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Luis Fernando Verissimo Era para ser outra coisa Nunca contei esta história antes. Não sei por que vou contar agora. Talvez porque esteja chegando naquela idade em que as pessoas começam a se inventariar. Aquela idade em que o passado deixa de ser um rabo e passa a ser um cortejo, e a gente conclui que, já que ele tem esse tamanho, deve ter um significado. No fim da tarde do dia 12 de fevereiro de 1970, eu, então com 33 anos, estava caminhando pela Praia de Torres, no Rio Grande do Sul. Caminhava sozinho na beira do mar, na areia dura. Tinha tirado os sapatos, que carregava nas mãos. Não havia quase ninguém na praia àquela hora e eu caminhava olhando para o chão. De repente, levantei a cabeça e vi uma coluna de luz que se movia na minha direção. Olhei para o alto, procurando a origem da luz, mas em seguida me vi envolvido pela luminosidade, tão intensa que me cegou. Meus pés se desprenderam do chão, me senti transportado para o alto e quando recuperei a visão estava dentro de um domo de metal, diante de uma espécie de formiga branca e gigantesca cujos olhos pareciam perturbadoramente humanos. Preciso dizer que nunca acreditei em disco voador e visitante de outros planetas, que sou um homem racional que vive com os dois pés no chão e, mesmo naquele momento, meu cérebro procurava uma explicação lógica para o que estava acontecendo. Mas meus pés decididamente não estavam mais no chão, eu fora tragado por um facho de luz, eu estava dentro de uma abóbada asséptica sendo examinado por uma bateria de olhos incrustados na cabeça de um monstro que não era deste mundo - e o monstro começou a falar. Não vi por onde saía a voz, mas ele, ela, a coisa, falava português. Perguntou meu nome. Respondi. Absurdamente, fiz questão de dizer que o "Luís" era com "s". Ele quis saber tudo a meu respeito. O que eu fazia, se tinha família. Contei que trabalhava numa agência de publicidade, que minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. A tudo que eu dizia ele fazia "Aaah!", como se minha resposta estivesse acabando com uma dúvida antiga. E aqueles olhos me examinando, voltando seguidamente para o par de sapatos que eu segurava numa mão, como se ele hesitasse em mencioná-los, por educação. Quando o interrogatório parecia ter terminado, perguntei onde eu estava. Ele não respondeu. Em vez disso me pediu perdão. Disse que eu ficaria paralisado por uns segundos, o bastante para que uma célula fosse injetada no meu organismo. Antes que eu pudesse perguntar "Uma o quê?", senti uma picada atrás da orelha direita e, quando tentei me virar, não consegui, estava petrificado. Quando finalmente pude olhar para trás, não vi ninguém, a picada podia ter sido de um mosquito. Então, o formigão disse que eu tinha recebido uma missão. "Que missão?", perguntei. "Ela está no seu sangue, a célula lhe dirá o que fazer", disse ele. Comecei a protestar, a dizer "que brincadeira é essa?", a gesticular, e deixei cair os sapatos, e quando vi estava de volta à praia, no ponto exato de onde fora sugado. Me lembro que voltei para o nosso apartamento alugado, pensando no que ia dizer para a minha mulher sobre os sapatos. Não sei que desculpa inventei para o seu desaparecimento. Naquela noite, estranhamente, não pensei sobre o que tinha acontecido na praia. Era como se nada tivesse acontecido. A não ser pela comichão atrás da orelha. Nas semanas, nos meses e nos anos seguintes - na verdade, até agora -, não foram poucas as vezes em que fui tomado por impulsos e visões. Volta e meia me surgia um nome na mente. Eu o ignorava. Uma vez recebi ordens interiores para embarcar urgentemente para o Nepal. Não fui. Histórias insólitas brotavam na minha cabeça, ímpetos inexplicáveis. Tudo, imaginava, parte da minha missão, tudo instrução da célula que corria no meu sangue emitindo ordens. Eu não dava bola. Eu nunca dei bola. No máximo aproveitava algum nome ou alguma situação nas minhas histórias. Quando sentia que era preciso fazer alguma coisa, em vez de fazer, escrevia. Em vez de obedecer à célula implantada e seguir seu plano, ou pelo menos descobrir qual era - salvar a espécie, juntar-me com outros escolhidos para fundar uma civilização, explicar a galáxia para a minha raça -, escrevi.

Luis Fernando Verissimo - Era Para Ser Outra Coisa

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Crônica

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Luis Fernando Verissimo

Era para ser outra coisa

Nunca contei esta história antes. Não sei por que vou contar agora. Talvez porque esteja chegando naquela idade em que as pessoas começam a se inventariar. Aquela idade em que o passado deixa de ser um rabo e passa a ser um cortejo, e a gente conclui que, já que ele tem esse tamanho, deve ter um significado. No fim da tarde do dia 12 de fevereiro de 1970, eu, então com 33 anos, estava caminhando pela Praia de Torres, no Rio Grande do Sul. Caminhava sozinho na beira do mar, na areia dura. Tinha tirado os sapatos, que carregava nas mãos. Não havia quase ninguém na praia àquela hora e eu caminhava olhando para o chão. De repente, levantei a cabeça e vi uma coluna de luz que se movia na minha direção. Olhei para o alto, procurando a origem da luz, mas em seguida me vi envolvido pela luminosidade, tão intensa que me cegou. Meus pés se desprenderam do chão, me senti transportado para o alto e quando recuperei a visão estava dentro de um domo de metal, diante de uma espécie de formiga branca e gigantesca cujos olhos pareciam perturbadoramente humanos. Preciso dizer que nunca acreditei em disco voador e visitante de outros planetas, que sou um homem racional que vive com os dois pés no chão e, mesmo naquele momento, meu cérebro procurava uma explicação lógica para o que estava acontecendo. Mas meus pés decididamente não estavam mais no chão, eu fora tragado por um facho de luz, eu estava dentro de uma abóbada asséptica sendo examinado por uma bateria de olhos incrustados na cabeça de um monstro que não era deste mundo - e o monstro começou a falar. Não vi por onde saía a voz, mas ele, ela, a coisa, falava português. Perguntou meu nome. Respondi. Absurdamente, fiz questão de dizer que o "Luís" era com "s". Ele quis saber tudo a meu respeito. O que eu fazia, se tinha família. Contei que trabalhava numa agência de publicidade, que minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. A tudo que eu dizia ele fazia "Aaah!", como se minha resposta estivesse acabando com uma dúvida antiga. E aqueles olhos me examinando, voltando seguidamente para o par de sapatos que eu segurava numa mão, como se ele hesitasse em mencioná-los, por educação. Quando o interrogatório parecia ter terminado, perguntei onde eu estava. Ele não respondeu. Em vez disso me pediu perdão. Disse que eu ficaria paralisado por uns segundos, o bastante para que uma célula fosse injetada no meu organismo. Antes que eu pudesse perguntar "Uma o quê?", senti uma picada atrás da orelha direita e, quando tentei me virar, não consegui, estava petrificado. Quando finalmente pude olhar para trás, não vi ninguém, a picada podia ter sido de um mosquito. Então, o formigão disse que eu tinha recebido uma missão. "Que missão?", perguntei. "Ela está no seu sangue, a célula lhe dirá o que fazer", disse ele. Comecei a protestar, a dizer "que brincadeira é essa?", a gesticular, e deixei cair os sapatos, e quando vi estava de volta à praia, no ponto exato de onde fora sugado. Me lembro que voltei para o nosso apartamento alugado, pensando no que ia dizer para a minha mulher sobre os sapatos. Não sei que desculpa inventei para o seu desaparecimento. Naquela noite, estranhamente, não pensei sobre o que tinha acontecido na praia. Era como se nada tivesse acontecido. A não ser pela comichão atrás da orelha. Nas semanas, nos meses e nos anos seguintes - na verdade, até agora -, não foram poucas as vezes em que fui tomado por impulsos e visões. Volta e meia me surgia um nome na mente. Eu o ignorava. Uma vez recebi ordens interiores para embarcar urgentemente para o Nepal. Não fui. Histórias insólitas brotavam na minha cabeça, ímpetos inexplicáveis. Tudo, imaginava, parte da minha missão, tudo instrução da célula que corria no meu sangue emitindo ordens. Eu não dava bola. Eu nunca dei bola. No máximo aproveitava algum nome ou alguma situação nas minhas histórias. Quando sentia que era preciso fazer alguma coisa, em vez de fazer, escrevia. Em vez de obedecer à célula implantada e seguir seu plano, ou pelo menos descobrir qual era - salvar a espécie, juntar-me com outros escolhidos para fundar uma civilização, explicar a galáxia para a minha raça -, escrevi.

Durante todos esses anos desde aquele dia na praia, várias coincidências aconteceram em minha vida. Todos os números com mais de três algarismos que me dão - todos: placas de carro, contas em bancos, guias de internamento, telefone - contêm o número 48. Em qualquer quarto de hotel que eu me hospede, o canto da página 417 da Bíblia está dobrado, como se alguém tivesse marcado o lugar. Sempre que chego de avião a algum lugar, há uma pessoa no aeroporto com um cartaz nas mãos onde se lê o nome "Roszak", e a pessoa sempre me olha intensamente, como se esperasse que eu me identificasse. Nunca fiquei para ver se aparecia o tal Roszak. Nunca liguei para qualquer um desses sinais. Se é que são sinais. Às vezes fico tentando decifrar, pelas minhas inclinações, pelas minhas vontades inexplicadas, qual era a intenção da célula. Qual era a minha missão, afinal. Nada envolvendo política, isso é certo. O objetivo não era o poder. Nenhum contato com líderes mundiais, para transmitir um ultimato ou um conselho. Acordo no meio da noite com fomes estranhas, mas duvido que alguma superior civilização extragalática tivesse vindo aqui só para me inocular com o desejo de banana com alcaparras. Quase me convenci de que a tal célula já saiu na urina há muitos anos. Mas persiste a idéia de que traí minha missão e algum tipo de retribuição me espera. Uma vez, fui entrevistado por um grupo de colegiais. Quando se deu conta de que eu inventava as histórias, que todos os escritores inventavam as suas histórias e os livros que ela lia a enganavam, eram mentira, a menina ficou furiosa e me acusou com os olhos. A professora que acompanhava o grupo ainda riu e disse: "Não faz essa cara pro tio", mas a menina não me perdoaria. Fiquei tentado a explicar para ela o que tinha acontecido, a suplicar sua absolvição. Foi uma missão mal compreendida, entende? Era para ser outra coisa. Mas eu sabia que, por mais que jurasse que a história da praia era verdadeira, e até mostrasse o ponto vermelho que ficou atrás da orelha, ela não acreditaria. Hoje, sei que eu devia ter avisado ao formigão que era um escritor. Se ele soubesse que eu já tinha a compulsão de inventar histórias como esta, não teria me confiado a missão e desperdiçado sua célula. Por via das dúvidas, nunca mais caminhei sozinho pela beira da praia.