 2ª ed., Petrópolis, Ed. Vozes.

VERA CRUZ, Elizabeth Ceita (2006), O Estatuto do Indigenato. Angola. A legalização

da discriminação na colonização portuguesa, Luanda, Edições Chá de Caxinde.

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O SISTEMA DE GOVERNO NA NOVA CONSTITUIÇÃO

Nelson Pestana (PhD),

Investigador-coordenador, no Centro de

Estudos e Investigação Científica da

Universidade Católica de Angola

Este artigo resultado da minha participação no ciclo de palestras sobre a nova

Constituição, promovido pelo Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia,

onde palestrei sobre o sistema de governo, no nosso país, a luz dessa nova Constituição

de 2010. Se atendermos ao facto do quase-debate constituinte se ter polarizado

precisamente em torno do sistema de governo, esta comunicação podia ser vista como

um prolongamento deferido desse momento, já que o processo constituinte (e o debate

que lhe era correlato) foi abruptamente interrompido pela proposta constitucional do

Presidente da República que acabou por ser consagrada.

Esta polarização deveu-se a duas ordens de razões: a primeira factual, a

inesperada quebra da unanimidade existente, pela proposta de dois principais partidos

políticos angolanos ao apresentarem-se como defensores de um sistema presidencial. A

segunda, psicossocial, pelos receios da sociedade civil para quem essa inesperada

conversão ao presidencialismo poderia representar uma redução substantiva das

liberdades públicas e uma descaracterização (quiçá, subversão) do Estado Democrático

de Direito, consagrado na Constituição de 1992. Esta lei fundamental, como é

consabido, consagrava o sistema de governo semi-presidencial e nada levava a crer que

isso fosse mudar, já que todos os partidos políticos reiteraram, nos seus programas

eleitorais, essa escolha.

Malgrado o processo político de que resultou esta Constituição, outorgada pelo

Presidente da República, não deixa de ser interessante interrogamo-nos sobre “o sistema

de governo na nova Constituição” e verificarmos assim se os sobreditos receios de

descaracterização ou subversão do regime democrático tinham razão de ser.

Segundo os inventores da actual Constituição 2010, o sistema de governo que

dela ressalta é uma mescla de elementos do sistema presidencial com elementos do

sistema parlamentar, o que deu origem a uma nova categoria, a juntar as demais já

existentes, designada “Presidencialismo Parlamentar”. Este sistema teria como

característica a existência de um executivo unipessoal forte associado a um parlamento

colaborante, como resultado do sistema de eleição conjunta dos dois órgãos, nas

chamadas “eleições gerais”, que permitem uma convergência entre o Presidente da

República e o partido maioritário, no parlamento.

Importa pois verificar se a actual Constituição comporta uma tal leitura a partir

do confronto das suas características com os traços fundadores desses dois sistemas de

governo dos regimes democráticos mais antigos do mundo moderno (a Inglaterra e os

Estados Unidos).

Para evitar suspeições sobre uma eventual partidarização do debate, que se quer,

nesta sede, estritamente académico, a nossa análise não leva em consideração aspectos

extra-constitucionais. É feita um pouco em termos de “teoria pura do direito” (Kelsen),

isto é, fazendo abstracção da conjectura, da contextualização histórica, política e social,

da praxis de poder, operando apenas a partir da análise hermenêutica da Constituição

2010.

A nossa análise baseia-se, primeiro, na recensão crítica dos traços característicos

dos paradigmas constitucionais de que esta Constituição se reclama (os sistemas

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Presidencial e Parlamentar). Depois alicerça-se na percepção da filosofia de base

subjacente à Constituição de 2010, através do confronto de duas teorias (contratualistas)

sobre a sociabilidade humana e de três paradigmas da autoridade. Finalmente, a análise

escora-se na economia interna do texto constitucional (sobre a sua gramática e o seu

sentido teleológico, como sistema) e sobre a comparação do sistema de governo que

dela ressalta com outro plasmado na constituição bonapartista de 1808,como paradigma

histórico dos sistemas autoritários.

Para o fazer temos dois momentos: um de precisão teórico-conceitual, onde

vamos apurar os conceitos operatórios e teorias de que nos socorremos, e outro de

análise hermenêutica, tirando, por fim, uma conclusão,

Conceitos operatórios

Os conceitos operatórios que pretendo apurar são os de “ sistema de governo”,

sistema presidencial e sistema parlamentar. O sistema de governo é entendido como

sendo a forma como o poder político é repartido pelos órgãos de soberania, e a maneira

como estes se relacionam, no interior do Estado. Nos regimes democráticos e

representativos os sistemas de governo dividem-se em parlamentar e presidencial,

havendo, desde 1918, (com a experiência da República de Weimer) uma forma mista; o

dito sistema semi-presidencial que procura combinar elementos do sistema parlamentar

com elementos do sistema presidencial. Este sistema misto tem duas versões, uma dita

“forte” e outra, “fraca”, consoante a dominante é o Presidente da República (Alemanha

de Weimer, Finlândia, França) ou o Primeiro-Ministro (Islândia, Irlanda, Áustria,

Portugal). Esta dicotomia (e as formas mistas) não se aplicam aos regimes autoritários,

pois aquelas categorias baseiam-se no princípio da separação e equilíbrio de poderes dos

órgãos de soberania, enquanto que os regimes autoritários baseiam-se na fusão de

poderes e na obediência a uma mesma e única linha de comando no aparelho do Estado,

normalmente personificado num individuo que é apresentado como ícone do seu próprio

regime.

a. Sistema Parlamentar

O sistema parlamentar foi adoptou pela Grã-Bretanha, desde cedo, logo a seguir

a revolução constitucional, como sistema político representativo (a duas câmaras) para

assegurar os interesses de todos actores envolvidos e salvaguardar a monarquia que

passou a submeter-se à Nação mas conservou os seus poderes de representação interna e

externa. Mas, se o Monarca continuava a reinar, deixava de governar. A função

executiva passava para um Gabinete, saído da representação nacional e liderado por um

Primeiro-Ministro, politicamente responsável perante o Parlamento. O monarca

conserva o poder de dissolução, como mecanismo de garantia de eficácia do sistema,

em caso de crise.

b. Sistema Presidencial

Depois de cerca de 10 anos de experiência de uma confederação (1776 a 1787),

os Estados Unidos adoptam uma Constituição para a Federação (1787). Recusando o

sistema parlamentar britânico, optaram por um sistema mais forte que permitisse a

emergência à cabeça dos poderes públicos de uma personalidade liderante que

representaria e defenderia os interesses do país. Ao mesmo tempo, os constituintes

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norte-americanos, inspirados na filosofia dos Lumières, queriam adoptar uma estrita e

equilibrada separação de poderes entre o legislativo, o executivo e o judicial. A ideia era

a de separar os poderes, especializando-os, mas também impor uma necessária

colaboração entre eles, permitindo a eficácia do regime político. Uma eficácia fundada

na independência recíproca dos três poderes e na certeza de poderem exercer as suas

funções até ao fim dos seus mandatos, sem a interferência de qualquer um deles.

O sistema de governo presidencial repousa assim na existência de dois poderes fortes

independentes e colaborantes: o Congresso e o Presidente da República. O Congresso

dispõe completamente do poder legislativo, sem nenhuma interferência do Presidente da

República, quer como Chefe de Estado, quer como detentor do poder executivo (salvo o

poder de veto, que é limitado e reversível). O Congresso detém o poder constituinte, o

poder legislativo e de aprovação do Orçamento Geral do Estado. Detém também o

poder de declarar a guerra ou a paz e (o Senado) de rectificação dos tratados

internacionais.

Por seu lado, o Presidente da República dispõe completamente do poder

executivo e da administração para realizar a sua política, sem nenhuma interferência do

Congresso. O PR é o “patrão” da política interna, pois ele é irresponsável politicamente,

perante o Congresso (salvo o caso excepcional de “impeachment”). A sua

responsabilidade é diante da Nação que lhe conferiu mandato em eleições e o torna

ainda mais independente. Esta independência é-lhe garantida também pela equipa de

que dispõe o Gabinete Presidencial (White House Office) e outros órgãos subsidiários. O

Presidente da República é também o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas o que

lhe permite, em situação de guerra, conduzir operações militares. É também ele que

orienta a política externa, assumindo-se como o chefe da diplomacia, na medida que

negoceia tratados, mas somente o Senado pode ratifica-los e nenhum embaixador é

nomeado pelo Presidente da República sem o consentimento do Senado. Por outro lado,

somente o Congresso pode “regular o comércio com as nações estrangeiras”.

Assim, o Presidente da República americano, sendo uma figura central da

política do país, partilha estes poderes com o Congresso. Uma partilha de poderes de

maneira a garantir um equilíbrio institucional, garantido por múltiplos sistemas de

controlo recíproco, para que “o poder pare o poder”, como dizia Montesquieu, no seu

célebre livro “O Espírito das Leis”. Este sistema de “pesos e contrapesos” (check and

balances) é um dos fundamentos do sistema presidencial americano. A partilha de

poderes é também garantida, tratando-se de um Estado Federal, nas relações entre a

federação e os Estados federados, nas relações entre estes e as colectividades territoriais.

A garantia das liberdades públicas é também assegurada pela existência de ampla

liberdade de expressão, imprensa, manifestação e associação, pela existência de um

forte espaço público e pelo dinamismo da escolha política, mesmo no interior dos

partidos políticos, com as chamadas primárias.

Análise hermenêutica da Constituição 2010

Há basicamente duas grandes correntes sobre a sociabilidade humana: naturalista

(Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e outros) e contratualista (Hobbes, Rousseau

e outros). Tanto os jus naturalistas, quanto os contratualistas, reconhecem a necessidade

da instituição de uma ordem que permita ao homem-indivíduo e ao homem-comunidade

o desenvolvimento da sua arte de vida, de sua liberdade física e criativa. A diferença é

que os primeiros dizem que o princípio de organização da sociabilidade humana é

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conforme a natureza, enquanto os segundos defendem que este princípio é o resultado

de uma convenção.

* A filosofia da Constituição de 2010

Malgrado alguns dos parágrafos do seu preâmbulo, não creio que se possa ter

dúvidas sobre o carácter contratualista da Constituição de 2010, já que esta é tida como

o resultado da vontade deliberada do “Povo de Angola” de “construir uma sociedade

fundada” num conjunto de valores, com vista à realização de um projecto de vida

comum (preâmbulo da Constituição de 2010).

Assim sendo, para apurar a filosofia de base da nova Constituição, dispenso os

naturalistas e apenas me debruço sobre os contratualistas, escolhendo dois autores

paradigmáticos e opostos: Thomas Hobbes, no seu livro Leviatão, cujo subtítulo é

bastante expressivo do seu conteúdo, “tratado da matéria, da forma e do poder da

Republica eclesiástica e civil” (1651) e Jean-Jacques Rousseau, na sua celebríssima

obra, Do Contrato Social (1762), cujo subtítulo é também muito eloquente: “princípios

de Direito político”.

Thomas Hobbes parte da ideia de que a vida humana fora da polis é impossível,

devido a maldade do Homem. A ideia inicial segundo a qual o medo da morte está na

origem da comunidade política atravessa toda a obra de Hobbes. Para ele o Estado é

instituído para afastar o perigo de morte violenta. O “estado de natureza” é o lugar da

guerra de todos contra todos. Esta proposição de Hobbes parte de uma antropologia

geral em que o Homem é apresentado como um ser de desejo que procura sempre

adquirir ascendente sobre os outros, i. e., que procura poder sobre os seus semelhantes.

É a partir desta premissa, segundo a qual o Homem é uma presa da paixão de potência

que se deve perceber a descrição antropológica do Leviatão. O estado de “natureza” é o

lugar da igualdade e é esta igualdade fundamental que permite a cada ser desejar o que

melhor lhe parecer que é a causa da guerra de todos contra todos. Pois se cada um faz o

que os seus desejos determinam haverá sempre conflito de desejos incontrolados. E, por

isso, é inevitável que “a luta seja o estatuto da igualdade, sendo a guerra o estatuto da

própria natureza”. A guerra aparece não como uma batalha efectiva mas antes de mais

como uma disposição da natureza humana que resulta do seu desejo de potência. Neste

sentido filosófico, a Paz aparece como simples negação, como um momento provisório

e fugaz de suspensão da guerra efectiva. E, por isso, tornar a Paz positivamente

pensável e historicamente real é o projecto do Leviatão (do Estado). Para isso, Hobbes

reconsidera o estatuto da política. Esta existe já no estado de natureza, na medida que

este se apresenta como uma luta até a morte que tem sua origem no desejo de potência

imanente a condição humana, no desejo de subsistir, na liberdade de todo homem de

agir a favor da conservação da sua própria vida. Mas, se a conservação de nós próprios,

“lei eminentemente natural”, conduz a perda violenta da vida, no acto mesmo de a

defender, torna-se razoável para os homens que era preciso escapar a esse funesto

estado de natureza. Torna-se necessário aos homens dotarem-se de uma lei comum, por

todos desejada e a que todos obedecem pois nela encontram protecção das suas vidas e

bens, e, logo, a garantia dos seus desejos. Somente uma lei positiva, inteiramente

humana (porque querida pelos homens) pode assim satisfazer a própria lei natural que

os empurra para a auto-conservação. Assim a “natureza” sendo sempre um primus

torna-se um momento negativo porque lhe falta uma lei comum. É esta lei comum, e

somente ela, que é capaz de definir uma norma do bem e do mal, do justo e do injusto,

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uma norma geral da equidade. Este tipo de norma não existe na “natureza”. Esta apenas

conhece o desejo, i. e., a força e a potência.

Para Hobbes, o desejo e as demais paixões humanas não são pecados. Não há

falta – e a respectiva interdição – senão quando uma norma positiva (admitida por todos

e a todos imposta) determina uma conduta como falta ou interdita determinada acção. A

existência segundo a natureza aparece, a contrário, como necessidade de recorrer a uma

outra norma que não seja a do desejo ou de potência. É na vida política que se resolve a

contradição da vida natural. A política tem pois um papel de pacificação das relações

sociais. Por isso, Hobbes remodela o conceito de “natureza”, e fá-lo em dois tempos:

primeiro, estabelece uma distinção entre Direito natural (jus naturalis) e Lei da natureza

(lex naturalis) que se opõem, da mesma maneira que a liberdade se opõe a coerção

(submissão). É esta distinção capital, ligada ao conceito de soberania, que torna possível

uma teoria geral do pacto social. Contrato social que é a origem do estado de sociedade

pois é este pacto que permite ao Homem passar do estado de natureza - onde se encontra

entregue aos seus sentimentos primários – ao estado civil. Segundo, estabelece um

pacto social que permite substituir o reino mortal, propriamente dito, da natureza pelo

reino pacificado da política. Enquanto o pensamento político grego via na natureza

(Phusis) o laço que torna possível a comunidade política, Hobbes vê nela a sua negação.

A ordem natural é a ordem das paixões, do livre desejo, é o estado de guerra

permanente, não podendo, por isto, fundar um estado político, i. e., um estado de paz.

Se para o pensamento antigo era preciso viver segundo a lei natural, para Hobbes é

preciso pensar a sociedade política não como o resultado da “natureza” (Aristóteles)

mas como resultante de uma convenção. Assim, o que o pacto social primeiramente vai

instituir é o abandono da morte à natureza. Mas, isto só é possível na condição expressa

de cada um renunciar ao seu direito natural, de tal maneira que do engajamento tomado

mutuamente, resulte uma “pessoa” (individual ou colectiva) na qual repousa o exercício

da soberania. O pacto ligando os homens, primeiramente, entre si e, depois, ao soberano

é, diz Thomas Hobbes, “mais do que um consentimento ou um acordo, trata-se de uma

verdadeira unidade de todos os homens numa só que é como se cada homem devesse

dizer a todo homem: eu autorizo este homem ou esta assembleia de homens, e eu lhes

transmito o meu direito de me governar a mim mesmo, na condição de que tu lhe

transmitas teu direito e autorizes todas as suas acções na mesma pessoa, realizado por

convenção de cada um com o outro, da mesma maneira. Isto realizado, a multitude

assim unida numa só pessoa, é chamado Estado (Common-wealth), em latim Civitas.

Este é o nascimento desse grande Leviatão, ou melhor (para falar com mais deferência)

de esse deus mortal, ao qual nós devemos, sob o deus imortal, nossa paz e nossa

protecção” [capítulo XVII]. Esta instituição artificial da soberania, por contrato ou

convenção, leva os sujeitos a obediência da “lei civil”. Hobbes entende por “lei civil” o

corpo de leis positivas em vigor no Estado de que um indivíduo é membro.

Esta teoria do contrato social ganhou, com Jean-Jacques Rousseau, um

desenvolvimento ulterior, em termos de “soberania do povo”. Rousseau também tem no

centro da sua doutrina a ideia de contrato mas, neste caso, o contrato não é entre uma

comunidade e o Príncipe mas entre todos os membros da comunidade que formando

uma assembleia se constituem em soberano. O Contrato Social foi escrito para fundar

essa nova legitimidade baseada essencialmente na soberania do povo. Para ele o

soberano é o povo e por isso a sua construção teórica vai no sentido de fundar a

autoridade legítima no povo. Para Rousseau a “natureza” não pode jamais servir de

fundamento à autoridade: “natureza” e “autoridade” são termos contraditórios. Para ele

nem um “deus”, nem uma natureza podem ser invocados para fundamentar a autoridade.

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Não há autoridade legítima que não venha dos homens. Para o autor do Contrato Social,

a sociedade civil, face ao estado de natureza, é uma decadência na desgraça mas uma

vez começado o processo de civilização, a cooperação organizada torna-se

indispensável. Ao perderem a “liberdade natural”, os homens, querendo reencontra-la

na sociedade civil, engajam-se mutuamente a respeitar a lei que eles escolhem para si

próprios. Sem que ninguém ceda a sua liberdade a um outro, a dependência torna-se

impossível. É preciso pois, segundo Rousseau, encontrar um fundamento tal que cada

um cuide de ser livre, apesar de submetido a autoridade. E, como a melhor solução, a

garantia mais segura para esse propósito é cada um obedecer a si mesmo, então o povo

aplica a si próprio uma lei que aparece como a expressão do interesse geral. O povo, tal

como o monarca, pode ser soberano no Estado. E, esta soberania do povo, deve ser

estabelecida por uma convenção, por um contrato, i. e., por acto voluntário e livre de

todos, pois “renunciar a sua liberdade, diz Rousseau, é renunciar a sua qualidade de

homem, aos direitos da humanidade, mesmo aos seus deveres” (I, 4).

Rousseau, baseado na distinção de Jean Bodin (1529-1596) entre

soberania e governo, introduz uma inovação que é a noção de “vontade geral”. Noção

capital na teoria rousseauista de povo, pois “a vontade geral”, é a vontade do povo. A

vontade geral exprime o pensamento do povo na medida que exprime o universal.

Porque quando o povo pensa ele pensa o universal, i. e., a liberdade na forma de

universalidade. Sendo a vontade do povo uma vontade geral, não é difícil compreender

porque o poder se pode transmitir mas nunca a vontade. Esta distinção do poder,

susceptível de ser representado, e a vontade, inalienável, (i. e., a distinção entre a

soberania do Estado e a sua realização, o seu “exercício” pelo “Governo”) é a distinção

fundadora da soberania, nos termos em que Jean-Jacques Rousseau a apresenta no

Contrato Social (1762), na sequência do que havia teorizado Jean Bodin, no seu Seis

Livros da Republica (1576). Por isso, no Estado rousseauista, em que o soberano é o

povo, este não pode transmitir a sua vontade mas tão-somente delegar o poder dela

resultante. Sendo também que a vontade do Estado, que é expressa pela Lei, não pode

ser senão a vontade do povo. Caso assim não o seja, o Estado é um poder tirânico. O

poder não é senão uma comissão derivada do princípio original: a vontade do povo, a

soberania.

O direito natural clássico submete a lei positiva ao Direito natural,

fundando assim uma política por natureza. Hobbes submete a lei natural ao direito

positivo do soberano, i. e., limita a liberdade natural à lei civil. Esta submissão é a

formulação teórica, juridico-política da dominação tal qual ela é praticada pelo Estado

moderno. Hobbes, não somente reverte as posições antigas do problema político mas

“constrói” também uma outra “natureza” que justifica a obediência à lei civil e revela o

Estado (“deus mortal”, como lhe chama o próprio Hobbes) como um ser artificial, fruto

da razão dos homens.

Em suma, Rousseau vai a contra-corrente de todas as teorias que

defendem a hipótese de uma sociabilidade que baseie a vida social e política na

natureza. Rousseau é anti-Aristóteles porque recusa a hipótese de uma sociabilidade

natural mas é sobretudo anti-Hobbes pois recusa frontalmente a teoria do “estado de

natureza” do filósofo inglês, na qual não vê lógica. Para Rousseau, a partir do momento

que o Homem deixa de ser o “bom selvagem” (um ser individual, auto-suficiente e

feliz) e passa a viver em sociedade (numa situação de conflito de interesses, onde as

desgraças se multiplicam) tem necessidade de encontrar um artifício coercivo como

instrumento de sobrevivência à guerra (à morte). Por isto, o contrato social, em

Rousseau, é um contrato de cada um com todos os outros membros da sociedade, pois o

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Povo, ao ser desapossado do poder legislativo, torna-se escravo. O rousseauismo

político é o pensamento que mantém o princípio da soberania como forma do Estado

histórico que coloca no centro da sociabilidade humana o Direito, tido como a expressão

da vontade geral e meio de regulação racional das relações sociais consentidas.

* O papel central do Direito na sociedade moderna

O Direito, como sistema de normas abstractas que se impõe a todos, inclusive ao

superior hierárquico que obedece também ele à ordem impessoal da Lei, aparece como

uma das formas de controlo social, a par de outras e para suprir à insuficiência dessas

outras formas, como a religião, a moral, a ética e as convenções sociais. O Direito

aparece como o meio de controlo social mais eficaz por poder ser aplicado

coactivamente com recurso a órgãos especializados de controlo social, como são a

administração, a polícia, e o sistema judiciário. Por isto, é que a norma de Direito é um

dever-ser que seres racionais aceitam colectivamente como garantia da paz civil e da

liberdade de cada um, em vista da realização de uma ideia de justiça. Lacordaire dizia

que “lá onde a liberdade oprime, a Lei liberta”. É esta noção ideal de liberdade e justiça

que faz a crença no Direito e justifica a sua utilidade. Mas, o Direito é um dever-ser não

pela força da consciência (como na moral) mas pela força da coerção física legítima.

Aquela violência que é exercida em nome do bem comum e da paz civil por uma

autoridade a quem a colectividade reconhece essa função. Por isso, o Direito, como

dizia Miguel Reale, é uma unidade constituída do “facto”, do “valor” e da “norma”. O

Direito nasce do “facto” (político, económico, social) “jus ex facto oritur” mas é

portador de um valor cultural e materializa-se numa norma coerciva. João Baptista

Machado considera que “o Direito enquanto postula eficácia ou vigência social,

depende da coação, mas também pode dizer-se que depende da força. Na sua origem,

porque ele é hoje ditado por uma autoridade social (o Parlamento, o Governo) que tem

por detrás de si o poder político, isto é, o poder do Estado. Na sua aplicação efectiva,

porque a efectivação da sanção é garantida pela existência e actuação de uma

instância organizada e integrada no aparelho de Estado”iii

. Mas como dizia Jean-

Jacques Rousseau, “ainda o mais poderoso de todos os homens, não será

suficientemente poderoso, se não souber converter o seu poder em Direito e a

obediência dos outros em dever” (Contrato Social, p.). Para este autor a autoridade deve

afirmar-se como sendo “uma autoridade que não é uma autoridade”, isto é, uma

autoridade que não é autoritária, que não se afirma pelas virtudes de uma força exterior

à comunidade mas pela força do seu consentimento. E, por isto, quanto mais esta

autoridade for assente na coesão da vontade social, menos terá necessidade de cooptar a

realidade para o seu projecto quer pela violência física, quer ideológica.

* Os tipos de autoridade

O Direito corresponde à uma autoridade baseada na razão e na lei. Mas não é a

única forma de autoridade que se conhece. Max Weber distingue três tipos de

autoridade: tradicional, carismática e burocrática. Estas formas de autoridade podendo,

nos nossos dias, coexistir, são compreendidas como formas diferentes de

institucionalização da sociedade e, particularmente, do poder político na sociedade.

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A autoridade tradicional assenta na convicção colectiva do carácter sagrado da

tradição e na correlata legitimidade do exercício de poder por aqueles que a

representam, pelo que a autoridade é transmitida por herança. É a autoridade própria das

sociedades onde não há diferenciação entre as estruturas administrativas e as demais

estruturas, nem um processo de secularização entre o poder político e o poder religioso,

não havendo, por isto, uma separação nítida entre a esfera da autoridade e a esfera

particular, entre a esfera pública submetida à autoridade e a esfera privada; a esfera da

competência privada do indivíduo.

A autoridade carismática nasce da pretensão de um chefe em impor a sua

autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral e baseia-se na força simbólica

do chefe. Este impõe a sua autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral

que se fundamenta na submissão do grupo, da comunidade às suas virtudes (heróica ou

exemplar) tidas como fora do comum. O chefe impõe-se e submete os outros às suas

ordens em razão, segundo Maurice Duverger, “do carácter naturalmente emocional da

entrega ao chefe em quem se confia”. O carisma aparece pois como irracional e

afectivo. O chefe carismático deve pois suscitar o entusiasmo pelas promessas, pela

excitação das emoções, das paixões, recorrendo, geralmente, à demagogia como método

de sedução. E quando os meios de convicção são escassos o chefe carismático utiliza o

seu prestígio e o papel que desempenha na estabilidade da organização para defender o

seu poder pessoal (ditatorial). Já que o chefe carismático é, em regra, tido como um

ícone e se presta e alimenta o culto da personalidade para perenizar a sua utilidade

simbólica e prática, logrando o consentimento dos seus seguidores. Por isso,

normalmente, o chefe carismático apoia-se num grupo carismático central,

estabelecendo uma hierarquia do carisma, em que somente o carisma do chefe é pessoal,

sendo o dos demais abstracto e “institucional”. O grupo central carismático aparece

também como um instrumento do chefe para reforçar o seu poder; utilizando a inveja e

acicatando as rivalidades, no seu seio, o chefe aparece como sendo o único capaz de

fazer “a síntese entre os interesses e rivalidades presentes. Por outro lado, o chefe dirige

o grupo central carismático manipulando o desejo e a ambição de todos de fazer parte

da elite, jogando com as suas rivalidades também ao nível das várias mediações

corporativas e da base popular com a qual desenvolve uma relação mística e

demagógica.

A autoridade burocrática deriva de dois processos histórico-sociais

determinados: um de diferenciação entre a esfera política e a económica e outro de

secularização entre o político e o religioso, onde a autoridade é atribuída a instituições

especializadas, geralmente designadas por administração burocrática A autoridade

burocrática (legal ou racional) fundamenta-se na “ordem impessoal da Lei” pois ela

deriva de dois processos de diferenciação e de secularização. É própria de uma

sociedade onde a autoridade é atribuída a instituições especializadas, designadas por

administração burocrática. Esta autoridade repousa na crença na Lei, na existência do

Direito como sistema de normas reguladoras das relações sociais e limitador do

exercício do poder. Por isto, a figura típica desta forma de autoridade é o funcionário,

isto é, um agente que agindo em nome do Estado (poder secular) obedece a regras legais

e procura fazer obedecer os outros a essas (ou outras) regras. Neste sentido, a relação de

obediência, na base de um conjunto de regras abstractas e universais que se impõem a

todos (incluindo os superiores hierárquicos, por exemplo, o Presidente da República

deve obediência à Constituição) não é entre pessoas; não se obedece a um indivíduo

mas a regras. Esta obediência não pode assim fazer-se senão em relação aquilo que a

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Lei prescreve e pressupõe uma autoridade constituída de órgãos administrativos que

aplicam a lei, i. e., uma função pública que seja continua e que obedeça ela própria a

regras anteriormente estabelecidas.

Tipos de Dominação segundo Max Weber (in Dominique Colas, Sociologie politique, Paris, PUF, 1994, p. 122)

VARIÁVEIS AUTORIDADE

Tradicional Carismática Racional

Base de

dominação

Convicção no

carácter sagrado da

tradição

Reconhecimento da

“empatia”

Obediência à Lei

Faculdade

utilizada

Respeito

Emoção Razão

Designação do

líder

Senhor Chefe Superior

hierárquico

(funcionário)

Designação dos

dominados

Servidores

(associados ou

súbditos)

Partidários Cidadãos

Recursos Taxas

Espólio

/Dom

Impostos

Regime político

típico

Monarquia absoluta Ditadura

Plebiscitária

Democracia

parlamentar

Tipo de Revolução Revolução

tradicionalista

Revolução radical --

i. A gramática do texto constitucional

Os regimes democráticos são organizados segundo o princípio da separação de

poderes (legislativo, executivo e judicial) a fim de evitar a sua concentração numa só

pessoa. Algumas constituições privilegiam a estrita separação dos poderes, outras,

consagrando essa separação, permitem, a níveis distintos, meios de controlo de uns em

relação a outros.

O poder legislativo, órgão colegial, representativo da Nação, é geralmente

exercido por um parlamento, formado por deputados eleitos pelos cidadãos e dispõe do

poder de editar a lei e de controlo do executivo.

O poder executivo que pode ser exercido por órgão colegial ou unipessoal,

materializa as leis em acção governativa e conduz a política nacional para dar satisfação

as necessidades da comunidade. Para este fim dispõe de poder regulamentar e da

administração e das forças de defesa e segurança. O poder judicial é o órgão de

soberania que se encarrega de aplicar a lei para fazer cumprir a ordem estabelecida, para

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decidir sobre conflitos entre o Estado e os particulares, ou entre particulares. A sua

independência é fundamental pois é a garantia da sua imparcialidade. É, normalmente, a

Constituição que define as suas competências e garante a sua independência. Esta define

também a organização dos poderes públicos locais, distinguindo as competências do

Estado (central) e das colectividades territoriais.

Na Constituição angolana interessa-nos, para fins de determinação do sistema de

governo, apreciar a divisão e equilíbrio de poderes entre os dois órgãos de soberania: o

legislativo e o executivo. A parte da Constituição que trata dessa relação é o Título IV.

Este refere-se à “Organização do Poder do Estado”, que surge na organização interna da

Constituição, depois de outros três primeiros títulos sobre os (I) “Princípios

fundamentais”, (II) os “Direitos e Deveres Fundamentais”, e (III) a “Organização

Económica, Financeira e Fiscal”.

O título IV estrutura-se com um primeiro capítulo dedicado aos “princípios

gerais”, em que se definem os órgãos de soberania da República de Angola, como sendo

o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais (artigo 105º), a forma

de designação do Presidente da República e dos Deputados (artigo 106º) e a

administração eleitoral (artigo 107º) – e pela enumeração sucessiva das atribuições e

competências dos órgãos de soberania, tendo à cabeça o poder executivo (capítulo II),

seguido do “poder legislativo” (capítulo. III) e do “poder judicial” (capítulo IV), o que

pode, desde já, indiciar uma prevalência do executivo sobre o legislativo.

Nesta sede, o Presidente da República, para além de Chefe de Estado, a quem

cabem poderes de representação da Nação, no plano interno e externo, é definido como

“o titular do Poder Executivo e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas”

(artigo 108º, 1). Por isto, ao Presidente da República cabem competências como “Chefe

de Estado” (artigo 119º), como “Titular do Poder Executivo” (artigo.120º), como

“Comandante-em-Chefe (artigo 122º) e mais detalhadamente sobre matérias das

“relações internacionais” (artigo 121º) e de “segurança nacional” (artigo 123º), sendo

ele que “define a política geral do Estado” (artigo 120º, alínea a) e a administra em todo

o território, através de órgãos consultivos (Conselho da República, Conselho de

Ministros, Conselho de Segurança Nacional…) (artigo 134º ss), e estruturas

governativas auxiliares centrais (Vice-Presidente, Ministros de Estado e Ministros)

(artigo 108º, nº 2)iii

e locais (Governadores e Vice-Governadores provinciais) que ele

próprio escolhe e nomeia (artigo 119, alínea k). Mas, para além deste poder executivo e

regulamentar (artigo 120º, alínea h), o Presidente da República - não sendo responsável

politicamente pelos seus actosiii

, nem perante a Assembleia Nacional, nem perante a

Nação, que não o elege - goza também de poder legislativo: poder legislativo próprio

que exerce através de “decretos legislativos presidenciais provisórios” (artigo 126º) e

poder legislativo delegado (“autorizado”), que exerce através de “decretos legislativos

presidenciais” autorizados (artigo 125º, nº 2) pela Assembleia Nacional, em matérias de

reserva relativa desta. No mais, conta ainda com a força de pressão de que dispõe, em

relação a actividade legislativa da Assembleia Nacional, através da sua iniciativa

legislativa (artigo 167º, nº 1) e, sobretudo, por força do mecanismo de veto (artigo 124º,

nº 2) que lhe é concedido ao promulgar as leis.

A Assembleia Nacional é definida como “o parlamento de Angola”,

“representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e

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exerce o poder legislativo” (artigo 141º). Nesta condição, as suas competências são

divididas em três domínios: competências no domínio político e legislativo (artigo

161º), em que sobressaem a aprovação das alterações à Constituição, de leis sobre todas

as matérias, do Orçamento Geral do Estado, dos Tratados Internacionais, a concessão de

autorizações legislativas ao Presidente da República, a proposição de referendos e o

pronunciamento e sobre a declaração de guerra ou paz, do estado de sítio ou de

emergência. Competência de controlo e fiscalização (artigo 162º), nomeadamente de

analisar a Conta Geral do Estado e de autorizar o Executivo a contrair ou conceder

empréstimos e de efectuar outras operações de crédito. E, ainda, “competências em

relação a outros órgãos” (artigo 163º), como seja, eleger juízes para o Tribunal

Constitucional, juristas para os Conselhos Superiores de Magistratura Judicial ou do

Ministério Público, membros do Conselho Nacional Eleitoral e de outros órgãos. No

domínio legislativo as suas competências são divididas em competências com reserva

absoluta (artigo 164º) e competências com reserva relativa (artigo 165º). São da

competência da Assembleia Nacional, com reserva absoluta, as questões ligadas à

nacionalidade, aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, às eleições, ao estatuto

dos titulares dos órgãos de soberania, do poder local e de demais órgãos constitucionais.

Tal como o regime de referendo, do estado de guerra, de sítio e de emergência. O

estabelecimento das bases da organização e funcionamento do poder local, da

participação dos cidadãos e das autoridades tradicionais no seu exercício, da

organização dos Tribunais, da defesa nacional, das forças armadas e de segurança

pública e dos serviços de informação, bem como do estatuto dos magistrados e do

Ministério Público, a tipificação dos crimes, a definição das penas e medidas de

segurança e as bases do processo criminal. As competências da Assembleia Nacional,

com reserva relativa, são aquelas que podem ser concedidas ao Executivo para este

legislar sobre elas, como seja, estatuto da função pública, “incluindo as garantias dos

administrados [que deveriam ser entendidos como direitos fundamentais], estatuto dos

funcionários públicos e responsabilidade civil da Administração Pública”, estatuto dos

institutos, empresas e associações públicos, bases do sistema financeiro, bancário e

monetário, do sistema nacional de planeamento, de ensino, de saúde, de segurança

social, do ordenamento do território, do equilíbrio ambiental, do património cultural, do

regime geral de transmissão e concessão da terra, de exploração dos recursos naturais e

da alienação do património do Estado. Definição dos sectores de reserva do Estado, no

domínio da economia e regime dos bens do domínio público, de requisição e da

expropriação por utilidade pública, criação de impostos e sistema fiscal, regime geral de

taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas e também o

regime geral do serviço militar, da punição das infracções disciplinares e de mera

ordenação social e respectivo processo.

É evidente que nesta Constituição de 2010, o legislativo perde poder de controlo

e de fiscalização, perde poder de aprovação de actos do executivo (como seja o Plano

Nacional) e são restringidas (em volume e importância) as matérias submetidas à

reserva absoluta do parlamento. Por exemplo, as matérias sobre a economia nacional

saíram das competências, com reserva absoluta, da Assembleia Nacional e passaram

para as competências do Presidente da República, enquanto titular do poder executivo.

Alguns dos anteriores poderes da Assembleia Nacional, de aprovação de acções do

Presidente da República, são agora transformados em poderes de pronúncia, como

acontece com a declaração do estado de emergência (art. 161, al. h) e a declaração de

guerra ou feitura da paz (art. 161, al. i). Outros anteriores poderes de aprovação são

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transformados num poder de análise, como acontece em relação à Conta Geral do

Estado. A Assembleia Nacional torna-se assim uma mera câmara legislativa sem quase

nenhum papel como órgão político de controlo do executivo. Mesmo como câmara

legislativa vê os seus poderes reduzidos a favor do Presidente da República que para

além da sua “iniciativa legislativa” (artigo 167º, 1), do seu poder de veto (artigo 124º, 2)

partilha a função legislativa através dos sobreditos “decretos legislativos presidenciais

provisórios” e de “decretos legislativos presidenciais” autorizados.

Sistema consular bonapartista

A nova Constituição estabelece uma evidente concentração de poderes no

Presidente da República que dirige pessoalmente todos os níveis de poderes. Para além

de que sendo titular do executivo, por força do sistema de “eleições gerais”, é sempre o

chefe da maioria parlamentar, sem nenhuma responsabilidade política diante da

representação nacional e detém um poder de dissolução dissimulado numa dita “auto-

demissão política do Presidente da República” (artigo 128º). O sistema de governo

instituído por esta Constituição desrespeita o princípio da separação de poderes e

consagra uma pirâmide de comando único, no vértice da qual se encontra o Presidente

da República em quem se concentram todos os poderes. Este facto, leva-me a pensar

nos sistemas autoritários, historicamente conhecidos e, em particular, no exemplo

histórico de poder executivo forte que foge ao modelo democrático e aos seus sistemas

de governo e configura um sistema autoritário: o sistema consular bonapartista,

consagrado pela a Constituição francesa do Ano VIII (1796), após o golpe de Estado de

Napoleão Bonaparte. Esta Constituição que é, antes de mais, um texto técnico que

define principalmente os poderes do Primeiro Cônsul, marca uma ruptura com a

constituição democrática anterior, saída da Revolução Francesa (1789) e dá lugar a um

poder pessoal, mantendo a ilusão da democracia. Os poderes do primeiro cônsul são

consideráveis, enquanto os outros dois cônsules têm apenas poderes consultivos. A

diferença, que se justifica pela distância de duzentos anos que separam as duas

constituições, é que a constituição angolana tem um longo e bem elaborado catálogo de

direitos, enquanto naquela constituição francesa não encontramos declaração de direitos

e das liberdades, embora alguns direitos sejam afirmados em disposições gerais, como o

direito da inviolabilidade do domicílio, a segurança das pessoas e o direito de petição. O

sufrágio universal (masculino) é instaurado mas não permite a expressão dos cidadãos.

Em verdade, tal como acontece na nova constituição angolana, em relação a eleição

presidencial que foi suprimida, também na constituição bonapartista, as eleições foram

suprimidas, os cidadãos deixaram de eleger os seus representantes e limitavam-se a

apresentar listas de notáveis. A partir destas listas eram nomeados ou eleitos pelo

Governo ou pelo Senado para cônsules ou funcionários, no espírito da máxima de

Sieyes, segundo a qual “a confiança vem de baixo, mas o poder vem de cima”.

I. Conclusão

A actual Constituição angolana, segundo os detentores do poder, fecha um ciclo

que teria iniciado em 1991-1992 com as duas sucessivas revisões constitucionais de

Março de 1991 e de Setembro de 1992 que inauguraram um processo de transição para

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a democracia, ao consagrar direitos de cidadania a todos os angolanos, o pluralismo

político e a separação de poderes próprios de um “Estado Democrático de Direito”.

Para os partidários desta Constituição, esta forma de governo, a atribuição exclusiva da

autoridade do Estado ao Presidente da República, subalternizando a representação

nacional, é a resposta à instabilidade política e a garantia de uma “estabilidade

extraordinária”, assente no Presidente da República, como instituição chave do sistema,

a quem cabe o papel determinante na direcção e “comando único” da política nacional.

Para estes, esta forma de governo, conjugada a um largo catálogo enumerativo de

direitos e liberdades fundamentais pode ainda ser, pela sua aparência, apresentada como

uma forma democrática de governo. No entanto, ao conferir ao Presidente da República

plenos poderes, justificados pelos seus promotores como resultado do dinamismo social,

da evolução do pensamento político do partido no poder, como necessários para garantir

o desenvolvimento do país, a Constituição de 2010 fecha um ciclo: um ciclo de

restauração autoritária que sempre coexistiu com a ordem formal do “Estado

Democrático de Direito” que estava consagrado na Lei Constitucional de 1992

(Setembro).

É justo que se entenda a democracia como uma invenção permanente, que ela

não obrigue à adopção de um modelo, de um tipo concreto de organização do poder de

Estado mas não se pode ignorar que ela corresponde a um conteúdo determinado, a um

quadro de valores preciso e que um regime político em que não há partilha de poder,

nem separação de poderes, no qual todos os poderes estão concentrados num indivíduo

(autocracia) ou num grupo (oligarquia) é qualificado como uma ditadura, como um

regime autoritário, sendo tendencialmente um regime arbitrário e coercivo. A grande

diferença entre os regimes democráticos e os regimes autoritários é que no primeiro

observa-se um poder e uma autoridade partilhados, através da separação de poderes,

enquanto no segundo caso o poder e a autoridade está concentrada numa pessoa ou

grupo restrito de pessoas, obedecendo a uma mesma linha de comando único. Daí

decorre também uma diferença fundamental em relação a existência, em democracia, de

um espaço público, onde todos os actores sociais têm a possibilidade de participar

livremente para contribuir para uma melhor gestão da res publica, tendo a oposição, não

somente esta possibilidade mas também um estatuto próprio que é tido como importante

para o desenvolvimento do país, enquanto nos regimes autoritários a participação é

canalizada através de corpos intermédios e visa tão-somente clarificar as escolhas do

Chefe.

Nas democracias antigas, sempre que os poderes dos órgãos representativos, por

razões ponderáveis, eram suspensos e transferidos para uma pessoa, considerava-se que

se vivia em ditadura. Na República romana, a ditadura era entendida como a

magistratura excepcional em que todos os poderes eram atribuídos a um homem só, por

um mandato estritamente limitado. A situação de ditadura estabelecida pela

Constituição, na parte referente a “organização do poder de Estado” (Titulo IV), em

franca contradição com as declarações de princípios fundamentais, do Título I, onde é

consagrado o “Estado Democrático de Direito, baseado na “soberania do povo”, em

linha directa com uma filosofia de base rousseauista, não se apresenta como de

transição, mas tem a pretensão de ser eficaz e desenvolvimentista e, por isto, pretende

ser uma ditadura “de lei”, sem que esta seja a expressão da vontade geral mas a

expressão da soberania do chefe (o poder de Um, segundo a concepção filosófica de

poder de Hobbes) que procura projecção numa classe alta e média-alta que pelo engodo

da igualdade e da participação corporativa, de inspiração hegeliana, ceda a liberdade a

favor do chefe, e satisfeitos os seus interesses pela eficácia da administração, se torne,

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juntamente com extractos das camadas baixas, beneficiárias do clientelismo corporativo

e alimentadas pelo populismo político, o seu sustentáculo e lhe permitam uma

reprodução sem ter que recorrer aos actuais mecanismos mais repressivos e

fraudulentos.

Conforma-se pois um poder que se apresenta como legal e racional, cujo

fundamento é apresentado como sendo a lei – tida como obrigatória para todos – mas

que investe fortemente nos mecanismos de funcionamento da autoridade carismática ou

mesmo tradicional.

Referências

COLAS, Dominique, 1994, Sociologie politique, Paris, PUF.

HOBBES, Thomas, O Leviatão,

MACHADO, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador

REALE, Miguel,

ROUSSEAU, Jean-Jacques, O Contrato Social,

REPÚBLICA de Angola, 2010, Constituição, Luanda, Imprensa Nacional de Angola.

REPÚBLICA de Angola, 1992, Lei de Constitucional, Lobito, Escolar Editora.

WEBER, MAX,

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117

Os CACSs na esteira da governação local: um olhar sobre o município do

Bailundo

José Maria Katiavala,

Sociólogo e Director da Unidade de Projectos da ADRA.

Introdução

A problemática da desconcentração e descentralização vem preenchendo cada

vez mais o debate político em Angola, mobilizando instituições do Estado, partidos

políticos e organizações da sociedade civil, no quadro da promoção da governação local

que favoreça a participação activa dos cidadãos na vida pública. No centro deste debate,

a análise do funcionamento dos Conselhos de Auscultação e Concertação Social

(CACSs) em implantação nos municípios desde 2008, ao abrigo das reformas operadas

na Administração Local do Estado, tem suscitado enorme interesse e mesmo

entusiasmo, particularmente no seio de militantes e activistas de organizações da

sociedade civil.

O presente artigo resulta da participação do autor, como assistente para o

município do Bailundo, na província do Huambo, no Projecto de Pesquisa sobre os

CACSs, de iniciativa do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da

Universidade Católica de Angola, desenvolvido entre 2009 e 2010, em parceria com o

CMI (Christian Michael Institut) da Noruega e a ADRA (Acção para o

Desenvolvimento Rural e Ambiente). As reflexões e análises que a seguir se

apresentam, para além dos contactos mantidos com alguns membros do CACS do

Bailundo, no quadro da pesquisa, resultam também do envolvimento do autor no debate

sobre a descentralização e desenvolvimento local em Angola no interior da ADRA,

organização a que está ligado há mais de 10 anos e que no seu trabalho de intervenção

social em 22 municípios do país tem contribuído para efectivação desse processo.

Contudo, eventuais juízos de valor emitidos ao longo do texto não engajam

necessariamente a ADRA, sendo, sim, da inteira responsabilidade do autor.

O artigo começa com uma breve contextualização do processo da

desconcentração e descentralização em Angola com incidência nos principais eventos

ocorridos no país nos últimos 10 anos. Segue depois a análise concreta da implantação

do CACS no município do Bailundo com foco na composição, reuniões,

representatividade e dinâmica de participação, terminando-se com algumas reflexões

mais gerais sobre os desafios que se colocam aos CACSs na esteira da governação local.

O contexto geral do processo de desconcentração e descentralização em Angola

Nos últimos tempos a problemática da desconcentração e descentralização

passou a ser objecto de discussão em Angola, no quadro de um processo mais amplo de

reformas políticas, institucionais, sociais e económicas iniciadas no limiar da década de

90 com a adopção da democracia multipartidária e da economia de mercado. Com

efeito, vale a pena destacar as principais referências que marcam as iniciativas voltadas

para a promoção da desconcentração descentralização em Angola.

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118

A primeira referência data de 1999 com a aprovação do Decreto nº 17/99 de 29

de Outubro que depois veio a ser complementado pelo decreto executivo nº29/00 de 19

de Maio que estabeleceu o paradigma dos governos provinciais e das administrações

municipais e comunais. A implementação deste diploma legal permitiu reforçar a

capacidade institucional dos governos provinciais, conferindo-lhes maior autonomia na

execução de programas públicos, tendo, por isso, sido considerado por especialistas

como o “rosto” do início do processo de desconcentração em Angola, um processo que

ainda “não atingiu, na plenitude, os efeitos desejados em virtude de a mesma não ter

sido acompanhada da transferência de recursos organizacionais, particularmente

financeiros e humanos”, segundo constata o Estudo sobre a Macro- Estrutura da

Administração Local realizado pelo Governo Angolano em 2002 com apoio do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, embora recentemente se

registem melhorias com o estabelecimento de unidades orçamentais nos municípios,

conforme se analisa mais adiante.

A implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização

Administrativa, a partir de 2001, é a segunda maior iniciativa de destaque levada a cabo

pelas autoridades angolanas, impulsionadas pela necessidade de reformar o

funcionamento do aparelho do Estado, tornando-o mais próximo dos cidadãos.

Concebido e posto em marcha ainda no período de guerra civil, o referido plano

estabeleceu, no essencial, o princípio da transferência gradual das funções do Governo

Central para a Administração Local, num primeiro momento, perspectivando-se, a

médio prazo, a institucionalização de um poder local autárquico.

Entretanto, em paralelo ao Plano Estratégico de Desconcentração e

Descentralização Administrativa surgiram outras iniciativas, principalmente no âmbito

da implementação de projectos de apoio ao desenvolvimento das comunidades locais

promovidos por ONGs nacionais e estrangeiras com apoio de agências internacionais,

como são os casos da União Europeia e do Banco Mundial. A União Europeia, através

do Programa de Apoio à Reconstrução (PAR) apoiou, entre 2003 e 2005, projectos em

alguns municípios das províncias do Huambo, Benguela, Bié e Huíla que introduziram

uma inovação, no contexto das intervenções de desenvolvimento comunitário em

Angola, ao adoptar a estratégia de constituição dos chamados Quadros de Concertação

Municipal (QCM) com ramificações nas comunas, integrando responsáveis da

Administração Local, autoridades tradicionais, associações de camponeses, líderes

religiosos e outros segmentos das comunidades. Os QCM configuravam, por assim

dizer, um potencial para a promoção da cultura do diálogo entre os detentores do poder

político a nível dos municípios e comunas e os representantes das comunidades, mas

este desejo não foi plenamente realizado, ao fim de quase três anos de implementação

da experiência; é que as expectativas geradas pela criação dos QCM não foram

satisfeitas por falta de um mecanismo financeiro para a implementação dos projectos

identificados e elaborados após a realização de longos diagnósticos municipais, numa

altura em que as necessidades de reconstrução de infra-estruturas e as carências

materiais das comunidades eram enormes. Isso acabou, por esvaziar o conteúdo dos

QCM e, obviamente desmobilizou as Administrações Municipais e as populações.

Todavia, alguns analistas que vêm acompanhando o processo de desconcentração e

descentralização em Angola, questionam se nessa altura havia por parte do Governo um

efectivo compromisso político de tornar a iniciativa dos QCM num instrumento político

de promoção da governação local. De qualquer modo, a experiência dos QCM

constituiu um importante contributo conceptual no que toca à promoção da cultura do

diálogo no seio das Administrações Municipais, vindo posteriormente a inspirar um

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conjunto de iniciativas que despoletaram um pouco por todo país nos últimos cinco

anos.

A dinamização de fóruns municipais pelo Fundo de Apoio Social (FAS) é outra

iniciativa que perfila nas tentativas de estimular a participação social no quadro da

governação local. Agência do Governo, criada em 1994, para apoiar a implementação

de projectos voltados à melhoria do acesso aos serviços sociais básicos pelas

populações mais carentes, o FAS adoptou a estratégia de constituição de fóruns

municipais com a pretensão de promover uma governação participativa nos municípios.

As ONGs nacionais e estrangeiras também têm vindo a incorporar nas suas

estratégias de intervenção, a componente do apoio à descentralização nos municípios,

defendendo a bandeira da participação, da inclusão social e da cidadania. Do leque de

ONGs envolvidas na implementação de projectos de apoio à descentralização, a ADRA,

a DW, a Care International e a Save The Children são as mais activas, com intervenções

centradas no reforço da capacidade organizativa das organizações comunitárias de base

para que se tornem actores fundamentais da governação local. No caso da ADRA, o seu

interesse na promoção da governação local remonta desde meados dos anos 90 dentro

do debate sobre o desenvolvimento local no seio da organização, a partir da experiência

do município pastoril dos Gambos, na província da Huíla, onde a dado momento o

trabalho realizado com as comunidades locais viu-se confrontado com uma actuação

junto das instituições do Estado no município, na perspectiva de assegurar a

sustentabilidade das acções de desenvolvimento comunitário, então em curso na região.

A aprovação do Decreto nº02/07 de 3 de Janeiro que estabeleceu o quadro das

atribuições e competências e regime jurídico de organização e funcionamento dos

Governos Provinciais, das Administrações Municipais e Comunais veio a conferir um

novo impulso à implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e

Descentralização e às várias iniciativas das organizações da sociedade civil. Este

diploma cuja elaboração resultou de estudos e reflexões sobre a estrutura e

funcionamento da Administração Local do Estado e da contribuição das ONGs e

agências internacionais engajadas em projectos de promoção da governação local

trouxe, na opinião de analistas e militantes da sociedade civil angolana, dois

significativos ganhos para o processo de desconcentração e descentralização em

Angola. O primeiro ganho a relevar é, sem dúvida, a constituição dos Conselhos de

Auscultação e Concertação Social (CACS) nas províncias, municípios e comunas, um

importante avanço na institucionalização do diálogo entre as Administrações Locais do

Estado e as comunidades, como pressuposto crucial para a existência de uma

governação local que se pretende democrática, como vêm advogando, nos últimos anos

as organizações da sociedade civil, na esteira do debate mais amplo sobre a

democratização da sociedade angolana. Conforme estabelece o decreto, o CACS, a

todos os níveis, tem por finalidade apoiar os órgãos da Administração Local do Estado

na apreciação e tomada de medidas de natureza política, económica e social, em

sintonia com o princípio da participação e colegialidade, um dos vários previstos no

diploma, que devem reger a organização e funcionamento da Administração Local do

Estado. Contudo, na prática, o caminho a percorrer para que os CACS sejam espaços

privilegiados de participação democrática dos cidadãos na governação local, é ainda

longo. Volvidos dois anos após a implantação dos CACS, o seu funcionamento, na

maior parte dos casos, está muito dependente da abertura e visão de cada líder do

município.

O segundo ganho tem que ver com o estabelecimento das unidades orçamentais

nos municípios, tendo-se seleccionado numa primeira fase 68 municípios. Em 2008, o

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Governo Central aprovou uma linha de financiamento para os municípios, criando o

Fundo de Apoio à Gestão Municipal (FUGEM) através do decreto nº 8/08 de 24 de

Abril, instrumento de “suporte ao exercício das competências das administrações

municipais, decorrentes do Decreto-Lei nº2/07. De acordo com o referido decreto, o

FUGEM “tem por finalidade dotar as administrações municipais com recursos

financeiros adequados a uma rápida e eficaz intervenção na resolução dos problemas

urgentes que afectam as populações”.

O quadro jurídico decorrente da entrada em vigor da nova Constituição trouxe

novos elementos para a descentralização e a promoção da governação local, ao

aprofundar a questão do poder local, principalmente no que toca à institucionalização

das autarquias locais, gerando uma certa expectativa em relação à realização de eleições

municipais nos próximos tempos. Em face deste novo quadro constitucional foi criada a

Lei da Organização e do Funcionamento dos Órgãos de Administração Local do Estado

(Lei nº 17/10 de 29 de Julho) que foi praticamente uma adaptação do Decreto Lei nº

2/07 com a introdução de alguns elementos novos, sendo de relevar a integração dos

partidos políticos com assento parlamentar nos CACS.

A implantação do CACS no Bailundo: a representatividade em questão

O Bailundo foi dos primeiros municípios da província do Huambo a constituir

formalmente o CACS no início de 2008, um ano após a entrada em vigor do Decreto

nº02/07. O Bailundo fez parte dos 68 municípios abrangidos pela fase experimental de

desconcentração financeira e isso terá funcionado como factor de motivação para a

dinamização do CACS municipal, na medida em que a mobilização dos diferentes

actores sociais do município, tendo em vista a sua integração neste espaço decorreu na

expectativa de existirem recursos para responder às demandas das comunidades locais.

Nas linhas que se seguem debruçamo-nos sobre os aspectos essenciais que

marcam a dinâmica do CACS no Bailundo, dando ênfase aos limites e desafios que esta

experiência configura no que toca à democratização da governação local. Antes, porém,

são apresentadas algumas informações gerais sobre o município.

Informações gerais sobre o município

O município do Bailundo ocupa uma superfície de 7.065 quilómetros quadrados,

representando 20 % do território da província do Huambo. Tem uma população

estimada em 237.160 habitantes distribuídos em cinco comunas: Sede, Luvemba,

Lunge, Bimbi e Hengue. É dos municípios mais populosos da província depois do

Huambo e Caála.

Á semelhança de outros municípios do interior do país, o Bailundo ficou muito

afectado durante o período de guerra civil, principalmente na sua última fase, entre

finais de 1998 e princípios de 2002 quando se transformou num dos principais palcos de

confrontos militares entre o exército nacional e as forças militares da UNITA.

Com o fim da guerra, o município do Bailundo tem conhecido várias

intervenções de programas públicos, o que está a permitir a recuperação gradual das

suas infra-estruturas sociais e económicas. Nos últimos três anos o Governo central

implementou no município projectos de reabilitação de estradas e dos edifícios da

Administração Municipal, o que contribuiu significativamente para a melhoria das

ligações com a capital provincial e outras localidades de Angola; antes, a ligação entre

Bailundo e a cidade do Huambo, por exemplo, era feita quase em três horas e hoje faz-

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se apenas em uma hora. O edifício da Administração está completamente reabilitado e

equipado com mobiliário moderno, telecomunicações e outros meios.

Em 2008, no quadro da desconcentração financeira, Bailundo beneficiou dos

cinco milhões de dólares. Esta medida permitiu alargar as acções de reabilitação para as

outras comunas, com destaque para os edifícios administrativos, escolas e postos de

saúde.

O que dizer sobre o CACS?

Composição

Segundo o figurino que o Decreto nº02/07 estabelece e agora reforçado pela Lei

nº 17/10 de 29 de Julho com a incorporação de novos actores, com destaque para os

partidos políticos representados na Assembleia Nacional, o CACS integra, todos os

membros da Administração Municipal (administrador e o seu adjunto, administradores

comunais e chefes de repartições), representantes das autoridades tradicionais, do sector

empresarial público e privado, das associações de camponeses, das igrejas reconhecidas

por lei e das ONGs.

No Bailundo, a composição inicial do CACS foi de 30 membros, tendo mais

tarde aumentado para 40. Um aspecto a reter é que o Bailundo não esperou pela Lei nº

17/10 para alargar o número de conselheiros; de acordo com um entrevistado, a dada

altura sentiu-se a necessidade de envolver mais representantes, como foi o caso dos

partidos políticos, do aumento de sobas e da integração de todas as igrejas representadas

no município e reconhecidas por lei. No caso particular das igrejas, inicialmente

estavam representadas apenas a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Congregacional de

Angola, as duas mais influentes no município, o que terá criado alguma indignação nos

círculos de outras denominações cristãs.

Contudo, a escolha de representantes dos diferentes segmentos para os CACS

tem suscitado algum debate, tudo porque na maior parte dos casos, os critérios de

selecção não existem ou são pouco claros. Um dos aspectos mais cruciais que se levanta

quando se analisa a composição dos CACS é como, por exemplo, equacionar a

representação das autoridades tradicionais. No caso do Bailundo, a situação ficou, de

algum modo resolvida, fazendo recurso a figura do Rei Ekuikui IV como representante

das autoridades tradicionais, ao lado de dois sobas grandes. Porém, na prática, o rei tem

apenas uma função simbólica, tendo pouco contacto com a vida quotidiana das

comunidades. Comentando sobre este assunto da representação das autoridades

tradicionais nos CACS, o responsável do Gabinete de Apoio e Controlo das

Administrações Municipais e Comunais do Huambo, afirmou ser um aspecto

problemático porque “cada autoridade tradicional é autónoma”. Provavelmente esta é

uma situação que poderá ser solucionada quando se imprimir maior dinâmica ao

funcionamento dos CACS ao nível das comunas.

Reuniões

Desde a sua constituição, o CACS municipal do Bailundo realizou sete sessões,

das quais uma extraordinária. Em 2008, o CACS reuniu-se por quatro vezes e esse foi o

ano “mais produtivo”, porquanto a dinâmica de implementação do Plano de Intervenção

Municipal dava conteúdo de trabalho e substância à actividade da Administração

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Municipal e impunha-se a necessidade de manter informado este órgão sobre o grau de

realização dos projectos e aplicação dos recursos alocados ao município.

Em 2009, o funcionamento do CACS abrandou e foram realizadas apenas duas

reuniões das quatro previstas, de acordo com o que estipulava o Decreto nº02/07 no

artigo 54º ponto 6 segundo o qual “ O Conselho Municipal de Auscultação e

Concertação Social reúne-se ordinariamente de três em três meses e extraordinariamente

sempre que o Administrador o convocar. São apontadas três razões fundamentais que

estão na base do funcionamento irregular do CACS municipal do Bailundo em 2009.

Em primeiro lugar, a crise financeira levou o Governo a reduzir drasticamente os apoios

financeiros previstos para os municípios, sendo que grande parte dos projectos que

haviam sido elaborados pela Administração Municipal não foram implementados, o

que, por arrasto, condicionou o funcionamento do CACS. É que sem projectos

concretos em marcha não havia muitos motivos para reunir os membros.

Em segundo lugar, Bailundo viveu um período de cerca de sete meses, sem

Administrador Municipal, depois da anterior titular ter tomado posse na Assembleia

Nacional, integrada no grupo de deputados do MPLA pelo círculo provincial do

Huambo, após a realização das eleições legislativas de Setembro de 2008. Além disso, o

município também não tinha um Administrador Adjunto em funções, em virtude de a

pessoa que exercia o cargo ter sido dispensada, por problemas de saúde. Deste modo,

não havia no município, uma figura com competência legal para convocar o CACS, mas

ainda assim foram realizadas duas sessões, uma das quais dedicada à análise do Plano

de Intervenção Municipal para 2010.

Em terceiro lugar, assinale-se a interferência das estruturas governamentais a

nível provincial no funcionamento da Administração Municipal que muitas vezes vê-se

forçada a pôr de lado a sua programação normal de actividades para dar resposta às

orientações superiores. Um destacado membro da Administração Municipal do

Bailundo caracterizou tal interferência nos seguintes termos:“Às vezes acontece que os

convites já foram distribuídos, os membros mobilizados e aparece uma convocatória

dirigida ao Administrador, às 17 horas, para participar no dia seguinte numa reunião

do Governo Provincial, exactamente na mesma altura em que foi programada a sessão

do CACS. E como é ele que tem que presidir o CACS adia-se a sessão.”

Na senda da mesma reflexão, o referido membro critica o facto de o Governo

Provincial prestar pouca atenção ao funcionamento dos CACSs a nível dos

municípios:“O Governo não solicita a prestação de contas sobre o funcionamento dos

CACSs. Tem de haver maior coordenação do Governo Provincial com a Administração

Municipal.” Este depoimento é indicador de que as estruturas centrais não têm dado a

devida importância política aos CACS enquanto espaços privilegiados para a promoção

de uma governação local democrática, fundada na construção do diálogo entre

governantes e governados. Isso explica, em parte, as dificuldades que vêm sendo

vividas, um pouco por todo país no processo de implantação dos CACS. Uma maior

intervenção das estruturas centrais no apoio às Administrações Municipais na

dinamização do funcionamento dos CACS, afigura-se, de resto, como um dos desafios a

encarar no futuro, prestando assistência técnica e metodológica para que estes espaços

cumpram com os propósitos para os quais foram previstos na estrutura orgânica dos

órgãos da Administração Local do Estado.

Em 2010 até a data da realização das últimas entrevistas com os membros da

Administração Municipal, apenas tinha sido realizada uma sessão do CACS. A entrada

em vigor da nova constituição e o subsequente processo de adaptação da legislação

ordinária sobre a Administração Local do Estado e de outros sectores da vida nacional

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criou um certo ambiente de indefinição no funcionamento das instituições e, no caso das

Administrações Municipais esta situação acabou por condicionar também a realização

das sessões do CACS. Daí que no Bailundo a primeira sessão do CACS tivesse somente

ocorrido no mês de Agosto, durante a qual os conselheiros tomaram conhecimento do

processo de elaboração do Programa Municipal Integrado de Desenvolvimento Rural

Integrado e Combate à Pobreza, uma iniciativa da Casa Civil da Presidência da

República que veio a substituir os Planos de Intervenção Municipal.

Representatividade

Ao abordamos a composição do CACS fizemos alguma referência sobre a

questão da representação, particularmente no que diz respeito às autoridades

tradicionais e tal como sublinhamos, no Bailundo houve um alargamento de membros,

antes mesmo das últimas reformas legais operadas com a entrada em vigor da Lei 17/10

de 29 de Julho. Com a referida lei, a composição do CACS foi alargada, integrando

agora representantes de partidos políticos com assento parlamentar e do Conselho da

Juventude. Com efeito, lendo a relação nominal de membros do CACS Municipal do

Bailundo a que tivemos acesso, datada de 20 de Maio de 2010, o aspecto da

representatividade suscitou-nos algumas preocupações.

Primeiro é que os membros da Administração Municipal estão em maioria,

representando 35%, seguindo-se o sector empresarial com 20%, as igrejas com 12,5% e

as ONGs com 10%; as autoridades tradicionais e as associações de camponeses

representam 7,5% e 5% respectivamente. Os partidos políticos representam 5% dos

membros do CACS que integra ainda um médico que dirige o Hospital Municipal do

Bailundo e o representante dos registos (5%). Um dado a reter aqui é que num

município predominantemente rural, a representatividade das autoridades tradicionais e

das associações de camponeses, entidades mais próximas das comunidades locais, é

bastante limitada e isso pode ter reflexos, por exemplo, no momento de decidir sobre os

investimentos no município.

O segundo aspecto a considerar é que analisando, sociologicamente, a

composição do CACS em termos de representatividade percebe-se que é a “classe

dirigente” do município que domina o espaço, acabando por ter um peso significativo

no processo de tomada de decisões. As classes populares não estão suficientemente

representadas no CACS, tomando em consideração o reduzido número de autoridades

tradicionais e membros de associações de camponeses no CACS. Este é de resto, um

dos limites dos CACS quando vistos na perspectiva da promoção da participação

popular na governação local. Há aqui um desafio no sentido de se buscar outros

mecanismos de participação social fora dos CACS mas que sirvam de seu

complemento. A experiência nos países da América Latina, principalmente do Brasil, de

criação de conselhos populares, e entre nós, as comissões de bairros, poderia ser uma

alternativa para contornar esta limitação dos CACSs. Não se trata aqui de transformar o

CACS numa assembleia popular, mas é um imperativo democrático desenvolver formas

inovadoras de participação directa dos cidadãos na vida pública.

Uma nota sobre os partidos políticos. Já referimos acima que no Bailundo, o

CACS foi alargado, mesmo antes das alterações registadas recentemente com a nova lei.

A incorporação dos partidos políticos que, em alguns sectores da sociedade civil

angolana foi vista com algumas reservas, por se recear transportar as disputas políticas

para o interior dos CACS, foi referida positivamente por alguns entrevistados. O

representante da UNITA considerou ser uma oportunidade para colocarem as suas

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opiniões e críticas sobre a governação no município, lamentando, no entanto, o facto de

as sugestões do seu partido não estarem a ser consideradas pela Administração

Municipal. Para o Administrador Municipal, a entrada de representantes de partidos

políticos no CACS constitui um ensaio para a implantação das autarquias locais,

conforme estabelece a nova constituição.

Ao terminar estas considerações sobre a problemática da representatividade no

CACS gostaríamos de observar a questão relativa ao género. É que o CACS é

esmagadoramente dominado por homens, havendo apenas duas mulheres (5%), uma

quota bastante diminuta, tendo em conta os compromissos internacionais assumidos

pelo país relativamente à promoção da igualdade de género nos diferentes sectores da

vida nacional. Não pretendemos advogar aqui uma elevação das mulheres no CACS a

qualquer preço, mas simplesmente alertar que este é um aspecto que deve merecer

atenção dos responsáveis das Administrações Municipais.

Participação na tomada de decisões

O CACS não constitui um órgão deliberativo, segundo está estabelecido no

anterior decreto e na actual lei, na medida em que apenas é ouvido pela Administração

Municipal em matérias de natureza social, económica, política e cultura com incidência

directa na vida das populações. Visto neste espírito da lei, o CACS corre o risco de ser

utilizado simplesmente como espaço de legitimação social de decisões já tomadas pelos

tecnocratas e dirigentes da Administração.

No entanto, a concertação tem implicações práticas na tomada de decisões.

Implica dialogar, conciliar pontos de vista e interesses, enfim exige um envolvimento

activo dos actores e não uma mera participação simbólica. No Bailundo ocorreram dois

factos que merecem ser destacados. Na segunda sessão do CACS realizada em Março

de 2008, os membros propuseram à Administração Municipal a revisão da proposta do

Plano de Intervenção Municipal com base nas contribuições dos participantes, tendo

sido criado, para o efeito, um grupo de trabalho composto por técnicos da

Administração Municipal e das ONGs que intervêm no município; a sugestão foi

transformada em decisão e o grupo acabou por ser constituído e trabalhou durante dois

dias na revisão da proposta que viria a ser submetida a apreciação final, numa sessão

extraordinária convocada a propósito.

Num outro desenvolvimento, conta-se que o CACS influenciou a Administração

Municipal a contemplar também as pequenas empresas do município no processo de

adjudicação de obras para favorecer a economia local. Além disso, esta ideia foi

também motivada pelo facto de algumas empresas de fora não honrarem com os seus

compromissos, apresentam orçamentos muito elevados e não são patriotas, conforme

desabafa, o Administrador Municipal Adjunto:“ Só é possível atingir-se o

desenvolvimento com o sentido de compromisso. Alguns empreiteiros só olham para os

objectivos económicos, não apresentam facturas patrióticas, os valores que apresentam

são muito exorbitantes.”

Estes dois factos, embora não possam ser tomados como uma regularidade,

demonstram, em nosso entender, que o CACS pode ter um papel mais interventivo na

tomada de decisões sobre a vida do município, sobretudo no que toca a execução dos

projectos, fiscalizar e exercer o controlo social sobre os actos da Administração

Municipal.

Entretanto, a questão da participação nos CACSs deve ser encarada como um

processo de construção. A sua efectivação plena requer tempo e investimento em acções

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de capacitação que permitam aumentar as habilidades e competências dos conselheiros

no domínio do diálogo e concertação. Neste sentido, parece-nos importante

compreender que a evolução da dinâmica participativa no interior dos CACS

conformará diferentes situações em função do grau de interacção que se estabelecer

entre as Administrações Locais e os restantes segmentos da sociedade que os integram.

Para ilustrar melhor esta constatação vamos recorrer a grelha dos níveis de participação

concebida pelo sociólogo latino-americano Juan Bordenave e que a ADRA adoptou

como modelo teórico para analisar as dinâmicas de participação no âmbito dos projectos

de desenvolvimento comunitário que promove e que pode ser adaptada para a

compreensão do processo de participação no interior dos CACSs. A referida grelha

estabelece quatro níveis de participação, conforme se apresenta no quadro a seguir.

Nível Caracterização

Informação A Administração toma as decisões sobre

os programas e os projectos e apenas

informa aos restantes membros do

CACSs

Consulta A Administração continua ser o maior

protagonista na tomada de decisões, mas

procura ter em conta as opiniões dos

restantes membros do CACSs

Co-gestão Há uma ampla discussão entre a

Administração e os restantes membros

dos CACSs no processo de tomada de

decisões. É um nível de participação que

pode originar tensões e conflitos e tornar

difícil a tomada de decisões e por isso

requer muita negociação

Autogestão É o grau mais elevado de participação

sendo que os restantes membros dos

CACSs tornam-se em principais

protagonistas do processo de tomada de

decisões. Aqui o papel da Administração

é fundamentalmente de assessoria e

apoio

Um dos aspectos principais que é preciso reter deste modelo teórico é que a

promoção da participação no quadro do funcionamento dos CACSs dever ser encarada

também como um processo de aprendizagem que implica uma pedagogia própria que

prepare as pessoas para o exercício da cidadania. A experiência do trabalho da ADRA

com as comunidades mostra que o nível de cogestão é muito difícil de alcançar num

período inferior a cinco anos (Pacheco, 2006).

Analisando a situação concreta do Bailundo, à luz deste quadro de referência

teórico, podemos aferir que o nível de participação no CACS situa-se entre a

informação e a consulta, apoiando-nos nas observações feitas durante as sessões

dedicadas à análise da proposta do Plano de Intervenção Municipal a que tivemos a

oportunidade de assistir em que a sugestão apresentada pelos conselheiros permitiu a

revisão da referida proposta através da criação de um grupo técnico.

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O CACS e o Plano de Intervenção Municipal

Durante o ano de 2008, período em que CACS mais se reuniu, a elaboração do

Plano de Intervenção Municipal e a análise do seu grau de implementação dominaram

as sessões. No momento da sua elaboração, conforme já abordamos acima, por sugestão

dos conselheiros, a Administração Municipal decidiu criar um grupo de trabalho para o

ajustamento da proposta inicialmente apresentada pela sua área de estudos e

planeamento. Esta foi uma iniciativa interessante que marcou a diferença com outros

municípios da província do Huambo beneficiados pelo pacote de financiamento do

Governo Central que não procuraram desenvolver um mecanismo de consulta aos

membros dos CACSs.

Nas sessões que se seguiram, os conselheiros centraram as suas atenções na

implementação do plano, chegando mesmo, em alguns casos, a exigir a prestação de

informações detalhadas sobre a aplicação dos fundos. Questionado sobre este assunto,

um responsável eclesiástico pronunciou-se nos seguintes termos:“Os gestores têm

demonstrado transparência. Nas reuniões quando nós exigimos mostram os balancetes.

Nas inaugurações mostram aquilo que se gastou.”

Com efeito, a gestão dos fundos alocados para a implementação dos Planos de

Intervenção Municipal tem levantado algumas inquietações, conhecidas que são as

práticas de corrupção enraizadas na nossa sociedade, em particular nas instituições do

Estado. O próprio Tribunal de Contas revela no seu Relatório Anual de Actividades de

2009, citado pelo Jornal de Angola, na sua edição de 30 de Dezembro de 2009, que “ na

sua generalidade a gestão dos administradores municipais tem sido catastrófica e

danosa”. De acordo com a fonte, “os inquéritos e auditorias feitos concluíram que o

Fundo de Gestão Municipal está ao livre arbítrio dos administradores, na medida em

que o Ministério das Finanças deposita em contas de bancos comerciais indicadas pelos

administradores que detêm a co-titulariddade e em alguns casos titulares únicos dessas

contas.”. Questionado sobre esta revelação do Tribunal de Contas, um quadro superior

da Administração Municipal do Bailundo afirmou que esta está pronta a se submeter a

uma auditoria independente que analise os procedimentos utilizados na aplicação dos

recursos atribuídos ao município no âmbito do FUGEM.

Reflexões finais: os CACS e os desafios da democratização da governação local

A implantação dos CACS nos municípios marca uma importante fase da reforma

da Administração Local do Estado em Angola iniciada na década de 90. Contudo, a

experiência do Bailundo evidencia existirem ainda desafios a enfrentar para que os

CACS estejam efectivamente na vanguarda da promoção da governação local entendida

como processo de interacção permanente do poder público com os diferentes segmentos

da sociedade.

O primeiro desafio é o da representatividade. Este aspecto carece de

aprofundamento tendo em conta os limites que os CACS apresentam a este respeito,

sendo imprescindível outros mecanismos complementares de participação directa dos

cidadãos na vida do município que viabilizem o controlo social da acção governativa

dos órgãos da Administração Local do Estado. Olhando para a realidade do CACS do

Bailundo faz algum sentido pensar numa representatividade mais proporcional, sem pôr

em causa o papel protagonista dos membros da Administração Municipal. A

experiência de constituição de fóruns desenvolvida em alguns municípios do país é uma

referência importante nesta perspectiva.

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Em segundo lugar coloca-se o desafio da articulação entre os diferentes actores

sociais, ou seja precisam de estabelecer plataformas de diálogo, tendo em vista a

construção de propostas de agendas que sirvam de base de interacção com as

Administrações Municipais através dos CACS, conferindo maior qualidade na

participação e contribuir para a democratização da própria governação local.

Em terceiro lugar há um desafio da educação para a participação junto das comunidades

locais no sentido da apropriação dos CACS enquanto recurso político privilegiado para

a apresentação das suas demandas e reivindicações. Este aspecto é particularmente

importante num contexto como o do nosso país, onde as sequelas do colonialismo e da

guerra civil são ainda bem presentes e tendem a criar uma cultura de medo e

distanciamento do debate sobre a governação.

Em quarto lugar, nos parece que o maior desafio diz respeito à informação. É

que é impossível falar-se de participação sem existir informação sobre os actos de

governação, transmitida de forma transparente. As exigências colocadas por alguns

membros do CACS do Bailundo relativamente à prestação de contas sobre o grau de

implementação do Plano de Intervenção Municipal e a distribuição atempada da

documentação a apreciar nas sessões do órgão são manifestação desta relevância da

informação para a participação, pilar fundamental para a efectivação de uma governação

local democrática.

Finalmente, a institucionalização do poder local autárquico prevista na nova

constituição é uma janela aberta para o aprofundamento da democratização da

Administração Local do Estado, submetendo o poder político ao controlo social dos

cidadãos através do incentivo da participação popular nos municípios. Nesta perspectiva

a criação das autarquias afigura-se como o fundamento da governação local pois que

são instrumentos privilegiados para assegurar a participação dos cidadãos na formação

de decisões e deliberações que lhes dizem respeito (Sá, 2000). A constituição dos

CACSs representa um passo nessa direcção e por isso é importante que o seu

funcionamento pleno se transforme num compromisso ético da classe política do país.

Referências

1. Teixeira, Alfredo, Pacheco, Fernando e Fontes Pereira, Virgílio. Estudo sobre a

Macro-estrutura da Administração Local (Contribuição para a descentralização),

in “Desconcentração e Descentralização em Angola,Volume II”. Ministério da

Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento. Fevereiro 2007.

2. Ministério da Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento. A Descentralização em Angola. Textos de análise e

Legislação de base. Março 2002.

3. ADRA. Desenvolvimento Local e Ambiente: A experiência da ADRA e o caso

do município dos Gambos. Comunicação apresentada ao Seminário “As ONGs

dos países de língua oficial portuguesa na luta contra a pobreza pelo bem-estar e

cidadania”. ACEP, Lisboa, Setembro de 1999.

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4. Decreto-Lei nº 2/07 de 3 de Janeiro do Conselho de Ministros publicado no

Diário da República, Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2007, I Série-N.º 2.

5. LEI DA ORGANIZAÇÃO E DO FUNCIONAMENTO DOS ORGÃOS DE

ADMINISTRAÇÃO LOCAL DO ESTADO (Lei n.º 17/10 de 29 de Julho)

publicada no Diário da República, Quinta-feira, 29 de Julho de 2010, I Série-Nº.

142.

6. Pacheco, Fernando. Algumas Reflexões sobre Desenvolvimento Comunitário.

Luanda, Outubro de 2003.

7. Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Municipais.

Relatório do Seminário sobre “PODER LOCAL PARTICIPAÇÃO POPULAR

CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA”. Belo Horizonte, Brasil, Fevereiro de 1994.

8. SÁ, LUÍS DE. INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS AUTARQUIAS.

Universidade Aberta, Lisboa, 2000.

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“CARIDADE NA VERDADE” UMA SINFONIA TEOLÓGICA

Frei Luís de França op.

Professor na Universidade Católica de Angola

É de todos conhecido o gosto de Bento XVI pela música, pelo que não se achará

despropositado apresentar a sua encíclica Caridade na Verdade como uma sinfonia

teológica. De facto o papa Bento XVI compôs o seu texto à maneira dos músicos, como

facilmente o reconheceria Mozart seu músico favorito. Com efeito todo o texto é escrito

ao ritmo de um compasso que se repete como um estribilho ou uma coda. Caridade na

Verdade é o mote desta sinfonia. Todas as vezes que Bento XVI termina a abordagem de

um assunto quer seja o desenvolvimento, a finança, ou a ecologia, ele faz questão de

dizer como é que essa temática deve ser enquadrada no seu paradigma – caridade na

verdade.

“A Caridade na Verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena

e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal

para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade

inteira” (§1)

“Há a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na

direcção assinalada por S. Paulo da – veritas in caritate – (Ef 4:15), mas

também na direcção inversa e complementar da - caritas in veritate. (§2).

Caritas in veritate é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da

Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da

acção moral. Lembro dois em particular, requeridos especialmente pelo

compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de

globalização: a justiça e o bem comum (§6).

“O amor na verdade – caritas in veritate – é um grande desafio para a Igreja

num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é

que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a

interacção das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um

desenvolvimento verdadeiramente humano. (§6)

Ao terminar o segundo capítulo sobre o – O Desenvolvimento Humano no

nosso Tempo - Bento XVI repete o compasso ao dizer:

“Por isso, a caridade na verdade coloca diante de nós um compromisso inédito

e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e

torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas,

animando-as na perspectiva daquela – civilização do amor – cuja semente

Deus colocou em todo o povo e cultura.” (§33)

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E o terceiro capítulo começa de novo com a invocação do mote como se verifica

ao transcrever as palavras iniciais do mesmo:

A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade. Já

está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na

verdade, ao mesmo tempo manifesta. Sendo dom de Deus absolutamente

gratuito, irrompe, na nossa vida como algo não devido, que transcende

qualquer norma de justiça” (§ 34)

É na explanação sobre as formas de compreender o mercado, para além de

uma visão exclusivamente economicista que Bento XVI mais insiste nas virtudes

da relação caridade e na verdade.

“O princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da

fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade

económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas

também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência

simultaneamente da caridade e da verdade. (§ 36)

A caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização

àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendem

ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si

mesmo” (§38)

Opções de um título

Esta é maior encíclica social de toda história da Igreja. O papa trata de todos os

assuntos que se relacionam com a vida económica e financeira das sociedades actuais e

dos Estados. Defende o mercado e a liberdade individual, mas denuncia o capitalismo

selvagem apelando para os valores éticos que devem guiar a economia e a política.

Pronuncia-se pela necessidade de o Estado recuperar um papel activo sobretudo por

causa da necessidade de regulação dos mercados.

Caridade na Verdade é uma profunda reflexão ou se quisermos uma meditação

sobre os princípios do Evangelho aplicados à economia.

Com efeito, o Evangelho, nos diz, que o fundamental nesta vida é o amarmo-nos

uns aos outros como Deus nos amou. Como viver isto na economia, no mundo dos

negócios e no mundo do mercado livre? Bento XVI vai lembrar que no mundo real em

que vivemos não podem existir dois mundos. Ou seja, haveria o mundo da religião e o

mundo da economia. O papa, diz-nos que a economia não é neutra e que ao viver as

questões económicas temos, de pôr aí o evangelho.

Daí que a ideia central desta encíclica seja a fusão da espiritualidade com a

acção social tendo como pano de fundo o desenvolvimento integral do homem. Este

conceito do “desenvolvimento humano integral” é usado 22 vezes ao longo do texto. É a

ideia chave que atravessa todo o texto.

Querendo comemorar os 40 anos da publicação da encíclica Populorum Progressio

editada em 1967 pelo papa Paulo VI, o actual papa propõe que aquela encíclica tome o

lugar da Rerum Novarum cuja publicação em 1891 assinalou o nascimento da Doutrina

Social da Igreja. As suas palavras não poderiam ser mais claras quanto a essa intenção,

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“Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica,

pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice

Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento

humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçados para os

actualizar nos dias que correm. Este processo de actualização teve início

com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que

desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário

da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado

apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha

convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como « a

Rerum Novarum da época contemporânea », que ilumina o caminho da

humanidade em vias de unificação”. (§8)

A crise financeira mundial e os atrasos de uma encíclica

O papa Bento XVI nunca escondeu que o atraso na publicação desta encíclica se

ficou a dever à enorme crise que se abateu sobre o mundo da finança e da economia a

partir de 2007.

Inscrevendo-se nas práticas habituais das chancelarias do Vaticano, o novel papa

fez saber quase a partir do momento da sua eleição, em 2005, de que desejava publicar

em 2007, uma encíclica comemorativa dos 40 anos da publicação da encíclica Populorum

Progressio. Mas isso não aconteceu em 2007, e no avião que em Março de 2009, o

conduziu ao continente africano, e nomeadamente a Angola, o papa foi questionado

sobre esse atraso. Sua resposta não podia ser mais clara:

“Bento XVI admitiu que o atraso na publicação da sua tão esperada

encíclica social tem que ver com a dificuldade em encontrar uma resposta

credível para a crise financeira global “iii

Por outro lado em 26 de Fevereiro, ainda em Roma, o papa também fez saber que

não estava escrevendo a encíclica sozinho e acrescentou: “ durante este longo tempo de

espera verifiquei como é difícil falar com competência, sobre estes assuntos, já que a

realidade económica senão for abordada com competência não será credível”. Mas

desde logo afirmou que a encíclica denunciaria – o pecado humano da ganância – já

que esse foi o erro fundamental que causou o colapso de alguns grandes bancos

americanos e por efeito de ricochete provocou uma crise global.

Temos de fazer uma denúncia razoável e racional dos erros, sem moralismos, mas

com raciocínios concretos que tornem compreensíveis os mecanismos da economia

actual.....grandes moralismos nada ajudam se não estiverem apoiados em

conhecimentos substantivos da realidade”iii

Com tantas ressalvas sobre as consequências da crise financeira não admira que o

papa Bento XVI, ao publicar finalmente a sua encíclica tenha fustigado os responsáveis

da crise com palavras nada doces.

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Finanças e especuladores na Caridade na Verdade

Nunca nenhum texto da doutrina social da Igreja tinha até então dado tanto

relevo às questões financeiras como acontecerá neste texto de 29 de Junho de 2009.

Ao longo do texto, e por mais de 12 vezes o papa alerta, denuncia, corrige, apela a

uma outra visão do mundo financeiro ao serviço da economia global. Respiguemos

algumas dessas referências:

“As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos

deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e

maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com

frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração

desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as

medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas

novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e

sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade”. (§ 21)

“É preciso que as finanças enquanto tais — com estruturas e modalidades

de funcionamento necessariamente renovadas depois da sua má utilização

que prejudicou a economia real — voltem a ser um instrumento que tenha

em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento. Enquanto

instrumentos, a economia e as finanças em toda a respectiva extensão, e

não apenas em alguns dos seus sectores, devem ser utilizadas de modo ético

a fim de criar as condições adequadas para o desenvolvimento do homem e

dos povos. É certamente útil, se não mesmo indispensável em certas

circunstâncias, dar vida a iniciativas financeiras nas quais predomine a

dimensão humanitária. Isto, porém, não deve fazer esquecer que o inteiro

sistema financeiro deve ser orientado para dar apoio a um verdadeiro

desenvolvimento. Sobretudo, é necessário que não se contraponha o intuito

de fazer o bem ao da efectiva capacidade de produzir bens. Os operadores

das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua

actividade, para não abusarem de instrumentos sofisticados que possam

atraiçoar os investidores.

O desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única

produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos

povos, se a humanidade pensa que se pode recriar valendo-se dos

«prodígios» da tecnologia. Analogamente, o progresso económico revela-se

fictício e danoso quando se abandona aos «prodígios» das finanças para

apoiar incrementos artificiais e consumistas. Perante esta pretensão

prometeica, devemos robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária,

mas tornada verdadeiramente humana pelo reconhecimento do bem que a

precede”. (§67)

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A Universidade de Bolonha e o ensino papal

Sabe-se que a Universidade de Bolonha teve grande influência na redacção desta

encíclica. Nessa universidade do norte da Itália, desenvolvem-se há vários anos estudos

sobre a economia civil, e sobre a sociologia da relação. Áreas que como veremos mais à

frente serão muito referenciadas em algumas aplicações propostas pelo pensamento

papal na área económica e empresarial.

Ao mesmo tempo, alguns comentadores chamaram a atenção para a forma positiva

como Bento XVI aceitou, na elaboração desta encíclica integrar o chamado diálogo da

teologia, ou seja do pensamento eclesial, com as contribuições das ciências humanas. A

busca da verdade que é uma das tónicas desta encíclica leva a Igreja a aceitar, a verdade

venha ela donde vier, como o teólogo Ratzinger, hoje papa Bento XVI, lembrou numa

passagem do parágrafo nono do seu texto:

“A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é

garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento

humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia

incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente.

Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua

doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade

que liberta.

Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina

social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que

frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova

da sociedade dos homens e dos povos” (§9)

Se tivermos presente que em grande parte do século XX a teologia mais oficial da

Igreja, nomeadamente a chamada teologia da escola romana, manteve sempre uma

grande reserva para com a contribuição das ciências humanas no labor teológico, não

podemos deixar de nos surpreender, e pela positiva, com a frontalidade com que Bento

XVI se exprimiu no seu texto Caridade na Verdade.

Na panóplia de temas abordados na área da economia iremos sublinhar as

considerações que a encíclica faz sobre as concepções e as dinâmicas do mercado

enquanto espaço e instrumento da economia mundial, e seguidamente se abordará a

questão muito inovadora da diversidade de tipologias empresariais.

O mercado e as suas lógicas

Se João Paulo II – nomeadamente na enciclica Centesimus Annus - já tinha exposto

longamente como é que a doutrina social da Igreja encara o mercado enquanto

instrumento global da economia, este papa introduz leituras inovadoras ao apelar para a

gratuitidade como um elemento que deve também ter lugar nas lógicas do mercado.

Alguns economistas criticaram este apelo do texto papal lembrando as análises

de Adam Smith para quem a busca do interesse pessoal é o único motor do agir

económico.

Bento XVI desafia essa visão, que segundo ele é limitada, e avança com aquilo

que ele próprio chama a lógica do dom. Esta lógica seria como que o modo do conceito

cristão de fraternidade se tornar operatório na área económica. Deste modo, Bento XVI

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recusa que a lógica mercantil possa ser a única dinâmica do mercado. No termo do

parágrafo 34, Bento XVI sintetiza o seu pensamento do seguinte modo:

“Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que

a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo

tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e

político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao

princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”. (§34)

Esta introdução da fraternidade na vida económica corrente é para o papa uma

necessidade para contrariar a condição humana e que como sabemos segundo a doutrina

cristã está marcada pelo mal chamado pecado original. Esta é uam reflexão onde o saber

teológico procura cruzar com a ciência económica como se depreende da leitura atenta

da citação seguinte:

“A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência

do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que

frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente

produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito para o dom,

que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o

homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si

mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante

do encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimi-

lo em termos de fé — do pecado das origens. (§34)

E Bento XVI continuando na sua linha de pensamento reforça ainda a visão

teológica destas realidades humanas ao concluir o seguinte:

“Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que

constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não

conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser

constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca

poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além

de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade

verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão

fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de

Deus-Amor” (§34)

Reafirmados estes princípios da antropologia cristã, o papa vai dissertar sobre a

concepção do mercado como instrumento fundamental da economia actual, mas fazendo

propostas inovadoras.

O mercado e os seus limites

Invocando de novo os ensinamentos do seu predecessor de João Paulo II na

Centesiumus Annus (1991), o actual papa lembra que a doutrina social da Igreja, sempre

defendeu a teoria do mercado livre, mas lembra que não há mercado em estado puro e

que o mercado supõe um clima de confiança.

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“Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma

forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com

efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal

utilizadas se quem as gere tiver apenas princípios egoístas. Deste modo é

possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos

danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas

consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento

que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a

sua responsabilidade pessoal e social.”. (§36)

Ao querer exemplificar uma dessas situações danosas Bento XVI refere que;

“O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas

económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem

contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade.” (§39). Para alguns comentadores da

imprensa internacional esta é uma das afirmações mais radicais que o papa emitiu

ao longo de toda a encíclica. Noutra passagem da encíclica expõe aquilo que

poderíamos considerar, a definição mais completa de mercado, produzida até hoje e

segundo a Doutrina Social da Igreja

“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição

económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de

operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e

que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas

carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada

justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber

entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência

a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria

economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto

social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se

realiza. (§35)

As lógicas e as dinâmicas do mercado

De acordo com muitos pensadores e economistas contemporâneos – Bento XVI –

aceita aquela afirmação segundo a qual hoje não há alternativa à economia de mercado

mas adianta que o mercado tem de ser diversificado nas suas dinâmicas, e nas suas

lógicas de funcionamento

“O mercado tem interesse em promover emancipação, mas, para o fazer

verdadeiramente, não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é

capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas possibilidades;

tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as

gerar.” (§36)

A lógica mercantil

“A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais

através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como

finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e

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sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de

graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas

produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça

através da redistribuição”. (§36)

Dar sem receber nada em troca materialmente falando é o que se designa como um

dom. É esse comportamento, par além do contratual aquilo que Bento XVI vai propor:

A lógica do dom

“Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que

constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não

conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser

constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca

poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de

qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade

verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão

fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de

Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um

lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num

segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico,

social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço

ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.” (§34)

Mas o mais notável nesta exposição é a confiança que Bento XVI coloca nestas

perspectivas enquanto propostas que podem efectivamente concorrer para democracia

económica assim como para a vitalidade do próprio mercado

As duas lógicas são necessárias para a vitalidade do mercado

“A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a

todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o

homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os

financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo

económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo cada decisão

económica tem consequências de carácter moral. Tudo isto encontra

confirmação também nas ciências sociais e nas tendências da economia

actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a

produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir;

hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades

económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais,

a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local. Por isso, os

cânones da justiça devem ser respeitados desde o início enquanto se

desenrola o processo económico, e não depois ou marginalmente. Além disso,

é preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas

realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir

segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir

valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem

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em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente

possível” (§37)

Inovações empresariais e a civilização da economia

Como é de norma um papa não deve referir num documento de carácter

universal as situações e as realizações concretas, neste caso, na área da economia e das

empresas. Mas quando afirma como o faz no parágrafo 46 do seu texto: “ Nestas

últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla área

intermédia” podemos admitir que Bento XVI esta suficientemente bem informado

sobre todas as formas de organizações sociais e económicas hoje largamente designadas

como fazendo parte do “terceiro sector”.

Bento XVI quer evocar para além das empresas tradicionais, isto é, daquelas

exclusivamente voltadas para o lucro profit as que se designam como non-profit , ou

sejam, as organizações não lucrativas. É um universo bem conhecido e descrito nas

sociedades economicamente mais desenvolvidas como fez, por exemplo, Peter Drucker

relativamente a situação dessa área no seu país. Mas Bento XVI vai mais longe ao

referir as empresas de comunhão. Certamente, que aqui pensava nos “parques

empresariais” criados pelo movimento católico dos Focolaris. Hoje mais de mil

empresas em todo o mundo, incluindo algumas em países africanos, regem-se pela

lógica do dom sem se apartarem da regra fundamental do mercado – isto é – trabalhar

para obter lucro. iii

Conhecedor de todo este universo empresarial, Bento XVI, valoriza-

o ao falar das novas tipologias empresariais

Tipologias empresariais

“Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar,

livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam

fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o

lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e

exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e

sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma

espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e,

consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste

caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização

àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam

ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si

mesmo.” (§ 38)

Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem

trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de

empresa, muito para além da simples distinção entre «privado» e

«público». Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico.

A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se

ao serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este

significado amplo de espírito empresarial. Tal concepção mais ampla

favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias

de empresariado, com transferência de competências do mundo sem lucro

para aquele com lucro e vice-versa, do sector público para o âmbito

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próprio da sociedade civil, do mundo das economias avançadas para aquele

dos países em vias de desenvolvimento”. (§41)

E tudo leva a crer que Bento XVI, sem o querer referir, também, conhece a

extraordinária inovação lançada há poucos anos pelo prémio Nobel Muhammad

Yunus ao criar o chamado “negócio social”. A maior multinacional do mundo

fabricante de iogurtes associou-se a empresário Yunus para criar uma empresa de

iogurtes que hoje fornece milhões desse produto às crianças das aldeias pobres do

Bangladesh. Legitimando todas essas iniciativas corporizadas hoje em verdadeiras

alternativas económicas ao sistema económico dominante, o papa advoga que as

empresas de comunhão, e outras com a mesma dinâmica, concorrem para um

mercado mais competitivo e humano.iii

Economia civil e de comunhão para um mundo mais humano e competitivo

Bento XVI informado da pluralidade de formas empresariais antigas – como

as cooperativas, as mutualidades, as fundações - assim como das novas formas

empresariais como sejam – as empresas de comunhão ou os negócios sociais –

tem toda a razão em manifestar a sua confiança na dinamização que esta

pluralidade de tipologias empresariais pode trazer ao mercado, como o diz ao

terminar o paragrafo dedicado a este assunto:

O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem

uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se

secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como um

instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da

sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também

encontrem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal.

Sem nada tirar à importância e utilidade económica e social das formas

tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais

clara e perfeita dos deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A

própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado

mais humano e simultaneamente mais competitivo” (§ 46)

Desenvolvimento dos Povos, Direitos e Deveres, Ambiente

Este é o título abrangente do capítulo IV desta encíclica. Contudo sendo esta

uma encíclica evocadora da Populorum Progressio - a encíclica do desenvolvimento por

excelência - segundo alguns seria de esperar que Bento XVI fosse mais longe e mesmo

mais percutante na crítica ao modelo económico dominante. Assim se exprimiu o bispo

latino-americano Pedro Casaldáliga. “ Impõe-se também uma recusa crítica ao suposto

triunfo do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em lado nenhum

esse triunfo, se nos referirmos à imensa maioria da humanidade. Acrescendo que o

próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si, frente às

contradições internas. Mas, mesmo que esse triunfo do egoísmo estrutural se tivesse

dado, seria um fracasso ético da família humana, pois estar-se-ia a evidenciar, mais

uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas;

ter-se-ia imposto outra vez, como única possível, a ética dos lobos.iii

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Bento XVI tentou dizê-lo mas talvez sem a força que seria necessário face à

gravidade da situação mundial. Numa ou noutra passagem do texto papal são criticadas

afirmações que a doutrina social da Igreja não pode deixar de recusar como, por

exemplo, quando Bento XVI retomando o ensino do seu antecessor João Paulo II

recorda o seguinte: “Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a

economia de mercado tenha realmente necessidade duma certa quota de pobreza e

subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo” (§35) ou quando mais à

frente diz: “considerar o aumento da população como a primeira causa do

subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico” (§44)

Reconheça-se também que ao correr do texto algumas vezes se faz menção da

necessidade de repensar a economia “é necessária uma profunda reflexão sobre o

sentido da economia e dos seus fins”(…) “ é necessário pôr um travão á cobiça

insaciável que suscita lutas e divisões, moderando a obsessão de possuir, para nos

tornarmos disponíveis à partilha e ao acolhimento. “ (§32)

Este capitulo IV termina com uma longa explanação sobre o relacionamento do

homem com o meio ambiente levando o papa a utilizar expressões pouco comuns como

seja a “ecologia humana” ou “estado de saúde ecológica do planeta” . São abordadas

as questões actuais á volta da energia, e das responsabilidades para com as futuras

gerações “os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar

os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e as justiça entre as

gerações” (§48). E Bento XVI evoca de passagem as temáticas dos “novos estilos de

vida” que João Paulo II já tinha introduzido na doutrina social da Igreja ao escrever em

1991 a Centesimus Annus. “As modalidades com que o homem trata o ambiente influem

sobre as modalidades com que trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade

actual a uma séria revisão do seu estilo de vida”. (§51)

Mas mais uma vez faltou aqui uma certa ousadia profética que questionasse

radicalmente o desenvolvimento sem limites. Esta encíclica continua a inscrever-se,

ainda que o seu fio condutor seja o desenvolvimento humano integral, no horizonte do

desenvolvimento sem limites. Não se colocou a questão do “decrescimento” como

forma de mudar os estilos de vida. Parece que continuamos instalados na ideia de um

progresso ilimitado. Pergunta-se, será possível um desenvolvimento sem limites num

mudo limitado? O actual modelo de desenvolvimento não é universalizável. O que

acontecerá quando, por exemplo, os quase três mil milhões de chineses e indianos

quiserem e obtiverem os padrões de vida e consumo ocidentais. Se por um lado é

necessário e urgente promover o desenvolvimento dos países mais pobres, pois tem

direito ao desenvolvimento, esse desenvolvimento é problemático porque o planeta não

aguenta ecologicamente falando. Esta encíclica social tão elaborada, levantou estas e

outras questões, mas não apontou caminhos para uma mudança que tem mesmo de ser

radical.

Num recente encontro sobre esta encíclica promovido pelo Conselho Pontifício

Justiça e Paz na cidade de Accra no Gana, monsenhor António Frontiero avançava na linha

desta preocupação a seguinte ideia: “depois daquilo que o papa expôs na abertura do

segundo capítulo da encíclica sobre o desenvolvimento humano no nosso tempo, talvez

que aquilo que hoje seja necessário seja uma Carta de Responsabilidades. Ou seja um

documento que informe as pessoas sobre as suas responsabilidades para com os outros

e os encoraje a se comprometerem em comportamentos construtores de cidadania. Por

outro lado, também é necessário corrigir a tendência segundo a qual o bem comum não

seria mais de que um dos princípios do pensamento social católico. Ora é preciso

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insistir, que o princípio católico do bem comum está enraizado numa antropologia da

pessoa humana e que como tal diz respeito à moral social e pessoal de todos”.iii

Uma ousada concepção do homem

Depois desta longa exposição sobre as questões económicas e financeiras, Bento

XVI desenvolve no Capítulo V, intitulado – Colaboração da Família Humana - uma das

propostas mais profundas e originais do seu texto. Para lá das questões correntes do

desenvolvimento Bento XVI procura uma fundamentação teológica para o que ele vai

chamar a relacionalidade. Aqui se encontra seguramente a contribuição dos estudos

feitos na Universidade de Bolonha como se referiu acima

Fundamental para esta nova forma de compreensão alargada do conceito de

“desenvolvimento integral do homem” é a relacionalidade, ou seja, o reconhecimento da

nossa natureza inata para a relação social e suas consequências.

Esta focalização nas relações humanas enquanto chave para uma unidade global é

santificada pela comparação directa com a doutrina católica sobre a Trindade, tal como

Bento XVI o desenvolveu nos parágrafos 53 e 54 que citamos a seguir em alguns

extractos mais significativos:

“A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado:

esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O

desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são

uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por

sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros” (§53)

“Observava Paulo VI que « o mundo sofre por falta de convicções » A

afirmação quer exprimir não apenas uma constatação, mas sobretudo um

voto: serve um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as

implicações do facto de sermos uma família; a interacção entre os povos da

terra chama-nos a este ímpeto, para que a integração se verifique sob o

signo da solidariedade, e não da marginalização. Tal pensamento obriga a

um aprofundamento crítico e axiológico da categoria da relação. Trata-se

de uma tarefa que não pode ser desempenhada só pelas ciências sociais,

mas requer a contribuição de ciências como a metafísica e a teologia para

ver lucidamente a dignidade transcendente do homem”. “ (§53)

Caridade na Verdade procura definir as condições para aquilo que se designa como o

“desenvolvimento de todo o homem e de todos os homens”, e sustenta, defende que isso

deve estar baseado numa avaliação mais profunda e critica da categoria de relação.

A opção pela relacionalidade significa cortar com o individualismo das Luzes, que

hoje, e particularmente, em certos meios universitários, ainda permanece muito

influente sobretudo na área das ciências sociais.

Numa dessas escolas de pensamento promove-se o “homo economicus”, ou seja a

concepção privilegiado pelos economistas neo-liberais. Desta forma de conceber o ser

humano resulta num indivíduo solitário, que não está verdadeiramente socializado mas

antes preocupado unicamente com a maximização das suas preferências com o fim de se

tornar cada vez melhor, e cada vez mais um homem de sucesso.

Uma outra escola ou corrente de pensamento é a do “homo sociologicus”, isto é, o

homem organizado - socializado, onde tudo é dado pela sociedade. Quer isto faça dele

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uma criatura sociologicamente normalizada, ou um pos-modernista bem realizado,

acabará por ser um criatura das circunstâncias, um relativista que nada partilha com a

humanidade enquanto família universal, e logo incapaz de solidariedade com essa

família.

Porque o “homo economicus” é antropocêntrico, e o “homo sociologicus” é

sociocentrico nestas concepções ou visões não há lugar para a transcendência. Bento

XVI assume a mais recente corrente de pensamento antropológica a do “homo relatus”

– o homem da relação. E no texto dos referidos parágrafos diz o que entende por

homem de relação e qual o seu fundamento:

“De natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações

interpessoais: quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais

amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem se

valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com Deus, pelo

que estas relações são de importância fundamental. Isto vale também para

os povos; por isso é muito útil para o seu desenvolvimento uma visão

metafísica da relação entre as pessoas. A tal respeito, a razão encontra

inspiração e orientação na revelação cristã, segundo a qual a comunidade

dos homens não absorve em si a pessoa aniquilando a sua autonomia, como

acontece nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais

porque a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro

todo.

…………………………………………………………………………………………

O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas

as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana,

que se constrói na solidariedade tendo por base os valores fundamentais da

justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na

relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina. A

Trindade é absoluta unidade, enquanto as três Pessoas divinas são pura

relação. A transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a

ligação de uma com a outra total, porque constituem uma unidade e

unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta realidade de

comunhão: «para que sejam um como Nós somos um» (Jo 17, 22). A Igreja é

sinal e instrumento desta unidade. As próprias relações entre os homens, ao

longo da história, só podem ganhar com a referência a este Modelo divino.

De modo particular compreende-se, à luz do mistério revelado da Trindade,

que a verdadeira abertura não significa dispersão centrífuga, mas profunda

compenetração. O mesmo resulta das experiências humanas comuns do

amor e da verdade. (§54)

Alguns críticos disseram que esta encíclica era muito longa, o que é verdade, e que

por vezes tinha repetições, o que também é verdade. Como se sugeriu no início deste

texto a encíclica Caridade na Verdade pode ser entendida como uma sinfonia, e quase que

se poderia dizer que a quatro mãos, como em certos concertos para dois pianos.

Mas, se a música, que foi arte primeira, tem por fim elevar o espírito, esta longa sinfonia

consegue levar-nos das praias batidas pelos ventos das tormentas financeiras às alturas

dos melhores ideais de fraternidade e de realização humana.

Assumindo, e fazendo reflectir sobre o que há de mais dinâmico no mundo

contemporâneo, o papa Bento XVI deixa avisos à navegação sobretudo para os seus

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fiéis que são os membros da Igreja católica. Termino com dois dos seus avisos que

espero possa ressoar em nossos corações:

“A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos.”

“Os modelos económicos sózinhos não conseguirão resolver a injustiça que esta crise

revelou. A Justiça só acontece se existirem Homens Justos.

Luanda, 7 de Fevereiro de 2011

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Recensão crítica

“Desigualdades e Assimetrias Regionais em Angola – Os Factores de Competitividade territorial” Manuel Alves da Rocha Edições do CEIC-UCAN Luanda, 2010

No dia internacional do professor e em que fazia 100 anos que a República foi

proclamada no espaço de língua portuguesa, foi lançado, na sala Magna da

Universidade Católica de Angola, mais um livro de Manuel Alves da Rocha,

economista e professor desta instituição. O título deste livro é ele próprio todo um

programa: “Desigualdades e assimetrias regionais em Angola - factores de

competitividade territorial”. Trata-se de um estudo de caso sobre uma realidade que

está à vista de todos, mesmo do observador mais desatento mas que não tem merecido

uma atitude pró-activa, nem mesmo reactiva dos poderes públicos, quer a nível

estratégico, quer da política economia (seja macro ou micro), quer ainda da promoção

do desenvolvimento empresarial (p. 11).

Mas, o desenvolvimento de uma política de equilíbrio regional é necessária e

carece de uma vigilância permanente em relação a política de planeamento (ascendente

e descendente) pois como é consabido o crescimento económico, presidido pela “mão

invisível”, é gerador de desigualdades provocadas pela “natural” procura de uma

afectação racional e eficiente dos recursos e factores de produção. Por isto, este estudo

justifica-se como sendo “uma primeira abordagem da regionalização em Angola, da

localização das infra-estruturas e do estado actual do debate e reflexão teórica sobre a

economia regional” (p. 19).

O corpus de análise do estudo serviu-se apenas de informação oficial, o que

permite afastar suspeições e fazem das justas conclusões do estudo, mais do que

considerações críticas, verdadeiras evidências dificilmente refutáveis. De entre os

documentos utilizados preponderam o “Recenseamento Geral de Empresas e

Estabelecimentos” e as “Estatísticas do Ficheiro de Unidades Empresariais 2003-2006”,

publicado pelo INE, em 2008. Outros documentos e publicações utilizados no estudo

foram: o Orçamento Geral do Estado (para 2003, 2006 e 2007), os programas gerais do

Governo e seus respectivos “Relatórios de Balanço” (nomeadamente os de 2003-2004,

2005-2006 e de 2007-2008), o Plano Nacional de 2009 e o de 2010-2011, os relatórios

do MAPESS sobre o emprego; o Programa de Investimentos Públicos e respectivos

relatórios de execução, de 2006 e 2007 e alguma informação contida no jornal oficioso

que é o “Jornal de Angola”.

Tendo como período de análise, o de 2000/2007, o estudo pretende perceber as

dinâmicas de transformação ocorridas em relação a progressão ou regressão das

desigualdades, dos índices de concentração, da relação entre assimetrias regionais e os

movimentos migratórios, no país, particularmente o êxodo em direcção ao litoral, com

maior incidência para a capital que provocou a macrocefalia de Luanda, onde se

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concentra mais de 70% do rendimento nacional, 75% da produção industrial, 65% da

actividade comercial.

Para proceder a sua análise, o autor dividiu o país em cinco regiões:

Região Luanda/Bengo (províncias Luanda e Bengo);

Região Norte (províncias Cabinda, Zaire, Uíge e Kuanza-Norte);

Região Centro/Leste (Malanje, Lunda-Norte, Lunda-Sul, Moxico e Kuando-

Kubango);

Região Centro/Oeste (Kuanza-Sul, Bié, Huambo, Benguela e Namibe);

Região Sul (Huíla e Cunene).

Esta agregação das províncias, nas cinco regiões, foi determinada por razões de

contiguidade geográfica a que se juntaram os critérios da existência de recursos naturais

iguais e da interacção do desenvolvimento com a reconciliação nacional pela via inter-

étnica. Porque a contiguidade territorial facilita o lançamento de obras de recuperação

de infra-estruturas de incidência interterritorial, favorecendo, por exemplo, as vias

secundárias e terciárias de comunicação. A dotação de recursos naturais permite

configurar vantagens comparativas, levando em consideração a similitude de estádios de

desenvolvimento económico e social actual e a reconciliação nacional não pode ser

efectiva se todos os angolanos não participarem e beneficiarem do desenvolvimento.

A partir daqui o livro faz uma avaliação geral da política pública de crescimento

económico mas também, e por meio dela, uma denúncia social, uma proposta

epistemológica e uma proposta de boa governação.

Uma avaliação geral da política pública de crescimento económico

Para fazer a sua avaliação da política pública de crescimento económico, o autor

parte da ideia de que era expectável que a independência trouxesse a consolidação das

importantes performances económicas conseguidas pela potência colonial nos anos

1960 e 1970. No entanto, devido a vários factores conjugados, deu-se uma deterioração

da economia e a um desaproveitamento das oportunidades e potencialidades de

desenvolvimento, instalando-se um grande desequilíbrio nos sectores produtivos, com

uma progressiva desindustrialização do país e uma cada vez maior dependência do

crescimento do sector minério (com predominância do petróleo e dos diamantes, sendo

as rochas ornamentais pouco expressivas e o ferro, o cobre, o magnésio, o ouro, a prata

e os fosfatos abandonados). O que provocou uma evidente degradação da capacidade

produtiva herdada da potência colonial ou adquirida, sem critério, durante o período de

voluntarismo colectivista. O meio rural, não tendo sido objecto de uma política de

reformas e desenvolvimento, depois das mal-sucedidas iniciativas de colectivização das

médias e pequenas propriedades e de estatização das grandes empresas agrícolas, foi

votado ao abandono, permitindo uma progressão da guerra que trouxe ainda uma maior

destruição.

Os números, referidos neste estudo, mostram de forma implacável que os

primeiros 25 anos de independência não houve praticamente crescimento económico

suficiente para distribuir pelo interior do país. Entre 1990 e 2000, o PIB registou uma

taxa média de crescimento (a preços de 1995) de 0,7%. Este panorama provocou a

degradação das condições de vida da população e a instalação de uma vulnerabilidade

estrutural das famílias angolanas, fazendo emergir a pobreza como estrutural, com

indicadores da ordem dos 68% para a pobreza e de 25% para a pobreza extrema.

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A partir de 2002, grandes investimentos foram dirigidos para as infra-estruturas

da economia e do desenvolvimento social mas a sua concentração em Luanda e no

litoral, levou a uma série de incongruências regionais e provinciais e afastou muitas

zonas, total ou parcialmente, dos benefícios do crescimento económico e da atenção dos

agentes públicos. Situação agravada pelo facto de que os empresários privados tem

evitado investir onde as externalidades são inexistentes, a preparação da mão-de-obra

fraca e o poder de compra é baixo.

As demonstrações são muitas, no interior do livro, mas basta a título de

exemplo, olhar para os quadros sobre a estrutura regional dos investimentos públicos

(vertical e horizontal) (gráficos das páginas 101 e 103) para constatarmos as assimetrias

regionais.

ESTRUTURA REGIONAL VERTICAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS

2003 Luanda/Bengo Norte Centro leste Centro oeste Sul Total

Sectores Sociais 14,4 0,0 4,8 3,4 0,0 6,9

Infra-estruturas 24,2 6,7 2,8 10,9 0,0 13,4

Economia Real 6,9 1,7 1,1 6,1 6,1 4,7

Sectores Institucionais 16,7 1,9 1,4 4,3 6,4 8,4

Defesa e Segurança 3,6 0,0 0,0 0,9 0,0 1,6

Governo Provincial 34,3 89,7 89,9 74,4 87,5 65,1

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

2006

Sectores Sociais 5,9 16,6 18,6 12,4 25,5 12,5

Infra-estruturas 74,9 21,7 60,1 79,8 45,3 69,2

Economia Real 1,4 0,0 0,9 1,3 10,2 1,8

Sectores Institucionais 8,4 2,2 1,9 0,4 2,2 3,1

Defesa e Segurança 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0

Governos Provinciais 9,2 59,5 18,5 6,0 16,8 13,3

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

2007

Sectores Sociais 9,5 1,6 12,8 7,4 6,6 7,5

Infra-estruturas 38,4 40,4 43,6 63,1 38,7 48,5

Economia Real 1,5 3,5 7,5 4,4 13,9 4,4

Sectores Institucionais 14,4 2,1 1,6 14,0 24,2 11,3

Defesa e Segurança 0,1 0,0 0,0 0,1 0,0 0,0

Governo Provincial 36,1 52,3 34,5 10,9 16,6 28,1

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

ESTRUTURA HORIZONTAL REGIONAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS

2003 Luanda/Bengo Norte Centro leste Centro oeste Sul Total

Sectores Sociais 82,9 0,0 8,6 8,5 0,0 100,0

Infraestruturas 71,1 12,2 2,6 14,1 0,0 100,0

Economia Real 57,8 8,8 3,0 22,3 8,2 100,0

Sectores Institucionais 78,6 5,7 2,1 8,8 4,9 100,0

Desfesa e Segurança 89,6 0,0 0,0 10,4 0,0 100,0

Governos Provinciais 20,8 33,9 17,1 19,7 8,5 100,0

Total 39,4 24,6 12,4 17,3 6,3 100,0

2006

Sectores Sociais 13,4 10,8 15,7 45,6 14,4 100,0

Infraestruturas 30,8 2,5 9,1 52,9 4,6 100,0

Economia Real 22,3 0,0 5,0 33,4 39,3 100,0

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Sectores Institucionais 76,6 5,9 6,4 6,2 4,9 100,0

Desfesa e Segurança 100,0 0,0 0,0 0,0 0,0 100,0

Governos Provinciais 19,7 36,2 14,6 20,6 8,8 100,0

Total 28,5 8,1 10,5 45,9 7,0 100,0

2007

Sectores Sociais 13,4 10,8 15,7 45,6 14,4 100,0

Infra-estruturas 21,9 14,6 10,1 48,2 5,3 100,0

Economia Real 9,3 13,9 19,0 37,0 20,7 100,0

Sectores Institucionais 35,2 3,2 1,6 45,9 14,1 100,0

Defesa e Segurança 44,7 0,0 0,0 55,3 0,0 100,0

Governo Provincial 35,5 32,5 13,7 14,4 3,9 100,0

Total 27,7 17,5 11,2 37,1 6,6 100,0

Como aí se diz Luanda/Bengo é a região que mais beneficia de investimentos

nas infra-estruturas. Os investimentos sociais nas regiões não ultrapassam os 9% do

total de investimentos públicos. Pior ainda são os investimentos para criar condições de

estruturação e crescimento da agricultura, da indústria e serviços vários (comércio e

transportes) que não ultrapassam os 4%.

Uma denúncia social

Por isto, se a estabilização económica é o esteio do crescimento económico, ela

não é um fim em si mesmo. Se a associação, com êxito, destes dois factores e a atitude

de recusa de modelos impostos pelo FMI tornou Angola um caso especial, também o

paradoxo da abundância cativa o olhar do outro, pois o crescimento económico feito

sem diversificação da economia, sem disseminação pelo território e com a sua

concentração numa minoria da população - representando dois produtos de exportação,

0,18% do território nacional e 5% da população - contribuiu para uma “estratificação

social indecente e imoral”, num país em que continuam a existir situações de fome

endémica, em muitas zonas, por inexistência de acessibilidade material. Sendo pois “a

elevada taxa de pobreza”, está é, do ponto de vista social, talvez, a maior ofensa que o

país independente e com extraordinárias potencialidades de crescimento pode fazer aos

seus cidadãos” (p. 26).

Uma proposta epistemológica

Uma proposta epistemológica para a academia e outra para o poder político. À

académica é sugerido fazer da redução das desigualdades regionais (quiçá sociais) um

novo caso de estudo. Para o poder político, propõe que a política de regionalização do

desenvolvimento, promotora da modernização das estruturas produtivas e da melhoria

das condições de vida das populações, seja uma condição sine quo non da reconciliação

nacional, seja um dos chamados “ganhos da paz” (p. 27).

Uma proposta de boa governação

Sendo assim, a prioridade em matéria de desenvolvimento regional são (1) os

eixos de transporte rodoviário e ferroviário, (2) a igualização relativa das condições de

acesso à repartição do rendimento nacional (p. 25) de maneira que as dissemelhanças

regionais se confinem às vantagens comparativas de cada província, às diferenças

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culturais e históricas e aos acidentes geográficos. Ou seja, a disseminação do

crescimento económico é o desafio actual.

O desafio da governação é tornar outras províncias e regiões do país

suficientemente atractivas para constituírem um dique de retenção das populações

através do investimento na educação e formação profissional e no incentivo ao

crescimento económico dirigido para o interior do país.

Para o autor, pensar o desenvolvimento económico e, mais ainda, programá-lo

obriga a não perder de vista a ideia (quase trivial) de que é preciso valorizar o potencial

humano do país, integrando-o num vasto esquema de trocas de conhecimento e dos bens

produzidos, associando-o ao estabelecimento de novas estruturas económicas e sociais;

implica entender o desenvolvimento económico, intenso e ordenado, como resultado da

“criação, nas regiões mais favoráveis ou aptas, de infra-estruturas e de incentivos que

tornem viáveis a implementação de um número crescente de indústrias e outras

actividades económicas que possam conduzir a um melhor aproveitamento e

transformação das riquezas naturais, nomeadamente nos domínios dos recursos agro-

pecuários, silvícolas e das pescas dessas regiões (p. 28). Ou seja, uma “nova visão

estratégica do desenvolvimento regional, em Angola, deve ser encarada numa

perspectiva de crescimento equilibrado entre os sectores da pecuária, florestas, pescas e

indústria transformadora, dando a possibilidades de todas as províncias (e regiões)

participarem, com a criação de pólos de desenvolvimento regional.

Esta nova visão estratégica de desenvolvimento regional não pode ignorar a

potencialidade de formas participadas de gestão da res pública, através da

implementação de uma política de descentralização que permita realização prática do

que está consignado na nova Constituição sobre o Poder Local (artº. 213 e ss) que

define as Autarquias Locais, representativas das populações das “circunscrições do

território nacional” como “a organização democrática do Estado ao nível local”.

Conclusão

Este livro, que não vale pelo número de páginas mas pela qualidade do seu

conteúdo, é um trabalho de investigação aplicada absolutamente necessário ao

harmonioso desenvolvimento do país e é também, seguramente, para lá do que já ficou

dito, um contributo para o enriquecimento da nossa massa crítica nacional.

(A propósito, deixem fazer um parênteses, para vos dizer que há dias fui

ofendido moralmente e publicamente condenado ao ostracismo e ao silêncio

obsequioso, por um deputado do regime, porque gostava muito de criticar. A minha

resposta foi lapidar: sem crítica não há academia e eu sou um académico. É claro que

tive que explicar a esse deputado, e aos demais, que a crítica não é sinonimo de falar

mal. Não é “falar mal do executivo” – na expressão actualmente muito usada porque

está em curso a cultura pagã de deificar o chefe, apresentando-o como omnisciente e até

omnipresente que é a ele que cabe decidir tudo. Fecho o parênteses).

A crítica, neste livro, é entendida como um exercício da dialéctica da superação;

um exercício simultaneamente de avaliação da situação actual e de construção de uma

nova existência. A crítica tem assim uma função criativa de possibilidades de acção e de

aspectos alternativos que agem sobre o que existe de contínuo, frágil e imutável na

história, na política, na economia, nas relações sociais tendo por escopo a análise da

sociedade existente. Paulo Freire, pai da pedagogia da libertação e um dos promotores

do programa nacional angolano de alfabetização, defendia que “somente uma teoria

crítica pode resultar na libertação do ser humano” porque “não existe transformação

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LUCERE REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

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da realidade sem libertação do ser humano” [Paulo Freire, O projecto da modernidade

do Brasil, Papirus, 1994, p. 44]. A crítica não é pois, uma banalidade, uma coscuvilhice,

mas é sim um meio de libertação do ser humano.

Poderíamos pois dizer que este livro de Alves da Rocha é a crónica da “Angola

Desfavorecida” - um país que vai mal apesar das aparências.

Nelson Pestana