Luciene Maria Patriota - Uso e aceitação de gírias - DISSERTAÇÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE UNIDADE ACADMICA DE LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUAGEM E ENSINO

USO E ACEITAO/REJEIO DAS GRIAS POR PROFESSORES DO ENSINO BSICO

Luciene Maria Patriota

Campina Grande / Julho / 2006

Luciene Maria Patriota

USO E ACEITAO/REJEIO DAS GRIAS POR PROFESSORES DO ENSINO BSICO

Dissertao apresentada em cumprimento aos requisitos necessrios para obteno do grau de mestre em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande. ORIENTADORA: Prof Dr Maria Auxiliadora Bezerra

2006

FOLHA DE APROVAO

___________________________________________________ Prof Dr Maria Auxiliadora Bezerra Orientadora

____________________________________________________ Prof Dr Dino Preti Examinador

_____________________________________________________ Prof Dr Edmilson Luiz Rafael Examinador

No

possvel

pensar em linguagem sem poder.Paulo Freire

ideologia

e

- AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeo a Deus que, mais uma vez, revelou-se fiel e soberano em minha vida, renovando minhas foras diariamente, suprindo todas as minhas necessidades, colocando em meu caminho as pessoas certas, nos lugares certos, na hora certa, tudo para cumprir Seu propsito em minha vida. A Ele, meu amor e gratido.

minha orientadora, M Auxiliadora Bezerra, que com seu jeito simples, coerente e, extremamente, eficiente, conduziu-me nesta pesquisa, dividindo comigo seu saber, seus livros, sua pacincia, mostrando-me, mais uma vez, o valor de se fazer algo com amor e dedicao.

minha amada famlia: meus pais, meus irmos, minha cunhada, minha sobrinha. Em todos os momentos, sempre juntos, incentivando e me sustentando em oraes. A vocs, todo meu amor.

A todos os professores que, no decorrer desses dois anos, dividiram conosco seus conhecimentos, enriquecendo nossas vidas.

De forma especial, agradeo a todos os professores do Colgio Monte Sio, que se dispuseram a cooperar com minha pesquisa. Agradeo pela forma corts com que permitiram minha entrada em suas salas de aula e pelas contribuies essenciais para a execuo deste estudo.

Tambm agradeo ao Professor Dino Preti pela cordialidade com que atendeu ao convite para integrar a banca examinadora e pelas preciosas contribuies que s enriqueceram meu trabalho.

A Edmilson, tambm examinador, pelas pertinentes consideraes que s levaram ao aprimoramento deste trabalho.

Agradeo tambm a Laura, secretria da ps-graduao do Curso de Letras, pela pacincia em nos atender, em todos os momentos que precisamos, com informes e tambm incentivos essenciais para nossa vida de mestrandos.

Aos queridos companheiros mestrandos, pela amizade sincera, carinho, trocas, palavras de incentivo, e-mails encorajadores, enfim pela convivncia que deixar saudade. Lembrem-se que, para verdadeiras amizades, no existe barreira de tempo, nem distncia.

Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realizao deste trabalho.

- LISTA DE QUADROS

- QUADRO 1: Demonstrativo das informaes scio-demogrficas dos sujeitos da pesquisa .............................................................................. 18

- QUADRO 2: Demonstrativo das disciplinas e sujeitos envolvidos na pesquisa ........................................................................................................ 19

- QUADRO 3: Demonstrativo do nmero de aulas observadas por disciplina .............................................................................................................. 21

-QUADRO 4: Demonstrativo dos preconceitos revelados nas falas dos professores ................................................................................................... 75

- CONVENES USADAS NAS TRANSCRIES

- OCORRNCIAS Pesquisadora Professor Aluno nfase Trechos saltados Mudana brusca de assunto Pausa Alongamento de vogal Maior alongamento Falas sobrepostas Comentrios da pesquisadora Trecho sem compreenso Entrevista Nota de campo Aula observada Ensino fundamental Ensino mdio

- CONVENES/SINAIS PE P A maisculas /... / /

...e:: e:::::::: [ ] (( )) (incompreensvel) EN NC AO EF EM

- SUMRIO - Captulo 1 - INTRODUO .................................................................................................. 13 1.1- Contexto situacional .................................................................................. 13 1.2- Procedimento metodolgico ...................................................................... 17 1.1.2- Local e sujeitos da pesquisa ............................................................. 17 1.2.2- Instrumentos e tcnicas de coleta de dados ..................................... 20 1.2.3- Tratamento dos dados ...................................................................... 22 - Captulo 2 - TEORIZANDO SOBRE INTERAO, PURISMO E GRIA .............................. 24 2.1- Interao: das origens sala de aula ....................................................... 24 2.1.1- O conceito de interao em correntes tericas diversas .................. 24 2.1.2- Interao em sala de aula ................................................................ 27 2.1.2.1- Sala de aula: um lugar social .................................................. 27 2.1.2.2- Interao e linguagem: uma viso bakhtiniana ....................... 34 2.2- Purismo lingustico: histria, norma e atitudes ......................................... 39 2.2.1- Purismo lingstico: origens ............................................................. 39 2.2.2- Fala e escrita: algumas palavras ................................................... .. 46 2.2.3- Norma e atitudes lingsticas ........................................................... 50 2.3- A gria e suas perspectivas de estudo ...................................................... 58 2.3.1- Gria: viso histrica ......................................................................... 58 2.3.2- Gria: perspectivas de anlise lingstica ......................................... 62 2.3.3- Gria e interao ............................................................................... 64 - Captulo 3 - LNGUA E GRIA: CONCEPES E ATITUDES ............................................ 67 3.1- As concepes de lngua e de gria dos sujeitos ..................................... 67 3.2- Atitudes frente s grias: a instituio do preconceito .............................. 74 - Captulo 4 - REGISTRO PADRO DA LNGUA X USO EFETIVO: A GRIA ESTABELECENDO O CONFLITO ..................................................................... 87 4.1- Funes da gria no discurso dos professores ......................................... 87 4.1.1- A gria promovendo a aproximao professor/aluno ........................ 88 4.1.2- A gria como recurso disciplinar ....................................................... 91 4.1.3- A gria como facilitadora da aprendizagem ...................................... 96

4.2- O conflito: eliminao/substituio das grias como procedimento didtico ................................................................................. 102 - Captulo 5 - Consideraes finais ....................................................................................... 108 - Referncias Bibliogrficas ............................................................................... 111 - Anexos ............................................................................................................ 118

- RESUMO

Partindo da concepo de lngua como interao, realizaes conjuntas em contextos especficos e objetivos definidos, este estudo teve como objetivo analisar as concepes de lngua e de gria de professores do ensino bsico, assim como verificar as atitudes advindas dessas concepes e a influncia delas na metodologia dos professores. Para isto, este estudo apoiou-se em reflexes tericas voltadas para a questo da interao em sala de aula (Koch, 2004; Erickson, 2001; Brait, 1995; Dettoni, 1995; Bakhtin, 1995; Delamont, 1987), da viso purista da lngua, sua histria e conseqncias para o ensino (Bortoni, 1995; Bagno, 2003, 2002, 2001, 1999; Leite, 1999) e dos estudos de gria (Preti, 2004, 2000, 1998, 1996). Para a execuo da pesquisa foram selecionados vinte professores do ensino fundamental II e mdio de uma escola privada da cidade de Campina Grande PB, de todas as disciplinas que compem o currculo do ensino bsico e para a coleta de dados optou-se pela entrevista semi-estruturada e observao das aulas desses professores como forma de se perceber a presena das grias nas falas deles, em que momentos eram usadas, com que funes. Os resultados mostraram uma concepo purista de lngua pelos professores, sendo a gria concebida como um uso voltado para os jovens, feio, marginal, reflexo de falta de leitura e vocabulrio. No entanto, apesar de apresentarem uma viso purista da lngua, os professores fizeram uso das grias em sala de aula para os mais variados fins: aproximarem-se dos alunos, disciplinlos e para facilitar a sua aprendizagem. Porm, apesar desses usos observados, permaneceu no universo dos professores o trabalho metodolgico com as grias no sentido de sua eliminao, estabelendo, com isso, um conflito entre as concepes e os usos efetivos da lngua pelos professores, estimulando a manuteno da gria no seu lugar de marginalidade e excluso e reforando a viso purista de lngua dos professores.

- ABSTRACT

From the conception of language as interaction, jointly realizations in specific contexts and defined objects, this study has as main objective to analyse the conceptions of language and slang of teachers from the high school, as well as to verify the attitudes from these conceptions and their influence in the teachers methodology. To make possible, this work was leant in theorical reflections returned to the matter of classroom (Koch, 2004; Erickson, 2001; Brait, 1995; Dettoni, 1995; Bakhtin, 1995: Delamont, 1987), from the puritain vision of language, its history and consequences for teaching (Bagno, 2003, 2002, 2001, 1999; Leite, 1999; Bortoni, 1995) and the slangs researches (Preti, 2004, 2000, 1998, 1996). To the execution of the presented research, we selected twelve teachers from the high and middle school of a private establishment of Campina Grande PB, of all the subjects that take part of the basic teaching. To collect the piece of informations, we opted to go by the semi-structured interview and to detect the slangs presence on their speaking, in which moments they were used and which functions they had. The results showed a puritain conception of language by the teachers, as the slang use, belonging to the youngs, ugly, delinquent, reflex of lecture and vocabulary absences. Despite the puritain language conception, the teachers used slangs in their classes for different purposes: to approximate their pupils, to discipline and facilitate their knowledge. However, in spite of the observed usages, remained in the teachers universe the methodological work eliminating the slans with this, set up a conflict between the conceptions and the effective uses by the language of the teachers, stimulating the slang maintenance in the place of delinquency and exclusion, reinforcing the puritain vision of language from the teachers.

13- CAPTULO 1 - INTRODUO 1.1- CONTEXTO SITUACIONAL de longa data a relao existente entre lngua e sociedade. Ambas esto de tal forma imbricadas que praticamente impossvel imagin-las separadas uma da outra. atravs de sua lngua que o homem faz sua histria acontecer, revela suas aptides polticas e ideolgicas, se faz ouvir, convence ou convencido, revela seu presente, se faz lembrar e projeta seu futuro. Em todos os seus momentos, de vitrias ou derrota, de dvidas ou convices, a sua linguagem se faz presente, criando sua histria, tornando possvel sua sociabilidade (IANNI, 1999; ALKMIM e CAMACHO, 2001). Diante de tal complexidade, faz-se necessria uma abordagem da linguagem, por parte da escola, que explore toda esta riqueza expressiva. Mas o que a prtica escolar mostra algo muito distante do ideal. Em todas as instncias da escola no apenas no ensino restrito relacionado lngua portuguesa ainda muito forte uma prtica docente cuja concepo de lngua tratada como sendo nica, homognea, unificadora, pura, sem nenhuma influncia externa, primando por uma viso purista da lngua. Essa concepo ou viso anula a diversidade de usos prprios da linguagem, alguns dos quais o aluno j traz consigo para a escola. Afinal, para essa forma de conceber a linguagem existe uma forma padro, homognea, suprema, nica, correta e que enquadra o homem num padro social, cultural e poltico adequado. Com tal perspectiva, a teoria do certo e do errado se estabilizou dentro da escola e elegeu um nico uso como sendo o mais valorizado, correto, elegante, capaz de promover socialmente seus usurios, criando assim, o chamado fetichismo da lngua e a venerao de um ideal de uso completamente distante do uso real e efetivo da lngua ( SUASSUNA, 1995; BAGNO 2001a). Foi tambm a partir da concepo de lngua como um cdigo abstrato e nico que comportamentos e atitudes quase sempre negativas foram sendo desenvolvidas do falante para com as lnguas, para com as variedades lingsticas e, conseqentemente, contra outros falantes. Exercendo, com isso, influncias sobre o comportamento lingstico e reforando a idia de que a lngua , por excelncia, um instrumento de poder, que coloca os seus usurios numa espcie de diviso de classes, na qual se destacam os que estiverem do lado do certo, do padro. Nas palavras de Calvet (2002:68): lngua corresponde uma comunidade civilizada, aos dialetos e aos patos

14comunidades de selvagens, os primeiros agrupados em povos, ou em naes, os segundos, em tribos. Vista sob esta tica, a lngua algo definitivo e absoluto, eliminando todas as demais manifestaes e formas de uso, que passam a ser vistas, segundo Travaglia (1997:24), como:desvios, erros, deformaes,degeneraes da lngua e, por isso, a variedade dita padro deve ser seguida por todos os cidados falantes dessa lngua para no contribuir com a degenerao da lngua de seu pas.

Porm, somente numa viso de lngua voltada para a variao que se encontra lugar e explicao para muitos fenmenos lingsticos que ocorrem fora do chamado uso padro da lngua. Estes fenmenos foram chamados por Alkmim e Camacho (2001) e Preti (1984) de linguagens especiais. So formas e expresses lingsticas que, motivadas por fatores como idade, sexo, profisso, condio social, escolaridade, surgem como variaes prprias de grupos que compartilham uma forma particular de comunicao, como as grias, jarges, cales, etc. Dessas linguagens especiais, uma ocupa lugar de destaque: a gria. Fenmeno lingstico tipicamente oral, a gria, desde seus primeiros representantes mascates da Idade Mdia ligada diretamente aos grupos marginalizados e excludos da sociedade: aqueles que, por diversas razes (sociais, econmicas, polticas), vivem margem da sociedade. Alm disso, a gria tambm amplamente relacionada aos jovens. No entanto, de acordo com Preti (2000), apesar de todo preconceito que a cerca, a gria um fenmeno que tem, cada vez mais, invadido a sociedade em seus mais diversos segmentos e nveis etrios, sociais, econmicos e culturais. Isso ocorrendo atravs de fatores como crises poltico-econmicas, mdia televiso, rdio, jornal, etc. (PRETI, 2000;1998). Ela est presente em diversas situaes do nosso cotidiano, envolvendo pessoas das mais variadas faixas etrias e grupos sociais os mais diferenciados, representando um meio particular de se expressar. Acerca disso, Patriota (2002), em pesquisa sobre o uso de grias em manuais didticos destinados ao ensino fundamental, mostrou que a gria tem chegado escola atravs de seus manuais, num nmero considervel. No entanto, o tratamento a ela dispensado ainda se encontra longe de oferecer ao aluno uma viso de lngua como processo dinmico de interao, ligado diretamente aos seus usurios e aos diversos usos da linguagem. Apesar de as concepes de lngua apresentadas pelos manuais

15analisados estarem fundamentadas nas teorias lingsticas atuais, que analisam e estudam a lngua em seus aspectos funcional, pragmtico e discursivo, as propostas de atividades apresentadas nos manuais, e que envolviam grias, foram, na grande maioria, de carter puramente prescritivo. Como constatou a pesquisa, houve pouco desenvolvimento da competncia

comunicativa do aluno, que abriria caminhos para o estudo das muitas variaes prprias da lngua, entre elas as grias, dando-lhes a importncia que merecem. Isso, de certa forma, ajudaria a mudar a tradio que impera em nossa sociedade de considerar a variao algo feio, errado, pejorativo, quase sempre, numa escala de valor negativo, estimulando preconceitos lingsticos. Sendo a lngua um conjunto de opes de usos, faz-se necessrio o desenvolvimento por parte da escola e todos os seus envolvidos professores, coordenadores, material didtico de uma concepo de lngua voltada justamente para esses usos efetivos do dia-a-dia, proporcionando, assim, a possibilidade de o aluno ter contato com a maior pluralidade discursiva possvel, para que assim ele se aproprie de possibilidades reais para desenvolver sua chamada competncia comunicativa. Em outras palavras, apresentar a lngua como um guarda-roupa cheio de opes de uso, preparando o aluno para saber escolher e adequar sua linguagem s mais diversas situaes sociais. Foi partindo dessa realidade que esta pesquisa se props encontrar resposta s seguintes indagaes: Qual a concepo de lngua e de gria de professores do ensino fundamental II e mdio? Qual a sua atitude diante da gria? Qual a influncia que esta concepo traz para suas prticas pedaggicas? Para tal estudo visou-se, no plano geral, a analisar as concepes de lngua dos professores do ensino fundamental II e mdio, assim como suas concepes sobre os registros lingsticos, em especial a gria. E, especificamente, objetivou-se identificar as atitudes decorrentes dessas concepes e avaliar e discutir a influncia que tais concepes e atitudes trazem s suas prticas pedaggicas. Sendo a instituio escolar um lugar social, responsvel pela produo e divulgao de conhecimentos inclusive lingsticos - informaes e opinies, e estando a gria no cotidiano de quase todos os segmentos da sociedade, essa escola tem, ou deveria ter, como papel principal o desenvolvimento da competncia comunicativa de seus alunos. Para isso, a escola deveria abrir suas portas para o maior nmero possvel de usos da lngua, inclusive a gria. Dessa forma, ela estaria formando alunos

16competentes, que saberiam dominar a lngua nos seus mais variados estilos, conhecedores das suas inmeras variaes e preparados para dar a roupagem devida lngua que usa, de acordo com a situao real de interao que estiver vivenciando. Uma vez que a variao algo inerente lngua, trazer a gria para foco de estudo faz com que outros usos lingsticos possam ser analisados, ao mesmo tempo em que se tem uma viso das perspectivas que o professor principal mediador do ensinoaprendizagem apresenta sobre esse uso, que atitudes so geradas a partir desse modo de conceber a gria e como essas concepes e atitudes influenciam suas prticas pedaggicas: no sentido de trazer-se para a sala de aula um tipo de linguagem rica em significados e expresso, que o aluno conhece, que faz parte de seu grupo social e que ele (ele aqui podendo remeter tanto ao aluno como ao professor) usa com muita freqncia, ou, simplesmente, de eliminar-se esse uso, dando, em sala, exclusiva prioridade ao uso padro da lngua. Como mostram os estudos mais modernos sobre a gria, houve, nos ltimos anos, uma visvel ampliao do uso dessa variedade em todos os segmentos sociais, fato este que impede que, nos dias atuais, ainda se considere a gria um uso exclusivo dos jovens. Diante do exposto e procurando responder aos questionamentos levantados, esse estudo organizou-se em cinco captulos. No primeiro, h a introduo com toda a contextualizao do estudo, o procedimento metodolgico adotado para a pesquisa, assim como a organizao geral da dissertao. No segundo, tem-se o referencial terico do estudo. Partiu-se de uma viso geral da lngua como interao, baseada na contribuio bakhtiniana do dialogismo, e mostrase a sala de aula como lugar social propcio interao entre seus protagonistas principais: professor/aluno. Em seguida, aborda-se a viso purista de lngua que impera em nossas escolas e sociedade em geral, herana de uma tradio histrica, assim como as atitudes lingsticas advindas dessa forma de conceber a lngua. Por ltimo, apresentase a gria em seu aspecto histrico e suas perspectivas de estudo. Nos terceiro e quarto captulos, desenvolve-se a anlise e discusso dos dados, considerando as concepes de lngua e de gria, seus usos e funes na sala de aula e o conflito demonstrado pelos professores face ao seu uso. As consideraes finais com possveis implicaes pedaggicas do presente estudo encontram-se no captulo final, seguidas dos anexos e referncias bibliogrficas utilizadas no estudo.

171.2- PROCEDIMENTO METODOLGICO Definir o caminho metodolgico de uma pesquisa no tarefa fcil e requer um caminhar junto entre a viso de mundo do pesquisador e a compreenso de mundo dos envolvidos no estudo. Sendo assim, foi partindo do interesse pelo estudo de gria da pesquisadora e das inquietaes de professores das mais variadas disciplinas sobre o uso desse recurso lingstico pelos alunos, que surgiu o desejo e a inteno de se observar que atitudes os professores do ensino fundamental II e mdio demonstram em relao s grias e que influncias essas atitudes exercem sobre suas prticas metodolgicas. Da o campo emprico escolhido para esse estudo ter sido a sala de aula. Para tal, optou-se por um estudo de natureza descritivo-analtica com abordagem qualitativa, uma vez que a pesquisa descritiva aquela que tem seu interesse voltado a descobrir, observar fenmenos, procurando descrev-los atravs de interpretaes. Tambm se enquadram nesse tipo de pesquisa aquelas que apresentam como objetivo levantar opinies, atitudes e crenas de uma determinada populao sobre um tema-alvo. A juno do carter analtico ao estudo deve-se ao fato de os estudos descritivos se restringirem, muitas vezes, mera descrio dos fatos, enquanto que os analticos fazem anlise interpretativa dos dados, extraindo desses possveis concluses. Uma vez que a abordagem qualitativa busca conhecer modos de vida, formas de pensamento, crenas, com o contato do pesquisador com o sujeito envolvido no estudo, optou-se por esta forma de abordagem. Alm disso, nela h um aprofundamento da anlise, no apenas uma apresentao sumria dos dados. Muito mais do que descrever um objeto, as pesquisas com abordagem qualitativa buscam conhecer trajetrias de vida, experincias sociais dos sujeitos que, muitas vezes, influenciam de forma bastante significativa em suas prticas cotidianas (FLICK, 2004; MARTINELLI, 1999; ANDR, 1995). 1.2.1- Local e sujeitos da pesquisa A escola escolhida para esse estudo foi uma instituio da rede privada da cidade de Campina Grande PB, que atua h 45 anos nessa cidade, atendendo alunos oriundos de classe mdia-baixa. Essa escola atende alunos do Maternal ao terceiro ano do Ensino Mdio, baseando-se numa proposta pedaggica dita scio-interacionista. A escolha dessa escola deveu-se ao fato de a pesquisadora fazer parte do seu corpo docente, fato este que facilitou o contato com os professores-sujeitos deste estudo.

18Foram vinte professores os sujeitos deste estudo, 07 do sexo masculino e 13 do feminino, de disciplinas variadas1 - histria, geografia, literatura, portugus, fsica, qumica, cincias, biologia, matemtica, ingls, educao fsica, artes, relaes humanas. Destes, 12 atuam no ensino fundamental II e 08 no ensino mdio, a faixa-etria destes sujeitos variou de 25 a 45 anos e a formao acadmica apresentou professores com graduao, graduao em curso e ps-graduao, conforme mostra o Quadro 1 que segue: QUADRO 1 - Demonstrativo das informaes scio-demogrficas dos sujeitos da pesquisaSEXO F. ETRIA FORM. ACADM. * TEMPO DE ATUAO PROFISSIONAL ENS. FUND. II F M 25-30 31-35 36-40 +40 G GC PG 1-5 anos 06 6-10 anos 10 20 +10 anos 04 ENSINO MDIO 1-5 anos 12 6-10 anos 06 20 +10 anos 02

13 20

07

11

05 20

03

01

8

04 20

08

* G graduao; GC graduao em curso; PG ps-graduao Conhecer as caractersticas mais especficas dos sujeitos da pesquisa faz-se importante para que se tenha uma melhor compreenso das relaes que esses sujeitos tm com o objeto de estudo em questo: as grias. Isso porque concepes e atitudes relativas a um dado tema no so desenvolvidas no vazio, mas a partir das relaes estabelecidas entre sujeito, sociedade e as tradies desenvolvidas e perpetuadas por esta. De acordo com os dados do Quadro 1, houve o predomnio do sexo feminino entre os sujeitos. Este fato leva a inferir que ainda muito freqente a presena da figura feminina nas salas de aula. mulher sempre se associa pelo menos no senso comum a figura materna. Uma vez que esse mesmo senso comum v na escola uma extenso do lar, tem-se na presena to marcante do sexo feminino entre os sujeitos observados o reforo dessa idia. A criana e o adolescente encontraro no ambiente escolar a mesma figura que, provavelmente, tm em casa. No que se refere ao fator idade, o predomnio foi a faixa-etria entre 25-30 anos. Tais dados demonstram a presena em sala de aula de profissionais com certa1

As disciplinas filosofia e educao crist no foram includas entre as disciplinas a serem analisadas, pois as professoras das mesmas lecionam relaes humanas e histria, j includas na pesquisa.

19estabilidade e maturidade no exerccio da profisso, revelando a dificuldade de insero neste mercado de trabalho por parte de segmentos mais jovens. Estes dados podem ser reforados pelo fator tempo de atuao profissional. No ensino fundamental II, observou-se que o predomnio foi a presena de profissionais com tempo de atuao variando entre 06 a 10 anos. No mdio observou-se que o predomnio foi de at 05 anos de atuao, este fato pode encontrar explicao no prprio percurso do profissional de educao, que geralmente, inicia sua carreira no ensino fundamental para, a partir da, chegar ao ensino mdio, representando mesmo uma espcie de ascenso profissional. Ressalte-se, neste ponto, o nmero de profissionais com ps-graduao, latosensu. Este nmero revela que, como em todos os demais campos profissionais, o da educao tambm tem exigido um profissional melhor qualificado, levando o professor a buscar envolver-se cada vez com a academia e os novos conhecimentos desenvolvidos por esta. Como este estudo envolveu muitas disciplinas, o nmero de professor analisado em cada uma delas tambm variou, como mostra o Quadro 2, que segue: QUADRO 2 Demonstrativo das disciplinas e sujeitos envolvidos na pesquisa Nvel de Ensino Sexo Masc. Disciplinas Portugus Literatura Matemtica Fsica Cincias Biologia Qumica Histria Geografia Ingls R. Humanas Artes Ed. Fsica Total geral 01 01 01 01 04 12 Fem. 02 01 01 01 01 01 01 08 Masc. 01 01 01 03 08 Fem. 01 01 01 01 01 05 Masc. 01 02 02 01 01 07 20 Fem. 02 01 01 02 02 01 01 01 01 01 13 Fundamental II Ensino Mdio Total Parcial

20Esse nmero de sujeitos foi estipulado pela deciso de se contemplar todas as disciplinas que compem o currculo fundamental e mdio, englobando todas as reas de ensino e professores especficos de lngua materna e outros que se utilizam da lngua para exercerem seu trabalho. Outra razo que levou a esse nmero e a essas disciplinas foi o fato de todos apresentarem, em suas conversas informais, na sala dos professores, preocupaes especficas com os usos lingsticos dos alunos, principalmente no que se refere ao uso de grias. Segundo eles, elas so excessivas e distantes do uso padro da lngua, defendido por eles como sendo aquele que deve ser seguido em sala de aula.

1.2.2- Instrumentos e tcnicas de coleta de dados Como essa pesquisa procurou analisar a atitude (ou atitudes) de professores em relao gria e seu uso e a influncia que essas atitudes tm em suas prticas pedaggicas, a coleta de dados foi realizada atravs de instrumentos e tcnicas variadas, de modo a assegurar a espontaneidade dos informantes e a autenticidade dos dados obtidos. Para isso, trs caminhos foram seguidos: observao de aulas dos j citados professores, entrevista com eles e com alguns de seus alunos. A observao das aulas que no foram gravadas, pois no houve autorizao dos professores ocorreu no perodo de setembro a novembro de 2004.

Antecipadamente, a todos foi solicitada a permisso da entrada da pesquisadora em suas aulas, em perodos alternados, o que foi atendido, embora, a princpio, ficassem intrigados sobre o porqu dessas visitas. Isso exigiu conversas esclarecendo os objetivos da pesquisadora. Ao todo foram observadas 51 aulas de 50 minutos cada uma, com o intuito de se coletar os registros lingsticos desses professores em sala, especificamente se faziam ou no uso de grias em suas exposies e interaes com os alunos. Para tal, usou-se um Dirio de Campo, no qual se tentou registrar com a maior preciso possvel as ocorrncias ligadas diretamente a esse estudo - o uso de grias: quando ocorriam, por que ocorriam, com que objetivos, entre outros aspectos (ver captulo 4). Foram observadas, pelo menos, duas aulas de cada professor, com exceo de dois, o de matemtica e qumica do ensino mdio, que s permitiram a entrada da pesquisadora em sala uma vez. Ressalte-se que, no primeiro encontro, tanto os professores, como os alunos demonstraram certa tenso, que na seqncia das visitas

21foi gradativamente diminuindo, permitindo, assim, que os dados emergissem. O Quadro 3 mostra o nmero de aulas observadas por disciplina, quantidade de aulas e nvel. QUADRO 3 Demonstrativo do disciplina DISCIPLINAS Portugus Literatura Matemtica Fsica Cincias Biologia Qumica Histria Geografia Ingls R. Humanas Artes Ed. Fsica Total nmero de aulas observadas por

N DE AULAS OBSERVADAS NVEL FUNDAMENTAL II 06 02 02 03 03 03 02 02 03 04 51 ENSINO MDIO 03 01 03 03 01 04 03 03 Aulas

Ao mesmo tempo em que eram observadas as aulas, tambm foram feitos registros de conversas informais das quais participaram alguns dos sujeitos desta pesquisa, em momentos antes e depois das aulas, geralmente na sala dos professores, com o intuito de verificar a presena ou no de grias em suas falas. O segundo momento da coleta de dados foi a entrevista semi-estruturada, qual todos os sujeitos foram submetidos. Essa entrevista seguiu um roteiro de onze perguntas 04 objetivas e 07 subjetivas previamente elaborado sobre o tema da pesquisa (ver anexo A). As questes objetivas tiveram o intuito de se fazer um levantamento de faixaetria, sexo dos informantes, grau de instruo e tempo de profisso, uma vez que esses dados podem influir diretamente no uso (ou no) de grias. As questes subjetivas exploraram o tema da pesquisa e sua relao com o uso da lngua em sala de aula. Todas as entrevistas foram realizadas no perodo de 18 a 29 de outubro de 2004, segundo a disponibilidade dos envolvidos na pesquisa. Para ampliar os dados de anlise, foram realizadas, num terceiro momento, entrevistas com alguns alunos sobre a atitude ou reaes dos professores em relao ao uso de gria em sala de aula. Foram selecionados 04 alunos do Fundamental II e 03 do

22Ensino Mdio, perfazendo um total de 07 alunos. A escolha desses alunos no seguiu nenhuma exigncia prvia, apenas serem alunos dos professores-sujeitos. Para essas entrevistas tambm se seguiu um roteiro com oito questes subjetivas sobre o tema uso de gria em sala de aula, buscando especificar a receptividade ou no do professor frente a esse uso (ver anexo B). importante informar que os alunos no se constituram informantes principais da pesquisa, mas foram considerados respostas contriburam para reforar os dados a serem analisados. A razo principal da coleta de dados ter seguido trs momentos distintos visou a posterior possibilidade de triangulao desses dados. Sendo a triangulao o uso de tcnicas de abordagens e pontos de vistas de observao variados, com pessoas em diferentes situaes de interao, assegura-se a verificao e validade dos dados, trazendo para a pesquisa um carter mais real das observaes feitas, garantindo-se, assim, a confiabilidade dos dados obtidos, evitando-se uma possvel interpretao pessoal do pesquisador (MINAYO, 1998; CANADO, 1994). No que se refere s transcries das entrevistas, adotou-se a ortografia convencional do Portugus, mantendo algumas variantes fonolgicas presentes nas falas dos informantes, como por exemplo fal, s, n, num t, etc. As convenes usadas nas transcries seguiram o modelo do texto conversacional usado no Projeto NURC Norma Urbana Culta de acordo com as orientaes de Ataliba de Castilho. Todo detalhamento das convenes usadas encontra-se nas pginas iniciais da dissertao. importante observar que os nomes dos professores e alunos que participaram deste estudo no foram revelados, estando representados por cdigos. coadjuvantes e suas

1.2.3- Tratamento dos dados Aps o levantamento dos dados, estes foram submetidos triangulao como forma de se estabelecer as idias recorrentes entre entrevistas e aulas observadas. Aps sucessivas leituras, pode-se estabelecer as categorias e sub-categorias que serviram de base para a anlise e interpretao dos dados, representadas da seguinte forma: 1) Concepes de lngua e de gria: algumas atitudes a) Concepes de lngua e de gria b) Atitudes frente s grias: a instituio do preconceito 2) Registro padro da lngua x uso efetivo: a gria estabelecendo o conflito a) Funes da gria no discurso dos professores

23b) O conflito: eliminao/substituio das grias como procedimento didtico Nos captulos 3 e 4 essas categorias foram desenvolvidas atravs de reflexes realizadas a partir da teoria lida e que serviu de orientao para este estudo.

24- CAPTULO 2 - TEORIZANDO SOBRE INTERAO, PURISMO E GRIA Este captulo apresentar o percurso terico deste estudo. Partiu-se da viso de lngua como interao, depois mostrou-se a viso purista da lngua, herdada da tradio e que se encontra presente na escola. Finalmente, mostrou-se a gria em seu aspecto histrico e suas perspectivas de estudo.

2.1- INTERAO: DAS ORIGENS SALA DE AULA Este tpico discute o termo interao, mostrando as suas diversas definies oriundas de campos diferentes do conhecimento, a sala de aula como lugar social propcio interao e seus principais protagonistas professor e aluno. Para isso, tomou-se como referencial terico estudos que vem a linguagem como realidade discursiva e como fenmeno histrico-social. O foco central foram as contribuies de Bakhtin, com as noes sobre auditrio social, dialogia, enunciao e o papel da palavra na cadeia enunciativa. Tambm foram discutidas noes desenvolvidas pela Etnografia e Sociolingstica Interacional, tais como carter situado da comunicao, ecologia imediata das relaes, enquadre, footing e pistas de contextualizao, como forma de explicar a dinmica interacional da sala de aula, tendo a linguagem como fio condutor dessa interao. 2.1.1- O CONCEITO DE INTERAO EM CORRENTES TERICAS DIVERSAS Apesar de ser um conceito recente nos debates em torno do estudo da linguagem, segundo Souza e Silva (1994), as cincias humanas e sociais j fazem uso do conceito interao desde a dcada de 30, do sculo XX, com autores como Gardier, na Filosofia, Shtz, em Sociologia, Read, Vygotsky e Piaget, na Psicologia. Na lingstica, tem-se as contribuies de Bakhtin2, que, desde a dcada de 20, j fazia uso do conceito de interao em seu Marxismo e Filosofia da Linguagem. Para se entender a presena to marcante desse conceito nos estudos da linguagem, faz-se necessrio retroceder um pouco no tempo para se tentar resgatar em que ponto da histria esse conceito surgiu com mais fora e destaque.

Embora os estudos deste autor tenham relao direta com a Literatura, Bakhtin fez, em seus estudos, algumas incurses pela lingstica.

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25Essencialmente, pode-se dizer que a lngua interao mesmo tendo-se outras concepes para a lngua3 - ou seja, ela atividade, forma de ao, lugar de troca, possibilitando aos membros de dada sociedade a prtica das mais diversas atividades. Com essa concepo, passa-se de uma viso de lngua como sendo signos abstratos, nicos e imutveis para uma concepo que a v como sendo viva, mvel, histrica, capaz de variar, mudar, sempre de acordo com cada contexto no qual se realiza ( GERALDI, 2004; KOCH, 2004; BORTOLOTTO,1998; TRAVAGLIA,1997). No entanto, foi somente a partir da dcada de 60, do sculo XX, com o advento da Sociolingstica , que a lngua comeou a ser vista e estudada na perspectiva de seus usos efetivos, dentro de condies de produo concretas, a lngua, portanto, como interao. No dizer de Koch (2004:7-8), a lngua como:atividade, como forma de ao que possibilita aos membros de uma sociedade a prtica dos mais diversos tipos de atos, que vo exigir dos semelhantes reaes e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vnculos e compromissos anteriormente inexistentes.

A partir da, os estudos sobre interao se intensificaram e muitos estudiosos passaram a se debruar sobre esse fenmeno, acumulando as mais variadas contribuies oriundas dos mais diversos campos de conhecimento. No entanto, segundo Souza e Silva (1994), apesar dos campos diversos, todos os trabalhos sobre interao operam a partir de um princpio bsico, segundo o qual aquilo que uma pessoa produz, ou mesmo aquilo que ela , constitui um reflexo da sua relao com o outro (p.15). Em outras palavras, falante e ouvinte esto sempre numa mtua troca, crescendo e fazendo o outro crescer, sempre atravs das interaes estabelecidas pela lngua. Sendo os campos de estudos da interao to variados, as concepes relacionadas a esse separadamente. So da Sociologia os primeiros estudos sobre a interao. Por volta da dcada de 60, Goffman ([1979]1998) e outros estudiosos passam a se preocupar com a anlise de termo tambm o so, fazendo-se necessrio, portanto, v-las

Outras formas de conceber a lngua: como expresso do pensamento nela o homem representa o mundo atravs da linguagem, ou seja, ela o espelho desse mundo, sendo a funo nica da lngua a de representar o pensamento humano, no sendo afetada nem pelo meio, nem pelas circunstncias; e como instrumento de comunicao concebe a lngua como um cdigo, uma ferramenta formada a partir de um sistema de signos, disponveis para todos.

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26fenmenos microssociais e no mais apenas macrossociais4. Uma vez que para eles a interao e a estrutura social so termos imbricados, esta reproduz aquela, ambas se influenciando. Da Goffman considerar a interao como a influncia dos indivduos uns sobre os outros, se na presena fsica, ou seja, face a face. Para esse autor, esta presena fsica, em tempo real, condio essencial para que haja interao. Da Etnometodologia (corrente ligada Sociologia da Comunicao e Antropologia Cognitiva), que tem sua preocupao voltada para as aes humanas do dia-a-dia nas diversas culturas, veio a Anlise da Conversao, para a qual a interao est ligada ao dilogo, conversa, com o princpio bsico de que todos os aspectos dessa interao podem ser examinados e descritos em termos de organizao estrutural. Assim como os socilogos, para os analistas da conversao o que importa a interao face a face, na qual os interlocutores esto, juntamente, empenhados na produo do texto. H no processo interativo uma constante negociao, o que, por si s, j inviabilizaria a anlise de produes individuais, separadas do todo (KOCH, 2004; MARCUSCHI, 1986). Do campo da Antropologia vem a Etnografia, literalmente a descrio de culturas ou de grupos de pessoas que so percebidas como portadoras de um certo grau de unidade cultural (CANADO,1994:55). Para esse campo de estudos, portanto, a interao ser concebida como a comunicao entre participantes no seu contexto social, ou seja, num lugar especfico, com pessoas tambm especficas, ambos, meio e falantes, influenciando-se (KLEIMAN, 1995; KOCH, 2004).5 Na perspectiva scio-interacionista, por influncia das teorias de Vygotsky, a interao compreendida como a relao sujeito/sujeito/objeto, sempre inseridos num meio scio-cultural, numa constante interao dialtica. Nessa relao, ao mesmo tempo em que o ser humano transforma o seu meio para atender suas necessidades bsicas transforma-se a si mesmo (REGO,1995:41). Na tica da lingstica bakhtiniana, a interao vista como uma atividade verbal na qual os indivduos esto socialmente organizados, desenvolvendo as mais variadas atividades, construindo identidades, representando papis, negociando sentidos, numa constante inter-ao social. Para Bakhtin ([1929] 1995), a presena fsica imediata e realMicrossocial fenmenos sociais voltados para as situaes menores, ou seja, sempre que o indivduo a unidade de base da pesquisa, considerado em seu contexto natural. Macrossocial a estrutura social como um todo, ou seja, o indivduo visto como aquele que interioriza as normas e valores da sociedade, no havendo interdependncia entre ambos (COULON, 1995). 5 Algumas noes e conceitos prprios da Sociolingstica Interacional e da Etnografia sero aprofundados no item 2.1.2.1 deste tpico por terem ligao direta com os dados analisados nesta dissertao.4

27no pr-requisito para haver a interao. Segundo esse autor, toda mensagem, mesmo monologal, produzida por um locutor nico, implica o outro.6 Como se pde verificar atravs do exposto, as definies relacionadas ao termo interao so as mais variadas, no entanto, apresentam como fio condutor comum a presena de um sujeito no mais passivo, nem exclusivamente dono de seu discurso, mas um sujeito ativo, constantemente em busca de interpretar as aes do outro e suas prprias aes, enfim, construindo significados, numa troca constante de saberes. 2.1.2 - INTERAO EM SALA DE AULA 2.1.2.1 - SALA DE AULA: UM LUGAR SOCIAL Data da dcada de 60, do sculo XX, o incio do debate acerca das falhas na

educao formal, com o questionamento em torno do porqu de alguns alunos, principalmente das classes populares, no assimilarem os contedos propostos pela escola e outros sim, esses outros pertencentes quase sempre s classes privilegiadas socialmente. Apesar dos esforos empreendidos no sentido de a educao chegar a todos, persiste a crise e uma porcentagem inaceitavelmente grande daqueles que ingressam nas escolas, saem sem as habilidades de que precisam para garantir um emprego regular e para lidarem com seus prprios assuntos na sociedade em geral (GUMPERZS, 1991:58). Inicialmente, faz-se necessrio tomar a sala de aula como um ambiente no qual se pode estabelecer a chamada dinmica da interao (BRAIT, 1995). Afinal, conscientes ou no, os interactantes operam, em qualquer situao de interao, segundo preocupaes bsicas: 1) quem o outro a que o projeto de fala se dirige? 2) quais so as intenes do falante com a sua fala, com a maneira de organizar as seqncias dessa fala? 3) que estratgias utilizar para se fazer compreender, compreender o outro e encaminhar a conversa de forma mais adequada? 4) como levar o outro a cooperar no processo? Segundo essa autora, a percepo dessa dinmica que faz com que a interao seja possvel (p.195):6

A concepo de interao e conceitos oriundos das teses defendidas por Bakhtin sero retomados e aprofundados no item 2.1.2.2 por tambm estarem relacionados aos dados analisados nesta dissertao.

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no se trata, portanto, de produzir enunciados para um falante da mesma lngua, com o intuito de trocar informaes, mas de organizar a fala de maneira a compreender e a fazer compreender. Isso implica a mobilizao, alm do instrumental lingstico oferecido pela lngua enquanto sistema, de normas e estratgias de uso que se combinam com outras regras culturais, sociais e situacionais, conhecidas e reconhecidas pelos participantes do evento conversacional.

Pensando na sala de aula, essa dinmica ocorre no momento em que professores e alunos, visando o bom andamento da aula e a aprendizagem dos contedos, estabelecem verdadeiras negociaes em busca do desenrolar favorvel da interao. Isso se revela nas brincadeiras, na linguagem usada, que pode perfeitamente sair da formalidade como condio de um atingir o outro, retornando ao formal no momento propcio. Enfim, a mobilizao de mecanismos vrios que permitem a melhor interao possvel. Como, portanto, essa dinmica ocorre na sala de aula? Inicialmente, importante ressaltar que a escola , em sntese, a instituio social politicamente responsvel pela transmisso de saberes institucionalizados historicamente pela sociedade. Nela, professores e alunos, atravs da linguagem, constroem o conhecimento e do sentido ao mundo que os cerca. na sociedade que o individual e o social se articulam, levando os sujeitos (SILVA, 2002). Se faz necessrio, dessa forma, concebermos as salas de aula como ambientes propcios interao. Tradicionalmente, salas de aula so ambientes aparentemente similares. Apresentam uma organizao fsica constituda de um local no qual so distribudas carteiras, em geral enfileiradas (para garantir a ordem!), com um quadronegro no centro da parede central, um bir disponvel para o professor, janelas, portas. Enfim, iguais em qualquer lugar no qual forem observadas. Completando o quadro, encontram-se, nesse ambiente, cerca de, no mnimo, 30-40 alunos, atendidos por um s professor (ERICKSON, 2001). Porm, como ressalta esse autor, essa aparente similaridade enganadora, pois o que de fato ocorre numa sala de aula, difere, e muito, de uma sala para outra. So vrias as nuances que provocam essas diferenas e a interao ocorrida entre os participantes desse ambiente variam tanto entre eles, como tambm na maneira como interagem com os materiais educacionais. a um permanente processo de negociao

29Pode-se observar esse fato na prpria dinmica da sala de aula. Enquanto numa situao o professor apenas expe o contedo e os alunos o recebem, noutra a dinmica da interao pode ser a do dilogo, da troca entre professor e aluno. As reaes dos alunos tambm podem variar da boa aceitao para receber os contedos ministrados pelo professor, como pode ser de recusa. Como afirma Erickson (2001:11), a pedagogia um empreendimento mais misterioso e contraditrio do que isso, e essa a razo pela qual apenas parcialmente entendida. Ressalte-se, ainda, que esta variao tambm atinge o nvel da aprendizagem. Enquanto uns apropriam-se com facilidade dos contedos, outros apresentam dificuldades em graus bastante variveis e, querendo ou no, toda esta dinmica passa pela interao. Ainda segundo esse autor (p.12):a linguagem e o discurso do cotidiano da sala de aula so um meio importante para essa interao. Prticas discursivas diferentes, aparentemente, oferecem aos alunos diferentes situaes de envolvimento com a aprendizagem como tambm fazem a diferena na prtica pedaggica.

Cajal (2001:126), completando as palavras de Erickson, define a sala de aula como sendo uma situao social, um lugar no qual:revela-se uma efervescncia sons, gestos, movimentos; uma conjuno de emoes semelhantes, diferentes, opostas satisfao, insatisfao, alegria, tristeza, indiferena, paixo; uma reunio de pessoas advindas de situaes diferenciadas, com conhecimentos e culturas diferenciadas, um todo plural.

Diante disso, faz-se necessrio observar quais so os papis atribudos aos interactantes da sala de aula e como esses papis funcionam na prtica pedaggica. Inicialmente, a tradio escolar apresenta como envolvidos diretos da interao na sala de aula o professor e o aluno. Ambos tm papis sociais bem especficos e definidos a partir de normas scio-culturais estabelecidas na tradio, da serem, perfeitamente, assimilados pela sociedade (SILVA, 2002; CAJAL, 2001; DETTONI, 1995; DELAMONT, 1987). Segundo esses autores, o professor aquele que, na sala de aula, o responsvel pela transmisso dos conhecimentos, do saber. De acordo com o senso comum, ele a autoridade mxima da sala de aula, estipulando ordens, dando

30informaes, enfim comandando a turma. Ele o que tem o saber e est na instituio escolar para transmiti-lo. A prpria escola dota-o deste poder. Delamont (1987), no livro Interao em Sala de Aula, apresenta o professor como protagonista de uma cena. Segundo ela ensinar uma profisso, mas quando uma pessoa se faz professor (a) aprende a desempenhar um papel (p.58). Sendo assim, os professores j chegam em sala com certas atitudes comuns a todos os professores. A partir da, algumas caractersticas passam a marcar o papel desse profissional em sala de aula: duas delas so os conceitos de proximidade (ou imediao) e autonomia do professor. Segundo essa autora, a proximidade o que faz com que a maioria das decises do professor tenham de ser tomadas de imediato, a urgncia do aqui-e-agora. H pouco tempo para refletir e nenhum para trocar opinies. Em conseqncia dessa proximidade, tem-se a autonomia do professor, ele est s e domina a situao, sendo assim tem poder ou autoridade para interferir sobre muitos aspectos da vida do aluno, sendo o domnio do saber o maior desses poderes. Alm desses aspectos, Delamont afirma, ainda, que o professor tem, tambm, poder sobre vrios outros aspectos da vida do aluno: o que ele vai aprender, seu comportamento em sala e, at mesmo, o que vai falar. Um papel, portanto, difuso que se desdobra em vrios outros papis. O aluno, por sua vez, aquele que supostamente no tem o saber e vai para a escola adquiri-lo. O senso comum o v como aquele que deve, obedientemente, acatar e respeitar os comandos do professor, aprender o que est sendo transmitido, apresentando um bom comportamento, esperado pelo professor e pela prpria sociedade. Nas palavras de Dettoni (1995), o conjunto de direitos e deveres socialmente legitimado e reconhecido para o aluno resume-se em seguir o comando do professor, compreender as regras do jogo e acat-las (p.19). o que mostra Teixeira (2001) num trabalho sobre a aquisio da etiqueta escolar por alunos da pr-escola. Segundo essa autora, ao chegar escola, o aluno comea uma nova existncia, ou seja, ele renasce para uma nova realidade, na qual ele deve reaprender, reeducar sua vontade de acordo com as regras da sala de aula (p.200). Um novo mundo se abre para o aluno, um mundo regido por regras e comportamentos que ele dever assimilar, caso queira ser aceito nesse novo ambiente. No tornar-se aluno, a autora apresenta toda a etiqueta que, a partir dali, o aprendiz deve seguir: entrar em sala de aula; no conversar durante as oraes e preces,

31em escolas confessionais; ficar sempre sentado em sala; no ir para a janela ou porta; ouvir o que a professora diz; ficar em silncio na hora das atividades. De acordo com as idias de Delamont (1987), o aluno tambm exerce, no contexto escolar, um papel oposto ao do professor no que se refere noo de poder. Enquanto o papel do professor o de um domnio social e culturalmente aceito legtimo, no caso o do aluno ser um papel de subservincia. Qualquer poder exercido pelo aluno ser

socialmente ilegtimo. Nas palavras dessa autora (p.120), o papel tradicional do aluno um papel subserviente, no qual os deveres mais importantes consistem em seguir a orientao dada pelo professor. Em sntese, para ser considerado um bom aluno, ele necessita apreender as regras prprias da cultura escolar. Aprend-las e segui-las sero pr-requisito indispensvel caso o aluno queira seguir uma carreira de aprendiz bem sucedida. Diante do exposto, percebe-se, portanto, que entre os interactantes do processo interacional escolar estabeleceu-se uma relao clara de assimetria situao na qual um dos envolvidos na interao detm o poder da palavra e a distribui de acordo com sua vontade (KOCH, 2004:80). Por isso, nem sempre h um envolvimento total do aluno no processo de aprendizagem. Como mostra Silva (2002), os relacionamentos podem ser marcados, de um lado, por momentos de realizaes, satisfao pessoal, e, de outro, por oposies, conflitos e mal entendidos (p.181). No entanto, apesar de os papis serem distintos, os direitos e deveres divergirem, a relao ser, a princpio, assimtrica, isso no significa que a interao no possvel no meio escolar. Ainda de acordo com Silva, em todo processo de interao h a possibilidade de ajustes entre as motivaes individuais, coletivas e institucionais. A linguagem, principal ferramenta dessa interao que ocorre no meio escolar, uma forma de ao que coloca em jogo diversas maneiras de compreenso que precisam ser negociadas (p.182). Isso quer dizer que, em sala de aula, professores e alunos, mesmo ocupando lugares e posies opostas, esto sempre se influenciando mutuamente, num jogo bem descrito por Cajal (2001:128) quando diz que:na sala de aula, alunos e professores constroem uma dinmica prpria, marcada pelo conjunto das aes do professor, pelas reaes dos alunos s reaes do professor, pelo conjunto das aes dos alunos, das reaes do professor s aes e reaes dos alunos, pelo conjunto das aes e reaes dos alunos entre si, cada um interpretando e reinterpretando os atos prprios e os dos outros.

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Isso quer dizer que, ao interagirem, os interactantes envolvidos na situao de sala de aula utilizam seus conhecimentos prvios sobre o evento do qual prticas, convenes e regras que possibilitam o fluxo da interao. Para explicar como essa dinmica ocorre, algumas noes e conceitos oriundos da Microetnografia, com Erickson, e da Sociolingstica Interacional, com Gumperz e Goffman, tornam-se essenciais. A primeira noo a que Erickson (1996) chamou de carter situado da comunicao na interao social. Segundo essa noo, toda situao, em especial a social, influenciada pelo mundo mais amplo que a cerca, ela influenciada por processos sociais gerais como: a economia, o mercado de trabalho, a posio de classe dos participantes na situao, relaes raciais, tnicas, de gnero, identificao religiosa e de crenas. Na viso de Erickson, as diferenas no estilo, as formas de dizer e de interagir, incluindo a a adequao do discurso, podem diferir de interactante para interactante, dependendo justamente da micropoltica na qual ele estiver situado. Micropoltica aqui est representando o contexto especfico no qual cada falante se encontra. Na situao de sala de aula, pode-se perceber esse carter situado toda vez que professores e alunos, visando o bom andamento da aula, negociam aes e, at mesmo, usos especficos de linguagens, para permitir o fluxo livre da interao, quebrando, muitas vezes, padres j estabelecidos historicamente e que devem ser seguidos por ambos. Reforando essa noo defendida por Erickson, tem-se o conceito de enquadre. Inicialmente desenvolvido por Goffman e apresentado por Gumperz ([1982] 1998), tambm pode explicar a dinmica da interao, em especial a escolar. Segundo Gumperz, uma elocuo pode ser compreendida de vrias maneiras e as pessoas decidem interpretar uma determinada elocuo com base em suas definies do que est acontecendo no momento da interao (p.99). Ou seja, as pessoas definem a interao a partir de enquadres ou esquemas previamente assimilados, que so familiares aos interactantes e que permitem a interao, uma vez que enquadre, de acordo com esse autor, o que vai indicar, numa interao, como sinalizamos o que dizemos ou fazemos ou sobre como interpretamos o que dito e feito (p.70). esto participando, como forma de saberem se comportar e agir respeitando sistemas de

33Gumperz ([1982]1998:100) mostra que, quando ocorre a interao, so deixadas pistas que revelam esses enquadres ou esquemas. Muitas delas so usadas irrefletidamente, mas sinalizam qual atividade est ocorrendo, qual auditrio social est sendo ativado. Denominadas de pistas de contextualizao, representam:todos os traos lingsticos que contribuem para a sinalizao de pressuposies contextuais e podem aparecer sob vrias manifestaes lingsticas, dependendo do repertrio lingstico, historicamente determinado, de cada participante.

Esse autor afirma, ainda, que essas pistas podem se revelar atravs de mudanas de cdigo, dialeto e estilo, bem como atravs de escolhas lexicais e sintticas, aberturas, fechamentos conversacionais e estratgias de sequenciamento. Como forma de um desdobramento do conceito de enquadre, Goffman ([1982]1998) introduz o conceito de footing. Segundo ele, footing representa o alinhamento, a postura, a posio, a projeo do eu de um participante na sua relao com o outro, consigo prprio e com o discurso em construo (p.70). Em outras palavras, ele representa o carter dinmico dos enquadres, pois na interao ele est a todo momento sendo introduzido, negociado, ratificado, modificado, sinalizando aspectos pessoais, papis sociais e papis discursivos. No dizer de Goffman, uma mudana de footing implica uma mudana no alinhamento que assumimos para ns mesmos e para os outros presentes, expressa na forma em que conduzimos a produo ou a recepo de uma elocuo (p.75). Ou seja, cada vez que se muda de cena ou se d um novo alinhamento interao, so exigidas, tambm mudanas correspondentes na linguagem. No mbito da sala de aula isso ocorre quando o professor, baseado em suas crenas e orientaes ideolgicas, estabelece relaes mais ou menos simtricas com os alunos, definindo assim, as normas que iro reger a participao desses na aula e a prpria receptividade do professor diante dessas participaes (DETTONI, 1995). Completando esses conceitos, Erickson (1996) apresenta a noo de ecologia imediata das relaes entre os participantes numa interao, para mostrar que quando se interage, os tipos de linguagens usadas, o quo se fluente ou eloqente, o quanto os discursos usados so coerentes, o quanto a escuta dos participantes atenciosa ou encorajadora, tm a ver com o outro, ou seja, so aes que dependem diretamente do

34que os outros esto fazendo na situao. Isso quer dizer que na interao falantes influenciam ouvintes e vice-versa. E isso justamente o que ocorre numa situao escolar, professor e aluno, mesmo vivenciando papis distintos, esto numa constante troca, negociando a melhor forma de a aprendizagem ocorrer, adaptando linguagens, recorrendo informalidade quando necessrio, para retornar formalidade em outra situao, enfim, influenciandose e sendo influenciado, mudando constantemente de footing como forma de garantir a dinmica da interao. Ainda segundo esse autor, um estudo mais detido do que as pessoas realizam quando interagem, ajuda a entender como tal interao organizada em suas nuances mais sutis e como ocasies locais tanto influenciam como podem ser influenciadas pela sociedade mais ampla na qual ocorrem, assim como pelos interactantes envolvidos. Na comunicao, as pessoas no apenas seguem regras culturais para o estilo adotado numa interao, mas esto ativamente construindo o que fazem. Essas noes so apenas alguns exemplos de como a sala de aula um palco no qual indivduos se mostram e, numa negociao constante, constroem seus mundos. Da no ser possvel conceber a lngua meramente como um cdigo, nico e homogneo, desvinculado do seu contexto real e efetivo de uso. Linguagem um termo que remete a um lugar de interao e sala de aula a um grande cenrio onde seus principais protagonistas professor e aluno esto em constante troca, construindo identidades, representando papis, negociando sentidos, tendo a lngua como smbolo de toda essa efervescncia.

2.1.2.2- INTERAO E LINGUAGEM: UMA VISO BAKHTINIANA Primeiramente, toda teoria bakhtiniana baseia-se na concepo de lngua como interao. Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem ([1929]1995:127), isso se revela atravs dos seguintes posionamentos: 1- A lngua como sistema estvel de formas normativamente idnticas apenas uma abstrao cientfica que no d conta de maneira adequada da realidade concreta da lngua; 2- A lngua constitui um processo de evoluo ininterrupto; 3- As leis da evoluo lingstica so essencialmente leis sociolgicas; 4- A criatividade da lngua no pode ser compreendida independentemente dos contedos e valores ideolgicos que a ela se ligam;

355- A estrutura da enunciao uma estrutura puramente social. Isto , prender a lngua numa teia de regras pr-definidas algo inconcebvel, uma vez que a mesma, segundo Bakhtin, est intimamente relacionada ao social, sendo esse processo constante, visto que o mundo e a sociedade em si evoluem ininterruptamente. Isolar a lngua de todo esse movimento criar uma abstrao que no condiz com as necessidades dos falantes que se revelam no componente social, poltico e ideolgico de cada um. De acordo com as proposies apresentadas por esse autor, impossvel compreender a lngua independente dos falantes que a usam e da estrutura social na qual ela se manifesta. Em sntese, o carter interativo da linguagem a base de todos os conceitos defendidos por esse autor e no possibilita, sequer, tentar compreender a lngua fora dessa natureza scio-histrica, uma vez que para Bakhtin ([1929]1985:124): a lngua vive e evolui na comunicao verbal concreta, no no sistema lingstico abstrato das formas da lngua nem no psiquismo individual dos falantes. Diante dessa realidade interativa e enunciativa, o dilogo tem, para esse autor, lugar essencial. No dilogo em sua concepo geral de duas pessoas face a face, trocando turnos, mas dilogo como um processo de interao ativa, tanto de um quanto de outro, sem o qual a interao no acontece. o dilogo, portanto, que sustenta a base da concepo de linguagem de Bakhtin: a interao verbal, uma vez que para ele ([1929]1985:123):A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas lingsticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato psicofisiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui assim a realidade fundamental da lngua.

Na concepo de Bakhtin, dilogo uma espcie de encontro de vozes, pois toda e qualquer enunciao s compreendida em sua totalidade na relao com outras enunciaes, so elos, plenos de ecos e vozes, que se encontram em um dado espao e tempo scio-histricos. Nenhuma enunciao, portanto, isolada, mas encontra-se amarrada no interior da cadeia da interao verbal e social. O princpio dialgico de Bakhtin parte, portanto, de acordo com Barros (2005:29), dos seguintes aspectos bsicos: a) A interao entre interlocutores o princpio fundador da linguagem; b) O sentido do texto e das palavras depende da relao entre sujeitos;

36c) A intersubjetividade anterior subjetividade, pois os sujeitos esto em constante construo; d) Os sujeitos se relacionam a partir de dois tipos de sociabilidade: entre os interlocutores que interagem e entre sujeitos e sociedade. Isto quer dizer que a linguagem existe no apenas para garantir a comunicao em si, mas para que os falantes possam interagir entre si, da todos os sentidos, tanto do texto quanto da palavra, serem interdependentes dessa relao intersubjetiva falante/linguagem/sociedade. Vem da a importncia essencial do social para a teoria enunciativa bakhtiniana, uma vez que, segundo esse autor, qualquer que seja a manifestao da enunciao ela ser condicionada basicamente pela situao social imediata na qual ela se concretizar. Isso quer dizer que a enunciao a manifestao de dois indivduos socialmente situados no que Bakhtin ([1929]1985) chamou de auditrio social. nesse auditrio que falantes, mutuamente, constroem suas dedues interiores, suas motivaes,

apreciaes, etc (p.113). Ressalte-se aqui a relao direta do conceito de auditrio social de Bakhtin e os de enquadre, footing, carter situado da comunicao e ecologia imediata das relaes de Goofman e Erickson, respectivamente ( todos desenvolvidos no item 2.1.2.1). O que todos esses conceitos mostram que toda enunciao, seja ela qual for, est essencialmente ligada ao social. nele que ela se manifesta. a situao na qual ela se concretiza que lhe d forma, manifestando-se de uma maneira e no de outra: exigindo, solicitando, afirmando, exigindo direitos, realizando preces, usando um estilo rebuscado ou simples, com segurana ou timidez. Nas palavras de Bakhtin ([1929]1985:114), a situao e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciao. Pensando esses conceitos na sala de aula, pode-se perceber o jogo dialgico da linguagem na prpria relao professor/aluno. Ambos tm, como j se viu no item 2.1.2, seus papis pr-determinados na e pela sociedade, seus discursos so previamente estabelecidos, no entanto ao encontrarem-se na sala de aula auditrio social comum aos dois as circunstncias e nuances prprias da realidade escolar muitas vezes

foram, e at mesmo exigem, a justaposio desses discursos, desses falares, um adaptando-se ao outro em prol do andamento propcio daquela situao comunicativa. um encontro de vozes potenciais e intercambiveis (MACHADO, 2005:157). Citando Dahlet (2005:57):

37

Quando falamos, no estamos agindo ss. Todo locutor deve incluir em seu projeto de ao uma previso possvel de seu interlocutor e adaptar constantemente seus meios s reaes percebidas do outro.

Segundo Garcez (1998) e Costa (1997), nesse encontro dialgico, permeado de vozes, a palavra e o outro encontram, tambm, lugar de destaque dentro da teoria bakhtiniana. O outro assume papis bem definidos nessa cadeia enunciativa: ele parceiro do dilogo determina sua configurao, mesmo distncia; ele permite que o eu se constitua como enunciador; e, finalmente, ele o fornecedor da matria-prima da enunciao outras vozes se encontram com as do locutor. Esse outro sempre ativo no processo interacional e a palavra intermedia os dois. Mais uma vez reportando-se sala de aula, uma relao que a princpio tida como assimtrica, a do professor/aluno, encontra na palavra o espao propcio para trocas. O outro no caso dessa relao, o aluno abre espao para que o professor interponha sua voz do aluno, saindo, muitas vezes, de seu lugar pr-determinado socialmente, para encontrar-se com o mundo do seu interlocutor direto. E a palavra que permite essa troca, esse encontro de vozes. a palavra sempre vista como uma moeda de duas faces que se constitui como o produto da interao . As duas faces representam, justamente, a capacidade de a palavra estar entre um e outro no processo dialgico. a ponte entre um lado e o outro da enunciao. No dizer de Costa (1997:124), a palavra se concretiza como signo ideolgico, que sofre transformaes e adquire novos/diferentes significados, conforme o contexto em que ela usada. Pode-se dizer que a palavra o fio condutor comum que une/liga locutor e interlocutor, sendo social. De acordo com Bakhtin ([1929]1985:41):a palavra penetra literalmente em todas as relaes entre indivduos, nas relaes de colaborao, nas de base ideolgica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relaes de carter poltico, etc. As palavras so tecidas a partir de uma multido de fios ideolgicos e servem de trama a todas as relaes sociais em todos os domnios.

capaz de manifestar toda e qualquer mudana

E esta palavra encontra-se, de igual modo, na escola, nos estilos usados em sala de aula por alunos e professores, podendo manifestar-se das mais variadas formas:

38rebuscadas, formais, informais, bruscas, suaves, grosseiras, simpticas, enfim

obedecendo a todas as nuances prprias do ambiente escolar, revelando as mais variadas emoes que se vive nesse local por seus principais protagonistas professor/aluno. Sendo assim, tendo por base a teoria enunciativa de Bakhtin, a linguagem como discurso e enunciao e, portanto, como interao, no apenas um instrumento de comunicao ou representao do pensamento. Ela , antes de tudo, interao verbal, um modo de produo social. No neutra nem o poderia ser, visto ser histrica mas um lugar privilegiado de manifestao, de conflito, de trocas, de dilogo, de vozes que se entrecruzam, cujo estudo no pode ser desvinculado das suas reais e efetivas condies de produo. No entanto, o que a tradio mostra que por muitos sculos se desenvolveu uma concepo de lngua como sendo pura abstrao, um fetiche por assim dizer, representada por regras e defendida como uma entidade que deve ser mantida pura e longe de todas as influncias negativas que possam macular essa lngua, prendendo-a numa norma dita padro e gerando as mais variadas atitudes frente a essa lngua e seus falantes. o que se vai desenvolver no prximo item.

392.2- PURISMO LINGSTICO: HISTRIA, NORMA E ATITUDES

Representando um dos mais fortes mecanismos de defesa de uma lngua pura, homognea, liberta das variaes, o purismo um fenmeno scio-histrico que se manifesta em todas as pocas e em todas as lnguas. Este item tem, em si, o objetivo de mostrar as origens histricas do estabelecimento do purismo no Brasil, assim como algumas conseqncias negativas advindas desse fenmeno, tais como: a viso dicotmica fala/escrita, o problema da conceituao do termo norma e as atitudes lingsticas desenvolvidas a partir de uma viso purista da lngua.

2.2.1- PURISMO LINGSTICO: ORIGENS Toda lngua, em seu aspecto social, tem como caracterstica inerente a variao de usos, sendo esses usos ligados s chamadas condies de produo: usurios, situaes comunicativas, aspectos geogrficos, sociais, econmicos, polticos,

contextuais, ideolgicos, etrios, ou, seja, todos os aspectos extralingsticos que exercem alguma influncia sobre os usos da lngua. Enfim, os usos esto ligados s manifestaes diversas do homem na sociedade (SUASSUNA, 1995; CASTILHO, 1998; FIORIN, 2004). Desses usos diversos, um foi, historicamente, eleito como o melhor em detrimento dos demais, estabelecendo o que se convencionou chamar de purismo fenmeno a partir do qual um modo de falar e escrever se estabeleceu como sendo o melhor, aquele a ser seguido e imitado por todos, garantindo, assim, a pureza da lngua. Esse fato acontece em todas as lnguas e est sempre associado a fatores de ordem social, poltica, econmica e ideolgica, representando a necessidade de se normatizar a lngua, criando regras de carter rgido que todos, obrigatoriamente, devem seguir, colocando a lngua dentro de um modelo e refreando quaisquer outros usos que no se encaixem nesse molde (LEITE, 1999; BAGNO, 1999; BORTONI, 2005). Destaque-se, aqui, que essas escolhas no tm nenhum valor lingstico em si, mas partem sempre de grupos ligados s elites dominantes, grupos hegemnicos que detm o poder e desejam perpassar sua ideologia aos demais grupos, usando, para isso, a lngua. No dizer de Gnerre (1998:9):

40assim como o Estado e o poder so apresentados como entidades superiores e neutras, tambm o cdigo aceito oficialmente pelo poder apontado como neutro e superior, e todos os cidados tm que produzi-lo e entend-lo nas relaes com o poder.

No Brasil, especificamente, o percurso no foi diferente e a prpria histria revela isso. Aps a chegada dos portugueses em 1500, ainda permanecemos um grande pas rural por cerca de 300 anos. Portugal desenvolveu muitas conquistas territoriais em nosso pas, mas sem influncia cultural advinda da tradio escolar e da prpria civilizao portuguesa (LEITE, 1999.; ORLANDI & GUIMARES, 2001). Nossa primeira gramtica Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de Ferno de Oliveira, surgiu no sculo XVI, no ano de 1536. Seus usos estavam relacionados queles de maior prestgio intelectual, possuidores de vasta histria de leitura e que apresentavam resistncia s mudanas. J se vislumbrava, portanto, um uso correto que deveria servir de exemplo para todos. importante ressaltar que, nessa poca, as escolas eram dos e para os nobres, detentores do poder. Os mestres tambm vinham dessa nobreza e reproduziam o discurso da elite dominante. V-se, portanto, que desde suas primeiras manifestaes, o purismo apresenta razes ligadas ao poder dominante e s pessoas que o representavam. No muito diferente de hoje, pois, mesmo sendo para todos, nossas escolas continuam perpassando os ensinamentos herdados historicamente, provando com isso que a lio foi bem apreendida, mesmo depois de tantos sculos. Seguindo com a histria, nossa segunda gramtica data de 1540, de autoria de Joo de Barros. Os usos retratados agora estavam mais ligados classe social os bares doutos, pessoas ilustres e sbias em detrimento dos usos denominados comuns. Importante aqui fazer referncia a esses bares doutos, uma vez que representavam no apenas os que dominavam um estilo a ser seguido, mas tambm eram representantes de uma classe os vares, homens, no caso, e nobres e isso, por si s, j exclua da histria da herana lingstica brasileira, todas as mulheres e homens que no se enquadrassem nos padres exigidos pela sociedade. Vislumbra-se, portanto, uma lngua elitista e dominadora, qual s tinham acesso alguns poucos. Outra publicao que marcou a fixao da nossa lngua em termos de gramaticalizao foi o Leal Conselheiro, de D. Duarte. Esta publicao representou um documento em defesa da lngua nacional contra os emprstimos de termos do latim e

41representou a primeira manifestao de atitudes conservadoras em relao

preservao da norma vigente. De acordo com Leite (1999), essas obras no exerceram influncia em seus seguidores. As obras realmente importantes para o estudo do portugus foram Ortografia (1576) e Origem da Lngua Portuguesa, ambas de Duarte Nunes Leo. J no sculo XVIII, poca que marcou a vinda da famlia real para a nova colnia, os estudos sobre a lngua portuguesa avanaram com a fundao da Arcdia Lusitana, em 1756, e da Academia Real Portuguesa, 1779. Em 1789 surgiu o Elucidrio das Palavras, Termos e Frases que em Portugal Antigamente se usavam, de Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo. Em 1793 foram publicados os Dicionrios da Lngua Portuguesa da Academia Real de Cincias de Lisboa e o Dicionrio da Lngua Portuguesa, de Antnio de Morais e Silva, que tambm publicou em 1813 e 1822, respectivamente, o Eptome da Gramtica Portuguesa e Gramtica Portuguesa. Em 1822, surgiu a obra de maior repercusso desse perodo, a Gramtica

Filosfica da Lngua Portuguesa, de Padre Jernimo Soares Barbosa. Todas essas obras j tinham a preocupao de preservar o bom portugus. No entanto, foi s no incio do sculo XIX, com a publicao do Glossrio das Palavras e Frases da Lngua Francesa que por Descuido, Ignorncia ou Necessidade se tem Introduzido na Locuo Portuguesa Moderna com juzo crtico, mas que so adotveis nela, do Cardeal Saraiva, que a atitude purista mais se revelou. O objetivo desse dicionrio era a preservao do idioma, libertando a lngua das influncias francesas como forma de conservar a beleza do portugus. Os usos apresentados nessa obra tambm estavam ligados aos chamados bares doutos. Com exceo desse glossrio, o sculo XIX no apresentou estudos especficos sobre o bom uso7 da lngua, viveu-se, ainda, sob a influncia do dicionrio de Saraiva que marcou poca pelo zelo purista. No entanto, um ponto a se ressaltar que o sculo XIX foi marcado pela produo das primeiras gramticas essencialmente brasileiras. No incio desse sculo, o Brasil tornou-se nao, independente de Portugal, e iniciou suas prprias produes: Gramtica Portuguesa, de Julio Ribeiro (1881); Gramtica Portuguesa, de Joo Ribeiro (1887); Gramtica Analtica (Descritiva), de Maximino Maciel (1887); e Gramtica da Lngua Portuguesa, de Pacheco Silva e Lameira de Andrade (1887). Esta ltima para ser usada nos ginsios, liceus e escolas normais (ORLANDI, 2002; DIAS & BEZERRA, 2006).7

Referncia ao termo bon usage do francs, que significa uso certo/uso bom.

42No que se refere s manifestaes puristas nesse sculo, elas se revelaram, principalmente, no combate linguagem dos romnticos com seus regionalismos que no condiziam com o portugus usado em Portugal, tido como o bom uso e que, segundo Bagno (2001a), continuou sendo o modelo idealizado e seguido pela antiga colnia!, o Brasil no caso, muito embora, as primeiras gramticas brasileiras j tivessem representado uma espcie de ruptura com Portugal. No dizer de Orlandi (2002:125):...os nossos estudos de linguagem passam a ser uma questo caracteristicamente brasileira a partir do sculo XIX, quando se apresenta a questo do Portugus do Brasil e no somente a do Portugus... antes, a questo desses estudos era predominantemente um modo de apropriao do Brasil por Portugal.

Essa atitude purista, que Leite (1999) chamou de a metalinguagem reacionria mudana, perdurou por todo sculo XIX e incio do XX. Somente a partir de 1922, como mostram Bortoni (2005) e Pagotto (2001), com a chegada do Modernismo, esta atitude comeou a perder fora, mas no foi eliminada. Nomes como Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Guimares Rosa e Rubem Braga comearam a divulgar a valorizao da variante da lngua falada no Brasil, mais prxima dos usos comuns nossa terra, no encontrados em Portugal. O sculo XX, mais precisamente sua segunda metade, trouxe tona a

contribuio de diversas correntes lingsticas que, de certa forma, aplacaram os ideais puristas dos sculos anteriores. A Sociolingstica trouxe para o centro das discusses o estudo da lngua oral, pondo as noes de certo e errado sob forte crtica. A prescrio de regras, nica nas salas de aula, passou a dividir espao com o estudo de textos. Foi nessa poca, por volta de 1960, que o Brasil passou por um novo perodo de industrializao8, urbanizao e divulgao dos meios de comunicao de massa. A televiso, que chegou ao Brasil na dcada de 50, invadiu todos os recantos do pas, espalhando novos meios de pensar, agir e falar, entre eles as grias que se espalharam por todo o pas e segmentos sociais (maiores detalhes no prximo item ). No se pode deixar de ressaltar que essa mesma televiso que divulgou e divulga novos usos, costumes e linguagens, tambm um poderoso recurso para a manuteno das atitudes puristas da atualidade, com seus programas paragramaticais9, que funcionam como verdadeiras bulas, receitando os bons e corretos usos da lngua. A atitude purista segue8

O primeiro perodo de industrializao data do incio do sculo XX e, ressalte-se, j chegou ao Brasil tardiamente. 9 Ver Dramtica da Lngua Portuguesa (2001a), de Marcos Bagno que trata desse assunto com detalhes.

43com fora total, tendo na televiso um grande aliado. Sem nenhum aparato lingstico consistente, esses programas so baseados somente nos usos promulgados e defendidos pela Gramtica Normativa. J na dcada de 70 do sculo XX, mais precisamente 1971, a Lei de Diretrizes e Bases, promulgada pelo governo brasileiro, trouxe o povo para a escola e, com isso, usos no padronizados chegaram ao meio escolar, concorrendo com os padres

estabelecidos. A dcada de 80 marcou o fim do Regime Militar e, novamente, os meios de comunicao foram responsveis pela divulgao de novos costumes e usos da lngua. A dcada de 90 trouxe conceitos como globalizao, diminuio de preconceitos em relao a espaos geogrfico-sociais, com uma maior expanso de diferentes usos lingsticos. Porm, a fora da tradio, mesmo num pas jovem como o Brasil, se manifesta sempre, uma vez que os usos em todos os meios escritos so voltados para a norma prescritiva. No dizer de Leite (p.15) a diversidade sempre refreada por foras unificadoras. o jogo entre as tendncias tradicionalistas que concebem a lngua como uma instituio arbitrria que recebemos como uma imposio e as tendncias inovadoras que concebem a lngua como sendo mutvel, que evolui, varia nos usos e na histria, da no poder se manter nica, presa a uma norma. Pode-se perceber essa fora da tradio no Projeto de lei 1676/99, do Deputado Aldo Rebelo, do PC do B, que visa a promoo, a proteo, a defesa e o uso da lngua portuguesa e d outras providncias. O principal objetivo apresentado pelo deputado para seu projeto defender a lngua da invaso dos estrangeirismos. No entanto, nas entrelinhas do projeto, pode-se perceber, claramente, que o que se est defendendo uma lngua homognea, nica, um padro de excelncia a ser seguido por todos. O prprio texto do projeto traz marcas dessa suposta homogeneidade, quando no pargrafo nico, considerando o disposto no caput I, II, e III, o deputado afirma a lngua portuguesa um dos elementos da integrao nacional brasileira (Faraco, 2004:177) e na sua justificativa diz um dos elementos mais marcantes da nossa identidade nacional reside justamente no fato de termos um imenso territrio com uma s lngua...(p.181). Um projeto, portanto, essencialmente nacionalista, baseado no preconceito infundado de que h uma s lngua na comunidade nacional, a lngua padro do poder, que deve ser defendida de ameaas externas (GARCEZ & ZILLES, 2004:35). O que se percebe, portanto, que se mudam as pocas, mas as atitudes continuam as mesmas: a defesa de uma lngua ideal, pura, homognea, sem mcula

44alguma. Comparando-se o Projeto de Lei do Deputado Aldo Rebelo, do sculo XX, ano de 1999, com o Glossrio do Cardeal Saraiva, do sculo XIX, v-se que a essncia a mesma: este procurando proteger o idioma das influncias francesas, to propagadas naquela poca, e aquele defendendo a lngua dos ataques do ingls norte-americano. Cada um promovendo essa defesa atravs de meios detentores do poder em cada poca. No sculo XIX a igreja, atravs do Cardeal Saraiva, no sculo XX, o Congresso Nacional atravs do Poder Legislativo, representado pelo Deputado Aldo Rebelo. Isso quando as atitudes puristas no aparecem e so defendidas atravs de outros nomes, como o caso do conceito de exemplaridade proposto por Bechara (2000). Mesmo apresentando a lngua como sendo histrica, sujeita a variaes e usos distintos, continua-se na busca de um modelo a ser seguido, uma lngua exemplar, oriunda,

sempre, de instncias superiores, como o prprio conceito deixa transparecer: a exemplaridade, que uma eleio feita pela tradio literria, feita pelas pessoas escolarizadas, trabalhada nas academias, trabalhada nas instituies e preservada por essas agncias(p.16). Como se v, um padro a ser seguido, a mudana foi apenas de nome, mas a essncia da preservao de um uso em detrimento de outros continua, exatamente como defendia o Cardeal Saraiva e defende o Deputado Aldo Rebelo. Segue-se, portanto, com a atitude purista. E, infelizmente, essa tradio, essas pessoas escolarizadas, das academias, instituies e agncias nada tm a ver com a grande maioria dos milhes de brasileiros que, diariamente, sentam-se nos bancos das escolas para aprenderem um padro que no dominado sequer pelos que o ensinam e defendem, e que nada ou pouco tem a ver com os usos lingsticos reais e concretos do dia-a-dia de cada um desses brasileiros, visto que o que se ensina na escola em termos de lngua, ainda se encontra preso a meras prescries de regras e no usos efetivos da lngua. Essa concepo de lngua, advinda de todo esse perodo histrico, enraizou-se de forma profunda na sociedade. O uso estabelecido como padro criou uma lngua abstrata, idealizada, quase uma entidade a ser adorada, que se confundiu, tanto na boca do povo como na prpria prtica escolar, com a concepo geral de lngua portuguesa/portugus, criando, segundo Bagno (2002;2003), uma grave noo de sinonmia que acarreta problemas para o prprio usurio da lngua, que confessa abertamente no saber portugus, e para a sociedade em geral. A principal herana advinda desse percurso histrico , justamente, a da propagao de mitos que levam falantes das mais variadas

45faixas-etrias, nveis sociais, escolaridades as mais distintas a professarem no saber portugus, no gostar de portugus, achar portugus difcil, considerar que brasileiro no sabe portugus, enfim desenvolver uma imagem to negativa da prpria lngua, que os impedem de perceber que se trata da lngua que falam no seu dia-a-dia, em todos os momentos e para todas as circunstncias. Isso sem falar que essa lngua idealizada representa um mecanismo com

caractersticas fortes de manuteno do poder que representa, ou seja, das classes privilegiadas que so, muitas vezes, as nicas detentoras desse bem, da a necessidade de sempre existirem os seus defensores, para preserv-la das contaminaes, da corrupo, dos erros, das aberraes advindas dos chamados usos incultos. No dizer de Bagno (2003:18), a partir do longo processo histrico mostrado anteriormente,o que passou a ser chamado de lngua uma coisa que vista como exterior a ns, algo que estaria acima e fora de qualquer indivduo, externo prpria sociedade: uma espcie de entidade mstica sobrenatural, que existe numa dimenso etrea secreta, imperceptvel aos nossos sentidos e qual s uns poucos iniciados tm acesso.

Como mostra Bortoni (2005), o portugus herdado da tradio histrica confere ao usurio status de prestgio, tendo se transformado num valor cultural com razes profundas na sociedade, um saber que se pode at questionar, analisar, mostrar suas facetas negativas. No entanto, negar sua existncia como um conhecimento a ser seguido, reverenciado, quase que idolatrado por cultos e incultos, impossvel. uma lngua distante dos usos reais, porm como diz essa autora (p.35): a detentora do beneplcito do sistema sciopoltico, que a considera correta em detrimento de todas as outras variedades , impe-se o seu emprego em documentos oficiais e formais, bem como o seu estudo na escola, onde o professor a ensina, embora ele prprio no a use em sua fala coloquial.

O purismo no passa, portanto, de uma tentativa, que atravessa sculos, de prender a lngua dentro de uma camisa-de-fora, desvinculando-a, totalmente, de seus usos reais, de sua histria, do percurso naturalmente seguido pela lngua que permite, e at provoca, variaes, mudanas que, de forma alguma, representam a morte da

46lngua, mas sim seu percurso inerente: variar. Da ela no precisar de defensores, pois por si s se defende, se auto-regula.

2.2.2 - FALA E ESCRITA: ALGUMAS PALAVRAS Uma das mais negativas posturas herdadas de todo o panorama histrico visto anteriormente a que estabeleceu a viso dicotmica entre fala e escrita. Essa viso, assim como aconteceu com a atitude purista frente lngua, tambm tem um fundo histrico que remonta descoberta do Brasil, ou melhor dizendo, ao Brasil colnia. Da nossa independncia at hoje, muitos anos se passaram, porm muitas marcas da poca do Brasil colnia continuaram muito fortes em nossa cultura. Em outras ex-colnias europias, como mostra o curso histrico, o processo de independncia caminhou no sentido do desligamento das antigas prticas polticas, econmicas e sociais para a formao de uma nova realidade social. No entanto, no Brasil, o percurso foi inverso. A economia continuou rural, a escravido perdurou por muito tempo, toda estrutura poltica, econmica e social continuou nas mos da chamada elite, ligada aos antigos dominadores e, em conseqncia, Portugal imitado (BAGNO, 2001b). Isso porque, como mostra a histria, quase todas as importantes e decisivas questes brasileiras so resolvidas em instncias superiores. Como registra o curso histrico brasileiro, um mesmo homem respondia pela coroa portuguesa, proclamou a independncia da nova colnia, tornou-se imperador dessa nova nao, depois voltou para Portugal para defender a coroa citada. Um processo circular que s podia gerar, apesar da independncia, mais dominao. Segundo Bagno (2001b) e Dias (2001), grandes reflexos desse processo. Tanto o falar at mesmo o uso da lngua sofreu como o escrever (principalmente continuou sendo o ideal a ser

escrever) correto, padro, sempre pertenceu a Portugal e, no Brasil, apesar de todas as nossas diferenas culturais, sociais, econmicas, polticas, geogrficas, os usos, e a escrita com mais fora, voltaram-se, exclusivamente, para os de Portugal. Isso porque, segundo Leite (1999:31):como a supremacia dos estudos durante longo tempo recaiu sobre o uso culto da modalidade lingstica escrita, e esta registra, predominantemente, a lngua culta literria, o fato lingstico do purismo ficou relacionado a ela.

47Diante desse quadro histrico foi que a escrita se estabeleceu como objeto nico de estudo por muitas dcadas, ocupando todos os espaos, inclusive a escola, que passou a ter a misso de perpassar os padres culturais da sociedade, padres esses ligados diretamente a essa modalidade de uso, instaurando, assim, uma diviso clara, um fosso no qual um uso a escrita sempre privilegiado em detrimento do outro a fala (RANGEL, 2001; ORLANDI, 2002). A partir da, a escrita tornou-se, em nossa sociedade, um bem indispensvel para quase todas as atividades do dia-a-dia, tanto nas zonas urbanas, como rurais, passando a ser vista como algo essencial para a sobrevivncia. Ocorreu uma espcie de esquecimento por parte das pessoas de que se essencialmente oralidade. Sem querer passar a idia de colocar na balana, mas, antes de qualquer domnio escrito, desenvolve-se a oralidade, em outras palavras, fala-se muito mais do que se escreve. Tome-se como exemplo o desenvolvimento de uma criana, que, a partir de seus primeiros meses de vida, j comea a emitir sons orais que podem ser desconhecidos de todos, mas so entendidos e aceitos pela me como os primeiros sinais de fala do filho. Da em diante, a criana s desenvolve esses primeiros sinais orais, o aprendizado efetivo da escrita ocorrer apenas quando iniciar sua vida escolar, alguns anos depois. No entanto, como a prpria histria tem mostrado, esse poder atribudo escrita no foi adquirido por razes diretamente ligadas a essa modalidade, mas a fatores externos a ela, ou seja, tornaram a escrita indispensvel. Sua prtica em reas diversas (principalmente reas ligadas ao poder) a elevaram a um status mais alto, chegando, inclusive, a ser smbolo de educao, desenvolvimento e poder (NEVES,2001; MARCUSCHI, 1997, 2001, 2004; KLEIMAN, 1995). Permitindo, inclusive, que gramticos venham a apresentar posies de louvor extremo a essa modalidade, em detrimento da fala. o caso de Sacconi (1999) que, em sua gramtica, afirmou que a lngua escrita , foi e sempre ser mais bem elaborada que a lngua falada porque a modalidade que mantm a unidade lingstica de um pas(p.21). Uma clara viso dicotmica, e tambm preconceituosa, das duas modalidades. Esse status, porm, tem explicao na prpria histria da escrita, que desenvolveu proposies, ao longo do tempo, sobre esse objeto que se cristalizaram e passaram de gerao a gerao como verdade